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Constituição Cidadã

vinte anos depois:


debater é preciso
Entrevista
Bete
Bete Mendes
Mendes
Direito à educação em risco
Trinta anos das greves do ABC
Cenário político-eleitoral em Angola

DEMOCRACIA VIVA 40
SETEMBRO 2008
e d i t o r i a l
Dulce Chaves Pandolfi
Diretora do Ibase e pesquisadora do CPDOC/FGV

C omemorar é festejar, celebrar, lembrar, refletir. Mas é, sobretudo,


não esquecer. Nesta edição da revista Democracia Viva, estamos homenageando e lembrando
alguns momentos, personagens e acontecimentos que marcaram a história do nosso país.

Por exemplo, estamos comemorando o centenário do pernambucano e cidadão do


mundo Josué de Castro, um intelectual ativista no combate à fome. Estamos rememorando os
30 anos das greves do ABC paulista – momento significativo do avanço e do compromisso com
as mudanças na vida do movimento sindical brasileiro.

Estamos, também, festejando os 20 anos da nossa Constituição, que representou


o rompimento com a ditadura militar, implantada no país em 1964, e a retomada do regime
democrático. Conhecida como Constituição Cidadã, sem dúvida, proporcionou um alargamento
da nossa cidadania. Entretanto, apesar dos grandes avanços, o nosso déficit de cidadania ainda
é muito alto. Por isso, ao mesmo tempo que festejamos nossas conquistas, devemos buscar
lembrar, entender e refletir sobre nossas deficiências.

Nesse sentido, no momento em que começa a ganhar espaço na sociedade brasileira


o debate sobre a responsabilização daqueles que cometeram crime de tortura durante o regime
militar, nada mais oportuno do que a entrevista com Bete Mendes. Desde muito cedo – quer
por meio da arte, quer da política –, ela se engajou na luta pela transformação da nossa socie-
dade. Por isso, foi presa e barbaramente torturada pela ditadura militar em 1970, aos 20 anos
de idade. Certamente, para além do privilégio de conhecer melhor a riqueza e a grandeza da
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas
Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
20040-916 Rio de Janeiro/RJ
3 ARTIGO
Tel.: (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9402
Educação pede socorro <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>
no Complexo do Alemão
Denise Carreira Conselho Curador
Suelaine Carneiro Sebastião Soares
João Guerra
Carlos Alberto Afonso
8 DEBATE
Nádia Rebouças
Brasil comemora aniversário Sonia Carvalho
da Constituição Cidadã
Direção Executiva
Marcello Cerqueira Cândido Grzybowski
Gisele Silva Araújo Dulce Pandolfi
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Francisco Menezes
João Sucupira
24 INTERNACIONAL
Coordenadores(as)
entrevista Paz, governança, reconstrução, Ciro Torres
Bete Mendes democracia e eleições em Angola Fernanda Carvalho
Adão Domingos Adriano; Analdina Silvina Itamar Silva
Eduardo; Konde Emmanuel; Lourenço João Roberto Lopes Pinto
Mabonzo; Massamba Ngengo Dominique; Luzmere Demoner
e Moises Chiteculo Piedade Festo Moema Miranda

28 ENTREVISTA
DEMO C RA C IA V I V A
Bete Mendes ISSN: 1415-1499 – Publicação trimestral

46 ARTIGO Diretora Responsável


Dulce Pandolfi
Trinta anos das greves do ABC
Marco Aurélio Santana Conselho Editorial
Alcione Araújo
50 RESENHAS Cândido Grzybowski
Alvaro Neiva Charles Pessanha
Cleonice Dias
Cláudio Severino
Jane Souto de Oliveira
João Roberto Lopes Pinto
cultura
54 CRÔNICA Márcia Florêncio
Constituição de 1988 Alcione Araújo Mário Osava
Moema Miranda
56 ARTIGO Regina Novaes
Rosana Heringer
Josué de Castro: um homem Sérgio Leite
e vários legados
Teresa Sales Edição
Ana Bittencourt
60 OPINIÃO IBASE
Subedição
Participação cidadã, onde Jamile Chequer
avançamos, onde emperramos?
Luciano Cerqueira Revisão
Flávia Leiroz
Reformas constitucionais Assistente Editorial
na América do Sul Flávia Mattar
Maurício Santoro
Assessoria de imprensa
Para apoiar os projetos 66 CULTURA Rogério Jordão
desenvolvidos pelo Constituição de 1988: Produção
Ibase, escreva para a voz e a letra do cidadão Geni Macedo
amigos@ibase.br Maria Helena Versiani
Estagiários
ou telefone para Carlos Daniel da Costa
(21) 2178-9400. 76 ESPAÇO ABERTO Diego Santos
Doações de pessoas Um novo olhar sobre
Distribuição
jurídicas podem ser as cotas raciais Elaine Amaral de Mello
André Sant´Anna de Oliveira
abatidas do Imposto
Projeto Gráfico e Diagramação
de Renda. 82 SUA OPINIÃO Mais Programação Visual

Foto de capa
84 ÚLTIMA PÁGINA Montagem sobre foto de Duda Bentes / Agil /
Nani Acervo Museu da República

Impressão
O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estratégia Morada do Livro
para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política
editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso Tiragem
5 mil exemplares
de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política.
Os artigos assinados nesta publicação não traduzem, necessariamente, a posição do Ibase. democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Denise Carreira*
Suelaine Carneiro**

A Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação1 lançou, em agosto de 2008, 1 A Relatoria Nacional
para o Direito Humano à
Educação é vinculada à
Plataforma Dhesca (Direitos
relatório final2 da missão realizada em outubro de 2007 sobre a violação dos direitos Humanos Econômicos,
Sociais, Culturais e
Ambientais), uma articulação
de 43 organizações e
educativos de crianças, jovens e adultos(as) que freqüentam as escolas públicas do redes nacionais de direitos
humanos. Além da educação,
a plataforma conta com mais
cinco Relatorias Nacionais
(saúde, alimentação e terra
Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O relatório será encaminhado, em setem- rural, meio-ambiente, moradia
adequada e trabalho), que
atuam com o apoio da
Procuradoria Federal do
bro, à Comissão Interamericana da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Cidadão e do Programa de
Voluntários das Organizações
das Nações Unidas.

Comitê da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU). 2 O relatório, na íntegra, está
disponível em:
A missão e o levantamento complementar de informações realizado em 2008 tiveram por <www.dhescabrasil.org.

SETEMBRO 2008 3
artigo

objetivo apurar e analisar o que ocorreu antes, za, e a taxa de mortalidade infantil é de 40,15
durante e após a suspensão das aulas por quase por 100 mil nascidos vivos, número cinco vezes
dois meses, decorrente da megaoperação po- maior do que na zona sul da cidade, que é de
licial contra grupos do narcotráfico ocorrida a 7,76 por 100 mil.
partir de maio de 2007 e que levou à morte A atividade econômica da região é com-
19 pessoas. Uma das questões que mobiliza- posta por 6 mil pequenos estabelecimentos,
ram esse trabalho foi verificar se a situação sendo que 87,4% são do segmento do comércio
de confronto armado – como intensificador e serviços. Apresenta altas taxas de natalidade,
das históricas violações do direito humano à pequena área livre por habitante, pouca oferta
educação e de demais direitos, enfrentadas de emprego, baixo índice de desenvolvimento
cotidianamente pelas populações de comuni- infantil e carência geral de atendimento no setor
dades populares – restringiu-se ao período da da saúde. Desde o fim da década de 1990, a
ação policial ou se é algo permanente na vida região do entorno do Complexo do Alemão
da população do Complexo do Alemão. viveu intenso processo de desindustrialização,
Para compreendermos a situação, que acarretou a perda de cerca de 20 mil postos
visitamos escolas e ouvimos integrantes das de trabalho.
comunidades, profissionais de educação, sin- A missão da Relatoria Nacional para o
dicalistas, autoridades públicas, organizações Direito Humano à Educação nas escolas públicas
comunitárias do Complexo do Alemão e outras do Complexo do Alemão revelou a urgência de
organizações da sociedade civil carioca. que a educação naquela localidade seja assumi-
da como uma educação em situação de emer-
gência. Em âmbito internacional, “educação
Por dentro do Complexo
em situação de emergência” é a decorrente de
O Complexo do Alemão é um conjunto de catástrofes naturais ou das chamadas emergên-
favelas localizado na zona norte do Rio de cias complexas. As “emergências complexas”
Janeiro, na Serra da Misericórdia, parte central são situações de gravidade social geradas pelos
da região da Leopoldina, abrangendo cinco seres humanos, entre elas, a violência armada.
bairros: Ramos, Inhaúma, Bonsucesso, Penha O que vimos demonstra que a violência
e Olaria. Em decorrência da falta de pesquisas na qual as escolas estão imersas é permanente
sobre a área, há dados conflitantes por parte e cotidiana e não-episódica, como informado
de diferentes fontes governamentais sobre sua por algumas autoridades. Essa violência tem
população3 e situação socioeconômica. momentos de pico e é sentida de forma dife-
Segundo dados do censo demográfico renciada nas áreas do Complexo do Alemão e
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística adjacências. Depoimentos apontam que ela se
(IBGE), a população do Complexo em 2000 intensificou nos últimos anos em várias áreas,
era de 65.021 habitantes. Atualmente, é es- alcançando patamares preocupantes a partir da
timada por alguns órgãos públicos entre 120 operação policial de maio de 2007.
mil e 160 mil pessoas, ocupando uma área de Grande parte das escolas da região sofre
6.185 hectares, sendo a segunda região mais a falta de professores(as), um problema que
populosa da cidade. O Complexo é composto afeta todo o estado, mas de forma intensa o
3 Segundo estudo do Centro
por 13 comunidades: Morro do Alemão, Grota, Complexo do Alemão e outras comunidades
de Promoção da Saúde Nova Brasília, Alvorada, Alto Florestal, Itararé, populares do Rio de Janeiro. Há escolas com
(Cedaps), realizado em 2003
e baseado em informações Morro Baiana, Morro Mineiro, Morro da Espe- turmas inteiras sem aulas, e há anos não é
obtidas na prefeitura, muitos
moradores do Complexo rança, Joaquim de Queiroz, Cruzeiro, Morro ministrada a disciplina de matemática. Em
do Alemão não informam
o endereço utilizando das Palmeiras e Morro do Adeus. decorrência da violência, das precárias condi-
Complexo do Alemão como Considerada uma das regiões mais po- ções de trabalho e dos baixos salários, muitos
bairro de moradia – preferem
informar os bairros a que bres do Rio de Janeiro, o Complexo do Alemão professores e muitas professoras – sobretudo
pertenciam suas comunidades
antes da existência do apresenta Índice de Desenvolvimento Humano da rede estadual – não permanecem nas esco-
Complexo (Inhaúma, Ramos,
Bonsucesso etc.). O estudo (IDH) de 0,711, o mais baixo dos 126 bairros do las. Essas apresentam também infra-estrutura
considera que tal situação Rio de Janeiro. A expectativa de vida é de 64,8 inadequada ou sem manutenção, os recursos
decorre do estigma criado
sobre o bairro, marcado anos e aproximadamente 14% da população são insuficientes para a merenda, há grande
por uma reputação cada
vez pior com relação à é analfabeta. Nessa região, cerca de 29% da demanda por vagas, como no caso das creches,
violência e à pobreza.
população local vive abaixo da linha de pobre- e baixa qualidade do ensino em grande parte

4 Democracia Viva Nº 40
Educação pede socorro no Complexo do Alemão

das unidades educacionais, apesar do esforço seguidas por obras de infra-estrutura do


heróico de muitos e muitas profissionais da Programa de Aceleração do Crescimento
educação. Também destacamos o comprome- (PAC das Favelas) e, por último, a garantia
timento da saúde mental de vários profissionais de serviços sociais adequados.
e estudantes.
O objetivo de “reassumir o poder do
território” não se realizará por meio somente
Para além da ação policial
de políticas de segurança, mas com serviços
Entendemos ser dever do Estado restaurar sua sociais de qualidade, entre eles, uma educação
autoridade no Complexo do Alemão e em outras de qualidade que garanta os padrões básicos
comunidades do Rio de Janeiro dominadas pelas previstos na legislação educacional. Além disso,
forças do narcotráfico que, como apontado são necessários atendimento de saúde com
pelo relator especial da ONU para Execuções profissionais e equipamentos e uma política
Sumárias, Philip Alston, “dominam comunida- de assistência social consistente e articulada a
des inteiras, submetendo os residentes a uma políticas de trabalho e renda. O Complexo do
violência sem sentido e à constante repressão”. Alemão e outras comunidades que enfrentam
Porém, questionamos a forma como problemas similares de violência e exclusão
vem sendo desenvolvida essa autoridade, ba- social acentuada exigem um
seada no uso arbitrário e excessivo da força, e “choque de política social”
temos grandes dúvidas sobre a sua eficácia ao que melhore as condições de Entendemos ser
identificarmos: vida daquelas populações e
impacte, de forma estrutural, a dever do Estado
• conhecimento limitado por parte das auto- reprodução cotidiana das redes
ridades públicas das dinâmicas sociais e das
complexidades envolvidas na constituição
criminais nessas áreas. restaurar sua
do poder, do funcionamento e da repro-
dução das redes do narcotráfico na região.
Nove meses depois autoridade no
Essa visão é muitas vezes marcada por
preconceitos diversos e pela estigmatização
Em agosto de 2008, a equipe
da Relatoria entregou em audi-
Complexo do
das comunidades; ência o relatório às autoridades
• inexistência de estratégias articuladas entre do estado e voltou a visitar as Alemão e
as esferas de governo (municipal, estadual e escolas do Complexo do Ale-
federal) e entre áreas de governo (sociais, de mão (ler recomendações em em outras
segurança e de trabalho) que visem garantir destaque). Para a secretária
os direitos humanos das comunidades e de Estado de Educação, Teresa comunidades do
impactar as causas estruturais do conflito. Porto, e o secretário de Estado
Dessa forma, o Estado brasileiro, mais uma de Segurança Pública, José Rio de Janeiro
vez em sua história, apresenta-se para a Mariano Beltrame, há con-
população de baixa renda com sua face cordância com a necessidade dominadas
predominantemente repressiva; de investimento em serviços
• inexistência de estratégias de prevenção do
conflito e de qualquer outra iniciativa que
sociais. “Nós, da polícia, só
‘enxugamos gelo’. Hoje, tenho
pelas forças do
vise à proteção das comunidades envolvidas;
• existência de diversas denúncias de violên-
consciência de que precisamos
de um grande investimento so-
narcotráfico
cia cometidas pela polícia e pela Força de cial nessas áreas para combater
Segurança Nacional contra as comunidades, o crime organizado”, disse Bel-
que abarcam casos de abuso de poder, trame. O secretário informou que havia acolhido
homicídios, tortura e roubos, em fase de a recomendação de desenvolver um conjunto de
apuração pelo Ministério Público Estadual; orientações às escolas sobre segurança pública.
• visão etapista da intervenção estatal presen- E avaliou que o PAC está contribuindo para
te nos discursos das autoridades públicas: articular as ações entre os governos estadual,
em primeiro lugar, o Estado chega com as federal e municipal.
operações de “limpeza” das redes criminais, A secretária Teresa Porto informou que

SETEMBRO 2008 5
artigo

a situação nas escolas estaduais é bem dife- primeira semana de ocupação, a ausência che-
rente da encontrada pela Relatoria ao fim de gou aos 90% e ficou em mais de 50% a partir
2007. Disse que novos(as) docentes haviam da segunda semana. “Aqui, a gente vive sempre
sido contratados(as) e que a secretaria está um sobe e desce. As famílias estão segurando
construindo um sistema de informação que as crianças em casa com medo do que virá”,
permitirá acompanhar, de forma mais deta- afirma a diretora Vera Caldas.
lhada, a situação de cada escola. A secretária No Ciep Theóphilo de Souza Pinto, lo-
municipal de Educação, Sonia Mograbi, não calizado na Vila Brasília, o vice-diretor Kleber
recebeu a equipe da Relatoria para entrega do Coelho observa que pouco mudou do ano
documento. passado para cá. “Continuamos com falta de
A constatação em agosto de 2008 é que professores. Temos capacidade para atender 4
os confrontos entre policiais e narcotraficantes mil estudantes e estamos com pouco mais de
diminuíram no Complexo do Alemão. Alguns mil”. Como retrocesso, destaca que não mais
acreditam que isso decorre das obras do PAC, consegue fornecer o café da manhã para as
outros que é resultado de algum “pacto” em crianças do período integral. “O dinheiro não
época eleitoral, outros acham que tudo pode dá, fizemos de tudo. E sabemos que essa ali-
recomeçar a qualquer momento. Nas escolas mentação é fundamental para a maioria.” Mais
da rede municipal Leonor Coelho e Monse- uma vez, a direção pede o apoio da Relatoria
nhor da Rocha, localizadas na Vila Cruzeiro, para que o consultório odontológico da escola
o clima é de temor e expectativa. Desde que – devidamente equipado – volte a funcionar. “Já
uma ocupação policial teve início na segunda não sabemos mais para quem pedir. São tantas
semana de agosto de 2008 com 300 policiais, as promessas de políticos e tanta a demanda
motivada – segundo as autoridades – pelo caso por atendimento. É um absurdo.”
do seqüestro de um grupo de chineses e pelas
denúncias de impedimento da presença de
políticos e jornalistas na área, grande parte das
crianças e dos(as) adolescentes deixou de ir à
escola. A escola Monsenhor da Rocha informou
que, na segunda quinzena de agosto, quase
40% faltaram às aulas. Na escola Leonor, na

Possibilidades do PAC
Recomendamos, enfaticamente, que o PAC das
Favelas, iniciativa do governo federal que co- monitorar e influenciar este que é um dos
meçou a ser implementado no fim de 2007 nas principais projetos de intervenção pública em
comunidades cariocas do Complexo do Alemão comunidades populares do país. Sem instâncias
e de Manguinhos, possa ser assumido, não como de controle social e participação, devidamente
mais um projeto, mas como uma estratégia que institucionalizadas e com poder efetivo, será
potencialize ao máximo a ação articulada entre difícil alterar a relação historicamente viciada e
os governos federal, estadual e municipal. Ação clientelista que marca a relação do Estado com
que permita a melhoria das condições de vida essas comunidades. Comunidades que, apesar
da população, baseada em participação efetiva dos grandes desafios, possuem organização, di-
dessas comunidades e de outras organizações namismo e criatividade imensa na forma como
do Rio de Janeiro. organizam suas manifestações culturais, redes
Nesse sentido, defendemos também a pro- de solidariedade e ações políticas.
posta de organizações do Rio de Janeiro de que
seja composto um “Conselho da Cidade” para

6 Democracia Viva Nº 40
Educação pede socorro no Complexo do Alemão

Recomendações * Denise Carreira


Entendemos que o Estado brasileiro (União, estado Relatora Nacional para
e município) viola o direito humano à educação da equipamentos, evasão, repetência, rotatividade o Direito Humano à
comunidade do Complexo do Alemão e de outras de docentes e problemas de saúde. Nesse ponto, Educação; feminista,
comunidades similares ao não garantir condições também destacamos a importância de que todos coordenadora do
mínimas que permitam a efetivação desse direito. os dados e todas as informações públicas estejam Programa de Pesquisa
A situação de emergência na qual se encontram disponíveis para consulta pública, vinculadas a e Monitoramento
exige um conjunto de medidas urgentes a serem uma política de promoção da transparência e de da Ação Educativa
implementadas pelo Estado brasileiro, entre elas: controle social que garanta o direito à informação e ex-coordenadora da
• Plano de ação: elaboração urgente de um plano pública de todo cidadão e toda cidadã. Campanha Nacional
de ação visando garantir o direito humano à • Articulação e coordenação de políticas: é funda- pelo Direito à Educação
educação de qualidade, levando em conta as mental a articulação das políticas de segurança
várias dimensões do documento internacional e das políticas sociais entre áreas de governo e
“Requisitos mínimos para a educação em situ-
** Suelaine
entre governo federal, estadual e municipal. Essa Carneiro
ação de emergência”. Além da infra-estrutura articulação deve se concretizar por meio de uma
adequada, especial atenção deve ser dada à instância coordenadora constituída para tal fim,
Assessora da Relatoria
necessidade urgente de recomposição do qua- que possibilite o planejamento, o monitoramento Nacional para o
dro de profissionais de educação com condições e a avaliação das ações e políticas consistentes. Direito Humano à
de trabalho adequadas, estímulo financeiro e • Participação comunitária: a constituição de Educação; integrante de
suporte pedagógico para o exercício da função instâncias institucionalizadas e permanentes de Geledés Instituto
na área. Isso exige estratégias que possibilitem interlocução com as comunidades é fundamen- da Mulher Negra
a superação de um quadro marcado por con- tal em situações como a vivida pelo Complexo
tratações precárias, baixíssimos salários, intensa do Alemão e por outras comunidades cariocas.
rotatividade e inexistência de apoio adequado Instâncias baseadas não em uma participação
por parte dos órgãos centrais às escolas dessas figurativa e nem consultiva, mas em uma partici-
comunidades. O plano também deve contem- pação que efetivamente contribua no processo de
plar, de forma sistêmica, a rápida melhora tomada de decisões e que reconheça a diversidade
do conjunto dos serviços sociais oferecidos inerente à organização comunitária. É importante
nas comunidades e alternativas de trabalho que o poder público não reduza a convocatória
que garantam condições de vida dignas para para participação nesses processos somente aos
jovens e adultos(as) desempregados(as) ou considerados “aliados” dos governos.
subempregados(as). • Protocolo de segurança escolar: observamos em
• Presença de operadores de direito: instalação nossas visitas que não existe nenhuma orientação
de postos de atendimento permanentes nas às escolas e às famílias com relação à segurança
comunidades da área por parte do Ministério em caso de conflito. Como nos foi dito pelo go-
Público Estadual e do Federal e da Defensoria verno estadual, serão realizadas novas operações
Pública. Realização de visitas periódicas por policiais nas comunidades. Por isso, insistimos
parte dos organismos da ONU, da Cruz Ver- ser fundamental a criação de protocolos de se-
melha, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) gurança, construídos por meio da parceria entre
e demais operadores do direito. Observamos segurança e áreas sociais, de forma a responder
que, em decorrência da escalada da violência, a algumas questões: o que fazer quando começa
vários desses órgãos e várias dessas instituições um tiroteio? Liberar ou não as crianças? Como
deixaram de visitar ou diminuíram de forma orientar as famílias? Ouvimos depoimentos que
significativa a presença na área, contribuindo mostram a total desorientação diante de tal
para o abandono total das comunidades à ação situação, o que, em nosso entender, aumenta o
de narcotraficantes, tornando-as vulneráveis risco.
ao abuso de poder de determinados policiais. • Cadastro de demanda: criação emergencial de
Identificamos também que várias empresas cadastro de demanda por educação da popula-
prestadoras de serviço de água, luz, correio, ção do Complexo do Alemão e adjacências. Esse
telefone, entre outras, diminuíram a presença ou cadastro deve abarcar diferentes graus e etapas
deixaram de prestar atendimento às populações da educação brasileira: educação básica (creche,
do Complexo e adjacências em decorrência da pré-escola, ensino fundamental e ensino médio),
violência. e ensino superior e modalidades (educação
• Informação de qualidade: enfrentamos muitas especial – para deficientes, educação de jovens
dificuldades para ter acesso a dados quantitati- e adultos(as), educação profissional e educação
vos e qualitativos referentes à região. Encontra- indígena). Evidentemente, é recomendável que
mos informações contraditórias e insuficientes o cadastro seja atualizado para o conjunto da
fornecidas pelo poder público. Para se construir população do município do Rio de Janeiro.
estratégias eficazes e efetivas, é fundamental a
constituição de um sistema integrado de infor-
mações que possibilite uma base qualificada
para o planejamento da ação do poder público
e da sociedade civil e o monitoramento de in-
dicadores diversos, entre os quais, situação dos

SETEMBRO 2008 7
d e b a t e

Em 5 de outubro, a Constituição
brasileira completa duas décadas.
Resultado do trabalho de uma
Assembléia Constituinte considerada
exemplar por estudiosos(as), realizado
de 1987 a 1988, é também fruto da
pressão da sociedade civil organizada
– que se empenhou para que as reais
demandas da população fossem
incluídas na nova Carta. Desde sua
promulgação, a Constituição Cidadã,
como foi batizada pelo presidente da
Assembléia, Ulysses Guimarães,

Brasil comemora
aniversário da

é festejada como o documento


que trouxe nosso país de volta à
vida democrática e abriu novas
possibilidades de exercício da
cidadania. Mas nossa legislação mais
importante tem sido respeitada?
Como vem se dando essa aplicabilidade
no cotidiano do Brasil? Onde o sopro
de democracia fluiu e onde ficou
congelado? Este é um momento
especial para fazermos tais reflexões.
Para contribuir com o debate, a revista
Duda Bentes / Agil / Arquivo Histórico do Museu da República

Democracia Viva publica três artigos:


um do jurista Marcello Cerqueira;
outro da cientista social Gisele Silva
Araújo; e outro do especialista em
Direitos Humanos, Pedro Cláudio Cunca
Bocayuva.
Confira a seguir.

8 Democracia Viva Nº 40
De pé, com as mãos
para o alto, Ulysses
Guimarães. A sua direita,
Moreira Alves e, à
sua esquerda, Paes de
Andrade. (Constituinte –
Sessão de 2 de fevereiro

SETEMBRO 2008 9
d e b a t e

Vinte
anos da
Constituição:
A Constituição de 1988 marcou a ruptura com exige quorum de dois terços em ambas
a extenuante ditadura militar de 1964 e foi feita as casas do Congresso. Ora, em 1982, foi
por meio de negociações, como a Constituição eleito um terço dos membros do Senado
anterior, de 1946 (ruptura pactuada). Isso a Federal, que em sua maioria gostaria de
aproximou do modelo espanhol (transición participar da Constituinte, embora não
pactada) e a afastou do modelo português tivesse poderes originários para tanto.
(revolucionária, na origem). A fixação do quorum de maioria simples
Os setores mais avançados não queriam contornaria esse obstáculo. Diferentemen-
repetir o modelo anterior e propunham, como te, a hipótese de convocação por meio de
se recorda, “Constituinte livre, soberana e Emenda Constitucional teria de conciliar-se
exclusiva”. Livre se auto-explica, e com “sobe- com a pretensão de senadores residuais
rana” e “exclusiva” queria-se dizer que ela não (Lobo; Leite, 1989, p. 4).
teria funções legislativas ordinárias e que se
dissolveria após a promulgação do novo texto, Tal não se deu e, de certa forma, em-
convocando eleições gerais. baraçou o passo dos trabalhos constituintes. É
A primeira questão que então se apre- que, naturalmente, os interesses permanentes
sentava para a Ordem dos Advogados do Brasil de uma Assembléia Constituinte são diferentes
(OAB) era a convocação da Constituinte, pois dos que pressionam o Congresso no dia-a-dia.
ela poderia definir, ou pelo menos fortemente De qualquer forma, a Constituição foi
orientar, seu modelo. Sabe-se que uma Cons- promulgada e trouxe aporte significativo de
tituinte só está vinculada aos termos de sua direitos fundamentais e sociais, ao mesmo
convocação. tempo que seu texto, demasiadamente analí-
Nesse sentido, o então presidente da tico, incorporou normas que mais bem seriam
OAB nacional, o advogado Herman Assis Baeta, tratadas em leis ordinárias. Mesmo a lei que
levou ao ministro da Justiça, Fernando Lyra, os criou a Petrobras, por exemplo, alçada à norma
termos da entidade. O ministro encarregou o constitucional, nem por isso viu protegida a
consultor jurídico do ministério de redigir o integralidade do monopólio estatal do petróleo.
caminho por onde deveria seguir a convocação:
Simples projeto de lei ordinária de ini-
Divergências e insensatez
ciativa do Executivo submeteria ao Con-
gresso Nacional a outorga de poderes Pouco tempo após a sua celebração e a pretexto
constituintes aos representantes do povo do fim do socialismo real – que teve a queda
eleitos em 1986. A lei daí resultante seria do muro de Berlim como ponto de maior ex-
submetida a referendo popular. Evitava-se pressão e exploração –, setores inconformados
a convocação por Emenda Constitucional, com os inegáveis avanços da Constituição de
já que a sistemática de sua aprovação 1988 já reclamavam sua “revisão”, brandindo

10 Democracia Viva Nº 40
d e b a t e

dispositivo do Ato das Disposições Transitórias incontrolável).


que chamava a plebiscito o eleitor para decidir Mal entrava em vigor e a nova Cons-
entre a forma de governo (presidencialismo ou tituição já enfrentava a arremetida de setores
parlamentarismo) e a nostálgica volta ao pas- conservadores dentro e fora do governo. Logo
sado com outro exótico império nos trópicos. em seguida, veio a investida do “emendão” do
Isso se o eleitor pudesse escolher entre governo Collor, que já usara o remédio amargo
um sistema desconhecido (o parlamentarismo, da “medida provisória” para confiscar a pou-
com vida efêmera com Jango) e a forte atração pança. Depois, cláusula perempta do Ato das
messiânica do presidencialismo. Marx, no 18 Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)
Brumário, ao comentar o golpe do II Bonaparte seria ilegalmente ativada na pretensão inútil de
– que, de alguma forma, aqui se reproduziria operar uma ambiciosa “revisão constitucional”
com a recandidatura de Fernando Henrique – instituto, como se sabe, estranho ao direito
–, dizia que um parlamento eleito estava em constitucional brasileiro, que só reconhece o
relação metafísica com o povo, ao passo que poder de emenda ao seu texto.
o presidente eleito mantinha com ele relação A “revisão” seria convocada na forma
direta. do art. 3º do ADCT, mas sua fonte material
Recorda-se que, presidente eleito, Tan- estava no anterior art. 2º do mesmo diploma.
credo Neves constituiu comissão de estudos Ou, em outras palavras: na hipótese de o elei-
para oferecer um anteprojeto de Constituição, torado sancionar o sistema “parlamentarista”
que restou conhecida pelo nome de seu presi- ou a “monarquia”, então a norma seria ativada,
dente, professor Afonso Arinos. mas apenas para compatibilizar o texto cons-
A Comissão Arinos inclinou-se para o titucional com a novidade (parlamentarismo e
semipresidencialismo (ou o semiparlamentaris- monarquia). Os demais dispositivos da Consti-
mo), nos moldes já praticados na França, desde tuição restariam intocados.
De Gaulle, e em Portugal (mais mitigado), após A pretensão de votar uma “revisão”
Constituição nascida da Revolução dos Cravos ampla da Constituição (espécie de terceiro
(e que permanece, mesmo após as reformas turno constituinte) iria esbarrar na dificuldade
liberais que aproximaram o país da Comunidade de operar interesses que se repeliam. No iní-
Européia). cio, observou-se até certa euforia envolvendo
Já assumindo a cadeira presidencial, setores que desejavam reformas para servir
e em face de divergências com o texto da exclusivamente a seus interesses. No curso dos
Comissão Arinos, sobretudo com a adoção do debates, entretanto, verificou-se a impossibili-
semipresidencialismo – que sugeria uma nova dade de agradar a todos. Naturalmente, uma
eleição para um novo governo –, o presidente modificação atendia a uma parte, mas prejudi-
José Sarney limita-se a publicar o relatório Ari- cava outra que, por sua vez, entrava em conflito
nos no Diário Oficial da União, e não o envia com uma terceira, e assim sucessivamente. A
como proposta do governo para a nascente reforma, aparentemente inovadora, é contida
Constituinte. pelo conservadorismo.
Razoável que no projeto Arinos constas- O espírito que animou a Constituição
se a “medida provisória”, que vai buscar raízes brasileira parcialmente já deixou seu corpo. As
na “ordenanza” italiana, cultura tão a gosto do reformas a mutilaram. As vicissitudes políticas
saudoso professor. Só que, naquele contexto, afastaram a aplicação prática dos ideais que
a medida é expedida por um primeiro-ministro a escreveram. A proposta da criação de um
dependente do Parlamento que o escolheu, e Estado Democrático de Direito, fundado na so-
que a qualquer momento pode derrubá-lo com berania, na cidadania, na dignidade, nos valores
uma moção de desconfiança. sociais do trabalho e no pluralismo político, foi
Transplantá-lo para um regime presiden- substituída por um estado liberal.
cialista (forte) foi insensatez, da qual se paga o Os objetivos fundamentais da República,
preço da desorganização legislativa e mesmo grafados no art. 3º da Carta Magna, mais pa-
do desequilíbrio entre poderes (Executivo ver- recem, agora, motivo de triste ironia: construir
sus Legislativo), pedra angular do princípio de uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
separação deles. O excesso de poderes do pre- desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e
sidente da República enfraquece e desorganiza a marginalização e reduzir as desigualdades so-
o Legislativo, além de abrir passo para situações ciais e regionais; promover o bem de todos, sem
de exceção (como esse arremedo de “estado preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
policial” que ora se apresenta desenvolto e e quaisquer outras formas de discriminação.

