Você está na página 1de 15

PR ÁTI CA S PE D A G ÓG ICAS

CARTOGRAFANDO SEGREGAÇÃO NA PANDEMIA: a geografia das


ausências e o seu papel na produção de materiais didáticos

MAPPING SEGREGATION IN PANDEMIA: the geography of absences and their role in the production of teaching materials

TAT I A N A DE S OU Z A FE RR E IRA
Graduada e Mestre em Geografia (UERJ)
Professora do Colégio Pedro II (Campus Realengo II)
prof t ati ana@hotmai l .com

E D U A R DO DE OLIVE IR A RO DRIG U E S
Graduado e Mestre em Geografia (UFRJ,) Doutorando em Antropologia (UFF)
Professor do Colégio Pedro II (Campus Realengo II) e
Pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Conflitos, Cidadania e Segurança Pública (LAESP/UFF)
vinculado à rede INCT-IneAC
eor odri gues @gmai l .com

RESUMO: A PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS É UM PROCESSO DESAFIADOR DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO, ESPECIALMENTE QUANDO
CONSIDERAMOS O USO DE RECURSOS ESTATÍSTICOS E CARTOGRÁFICOS PARA SUA ELABORAÇÃO. EM UM CONTEXTO DE PANDEMIA EM QUE SE AMPLIA
A PRESSÃO PELO CONTATO ONLINE COM OS ESTUDANTES, A CONFECÇÃO E ENVIO DE MATERIAIS DIDÁTICOS QUE DIALOGUEM COM O MOMENTO
ATUAL FOI UM CAMINHO DE TRABALHO QUE ESCOLHEMOS. NESTE PROCESSO, OS DADOS ESTATÍSTICOS E A PRODUÇÃO CARTOGRÁFICA FORAM
FERRAMENTAS UTILIZADAS NA TENTATIVA DE DEBATER O COVID-19 CONSIDERANDO AS DESIGUALDADES REGIONAIS NAS ESCALAS NACIONAL E
MUNICIPAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. A PARTIR DA ANÁLISE, MAIS DO QUE PADRÕES ESPACIAIS DE DESIGUALDADE E SEGREGAÇÃO LIGADOS
AO COVID-19, DIFERENTES INSUFICIÊNCIAS ENCONTRADAS NOS DADOS POSSIBILITARAM PENSAR EM UMA GEOGRAFIA DAS AUSÊNCIAS, ISTO É, A
POSSIBILIDADE METODOLÓGICA DE ABORDAR CONTEÚDOS, FENÔMENOS E PROCESSOS SOCIOESPACIAIS A PARTIR DA FALTA, OU SEJA, DAQUILO
QUE OS DADOS APARENTEMENTE NÃO REVELAM, NÃO CONTABILIZAM ESTATISTICAMENTE, OU MESMO INVISIBILIZAM. APONTAMOS NESTE ARTIGO
A POSSIBILIDADE DA AUSÊNCIA COMO CATEGORIA DE ANÁLISE GEOGRÁFICA QUE PODE SER USADA ENQUANTO RECURSO NA PRODUÇÃO DE
MATERIAIS DIDÁTICOS.
PALAVRAS-CHAVE: GEOGRAFIA; ESTATÍSTICA; CARTOGRAFIA; SEGREGAÇÃO; ESTADO.