SETEMBRO 2008 11
A Constituição de 1988, além de re- social.
tomar e ampliar a ordem democrática, antes A Constituição teria vindo para conduzir
ferida de morte pela ditadura militar, consolida o mesmo processo, mas de forma a reduzir os
como direitos – e também os amplia – aquilo aspectos negativos. Afinal, uma nação efeti-
que era um misto de conquistas populares e vamente para todos. Essa utopia foi frustrada
concessões das elites na esfera social. Ela adicio- pelas “reformas” que, mutilando o corpo da
na à cidadania civil e política a dimensão social. Constituição, afastaram seu espírito.
Desde a Revolução de 1930, um pacto
não-escrito, impregnado de contradições, a
Economia desprotegida
que não faltaram períodos demorados de au-
toritarismo, dava curso a um projeto nacional. O desmanche do pacto constitucional produzi-
Seu conteúdo era a busca do desenvolvimento, do pelas forças do mercado e seus subalternos
às vezes acelerado, outras lento. Mas sempre operou-se em fraude à Constituição. A acu-
buscado. mulação democrática e social que o processo
A longa e penosa construção do pacto constituinte (constituição material) fez desaguar
envolvia a coesão das mais diferentes forças na Constituição em vigor é subtraída pela von-
sociais e políticas. O conflito entre essas forças, tade do governo federal, conjugada à maioria
contudo, era menor do que o consenso na im- congressual de três quintos – que modifica o
plementação do pacto. Militares, por exemplo, texto ao sabor dos interesses do mercado, de
desferem o golpe de Estado de 1964, do qual conveniências políticas casuísticas e, sobretudo,
resultaria a longa e amarga ditadura. E, mesmo da insuportável pressão norte-americana.
assim, dão seqüência, em parte, a um projeto No que diz respeito à soberania nacio-
que antes era conduzido por seus adversários, nal, foram suprimidas da Constituição signi-
embora os governos militares exacerbassem o ficativas normas de proteção à economia do
lado perverso do desenvolvimento capitalista país: controle da remessa de lucros do capital
no Brasil: a concentração de propriedade e de estrangeiro; conceito de empresa nacional;
renda, que agravou a já secular discriminação domínio da União sobre o subsolo; monopólio
do petróleo, monopólio sobre a pesquisa e a
lavra de recursos minerais e o aproveitamento
dos potenciais de energia hidráulica; monopólio
ou controle estatal sobre as telecomunicações.
Tratou o texto constitucional de proteger a
economia de aberturas tão insensatas quanto
apressadas que, afinal, ocorreram, acentuando
a dependência externa que o país terá enorme
dificuldade de reverter.
As privatizações selvagens alienaram o
patrimônio público e empenharam o futuro,
visto que haveremos de sofrer indefinidamente
a remessa para o exterior de lucros de empresas
Duda Bentes / Agil / Arquivo Histórico do Museu da República

que não exportam bens ou serviços. No limite, a


ameaça mais grave foi a tentativa de privatiza-
ção de nossos rios, que agora parece afastada.
Os rios existem sem hidroelétricas, mas estas
não podem viver sem os rios. O ar, as florestas e
os rios não são bens do Estado e nem de parti-
culares. São bens públicos, constitucionalmente
indisponíveis; são direitos difusos, pertencem a
toda a população.
Quanto aos direitos do cidadão e da
cidadã, sua dimensão dá bem a medida do
regresso a que o país continua, até hoje, sendo
submetido. Como se sabe, um dos grandes es-
forços dos socialismos deste século consistiu em
Solenidade de entrega de um dos substitutivos do relator Bernardo Cabral
desmercantilizar aspectos essenciais da relação
a Afonso Arinos e Ulysses Guimarães (Constituinte – Gabinete do Presidente –
26 de agosto de 1987) de trabalho. A educação universal e gratuita, o

12 Democracia Viva Nº 40
sistema público de saúde, as várias formas de romanos já demonstram sinais de exaustão ao
previdência e seguridade consagraram direitos manter suas conquistas guerreiras no Iraque e
que passaram a fazer parte significativa da no Afeganistão. A chamada “Ata Patriótica” é
remuneração do trabalho; o mercado, ou seja, o santo e a senha para ampliar as perseguições
a força patronal, deixou de ser a principal regu- em Guantánamo aos suspeitos de sempre, e
ladora do comportamento dos seres humanos também sempre em prejuízo das liberdades civis
como trabalhadores. na América. O petróleo alcança preços inespe-
Compatível com esses progressos da rados, e a carência de alimentos assombra o
humanidade, a Constituição de 1988 consa- mundo (“Um fantasma ronda a Europa...”).1
grou esses direitos, especificamente em seu Aqui, em nossas praias, temos a cons-
Capítulo II. As “reformas” realizadas, ou ainda tante ameaça à soberania da Amazônia e a
em andamento e, agora, sob novo patrocínio, Colômbia de Uribe como ponta-de-lança dos
objetivam reduzir ou suprimir esses direitos. interesses norte-americanos, já agora respal-
Trata-se regressivamente de empreender um dados pelo ressurgimento da desarquivada 4ª
esforço global de remercantilização das relações Frota. Internamente, a ação macarthista da
de trabalho. Polícia Federal e do Ministério Público, às quais
Tornam-se mercantis as prestações de setores do Judiciário se associam.
educação, a saúde pelo sistema de seguro
privado, a previdência comandada por fundos
Vida que segue
de pensão, apenas para citar alguns exemplos.
Os direitos sociais são substituídos pelo perfil Releio o texto e verifico que imprimi a ele um
da demanda de serviços em um mercado em tom pessimista, longe da minha forma habitual
expansão. O mesmo processo de encolhimento de ver e sentir o mundo. Com isso, pareceu-me
ocorre com a cidadania política. ter desconsiderado as conquistas democráticas
As formas clássicas de supressão dos e sociais que vieram com a redemocratização e
direitos políticos são as ditaduras ou tiranias. a Constituição em vigor.
Desgraçadamente, nosso país experimentou De certa forma, ao realçar os recuos da
todas. Mas o neoliberalismo, oferece soluções Constituição, posso passar a impressão de que,
mais sutis. Os anuários políticos revelam que longe de minha vontade, “anistiei”, por assim
nunca houve um número tão grande de de- dizer, os que revogaram, pela força, a Constitui-
mocracias liberais na história contemporânea ção de 1946, os quais, entretanto, não foram
como agora (excetuando episódios em curso na anistiados pelas sucessivas leis de anistia: é que
França e na Itália). Para alguns comentadores, a anistia não foi recíproca e os torturadores, ou
trata-se de uma avassaladora onda de demo- o que resta deles, não foram anistiados.
cratização que penetrou na América Latina, na Os subúrbios do autoritarismo se ex-
África e nos antigos países do Leste Europeu. pressam não apenas nas milhares de escutas
Contudo, nunca a forma democrática esteve policiais, muitas e muitas clandestinas, na
tão dissociada da substância democrática que espetacularização das prisões, sempre cobertas
a ela dá vida. por uma rede de televisão, ou na “denúncia” do
A elite do poder busca impor um sistema Ministério Público do Rio Grande do Sul contra o
político que se assenta em chefias de governo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
identificadas com a “globalização” predatória, (MST), que procura restaurar procedimentos
uma administração pública baseada em agên- próprios da ditadura militar – tentativa canhes-
cias regulatórias que, a experiência de outros tra de repristinar a revogada lei de segurança
países nos permite afirmar, se tornam indepen- nacional do regime militar.
dentes de tal forma que sobre elas não recaem É claro que sonhamos com “a volta
controles de nenhuma natureza do irmão do Henfil” e devemos render nossas
E, finalmente, um Poder Legislativo homenagens aos que lutaram pela redemocrati-
esvaziado de suas atribuições, submetido ao zação do país. E ficar alertas. Vida que segue.
garrote vil das medidas provisórias, ameaçado
por reformas partidária e eleitoral restritivas à
soberania popular e pela imposição da perda de
mandato por “infidelidade partidária” imposta
por um Judiciário ao qual falecem poderes
1 Primeira frase do Manifesto
para tanto. Comunista,
de Karl Marx e Friedrich
A economia mundial se retrai, e os novos Engels, publicado em 1948.

SETEMBRO 2008 13
d e b a t e

Florestan
Fernandes,
a Revolução
Burguesa
e a Força
Normativa da
Constituição
Gisele Silva Araújo

“Das invenções humanas, ela é a mais as análises sobre este país, embora o tema não
complexa e sutil, mistificadora e hipócrita, constitua em absoluto uma particularidade
verdadeira e cruel. Ostenta os rasgos utó- nacional. Ainda no século 19, Ferdinand Las-
picos – mesmo os que nascem para serem salle denunciava as cartas constitucionais como
gestos e símbolos –, oculta os vínculos meras “folhas de papel”, reunião de propósitos
ideológicos – até os mais necessários – e retóricos que nada podem diante das “forças
dissimula a sua essência: o poder, na forma reais de poder” (Lassalle, 1933). O problema
que ele é exercido por pessoas, instituições não estaria então no descaso com a legalidade,
e formações sociais do tope.” (Fernandes, mas nas irreais exigências e esperanças que
1989, p. 360) sobre ela se depositam.
Dizer das perdas e ganhos da sociedade
É bastante razoável que um artigo sobre brasileira com a Constituição de 1988 remete
a Constituição de 1988 relembre as expectativas portanto ao seu confronto com a realidade
que sobre ela recaíram desde a sua promulga- que lhe deu origem e que a opera. Trata-se de
ção e lamente as frustrações relativas ao seu invocar o chamado processo de modernização
descumprimento até então. A universalização através do qual várias sociedades incorporaram
dos direitos sociais ali prevista não se realizou o modo de vida e as instituições desenvolvidas
sob o falso argumento da impossibilidade de forma pioneira na Europa Ocidental, e a elas
financeira do Estado, e mesmo os direitos de adaptaram suas tradições.
origem liberal – vida, liberdade e propriedade Ler a Constituição de 1988 sob a ótica
1 Embora o § 1º do – se aplicam à parcela da população que possui da modernização brasileira se torna tarefa re-
Art. 5º da Constituição
determine que todos os meios privados para defendê-los.1 lativamente fácil quando o autor de uma das
direitos fundamentais têm
aplicabilidade imediata, A ineficácia das Constituições na sua obras capitais no tema da passagem do Brasil
a doutrina jurídica legitima pretensa função de ordenar a vida social não à ordem moderna foi também membro da
o descumprimento dos
direitos sociais em função é entretanto uma novidade. Desde o Império, a Assembléia Constituinte de 1987-88. Florestan
de restrições orçamentárias.
Cf. Araújo, Santos, 2008. dicotomia “Brasil Legal versus Brasil Real” anima Fernandes, mais de uma década depois de pu-

14 Democracia Viva Nº 40
d e b a t e

blicar A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de ruma contra a maré. Ela se opõe a teorias que
Interpretação Sociológica (1975), foi Deputado pareceram mais interessantes a alguns setores,
constituinte pelo Partido dos Trabalhadores (PT) que têm hoje largo trânsito na mídia e que
e seus artigos de jornal da época foram reunidos identificaram o Estado como o grande vilão
na coletânea A Constituição Inacabada: Vias dos males do Brasil. Retomar Florestan ilumina
Históricas e Significado Político (1989). aspectos pouco ressaltados sobre a Constituição
No último artigo ali publicado, Florestan de 1988, e permite corrigir o alvo da crítica.
Fernandes atesta a ineficácia das Constituições.
Seu diagnóstico é de que as classes dominan-
Burgueses: os donos do Estado
tes – ou simplesmente “os de cima”, nos seus
termos – têm acesso privilegiado ao Estado, e Segundo a interpretação mais difundida e que
podem então agir ignorando a existência de tem como livro seminal Os donos do Poder
preceitos constitucionais sem serem impor- (1958), de Raymundo Faoro, as carências do
tunados, ou mesmo “desconstitucionalizar a país têm origem na herança ibérica. Portugal
Constituição”. Florestan seguia assim toda uma teria sido uma porta de entrada torta para o
tradição de leitura do Brasil pela dicotomia moderno, condenando-nos à perpétua reprodu-
“Legal versus Real”. ção de um Estado ampliado, cujo funcionalismo
Sabia ele, entretanto, que esta não era público se apropria das energias libertárias da
uma especificidade de 1988, nem tampouco iniciativa privada em proveito pessoal. Não é
do Brasil. Ontem e hoje, aqui e alhures, as esta a conclusão de Florestan.
formas políticas continuavam inúteis quando Embora a sociologia tomasse como mo-
confrontadas com substância social refratária. delo clássico de modernização uma revolução
Os tempos então pareciam não ser outros. com revolução, à moda da França de 1789,
Depois dos esforços constitucionais, dos quais o sociólogo paulista via aqui um andamento
ele participara em aparente paradoxo com sua reformista, já apontado por personagens do
própria apreciação, conclui que permanecia Império e da 1ª República. Para Florestan, a
“Tudo como dantes no quartel de Abrantes” “vinda da Família Real” – outra efeméride deste
(Fernandes, 1989, p. 371). 2008 em que se comemoram os 20 anos da
No entanto, se a legalidade não pro- Constituição – teria precipitado uma revolução
duzia as mudanças que dela se esperavam, ela sem revolução: a Independência “transformís-
tampouco era inócua. As Constituições serviam tica” realizada em 1822.
de fato para encobrir as reivindicações seculares Sem mostrar-se como tal, e portanto
de igualdade, cumprindo a função inversa de “encapuzada”, a revolução da independência
preservar o status quo hierárquico e desigual. fincou a primeira estaca da modernidade no
Ter uma Constituição avançada significava dar Estado e nas instituições jurídicas brasileiras,
uma resposta meramente simbólica, uma subli- enquanto na sociedade só havia o latifúndio, o
mação de desejos insatisfeitos de descoloniza- senhor de engenho e a escravidão.2 Ao Estado
ção, “a melhor maneira de manter intocável o caberia pois estar à frente de uma sociedade
‘país real’” (Fernandes, 1989, p. 350). que, pela sua iniciativa privada, reproduzia a
Por que Florestan Fernandes participaria dominação patriarcal típica da ordem senhorial.
da Constituinte de posse de diagnóstico tão Era ele, portanto, o único portador da novidade.
definitivo? Ao que tudo indica, aquela era A revolução encapuzada da Indepen-
uma face persistente da história, mas não uma dência, entretanto, teria ainda outro efeito. A
condenação sumária. Seus vários artigos de internalização da metrópole em 1808 trazia ao
jornal, escritos ao sabor das derrotas e vitórias Brasil as práticas de importação e exportação
na Constituinte, expõem avaliações ora mais, de mercadorias que antes eram monopólio 2 Sobre as duas correntes
na interpretação do Brasil,
ora menos pessimistas. português. Iniciou-se um lento processo de ver, de Luiz Werneck Vianna,
O fio da meada destas oscilações não transformação do senhor de terras em agente “Weber e a interpretação do
Brasil”. Para uma excelente
está neles, mas na tese da Revolução Burguesa capitalista – em burguês, nos termos de Flo- leitura do Brasil que retoma
e vai além de Florestan
no Brasil (1975), obra também elaborada em restan. Fernandes, ver, do mesmo
diálogo com uma realidade em transformação: Seria fraca, no entanto, uma burguesia autor, A Revolução Passiva:
Iberismo e americanismo
uma parte escrita antes do Ato Institucional Nº que não rompia com a ordem senhorial e que no Brasil, em particular,
o capítulo “Caminhos e
5, a outra depois. se inseria no capitalismo internacional em po- descaminhos da revolução
A análise de Florestan Fernandes para o sição subserviente, exportadora e importadora, passiva à brasileira” (Werneck
Vianna, 1997)
processo de modernização do Brasil tem rele- agente interno do renovado estatuto colonial. e A Transição: Da Constituinte
à Sucessão Presidencial
vância em si, mas é também importante porque Incapaz então de estabelecer seu domínio di- (Werneck Vianna, 1989).

SETEMBRO 2008 15
retamente no plano econômico e promover a para promover nova rodada de desenvolvimento
modernização, valer-se-ia da política. capitalista. A Constituição de 1988, ao reunir
Ocupou então as estruturas do Estado, de forma praticamente pioneira os direitos civis,
tornando-o instrumento do desenvolvimento políticos e sociais, parecia então pôr um termo
capitalista dependente e do controle das de- a tal andamento.
mandas dos de baixo. A transição para a ordem
social competitiva no Brasil, se fez, portanto,
1988: sublimação ou disputa
através da autocracia burguesa: a modernização
seria obra de um Estado fechado à democrati- A Assembléia Constituinte de 1987-1988
zação, privatizado pelos interesses dominantes tinha por missão reconstruir o “Brasil Legal”:
nada libertários (Fernandes, 1975). a ditadura militar parecia ter domesticado a
Para Florestan, portanto, não era a mobilização popular, extirpando suas energias
burocracia do Estado – como se esta pudesse revolucionárias, de modo que a Constituição
se isolar totalmente das forças econômicas –, poderia cumprir a sua tradicional função sim-
que roubava a cena da iniciativa privada; ao bólica de manter tudo como antes.
contrário, era a própria burguesia que erguia No entanto, “as lutas sociais, que pare-
um Estado autoritário para levar a frente seus ciam dormitar no subconsciente de uma massa
interesses sem o incômodo assédio das classes silenciosa de cidadãos apáticos, estavam de fato
dominadas. fervilhando no substrato da sociedade. Subiram
Houve evidentemente variações neste rapidamente à superfície” (Fernandes, 1989: p.
arranjo ao longo do século 20. A 1ª República 89), e ameaçaram construir institutos jurídicos
liberal teve como protagonistas os fazendeiros capazes de modificar o coração do “país real”,
de café paulistas que controlaram os de baixo como os que pretendiam a facilitação da secu-
pela polícia e pela política dos governadores. larmente obstada reforma agrária.
Vargas são dois: o da ditadura do Estado Novo A Constituinte tornou-se um campo de
e o eleito democraticamente, morto pelo fecha- disputa. Dizia Florestan, que “enquanto as elites
mento da política já em curso. econômicas e políticas das classes dominantes
3 Embora Florestan não
mencione, a literatura aponta,
No período subseqüente recrudescem querem brecar o processo constituinte”, os
neste sentido, as demandas sociais, repelidas pelo autorita- de baixo não só querem “explodir a bastilha”,
a criação do IL – Instituto
Liberal, do IEDI – Instituto rismo que se instala com a ditadura militar. mas também “partir de uma posição avançada
de Estudos para o
Desenvolvimento Industrial
Não é o caso de detalhar aqui este histórico. na prática de uma democracia de participação
e do PNBE – Pensamento O importante a ressaltar é que 1964 responde ampliada” (Fernandes, 1989, p. 308).
Nacional das Bases
Empresariais. por mais um ciclo da autocracia burguesa: a Embora o Legislativo fosse montado ma-
ocupação do Estado pelas classes dominantes joritariamente pelo poder econômico, as classes
dominantes perceberam que os parlamentares
Duda Bentes / Agil / Arquivo Histórico do Museu da República

podiam sucumbir às pressões populares. Assim,


lançaram mão de organizações especialmente
criadas para influir na Constituinte, como a
União Democrática Ruralista (UDR), a União
Brasileira dos Empresários (UBE) e o Centrão,
entre outros expedientes,3 de forma que “a
Constituição ficasse contida em uma camisa-
-de-força, pela qual a reprodução do ‘país
real’ permanecesse inatingível” (Fernandes,
1989, p. 351).
Não havia, por parte das classes domi-
nadas, a visão utópica de que poderiam exercer
de pronto a soberania do povo, ditando a si
mesmas suas próprias leis. Mas assediaram a
Constituinte através de institutos como o da
iniciativa popular, pretendendo construir bases
democráticas para as lutas pela universalização
dos direitos. A Constituição deveria, então,
refletir todas as classes e ser extensa, contendo
Eleição para presidente da Assembléia Nacional Constituinte (Constituinte – Sessão de um “rol máximo de normas constitucionais”,
2 de fevereiro de 1987) protegendo de forma exaustiva os estratos

16 Democracia Viva Nº 40
mais sacrificados do país (Fernandes, 1989, dos juristas do país se esmera em justificar o
p. 88-89). injustificável: constroem princípios extra-cons-
Os avanços da Constituinte foram titucionais para legitimar o descumprimento de
obstados ainda por fatores externos. O país normas expressas na Constituição, baseando-se
periférico e satelizado sofreu forte intervenção na alegação tecnicista da restrição financeira.
dos Estados Unidos quanto aos termos de sua Para Florestan, já que o próprio parla-
Constituição. “As regras vêm de fora e são mento – representação do povo – não defende
estabelecidas pelo sistema capitalista mundial a Constituição, cabe à sociedade civil resistir
de poder.” Ocorre que aqui elas encontram diretamente à “sabotagem constitucional” das
solo fértil. O “particularismo cego, entreguista elites no poder (Fernandes, 1989, p. 371). A
e egoísta dos estratos dirigentes das classes Constituição não vale em si e por si. Ela só
dominantes” (Fernandes, 1989, p.365), resul- será um recurso para a extinção da autocracia
tante do modo como se desenrolou a revolução burguesa caso os de baixo, despertando uma
burguesa no Brasil, não oferece resistência e “consciência de classe crítica”, convertam a
aceita de bom grado aquelas imposições. Constituição em valor, mobilizando-a nas suas
O pêndulo, então, haveria de balançar lutas políticas cotidianas (Fernandes, 1989, p.
muitas vezes contra a democracia, anulando 362).
rupturas fundamentais que podiam ter tido Para refutar o argumento de Lassalle
lugar na Constituinte. O resultado concreto, no de que as Constituições são meras “folhas de
entanto, não foi uma ”peça homogeneamente papel”, Konrad Hesse sustentou a existência de
conservadora, obscurantista ou reacionária” uma “vontade de Constituição” (Hesse, 1991).
(Fernandes, 1989, p. 360). Conciliadora, a Hesse, no entanto, não desmente Lassalle. A
Constituição contém ameaças aos privilegiados. força normativa da Constituição depende de
“Sem perderem qualquer regalia, eles agentes reais que sustentem tal vontade. No
assistem horrorizados à rotinização de liber- Brasil, diante da autocracia burguesa que se
dades individuais e coletivas ou de direitos apropriou do Estado, esta tarefa está nas mãos
sociais, e à universalização do acesso a meios dos de baixo. “Só em semelhante contexto
legais que a exclusividade convertia em fonte 1934, 1946 ou 1988 deixarão de provocar
de odioso despotismo” (Fernandes, 1989, p. paralelos melancólicos, que fazem prever acon-
360-1). Tratava-se, doravante, de garantir que tecimentos indesejáveis” (Fernandes, 1989, p.
a Constituição – parcialmente ganha em dispu- 362).
tas minuciosas – não se “convertesse, em seus
aspectos mais promissores, em letra morta” REFERÊNCIAS
(Fernandes, 1989, p. 309-310). ARAÚJO, Gisele Silva. Democracia substancial e procedimental
como fundamentos da legitimidade constitucional: a
utilização de argumentos sociológicos da clássica teoria
constitucional nas teorias políticas contemporâneas.
Tempestade e esperança 2005. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade
de Direito, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio
Passados 20 anos da Constituição, e embora de Janeiro.
os meios legais inéditos tenham sido aciona- . e SANTOS, Rogerio Dultra dos. A doutrina jurídica
dos,4 várias daquelas normas foram anuladas e a legitimação do descumprimento da Constituição,
2008, mimeo.
explícita ou tacitamente. Logo após a promul- FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato
gação, Florestan vê no horizonte nuvens que político brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo, 1958.
anunciam tempestade. A “internacionalização FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de
4 Florestan já indicava
Interpretação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. a judicialização da política
da economia pressupõe que as burguesias na- . A Constituição inacabada: Vias Históricas e Significado como sendo causada, entre
tivas e a comunidade internacional de negócios Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. outras coisas, pelo uso
dos meios previstos na
caminhem juntas” (Fernandes, 1989, p. 371). HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre:
Constituição, como Ação
Sergio Antonio Fabris, 1991. de Declaração de
Renovavam-se os meios autocráticos, de forma LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição? São Paulo: Inconstitucionalidade
a permitir que os rumos do país continuassem Edições e Publicações Brasil, 1933. Disponível em e Ação Popular.

a ser dirigidos de fora. http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/constituicaol.html. 5 No artigo “A Constituição


Acesso em 23 de agosto de 2008. de 1988: conciliação ou
Além disso, desrespeitando os direitos WERNECK VIANNA, Luiz. A Transição: Da Constituinte â Sucessão ruptura?”, publicado
constitucionalizados e negligenciando o Es- Presidencial. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1989.
originalmente na Folha de
São Paulo em 04/10/1988,
tado Social desenhado pela Constituição, as . A Revolução Passiva: Iberismo e americanismo no Brasil. Rio Florestan Fernandes afirma:
de Janeiro: Revan, 1997. “... os de cima terão
classes dominantes optaram pela “violência . “Weber e a Interpretação do Brasil”, disponível em de recorrer à violência
institucional”, pelo controle policial das classes http://www.acessa.com/gramsci/?id=85&page=
institucional ou deverão
aprender, por fim, a
populares, e pelo aumento exponencial do en- visualizar, acessado em 10 de agosto de 2008. conviver com e a respeitar
os de baixo.” (Fernandes,
carceramento (Fernandes, 1989, p. 361).5 Parte 1989, p. 371).

SETEMBRO 2008 17
d e b a t e

À espera
da real
revolução
democrática
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Assessor do Núcleo de Direitos Humanos da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase)

A transição política brasileira da ditadura para vas e afirmativas para a mobilização do poder
a democracia, que se desdobrou na Anistia, soberano das classes populares como única
na Constituinte e nas eleições diretas, acabou sustentação para a progressão de direitos e a
marcada por ambigüidades e ambivalências por radicalização da democracia no Brasil.
causa das tentativas de refluxo e reciclagem da
contra-reforma por parte do antigo “Centrão”
O dilema
e da tutela das Forças Armadas.
Apesar das contenções e amarras que Não podemos avançar na autoconsciência e na
marcaram o processo de transição, a presença organização autônoma dos sujeitos coletivos
de forças populares e a incidência de movi- sem passar pelo resgate e pela interpretação
mentos sociais no plano da institucionalidade prática dos elementos de transformação conti-
deixaram marcas no conteúdo e no caráter dos na versão original da Carta Magna de 1988.
programático da nossa Constituição. Ao afirmarmos que vale o que está escrito, nos
Esse componente popular se projeta colocamos na linha de resgate e libertação das
como uma sombra, um espectro de democracia potencialidades presentes, na perspectiva de
que ronda uma revolução democrática inconclu- ampliação e reconhecimento de direitos como
sa. O que explica os diversos ziguezagues, como resultados ainda presentes, como forças iner-
o que levou ao impedimento de Collor e à nova ciais da intensa participação popular organizada
carga de energia popular na eleição de Lula, no processo constituinte.
sempre amortecida entre as continuidades das Refletir sobre as restrições, os avanços
seqüelas do domínio neoliberal, dos intentos de e os retrocessos ligados ao processo da Cons-
golpes institucionais e da morbidez corruptora tituição é a única condição de repensarmos
da pequena política arrivista. a centralidade do acesso e da promoção dos
A recomposição das bases de nosso direitos, fundamentais para uma estratégia de
capitalismo não conseguiu anular o impulso ampliação da democracia como valor universal.
nascido do poder constituinte das lutas pela Os elementos de farsa e restrição gera-
democratização fundamentado na extensão dos e transformados por força das lutas deixam
de direitos. A luta pela cidadania integral e a um legado, uma base de reconhecimento de di-
dinâmica progressiva de superação das desi- reitos políticos, econômicos, sociais e culturais,
gualdades ainda encontram referências positi- que serve para o questionamento mais fundo

18 Democracia Viva Nº 40
d e b a t e

da nossa dinâmica institucional – que vai muito corpo das multidões destituídas é visto como
além da substituição do “entulho autoritário” ameaça pelos dispositivos que tentam impedir
pela judiciarização da política e pela privatiza- a passagem para um período popular e demo-
ção e mercantilização da coisa pública.1 crático em nossa história republicana.
A criminalização de movimentos sociais,
a defesa da impunidade dos torturadores, a
O que vale do que está escrito?
apropriação dos fundos públicos, a degradação
dos direitos e a desnacionalização fazem parte O aniversário de 20 anos da chamada Consti-
de um processo que só pode ter resposta na via tuição Cidadã pode e deve ser um momento de
da Constituição e dos atores políticos capazes reflexão. Diante de tantas emendas (mais de 62
de resgatar o potencial e a trajetória de lutas até março de 2008), que geram um “mal-estar
pela democracia. da Constituição”, segundo Samuel Rodrigues
A atual relação de forças entre as classes Barbosa (1999), deveríamos arriscar a emenda
dominantes e as classes populares exige práticas da revisão geral, precedida de plebiscito?
de resistência e construção de alternativas cujo Por força de todo o ataque ao patri-
potencial de avanço se relaciona com os novos mônio estatal que solapa as bases materiais
direitos inscritos na Constituição Cidadã. do desenvolvimento autônomo nacional, nos
Levantar essa perspectiva de reflexão restaria apenas assumir o esgotamento da força
necessária não nos livra de exame mais profun- normativa de longa duração da Constituição?
do das limitações e contradições que encerram Nessa linha, Fábio Konder Comparato
a polêmica sobre o processo constituinte. As (2008) insiste no caráter patrimonialista e na
formas restritivas, que derivam do poder da cha- lógica oligárquica aberta na década de 1990,
mada “República Constitucional”, bloqueiam, que alienou a população do processo de decisão
na estrutura do Estado e na sociedade civil, a em matérias decisivas, tais como as questões
progressão do potencial emancipatório e do trabalhistas e previdenciárias ou o tempo de
poder constituinte popular. duração dos mandatos eletivos.
No meio da fragmentação e da preca- A maioria das mudanças usadas para
rização da vida social, a única ponte para ligar desqualificar os princípios constitucionais foi
uma frente única dos sujeitos populares, para resultado legal do intento de superação do
realizar as reformas sociais estruturais e garan- “nacional desenvolvimentismo” e do “getu-
tir a ampliação dos direitos reside no caráter lismo” – processo no qual Fernando Henrique
unificador do sentido programático e no valor Cardoso foi muito mais longe do que Fernando
ético normativo expresso nas lutas inconclusas Collor de Mello.
que se escrevem nas ambivalências de nossa Desde então, o uso da prerrogativa das
Constituição. O fundamento de legitimidade medidas provisórias, o espetáculo das CPIs e a
do arcabouço institucional e legal deve sair disputa de ações diretas de inconstitucionali-
das formas abstratas dos princípios para o dade fazem parte de um quadro mais geral de
terreno de normas efetivas, condicionando a morbidez, corruptibilidade e casuísmos, que
ação estatal de maneira mais favorável para a representa o cenário material e político do
redefinição de políticas. império do globalismo financeiro e do indivi-
A luta contra as desigualdades depende dualismo possessivo.
de realizarmos o federalismo de lugares, de A esse processo da sociedade política
modo a garantir a cidadania integral. O pro- corresponde, na sociedade civil, a substituição
jeto político de democracia progressiva só se do cidadão e da cidadã pelo consumidor(a), o
realizará por meio de plataformas e políticas proletariado pelo precariado e a transformação
sustentadas por um bloco popular, que precisa da questão social urbana e da questão agrária
da autoconsciência e da reflexão sobre as ques- em “casos de polícia”. A cultura do medo se
tões da ordem republicana para nos ajudar a instala com mais facilidade num ambiente
romper com a “nostalgia imperial” e a lógica de exploração da economia da insegurança,
do estado de exceção permanente. mobilizada pelo discurso dos jogos de guerra
A ênfase na mercantilização da vida contra as periferias e os(as) jovens (conduzido
social desenvolve-se contra uma cultura demo- por torturadores, paramilitares, tropas de elite
crática (com base no exercício e na promoção e especialistas em tecnologia) que ganha as
de direitos) e promove o fascismo social a telas e a audiência.
1 Para essa reflexão, podemos
partir da construção de contextos e imagens Pode parecer a conseqüência lógica de sugerir a recuperação das
reflexões
que barram a demanda coletiva por direitos. O um raciocínio crítico, necessariamente pessi- de Raymundo Faoro (1981).

SETEMBRO 2008 19
mista, que tenhamos de propor uma saída na instituinte e o controle democrático, é preciso
direção de uma nova Constituinte, uma vez que buscar os elementos contraditórios e uma
o processo da anterior esteve marcado pelas correta avaliação das disputas em crise, como
restrições da sua soberania, em um quadro de a crise de hegemonia dentro de uma transição
derrota da emenda das “Diretas Já”. Até mes- democrática inconclusa, em um quadro de
mo porque uma reforma restrita da política, transição paradigmática global.
ou uma continuidade de reformas do tipo da Devemos buscar a resposta que relacio-
tributária, só deve levar água ao moinho da ne o poder constituinte à soberania popular,
contra-reforma constitucional permanente. Na como base de uma democracia participativa,
dialética negativa do argumento crítico mais dentro das disputas reais e da dinâmica pro-
sólido, o vício de origem marca a fragilidade cessual da crise de hegemonia. Isso significa
da criatura (a Constituição de 1988), que se um tipo de crise que não pode ser resolvida
converteu numa caricatura. no plano de uma batalha só, pela guerra de
Será que, por isso, podemos realizar manobra direta. Para o bem ou para o mal, a
uma manobra institucional, por dentro da questão do valor da Constituição só pode ser
lógica das emendas, para deter, em definitivo, medida em sua relação com o processo histórico
esses atentados ao poder soberano do povo? da transição democrática.
Bastaria estabelecer o instituto da revisão geral Cabe – como fará a Ordem dos Advoga-
e, por meio desse, realizar um plebiscito, de dos do Brasil (OAB), no seu congresso nacional
modo a convocar uma Assembléia Constituinte em novembro deste ano – medir o papel da
com funções exclusivas, eliminando o vício de Constituição de 1988 na qualidade de instru-
origem do Congresso Constituinte de 1986, mento de defesa e ampliação de direitos diante
que produziu a Constituição de 1988. Como dos problemas da democratização, no quadro
veremos, mesmo que esse objetivo possa ser da atual reestruturação capitalista global, com
logicamente correto, para ampliar o poder todas as implicações e todos os processos de

André Dusek / Agil / Arquivo Histórico do Museu da República

Residência oficial do presidente da Câmara dos Deputados – 24 novembro de 1987

20 Democracia Viva Nº 40
crise do Estado e dos paradigmas políticos vezes amargas, como a que aprendemos no
clássicos. referendo sobre o estatuto do desarmamento/
Isso exige percepção da luta pelos di- comércio de armas.
reitos sob a ótica do pragmatismo radical, da Para avançar na cultura dos direitos, é
acumulação de forças e das contradições que preciso aprender a defendê-los e conhecê-los,
fazem com que a crise não gere estabilização conhecer e se apropriar da Carta, conhecer
da dominação. Em vez de vermos um problema seus princípios, reafirmar sua base normativa
no caráter programático da Constituição, não potencial de caráter programático. Precisamos
devemos ver aí a sua força? Em vez de vermos, reagir contra o esbulho perpetrado pela sanha
nos impasses, a força oligárquica e corporativa, neoliberal das emendas questionando os defei-
não podemos identificar elementos de uma tos de base, o que só pode ser realizado com
crise de legitimidade? Em vez de vermos apenas uma cultura política que ponha na ordem do
os recuos, não podemos perceber disputas e dia o ato de fazer valer o que foi escrito, única
conquistas? De todo modo, não se resolvem as condição de avançar e superar.
batalhas sobre os direitos coletivos e a demo-
cracia, sobre os modos de governar e organizar
Resgate necessário
o poder do Estado, sobre as políticas e o gasto
público, sobre a tributação, as desigualdades, No aniversário da Constituição Cidadã, o que
a propriedade, o trabalho e a previdência sem vale é resgatar o poder e a legitimidade que
antes definir um patamar de conquistas que fo- lhe foi dada por uma potência soberana sem-
ram obtidas, mesmo que permeadas de recuos pre contraditória, sempre em gestação, que
e derrotas parciais. precisa se pôr em movimento, tendo à mão
A construção da democracia e a po- o que foi escrito 20 anos atrás. Porque, para
tência política da cidadania não podem pres- a Constituição do espaço da cidadania, vale o
cindir das conquistas parciais escritas no texto que está escrito!
original. Aliás, esse esclarecimento sobre o O Congresso Nacional, a magistratura,
que foi escrito pelo constituinte sob a pressão o Ministério Público e as organizações sociais
da cidadania (movimento pela participação devem assumir a responsabilidade de avaliar
popular) abriu brechas decisivas, sem as quais os resultados da implementação do programa
não se pode avançar. Controvérsia semelhante democrático, expresso na Carta de 1988. Esse
marcou o debate sobre as reformas de base programa foi o resultado de grandes mobili-
e a ampliação da democracia antes de 1964, zações pela participação popular e de grandes
face aos limites e às restrições da Constituição disputas sobre a natureza e o caráter das
do pós-guerra. normas que refundaram a institucionalidade
Existe o risco de se tentar avançar sem do regime democrático depois de mais de 20
ter por base a superação sustentada real, o que anos de ditadura.
pode produzir mais regressão que avanço. A Como ponto de corte da transição de-
questão da mobilização para o resgate das con- mocrática, o processo constituinte inseriu o re-
quistas democráticas passa pela capacidade de conhecimento dos direitos econômicos, sociais
defesa organizada de direitos. O conhecimento e culturais no centro das normas orientadoras
se entrelaça e amplia o interesse. Por isso, as do funcionamento das instituições do Estado e
bases subjetiva e objetiva da Constituição de- dos direitos e deveres da cidadania.
pendem do arco de forças capaz de lhes dar Avaliar o resultado substantivo dos direi-
sustentação material e simbólica. Os direitos tos e a legitimidade de nossas instituições exige
são sustentados se pudermos responder aos leitura crítica do quadro de desregulamentação,
questionamentos sobre quem tem interesse em de descumprimento e da não-efetivação dos
defender o artigo 6 (dos direitos sociais), quem direitos nascidos da Assembléia Constituinte.
tem interesse em defender a função social da A questão da universalização do acesso aos
propriedade, quem tem interesse em defender direitos como fundamento e objetivo de reali-
o instituto da lei de iniciativa popular. zação de um projeto nacional baseado na so-
As derrotas não se resolvem por saltos berania democraticamente realizada, na forma
sem que as forças sociais estejam em movi- representativa e nas formas participativas, é o
mento. Estamos longe de uma frente única principal indicador para a avaliação do estado
de mobilização popular, estamos longe de da democracia no Brasil.
um cenário sem contradições e opacidades. A Outro indicador importante deve ser
nitidez é boa para ensinar lições reais, muitas construído para avaliar as tensões imanentes

SETEMBRO 2008 21
ao compromisso democrático de 1988, ad- vimento, baseadas na realização do bem-estar
vindas dos golpes e das revisões sofridas pela individual e coletivo.
Constituição por força das políticas de ajuste, O impulso da democratização se re-
das medidas provisórias e das modificações laciona à afirmação prática do direito a ter
substantivas derivadas da agenda de abertura direitos, da tradução concreta do ideal da igual
internacional, sob a égide das contra-reformas liberdade como fator simbólico e objetivo da
conservadoras em favor do modelo neoliberal. democratização. A questão da efetivação do
Na comemoração de 20 anos da Cons- Estado e do estatuto dos direitos deve guiar a
tituição Cidadã, são necessárias mobilizações e ação ético-política, tomando como princípio o
audiências públicas que levem em conta todo sistema de garantias e a orientação normativa
o esforço histórico realizado pelas forças so- do processo de efetivação material e da publici-
ciais engajadas na defesa de direitos humanos zação das práticas de uma cultura democrática
civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e enraizada na vida social e política de um país.
ambientais. A agenda dos movimentos de direitos
As atividades sobre a questão social e humanos e da cidadania organizada deve incluir
o estado dos direitos no Brasil devem pautar o a tarefa de avaliação do estado de cumprimento
questionamento sobre a consistência e a legiti- dos direitos, de enfrentamento dos desafios
midade de nosso ordenamento constitucional, lançados em 1988, de modo a produzirmos a
na perspectiva de reconstrução de estratégias mudança de rumos para avançar, efetivamente,
para implementar um desenvolvimento funda- na democratização. Essa deve ser uma maneira
mentado na efetivação da justiça social. de superarmos as desigualdades, a segregação,
Os temas do pacto federativo, do or- a discriminação e a injustiça social em todas
çamento, dos fundos e das políticas públicas, as suas formas, no plano do poder decisório
da participação democrática, do sistema de e na vida cotidiana, nos diferentes contextos
proteção, da garantia e promoção dos direitos territoriais da cidade e do campo.
humanos, do acesso ao sistema de justiça, dos
conflitos e da violência do Estado e na socie-
dade, da crise do Estado, dos problemas da
representação política, do colapso e da crise
do modelo de desenvolvimento concentrador
de renda e poder, do direito à informação e
à comunicação, das questões da ciência e da
tecnologia, dos problemas das discriminações
racial, sexual, de gênero e de geração devem ser
postos em debate. Relacionam a estrutura e os
processos de nossa democratização inconclusa
sob o olhar crítico da reflexão sobre a qualidade
de nossa democracia.
A questão das desigualdades e das se-
gregações social, espacial, étnica, de gênero e
de geração devem servir de guia para o debate
sobre a Constituição como instrumento material
e simbólico, objetivo e subjetivo, de viabilização
da transformação das realidades encontradas
em nossa vida cotidiana.
O problema da legitimidade e da le- Referências
galidade do ordenamento jurídico-político se FAORO, R. Assembléia Constituinte: a legitimidade recuperada.
traduz nos conflitos sobre o cumprimento e São Paulo: Brasiliense, 1981.
BARBOSA, S. R. O mal-estar da constituição. Adunicamp – Revista
o descumprimento do estado democrático de da Associação de Docentes da Unicamp, Campinas, v. 2,
direitos, nos termos definidos pelo compro- 1999. Disponível em: <http://br.geocities.com/profpito/
misso com a ampliação da cidadania como omalestardaconstituicao.html>. Acesso em: 14 ago.
2008.
conjunto de práticas. A questão constitucional COMPARATO, F. K. E agora, Brasil? Folha de São Paulo, São Paulo, 3
da democracia depende do poder vivo da sua mar. 2008. Opinião. Disponível em: <http://www1. folha.
apropriação permanente pela soberania popular uol.com.br/fsp/opiniao/fz0303200809.htm>. Acesso em:
14 ago. 2008.
como fundamento das ações pela exigibilidade
e pela justiciabilidade do direito ao desenvol-

22 Democracia Viva Nº 40
SETEMBRO 2008 23
intern
internacional
Dos amigos angolanos do Ibase*

Paz,
governança,
reconstrução,
democracia e
eleições em

Angola encontra-se em um momento de consolidação da paz e

de transição política, econômica e social, vinda de um contexto

de guerra e destruição para um de reconstrução e desenvolvimen-

to. Para isso, conta com os investimentos do Estado angolano

e de doadores internacionais e multinacionais. Espera-se que a

transição de um modelo de gestão pública centralizada para

uma gestão descentralizada produza, a curto e médio prazos,

mudanças que possam refletir na melhoria das condições


de vida das populações dos municípios e regiões mais pobres e distan-

24 Democracia Viva Nº 40
acional

Mais PV

SETEMBRO 2008 25
internacional

tes, e que as próximas eleições sejam capazes estiveram, até agora, como preocupação prio-
de legitimar os(as) titulares de cargos políticos. ritária do governo.
Com a publicação dos Decretos-leis 1/07
(para Cabinda) e 2/07 de 3 de janeiro (para todo
Em busca da paz
o país), sobre a descentralização administrativa,
Angola viveu um processo político complexo, começa a haver maior clareza sobre as respon-
principalmente a partir de 1975. Nessa épo- sabilidades governamentais locais. Tais decretos
ca, apesar da independência, não conseguiu criaram as bases e constituem um passo visível
organizar o processo eleitoral quando havia para a descentralização administrativa.
apenas três partidos nacionalistas (MPLA, FNLA Neste contexto, cidadãos e cidadãs,
e Unita). bem como grupos organizados da sociedade
Seguiu-se um período de guerra após a civil, podem participar das atividades de de-
independência e, em 1992, organizou-se um senvolvimento da zona territorial, desde que
processo que permitiria que as diferentes for- bem treinados e interligados. Por outro lado,
mações políticas concorressem, possibilitando tal participação proporciona à população mais
o jogo de alternância do poder por meio das experiência em processos de análise da situação
eleições. O processo correu bem do ponto de do município, na elaboração de planos pluria-
vista organizacional, mas acabou mal pela não- nuais de desenvolvimento municipal, na eleição
-aceitação dos resultados. Conseqüentemente, dos(as) representantes e em debates perma-
houve uma nova guerra civil, que terminou há nentes de análise sobre o progresso (fator a ser
seis anos. considerado em todo o programa de reforma
Desde o fim dessa guerra, que devastou administrativa por constituir um dois eixos do
o país, começaram a ser lançadas as bases para sucesso do desenvolvimento municipal).
Angola caminhar em busca da paz duradoura
e encontrar um modelo de desenvolvimento
Reconstrução
que proporcione à população oportunidades de
realização pessoal em função das suas aspira- Nos últimos anos, o processo de reconstrução
ções sociais. Para isso, a promoção da cultura de Angola tem caminhado a passos largos.
de tolerância e do respeito às diferenças tem Aos poucos, por todo o país, vão se erguendo
sido estimulada internamente. escolas, postos de saúde, estradas vão sendo
Hoje, a nação parece estar madura. reabilitadas. Enfim, está em andamento um
Essa conquista do povo angolano é, também, intenso programa de reabilitação e reconstrução
resultado de uma vivência e do aprendizado estrutural. Andando pelo país, seja nas áreas
por conta própria. Por isso, acreditamos que urbanas ou rurais, é visível a quantidade de
o país tem condições de avançar. Os princi- construções já prontas ou em curso.
pais elementos do Estado (Forças Armadas e A esta altura, ninguém critica o governo
Polícia Nacional) estão quase consolidados. O em relação ao volume de investimento para es-
que falta é a legitimação dos(as) titulares dos sas obras. As críticas são direcionadas à questão
cargos políticos, e isso depende do processo da sua qualidade e durabilidade, bem como do
eleitoral em curso. possível aproveitamento político que o partido
no poder pode tirar dessas realizações.

Governança
Democracia e eleições
Existe certa preocupação e empenho em rela-
ção à melhoria do sistema de governança do Muito ainda precisa ser feito para o estabele-
país, que sempre funcionou de forma muita cimento e a normalização do sistema demo-
centralizada – até recentemente, todas as crático no país. Foram aprovados os partidos
decisões eram tomadas pelo Governo Central, e as coligações partidárias que irão concorrer
com alguma participação, nos últimos anos, às próximas eleições marcadas para setembro
dos governos provinciais. As instituições admi- próximo, encerrou-se a primeira legislatura
nistrativas locais (municipal e comunal) eram, angolana (Assembléia Nacional), a Comissão
nesse contexto, extensão e reprodução das Nacional Eleitoral está avançanda na organiza-
estruturas centrais do Estado, quer nas suas ção do próximo pleito e os partidos entraram,
formas organizativas, quer no modo de funcio- oficialmente, em 5 de agosto, na fase da cam-
namento. A manutenção da segurança pública panha eleitoral.
e o controle sobre toda a extensão territorial Em 15 de julho, realizou-se a última

26 Democracia Viva Nº 40
sessão parlamentar da legislatura vigente, que coligações foram aprovados. Para estas eleições,
esteve no poder por 16 anos. Nesse período, os partidos receberão um financiamento, apro-
209 deputados, sendo 179 homens e 30 mu- vado pelo Conselho de Ministro, avaliado em 1
lheres, freqüentaram a casa, aprovando, em milhão 275 milhões de kwanzas – equivalente
média, 13 leis e 31 resoluções por ano. a US$ 17 milhões.
A principal dificuldade apresentada foi As figuras Rafael Massanga Sakaita, filho
a questão das residências dos deputados e, do falecido fundador da Unita, Jonas Savimbi,
sobretudo, o seu funcionamento, em tempo de e Welwitchia dos Santos Pego (Tchizé), filha
guerra. Entretanto, para a população angolana, do atual presidente de Angola e do partido no
o fim da primeira legislatura representa (e deve poder/MPLA, José Eduardo dos Santos, serão
representar), seguramente, o início de um novo outro ponto de forte interesse e que merecerá
ciclo político, que começa após as próximas a atenção do público quando for constituída a
eleições – que, se espera, cumpra a normalidade próxima legislatura. Ambos estão em posições
constitucional de quatro anos de mandato. nas quais, dificilmente, deixarão de ser eleitos
As listas dos partidos políticos que irão deputados.
participar das eleições já foram fechadas e divul- Por outro lado, devemos admitir que pai- * Dos amigos
gadas. Inicialmente, o Tribunal Supremo (TS) an- ra entre parte da população angolana e mesmo angolanos do Ibase
golano apresentou à Comunicação Social uma de estrangeiros (poucos) certo receio sobre os Adão Domingos Adriano;
lista com 98 partidos políticos devidamente resultados das próximas eleições. Aterrorizados Analdina Silvina Eduardo;
legalizados. Na ocasião, a instituição divulgou com a experiência de 1992, do Quénia e do Zim- Konde Emmanuel;
também um total de 29 siglas de formações babwe, algumas pessoas pretendem coincidir as Massamba Ngengo
políticas que não foram considerados legais. férias com a data das eleições. Contudo, até o Dominique e Moises
Cheteculo Piedade Festo,
Em 25 de julho, por despacho presiden- momento, isso tem ficado apenas em conversas
funcionários(as) da ONG
cial, foi criado o Tribunal Constitucional (TC) de bastidores porque, segundo algumas fontes,
Development Workshop
com objetivo de se encarregar dessa matéria na TAAG e em outras companhias de viagens
(DW), e Lourenço
jurídico-constitucional. Dos 98 partidos políticos que operam em Angola, ainda existem poucas Mabonzo, responsável
legalizados pelo TS, 34 partidos e coligações reservas e muitos lugares disponíveis. pela área técnica da
apresentaram candidaturas para disputar o Administração Municipal
pleito eleitoral. Desses, apenas 14 partidos e de Cabinda

SETEMBRO 2008 27
ENTRE Entrevista

VISTA
Bete
Mendes
Quem é Elizabete Mendes de Oliveira? Pergunta difícil
de responder, mas pensar em coragem, resistência e
contradição podem ser boas pistas. Muito cedo, a
aprendiz de ativista percebeu a cultura como valioso
instrumento para fortalecer sua ação política e
expressar sua emoção, evidente ao primeiro olhar. E
foi o que ela fez pela vida afora.
Queria ser promotora pública, filósofa, socióloga,
bailarina e pianista. Poderia ter sido escritora.
Mas foi como atriz que a jovem, com cerca de
20 anos, filha de um militar, reuniu forças para
lutar contra a ditadura e, paralelamente, trilhar uma
carreira de sucesso.
Deputada federal por dois mandatos, Bete participou
da Assembléia Constituinte que criaria, há 20 anos,
nossa Constituição mais festejada. No fim da
década de 1980, denunciou para a Presidência
da República e para a mídia seu torturador da
época de revolucionária. O episódio trouxe à
tona o debate
que hoje esquenta o Congresso e
a sociedade
sobre uma possível revisão da Lei
da Anistia. “Seria interessante
um debate sobre uma possível
revisão constitucional, e não só
para essa matéria. Deveria haver
um movimento buscando mais
participação da sociedade.
Acho interessante que haja um

28 Democracia Viva Nº 40
Democracia Viva (DV) – Fale um Aprendi a ler com 3 anos, com a ajuda de uma
pouco sobre sua infância e família. senhora que tomava conta de mim.
Bete Mendes – Nasci em Santos, uma De São Vicente, fomos morar na Base Aé-
cidade da qual me orgulho muito, porque rea de Santos, na Ilha do Guarujá. Eu morava
foi uma cidade de resistência pela sua orga- perto da escola pública Marcílio Dias, estava
nização sindical. Foi uma das últimas cidades no primário. O estudo era excelente e fazíamos
a ter eleições diretas, era considerada área também muitas festas. Eu participava de todas
de segurança nacional no período da nossa elas, criando e produzindo. Aí, já aparecia essa
redemocratização. Nasci em 11 de maio de veia artística.
1949, vou completar 60 anos em 2009. Nasci DV – E a política?
Elizabete Mendes de Oliveira, era gêmea. Meus Bete Mendes – Acho que veio dessa vi-
pais batizaram minha irmã de Izabel, ela faleceu vência na escola pública. Estudei nos melhores
com 1 mês de idade porque tinha insuficiência colégios do Brasil, todos públicos. Estudei
cardíaca. O interessante é que Elizabete e Izabel em Santos em escola pública, vim para o Rio
significam o mesmo. para o colégio Mendes de Moraes, voltei para
DV – Seu pai trabalhava em quê? Santos para a escola pública e depois ingressei
Você tem irmãos? numa universidade pública. Eram professores
Bete Mendes – Meu pai era suboficial da maravilhosos, o ensino era maravilhoso. Lá,
Aeronáutica, ele servia na Base Aérea de Santos, tínhamos uma vivência mais próxima com as
e depois foi transferido para a Base Aérea do pessoas, era muito grupal. Fui representante
Galeão, no Rio, de onde foi transferido para de turma várias vezes.
a Base Aérea de São Paulo, no Campo dos Fiz prova para cursar o ginasial no Colégio
Afonsos. Moramos também um período em Canadá, em Santos, e passei. Cursei, lá, o pri-
São Vicente, cidade limítrofe de Santos. Tenho meiro e o segundo ano do ginásio. Depois, meu
um irmão, Marcos Mendes, 13 anos mais pai foi transferido para Ilha do Governador, Base
novo, e uma irmã do segundo casamento da Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, e fui para
minha mãe. o colégio Mendes de Moraes. Repeti o terceiro
Minha irmã tem um nome muito especial: ano e isso, pra mim, foi mortal porque eu era
Ptsiqui, por minha responsabilidade. Quando traquina, mas estudiosa e concentrada.
minha mãe e seu marido quiseram batizá-la, DV – Mudar várias vezes de cidade
pediram que eu escolhesse o nome. E eu – já a incomodava?
entrando um pouco no meu ativismo –, abso- Bete Mendes – Bastante. Entre Santos e
lutamente anárquica e espontaneísta, estava São Vicente, não foi sentida essa perda porque
muito ligada à causa indígena e era amiga dos as duas cidades são tão próximas que não
irmãos Villas Bôas. Fui à casa deles em São Paulo percebemos a diferença. De Santos para o Rio,
e pedi uma lista de nomes indígenas. Ptsiqui fiquei apavorada. Mas quando cheguei ao Rio,
é masculino e significa fada da floresta na lín- me apaixonei pela cidade de maneira surpre-
gua da nação Gê. Hoje, ela é médica, cirurgiã endente, tanto que, quando meu pai teve que
plástica, e todos a chamam de Pit. voltar para São Paulo, eu chorava desesperada-
DV – Seu pai era um militar mente, não queria voltar. Claro, estava com 12,
de esquerda ou de direita? 13 anos, começando a namorar, essa mudança
Qual a origem de sua família? foi traumática. Mas para uma pessoa com vida
Bete Mendes – Ele não tomava partido, militar, meu pai até que mudou pouco, serviu
vem de uma família tradicional de São Paulo, e em poucas praças.
minha mãe é filha de índia. Cheguei a conhecer No colégio Mendes de Moraes, no Rio,
minha avó, tenho verdadeira paixão por ela, tínhamos aula de Canto Orfeônico, uma ma-
que era guarani, linda. Meu pai nunca foi uma téria muito importante. O ensino de música
pessoa repressora, autoritária. Ele se espantava nas escolas é um assunto em pauta hoje – até
muito com minhas reações, eu tinha um galope mandei um e-mail para o presidente da Re- 1 Assista também ao vídeo
com os principais trechos
muito pessoal. Desde muito pequena, o amor pública porque o projeto de lei foi aprovado da entrevista, disponível
pela arte e pela política caminharam juntos. no Congresso e espero que seja sancionado.2 no Portal do Ibase: <www.
ibase.br>.
DV – Quando isso começa? Quando fui parlamentar e secretária de Cultura
2 Nota da edição: alguns dias
Bete Mendes – Com 5 anos de idade, do Estado de São Paulo, batalhei bastante para após esta entrevista, realizada
quando morávamos em São Vicente, meu pai isso e não tive sucesso. Agora, tive essa notí- nos dias 6 e 8
de agosto, o presidente
era muito fã dos musicais e da música norte- cia boa. Principalmente para os homens, isso Lula sancionou o projeto
de ensino de música nas
-americana, e eu escutava e gostava muito. era muito importante, era uma libertação dos escolas públicas.

SETEMBRO 2008 29
entrevista

constrangimentos através da voz. A formação tinha, peças manuscritas para Oduvaldo Viana
pela música abre campos inimagináveis. Filho. Ele, tão generoso, respondeu para mim.
Nessa escola, montamos um grupo de tea- Em uma das minhas peças, o povo ia para o
tro espontaneamente, estimulados e apoiados Palácio de Governo, na época o governador
pela professora Regina Carvalhal. Desse grupo, era Carlos Lacerda, e a polícia metralhava todo
fizeram parte, além de mim, Bemvindo Sequeira mundo. O Vianinha respondeu que a peça era
e Ângela Leal. Encenávamos tragédias gregas, quase impossível de encenar, mas ele observou
tínhamos atividades nos fins de semana, tí- que havia um personagem, uma professora,
nhamos uma liberdade de ação incrível. Eu era que tinha uma história bonita e que poderia
uma estudante aplicada, esportista esforçada ser aproveitada.
e participava do grêmio estudantil. Aí, já co- Esse personagem foi inspirado em uma
meçava a juntar ação política (de forma quase amiga do colégio. O Vianinha me deu uma
rudimentar) e cultura. sugestão bacana, que não segui: ele achava
DV – Participou do movimento que eu escrevia bem e que deveria tentar tra-
de cultura popular da época? duzir alguns livros para a linguagem cênica. De
Bete Mendes – Quando morava na Vila fato, sempre me dei bem nas aulas de redação.
Militar, no Rio, fiquei amiga de uma família de Mas, na época, eu queria fazer Direito para ser
vizinhos cujo sargento era comunista. Ele fale- promotora pública, queria julgar todo mundo.
ceu, e sou apaixonada até hoje por ele. Minha DV – Como seu pai, sendo militar,
primeira informação político-cultural foi nessa reagiu diante de suas incursões
casa. Com a filha dele, que era um pouco mais na política?
velha que eu, e uma outra, comecei a freqüentar Bete Mendes – Meu pai ficava nervoso,
a UNE [União Nacional dos Estudantes]. Estava preocupado e, ao mesmo tempo, tínhamos uma
com apenas 13 anos. relação afetiva tão forte que, apesar de ele dizer
DV – De novo, estava unindo arte para eu não me meter naquilo porque poderia
e política, não? ser perigoso, a gente debatia os assuntos. Ele
Bete Mendes – Sim, e a partir daí, isso se dizia que eu estava errada e eu, sendo muito
fortaleceu. Na minha volúpia de leitura, comecei abusada, o questionava. A gente tinha todo
a ler sobre todos os trágicos gregos, passando esse debate, mas ele não era do tipo agressivo
pelos grandes teatrólogos mundiais, e enveredei nem punitivo, era só discussão mesmo.
pela leitura de livros políticos. Na minha casa, DV – Você já falou algumas vezes
comprávamos poucos livros. Mas tinha uma sobre o seu pai. Como era a relação
família de outro sargento que comprava muitos com a sua mãe?
livros. Então, li a obra inteira do Dostoievisk. Bete Mendes – Era uma relação de idolatria
Foi assim que comecei a escrever peças de e desejo de chegar a ela. Minha mãe era um
teatro. Numa das idas à UNE, levei, numa pas- furacão de beleza, meu pai não era bonito.
Minha mãe, ainda hoje, é bonita. Ela era de
parar o trânsito na rua, era um violão, eu fica-
va alucinada com a beleza dela e me achando
feia. Mas me identificava mais com a forma de
pensar da mulher do vizinho comunista. Ela não
era comunista, só o marido, mas me identificava
com ela. Com a mãe, era mais a questão afetiva,
ela era muito afetuosa.
DV – Você estava com 15 anos
quando foi dado o golpe militar
de 1964. Como foi esse impacto
na sua vida?
Bete Mendes – Nessa época, estudava no
Mendes de Moraes e a diretora fez a ordem
unida, mandou os alunos entrarem em forma e
Arquivo Bete Mendes

cantarem o Hino Nacional. Eu saí e não cantei.


Ela me chamou, e eu disse: ‘Não vou cantar
o Hino Nacional porque aconteceu um golpe
de Estado!’. Ela me suspendeu por três dias e
Com o amigo Bemvindo Sequeira em 1979 chamou meu pai na escola. Eu tinha essa ou-

30 Democracia Viva Nº 40
Bete Mendes

Arquivo Bete Mendes

Arquivo Bete Mendes


O irmão Marcos e a irmã caçula, Ptsiqui Bete aos 4 anos

sadia da inconsciência jovem. Na época, estava peça “Liberdade, liberdade” e também a uma
como área de influência do Partido Comunista montagem maravilhosa do Agildo Ribeiro, “As
Brasileiro (PC), meu contato era o Bemvindo aventuras de Ripió Lacraia”.
Sequeira. Já estava lendo Marx, Engels, Lenin, DV – Foi a primeira vez que
estava com a cabeça a mil. foi ao teatro?
A mulher jovem, atraente, não existia. Eu Bete Mendes – Não, tinha tomado conhe-
tinha um namorado, mas era muito severa, cimento do teatro em Santos, ainda pequena.
muito preocupada com a moral e tinha uma A primeira peça teatral profissional a que assisti
rejeição à mulher-objeto. Isso é algo que me foi com meu pai. No palco, estava a extraordi-
seguiu durante a vida, me fazendo ter posturas nária Dercy Gonçalves. Mas, no geral, fui pouco
avessas a isso, mesmo artisticamente. ao teatro, ia mais ao cinema. Não ouvia novela
Quando aconteceu o golpe, meu pai che- de rádio, que era comum na época, nem assistia
gou em casa apavorado. Ele era especialista às novelas de televisão. Foi também em Santos
em hélices, era um técnico e foi chamado para que participei da minha primeira peça de tea-
plantão. Todo mundo estava assustado, e fui tro infantil, de um autor comunista, também
me instruir, buscar informações, na casa do santista, Oscar Von Full, “A árvore que andava”.
meu vizinho, que foi preso imediatamente. Eu Eu fazia a coelhinha Naná.
estava assustadíssima. DV – Depois do golpe, vocês se
DV – Você participou do Comício mudaram novamente, não foi?
da Central em favor do Jango? Bete Mendes – Meu pai voltou para São
Bete Mendes – Não, esse foi um momento Paulo, e eu e minha mãe fomos para Santos,
de sofrimento. Queria ir, minha vizinha ia, mas eles já estavam se separando. Fui para o Colégio
meu pai me proibiu. Ele ficou de plantão por Canadá. Nessa época, conheci Ney Latorraca,
vários dias, e fui sentindo a mudança pelo medo que estudava comigo, e Nuno Leal Maia, que
das pessoas, apesar de não participar direta- estudava em um colégio particular, o Santista.
mente. Conversava muito com minha vizinha, e Entrei para o grupo de teatro do Colégio Ca-
meu pai visitava o marido dela na base onde ele nadá, para o grêmio, para o grupo de esportes
estava preso. Ao mesmo tempo, teve a minha do Nuno Leal Maia na praia, participava do
resistência no colégio, meu pai brigou comigo, Cineclube de Santos e de um grupo do Clube
mas eu era a melhor aluna da classe, então de Xadrez de Santos, todos eram mais velhos, a
isso facilitava um pouco. Aconteceu o golpe, única estudante era eu. Enfim, estava numa vo-
mas alguma coisa resistia. Em 1966, assisti à lúpia de fazer muitas coisas ao mesmo tempo,