ABSTRACT: THE PRODUCTION OF LEARNING MATERIALS IS A CHALLENGING PROCESS OF BUILDING KNOWLEDGE, ESPECIALLY WHEN THE USE OF
STATISTICAL AND CARTOGRAPHIC RESOURCES IS CONSIDERED. REGARDING THE HIGH DEMAND FOR E-LEARNING ACTIVITIES DUE THE COVID-19
OUTBREAK, THE AUTHORS HAVE DEVELOPED ONLINE GEOGRAPHY LEARNING MATERIALS ABOUT THE PANDEMIA FOR THEIR STUDENTS. IN THIS
PROCESS, STATISTICAL DATA AND MAP MAKING WERE TOOLS USED TO DEBATE SOME COVID-19 IMPACTS CONSIDERING REGIONAL INEQUALITIES
IN BRAZIL AND RIO DE JANEIRO CITY. IN THE ANALYSIS, DIFFERENT DATA LIMITATIONS MADE IT POSSIBLE TO THINK OF A GEOGRAPHY OF ABSENCES,
THAT IS, A METHODOLOGICAL POSSIBILITY OF ADDRESSING SOCIO-SPATIAL CONTENT, PHENOMENA AND PROCESSES THROUGH DATA ABSENCE.
IN OTHER WORDS, IT SUGGESTS ANALYZE WHAT THE DATA APPARENTLY DOES NOT REVEAL, DOES NOT COUNT STATISTICALLY OR EVEN MAKES
INVISIBLE IN MAPS. IN THIS ARTICLE, WE POINTED OUT THE POSSIBILITY OF TAKING “ABSENCE” AS A ANALYTICAL CATEGORY THAT CAN BE USED AS
A RESOURCE IN THE PRODUCTION OF TEACHING MATERIALS IN GEOGRAPHY.
KEYWORDS: ESTATISTIC; STATE; CARTOGRAPHY; SEGREGATION; STATE.

G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 . 79
CARTOGRAFANDO SEGREGAÇÃO NA PANDEMIA: A GEOGRAFIA DAS AUSÊNCIAS E O SEU PAPEL NA PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTIC OS

INTRODUÇÃO escalas – com particular atenção para os impactos


diferenciados do COVID-19 no recorte intraurbano
As próprias coisas que a inteligência limitada
da metrópole carioca.
do homem e do animal julga sólidas e
No entanto, para além dos sérios limites
constantes não têm existência real, não
do “ensino à distância” num contexto pandêmico
passam do luzir e do faiscar de espadas
no Brasil (JESUS, 2020; LIMA, 2020), o processo
desembainhadas, são o brilho da vitória na
de produção de materiais didáticos em Geografia
luta das qualidades opostas. (NIETZSCHE,
nos permite pensar também num outro problema:
2008, p. 16)
a maneira como diferentes dados (em sua grande
maioria dados quantitativos) serão usados
A produção de materiais didáticos em
em tais materiais online e, posteriormente, em
Geografia Escolar é parte importante do dia a dia
sala de aula. Essa questão nos remete a uma
docente. Mesmo com o recurso do livro didático,
dimensão político-metodológica do debate
muitos conteúdos trabalhados em sala de aula
ainda pouco explorada no campo da Geografia
transbordam seus limites por diferentes motivos:
Escolar, que diz respeito à maneira como tais
as formas de abordagem, a ausência de certos
dados são socialmente construídos. Insistimos
conteúdos, a escala de análise do fenômeno, a
nessa dimensão do debate sobre a produção
qualidade do material cartográfico, o tratamento
do conhecimento, uma vez que apesar do
dos dados, entre tantas outras coisas. Em
amplo trabalho estatístico realizado por órgãos
um país dotado de enorme diversidade e
oficiais brasileiros, o processo metodológico de
desigualdade regional como o Brasil, a produção
construção dos dados que servem de insumo
de conteúdos mais adequados à escala do
para nossos gráficos, tabelas e principalmente
cotidiano discente se transforma em um desafio
mapas são o resultado de disputas e escolhas
para prática docente nas escolas – em especial
de ordem política. Como sublinha Foucault (2003,
se considerarmos as condições precárias de
p. 17), o conhecimento é parte de um processo
formação e de trabalho dos professores em
inventivo que se dá através do embate entre
nosso país (ROSA, 2015, p. 20-24).
diferentes forças. Antes de ser tomado enquanto
Em tempos de isolamento social imposto
uma “descoberta”, o dado nos parece muito mais
pela pandemia do COVID-19, a problemática da
tributário de uma “construção” que redefine o
produção de materiais didáticos ganhou uma
conhecimento como uma espécie de “centelha
nova roupagem. Pelo fechamento das escolas
entre duas espadas”, ou seja, como um resultado
e a imposição de aulas à distância, milhares de
derivado de relações de poder.
docentes da rede de educação básica estão
Neste sentido, o presente artigo propõe
a trabalhar na produção de conteúdos online
pensar tal problemática, em tempos de pandemia
para os seus estudantes. No caso específico da
e isolamento social, a partir de um exercício de
unidade do Colégio Pedro II, localizado no bairro
descrição metodológica de um material didático
de Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, os
em Geografia. Para confeccionar alguns mapas
materiais produzidos pela equipe de Geografia se
presentes nesse material, os autores foram
constituíram majoritariamente de textos sobre os
obrigados a geoprocessar números oficiais de
conteúdos programáticos de ensino fundamental
contágio e óbitos do COVID-19 oriundos da
e médio, exercícios, atividades e sugestões de
prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Esse
filmes. Um desses conteúdos – que é o objeto
exercício permitiu pensar os dados através de uma
da descrição empírica do presente artigo – diz
dialética entre a presença-ausência reveladora
respeito a um material voltado para o 3º ano
não só de alguns impactos socioespaciais da
do Ensino Médio. Nele, foi sugerido um debate
pandemia em si, como também dos processos
sobre as desigualdades brasileiras em diferentes
político-metodológicos de produção e escolha