SETEMBRO 2008 31
entrevista

sempre na correria. Ney Latorraca definia bem colégio, que era maravilhoso, foi deposto por
essa situação: dizia que enquanto ele queria motivos políticos. Assumiu uma nova diretora,
soltar plumas e paetês no teatro, eu estava lá e fizemos algumas manifestações contrárias.
reivindicando melhor horário para os alunos, Ela tentou nos punir, e participei do movimento
questionava o colégio, que estava se fechando de greve. Ficamos na porta do colégio fazendo
para a participação. Eu era uma ativista e ele piquete para não deixar aluno nenhum entrar.
era um ator. Estava hospedada na casa de uns amigos e
DV – Quando começou a trabalhar? estudava à tarde. Um colega da peça infantil
Bete Mendes – Foi em Santos. Eu queria que fiz em Santos, Carlinhos Silveira, estava
ganhar dinheiro, fiz um curso de datilografia, encenando uma peça dirigida por Ademar
no qual não me saí muito bem. Primeiro, tra- Guerra, o espetáculo “Marat-Sade”, e eu assistia
balhei como secretária de um advogado, foi toda noite, nessa época já era rata de teatro.
ótimo porque ele ficava com os clientes e eu Armando Bogus interpretava Marat e Rubens
lia o dia todo. Depois, fui para o Sindicato de Correa, Sade. Era sobre a revolução francesa,
Motoristas em Guindaste do Porto de Santos. eu ficava babando. Mas era muito tímida, era
E adorei. Eram brutamontes, homens das do- um problema.
cas, carregadores de peso, e me tratavam com DV – Pelo que relatou, você
uma gentileza, com uma consideração, mesmo também era atirada. Como
quando eu errava. conciliar ousadia com timidez?
DV – Mas você ainda não estava Bete Mendes – Não sei. Para você ter uma
totalmente engajada? idéia, durante a aula, só sentava na frente,
Bete Mendes – Não, eu era área de influ- arrumadíssima, os lápis bem-apontados, fazia
ência do PC no Rio e quando fui para Santos, tudo com primor. Mas era amiga da turma ba-
não houve transferência. Mas acabei me apro- gunceira que ficava lá atrás, não suportava as
ximando dos comunistas de Santos. Não tinha coleguinhas iguais a mim, era amiga da tropa
ainda uma convivência organizada com eles, que matava aula, que falava sacanagem. Essa é
mas já era amiga de todos. Eu fazia parte do uma confusão que nunca consegui entender. Se
grupo dos fedelhos que estavam chegando. chegasse para uma conversa, pedia para entrar,
DV – E quando começou seu ficava quieta num canto, até alguém falar uma
ativismo realmente? besteira, aí eu entrava.
Bete Mendes – Quando fui para São DV – Por que você deixou de morar
Paulo procurar emprego. Estava com 17 anos, com sua mãe?
no terceiro clássico, e consegui a única vaga Bete Mendes – Minha mãe ficou em San-
disponível no Colégio de Aplicação. Eu era tos, ela estava com um novo casamento, e eu
uma argumentadora de marca maior, foi aí não quis morar com eles. Meu pai foi morar
que comecei o ativismo estudantil. O diretor do sozinho e eu fui para São Paulo, mas me dava
bem com os dois. Eu resolvi ir à luta mesmo.
DV – E como começou a trabalhar
Marcus Vini

profissionalmente em teatro?
Bete Mendes – Pedi ao Carlinhos Silveira
para me apresentar ao diretor da próxima peça
que ele fosse fazer. O diretor era o Antunes
Filho, fiz o teste e passei. Era “Cozinha”, peça
de Arnold Wesker, com tradução do Millôr
Fernandes. Ele tinha como assistentes, Stênio
Garcia e Eva Wilma, e no elenco estavam Juca
de Oliveira, Irene Ravache. Eu tinha o último
papel da peça, sem fala, só desfilava com uma
bandeja. A menina que ficou com o penúltimo
papel teve hepatite, fiquei com o papel dela.
Estávamos ensaiando, a Eva Wilma pega minha
mão e diz: ‘Nasceu uma atriz’.
DV – E a vontade de ser promotora,
onde ficou?
Bete Mendes – Até aquele momento, eu
não tinha idéia de que era uma atriz. Fui tra-

32 Democracia Viva Nº 40
Bete Mendes

balhar porque precisava e conseguia conciliar o trabalho. Como resolveu isso?


horário do teatro com o do colégio. Nessa épo- Bete Mendes – Pedi a Irene Ravache para
ca, eu não queria mais ser promotora pública, me apresentar a alguém da TV, que tinha ho-
queria ser filósofa. Tentei conciliar o cursinho rários mais flexíveis (hoje, já não é mais assim).
pré-vestibular com o Colégio de Aplicação, mas Poderia continuar trabalhando como atriz,
não deu. Então, esperei terminar o clássico e fiz tendo um salário. Para minha sorte, no dia da
teste para conseguir bolsa no cursinho Equipe. discussão com o Antunes, Cassiano Gabus Men-
Ganhei bolsa integral. A peça foi um sucesso des, diretor da TV Tupi, que estava na platéia,
de público e eu briguei com Antunes. ouviu e a Irene falou com ele para me levar
DV – Por que vocês brigaram? para a TV. Assinei contrato de um ano, com o
Bete Mendes – Porque eu ganhava menos dobro do salário que ganhava no teatro, que
de um salário mínimo, e pelos ensaios, ganhava para mim era muito, e, no ano seguinte, tive
a metade. A peça era um sucesso e eu queria um aumento de quase o dobro.
ganhar o salário mínimo. Depois do espetáculo, DV – E como conciliava o ativismo
houve uma reunião de elenco. A peça tinha com a vida de atriz?
estreado há um mês e o Antunes perguntou Bete Mendes – Foi complicado. Enquanto
se alguém queria falar. Eu disse: ‘Não falo em estava no cursinho, já participava de uma or-
nome de ninguém, falo por mim, quero aumen- ganização revolucionária, Vanguarda Armada
to de salário’. Começamos a discutir e ele me Revolucionária Palmares, a Var-Palmares. No
despediu, mas disse para eu ir embora só no dia cursinho, o Joel Rufino dos Santos era meu
seguinte, depois do espetáculo. Nessa época, professor de História e usava o nome de guerra,
eu morava numa pensão, passei aquela noite Pedro Ivo, porque ele estava foragido (só tive
em claro: como iria fazer sem aquele dinheiro? essas informações mais tarde). Depois de terem
Meu primeiro registro em carteira de trabalho matado o Edson Luis aqui no Rio, lá em São Pau-
foi fazendo essa peça. lo, presenciei a tomada da Maria Antônia3 pelos
No dia seguinte, Antunes, com Juca de Oli- militares e paramilitares, no qual se incluíam
veira, que na época era presidente do Sindicato alguns estudantes da Faculdade Mackensie, que
dos Artistas, veio falar comigo. Na verdade, o ficava quase em frente aos cursos de filosofia,
Juca falou pelo Antunes: ‘Daqui a três meses, ciências e letras da USP. Eu já freqüentava os
pagamos 10% de aumento, mais os 10% pen- barzinhos ao lado da universidade e tomava
dentes do mês atual; no 4º mês, damos os 10% caipirinha e debatia até de madrugada com os
do mês mais os pendentes do 2º mês; e, a partir universitários e os pré-universitários.
do 5º mês, está incorporado o aumento, está A tropa que invadiu a Maria Antônia pegou
legal pra você?’. Eu disse: ‘Não! Vocês estão todos os livros e fez uma grande fogueira.
ganhando milhões e estão se recusando a me Àquela altura, a situação já estava bem pesada.
dar um aumento para que eu possa comer Eu estava na porta do Instituto de Filosofia da
dignamente?’. Fiz todo um discurso, os dois USP quando um estudante secundarista subiu
saíram e ficou aquele mal-estar, as atrizes todas pelo telhado da Mackensie. Alguns estudantes
falando que eu não deveria ter feito aquilo. Dali de lá, que participavam do Comando de Caça
a meia hora, antes do espetáculo começar, entra aos Comunistas (CCC), atiraram nele. Eu vi o
o diretor de cena no camarim e diz: ‘Bete, você corpo cair e ser carregado. Fomos para o centro
venceu, seu aumento será dado’. E todo mundo da cidade berrando ‘Mataram um estudante,
ganhou aumento. podia ser seu filho!’, e a tropa veio atrás da
DV – Mesmo com o sucesso gente. Fui salva por um triz, entrei em uma
da peça, você continuou padaria e o dono baixou a porta. Foi assim
no cursinho? que escapei.
Bete Mendes – Eu estava conciliando as DV – Qual foi o desfecho dessa
duas atividades e a peça tinha que vir para o Rio. situação?
Isso foi próximo do fim do ano, e se eu viesse Bete Mendes – Fizemos uma loucura. 3 Nota da edição: em 1968,
integrantes do CCC, do
para o Rio, perderia o vestibular. Aí, já havia Resolvemos seqüestrar um cara do CCC. Eu qual faziam parte alguns
mudado de novo: não queria mais ser filósofa, tinha que voltar para a USP e fiquei esperando estudantes da Faculdade
Mackensie, atacaram
queria ser socióloga. Ia prestar vestibular só escondida, porque os policiais estavam com estudantes secundaristas
e universitários que
para a USP, porque o dinheiro não daria para pastores alemães perseguindo todo mundo, fizeram um pedágio na
fazer inscrição para provas em outras univer- colocando em caminhões. Rua Maria Antônia para
arrecadar fundos para a
sidades. Por isso, pedi substituição na peça. Fui para a cidade universitária tarde da realização do 30º Congresso
da União Nacional dos
DV – Mas você não podia ficar sem noite, fizemos outra assembléia e decidimos Estudantes (UNE).

SETEMBRO 2008 33
entrevista

que não tínhamos como manter aquele cara, meço muito difícil, estava assustada. A sorte foi
não tínhamos estrutura para isso. Nossa idéia monstruosa, o Lima Duarte, que era o diretor,
era trocá-lo por pessoas que estavam presas, me chamou para conhecer o autor, Bráulio
mas acabou não dando certo e tivemos que Pedroso, na casa dele. E o autor pegou todas
liberá-lo. De lá, fomos acompanhar o corpo as minhas inseguranças e transformou na linha
do estudante, que foi levado para o Instituto da minha personagem. Eu era quieta, discreta,
Médico Legal. Fomos juntando pessoas para cheia de olhares, e a personagem explodiu.
um cerco em volta do IML, mas eles fizeram o Estudava na USP, participava da organização
enterro na madrugada, pressionando a família revolucionária e estava trabalhando em televi-
que era muito simples, para liberar o corpo, são. Foi uma confusão geral.
evitando manifestações. DV – Qual era o seu papel na
DV – Isso foi de 1968 para 1969? Var-Palmares?
Bete Mendes – Isso, eu fiz o vestibular e Bete Mendes – Era mais apoio. Estava em
passei. Com meu salário de atriz, pude alugar um núcleo pequeno; desse núcleo, passei à
um apartamento e, nessa época, já estava na direção estadual, me reunia com os dirigentes
organização clandestina. Entrei para a USP em estaduais e federais. Certa vez, nos reunimos
1969. Fernando Henrique Cardoso, professor na casa de um amigo que era da organização,
maravilhoso, estava saindo para o exílio. Tive daquelas famílias ricas, no Guarujá. E para que
uma professora, Gioconda Mussolini, que vi ninguém soubesse quem eu era, colocaram
morrer do coração por causa da repressão. Ela um guarda-sol na minha frente, e eu ficava
era uma professora de antropologia extraor- sentada lá, só falando, mas ninguém me via.
dinária. Foi velada na capela da USP. Também Tínhamos essas infantilidades. Eu analisava os
Eder e Emir Sader estavam se exilando. Enfim, documentos, redigia e cuidava da estrutura
percebíamos que o cerco estava se fechando da organização, inclusive financeira. Era uma
no ambiente universitário. espécie de coordenadora e não podia ir para
DV – Como você entrou para a ação direta.
a Var-Palmares? Tive uma divergência com a companheira de
Bete Mendes – Na USP, que era considera- apartamento e saí de lá. Tinha um namorado
da uma das grandes universidades da América que também era da organização e fomos para
Latina, praticamente só entrava gente rica. O um apartamento em uma região melhor de
pessoal da classe média ou pobre estudava São Paulo. Eu já estava ganhando mais. Ele é
muito para ter condição de entrar. Tinha muita de família muito rica, mas não aceitei que o pai
gente rica na organização e eu fiquei amiga dele pagasse o apartamento. Eu mesma aluguei,
desse povo. Foi dessa amizade que surgiu a ele foi meu fiador.
conversa para eu entrar na organização. E, ao Essa característica de ser auto-suficiente
mesmo tempo, entrava na TV. O movimento sempre foi forte. Isso me ensinou muito a
estudantil me chamava, mas eu recuei, não fazia não depender e a não me acostumar com as
mais nada porque já estava em outro pólo e benesses, que podem ser perigosas. Elas nos
não queria me mostrar participando. envolvem, nos aconchegam e depois a situação
DV – Era uma vida clandestina muda. A minha dureza me ajudou muito a
e pública ao mesmo tempo? chegar até aqui. Recebi a notícia de que aquela
Bete Mendes – Sim, o meu ativismo era companheira havia sido presa e que todo mun-
clandestino, mas eu ainda não era perseguida, do estava caindo. Comecei a preparar minha
era considerada uma pessoa legal. Eu acredito fuga. A novela “Beto Rockfeller” começou em
nos deuses, nos orixás e em todos os santos, 1968 e terminou em 1969. Nessa época, já
só assim para entender essa história. Estava participava de uma segunda novela do Bráulio,
fazendo a novela “Beto Rockfeller” na Tupi, “Super Plá”, uma novela linda.
que estourou no país inteiro. O público adora- DV – Foi difícil conciliar uma
va o personagem Renata, que eu interpretava. vida assim tão pública com uma
Dividia uma quitinete com uma companheira vida clandestina?
da organização e fazia novela. Eu não assistia, Bete Mendes – Isso é muito interessante.
mas fazia. Claro que naquela época não havia transmissão
DV – Foi fácil se adaptar à vida via satélite, era videotape, a TV não tinha a
na TV? abrangência de hoje. Mas a novela explodiu no
Bete Mendes – Eu não estava preparada Brasil todo. Na época, já morava nesse aparta-
para a TV, mas precisava trabalhar. Foi um co- mento melhor e e lá recebia os companheiros

34 Democracia Viva Nº 40
Bete Mendes

da organização com boa comida e boa música.

Arquivo Bete Mendes


Ao mesmo tempo, saía na rua e me assustava.
Entrava numa loja para comprar um sapato e
começava a tocar a música-tema do meu per-
sonagem. Ficava paralisada, com medo, não só
pela clandestinidade, mas me assustava com
o que estava acontecendo comigo perante a
sociedade.
Para proteger minha identidade – e em ge-
ral, dentro das organizações, nós não sabíamos
os verdadeiros nomes dos companheiros –, saí
de um núcleo de simpatizante para ativista e
depois para um núcleo da direção regional, no
qual só os dirigentes regionais e o dirigente
nacional sabiam quem eu era. Não podia ter
contato com mais ninguém. Mas sempre fui
discreta, ninguém sabia nada da minha vida.
DV – Você disse que tinha
problemas com sua aparência na
adolescência. Nessa época da TV,
você se considerava uma mulher
bonita?
Bete Mendes – Não me achava, e quando
começaram a me achar, a barra pesou demais. A ativista em 1976
Era o horror da mulher-objeto, instrumento
sexual. Briguei muito contra isso, queria que
gostassem de mim pelo meu talento e pela mi-
nha inteligência. Não me sentia bem com essa história e ela não abriu nada, nem sob tortura,
coisa de ser objeto de desejo. Irene Ravache foi e eu escapei. Aí, percebi que a situação estava
minha madrinha de profissão, ela me defendeu ficando perigosa e decidi fugir.
muito. Era uma coisa braba e eu me sentia DV – E conseguiu?
insegura, me achava frágil para enfrentar. Ao Bete Mendes – Estava participando da
mesmo tempo, repelia tudo isso porque minha novela “Simplesmente Maria”. Fui na casa do
parada era revolução. Wálter Avancini, que era o diretor da novela.
DV – Em que situação você foi Não sabia que ele era comunista, mas abri o
presa pelos militares? verbo. ‘Estou sendo perseguida, sou de uma
Bete Mendes – Da primeira vez, aconte- organização revolucionária, tenho que sair da
ceu uma coincidência. A Irene Ravache havia novela, tenho que fugir e preciso de dinheiro’.
sido casada com o tenente Maurício, de quem O Avancini resolveu tudo para mim.
tinha um filho. Ele a procurou e a convenceu Marquei com ele e pedi ajuda a minha mãe e
a me apresentar a ele. Ela me consultou, e a meu irmão. Nessa época, eles já estavam con-
concordei com o encontro, achando que seria trolando tudo, conta de banco. Pedi dinheiro ao
o melhor a fazer no momento. Ele se encontrou Avancini porque queria sair do país por terra.
comigo e me convenceu que eu só iria dar um Já estavam anunciando que as fotografias dos
depoimento, para ficar livre de suspeita e me “terroristas” seriam divulgadas nos aeroportos e
levou a então Operação Bandeirantes, onde em todos os lugares. E como eu já tinha estado
me seqüestraram e onde fiquei incomunicável lá, eles sabiam quem eu era.
por quatro dias. Marquei com meus companheiros, fui para
Nesses quatro dias, neguei tudo. Não houve uma casa, para onde éramos levados vendados
tortura física, só psicológica. Nesse período, para, em caso de tortura, não sabermos a lo-
só bebi água, não conseguia comer, emagreci calização, e fiquei lá trancada. O pessoal tinha
quatro quilos em quatro dias. Aí, me acarea- marcado às cinco da tarde e eu entendi que
ram com minha companheira de moradia, que era às quatro, esperei até quinze para as cinco
estava presa. Disse que a gente tinha se sepa- e fugi. Fui levada também vendada para Vila
rado porque eu tinha outros projetos na vida, Maria. Ali, eu iria sair por terra para o Chile, o
que eu estava namorando. Inventamos aquela Allende ainda estava no poder, e de lá iria para

SETEMBRO 2008 35
entrevista

e o “bombeiro”.
Marcus Vini

Eles trabalhavam 24 horas e descansavam


48 horas, e a gente ficava dia e noite sem ter
a menor noção da hora, porque eles pegavam
a gente na cela, levavam para a tortura, devol-
viam para a cela. A gente perdia a noção de
tudo. O “bombeiro” vinha para enrolar, fingir
que era compreensivo, que queria dialogar, e
o Albernaz dava muita porrada, ferrava com a
alma da gente.
DV – Você falou de militares e
bombeiro. Quais forças faziam
parte do DOI-CODI?
Bete Mendes – O DOI-CODI juntava tudo:
Exército, Marinha, Aeronáutica, bombeiros,
polícias. Foi uma criação dos serviços de in-
teligência da ditadura militar. O governador
Abreu Sodré, para colaborar com o governo
central, criou a Operação Bandeirantes, Oban,
que passou em 1970 a DOI-CODI. Fui presa da
primeira vez na Oban, foram só alguns meses
Cuba ou talvez para a França. de diferença. Na segunda vez, já era DOI-CODI.
O Avancini, além de me dar dinheiro e O governador criou a Oban e o Ministério da
apoio, me deu perspectivas de trabalhar fora Guerra unificou as ações de busca e captura e
como atriz. Mas o cerco estava mesmo pesado. fizeram os “DOIS”, então cada Exército tinha
Eles detiveram a minha mãe por um dia. Meu o seu DOI-CODI.
irmão era seguido com freqüência durante o DV – Você teve contato com o
dia, cercaram a minha madrinha. E eu estava delegado Sérgio Paranhos Fleury,
nessa segunda casa esperando contato, há três famoso torturador de
dias não comia, só bebia água. São Paulo?
Nesse dia, pedi para trazerem alguma co- Bete Mendes – Não, o Fleury era do Dops
mida porque estava com fome. Combinamos [Departamento de Ordem Política e Social], as
às seis horas e, dessa vez, esperei um pouco duas organizações, na verdade, concorriam
mais, ao contrário da primeira vez quando para ver quem matava mais, quem machucava
antecipei minha saída. Estava num lugar que mais. Na época, se dizia uma coisa horrorosa:
tinha quartos para alugar, no fim do corredor, que o DOI era mais científico; no Dops, eles
havia um banheiro. Eu só fazia o movimento davam porrada agressivamente, com violência,
do quarto para o banheiro, nada mais. Fizeram paixão, e matavam por acaso; no DOI, a tor-
o sinal combinado de companheiro, quando tura era estudada. Quer dizer, mais ou menos,
abri a porta, eles [os militares] me levaram, não é? Porque o Vladimir Herzog foi preso e
soltando tiros. E eu rezava e pedia: ‘Por que morto no DOI, Manoel Fiel Filho também. Eles
não desmaio, por que não desmaio?’. Queria e inúmeros outros.
apagar, mas não conseguia. DV – As Forças Militares sempre
DV – E o que aconteceu lá? trocaram informações. Nesse
Bete Mendes – Uma festa, no pior sentido sentido, era possível que
possível. Entrei na tortura braba. Eles, os tor- houvesse um estudo científico
turadores, disseram, enquanto me torturavam, a respeito, não?
que haviam dado choques elétricos em minha Bete Mendes – Os Dops, em geral, tinham
mãe, que meu irmão tinha sido perseguido, en- isso, mas o Fleury tinha uma ação absoluta-
fim, soube que minha vida estava arrebentada. mente dele. Quando falei do capitão Albernaz,
O coronel Brilhante Ustra era major na época esse cara era muito pior que o Fleury, se é que
e dirigia o DOI-CODI [Destacamento de Ope- se pode dizer pior. Fleury era o bandido que
rações de Informações – Centro de Operações tinha prazer nas coisas que fazia, que gostava
de Defesa Interna]. Tinha também o capitão de retalhar. O Albernaz era igual. Ele era tão
Beroni de Arruda Albernaz, um facínora; o arrogante que andava com roupa civil, sapatos
tenente Maurício,que era da equipe de busca, brancos e saía sozinho, sem guarda nenhuma,

36 Democracia Viva Nº 40
Bete Mendes

ia para onde queria. nem internacional, eu simplesmente desapareci,


Tinha uma ciência, tinha uma técnica, claro, foi um desespero.
mas quando falo do Fleury e do Albernaz, falo DV – Como a sua família reagiu?
dos brutamontes que estavam a larga, não havia Bete Mendes – Minha irmã ainda não era
ciência, eles eram bandidos. Não digo “cana” nascida, meu irmão e minha mãe perceberam
porque se falamos assim parece que todo po- logo porque, até então, eles seguiam o meu
licial é ruim, e isso não é verdade. Fleury era irmão. Todos os dias, eles o buscavam pela
bandido mesmo. Ele fazia parte do tráfico, ia manhã em casa e voltavam à noite. De repente,
para a Colômbia buscar traficantes, ele morreu eles pararam de fazer isso. E eles não foram
rico. O Albernaz era a mesma coisa. E eu falo atrás do meu pai porque, sendo militar, foi
deles, mas podemos falar de muitos. Esse tipo mais fácil ainda para eles acompanharem a vida
de comportamento era estimulado. pacata dele, que nem estava mais na ativa, já
DV – Então, eles não eram estava na reserva.
obrigados a fazer aquilo, DV – Como ficou sua vida depois
como dizem? que foi solta?
Bete Mendes – Eles eram escolhidos, fa- Bete Mendes – Fiquei em liberdade con-
ziam uma opção, eram de uma tropa de elite. dicional. Saí arrebentada, física e psicologica-
Era um pessoal que ganhava mais, ganhava mente. Estava com 20 anos. Não voltei para a
pontos e ascendia na carreira militar fazendo faculdade por causa da Lei de Segurança Nacio-
parte dessa elite de repressão e tortura. Não dá nal na qual estava inscrita. Eu era o “cão” para
para vir com esta conversa: ‘Não podia fazer eles, bandida, terrorista, perigosa. Os amigos,
nada, só cumpria ordens!’. Muitos se recusaram a família e a classe artística, aos poucos, me
a participar e perderam as patentes, foram ex- ajudaram a levantar.
pulsos ou perseguidos. Eram grupos escolhidos Nessa época, a organização já estava no
que optavam por essa ação. fim, muita gente morreu. Era amiga da Iara
DV – Mas, antes de tudo, Iavelberg, esposa do Carlos Lamarca. Ela havia
tratava-se de uma política de sido minha professora de francês no cursinho
Estado, não acha? Equipe. Um dia, encontrei com Iara, que estava
Bete Mendes – Sim, era uma política de foragida, na casa de uns amigos, nos despedi-
Estado nacional, não era apenas um grupo de mos, ela ia para a Bahia. Ela acabou morrendo.
malucos que torturava pessoas. Mas acho im- Adorava a Iara, conhecia a família inteira. Em
portante falar do Abreu Sodré que, quando era outra ocasião, o filho de Carlos Marighella veio
governador do estado de São Paulo, criou essa me procurar porque precisava de apoio para
ação de repressão espontaneamente. E também fugir. E, muito depois, a mulher dele, Clara. Ou
como muitos da sociedade civil se encantaram seja, eu continuava com alguma ação, mas não
com essa ação repressora e foram aliados do era mais organizada. Tinha consciência do que
Estado e fomentadores, mesmo financeiramen- acontecia em volta e havia o medo de encontrar
te, desses atos de exceção. com os caras da repressão em qualquer lugar. E
Ainda hoje, existe um movimento do qual eu ainda estava em processo no tribunal militar.
eles todos participam e acham que deveríamos DV – Você ficou em São Paulo?
ser punidos. A questão é que há uma sociedade Bete Mendes – Não, fui para a casa da
que apóia, subvenciona e quer que eles conti- minha mãe, em Santos. Precisava voltar a
nuem. Aí é que está o perigo. trabalhar. Os policiais que foram me pegar em
DV – Quanto tempo você casa roubaram tudo o que eu tinha, dinheiro,
ficou presa? as coisas que guardei em um depósito, tudo.
Bete Mendes – Um mês. Já era o final da Por exemplo, aquelas peças que escrevi para o
organização. O DOI-CODI ficava atrás de uma Vianinha se tornaram peças-crime contra mim.
delegacia, que funcionava normalmente. Da Não sei se ainda existem ou se foram destruídas.
primeira vez que fui presa, o Walter Foster, o Roubaram perfumes, roupas. Eles cercaram a
Cassiano Gabus Mendes e o Wálter Avancini fo- família, o guarda-móveis onde deixei minhas
ram me procurar. Eu conseguia vê-los da minha coisas, os lugares para onde eu poderia ir. Eles
cela, mas disseram a eles que eu não estava lá. faziam esse cerco com todas as pessoas que
A prática do seqüestro era também a negação lutavam contra a ditadura. Fiquei muito mal.
de prisões, e foi o que eles responderam aos di- Depois de um tempo, voltei para São Paulo,
retores. Da segunda vez, minha prisão também para a casa de uma amiga, para tentar arrumar
não teve nenhuma divulgação, nem nacional, trabalho.

SETEMBRO 2008 37
entrevista

DV – E conseguiu? tem homossexuais, drogados, imorais, pessoas


Bete Mendes – Quem me ajudou foi Carlos que denigrem a família brasileira, que aquela
Zara, na época casado com Eva Wilma, que prostituta...’, ele se referia assim a Eva que
também tinha um parente foragido, Ricardo estava ali para me defender. Enfim, ele acabou
Zaratini. Ele brigou com a direção da TV Tupi, com a alma da Eva antes mesmo de ela abrir a
com representantes do Estado-Maior das Forças boca. Fiquei desesperada, comecei a chorar de
Armadas, para conseguir me recontratar. Só vergonha e não deram a ela o direito de dizer
soube disso tempos depois. Ele foi meu grande uma palavra para me defender. Foi atacada e
defensor. Estava em processo de julgamento e pediram para ela sair. Mas o advogado de São
toda semana tinha que ir ao Dops. Várias vezes, Paulo, Paulo Rui de Godoy, conseguiu recorrer
era cercada nos lugares onde ia, encontrava um e teve outro julgamento, dessa vez no Minis-
torturador, um carcereiro, um cara da equipe tério da Guerra aqui no Rio, só com generais.
de busca, a perseguição continuava igual. E, se O advogado era o Lino Machado, maravilhoso.
antes de entrar na prisão, tinha conseguido um Ele me defendeu, os generais me passaram um
bom salário e um contrato de trabalho anual, sabão, e ganhei a absolvição. Isso foi em 1971.
quando voltei, tive que aceitar um salário pela DV – Nesse período todo, a
metade e contrato por obra. imprensa não noticiou nada?
DV – Como se deu o processo Bete Mendes – Saiu uma notinha nos
judicial? grandes jornais, Folha de São Paulo, O Globo,
Bete Mendes – O primeiro julgamento O Estado de São Paulo, no pé de uma página
foi realizado no II Exército, em São Paulo. no meio do jornal, letra minúscula: ‘A atriz Bete
O processo era a posteriori. Eles pegavam a Mendes respondeu processo na justiça mili-
pessoa, acabavam com ela, a machucavam, tar...’. Só. Não saía nada. A maioria das pessoas
e depois abriam um processo para dizer que não sabia de nada disso. E nada era noticiado
se tratava de uma pessoa criminosa. Então, justamente porque, assim, poderíamos sumir e
tinha que mostrar, depois de tudo o que eles ninguém ficar sabendo.
fizeram comigo, que era uma pessoa legal, Mas, oficialmente, eles utilizaram a mídia
que não estava fazendo nada errado, que não contra nós. Ainda quando estava presa no DOI-
era terrorista. Pedi a Eva Wilma para ser minha -CODI, pouco antes de ser solta, fui chamada
testemunha de defesa. em uma sala, e lá, eles me convidaram para ir
Foi um dos momentos mais difíceis da minha à televisão, para participar de um programa de
vida e de dívida com a Eva. Éramos todos muito entrevistas e dizer o que eles queriam. Dizer
jovens, 90% estudantes da USP, e estávamos que estávamos sendo desencaminhados pelos
em um julgamento conjunto. O promotor da professores da USP e que éramos pessoas de
Justiça Militar chamou a Eva para me defender, família decente. Eles me perguntaram se eu
e começou a dizer: ‘Essa classe artística que só topava e disse: ‘Topo com algumas condições’.
Queria que o programa fosse ao vivo, quando
relataria o que estava acontecendo com todos
Marcus Vini

nós. Levei tanta porrada nesse dia. Fiquei com


medo do que poderia acontecer com meus
companheiros.
Na sala, éramos levados um por vez e
ninguém aceitou falar. Só um aceitou ir à te-
levisão e, posteriormente, se suicidou. Então,
resolveram chamar nossos pais para fazer o
que não fizemos, inclusive minha mãe. E os
pais falaram: ‘A gente não sabe o que está
acontecendo, meu filho é tão bom, não sei
porque foi preso’. O que os militares queriam
era fazer um programa para manchar a imagem
da universidade brasileira, queriam desacreditar
o trabalho dos professores e intelectuais junto
à população. Foi uma vitória nossa, estávamos
desestruturados, arrebentados, machucados
e ninguém teve o pensamento, a dúvida do
porquê estava ali. Achei incrível, porque éramos

38 Democracia Viva Nº 40
Bete Mendes

todos muito novos.

Arquivo Bete Mendes


DV – Como foi a sua volta à vida,
a partir de 1972, 1973?
Bete Mendes – Acho que foi uma vida de
teimosia, de resistência e de vamos em frente.
Depois que o Zara e a Eva me acolheram na
volta à vida artística, pensei: ‘Agora, vou ser
só atriz, vou trabalhar só com cultura’. Eviden-
temente, tive apoio psicológico para curar as
feridas, também passei por tratamento médico
e fui me readaptando à vida normal. Comecei
a fazer aula de canto e de dança, que já havia
feito antes, fui fazer teatro também.
Em 1974, fui chamada pelo Antônio Pedro
para fazer uma peça substituindo a Marieta Se-
vero em São Paulo, “Desgraças de uma criança”,
de Martins Penna, direção dele, com Eduardo
Dusek, Camila Amado, Marcos Nanini. A peça
foi um sucesso absoluto e resolvemos viajar
para encená-la no interior de São Paulo. Era
abril, Semana Santa. Estava dirigindo o carro do
Nanini, um fusca, o pneu dianteiro estourou, a
gente capotou. Eduardo Dusek não sofreu nada
e Marcos Nanini teve torção no pescoço. Tive
traumatismo craniano, quase morri. No especial de fim de ano da TV Tupi, em 1973

DV – Como você ficou depois


disso?
Bete Mendes – A audição do ouvido da população negra, emancipação dos índios
esquerdo, que já havia sido prejudicada pelos do Brasil etc. Onde tinha um movimento, eu
“telefones” dados pelos torturadores no DOI- estava lá, me metendo em tudo. Voltei para a
-CODI, ficou bem pior. A classe artística foi agitação nessas atividades da sociedade civil.
maravilhosa, fizeram revezamento para cuidar DV – Poderia destacar algumas
de mim. Viver era o principal. Fui para um hos- dessas atividades?
pital em Bauru que não tinha o equipamento Bete Mendes – Comecei a ter uma ativida-
necessário para detectar a gravidade do trauma. de sindicalista da melhor qualidade, me envolvi
Os amigos conseguiram um neurologista muito na luta pela regulamentação da profissão dos
bom e o levaram para Bauru. Ele conseguiu, de artistas, que só foi acontecer em maio de 1978.
forma ética, convencer o pessoal do hospital Ainda nesse ano, fui para o ABC participar de
que eu podia ser transportada para São Paulo. greve. Estava na coordenação do show dos
Lá, determinaram que eu teria de ser operada. artistas pela greve. A mesma coisa em 1979,
Quando vieram raspar minha cabeça, fiquei 1980. Participei dos três movimentos de greve.
furiosa, e gritava: ‘Seus filhos da puta, querem Em 1979/1980, já estava em São Paulo. Saí da
me torturar. Vocês podem fazer o que quiserem, Globo, que não renovou meu contrato, e fui
eu não direi nada!’. Tiveram que me sedar. para a Bandeirantes. Estava fazendo o filme
Quando saí do hospital, aconteceu algo “Eles não usam black-tie”, envolvida com a
interessante. A Tupi estava renovando meu estruturação do PT e no apoio à greve dos me-
contrato e a Globo me procurou e me ofereceu talúrgicos. Estava tão íntima que ficava em São
muito mais. Tentei renegociar com a Tupi, mas Bernardo. Ia para a casa do Lula e da Marisa.
eles não aceitaram. Então, fui para a Globo. Saía do movimento de greve e ia gravar na
Entrei em uma novela do Bráulio Pedroso, “O Band. Chegava com camisetas, botons etc.,
Rebu”, que questionava os valores da época, foi fazia reunião com os funcionários e contava
maravilhoso. A partir daí, minha acomodação como estava o movimento etc. Nesse período,
acabou. Não estava satisfeita sem a minha vida comecei a ter problemas no emprego porque
de ativista. Comecei a procurar os movimentos. estava muito envolvida na questão sindical.
Anistia, movimento feminista, solidariedade ao DV – Como foi seu envolvimento na
povo uruguaio, argentino, chileno, em defesa fundação do PT?

SETEMBRO 2008 39
entrevista

Bete Mendes – Isso foi em 1981. Participa- Travassos em um acidente de carro, e voltei
va de um núcleo de artistas e jornalistas. Éramos a São Paulo na quarta-feira de cinzas para o
José Dirceu, Vladimir Palmeira, Luís Travassos, enterro dele. No cemitério Israelita, estavam
Lélia Abramo, entre outros. Tivemos uma reu- todos os companheiros. O Lula chegou para
nião para a estruturação do organograma do mim e disse: ‘Companheira, você quer ser depu-
partido. Queríamos que fosse um partido aberto tada federal?’. Sempre gostei de participar dos
que se mesclasse com os movimentos sociais, o movimentos, mas nunca havia pensado nisso.
que, de certa forma, aconteceu. Naquele dia, A mãe e a esposa de Travassos me abraçaram
pedi apoio à Lélia Abramo para sugerir a criação e disseram: ‘Continua a luta por ele’. Fui louca
de uma secretaria de cultura ligada diretamente e disse para o Lula: ‘Topei!’. Foi de emoção.
à estrutura geral do partido. DV – E deu para conciliar essa nova
Essa idéia surgiu de uma conversa com o atividade com a carreira de atriz?
Henfil. Dessa troca de idéias, saiu o que ima- Bete Mendes – Nessa época, fazia traba-
ginávamos que seria uma ação cultural em um lhos esporádicos em televisão. Fazia debates
partido político. A idéia era ir para um bairro, nas faculdades e no fim dizia: ‘Sou do Partido
uma escola etc. e criar um grupo para discutir dos Trabalhadores, sou uma atriz desempre-
o problema principal do lugar. Isso seria tra- gada. Quem quiser colaborar participando da
balhado teatralmente e, assim, seria revelado campanha, deixa o telefone...’. Apareceram
o talento para música, pintura. quase 30 jovens, dos quais 10 ou 12 ficaram
Sempre fui palanqueira, o próprio presi- comigo. Era o “Exército de Brancaleone”. Eram
dente Lula fala isso de mim. Então, fui para jovens maravilhosos que vestiram a camisa, e
a tribuna da assembléia falar sobre isso. Fiz fazíamos tudo junto.
minha defesa da secretaria de cultura e a idéia Nessa época, viajava pelo estado com com-
foi aprovada por unanimidade. Foi um dos dias panheiros proporcionais, como Eduardo Suplicy,
mais felizes da minha vida. Começamos um ou com os candidatos a cargos majoritários, e
núcleo na casa da Lélia, que se reunia toda se- o Lula era candidato a governador. Uma vez,
mana. Ficávamos discutindo que tipo de corpo estava em Presidente Prudente, e o Lula estava
daríamos para essa secretaria de cultura. atrasado. Segurei o povo por uma hora e vinte
DV – O que a levou a se candidatar minutos. Por causa disso, o Lula me criou um
a deputada federal? problema sério. Estávamos em uma reunião
Bete Mendes – Em 1982, estava em da organização e ele disse: ‘Companheiros,
Santos, na casa da minha mãe, durante o vocês têm que fazer como a Bete, que é pa-
carnaval. Aí, morreu o grande companheiro lanqueira’. Conclusão: na capital de São Paulo,
não tive condições de falar mais em nenhum
comício. Cada região da cidade era reduto de
Arquivo Bete Mendes

um candidato, e eu não tinha um reduto, mas


tinha o beneplácito de ser famosa. Então, não
me deixavam falar. Eu me virei, sou teimosa e
resistente. Ia para as portas das fábricas etc. Fui
nessa batida para valer e fui eleita.
DV – Nessa eleição, a votação
geral do PT foi baixa, mas você
conseguiu uma votação enorme.
Como foi isso?
Bete Mendes – Fiquei muito orgulhosa.
O mais votado do partido foi Djalma de Sousa
Bom, metalúrgico, companheiro de Lula, que
teve mais de 170 mil votos. Foi o único que
passou do coeficiente eleitoral. O segundo foi
Eduardo Suplicy e a terceira fui eu. O Suplicy
teve apenas 33 votos a mais do que eu.
DV – Em 1979, quando o PT surgiu,
houve um grande debate
na esquerda. Alguns achavam
um absurdo o PT ser legalizado
Bete palanqueira nesse momento. Achavam que a

40 Democracia Viva Nº 40
Bete Mendes

Arquivo Bete Mendes

Arquivo Bete Mendes

Em 1987, na Secretaria de Cultura do Estado Em campanha, com Lula e o jornalista Tarso de Castro
de São Paulo

esquerda toda deveria ficar unida outra consulta. Meu resultado deu diferente.
no PMDB. Como foi isso para você? Coloquei meus companheiros, jovens estu-
Bete Mendes – Um dos meus sofrimentos dantes, no Morumbi, em porta de restaurante,
foi por aí. Em 1982, quando Franco Monto- na porta de show no Ibirapuera, em porta de
ro foi eleito governador de São Paulo pelo fábrica, foi uma consulta massiva. Houve um
PMDB, havia um convite para o PT aceitar três debate muito acirrado durante a convenção da
secretarias: a Secretaria de Educação, com o Executiva Nacional do partido por causa disso.
Paulo Freire; a Secretaria de Assistência Social, Decidiu-se que ninguém do partido iria
com um deputado estadual por São Paulo; e ao Colégio Eleitoral votar para presidente da
a Secretaria de Justiça, com o Hélio Bicudo. República, e quem participasse do processo
Eram três secretarias da área social da maior eleitoral seria obrigado a sair do PT. Por isso,
importância. Os companheiros que vieram com eu, José Eudes e Airtons Soares, que participa-
a notícia diziam que o PMDB propunha portas mos, fomos convidados a sair do partido. Sofri
abertas, tudo divulgado, ou seja, o PT entrava muito. Foi desesperador porque o partido era
no governo do Montoro com tudo esclarecido. a minha paixão, mas eu não abria mão dessa
Não aceitamos, e achei isso muito ruim. divergência. Na época, achei mais correta a po-
DV – Como foi sua participação sição do PDT, que era contra o Colégio Eleitoral,
no processo da campanha pelas mas deixou a decisão para cada parlamentar.
“Diretas Já”, que culminou, mais Fiquei magoada porque alguns companheiros
4 Nota da edição: a emenda
tarde, com as eleições indiretas verbalizaram dúvida quanto à minha correção constitucional Dante de
Oliveira, propondo instaurar
para a Presidência da República ideológica. eleições diretas para
e com sua saída do PT? DV – Essa mágoa já foi superada? presidente da República, foi
votada no dia 25 de abril
Bete Mendes – Nessa época, foi uma lou- Bete Mendes – Superadíssima. Continuo de 1984. Dos deputados,
298 votaram a favor, 65
cura. Em um curto período de tempo, viajei por eleitora, fazendo campanha, fazendo tudo pelo contra, três abstiveram-se
trinta e poucas cidades, participando de vários PT. A mágoa é porque era o meu partido, traba- e 113 parlamentares não
comparecem ao plenário. Para
comícios: Rio, Minas, São Paulo, Porto Alegre, lhei para a sua fundação. Podia até estar errada, aprovar a emenda, seriam
necessários mais 22 votos,
era só multidão, era maravilhoso. E a gente mas minha posição tinha de ser respeitada. que somariam dois terços do
perdeu por uma votação ínfima, iníqua, foi um DV – E, depois dessa divergência, total. Por isso,
a emenda foi rejeitada.
movimento lindo no Brasil. Mas perdemos.4 teve outra, mais tarde, envolvendo Diante desse quadro,
setores da oposição
O PT decidiu fazer uma consulta às bases a Luiza Erundina,5 não é? lançaram a candidatura
porque não queria ir ao Colégio Eleitoral para Bete Mendes – Dei uma entrevista por de Tancredo Neves para
disputar indiretamente. No
participar das eleições indiretas para presidente telefone quando ela foi suspensa, declarando a Colégio Eleitoral, as eleições
presidenciais foram marcadas
da República. Achei o resultado errado e fiz uma minha solidariedade e que considerava equivo- para janeiro de 1985.

SETEMBRO 2008 41
entrevista

cada a decisão do partido de suspendê-la. Para mocrática depois de anos. Como na Argentina,
mim, ela era o maior quadro do partido. Ela no Chile e no Brasil.
ganhou de Maluf em São Paulo sem estrutura Sarney, presidente da República, foi convida-
nenhuma. Existem três eleitorados no Brasil em do a ir à posse e convidou alguns parlamentares
termos de quantidade: o país, o estado de São para acompanhá-lo, e eu topei. Quando che-
Paulo e a cidade, que é o terceiro eleitorado gamos ao Uruguai e descemos no aeroporto,
massivo quantitativo. E essa mulher conseguiu havia toda uma cerimônia de recepção, todo
derrubar essa estrutura. No momento da entre- um ritual. E eu dei de cara com meu torturador
vista, o jornalista lembrou que ela tinha votado vestido com roupa de gala, ele me apertou a
pela minha expulsão do partido. Eu falei: ‘Não mão e sorriu. Ali, veio um desespero e parei
tem problema, continuo solidária e admiradora para pensar: ‘E agora. O que eu vou fazer?’.
dela’. Acho que a suspensão da Erundina foi Ele havia sido diretor do DOI-CODI do II
um desastre. Exército quando fui presa, era agora adido
DV – E você foi para outro militar do Brasil no Uruguai. Fiquei apavorada.
partido? Ficamos lá durante quatro dias, eu não agüen-
Bete Mendes – Fiquei nove meses sem tava dormir, tomava banho frio e estavam 10
partido nenhum. Não pude ter filhos, mas, graus, estava em pânico. Fiquei pensando que
ironicamente, fiquei nove meses sendo “na- tinha de denunciar.
morada” pelo PSB, PDT, PMDB. Na época, o Fomos a uma festa de confraternização
PCB e o PCdoB ainda não estavam legalizados. do povo uruguaio e do povo brasileiro, onde
DV – Você conheceu o lado estavam Miguel Arraes, Bocaiúva Cunha, enfim
mais duro da ditadura. Como foi uma equipe muito linda de parlamentares. E
para você vivenciar o Movimento chega ele novamente para conversar comigo,
pela Anistia? me apresentar a sua esposa. Ela faz um sinal
Bete Mendes – Tive um período muito sério para ele se afastar e fica sozinha comigo. Diz
de perseguição depois da liberdade condicional que gostou do meu gesto de perdão, de eu
e da absolvição pelo Superior Tribunal Militar. ter apertado a mão do marido dela, que ela
Eram ameaças por telefone muito pesadas, isso sempre apoiou tudo o que ele fez e estava ao
até há pouco tempo. Há poucos anos, cheguei lado dele. Pirei de tal maneira que pedi a dois
com a minha mãe de Santos e às onze e meia ou três parlamentares amigos meus pra me
da noite, tocou o telefone, eu atendi e ouvi tirarem dali, fomos pra outro restaurante e
ameaças terríveis. Mas nunca tive o desespero, tomei um porre de vinho.
até porque se tivessem que matar mesmo, já DV – Você contou a alguém?
teriam matado. Bete Mendes – Não até aquele momento,
Quando começou o Movimento pela Anis- pedi segredo absoluto. Fiquei preocupada com
tia, eu participava do Movimento dos Artistas o tipo de conseqüência que poderia haver com
pela Anistia. Tive o orgulho e a honra de redigir uma denúncia como aquela em uma viagem de
com um grande amigo, Mário Lago, o docu- um presidente visitando o país vizinho, ambos
mento pela anistia. Foi um momento histórico. saindo de período cruel e entrando em proces-
No movimento, a gente lutava pela anistia so democrático. Decidi que faria a denúncia
ampla, geral e irrestrita, mas só conseguimos quando voltasse. Na despedida, voltando para o
a parcial. Era a única anistia possível na época. Brasil, o pessoal da comitiva brasileira já estava
DV – Por que você acha que de orelha em pé, estranhando o comportamen-
a anistia foi parcial? to do Ustra, sempre me cercando.
Bete Mendes – Essa anistia não só não DV – Qual foi a sua atitude quando
identificou os dois lados da moeda, como foi voltou ao Brasil?
feito na Argentina e no Uruguai, como também Bete Mendes – Redigi um documento e
não resolveu a situação de muita gente até hoje. enviei ao Sarney denunciando o adido militar,
DV – Como você reencontrou dizendo que era a minha obrigação como
o coronel Brilhante Ustra, deputada, representante do povo, evitar que
que a torturou no DOI-CODI? pessoas como aquela fossem premiadas. Denise
5 Nota da edição: em 1993, Bete Mendes – Isso foi brabo. Saí do PT Sarraceni havia me convidado para participar
Erundina foi convidada pelo
então presidente Itamar e fui reeleita deputada federal pelo PMDB em de uma série e vim para o Rio gravar. Esperei
Franco (1992-94) para ser 1986. Logo depois que fui ao Colégio Eleitoral, 24 horas por uma resposta do presidente para
ministra-chefe da Secretaria
de Administração Federal. em 1985, o presidente do Uruguai foi eleito depois abrir para a imprensa.
Ela aceitou, à revelia do PT,
e foi suspensa por um ano. democraticamente. Foi a primeira eleição de- Estava gravando em um lugar longínqüo de

42 Democracia Viva Nº 40
Bete Mendes

Jacarepaguá quando veio um carro da Presidên-

Marcus Vini
cia da República para me levar a um lugar mais
próximo da Globo, onde pudesse falar com o
presidente por telefone. Sarney disse que não
sabia que eu tinha passado por isso – não sei se
era verdade. Lembro que havia feito minha cam-
panha à deputada federal pelo PT sem dizer:
‘Fui torturada, fui presa’. Achava que não devia
usar o que sofri na ditadura para me eleger. Ao
fim dessa conversa por telefone, Saney disse:
‘Não se preocupe, vou cuidar dessa situação’.
DV – O que ele fez?
Bete Mendes – A situação era a seguinte:
quando se é promovido a adido militar, volta-se
para o país de origem com a perspectiva de ir
para a reserva como general. Isso é um prêmio!
Além disso, um adido militar recebe um exce-
lente salário. Em nenhum momento da nossa
conversa, Sarney pediu para eu não comentar o
caso, para ser sigilosa, e em nenhum momento Ustra era um militar de altíssima qualidade e
ele se justificou pelo que não poderia fazer. que estranhava minha postura como parlamen-
Disse apenas que iria cuidar daquilo. Ele não tar. Tomei um avião, voltei para Brasília, a Denise
deu a promoção para o Brilhante Ustra, que suspendeu uma gravação por minha causa,
voltou ao Brasil como coronel da reserva. Todo coisa rara de acontecer no meio artístico. Redigi
ano, ele entrava no topo da lista do Almanaque uma resposta para o Leônidas e mandei para
do Exército para o generalato, instituição que a imprensa. Disse que achava muito estranho
indica os prováveis nomeáveis para o prêmio, aquele tipo de declaração, primeiro por ele estar
mas nunca foi nomeado. duvidando de mim, o que não era nada respei-
DV – Qual foi o impacto da toso, que achava que ele estava equivocado,
denúncia no Congresso? talvez por alguma relação de proximidade com
Bete Mendes – Após falar com Sarney, a pessoa denunciada. Disse achar estranho que
levei a denúncia para a imprensa. Eu fazia parte dentro do Exército brasileiro não fossem bene-
da Comissão de Relações Exteriores, com José ficiados e escolhidos para representar o Brasil
Genoíno e outros companheiros. Sabíamos que no exterior militares que tivessem sua história
havia um adido militar em situação semelhante defendendo a população e não torturando ou
na França, outro no Peru e outros em cargos da matando. Disse ainda que, ali, estava colocando
maior importância na representação brasileira o ponto final no que acreditava ser meu dever,
no exterior. Nossa idéia era fazer um pedido que era denunciar.
de informações à Presidência da República, Minha visão era que não houvesse uma
para que nos abrissem os nomes de todos os vulgarização com a relação de atriz e torturador.
funcionários, pois isso era secreto. Genoíno foi Tanto que nas entrevistas, tinha de me segurar
torturado pelo Ustra também, vários foram, pois para não me emocionar e ficar na posição for-
ele serviu em São Paulo, no Rio e no Nordeste. mal de parlamentar. As pessoas perguntavam
Mas a direita veio contra com todo furor. Se- se eu tinha sofrido muito, o que ele tinha feito,
bastião Curió [coronel Sebastião Rodrigues de mas não detalhei nada. Não queria passar uma
Moura], que também havia torturado Genoíno, visão de vítima e algoz, mas de uma represen-
e seus companheiros começaram a dizer que tante do povo brasileiro contra um facínora de
Genoíno era um terrorista, que matou gente, um governo que já havia sido destituído, e isso
que eu era uma puta. Nós murchamos, não ficou muito claro.
tivemos força política dentro do Congresso. DV – E qual foi a reação
DV – E a repercurssão na imprensa? do denunciado?
Bete Mendes – Dei entrevistas para todos Bete Mendes – Um ou dois anos depois,
os jornais, foi uma explosão. No momento em Ustra escreveu um livro se defendendo. Distri-
que fiz a denúncia, o ministro do Exército, buiu a todos os parlamentares do Congresso
Leônidas Pires Gonçalves, foi para os jornais di- Nacional, menos a mim. Não li. E, agora, ele
zendo que eu estava mentindo, que o Brilhante escreveu um segundo livro. Atualmente, ele vive

SETEMBRO 2008 43
entrevista

tado do Rio de Janeiro. Como cidadã e como


Arquivo Bete Mendes

profissional, não posso ficar vendo a banda


passar. Tenho que estar envolvida, participando.
Fui convidada, há alguns anos, a fazer parte do
Movimento Humanos Direitos, composto por
alguns atores e intelectuais que lutam contra
o trabalho escravo, a prostituição infantil, em
defesa do ecossistema.
Hoje, o meu tesão está na arte. Uma experi-
ência muito rica no Executivo foi como secretá-
ria de Cultura. Foi importante para conhecer a
máquina do Executivo. Fiquei muito frustrada,
queria permanecer por lá 15 anos, gostaria
de estar envolvida com o desenvolvimento de
uma ação.
O Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro,
não quer ter soluções e foge de quem tem
soluções a partir da cultura. A Espanha deu
um nó e, depois de várias crises econômicas,
resolveu por meio da cultura. Portugal faz a
mesma coisa. A Argentina, por exemplo, que
está nesse buraco agora. Estive lá em janeiro do
ano passado e fiquei embasbacada com a forma
como eles conseguiram desenvolver o turismo
cultural, trazendo dinheiro para o país. O Rio
de Janeiro fica nessa discussão sobre violência,
mas poderia copiar idéias geniais. Para fazer
um trabalho de desenvolvimento no estado,
tem de ser a partir da cultura como forma de
produção de economia e de desenvolvimento.
DV – Há um debate dentro do
A atriz em 1980 governo federal, que já está
ganhando a sociedade, sobre a
em Brasília. Nessa época, eu já estava fora do Lei da Anistia. Qual sua opinião a
PMDB, não me entendia em nenhum partido. respeito?
DV – Você não tem vontade Bete Mendes – Sinceramente, não tenho
de se filiar mais? uma posição clara. Se estivesse no Congresso ou
Bete Mendes – Não, mas a palavra “nun- em alguma função pública ligada ao assunto,
ca” é muito perigosa. Tenho a política no meu teria mais argumentos para fechar uma posição.
sangue e falo de maneira bem vulgar: tem de Por sentimento, concordo totalmente com o
ter tesão para fazer. Se não for entrega total, Tarso Genro [ministro da Justiça]. Ele está sendo
não dá. Não tenho interesse de seguir carreira profundamente habilidoso e perspicaz e, ao
política, de ter cargo público. Amo minha vida mesmo tempo, correto. Porque não foi crime
de atriz e sou apaixonada pela função de agir político e sim crime comum o que foi cometido
politicamente. e ele, como ministro, tem mais condições de
DV – E onde estaria o tesão hoje na saber as gravidades e as nuances da situação
dimensão política do Brasil? para decidir se mexe ou não na Lei da Anistia.
Bete Mendes – O meu tesão é compli- Acho que é cabível, mas é uma idéia, não um
cado. Desde pequena, fico entre a arte e a posicionamento, até porque não tenho ele-
participação política de alguma maneira. Mas mentos para me posicionar. O que acho é que
tenho o maior orgulho da minha profissão. deveria haver uma revisão constitucional e a Lei
Tenho orgulho de ser ligada às artes. Ao mesmo da Anistia caberia bem no caso.
tempo, não posso ver algo errado na rua que DV – Por quê?
quero me meter e fazer algo. De 1999 a 2002, Bete Mendes – Foi uma matéria discutida
presidi a Funarj [Fundação de Artes do Rio de em uma Constituição militar, que conseguiu
Janeiro], ligada à Secretaria de Cultura do es- avançar por pressão da sociedade, mas ainda

44 Democracia Viva Nº 40
Bete Mendes

no regime militar. E a Constituição de 1988 dos. É função desta sociedade trazer o maior Participaram
não mexeu nisso. Seria interessante um debate número de pessoas para o debate. Se não for desta entrevista
sobre uma possível revisão constitucional, e assim, a gente não avança. Por isso, acredito Metade do corpo
de funcionários(as)
não só para essa matéria. Deveria haver um no trabalho organizado. do Ibase (cerca de
movimento buscando mais participação da DV – A Constituição de 1988 25 pessoas) fez questão
de conhecer Bete
sociedade. Hoje, temos muita comunicação e foi uma grande emoção para Mendes pessoalmente
as pessoas têm mais informações. Acho inte- a sociedade brasileira. Como foi e acompanhar os dois
ressante que haja um desejo da sociedade de participar desse processo? dias de entrevista –
por se tratar de
discutir a Constituição. Bete Mendes – Dr. Ulysses era um homem uma extensa lista,
DV – Quais outros temas não foram sábio, professor, sabia dizer as coisas certas na excepcionalmente, não
citaremos seus nomes.
aprofundados suficientemente e hora certa. Aliás, se não fosse Ulysses presidindo
deveriam ser revistos? a Constituinte, teríamos muito mais dificuldades
Bete Mendes – Não havia condição, a pra chegar ao fim. Hoje, estamos com carência Realização
Constituinte de 1988 foi a melhor possível. de grandes líderes no Congresso Nacional. Foi Entrevistadores(as)
Ela é excelente no corpo duro, nas leis pere- uma emoção muito grande, embora tenha Ana Bittencourt
nes que propõe, mas alguns pontos ficaram traído a Constituinte por um período. Fui con- Carlos Tautz
Dulce Pandolfi
circunstanciais. O movimento constituinte foi vidada pelo Orestes Quércia para ser secretária Fernanda Carvalho
uma das coisas mais lindas que já aconteceram de Cultura do estado de São Paulo. Aceitei, Flávia Mattar
Francisco Menezes
neste país. Houve um movimento de vamos abandonei a Constituinte, fui para São Paulo, Jamile Chequer
fazer, vamos participar, vamos discutir. Acho fiquei um ano e oito meses na secretaria e voltei João Roberto Lopes
que ela é excelente, mas ficou muito ordinária para a Constituinte. Foi uma experiência muito Pinto

em alguns artigos. No caso da Anistia, veja rica também. Decupagem


bem, denunciei o Brilhante Ustra em 1985, a DV – Você citou diversas vezes sua Ana Bittencourt
Constituinte foi em 1988. É uma matéria muito admiração pelo Lula. Como você Diego Santos
Jamile Chequer
delicada, os militares que não foram anistiados avalia os dois mandatos dele?
viveram nessa época. O período foi muito curto Bete Mendes – Sou uma entusiasta Edição
para resolvermos tantas coisas duras que acon- do Lula, adoro o fato de ele estar na Ana Bittencourt
teceram no país. Presidência, e também acho que ele Fotos atuais
DV – Acredita que haja risco comete erros. Mas é um operário, Marcus Vini
de perdermos algumas garantias inteligentíssimo, e tem um projeto de
Fotos de arquivo
e direitos conquistados em 1988? governo para o Brasil. Isso é evidente
Reproduzidas do livro
Bete Mendes – Não gosto de pensar e nós estamos vendo resultados. Álbum de retratos,
muito em risco, acredito que temos de ser Tenho várias divergências, porém elas Bete Mendes por
responsáveis. A sociedade tem de saber gritar. são menores que a minha admiração Fátima Guedes, editado
pela Trio de Janeiro
Falamos de movimentos maravilhosos como as pelo governo dele. No mais, só posso Produções Artísticas.
“Diretas Já”, a Constituinte... Mas ainda falta continuar aplaudindo o Lula. Acho Não há crédito a
fotográfos, pois todas
participação. E não podemos ter o risco como que ele tem, mais uma vez, o que nós as fotos são do
temerário. Tivemos uma evolução desde 1964, chamamos de inimigos bem-informados, arquivo pessoal
de Bete Mendes.
nós fomos para a guerra, uma luta contínua, tem contra ele o peso da mídia. Tenho
e chegamos aonde estamos hoje. Acho que uma alegria muito grande porque esse Produção
mudamos para melhor, principalmente com um presidente fala a língua do povo. É Geni Macedo
presidente operário. Eu sou fã dele! E eleitora. muito gostoso ouvir as pessoas falando
Vídeo
DV – Há um apelo da sociedade de suas conquistas, tem uma relação
Flávia Mattar
para o governo abrir os arquivos de identidade real, que não é aquela de
da ditadura. É possível que se príncipe no Olimpo.
criem mecanismos para que os
documentos desapareçam?
Bete Mendes – A responsabilidade é da
sociedade. Em 1964, a sociedade quis o gol-
pe militar. Muitas pessoas que quiseram não
sabiam porque queriam, mas achavam que
faltava lei e ordem, organização, criticavam o
governo Jango. Depois, muitas recuaram, mas
o erro já estava feito. A sociedade tem de ter
consciência. Por isso, cumprimento vocês, do
Ibase, e outros movimentos sociais organiza-

SETEMBRO 2008 45
46 Democracia Viva Nº 40
artigo
Marco Aurélio Santana*

Trinta anos das

greves
do
Em 2008, comemoram-se 30 anos das chamadas “greves do ABC”. O

movimento dos trabalhadores brasileiros de fins da década de 1970

teve papel importante no processo de redemocratização da socie-

dade brasileira, contribuindo fortemente para o desfecho do regime

militar instaurado no Brasil pós-1964. Motor e fruto da “abertura


Montagem sobre cartaz – Arquivo Histórico do Museu da República

política”, o sindicalismo brasileiro caminhou a passos largos para a

retomada de seu lugar no cenário político nacional. Essa base serviu

de preparação de terreno para um de seus momentos de ouro em

termos organizativos e mobilizatórios, ocorrido na década de 1980.


Pode-se dizer que, direta ou indiretamente, a partir das greves
ocorridas no ABC paulista, entre 1978 e 1980, e de suas reverberações e
composições com outros atores resultaram: um projeto sindical (o “novo

SETEMBRO 2008 47
artigo

sindicalismo”), um partido político (o Partido As greves iniciadas no ABC paulista


dos Trabalhadores) e uma central sindical em 1978 podem ser vinculadas não só ao
(a Central Única dos Trabalhadores). Após movimento de resistência geral da classe tra-
dez anos de trabalho silencioso, passadas as balhadora brasileira, no período da ditadura,
greves de Contagem e Osasco, em 1968, os mas também às iniciativas e aos impactos
trabalhadores reapareciam na cena pública de dessa resistência no próprio ABC. Os vínculos
forma vigorosa, indicando que era possível en- da mobilização grevista alcançaram, também,
frentar a ditadura com base em suas próprias as tentativas do Sindicato dos Metalúrgicos
organizações e mobilizações. que, já de algum tempo, tentava ao menos
refrear o “arrocho” salarial e o aumento da
exploração no trabalho. Isso já ficava claro ao
Lenta e gradual
longo de uma série de tentativas nas campa-
A partir de meados da década de 1970, o nhas salariais no início da década de 1970.
regime militar revê suas estratégias. O esgo- O sindicato caracterizava-se por certa
tamento do “milagre brasileiro” – precipitado contradição em termos de ações. Ao mesmo
pela alta internacional dos preços do petróleo tempo que se desvinculava da Federação
no plano econômico – e a derrota eleitoral dos Metalúrgicos de São Paulo, buscando
de 1974 frente ao Movimento Democrático desempenho autônomo nas campanhas,
Brasileiro (MDB) impuseram à ditadura um desestimulava greves e paralisações, como as
momento de inflexão e de alteração de rota. tentadas na Ford e na Mercedes. Em 1974,
Vencida a luta armada, ainda que os resquícios realizou-se o I Congresso dos Metalúrgicos
da máquina repressiva ficassem expostos em de São Bernardo do Campo. Esse encontro
ações que provocaram mortes e desapareci- definiu as orientações futuras do órgão rela-
mentos, o governo militar, com a chegada cionadas à liberdade e autonomia sindical, a
do general Ernesto Geisel (1974–1979) à uma lei básica do trabalho que contemplasse
Presidência, se propôs à estratégia da “aber- seus direitos fundamentais e à contratação
tura” política. Esse processo, que garantiu a coletiva de trabalho.
sobrevivência do regime, se daria de forma É com esse tipo de definição que Luiz
“lenta e gradual”. Inácio da Silva, o Lula – que já participava
Mas o movimento dos trabalhadores como membro da diretoria da entidade –,
traria maior complexidade ao quadro. Eles ir- chega à presidência do sindicato em 1975.
romperam na cena e estremeceram os arranjos Os procedimentos, em termos de campanhas
que se pensavam sem eles. A sociedade brasi- salariais, não se alterariam tanto nos anos
leira reconquista seus espaços de participação seguintes. Apesar de algumas conquistas no
política. Vivendo em um ambiente de eferves- varejo, no atacado, eram relativas a mobiliza-
cência, ela verá surgir inúmeros movimentos ção e a validação dos índices oficiais. O quadro
sociais que pavimentarão o caminho para o em 1977 seria o mesmo, com a agravante do
processo de redemocratização, acelerando a elevado número de demissões empreendido
crise do regime militar. pelas empresas.
Dentre esses movimentos, podem ser Outro fator determinante, segundo
listados o estudantil, o de mulheres, o de analistas e atores, foi a revelação pelo Banco
bairros e o contra a carestia. Articulados ou Mundial de que o regime militar manipulara,
não ao movimento sindical, os movimentos em 1973 e 1974, os índices de inflação,
sociais, que fizeram com que novos persona- mascarando o verdadeiro custo de vida. Isso
gens entrassem em cena, engrossaram a luta levou os trabalhadores a serem penalizados
democrática do período, tendo nos trabalha- em 34,1%. Nesse momento, o sindicato co-
dores um forte apoio. meça uma campanha pela reposição salarial
Quando os metalúrgicos do ABC pau- em busca daquilo que lhes havia sido retirado.
lista entraram em greve em 1978, abrindo Ainda que experimentasse o pouco interesse
caminho para a paralisação que se seguiu dos patrões e do governo no sentido da re-
em outras categorias, eles romperam com os posição, essa campanha teve grande peso no
limites estreitos da lei de greve, com o “arro- quadro das mobilizações posteriores.
cho salarial” e o silêncio geral ao qual havia A campanha salarial de 1978 termi-
sido forçada a classe trabalhadora. Com isso, nou como as anteriores, homologando-se os
impactaram alguns dos pilares de sustentação índices oficiais. Os representantes de governo
política e econômica da ditadura militar. e empregadores estranharam muito o fato

48 Democracia Viva Nº 40
Trinta anos das greves do ABC

de o sindicato não ter incluído o índice de Osasco e São Paulo. *Marco Aurélio
reajuste salarial na pauta de negociação, já Os militares acusaram infiltração comu- Santana
que o índice, como sempre, seria o indicado nista na greve. A oposição saiu em apoio ao Coordenador
pelo governo. Porém, o sindicato tinha como movimento. A mobilização acabou por atingir do Programa
estratégia desmascarar todo o processo e, outros setores da economia. Apesar de não de Pós-graduação
assim, se recusou à negociação tutelada pela conseguir os índices reivindicados, os operá- em Sociologia e

rios em greve conseguiram aumentos salariais Antropologia (PPGSA)