80 G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 .
TAT I A N A D E S O U Z A F E R R E I R A / E D U A R D O D E O L I V E I R A R O D R I G U E S

das variáveis que compõem o dado. Ao tomá- respeito a certos limites espaciais da biopolítica no
los enquanto resultado de um processo de seu papel quanto ao fortalecimento da população
construção social, o artigo objetiva, sobretudo, através das ações do Estado. A experiência
pensar criticamente o uso dos dados em nossos colonial que conformará boa parte das periferias
materiais didáticos e nas aulas de Geografia do capitalismo marca uma diferença fundamental
inscritas no cotidiano escolar. nesse processo, uma vez que o estatuto de
igualdade política entre a população brasileira
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A DIMENSÃO POLÍTICA nos parece muito diferente daquele dos países
DA ESTATÍSTICA E SUA RELAÇÃO COM O ESTADO europeus do Ocidente. Para tomarmos somente
um pequeno exemplo, é notório o impacto do
Pensar nos processos que conformam sistema escravagista sobre a ampliação dos
o Estado moderno enquanto uma das formas direitos civis no Brasil. Como nos mostra Kant de
possíveis de governo é pensar também na Lima (2019, p. 25), mesmo com a promulgação de
construção da estatística enquanto ciência. uma Constituição tida enquanto liberal em 1824,
Como nos esclarece Triola (2008, p.2), a palavra o estatuto de cidadão foi negado a maior parte da
estatística provém do vocábulo latino status que população durante todo o período imperial. Com
significa “Estado”. Sua constituição enquanto respeito a isso, salta aos olhos o fato do primeiro
ciência esteve ligada, inicialmente, a um corpo Código Penal brasileiro datar de 1830 enquanto
de conhecimentos voltados para a compilação o Código de Direito Civil ter sido promulgado
de dados sobre diferentes fenômenos que apenas em 1915.
reconfiguraram o problema do governo. Para Nossas estatísticas demográficas, que na
Foucault (2019, p. 407), tal reconfiguração está leitura de Souza e Silva (1986) eram meramente
ligada à expansão demográfica experimentada conjecturais e dispersas antes de 1870, também
pela Europa a partir do século XVII e que refletem esses limites. Elas não passavam
transformou a população num problema de ordem de estimativas sem qualquer fundamento
política para boa parte do continente. A noção de científico destinadas, quando muito, a atender
“governamentalidade” sugere a construção de aos interesses metropolitanos. O primeiro
uma série de novos mecanismos de regulação levantamento populacional foi realizado somente
sobre a vida da população, de maneira a percebê- em 1818 através de um inquérito baseado em
la enquanto recurso fundamental para a existência informações de párocos, desembargadores
do próprio Estado. Isso significa, em outras e magistrados (IBGE, 2003). Somente após
palavras, racionalizar de maneira mais precisa mais de cinquenta anos, com a primeira lei de
os problemas postos à prática governamental recenseamentos nacionais de população (Lei nº
através de fenômenos inscritos na vida de certo 1829, sancionada em 1870), tornou-se possível a
conjunto de viventes como questões sanitárias, de realização de um censo nacional no ano de 1872
natalidade, longevidade, ocorrência de crimes, etc (OLIVEIRA, 2005, p. 292). Não é surpreendente,
(FOUCAULT, 2008, p. 408). Os dados estatísticos, nesse sentido, que as estatísticas produzidas pelo
nesse sentido, se constituíram enquanto subsídio Estado não tenham geralmente subsidiado ações
necessário para operacionalizar essa nova em prol do fortalecimento da vida da população
ciência que tomava a população enquanto objeto brasileira como um todo.
e instrumento de governo. Apesar de passados quase 150 anos do
No entanto, quando pensamos no primeiro censo demográfico, o formato atual do
recorte brasileiro, a análise dessa problemática recenseamento promovido decenalmente pelo
sob os moldes foucauldianos merece algumas Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ressalvas importantes. Existe um problema, (IBGE) é recente. Ele remonta ao Censo de 1970,
como identificado por Mbembe (2018), no que diz quando se conseguiu atingir melhores níveis de