Justiça do Trabalho, abrindo mão de sua par-
do Instituto de Filosofia
ticipação no dissídio. acima daqueles oferecidos originalmente pelos
e Ciências Sociais (IFCS)
A política do sindicato, então, era jogar empregadores.
da Universidade Federal
por terra o que seria a falácia de participação do Rio de Janeiro (UFRJ)
gerada pelo governo militar e deixar um vazio
Década sindical
em termos da parte referente à representação
dos trabalhadores. O sindicato, que – ao longo Sem sombra de dúvida, esse movimento sig-
da campanha pela reposição que precedeu a nificou o passo fundamental para a retomada
campanha salarial – já vinha batendo na tecla do movimento operário e sindical brasileiro
do “roubo” efetuado pelo governo, preparava em termos da cena política mais geral. Em
o caminho para uma desilusão ainda maior entrevista dada à revista Visão, em 3 de abril
ao término dessa campanha. de 1978, antes da greve, Lula dizia que “o
Em fins de março, os trabalhadores caminho ficou muito tempo fechado, o mato
da Mercedes-Benz já haviam paralisado o cresceu e está impedindo os trilhos. Agora,
trabalho por não terem recebido o aumento estamos apenas cortando o mato e desobs-
que a empresa costumava conceder. O desen- truindo a linha”.
volvimento da paralisação em vários setores Apesar da importante atuação do sindi-
da fábrica levou à demissão de 17 operários, cato, vale ressaltar as ações dos trabalhadores
fazendo o movimento refluir. A própria pos- na base das empresas. O fato é que, de uma
tura da empresa, posteriormente, indicava só vez, os trabalhadores colocavam em xeque
certa alteração nos padrões de negociação. tanto a política salarial como a política anti-
O endurecimento era sensível. greve do governo, chocando-se com o con-
Em 12 de maio de 1978, os trabalha- junto da política de “arrocho” empreendida,
dores da Saab-Scania entraram em greve. Na de longa data, pela ditadura militar.
verdade, a Scania passara, em fins de 1977, Com isso, abriram terreno para muitas
por tensões internas com seus empregados, o outras paralisações que ocorreram naqueles
que resultara na demissão de alguns operários. anos, demonstrando a insatisfação operária e
O sindicato reverteu as demissões na justiça, a vontade de estabelecer um novo estado de
mas elas acabaram prevalecendo na prática. coisas, tanto dentro das empresas como no
A greve de maio de 1978, deflagrada seio da sociedade brasileira.
diretamente pelos trabalhadores da fábrica, Os movimentos se repetiriam em 1979
estendeu-se por quatro dias, ao fim dos quais e 1980 de forma muito mais organizada e
a diretoria do sindicato arrancou um acordo articulada, transformando os metalúrgicos do
“de boca” da direção da empresa. Depois, ABC em verdadeira ponta de lança de uma
pressionada pelos outros setores da indús- luta muito mais ampla, empreendida nos mais
tria automobilística, a Scania não cumpriu o diversos setores econômicos e em todas as
acordo, trocando os 20% das reivindicações regiões do país. A pujança desses movimentos
por parcos 6,5%. Nova mobilização foi tenta- foi reiterada na década de 1980, que se con-
da, mas, mediante as práticas repressivas da figurou como uma “década sindical”, ficando
empresa, não se efetivou. Contudo, as mobi- marcada na história recente do país.
lizações por fábrica já se alastravam pelo ABC
paulista. No dia 15 de maio, pára a Ford, e no
dia 16, a Volkswagen. Já se contavam cerca
de 20 mil trabalhadores em greve. Apesar do
Tribunal Regional do Trabalho (TRT) considerar
as greves ilegais, foi o início de uma onda
mobilizatória que alcançou grandes, médias
e pequenas empresas, desenvolvendo tipos
variados de greve e com durações diversas,
chegando a alcançar outros municípios, como

SETEMBRO 2008 49
r e s e n h a

comunicação.
Para alcançar o objetivo geral – re-
fletir sobre o modelo de regulação das
comunicações –, o autor traça um histórico
da legislação sobre o tema desde o Código
Brasileiro de Telecomunicações, de 1962,
até o primeiro governo Lula. A análise é feita
com base na perspectiva da economia política
do setor das comunicações no país, por meio
da observação da estrutura do mercado e das
relações de poder. Embora o trabalho seja
mais focado na radiodifusão, especialmente
no mercado de televisão, ele dá conta de es-
clarecer o que se passa em todo o macrossetor
das comunicações. Para isso, não perde de
vista, em nenhum momento, o processo de
convergência tecnológica.
Embora já existisse alguma legislação
Qual a lógica sobre a radiodifusão desde a década de 1920,1
o primeiro marco legal das comunicações no
das políticas de Brasil foi o Código Brasileiro de Telecomuni-
comunicação no Brasil? cações2 (CBT), culminância de um complexo
processo de disputas. A legislação aprovada
César Ricardo Siqueira Bolaño
no Congresso atendia claramente aos interes-
Paulus
ses do empresariado da comunicação e tinha
124 págs.
como eixo central a liberdade de atuação
da iniciativa privada no setor. À época, a
O livro do pesquisador César Bolaño tem sociedade não estava voltada para o tema,
como grande mérito jogar luz sobre a lógica e praticamente a única oposição ao projeto
que permeia a definição das políticas públi- partiu do então presidente João Goulart, que
cas de comunicação no Brasil nas últimas vetou 52 itens do código. Contudo, em um
décadas. Neste momento, em que a socie- fato histórico, o Congresso derrubou todos
dade começa a incorporar o debate sobre a os vetos presidenciais.
democratização da comunicação por meio de O autor destaca o fato de que esse pri-
questões como a introdução da TV digital, a meiro marco legal foi elaborado e aprovado
1 Apesar de haver
controvérsias sobre o assunto, criação da TV Brasil e a polêmica em torno sob os cuidados do empresariado do setor,
oficialmente, a primeira
rádio brasileira foi a Rádio da questão da classificação indicativa, o livro reunido na Associação Brasileira de Emissora
Sociedade do Rio de Janeiro,
fundada em abril de 1923.
não poderia ser mais adequado. de Rádio e Televisão (Abert).3 Aquele mo-
2 O Código Brasileiro
Fruto de um trabalho de pesquisa do mento, portanto, abre espaço para a consolida-
de Telecomunicações foi Observatório de Economia e Comunicação ção de um sistema comercial privado de rádio
instituído pela Lei 4.117,
de 27 de agosto de 1962. da Universidade Federal de Sergipe, o livro e televisão a partir de concessões públicas.
3 Fundada naquele mesmo tem um caráter bem didático e é bem aces- Esse modelo é bem diferente, por exemplo,
ano de 1962, a Abert é,
até hoje, a principal sível para o público que não acompanha tão do que ocorreu na Europa, onde, na maior
entidade representativa dos
empresários da radiodifusão.
de perto os debates acerca das políticas de parte dos países, a televisão foi implantada e

50 Democracia Viva Nº 40
consolidada por emissoras públicas. A ditadu- novamente por pressão do empresariado,
ra militar fez alguns ajustes na regulação do jamais se tornou realidade. A radiodifusão
setor, mas, de modo geral, aquela legislação permanece, até hoje, regulada pelo Código
permaneceria em vigor por décadas. Brasileiro de Telecomunicações.
O primeiro momento em que se Um dos principais motivos da resis-
começa a debater as bases para um novo tência da Abert à nova legislação era a pos-
modelo de regulação do setor é no processo sibilidade de criação de um órgão regulador
da Assembléia Nacional Constituinte. Esse independente. A idéia de criação de uma
debate foi polarizado por dois blocos: um, Agência Nacional do Cinema e do Audio-
influenciado pela Federação Nacional dos visual voltou a surgir no primeiro governo
Jornalistas (Fenaj), lutava por maior controle Lula, mas – imediatamente bombardeada pela
sobre a radiodifusão, com participação direta mídia – tornou a ser abandonada.
da sociedade civil; o outro, hegemonizado Ao trabalhar com esses – e muitos
pela Abert, defendia uma idéia mais liberal, outros – exemplos do “engessamento” da
que privilegiava o mercado, com regulação regulação das comunicações, o autor sinaliza
frouxa por parte do Estado. Essa e outras que a posição hegemônica do empresariado
questões fizeram do capítulo sobre a comuni- em nenhum momento foi seriamente abala-
cação social o mais polêmico da Constituinte: da. Um mercado caracterizado por enorme
foi a única área que não encaminhou relatório concentração da propriedade dos meios de
final à comissão de sistematização. comunicação está relacionado a um modelo
Depois de árdua negociação, o capítulo de regulação também concentrador.
da Constituição que tratava da comunicação Os mesmos grupos mantêm a hegemo-
social trouxe significativos avanços democrá- nia da radiodifusão há décadas, por conta de
ticos, como a criação de um Conselho de Co- um sistema autoritário e nebuloso de conces-
municação Social, a proibição do monopólio sões, perpetuado graças a interesses políticos
e do oligopólio nos meios de comunicação, regionais e nacionais.
o estímulo à produção independente e com- Apesar do balanço negativo, o autor
plementaridade dos sistemas privado, estatal esclarece que a situação não é imutável. Em
e público de comunicação. Mas a pressão da função de diversos fatores globais – de ca-
Abert ainda não havia terminado: a maior par- ráter tecnológico, econômico e social –, está
tes desses dispositivos não seria implantada aberta a necessidade de um novo modelo de
por falta de regulação posterior.4 regulação. Os rumos que essa nova regulação
César Bolaño indica que a primeira tomará ainda dependem da disputa entre os
ruptura significativa com o modelo regula- atores envolvidos. A possibilidade de avançar
tório estabelecido no CBT ocorreu durante na democratização da comunicação depen-
o processo de reestruturação do setor, de da construção de uma nova hegemonia, 4 Desses, o único implantado
foi o Conselho de
efetuado no governo Fernando Henrique comprometida com os interesses públicos e Comunicação Social; mesmo
assim, só foi instaurado em
Cardoso. Para viabilizar as privatizações a diversidade cultural. 2002
(ou seja, 14 anos depois de
das telecomunicações, o governo criou a Lei promulgada a Constituição
Geral de Telecomunicações (LGT).5 Naquele Federal), em uma negociação
que permitiu a abertura
momento, houve a separação da regulação do mercado brasileiro de
radiodifusão ao capital
das telecomunicações e da radiodifusão. Alvaro Neiva estrangeiro.
Esta deveria ser regida por uma Lei Geral Jornalista, mestrando em Políticas Públicas e 5 A Lei Geral de
da Comunicação Eletrônica de Massa, que, Formação Humana na Universidade do Estado
Telecomunicações foi
aprovada em 7 de julho de

SETEMBRO 2008 51
Programa de Pós-graduação em Desenvolvi-
mento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ).
Originalmente, o termo agrarismo
remete às organizações dos camponeses
(ligas, associações, sindicatos etc.). O autor
explora outra acepção de agrarismo, desta-
cando a produção de discursos relativos à
transformação do mundo rural com base na
ação dos atores sociais. Para isso, ocupa-se de
intelectuais que produzem textos destinados
ao debate político, por ora autores do campo
da esquerda comunista.
Anuncia esse ensaio como parte de um
trabalho maior, no qual a matriz comunista
será comparada a um agrarismo mais con-
temporâneo, tendo por referências principais
obras de José de Souza Martins, no campo
intelectual, e o Movimento dos Trabalhado-
Agraristas políticos res Rurais Sem-Terra (MST), no campo da
brasileiros mediação política.
A primeira parte do livro é dedicada à
Raimundo Santos
analise de três comunistas. O primeiro é Caio
Fundação Astrojildo Pereira / IICA /
Prado Junior, nome de relevo na vida intelec-
Nead
tual e que, desde o célebre elogio de Antonio
200 págs.
Candido, vem sendo reverenciado como um
dos intérpretes do Brasil.1 Raimundo Santos
No atual contexto de celebração do centená- evidencia as reflexões “caiopradianas” sobre a
rio de nascimento de Caio Prado Junior e da questão agrária segundo a sua questão-chave:
propalada “crise da esquerda”, resulta por a valorização do trabalho e o sindicalismo
demais oportuna a reflexão proposta no livro como caminho para a transformação do
de Raimundo Santos, recém-publicado pela mundo rural.
Fundação Astrojildo Pereira, em parceria com Mesmo com restrições, as idéias de
o Instituto Interamericano de Cooperação para Caio Prado seriam adiante utilizadas pelo
Agricultura (IICA) e o Núcleo de Estudos PCB. Era uma aceitação tácita (e parcial),
Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead). visível, desde meados da década de 1950,
O autor estuda o pensamento social brasileiro na “tática” de fundar sindicatos rurais como
1 No prefácio à 3ª edição do
livro Raízes do Brasil (1968), relacionado ao nosso mundo rural. meio para atingir as massas camponesas –
Candido diz que Casa grande
e senzala, de Gilberto Freyre, Neste momento de “crise da esquerda”, diferentemente de Caio Prado, que conferia
Raízes do Brasil, de Sérgio B.
de Holanda, e Formação
a interpelação das suas próprias matrizes, centralidade estratégica aos assalariados e
do Brasil contemporâneo, dentre as quais o marxismo político do Partido semi-assalariados e a seus sindicatos.
de Caio Prado, passaram
“uma mentalidade ligada Comunista Brasileiro (PCB), ganha muita O segundo autor analisado é Alberto
ao sopro de radicalismo
intelectual e análise social” importância. Reconstruir essas e outras raízes Passos Guimarães, conhecido como protago-
aos intelectuais da geração
pós-1930.
constitui o trabalho de Raimundo Santos no nista do debate sobre o tema do feudalismo

52 Democracia Viva Nº 40
r e s e n h a

(ou seus restos) no campo brasileiro, com seu de pequenos produtores. Em um contexto
livro Quatro séculos de latifúndio (1963). de lutas por redemocratização – como após
Sobre esse ensaio acerca da história do mo- a Anistia de 1979 –, essa perspectiva abria
nopólio territorial no Brasil, recaiu a fama caminho para os tais grupos “camponeses”
de equívoco metodológico por visualizar se incorporarem à vida nacional.
resquício de algo que não existiu. Para a segunda parte do livro, o autor
Raimundo Santos desloca o foco para selecionou textos dos próprios agraristas. As-
outros aspectos dos textos de Alberto Guima- sim, de Caio Prado destacou o texto de 1963
rães mais pertinentes à construção do agra- sobre o “Estatuto do Trabalhador Rural”. De
rismo comunista. Relembra que Guimarães Alberto Passos Guimarães, o artigo “As três
usa o conceito de feudalismo com um sentido frentes da luta de classes no campo brasileiro”
instrumental. Raimundo Santos destaca que (1960). Para ilustrar a contribuição de Ivan
esse autor também recorria à conceituação de Ribeiro, escolheu “A agricultura e o capita-
Lenin sobre as vias de evolução do feudalismo lismo no Brasil”, publicado em 1975, sob
ao capitalismo. pseudônimo, na revista Études Brésiliennes,
Alberto Passos Guimarães punha seu editada pelo PCB em Paris.
interesse na “via prussiana”, assim diferen- Por fim, na terceira parte do livro, é
ciando sua visão das abordagens então domi- reproduzida a Declaração de Março de 1958,
nantes no PCB. Conforme Raimundo Santos, com a qual o PCB concluiu os debates sobre
em Alberto Passos Guimarães, a associação o stalinismo, anunciando a chamada “nova
do feudalismo ao conceito de via prussiana política”.
estimularia a busca do caminho brasileiro Ao destacar as contribuições de
rumo ao socialismo, naquela época aspirado expressivos intelectuais do comunismo bra-
por grupos comunistas. sileiro – e considerando a hipótese de que
Com relação a Ivan Otero Ribeiro, são autores de interpretações da sociedade
autor de um “agrarismo inconcluso” – in- brasileira, cujas heranças são visíveis em
terrompido por sua morte no acidente aéreo nossa esquerda ativista –, refletir sobre seus
que também vitimou o ministro da Reforma avanços e limites pode facilitar a compreen-
Agrária do governo Sarney, Marcos Freire, são de impasses atuais.
e parte da sua equipe –, Raimundo Santos Afinal, os debates sobre “políticas pú-
realça o sentido de uma renovação da tradição blicas para agricultura familiar” deste início
comunista brasileira nesse jovem pesquisador. de século 21, às vezes, parecem impregnados
O ponto desse ensaísta estaria na de idéias semelhantes às “medidas parciais de
interpretação da questão agrária com base reforma agrária”, como se dizia nas décadas
no reconhecimento (ao contrário de Alberto de 1950 e 1960. Da mesma forma, o fortaleci-
Passos Guimarães) de que a modernização mento de uma “via camponesa” parece justifi-
conservadora da agricultura realizada pelos car a retomada dos debates sobre “revolução
militares não cancelava a função da reforma brasileira”, “revolução agrária”, “revolução
agrária. camponesa” ou “não-camponesa”. Por tudo
Ivan Ribeiro não negava a importância isso, retornar aos nossos agraristas políticos
dos grandes setores da agropecuária – nos é uma prioridade.
quais se devia incentivar associativismo de
tipo “caiopradiano” – e, ao mesmo tempo,
Cláudio Severino
dizia que a redistribuição de terras traria
Doutorando no Curso de Pós-graduação em
ganhos importantes aos vastos contingentes Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura

SETEMBRO 2008 53
c r ô n i c a

O poeta esconde
a poesia sob a
É tão raro ir ao centro da cidade que nunca vou Cruzei-as, para prender uma à outra.
de carro. É salutar tornar lazer um dever que Porém, o poeta me ignora. Simplesmen-
me tire do Leblon. Tal idiossincrasia criou a te não me vê. Se olhasse pela janela, poderia
ocasião em 1978 ou 1979, não me lembro bem. me perceber, pelo menos, de soslaio. Mas ele
Voltando para casa, num fim de tarde, age como se ali não houvesse ninguém. Abre
tomo um ônibus no ponto de partida. Sento-me o livro e lê, nariz quase colado ao papel. O
à janela, estico as pernas e me rendo ao prazer ônibus parte.
do ar-refrigerado. Acompanho passivamente Olho pela janela, fingindo ensimesma-
o movimento na calçada, alheio ao que se mento. Na verdade, atento a cada movimento
passa no ônibus. Ambientado ao silêncio e ao do poeta, à sua respiração, até ao seu olhar. O
conforto, começo a ler um livro. Mas não me poeta não sabe, nem pode saber, que ao seu
escapa que o ônibus é ocupado aos poucos. lado, quase lhe roçando o braço, está um leitor
Ao virar uma página, olho à volta, de de seus versos, que compartilha tanto de sua
relance, e deparo-me, atônito, com o inespe- sensibilidade que se sente cúmplice do olhar,
rado. Avança pelo corredor, à procura de um de retinas fatigadas, que pousa sobre homens
lugar vago, ninguém menos que o poeta. Meu e coisas. O poeta não sabe, nem pode saber,
coração se acelera num ritmo caótico. Volto ao que este que ele ignora a seu lado, leu todos
livro sem nenhuma pretensão de ler. As idéias os poemas, de todos os seus livros, assim
rodopiam ao sabor das emoções. Ao meu lado, como todos os livros sobre os seus livros e
uma poltrona vazia. Quase passo a mão sobre o que, agora, espicha o pescoço para espiar que
assento, à guisa de limpá-lo, mas, na verdade, livro ele lê. O poeta não sabe, nem pode saber,
sugerindo-a ao poeta. Falta-me coragem para o que ao seu lado está um mineiro, que também
gesto. Não consigo mais fingir que leio. Volto viveu em Belo Horizonte, que um dia também
a olhar através da janela, agora, tentando me saiu de Minas, e que também veio para o Rio
passar por um desses tipos aéreos, que se man- de Janeiro, e cessam aí as analogias. O poeta
tém em quieto silêncio, perdido nos próprios não sabe, nem pode saber, que ao seu lado não
pensamentos. Embora olhe para fora, todos está um poeta, mas um escritor, a quem não
os canais de percepção estão voltados para o foi dado o verso.
poeta que, afinal, senta-se. Recosto a cadeira e ganho liberdade
Eis que o impensado, o jamais sonhado, para observá-lo de viés. Usa paletó sobre a
para o qual nunca me preparara, acontecia. Eu, camisa esporte, abotoada no colarinho. No
sentado ao lado de ninguém menos que Carlos colo, uma pasta preta sem alça pode confundi-
Drummond de Andrade. Se o coração já me -lo com um advogado, um professor ou mesmo
escoiceava o peito, agora as pernas tremiam. um cobrador. A mão, de dedos longos, é de

54 Democracia Viva Nº 40
uma brancura quase transparente, que deixa à deixou de ler um instante. A certa altura, Alcione Araújo
mostra finas veias azuis. Contrasta com o livro, convencido de que não devia importuná-lo, eu alcionearaujo@uol.
que segura aberto – pequeno, fino, antigo, de também voltei a ler, agora com interesse. Em
capa dura vermelha. Olho através das lentes Ipanema, o poeta desembarcou. Afastou-se,
dos seus óculos. Somados os graus dele aos empertigado, pasta à mão, sem olhar para trás.
meus, o mundo se entorta e deforma. Para ler Segui no ônibus para o Leblon, me mordendo
e ver de perto, ele aperta os olhos por trás dos por ter perdido aquela oportunidade.
óculos. É de olhos quase fechados que vê o Passaram-se os anos. Uma tarde, na
mundo. É sob a pálpebra que o poeta esconde sede da Sociedade Brasileira de Autores Tea-
a poesia. trais para receber direitos autorais, reencontro
Comecei a ser beliscado pela idéia de o poeta do mesmo lado do balcão, também
puxar conversa. E se eu dissesse – conjeturei recebendo seus direitos. Atendidos ao mesmo
– “Conheço o senhor”. Fiquei envergonhado tempo, o funcionário se confunde e troca os
só de pensar. Desisti. A idéia retornou com nossos cheques. No curto tempo até o engano
outra forma: “E aí, Drummond?”. Outra vez ser corrigido, soubemos o quanto o outro re-
me envergonhei com a insinuação de uma inti- cebera. E o poeta comentou, prosaico: “Você
midade que jamais tivemos. Como reagiria se o ganha muito dinheiro! É dramaturgo? Fico até
chamasse de Drummond? – pensei. Ele olharia com vergonha de você ter visto a mixaria que
para mim, não diria uma palavra, não moveria recebi”. Rindo às gargalhadas, saímos juntos
um único músculo e, ato contínuo, voltaria para o elevador. E eis que o poeta, de voz agu-
a ler. E eu saltaria pela janela do ônibus em da e frases rápidas, torna-se, aos meus olhos,
movimento. Ocorreu-me, então, utilizar o que um mortal falante, espirituoso e divertido.
tínhamos em comum: Minas. Eu perguntaria, Culpado e envergonhado por ganhar mais do
em tom de pilhéria: “Então, o senhor acha que que o genial Carlos Drummond de Andrade,
a nossa Minas não há mais?”. Pergunta mais me empenho em explicar-lhe que uma peça
ridícula, meu Deus! E o tratamento? Nunca minha estava fazendo sucesso, fato raro, nada
falei senhor Shakespeare, senhor Goethe, rotineiro, absolutamente excepcional.
senhor Whitman! Mas não conseguiria dizer: No ônibus de volta, lado a lado, vol-
“E então, Carlos...?” Melhor esquecer essa tados um para o outro, falamos sobre teatro,
idéia. Voltei a poltrona à posição vertical, abri poesia, crônica, tradução, Itabira, Minas, Aca-
o livro. Não consegui ler, mas mantive o olhar demia, etc. Quando a conversa chegou à pura
fixo na página aberta. Até que me ocorreu que galhofa, criei coragem e contei-lhe a história
se ele me visse lendo, quem sabe, não puxaria do nosso encontro de anos antes. E ele conce-
conversa? Talvez perguntasse pelo livro, se deu que voltássemos a rir como se fôssemos
leio sempre, o que gosto de ler, etc., até se amigos. Como se fôssemos velhos amigos.
declarar poeta e se identificar. Eu, então, na Em Ipanema, o poeta despediu-se e
euforia de conhecê-lo pessoalmente, confes- desembarcou. Afastou-se empertigado, pasta à
saria minha admiração e recitaria uns três ou mão. Quando o ônibus passou por ele, acenou.
quatro poemas que sei de cor. Bastou intuir Segui para o Leblon pensando em seus versos:
o interesse do poeta no que lia para concluir “Que milagre é o homem? Que sonho, que
que ele jamais tiraria os olhos daquele livreco sombra? Mas existe o homem?” Sim, existe.
e olharia para mim.
Foi o que aconteceu. O homem não

SETEMBRO 2008 55
artigo
Teresa Sales*

Josué de
Castro:
um homem e
Este ano de 2008, comemora-se o centenário de nascimento de Josué de Castro. Per-

nambucano ilustre, cidadão do mundo, Josué de Castro deixou vasta obra publicada,

na qual se destaca o livro Geografia da fome, traduzido para mais de duas dezenas de

idiomas pelo mundo afora. Geografia da fome ultrapassa as fronteiras do Brasil não so-

mente pela tradução do livro para outras línguas, mas também porque Josué de Castro

utiliza a mesma metodologia para estudar a fome em outras partes do mundo por meio

da Geopolítica da fome.

Enquanto esteve em Roma como presidente do Conselho Executivo da FAO (Orga-

nismo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), entre 1952 e 1956, Josué de

Castro abriu diálogo com o mundo das artes, e seus escritos suscitaram o interesse de

cineastas do neo-realismo italiano. Como resultado disso, em 1958, Roberto Rossellini

veio ao Nordeste com a intenção de realizar um filme baseado em Geografia da fome –

projeto que, infelizmente, não se realizou.


Por essa mesma época, o escritor e roteirista Cesare Zavattini (imortalizado com o filme

56 Democracia Viva Nº 40
Ladrões de bicicleta), de quem Josué de Castro mente, no Rio de Janeiro, onde ele morou por
era amigo, pensou também em fazer um filme- mais tempo no Brasil e onde estão seus restos
-painel sobre a fome no mundo inspirado em mortais; na França, onde ele viveu seu exílio,
Geopolítica da fome e composto por vários depois de 1964, até sua morte em 1973; e no
segmentos, representantes dos países nos quais Recife, sua cidade natal – tem trazido à luz
a fome se apresentava de forma mais aguda muitos aspectos de sua vida e de sua obra.
naquele momento, que seriam realizados por Preferi, neste escrito, começar apresentando
diferentes diretores. O único dos segmentos um Josué de Castro vivo e imortalizado por seu
realizado foi perdido, por essas fatalidades da diálogo com a arte.
vida, sobrando dele apenas fragmentos. Esse A arte de Josué de Castro está também
filme foi O drama das secas, de Rodolfo Nanni, em seus livros, resultados de pesquisa científica
cineasta brasileiro que havia sido convidado rigorosa, porém escritos com maestria e beleza.
por Josué para realizar o segmento brasileiro Quando escreveu Geografia da fome – publica-
do projeto de Zavattini. do pela primeira vez em 1946 pela editora O
Para falar sobre o filme, dou a palavra Cruzeiro –, o tema era tabu, segundo palavras
a Rodolfo Nanni: do próprio Josué.

1958 foi um ano de seca rigorosa. Partimos


de Recife, com uma primeira parada em Pensamento e ação
Caruaru, onde encontrei Mestre Vitalino
Médico de formação, Josué decide estudar a
em uma praça, cercado de imagens de bar-
fundo as causas da fome que ele viu de perto
ro expostas no chão. Ficou-me, desse breve
quando, no Recife, entrava em contato com as
encontro, a lembrança do grande artista e
populações pobres dos manguezais, cujas ima-
a imagem de um touro esculpido por ele,
gens ficaram indelevelmente marcadas em sua
para mim, até hoje, o símbolo da resistên-
vida e em sua produção intelectual. A cidade do
cia do povo nordestino. Na etapa seguinte
Recife foi motivo de um livro pouco conhecido
das filmagens, em Garanhuns, começamos
de Josué de Castro, cuja edição está esgotada,
a entrar em contato com uma realidade
mas que, felizmente, está sendo reeditado pela
muito mais trágica do que esperávamos:
Editora Massangana, com lançamento previs-
retirantes depauperados, na beira de
to para este ano. Trata-se do livro Fatores de
estradas. Daí em diante, nos quatro mil
localização da cidade do Recife, publicado em
quilômetros que rodamos pelas estradas
1948 e escrito como tese para efetivação de
cheias de pó, encontrávamos centenas e
centenas de homens, mulheres e crianças,
num misto de desespero e desesperança,
à procura de um destino desconhecido.
Foi o que filmamos, o tempo todo. Assim
nasceu o filme O drama das secas , o único
segmento realizado do projeto inicial de
Zavattini (press release escrito por Rodolfo
Nanni para a apresentação de seu filme O
retorno no festival de cinema de Pernam-
buco, em maio de 2008, onde ele recebeu
o prêmio de melhor diretor).

Meio século depois, Nanni retorna ao


Nordeste para novas filmagens, que resultaram
no filme O retorno, a ser lançado, em breve, em
circuito comercial. No Recife, como parte das
Fotos: Acervo Centro Josué de Castro

comemorações do centenário de nascimento de


Josué de Castro, tivemos o privilégio de assistir,
em primeira mão, a esse documentário, com a
presença de Rodolfo Nanni, do diretor de foto-
grafia, Roberto Santos Filho, e da responsável
pela trilha musical e paisagem sonora, Anna
Maria Kieffer. O centenário de nascimento
de Josué de Castro – comemorado, principal-

SETEMBRO 2008 57
artigo

Josué de Castro como professor na cátedra de tos para a compra de 12 alimentos básicos
Geografia Humana da Faculdade Nacional de que compunham a cesta alimentar, constituiu
Filosofia da Universidade do Brasil, em 1947. enorme avanço sobre a legislação mundial no
Ninguém conhecerá a cidade do Recife sem ter assunto, permitindo a cobertura das necessida-
passado por esse belo livro. des biológicas de calorias e nutrientes. Salário
Josué de Castro era um homem de mínimo, merenda escolar e criação da Comis-
pensamento e ação. Radicado no Rio de Ja- são Nacional de Alimentação – precursora do
neiro, clinicando, lecionando e estudando, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
teve atuação destacada em políticas públicas: Nutricional (Consea) – são algumas das ações de
nos movimentos em prol do estabelecimento Josué de Castro no Brasil, além da atuação in-
do salário mínimo (que passa a vigorar por ternacional, na qual se destaca o período como
decreto-lei de Getúlio Vargas em 1940); na presidente do Conselho Deliberativo da FAO.
fundação do periódico Arquivos Brasileiros de
Nutrição, editado sob a responsabilidade do
Obra inesquecível
Serviço Técnico da Alimentação Nacional e da
Nutrition Foundation de New York, em 1941; na Pode-se dizer que a obra de Josué de Castro
fundação da Sociedade Brasileira de Alimenta- é grande em quantidade e qualidade. Não
ção, em 1940, constituída de futuros dirigentes fosse a truculência do golpe militar, em 1964,
do Serviço de Alimentação da Previdência Social e dos governos ditatoriais que lhe seguiram –
(Saps), criado em agosto do mesmo ano por ele e tantos(as) outros(as) ilustres intelectuais
iniciativa do Ministério do Trabalho, Indústria brasileiros(as) foram expulsos(as) de nosso
e Comércio. país para o exílio –, não fosse esse período
A década de 1950 reservaria muitas vergonhoso de nossa história, os resultados da
atividades públicas na vida de Josué de Cas- atuação desse homem público em nosso país
tro. Foi deputado federal por Pernambuco em seriam ainda mais expressivos. Quem sabe até
duas legislaturas, 1955 e 1959. Em 1952, foi chegaria ao tão cobiçado Prêmio Nobel da Paz,
eleito presidente do Conselho Executivo da para o qual foi indicado duas vezes? Quem me-
FAO. Reeleito por unanimidade pelos delega- lhor do que ele para representar o Brasil nessa
dos dos países que formam o Conselho das honraria com a qual o país nunca foi brindado?
Nações Unidas, permaneceu no cargo até o Um dos estudiosos da obra Geografia da
fim de 1956. Nesse conselho, impulsionado fome, Ricardo Abramovay, traz Josué de Castro
pelo sucesso de seus livros, sobretudo Geo- para os dias atuais em seu artigo, ainda inédito,
grafia da fome, pelo prestígio do órgão e pela “Integrar sociedade e natureza na luta contra
aceitação de suas posições científicas, Josué de a fome no século XXI”. O autor de Geografia
Castro empreendeu uma série de trabalhos de da fome passa a dialogar, pelas mãos e arte
combate à fome no mundo, buscando unir os do professor Abramovay, com autores e temas
conhecimentos científicos e a ação. Ao deixar a que estão, hoje, na academia. Enfatizando a
FAO, em 1957, fundou a Associação Mundial de abordagem interdisciplinar de Josué de Castro,
Luta contra Fome (Ascofam), visando despertar duas dimensões são ressaltadas: a biodiversi-
o mundo para o problema da fome e da miséria dade (“embora a noção não esteja claramente
e promover projetos demonstrativos de que a formulada, Geografia da fome encontra-se
fome pode ser vencida e abolida pela vontade entre os mais belos elogios já produzidos no
das pessoas. Brasil a respeito de sua biodiversidade”) e a
A figura humana de Josué de Castro reunificação daquilo que a constituição das
como homem de ação para além da reflexão ciências contemporâneas separou, qual seja, a
está presente desde o início de sua carreira, natureza e a sociedade. Ou, em outros termos,
como médico que retorna ao Recife depois de o meio-ambiente e o desenvolvimento.
formado no Rio de Janeiro. Foi Josué quem Nessa perspectiva interdisciplinar, Ri-
realizou o primeiro inquérito de consumo ali- cardo Abramovay permite a Josué de Castro
mentar do Brasil, em 1935, que contemplava dialogar com uma instigante e atual bibliografia
minuciosa descrição das despesas domésticas de autores contemporâneos identificados com
com moradia, alimentação, saúde, educação e a economia ecológica, que procuram ligar
transporte. Desse inquérito, resultaram as bases sistemas sociais e sistemas ecológicos. Para
para a instituição do salário mínimo no Brasil – Abramovay, é nessa ligação que está a chave
efetivamente implementado no governo Vargas. para compreender e enfrentar os desafios ali-
O inquérito, ao estimar 50% dos gas- mentares do século 21.

58 Democracia Viva Nº 40
Josué de Castro: um homem e vários legados

Segundo ele, o mais importante na obra todos os dias, tal como a explosão dos preços *Teresa Sales
de Josué de Castro não é o tema sobre o qual dos alimentos, são reflexos não somente do Socióloga, presidenta do
ele se debruçou, e sim o método que empregou aumento da renda dos países emergentes ou Centro Josué de Castro,
para estudá-lo (ao qual o próprio Josué chamou da opção norte-americana de dedicar parte de é professora aposentada
de método geográfico), sendo um verdadeiro sua produção de milho ao etanol. Essa elevação da Universidade
precursor da abordagem socioambiental dos dos preços dos alimentos deve ser também Estadual de Campinas

problemas de nosso tempo. interpretada pela ótica da oferta, tal como (Unicamp)

Também aqui, e não apenas no diálogo propôs Josué de Castro, a partir das condições
com autores atuais, Ricardo Abramovay convi- ecológicas em que essa oferta se realiza.
da Josué de Castro a tomar assento nos dias Josué de Castro morreu no exílio. No
de hoje, no caso, na sua atuação de homem exílio, sentiu agudamente a falta do Brasil, a
público que não apenas estudou, mas propôs ponto de declarar que “não se morre apenas
soluções. Pois é exatamente esse método que de enfarte ou de glomerulonefrite crônica, mas
permite não apenas compreender, mas, so- também de saudade”. Faleceu em Paris, em
bretudo, traçar as políticas necessárias para 24 de setembro de 1973, quando esperava o
enfrentar o desafio do aumento da população passaporte que o traria de volta ao Brasil.
mundial dos 6,5 bilhões de habitantes atuais
para um horizonte de estabilização de 9,2
bilhões em 2050.
E mais. Temas tão atuais e candentes,
que ocupam as páginas da imprensa quase

O centro
Em fins da década de 1970, alguns intelectuais
pernambucanos da área de Ciências Humanas,
que estavam igualmente exilados em Paris, faziam
planos para o seu retorno ao Recife. Nasceu desse
diálogo uma idéia que se concretizaria em 1979,
quando foi fundado, no Recife, o Centro de Es-
tudos e Pesquisas Josué de Castro. A escolha do
nome foi motivada pela identidade intelectual e
humana com esse pensador, especialmente a inde-
pendência, o espírito crítico e o compromisso com
o processo de conhecimento e a transformação da
realidade. Trata-se também de uma homenagem
ao grande humanista pernambucano que se dedi-
cou à luta contra as causas que originam a fome
e a pobreza no mundo.
As principais áreas de estudo e intervenção
social do Centro Josué de Castro têm sido a análise
da realidade brasileira, especialmente da região
Nordeste, por meio de pesquisas e intervenções
nos diversos ramos das ciências humanas; a
atuação em várias frentes voltadas para o co-
nhecimento e a superação das causas da fome e
da pobreza; a capacitação de cidadãos e cidadãs
para a participação na formulação de propostas,
controle e acompanhamento de políticas públicas;
o fortalecimento de redes e articulações voltadas
para essa finalidade; e a atuação em fóruns e deba-
tes sobre políticas econômicas, sociais e culturais.
Em 1987, o centro recebeu da família de Josué de
Castro todo o seu acervo documental, que hoje é
parte integrante da biblioteca do Centro Josué de
Castro. Conheça mais sobre o trabalho do centro
em <www.josuedecastro. com.br>.

SETEMBRO 2008 59
Ib a s e
opinião
Luciano Cerqueira*1

onde avançamos,
onde emperramos?
O fim dos regimes ditatoriais na América Latina foi acompanhado pelo surgimento de

novas formas de organização dos grupos sociais excluídos pelas elites hegemônicas, que

até então governavam. As novas organizações se destacavam não apenas por seu ativis-

mo político, mas também pelo intenso envolvimento dos(as) participantes no processo

decisório. Comunidades eclesiais de base, movimentos sociais urbanos e conselhos de

fábrica desempenharam papel importante na transição para a democracia, em função


1 Este artigo foi baseado
na dissertação de mestrado
que, sob a orientação do
professor Renato Boschi, foi
do atendimento de reivindicações populares e do fato de haverem se tornado autênticas
apresentada ao Programa de
Ciência Política do Instituto
Universitário de Pesquisas “escolas” de prática participativa para a sociedade civil.
do Rio de Janeiro (Iuperj),
no ano de 2004. A importância atribuída a esses experimentos colaborou para que fossem incluídas no

60 Democracia Viva Nº 40
texto constitucional garantias da participação de dois mecanismos de participação fornecidos
cidadã no controle das ações governamentais por duas formas de democracia distintas. Elas
e na tomada de decisões concernentes às não devem ser vistas como excludentes ou con-
políticas públicas. Descentralização, cidadania correntes, mas como complementares. São elas:
e participação cívica tornaram-se referências Democracia representativa – Cada uma
obrigatórias nos discursos dos mais variados das formas assumidas pela representação
atores políticos. política decorrentes do direito ao voto. Se
A Constituição Federal Brasileira de traduz na representação política delegada
1988 é considerada um marco da participação aos membros eleitos no legislativo e no
cidadã. Foi a partir dela que a discussão sobre executivo, em qualquer nível de governo
participação ganhou espaço na nossa realida- (federal, estadual e municipal).
de, passando a ser vista como imprescindível
Democracia direta – Conjunto de todas
para que o Estado pudesse garantir o mínimo
as formas de participação junto ao poder
de condições de sobrevivência a uma parcela
público, no qual a sociedade se apresen-
da população.
ta para fazer sua própria representação
A partir de então, privilegiam-se as rela-
política nos espaços dos conselhos, nas
ções sociedade-Estado, os mecanismos criados
audiências públicas, nos próprios fóruns
para ampliar a autonomia dos municípios e os
colegiados, onde os chamados grupos de
espaços de participação da sociedade. Adotou-
interesse elegem seus delegados e se uti-
-se um modelo descentralizado, pensado
lizam de instrumentos, como o plebiscito
inicialmente para permitir o desenvolvimento
e o referendo (ver Solidary Community
de novas formas de gestão, com a intenção
Council Brazil; Instituto Brasileiro de Ad-
de tornar mais eficazes o atendimento das
ministração Pública, 2002, p. 19).
necessidades dos diferentes grupos sociais,
especialmente daqueles tradicionalmente ex- No quadro da democracia representativa
cluídos dos processos decisórios. (a que vivemos), a direção do governo pode
Embora a participação nos processos ser partilhada com a sociedade, mas não inte-
de gestão municipal seja uma preocupação gralmente delegada. Até para as pessoas mais
anterior ao marco histórico da Constituição otimistas, é difícil imaginar que o governo, na
de 1988, é a partir daí que ela se institucio- prática, abra mão de todo seu poder de decisão.
naliza, ajudando a ampliar as discussões sobre Com a aprovação da Constituição de
poder local, cidadania e processos de gestão. 1988, a participação no Brasil adquiriu dimen-
A Constituição define, em seu artigo primeiro, são institucional, provocando a ruptura do
parágrafo único, a natureza e a finalidade do modelo clássico de democracia representativa
Estado que se está instituindo, bem como seus pura para introduzir, no ordenamento jurídico-
fundamentos: -constitucional do país, a concepção de demo-
Art. 1º A República Federativa do Brasil, cracia participativa.
formada pela união indissolúvel dos Es- Os(as) constituintes entenderam, por-
tados e Municípios e do Distrito Federal, tanto, que o regime político brasileiro deveria
constitui-se em Estado Democrático de ser uma democracia semidireta, combinando
Direito e tem como fundamentos: elementos de participação indireta (represen-
tação) e de participação direta. Segundo o
I – a soberania;
princípio participativo, foram acolhidos, na
II – a cidadania; Constituição, diversos institutos jurídicos nos
capítulos referentes ao planejamento e à gestão
III – a dignidade da pessoa humana;
de políticas públicas, fiscalização da adminis-
IV – os valores sociais do trabalho e da tração pública, defesa e garantia de direitos
livre iniciativa; coletivos (seguridade social; ensino; cultura
e atendimento aos direitos da criança e do
V – o pluralismo político.
adolescente), gestão de empresas privadas e
Parágrafo único. Todo o poder emana do da vida política em geral. Foram estabelecidos
povo, que o exerce por meio de represen- com a Constituição: referendo; iniciativa popu-
tantes eleitos ou diretamente, nos termos lar; plebiscito; colegiados de órgãos públicos;
desta Constituição (Brasil, 1994, p. 3). planejamento público.
O processo de ampliação da chamada As constituições estaduais e leis orgâ-
esfera pública se deu por meio da combinação nicas municipais, de acordo com as normas

SETEMBRO 2008 61
opinião

da federação brasileira, seguiram os princípios Como espaço institucional de represen-


fundamentais da Constituição Federal. A supre- tação de interesses, os conselhos atribuem o
macia da Constituição atua em dois sentidos status político aos grupos ali representados, e
– a conformidade do ordenamento jurídico de devem assegurar a participação principalmente
todos os entes da federação às normas consti- dos segmentos sociais que não têm espaço nos
tucionais e a obrigação de aplicar tais normas, canais tradicionais de influência na tomada de
sob pena de incorrer em inconstitucionalidade decisão (como a mídia comercial) e nos canais
por omissão. Foi a partir dela que o Estado próprios do exercício da democracia representa-
brasileiro passou a ser constituído de estados, tiva (como o Legislativo). Hoje, os conselhos já
municípios e do Distrito Federal.2 representam uma cultura institucional e política
Com o estabelecimento da proposta no processo cotidiano da tomada de decisão
(o debate com a sociedade civil e a realização na esfera pública.
efetiva dos sistemas de parceria), melhora-se Além dos conselhos, variadas formas
a estratégia para amenizar as desigualdades de relação estabelecidas entre a sociedade e o
existentes, além do déficit de cidadania de Estado, embora não signifiquem participação
milhões de pessoas que vivem em situação de direta nas decisões, correspondem a processos
risco social total ou parcial. que (por tornarem o Estado mais permeável à
conquista de direitos) podem ser entendidos,
O governo percebeu que o enfrentamento
em sentido amplo, como momentos de parti-
da pobreza deve ser entendido como uma
lha do poder. São os casos, por exemplo, de
questão de construção de cidadania, de
audiências públicas democráticas, processos de
democracia, de empoderamento, de dar
consulta, fiscalização sobre ações de governo
voz e vez às populações em situação de
em canais formais, em reuniões ou assembléias
pobreza. [...] e que é importante estimular
de bairros e entidades. Mas o objetivo de uma
e apoiar o surgimento de entidades comu-
gestão democrática envolve, necessariamente,
nitárias autônomas, redes e movimentos
conferir à população que participa o real direito
próprios da população em situação de
de decisão, e não apenas consulta. Há diferença
pobreza e evitar que os governos e as
qualitativa entre espaços de deliberação e con-
organizações não-governamentais as
sulta que não pode ser subestimada.
substituam. Neste sentido, é essencial
A formalização dos canais de partici-
que as organizações comunitárias sejam
pação cidadã, de acordo com Renata Villas-
reconhecidas enquanto tais, sem maior
-Bôas (1994), passa pela clara definição de
preocupação com a sua profissionalização.
atribuições, critérios de representação e regras
Deve-se evitar, portanto, a criação de novos
de funcionamento, e sua riqueza dependerá
mecanismos que possam vir a substituir
da dinâmica de funcionamento cotidiano
essas mesmas organizações a pretexto de
que vai transformando a própria experiência
maior eficiência (Camarotti; Spink, 1999
(Villas-Bôas, 1994, p. 60). Com relação a esse
(ou 2003), p. 192).
ponto, normalmente, enfrentamos os proble-
mas decorrentes do grau ainda incipiente de
Mecanismos de participação
organização da sociedade civil, que dificulta a
Um dos principais mecanismos de participação criação dos canais e prejudica a capacidade de
nas grandes cidades brasileiras é o conselho ressonância das representações.
municipal. Esse canal de comunicação direta Já para Bolívar Lamounier (1981), os
com a população surgiu e deu início a um pro- canais de representação devem se tornar mais
cesso de desmistificação existente em setores densos e encontrar novas fórmulas de participa-
da população brasileira, que acreditavam que a ção mais ágeis e diferenciadas, capazes de su-
sociedade não estava preparada para participar, plementar, mas não de substituir, a participação
que não se deveria compartilhar governabili- por meio de eleições clássicas. Por outro lado,
dade com a sociedade (pois esta já participa lembra que não pode haver democracia sem
votando) e que esses fatores atrapalhariam as processos formais de representação, embora
tomadas de decisão. esse discurso resulte, com certa freqüência, no
2 Os municípios, em que pese
sua esdrúxula colocação entre Hoje, os conselhos municipais são ins- estímulo a fórmulas corporativistas de consulta,
os entes federativos,
o que torna a Constituição tâncias públicas de formação de opinião, de úteis como veículo de informação antecipada
brasileira única no mundo, vocalização de demandas, de manifestação aos que formulam políticas públicas, mas
continuam a ser divisões
dos estados, estes sim, de vontade política, muito mais do que meros escassamente eficazes como mecanismos de
os verdadeiros núcleos do
pacto federativo. instrumentos do governo ou da sociedade. controle sobre elas (Lamounier, 1981, p. 255).

62 Democracia Viva Nº 40
Participação cidadã, onde avançamos, onde emperramos?

O objetivo principal da participação a pouca educação política; uma frouxa definição


deve ser o de possibilitar o contato mais direto das atribuições, dos critérios de representação
e cotidiano entre as pessoas e as instituições e das regras de funcionamento, pouco claros;
públicas, de forma a possibilitar que estas um grau incipiente de organização; número
considerem os interesses e as concepções polí- insuficiente de pessoas dispostas a participar;
tico-sociais daquelas no processo decisório. A o funcionamento precário dos canais de parti-
participação envolve conduta ativa de cidadãos cipação criados pelo Estado, entre outros.
e cidadãs nas decisões e ações públicas, na vida Em um país como o Brasil, com altís-
da comunidade e nos assuntos de interesse simos patamares de desigualdade social, a
das coletividades de que sejam integrantes. democracia tem de ser vista como um processo
Além disso, a participação na gestão pública, contínuo de lutas por novas conquistas sociais,
pretendendo-se democrática, não pode se por novos direitos de cidadania. Assim, só será
limitar a este ou aquele segmento ou classe possível enfrentar e diminuir os
social. Ela deve garantir direitos iguais a todas problemas de distribuição de
as pessoas, pois não existe critério possível para
a exclusão a priori.
renda, além de implementar
políticas sociais que visem à
A participação
melhoria da qualidade de vida
por meio de formas criativas e
envolve
Questão de atitude
inovadoras, com a participação,
Com a criação de vários canais de participação, a intervenção periódica, refletida conduta ativa
não se pretende que a sociedade assuma as e constante nas definições das
responsabilidades do poder público. Pretende- políticas públicas. de cidadãos
-se formar uma parceria na qual o Estado, Embora nossa “Cons-
entretanto, continue a exercer papel central
de regulação social e redistribuição da riqueza
tituição Cidadã” traga muita
esperança para quem acredita
e cidadãs nas
e da renda. Uma vez que a pobreza e a exclu-
são social são conseqüências dos impactos de
na radicalização da democracia,
ainda temos muitos problemas
decisões e
políticas públicas, de prioridades e de escolhas, para resolver. O texto constitu-
a superação delas também depende de ação cional não estabelece distinção ações públicas,
incisiva no campo das políticas públicas (ver entre referendo e plebiscito,
Lamounier; Weffort; Benevides, 1981, p. 10). não especifica, também, se as na vida da
Mas ainda falta atitude mais propositiva de cima consultas são obrigatórias ou
para baixo, desbloqueando os impasses que,
ao não distribuir adequadamente as oportuni-
facultativas, assim como não
estabelece se o resultado das
comunidade
dades, acabam por reproduzir – quando não
produzem – a desigualdade e a exclusão social.
consultas traduz compromisso
vinculante ou é meramente in-
e nos
Hoje, a busca de novas estratégias para dicativo. Da mesma forma, não
a superação da pobreza requer novas relações esclarece quais matérias podem assuntos de
com o Estado, com as diferentes organizações (ou devem) ser objeto de consul-
da sociedade civil e o setor privado. Com o ta e, conseqüentemente, o que interesse das
surgimento de novos atores orientados para a deve ser excluído.
promoção de iniciativas conjuntas, são estabe-
lecidas novas formas de diálogo, favorecendo
Esses argumentos são
irrefutáveis. Mas é preciso ver,
coletividades
a construção de um espaço que é, claramente,
de interesse público.
também, o lado positivo dessa
nova fase, pois com a redemo-
de que sejam
Entretanto, há um longo e difícil cami- cratização do país surgiram no-
nho a ser percorrido. Com base em experiências vos movimentos sociais a partir
passadas, pode-se afirmar que os elementos de da organização da sociedade e
tensão presentes são constitutivos do próprio da eclosão das pressões e das demandas popu-
processo de busca de radicalização da demo- lares, que já produzem avanços na construção
cracia. de formas democráticas de gestão pública.
E apesar da idéia de democracia direta Só conseguiremos transformar a socie-
já ser discutida há muito tempo no Brasil, sua dade juntos e por meio da participação cidadã.
prática ainda é algo inusitado. Para se alcançar E a participação democrática real só pode
a cidadania ativa, teremos que vencer vários existir com a presença de duas condições: um
obstáculos. Por exemplo: a apatia do eleitorado; conjunto de cidadãos(ãs), entidades e movi-

SETEMBRO 2008 63
opinião

*Luciano mentos sociais dispostos a participar e canais e desenvolvimento local. Rio de Janeiro:
Ibam/DES/NEL, 2002.
Cerqueira de participação criados pelo Estado. PRÁTICAS PÚBLICAS E POBREZA – Projeto especial do programa
Cientista político, Gestão Pública e Cidadania, volume 1, Fundação Getúlio
Vargas, São Paulo, 1999.
CAMAROTTI, I.; SPINK, P. (orgs.). Estratégias locais para redução da
pobreza: construindo a cidadania. São Paulo: FGV, 1999.
Referências
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: – Práticas Públicas e Pobreza).
Senado federal, Centro Gráfico, 1994. VILLAS-BÔAS, R. Os canais institucionais de participação popular.
DANIEL, C. Gestão local e participação da sociedade. Revista Polis Revista Pólis – VILLAS-BÔAS, R. J. (org.). Participação
– VILLAS-BÔAS, R. J. (org.). Participação popular nos popular nos governos locais, São Paulo,
governos locais, São Paulo, n. 14, p. 21-41, 1994. n. 14, p. 55-64, 1994.
JACOBI, P. Descentralização municipal e participação dos cidadãos:
apontamentos para o debate. Revista Lua Nova, São
Paulo, n. 20, p. 121-143, 1990.
LAMOUNIER, B. “Representação política: a importância de certos
formalismos”. In: LAMOUNIER, B.; WEFFORT, F.;
BENEVIDES, M. V. (orgs.). Direito, cidadania e participação.
São Paulo: Queiroz, 1981. p. 230-257.
LAMOUNIER, B.; WEFFORT, F. C.; BENEVIDES, M. V. (orgs).
Direito, cidadania e participação. São Paulo:
Queirós, 1981.
Fontes, A. M. M.; Reis, H. C. (coords.). Orçamento público

Reformas constitucionais na América do Sul3


Maurício Santoro
Jornalista, pesquisador do Ibase

No século 19, a América do Sul viveu guerras dos hidrocarbonetos, até mesmo no que toca
civis que opuseram liberais e conservadores as relações entre as regiões. Que parcela da
em temas como relações de poder central/ riqueza deve se concentrar nas regiões em que
províncias e Estado/Igreja. Ao fim de cada são produzidas, como o oriente boliviano, a
conflito, os vencedores promulgavam nova Amazônia equatoriana ou o litoral venezue-
Constituição. No século 20, direita e esquerda lano? Quanto deve ser distribuído para áreas
se enfrentaram nas urnas e, com freqüência, mais pobres ou usado para financiar políticas
as forças de mudança social foram solapadas sociais para toda a população?
por golpes militares. Neste início de século O aspecto mais polêmico das três reformas
21, os confrontos políticos se dão na Bolívia, diz respeito à ampliação dos poderes que serão
no Equador e na Venezuela, em batalhas por concedidos ao presidente e ao número de vezes
novas Constituições que procuram consolidar que será permitida sua reeleição. Muitos temem
as mudanças sociais que estão em curso nesses o enfraquecimento dos papéis que o Legislativo
países. Embora tais processos ainda estejam e o Judiciário devem desempenhar como fiscais
em andamento, já é possível identificar pontos dos direitos e das instituições democráticas.
comuns entre eles. Tais controvérsias são particularmente fortes na
O primeiro é a insatisfação dos movi- Venezuela, em função da centralização política
mentos sociais locais com os mecanismos que aconteceu no país desde que Hugo Chávez
tradicionais da democracia representativa, e se tornou presidente, em 1999.
seu desejo de complementá-los e fortalecê-los Conflitos políticos são parte da democracia,
com instrumentos de participação popular. O e a capacidade de resolvê-los pacificamente
caso boliviano é exemplar e remonta às mobi- é uma das medidas da saúde desse sistema.
3 Até o fechamento desta
edição, os processos lizações da década de 1990 pela valorização Nesse sentido, cumpre observar que pesquisa
constituintes no Equador da comunidade rural indígena, o ayllu, e dos do Latinobarômetro,4 realizada em novembro
e na Bolívia ainda não haviam
sistemas de governo e de justiça dos povos de 2007, mostrou alto grau de satisfação com
sido concluídos.
Na próxima edição, em aymara e quéchua. o regime democrático na Bolívia, no Equador e
dezembro, publicaremos um Outro ponto crucial é a distribuição dos na Venezuela – entre 65% e 67% da população.
artigo internacional mais
aprofundado sobre o tema. lucros oriundos da exploração dos recursos Como comparação, a Argentina está com 63%,
naturais: Equador e Venezuela são grandes pro- taxa baixa para seus padrões históricos que,
4 Pesquisa realizada há
12 anos pela Corporación dutores de petróleo, a Bolívia, de gás natural. em geral, estiveram acima de 70%. No Brasil,
Latinobarómetro, ONG No passado, tais riquezas foram apropriadas no México, no Chile, na Colômbia e no Peru,
chilena, com sede em por pequenas elites. Nas reformas atuais, o índice registrado foi entre 43% e 48%.
Santiago, que pretende medir
as percepções das populações ganha destaque a luta para o controle social
latino-americanas a partir
de sua realidade econômica
e social.

64 Democracia Viva Nº 40
SETEMBRO 2008 65
cul c u lt u r a
Maria Helena Versiani*1

Constituição
de

a voz e a
letra do A instalação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988 no

Brasil não foi uma medida política “ofertada” à sociedade brasileira

por alguns parlamentares comprometidos com a redemocratização

do país. A decisão de convocação da Assembléia respondeu a um

amplo movimento social, que recolheu experiências e iniciativas por

todo o Brasil, mobilizando entidades e pessoas as mais diversas.

A proposta de uma nova Constituição veio atrelada ao


André Dusek / Agil / Acervo Museu da República

reconhecimento da necessidade de construção de uma nova ci-


1 As fotos e os cartazes
que acompanham este texto dadania no país, inclusiva e de completa ruptura com a ditadura
são parte do Acervo Museu
da República. Os desenhos militar que assumira o governo com o golpe de 1964. Por 21 anos, o
integram o acervo particular
do Henfil /Ivan Cozenza
governo militar impôs crescente centralização, incutindo a necessidade
de Souza. de intervenção do Estado na vida social e econômica do país, com ações

66 Democracia Viva Nº 40
ura
Encontro conflituoso
entre trabalhadores do
MST e representantes
da União Democrática
Ruralista, no Salão
Verde do Congresso, em
12/6/1987

SETEMBRO 2008 67
André Dusek / Agil / Acervo Museu da República

O presidente da Subcomissão de Educação, Cultura


e Esportes discursa, sob o olhar vigilante de
representantes de escolas particulares, em 7/4/1987
como a criminalização dos movimentos sociais,
Zuleika de Souza / Agil / Acervo Museu da República

a suspensão dos direitos políticos e as restrições


ao exercício da cidadania.
A resposta a quem se opunha ao regime
era a repressão, a censura e, em muitos casos,
a tortura e o assassinato. Com a nova Carta,
pretendia-se a superação da Constituição re-
presentativa dos ideais e valores da ditadura
instituída.
De fato, a Constituição de 1967 serviu
ao propósito de remodelar o sistema consti-
tucional, incorporando os atos institucionais
decretados pelo governo golpista pós–64. Em
outras palavras, conferiu caráter constitucional
a uma legislação especial ou, ainda, ‘constitu-
cionalizou’ o arbítrio.

Emenda nº 1
À Constituição de 1967, seguiu-se o Ato Ins-
titucional nº 5 (AI-5), decretado em 1968, o
mais perverso instrumento de “endurecimen-
to” do regime militar brasileiro, que concedeu
poderes ilimitados ao presidente da República,
independente dos demais poderes do Estado e
da própria Constituição. Já em 1969, os termos
do AI-5 seriam incorporados ao texto constitu-
cional por meio da Emenda nº 1.
Predomina, entre analistas, a opinião de
que a incorporação da Emenda nº 1 à Constitui-
ção de 1967 serviu, na verdade, como meio de
outorga de uma nova Carta, pois reformulou o
texto essencialmente, até mesmo lhe conferindo
novo título: Constituição da República Federati-
va do Brasil, antes denominada Constituição do
Brasil. Afirma-se que a Emenda nº 1, embora
tenha sido reputada pelo governo militar como
emenda constitucional, foi antes um ato político
que, em lugar de emendar a Constituição em
vigor, a substituiu.
Ailton Krenak defende
emenda popular sobre os Era, então, contra a ilegitimidade da
direitos dos índios, pintado Constituição de 1967 que se apresentava a
de guerra, perante a
defesa de uma nova Carta. O apelo pró-Consti-
Comissão de Sistematização,
na tribuna do Congresso tuinte foi lançado em documento, pela primeira
em 4/9/1987 vez, no ano de 1971, constando da Carta de
Recife, elaborada em reunião do Movimento

68 Democracia Viva Nº 40
Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão
Duda Bentes / Agil / Acervo Museu da República

Manifestação do MST em frente


ao Congresso, em 6/10/1987

SETEMBRO 2008 69
c u lt u r a

Democrático Brasileiro (MDB), o partido de


Acervo Museu da República

oposição que discutia sua autodissolução como


forma de protesto contra o regime militar.
A partir daí, a idéia de uma campanha
nacional pela convocação da Constituinte
desenvolveu-se num crescente, extrapolando
a agenda dos novos partidos criados a partir
do fim do bipartidarismo no Brasil, em 1979,
e insuflando o entusiasmo de vários outros
grupos da sociedade civil.

Diretas Já
Dentro da mesma linha de denúncia da ilegi-
timidade de um governo imposto pela força,
em 1984, explodiu a campanha “Diretas Já”.
A população saiu às ruas, em multidões, para
reivindicar eleições diretas para presidente,
ocupando, principalmente, as grandes cidades
do país. Votada no Congresso em 25 de abril
de 1984, a Emenda das Diretas Já foi derrotada.
A partir de então, cresceria substancialmente o
movimento pela Constituinte Já.
Na disputa presidencial indireta, em
novembro daquele ano, venceram Tancredo
Neves, do Partido do Movimento Democrático
Acervo Museu da República

Acervo Museu da República

2 Presidentes do Brasil /
Departamento de Pesquisa da
Universidade Estácio de Sá;
organizador Fábio Koifman,
São Paulo: Cultura, 2002.

70 Democracia Viva Nº 40
André Dusek / Agil / Acervo Museu da República
O presidente da Assembléia Nacional Constituinte Ulysses
Guimarães recebe as emendas populares que reclamam
eleições presidenciais diretas em 1988 em 13/8/1987

Brasileiro (PMDB), e o vice, José Sarney, dis-

Zuleika de Souza / Agil / Acervo Museu da República


sidente do Partido Democrático Social (PDS).
Em seu primeiro discurso, o presidente eleito
reafirmaria a necessidade de convocação de
uma Assembléia Nacional Constituinte livre e
soberana:

Convoco-vos ao grande debate constitu-


cional. Deveis, nos próximos meses, discu-
tir, em todos os auditórios, na imprensa e
nas ruas, nos partidos e nos parlamentos,
nas universidades e nos sindicatos, os
grandes problemas nacionais e os legí-
timos interesses de cada grupo social. É
nessa discussão ampla que ireis identificar
os vossos delegados ao poder constituinte
e lhes atribuir o mandato de redigir a lei
fundamental do País. A Constituição não é
assunto restrito aos juristas, aos sábios ou
aos políticos. Não pode ser ato de algumas
elites. É responsabilidade de todo o povo.2

Em 15 de março de 1985, José Sarney


tomou posse na Presidência, após adoecimento
e posterior morte de Tancredo Neves, e, em
28 de junho, enviou proposta ao Congresso
de convocação de uma Assembléia Nacional
Constituinte. A proposta, vitoriosa, previa a
formação de uma Constituinte congressual,
composta pelos deputados federais e senadores
a serem eleitos no pleito previsto para 1986.
Esses parlamentares deveriam, assim, acumular
as funções legislativa e constituinte, o que con-
trariava a idéia de uma Constituinte exclusiva,
defendida pelos movimentos sociais.
Não obstante, a partir do compromisso
do novo governo com a convocação de uma
Constituinte, irromperam iniciativas para a
criação de entidades com a função específica
de incentivar a participação da sociedade no
processo. No Rio de Janeiro, ponto alto dessa
mobilização foi o lançamento do Movimento
Nacional pela Participação Popular na Consti-
O presidente da CNBB entrega as emendas
tuinte, que reuniu cerca de 7 mil pessoas em populares da Igreja ao presidente da ANC
Duque de Caxias, com a presença do bispo Ulysses Guimarães em 29/6/1987

SETEMBRO 2008 71
c u lt u r a

Acervo particular do Henfil / Ivan Cozenza de Souza


Dom Mauro Morelli e de diversas organizações
sociais, como a Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), o Ibase e o Instituto de Estudos
de Religião (Iser), entre outras. O objetivo era
fomentar a criação de núcleos pró-participação
na Constituinte em vários municípios do país.
Em São Paulo, foi criada, também, im-
portante matriz da participação da sociedade
na Constituinte, o Plenário Pró-Participação
Popular. Seu propósito maior era consolidar a
criação de instrumentos de participação popular
no processo de elaboração da nova Carta que
fossem, depois, incluídos como regra política
no texto constitucional.