G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 . 81
CARTOGRAFANDO SEGREGAÇÃO NA PANDEMIA: A GEOGRAFIA DAS AUSÊNCIAS E O SEU PAPEL NA PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTIC OS

organização, riqueza de detalhes e confiabilidade palavras, os discursos enredados através dos


dos números quanto ao levantamento e números estabelecem uma espécie de “plano
processamento dos dados (idem, p.293). de realidade” (idem, p. 676) marcado por
Mesmo sendo uma base internacionalmente parâmetros normativos que informam como o
reconhecida através de ISOs (International governo pode (ou ao menos deveria) proceder.
Organization for Standardization) que atestam Ora, com relação ao Brasil, o papel da
a qualidade dos dados (IBGE, 2017, p. 12-13), produção estatística em prol da construção
a realização dos censos demográficos ainda dessa legitimidade não pode ser descartado.
passa por desafios de diferentes ordens. Se Se pensarmos no Estado brasileiro a partir dos
pensarmos somente no montante de recursos seus “processos de formação” (SOUZA LIMA,
públicos destinados a ele, por pelo menos uma 2015) – ou seja, através das relações, estruturas,
vez o lançamento do recenseamento teve que atores e funções que imprimem um conjunto de
ser adiado por limitações financeiras (do ano de significados compartilhados sobre o que seria
1990 para 1991). O problema ainda persiste nos este mesmo Estado – é notável como a produção
dias atuais, uma vez que o censo demográfico de números contribui para tal representação
de 2020 – já adiado para o ano que vem por junto aos brasileiros. Mas é interessante notar
conta da pandemia – sofreu um corte expressivo também, todavia, como tais significados podem
de verbas na ordem de 87,2% (GRANER, 2019). ser disputados dentro das diferentes vozes que
O enxugamento de recursos pode, assim, ecoam através do próprio Estado – em especial
comprometer diretamente a qualidade dos no contexto atual do COVID-19.
dados a serem produzidos. A título de exemplo, o presidente Jair
Em todo caso, mesmo diante das Bolsonaro já questionou de diferentes maneiras
diferenças, um ponto em comum sobre o os dados oficiais para minimizar os impactos
conhecimento estatístico e sua relação com da pandemia. Em certa ocasião, acusou os
o Estado diz respeito aos processos de dados de serem “manipulados” e de terem
constituição da sua legitimidade. No tocante um claro “objetivo político” em desgastar sua
ao recorte estadunidense, Rose (1991, p. 675) imagem pública (MAIA e GULLINO, 2020). Já
nos mostra uma relação intrínseca entre a em relação ao uso da cloroquina, o presidente
quantificação (em termos de dados estatísticos) estabeleceu “planos de realidade” (ROSE, 1991,
e as ações governamentais. A produção e a p. 676) distintos do seu então ministro da saúde,
publicização de números são parte integrante Luís Henrique Mandetta, mesmo na ausência
das tecnologias que buscam efetivar a de comprovação científica sobre a eficiência do
democracia norte-americana como um conjunto medicamento (PARAGUASSU, 2020). Ou ainda,
particular de mecanismos de governo. Em sobre o contágio da doença, curiosamente
outras palavras, os números fornecem insumos Bolsonaro usou números sem qualquer tipo
para a criação de discursos que justifiquem de embasamento em pesquisas e estudos
ações e criem legitimidade ao poder político para validar sua fala de que precisamente 70%
do Estado na sua relação cotidiana com a da população iria “pegar” a doença (VILELA,
sociedade. Mas é importante perceber, como 2020). Em suma: o que está em disputa não é o
alerta o autor, que os números não apenas estatuto de verdade que se construiu em torno
inscrevem uma realidade preexistente. Pelo da estatística, mas sim a qual verdade ela se
contrário: os próprios números constituem essa remete e qual ação governamental prevalecerá
realidade. A coleta e a agregação de números embasada na sua enunciação. É sob esta
partem de critérios de ordem também política, perspectiva que encaminhamos a descrição
que são capazes de delinear territórios voltados metodológica e a análise empírica realizada a
para as ações governamentais. Em outras seguir.

82 G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 .
TAT I A N A D E S O U Z A F E R R E I R A / E D U A R D O D E O L I V E I R A R O D R I G U E S

A GEOGRAFIA DO COVID-19 E A AUSÊNCIA ENQUANTO Por isso, dos vários materiais elaborados
CATEGORIA DE ANÁLISE e destinados ao 3° ano do Ensino Médio, dois
tiveram como tema o COVID-19 e as desigualdades
São muitos os desafios que a atual regionais no Brasil. A escolha do tema deriva
pandemia tem imposto aos sistemas de ensino do fato do conceito de região, regionalização e
e às comunidades escolares que os compõem. desigualdades regionais serem, no Colégio Pedro
Evidenciando ainda mais as interseccionais II, componentes curriculares obrigatórios para
desigualdades históricas do Brasil, algumas esta série. O primeiro material foi publicado no dia
redes públicas de ensino e a rede privada em 29 de abril de 2020 e tinha como debate central o
geral têm insistido em tentativas de manutenção impacto da doença na escala do território brasileiro
de uma pretensa normalidade na rotina escolar, a partir da desigual distribuição de infraestruturas
inclusive com respaldo judicial em alguns estados entre as regiões do IBGE. Se de fato o vírus se
e municípios para contabilizar as aulas remotas propaga espacialmente independente de classe,
como carga horária obrigatória (PASSOS, 2020). raça, gênero e faixa etária, é também verdadeiro
Embora não seja o intuito do artigo debater que a maior ou menor exposição, vulnerabilidade
educação à distância, compartilha-se entre os e capacidade de oferecer respostas à doença
docentes a preocupação sobre quais formas e oscila de acordo com as desigualdades regionais.
objetivos os vínculos com os estudantes devem Com pouco mais de um mês de quarentena,
ser mantidos durante este perído excepcional. ao final de abril, era possível perceber um perfil
Uma alternativa definida pela equipe de Geografia territorial e populacional dos atingidos pelo
do Colégio Pedro II no campus Realengo foi a COVID-19 se desenhando mesmo que os dados
elaboração e postagem no blog do colégio de já refletissem uma subtnotificação, pois não havia
materiais, exercícios, atividades e sugestões – e ainda não há – testagem em massa (ALVES et
multimídia que dialogassem com o conteúdo alli, 2020). Mesmo assim, a partir das informações
escolar, sem qualquer caráter avaliativo ou que as secretarias de saúde publicam no Sistema
contabilização de horas e notas. Entende-se que de Informação de Vigilância da Gripe (SIVEP-
qualquer ação pegagógica que vá além disto Gripe), o Boletim Epidemiológico de número 11 do
poderia ampliar ainda mais a desigualdade entre Ministério da Saúde (2020) registrou um padrão
os estudantes. de deslocamento racial e espacial da doença.
Definido o tipo de contato pedagógico Inicialmente trazida ao Brasil por uma classe
a ser estabelecido com os estudantes, outras média e alta que esteve em viagem ao exterior,
questões surgiram. O que poderia ser um especialmente à Itália, a doença rapidamente
conteúdo relevante quando estamos em meio a alcançou outros grupos. Segundo o mesmo
uma pandemia que notifica mais de 1.100 óbitos boletim, ao final de abril já era possível perceber
por dia (G1, 2020a)? Se o assunto mais relevante uma queda na hospitalização e no número de
no momento é o COVID-19, que contribuições a óbitos entre brancos enquanto aumentava a
Geografia pode oferecer para qualificar o debate de pardos e pretos. Também era possível notar
quando o tema tem sido exaustivamente tratado que o número de mortes era maior do que o de
nas diferentes mídias? Parece-nos inadequado internações entre este último grupo. Ademais, os
não falar sobre uma pandemia que nos colocou mapas do Brasil produzidos pelo Ministério da
distantes das salas de aula, sobretudo pela Saúde já identificavam a interiorização do vírus.
grande importância de fomentar junto aos Contudo, os problemas de ordem político-
estudantes um conjunto de reflexões a partir de metodológica sobre os dados estatísticos só
aspectos que não são comumente apresentados ficaram mais evidentes quando, em um segundo
nos meios de comunicação de massa. material disponibilizado aos estudantes no
dia 16 de maio, a mudança da escala, tomada