Emendas populares
A partir dessas iniciativas, multiplicaram-se
comitês e plenários por todo o país. O en-
tendimento era de que só com a sociedade
mobilizada a democracia participativa poderia
avançar. Caberia à população tomar parte,
exigir, auxiliar e controlar o poder público. A
Assembléia Nacional Constituinte foi instalada
em 1º de fevereiro de 1987, sendo eleito seu
presidente Ulysses Guimarães, do PMDB.
A instituição de formas participativas
Acervo Museu da República

diretas na elaboração da Constituição foi


discutida regimentalmente e, a partir de forte
pressão dos movimentos sociais, foi aprovada
por meio das emendas populares. Garantia-se a
possibilidade de qualquer indivíduo apresentar
emendas ao projeto de Constituição, contanto
que subscritas por 30 mil brasi-leiros(as) e
referendadas por três entidades da sociedade
civil. Durante o processo constituinte, foram
contabilizadas em torno de 12 milhões de assi-
naturas, subscrevendo 122 emendas populares.
A institucionalização da forma participa-
tiva direta teve grande impacto no crescimento
da participação popular na Constituinte. Um
elevado grau de mobilização para recolhimento
de assinaturas envolveu universidades, sindica-
tos, órgãos do poder público, associações de
mães, aldeias indígenas, religiosos e religiosas,

72 Democracia Viva Nº 40
Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão

organizações de vítimas, estudantes, idosos e

Acervo particular do Henfil / Ivan Cozenza de Souza


idosas, pessoas com deficiência e muitos outros.
As diversas entidades envolvidas produziam
grande volume de materiais didático, textual e
audiovisual, em torno dos temas “Constituição”
e “Participação cidadã”.
Esses trabalhos foram distribuídos por
todo o Brasil, em localidades urbanas e rurais.
Basicamente, buscavam esclarecer sobre a
importância do cidadão e da cidadã participa-
rem na elaboração da nova Constituição e na
definição dos rumos que o país tomaria a partir
de sua promulgação.
No Congresso, compunham o corpo
de constituintes 487 deputados federais e 72
senadores, parte deles eleitos indiretamente
em 1982, os chamados “senadores biônicos”.
Identidades partidárias e matrizes ideológicas
diversas deram o tom dos debates. No jogo de
forças, os grupos nem sempre apresentavam
unidade de comportamento, movendo-se de
acordo com os temas em discussão e os inte-
resses do momento, e formando grupos su-
prapartidários, como o conservador “Centrão”.
O texto constitucional refletiu, em
conteúdo, os confrontos e as contradições da
bancada constituinte, também presentes, aliás,
na sociedade. Apresentou importantes avanços
na área dos direitos humanos.
Entre outros pontos, foram criados ins-
trumentos para a defesa dos direitos, como o
habeas data; o racismo foi consagrado crime
imprescritível; foram estabelecidas orientações
expressas de proteção à pessoa idosa, à porta-
dora de deficiência e à criança; foi reconhecida
a igualdade de direitos entre os gêneros e o efetividade, hoje, com relação aos direitos
respeito preservacionista à cultura indígena. consagrados na Constituição de 1988, muitos
Como objetivos da República, foram deles ainda aguardando dispositivos para sua
identificadas a erradicação da pobreza e das aplicação. Os direitos humanos referendados na
desigualdades sociais e a promoção do bem de Constituição encontram-se, em larga medida,
todas as pessoas, sem preconceitos de origem, limitados ao papel, faltando ainda internalizá-
raça, sexo, idade e cor. Valores éticos foram -los nas práticas políticas e sociais brasileiras.
resguardados em políticas relativas aos direitos Quanto à dinâmica da elaboração de
à saúde, assistência social, educação e cultura. seu texto, a Constituição de 1988 tem o valor
Entretanto, é incerta a perspectiva de simbólico de reintroduzir a possibilidade de

SETEMBRO 2008 73
c u lt u r a

negociação política na vida social. Representou MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro:
Zahar, 1967.
rica experiência de alargamento da cidadania. MICHELLES, C.; WHITAKER, F.; COELHO, J. G. L.; VIEIRA FILHO, E. G.;
A lição foi clara: elaborar um texto consti- VEIGA, M. G. M. da; PRADO, R. P. S. (Coords.). Cidadão
constituinte: a saga das emendas populares. Rio de
tucional é tarefa de todas as pessoas, a ser Janeiro: Paz e Terra, 1989.
permanentemente reavaliada e confrontada SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 26. ed., São
Paulo: Malheiros Editores, 2006.
com a realidade.

REFERÊNCIAS
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São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
ABREU, A. A. de; BELOCH, I. (Coords.). Dicionário histórico-biográfico
brasileiro pós-30. Rio de Janeiro:
Editora FGV/CPDOC, 2001. 5v.
CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo caminho.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
COLEÇÃO Memória da Constituinte. Acervo Museu da República. Rio
de Janeiro.
GURAN, M. (Coord.). O processo constituinte 1987-1988. Brasília:
Ágil; Ceac/UNB, 1988.

Exposição histórica
Hoje, às vésperas de se completarem 20 anos
de vigência da Constituição Federal de 1988, ‘promulgadas’, quem ficou à margem e qual é,
tendo sido a ela incorporadas 56 emendas hoje, o nosso desafio.
constitucionais, é expressiva na sociedade bra- Ao lado das exposições, será realizada, com-
sileira a desconfiança com relação ao Estado plementarmente, uma programação múltipla,
e às instituições políticas, e surgem balanços, envolvendo a organização de seminários e ciclos
análises e propostas. de debates, projeções de filmes e atrações cul-
O debate sobre o presente e o futuro do turais, publicações e a implantação de um ser-
ordenamento jurídico do país não foi encerrado viço de esclarecimento ao público sobre temas
com a promulgação da Constituição, no dia 5 relativos ao ordenamento jurídico brasileiro.
de outubro de 1988. Novas análises e proposi- O conceito prioritário que embasa todo
ções de alternativas são necessárias e salutares o trabalho é o da inclusão social e igualdade
à democracia. de direitos entre as pessoas. Nesse sentido, as
Nesse sentido, o Museu da República inau- ações desenvolvidas foram pensadas visando à
gura, com apoio da Fundação Ford, no mês de participação de todos e todas, incluindo pessoas
setembro deste ano, uma grande exposição no com deficiências.
Palácio do Catete, denominada “Constituição de Com essa programação, o Museu da Repú-
1988: a voz e a letra do cidadão”, e outras cinco blica procura não só reafirmar-se como espaço
‘exposições-irmãs’, dentro do mesmo conceito, de fomento ao pensamento crítico, mas tam-
em diferentes estados brasileiros. bém partilhar a compreensão de que a história
A idéia é transbordar a memória histórica está em permanente movimento, recriando-se a
desse processo e fazer um balanço da luta partir das ações humanas, sendo de todos(as)
popular na Constituinte. Trazer a experiência nós a responsabilidade de tornar o mundo mais
vivenciada, o envolvimento de ativistas, a com- justo, humano e habitável.
plexidade, o idealismo, as conquistas. Observar o
que ficou por fazer, quais aspirações não foram

74 Democracia Viva Nº 40
Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão

*Maria Helena
Versiani
Assessora em Pesquisa
Histórica do Museu
da República

Duda Bentes / Agil / Acervo Museu da República

Também crianças vão ao Congresso pressionar por seus direitos. Na foto, crianças gaúchas recebidas por Ulysses Guimarães em 12/11/1987

SETEMBRO 2008 75
e s pa ç o a b e rt o
André Sant’Anna de Oliveira*1

Um novo
olhar sobre
as

cotas
As discussões relacionadas à questão et- com intuito de reservar nas universidades
norracial tiveram grande destaque a partir públicas estaduais 45% das vagas a pessoas
do nazi-facismo, criado na Europa entre as oriundas de escolas públicas e pertencentes
décadas de 1930 e 1940. Desde então, em- às minorias étnicas, sendo 20% dessas vagas
bates ferrenhos foram realizados acerca das destinadas a estudantes negros(as).
diferenças existentes entre as diversas etnias, A partir de sua sanção, a lei tornou-
1 Este texto foi produzido
nos campos científico; social; educacional; -se objeto de estudo da sociedade carioca,
com base no trabalho psicológico etc. polarizando a população em dois grupos
monográfico “Cotas para
negro na Universidade No Brasil contemporâneo, os debates distintos: os pró-cotas e os anticotas. De um
Estadual do Rio de Janeiro”,
apresentado, em dezembro de sobre as diferenças raciais tomaram novo lado, pessoas defensoras dos ideais cotistas
2007, ao curso de graduação
em pedagogia
fôlego com o advento das cotas sociais/ vêem as cotas como um direito historica-
do Centro Universitário Celso educacionais destinadas a minorias desfa- mente construído e forjado na desigualdade
Lisboa, no Rio de Janeiro,
e orientado pela professora vorecidas. Nesse contexto, a Lei 4.151/03 social e no racismo latente. De outro, pessoas
Zilda Guapyassú, leitora da
revista Democracia Viva. foi sancionada, no estado do Rio de Janeiro, opositoras que acreditam na inviabilidade de

76 Democracia Viva Nº 40
aberto
tal sistema por considerar o Brasil um país
de mestiços. No que se refere à lei, salientam
que o único objetivo é atestar inferioridade
que o ensino público, com suas limitações,
mutilado, sucateado e destruído pelo Estado
capitalista, configura-se como barreira qua-
inexistente. se intransponível para estudantes da rede
pública – haja vista os diversos entraves
que dificultam a evolução da aprendizagem
Negritude e educação
plena (escolas abandonadas; professorado
O Brasil – Colônia, Império, República mal-remunerado; greves), impedindo, assim,
– teve, historicamente, postura permissi- o acesso desses(as) estudantes a cadeiras
va diante da discriminação e do racismo universitárias.
para com os(as) africanos(as), estendida a Em contrapartida, nas escolas parti-
seus(suas) descendentes até os dias de hoje. culares, o ensino de qualidade – livre das
O Decreto 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, obstruções dos mecanismos capitalistas
estabelecia que nas escolas públicas do país perversos – visa à aprovação nas grandes
não poderiam estudar pessoas negras, sendo instituições de ensino superior, favorecendo
a instrução da pessoa adulta negra depen- o acesso de grande parte da prole burguesa
dente da disponibilidade de professores. a cursos extremamente valorizados no âm-
Em 1878, o Decreto 7.031-A dava aos(às) bito social. Parafraseando algumas idéias
negros(as) o direito de estudar no período explicitadas na teoria de Christian Baudelot
noturno. No entanto, diversas estratégias e Roger Establet (1971), torna-se evidente
foram montadas para impedir o acesso pleno a função da escola (pública ou particular)
da população negra aos bancos escolares. como instrumento ideológico do Estado bur-
Durante a evolução histórico-social guês a serviço de seus interesses capitalistas.
do Brasil, foi possível constatar a existên- Com efeito, a rede pública escolar, longe
cia de diversos mecanismos dissimulados de ser instrumento de equalização/eqüidade
– criados pela elite brasileira – cujo escopo social, é, na verdade, fator de marginalização
principal era o de impedir o acesso ou a cujo único objetivo é deixar à margem da
permanência do “cidadão de cor” (termo sociedade todas as pessoas que ingressam
depreciativo utilizado para denominar a no ensino público, em especial as pessoas
pessoa negra) na escola. negras, que, segundo Ricardo Henriques
Christian Baudelot e Roger Establet, (2001), compõem a maioria da população
no livro L´École capitaliste en France pobre e miserável do país e têm a escola
(1971), elaboram um viés ideológico – de- pública como via única de acesso aos bens
nominado posteriormente por Demerval Sa- culturais. Baseado nesses aspectos, Kaben-
viani, no livro Escola e democracia (2006), gele Munanga (2003) inferiu que:
como Teoria da escola dualista. Segundo os
autores da epistemologia, a escola que, a Se, por um milagre, os ensinos básico
priori, se caracteriza por sua aparência uni- e fundamental melhorassem seus níveis
tária e unificadora é, na verdade, dividida em para que os alunos pudessem competir
duas redes, as quais estão em conformidade igualmente no vestibular com os alunos
oriundos dos colégios particulares bem
com a divisão da sociedade capitalista: a
abastecidos, os alunos negros levariam
burguesia e o proletariado.
cerca de 32 anos para atingir o atual nível
O pensamento desenvolvido na teoria
dos alunos brancos. Isso supondo que os
da Escola Dualista salta aos olhos da socie-
brancos ficassem parados em suas posições
dade no desenrolar do processo histórico bra-
atuais, esperando a chegada dos negros,
sileiro, em especial na contemporaneidade, para juntos caminharem no mesmo pé de
com o aparecimento de dois tipos de escola igualdade (Munanga, 2003, p. 119).
para a educação básica: pública e particular.
Por causa dos padrões adotados no Uma hipótese improvável, ou melhor,
processo seletivo das universidades do Bra- inimaginável. O que se pode vislumbrar, na
sil, a educação básica figura como o mais prática, é a supremacia cada vez maior de
poderoso meio de aquisição de competências pessoas brancas nos cursos universitários do
e habilidades necessárias para a aprovação no Brasil. Ricardo Henriques (2001) evidencia
vestibular. Nesse contexto, fica evidenciado claramente essa disparidade ao afirmar que

SETEMBRO 2008 77
e s pa ç o a b e rt o

97% dos universitários brasileiros são pes- abastadas da sociedade brasileira. A esse res-
soas brancas, 2% negras e 1% descendentes peito, Ricardo Henriques (2001) afirma que
de orientais. dos 22 milhões de brasileiros e brasileiras
que vivem abaixo da linha da pobreza, 70%
são negros(as), e dos 53 milhões de brasilei-
Discriminação positiva
ros e brasileiras que vivem na pobreza, 63%
As políticas afirmativas têm um histórico são negros(as).
recente no cenário mundial. Seu caráter A aprovação da lei da “discriminação
ideológico-racial despertou sentimentos so- positiva” pelo poder Legislativo do estado do
ciais antagônicos em países que adotaram o Rio de Janeiro suscitou na elite carioca – em
sistema de cotas (Estados Unidos, Inglaterra, especial, na classe média – um sentimento
Canadá, Índia, Alemanha, Austrália, Nova de indignação e descontentamento, haja
Zelândia, Malásia e, mais recentemente, o vista que 45% das vagas nas universidades
Brasil) como um viés compensatório para a estaduais deixaram de ser disputadas “demo-
população etnicamente discriminada. craticamente” e em condições “iguais” por
No Brasil, o tema veio à tona com estudantes egressos(as) do ensino médio. A
o advento de leis distrital e estadual, por postura das classes média e alta com relação
exemplo, a Lei 4.151/03, do estado do Rio de às cotas pode ser historicamente elucidada,
Janeiro, que reserva percentual de vagas para uma vez que as cadeiras universitárias são
afrodescendentes nas universidades públicas consideradas, desde o Estado burguês até
cariocas. O objetivo dessas medidas seria o os dias de hoje, um patrimônio sociocultu-
de compensar 119 anos de discriminação e ral indissociável da sua condição de classe
preconceitos sociais baseados na etnia que hegemônica. Jean-Jacques Rosseau (1991),
impediram a pessoa negra e seus(suas) des- no Discurso sobre a origem e os funda-
cendentes de ascenderem para classes mais mentos da desigualdade entre os homens,
escrito originalmente em 1750, advertia que
as desigualdades não refletiriam atributos
Por dentro da lei congênitos de tais ou quais grupos, mas
Para análise mais aprofundada, segue a
sim construções socialmente produzidas,
transcrição de dois artigos da Lei 4.151/03, racionalmente explicáveis e, em alguma
do estado do Rio de Janeiro, de reserva de medida, controláveis pela ação do Estado
vagas nas universidades públicas para afro- (Rousseau, 1991).
descendentes:
Art. 1º – Com vistas à redução de desigual-
No momento em que informações
dades étnicas, sociais e econômicas, deverão relativas às cotas foram massificadas pela
as universidades públicas estaduais estabelecer mídia de forma alienante e fragmentada,
cotas para ingresso nos seus cursos de gradua- a sociedade carioca polarizou-se em duas
ção aos seguintes estudantes carentes:
I – oriundos da rede pública de ensino;
vertentes distintas: a dos defensores e a
II – negros; dos opositores das cotas. Os opositores
III – pessoas com deficiência, nos termos vêm sendo beneficiados por meio de apelos
da legislação em vigor, e integrantes de mi- tendenciosos da imprensa elitizada e dissi-
norias étnicas.
Art. 5º – Atendidos os princípios e as regras
mulada que, utilizando o poder de persuasão
instituídos nos incisos I a IV do artigo 2º e seu característico dos meios de comunicação de
parágrafo único, nos primeiros 5 (cinco) anos massa, molda e manipula a opinião pública.
de vigência desta Lei, deverão as universidades Dessa forma, cumpre um perverso papel
públicas estaduais estabelecer vagas reservadas
aos estudantes carentes no percentual mínimo
social como aparelho ideológico a serviço
total de 45% (quarenta e cinco por cento), das oligarquias dominantes. Em entrevista
distribuído da seguinte forma: ao jornal Folha de S. Paulo, o professor de
I – 20% (vinte por cento) para estudantes Antropologia da Universidade de Brasília
oriundos da rede pública de ensino;
II – 20% (vinte por cento) para negros; e
(UnB), José Jorge de Carvalho, afirmou
III – 5% (cinco por cento) para pessoas com que “a elite não quer perder o poder. Vagas
deficiência, nos termos da legislação em vigor, nas universidades públicas boas são cotas

ESpaço
e integrantes de minorias étnicas. de poder. E a elite não quer concorrentes
negros” (Collucci, 2006).
A consolidação das leis de reparação

78 Democracia Viva Nº 40
Um novo olhar sobre as cotas raciais

discriminatória à população afrodescendente aos interesses das classes mais abastadas.


e os fecundos debates realizados em âmbito Significa que as instituições de ensino su-
estadual contribuíram para o florescimento perior, ao reconhecerem a hierarquia social
de novos e abrangentes pensamentos na e econômica da sociedade brasileira como
Câmara e no Senado Federal. Segundo o forma de dominação étnico-racial, ainda
que vem sendo divulgado amplamente pela que latente, e avaliarem essa denominação
mídia, tramitam, somente no Congresso Na- como injusta, tendem a ampliar seu campo
cional, 130 projetos de lei sobre a questão de visão e de construção do conhecimento.
racial. Transcendem, assim, o reacionário conceito
unidirecional de mundo, legado do eurocen-
Reconstruindo a história trismo, em busca de um novo paradigma:
aquele das multifacetas e da diversidade, que
Com o objetivo de corrigir os erros come- tem como cunho principal a criação de um
tidos durante 500 anos de colonialismo, saber científico ominicultural e democrático.
escravidão, extermínio físico, psicológico A presença cada vez maior de jovens
e simbólico de negros(as) africanos(as) e negros(as) nas universidades públicas pode
seus(suas) descendentes, os movimentos propiciar novo posicionamento deles(as) na
sociais envidaram esforços no intuito de sociedade, possibilitando o surgimento de ci-
mobilizar setores da sociedade carioca a par- dadãs e cidadãos realmente livres, sujeitos da
ticiparem da luta em prol da democratização história e arquitetos(as) da própria história,
do ensino superior e de uma universidade e, assim, críticos(as) e desarticu-ladores(as)
multicultural. de todos os mecanismos excludentes exis-
Coube às universidades estaduais do tentes, contribuindo para o aparecimento de
Rio de Janeiro e da Bahia o pioneirismo uma nova ordem social. Petronilha Beatriz
em estabelecer normas e estratégias que Gonçalves e Silva (2003), em consonância
favoreceram a reserva de vagas para afro- com esse pensamento, diz o seguinte: “Há
descendentes como resposta aos anseios de que pensar a formação universitária como
grande parcela da população, que se encon- possibilidade de enfrentar, superar intolerân-
trava historicamente excluída dos bancos cias, o que implica buscar meios de suprimir
universitários. desigualdades seculares” (Silva, 2003, p. 52).
Essa nova proposta de inclusão
étnico-racial tem por escopo o advento de
Críticas no alvo
uma nova universidade democrática – multi-
cultural, imbuída de espírito social pleno – e As políticas afirmativas trouxeram para o
a possibilidade de inserção da pessoa negra centro do debate social questões raciais que
no cerne da produção científica, para que se encontravam diluídas na falsa ideologia
possa contribuir, de maneira mais incisiva, da igualdade racial no Brasil. Kabengele
no desenvolvimento da sociedade em todos Munanga (2003) refere-se a diversos ar-
os aspectos possíveis. Sobre isso, alerta gumentos usados por alguns segmentos
Marlene Ribeiro: da sociedade brasileira, que questionam a
legitimidade da discriminação positiva na
A construção de competências acadêmicas contemporaneidade. Dentre as várias ver-
legítimas, no quadro de uma sociedade
tentes de pensamentos contrários às cotas
excludente, racista, discriminatória, que
evidenciadas pelo autor no artigo “Políticas
diz projetar ser justa, inclui experiências
de ação afirmativa em benefício da popula-
de ruptura com o modelo tradicional de
ção negra no Brasil: um ponto de vista em
universidade (Ribeiro, 1999, p. 240).
defesa de cotas” (2003), duas serão utilizadas
Cumpre ressaltar que a universidade como objeto de estudo.
– como centro ativo de produção de conhe- A primeira questão diz respeito à
cimento científico –, ao promover e executar impossibilidade de implementar cotas para
medidas de inclusão de grupos étnicos margi- pessoas negras no Brasil, por ser difícil de-
nalizados e oprimidos, passa a fazer parte da finir quem é negro por causa da mestiçagem.
sociedade, assumindo compromisso com ela, O argumento baseia-se totalmente no mito
uma vez que deixa de atender unicamente da igualdade racial, ou seja, o Brasil seria

SETEMBRO 2008 79
e s pa ç o a b e rt o

um país harmonioso, formado unicamente curso universitário do(a) estudante cotista.


por pessoas mestiças descendentes de três A segunda refere-se à violação do
etnias distintas: a colonizadora, a escrava e artigo 5º da Constituição Federal, que prevê
a nativa. Esse pensamento não caracteriza a igualdade perante a lei, sem distinção de
a realidade vivida no interior das relações qualquer natureza, garantindo-se aos(às)
sociais, uma vez que o racismo brasileiro brasileiros(as) e aos(às) estrangeiros(as) re-
não se concretiza no plano do genótipo, mas sidentes no país a inviolabilidade do direito
sim do fenótipo. Em outros termos, negra é a à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
pessoa que possui características externas de e à propriedade.
negro, pois, segundo Oracy Nogueira (1985), Essa igualdade legal explicitada pela
o preconceito é de marca e não de origem. Constituição brasileira, em nenhum momen-
Em um segundo momento, o autor to deixou o plano retórico. Basta observar a
evidencia outros argumentos contrários à atual situação do país. Salta aos olhos o des-
implantação das políticas afirmativas, pois caso da sociedade com os direitos básicos das
essa poderia prejudicar a imagem profissio- camadas mais pobres da população. Saúde,
nal de funcionários(as), estudantes e artistas educação e habitação são alguns exemplos
negros(as), que seriam acusados(as) de terem de que os preceitos previstos na Lei Maior
entrado por uma porta diferente. Significa não conseguiram alcançar significativamen-
que, no momento das grandes concorrências, te a maioria da população, em nenhuma
as cotas poderiam, perigosamente, estimular medida. Nega, assim, à classe pobre (onde
os preconceitos. Refutando essa linha de se encontra o maior percentual de pessoas
pensamento, Munanga faz uma analogia da negras) o acesso aos bens historicamente
recente história de lutas e conquistas das construídos pela sociedade e indispensáveis
mulheres com a atual situação da população ao desenvolvimento da cidadania em todos
negra no Brasil e o reflexo da política de os seus aspectos.
discriminação positiva. Em suas idéias, ele
afirma o seguinte:
Cotas e TV
A história da luta das mulheres ilustra É inegável que, dentre os veículos de comu-
melhor o que seria o futuro dos negros. nicação de massa, a televisão ocupe papel
A discriminação contra elas não foi total- de destaque na divulgação de informações
mente desarmada, mas elas ocupam cada graças ao poder das imagens. Nos termos de
vez mais espaços na sociedade, não porque
Pierre Bourdieu (1997), dispondo desta força
os homens tornaram-se menos machistas
excepcional que é a da imagem televisiva,
e mais tolerantes, mas porque, justamente
os jornalistas podem produzir efeitos sem
graças ao conhecimento adquirido, elas
equivalentes. Esse poder construído histori-
demonstram competências e capacidades
que lhes abrem portas antigamente fecha-
camente por meio de imposições simbólicas,
das (Munanga, 2003, p. 126).
propiciou o surgimento de um novo império
burguês, ideológico, político e econômico,
Finalmente, o clímax das discussões cujo único escopo (da maioria das emissoras
remete para duas vertentes principais. A de televisão) é defender os interesses das
primeira salienta a impossibilidade de in- oligarquias imperialistas em detrimento das
gresso e permanência das pessoas negras nas necessidades da população, particularmente
universidades públicas. Realmente, a dificul- da mais pobre.
dade que cotistas encontram para se manter No que tange às políticas afirmativas,
estudando é notória, causada exclusivamente observou-se que, desde a criação até a conso-
pela situação econômica inerente à condição lidação, um arsenal de matérias jornalísticas,
social dos(as) educandos(as) de baixa renda. tendenciosas e fragmentadas, foram veicula-
Com o intuito de resolver esse problema, a das maciçamente pela mídia televisiva com o
Assembléia Legislativa do Estado do Rio objetivo de depreciar, em qualquer medida,
de Janeiro (Alerj) elaborou o Projeto de Lei todos os aspectos ideológicos oriundos desse

ESpaço
3.378/2006, que modifica a Lei 4.151/03, movimento social.
fazendo com que o programa de apoio re- O cunho das diversas reportagens
latado no Artigo 4º vigore durante todo o exibidas, normalmente em horário nobre,

80 Democracia Viva Nº 40
Um novo olhar sobre as cotas raciais

era a defesa latente dos direitos da burgue- lica, isto é, todo poder que chega a impor *André Sant’Anna
sia aos bens culturais da sociedade como significações, e a impô-las como legítimas, de Oliveira
classe dominante. Essas mensagens foram dissimulando as relações de força que estão Pedagogo
facilmente diluídas por meio de mecanismos na base de sua força, acrescenta sua própria
alienadores, cujo objetivo era, paradoxal- força, isto é, propriamente simbólica, a es-
mente, ocultar mostrando. sas relações de força” (Bourdieu; Passeron,
A televisão, como expoente do ideal 1975, p.19).
burguês, atuou – e atua – como instrumento
de manipulação de idéias em massa, favo-
recendo-se do poderoso recurso chamado
imagem como ferramenta de construção de
uma realidade paralela imersa na alienação e
no controle velado da opinião pública. Nesse Referências
contexto, Pierre Bourdieu alerta:
Baudelot, C.; Establet, R. L’école capitaliste en France.
Paris: Maspero, 1971.
Os perigos políticos inerentes ao uso Bourdieu, P.; PASSERON, J. C. A reprodução: elementos para
ordinário da televisão devem-se ao fato uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco
de que a imagem tem a particularidade de Alves, 1975.
. Sobre a televisão. Oeiras: Celta Editora, 1997.
poder produzir o que os críticos literários CARVALHO, J. J. de. “Ações afirmativas para negros na
chamam o efeito de real, ela pode fazer pós-graduação, nas bolsas de pesquisa e nos concursos
ver e fazer crer no que faz ver (Bourdieu, para professores universitários como resposta ao racismo
acadêmico”. In: SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, V. R. (Orgs.).
1997, p.28). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica
e a injustiça econômica. Brasília, DF: Instituto Nacional de
A reserva de vagas para pessoas Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003.
negras nas universidades do Estado do p.161-190.
COLLUCCI, C. 65% apóiam cotas raciais na faculdade. Folha
Rio de Janeiro tem papel fundamental na de S. Paulo, São Paulo, 23 jul. 2006. Disponível em:
implantação de um novo paradigma social. <http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/

Cria possibilidades para o acesso de ci- ult305u18820.shtml>. Acesso em: 12 ago. 2008.
HENRIQUES, R. Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições
dadãos e cidadãs, outrora esquecidos, aos de vida na década de 90. Brasília, DF:
conhecimentos científicos difundidos no Ipea, 2001. (Texto para Discussão).
MUNANGA, K. “Políticas de ação afirmativa em benefício da
âmbito acadêmico. Com efeito, possibilita população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa
a construção de uma universidade diferente, de cota”. In: SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, V. R. (Orgs.).

multicultural, multiétnica, que responda aos Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica
e a injustiça econômica. Brasília, DF: Instituto Nacional de
anseios de toda a população, uma instituição Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003.
imbuída com o verdadeiro espírito de reden- p. 115-128.
NOGUEIRA, O. “Preconceito racial de marca e preconceito racial de
ção e democratização da sociedade. origem – sugestão de um quadro de referência para a
O que se propõe aqui é a possibilidade interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”.
de outro viés argumentativo, diferente daque- In: (org.). Tanto preto quanto branco: estudos de
relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985.
le veiculado pela mídia comercial, trazendo à RIBEIRO, M. Universidade brasileira pós-moderna: democratização x
tona os diversos entraves latentes que, histo- competência. Manaus:

ricamente, impediram a pessoa negra, como Ed. Universidade do Amazonas, 1999.


RIO DE JANEIRO (Estado). Lei n.º 4.151, de 4 de setembro de 2003.
agente social, de ascender culturalmente. Institui nova disciplina sobre o sistema de cotas para
Diante dos questionamentos e das ingresso nas universidades públicas estaduais
e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do
hipóteses explicitados, pode-se inferir que Rio de Janeiro, Poder Legislativo, Rio de Janeiro.
o sistema de cotas – consolidado no Rio de Rousseau, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da

Janeiro com a Lei 4.151/03 –, longe de ser desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural,
1991. (Coleção Os pensadores).
ferramenta discriminatória, caracteriza-se, na SAVIANI, D. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da
verdade, como poderoso instrumento de li- vara, onze teses sobre a educação política. Campinas, SP:
Autores Associados, 2006.
bertação para os quilombos contemporâneos, SILVA, P. B. G. “ Negros na universidade e produção de
que se encontram oprimidos pela violência conhecimento”. In: SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, V. R. (Orgs.).

simbólica imposta à cultura afro-brasileira Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica
e a injustiça econômica. Brasília, DF: Instituto Nacional de
desde o primeiro dia após a pseudolibertação Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003.
dos(as) escravos(as) no Brasil. p. 43-54.

Nessa perspectiva, Pierre Bourdieu


enfatiza: “Todo poder de violência simbó-

SETEMBRO 2008 81
s u a o p i n i ã o

Bolsa Família I Alteração cadastral


A revista Democracia Viva está excepcional no Solicito alterarem o endereço de entrega para
último número, que trata do problema da ali- Marcello Praça Gomes da Silva – Rua Barão de
mentação. Parabéns a todos os companheiros Mesquita, 643/16, Tijuca – Rio de Janeiro – RJ
do Ibase, com meu fraterno abraço. CEP: 20.540-002.
Anna Maria Castro Marcello Praça Gomes da Silva
Pernambuco Rio de Janeiro/RJ

Bolsa Família II
Divulgação
Gostaria de saudá-los pela qualidade da última
revista Democracia Viva. Fiquei entusiasmado Trabalhei na Associação Vivamos Melhor, em
com o resultado da pesquisa do Ibase sobre o Teresópolis (RJ), onde recebia a revista Demo-
Bolsa Família e com a sua forma de divulgação. cracia Viva desde o início de sua edição. Só que
Ministro um curso de pós na Unicamp (na área a entidade encerrou suas atividades no início
de economia, aberto a toda a universidade) deste ano, e estou trabalhando, agora, numa
sobre segurança alimentar e nutricional. Nesse faculdade em Cascavel, Paraná. Mostrei as
sentido, gostaria de verificar a possibilidade de edições para os diretores, que se interessaram
o Ibase me enviar um pacote com 30 exempla- em receber a revista para utilizá-la nas aulas do
res da revista para que possa distribuí-los entre curso de Serviço Social. Existe a possibilidade de
os alunos. Quero usar alguns dos artigos da a revista ser enviada para a faculdade? Ficaria
revista no curso. muito feliz em continuar recebendo a revista
Walter Belik e, ao mesmo tempo, divulgar os trabalhos do
Instituto de Economia da Unicamp Ibase em outras regiões.
Campinas/SP Peço, então, que cancelem o envio para
a citada associação e passem a enviar para
o seguinte endereço: Instituto Tecnológico e
Bolsa Família III Educacional – Avenida Brasil, 8.607 – Coqueiral
Recebemos o exemplar nº 39 da revista Demo- – Cascavel – PR CEP: 85807-030.
cracia Viva, do Instituto Brasileiro de Análises Milicio Vicente Stroher
Sociais e Econômicas, e gostaríamos de para- Cascavel/PR
benizar esse instituto pelo referido trabalho.
Sub-reitoria de Extensão e Cultura da Uerj
Rio de Janeiro/RJ

Bolsa Família IV
Recebi a revista Democracia Viva nº 39 e gostei
muito da entrevista com Fátima Andréia [pág.
32], uma guerreira. Quantas Fátimas devem Nota da redação
existir por aí querendo apenas um lugar ao Agradecemos ao público leitor por todas
sol? A história dela é muito parecida com a as mensagens e todos os artigos recebidos no
endereço eletrônico da revista e no Portal do
minha. Também sofri na pele rejeição e aban-
Ibase. Informamos que os textos serão avaliados
dono. Conheço a fome, e a miséria foi minha e, se possível, publicados.
companheira durante toda a minha infância Agradecemos, também, por todas as cartas
e juventude. Por esse motivo é que luto, para enviadas, informando que, de acordo com a
mostrar para outros na mesma situação que necessidade editorial, essas serão publicadas
com cortes.
é possível um mundo melhor. Parabenizo Ma-
Esperamos que vocês continuem colaboran-
riana Santarelli pelo belo artigo [Crise mundial do com a revista Democracia Viva: escrevam,
de alimentos ou crise humanitária?, pág. 64]. opinem, critiquem, mantenham contato!
Neusa Marques
Marcha Mundial de Mulheres–RJ

82 Democracia Viva Nº 40
última página
Nani
40
A agenda da revista Democracia Viva é ampla

VIVA
e aberta, parte do compromisso radical com

DEMOCRACIA
a cidadania e com a democracia.

Democracia Viva não se alinha com partidos

nem religiões, mas toma partido desde que

esteja em jogo a possibilidade de aprofundar

a democracia. Não disputa poder, mas quer

exercer um papel de vigilância, monitoramento

e avaliação; com toda autonomia e independência,

das políticas públicas e das ações governamentais,

bem como das práticas empresariais e das

relações econômico-financeiras. Quer ser ativa

como interpeladora de consciências e vontades,

questionando práticas e valores que limitam

a democracia, estimulando a participação cidadã.

Sua qualidade é a força das reflexões, análises,

propostas e dos argumentos. SETEMBRO 2008

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