G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 . 83
CARTOGRAFANDO SEGREGAÇÃO NA PANDEMIA: A GEOGRAFIA DAS AUSÊNCIAS E O SEU PAPEL NA PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTIC OS

enquanto artifício analítico (CASTRO, 2014, p. da elaboração dos mapas pela impossibilidade
90), conferiu visibilidade a outra dimensão do de localizar sua ocorrência. Mas além desse
fênomeno observado. Centrando as análises problema, outros aspectos nos pareceram
agora na cidade do Rio de Janeiro, recorremos igualmente graves. Segundo médicos da clínica
ao banco de dados da prefeitura disponível no da família Zilda Arns, localizada no conjunto de
DataRio1 para verificar algumas hipóteses: a) seria favelas do Complexo do Alemão, Zona Norte
possível identificar padrões de deslocamento da da cidade, muitos moradores estavam sendo
doença das áreas centrais para as periferias no registrados conforme o local de atendimento na
município do Rio de Janeiro? b) haveria algum unidade de saúde, fora do complexo de favelas,
deslocamento também do ponto de vista “racial” e não pelo local de moradia (FILHO, 2020). Ou
da disseminação pela cidade? c) quais seriam os ainda, embora não houvesse oficialmente nenhum
impactos diferenciados entre as favelas cariocas caso registrado do COVID-19 na favela de Rio
e os bairros circundantes aos seus territórios? O das Pedras, localizada na Zona Oeste carioca,
intuito era utilizar os dados para compor quatro integrantes da comissão local de moradores
mapas quinzenais que permitissem acompanhar afirmaram que os casos existiam e que tinham sido
a espacialização da doença no tempo e verificar atendidos no hospital Lourenço Jorge, no bairro
as hipóteses levantadas. de alta renda da Barra da Tijuca, provavelmente
No entanto, os dados fornecidos pela apresentando o mesmo problema de registro que
prefeitura eram incompletos, insuficientes e o Complexo do Alemão (ibidem, 2020).
careciam de variáveis fundamentais para a Ademais, a principal questão sobre a
realização de uma análise dos padrões que nos variável “local de moradia” é a imprecisão que
propomos a investigar2. Sabíamos desde o início a escala do bairro informa se considerarmos
que as análises seriam feitas considerando a o padrão de segregração espacial em uma
subnotificação, já que o número de atendimentos cidade como o Rio de Janeiro. O processo de
hospitalares e de mortes por Síndrome Respiratória crescimento e de urbanização do Rio ocorreu
Aguda Grave (SRAG), segundo dados fornecidos e ainda ocorre de forma muito específica se
por cartórios, cemitérios e hospitais, era 1.035% comparado à cidades cuja urbanização produziu
maior do que no ano anterior (G1, 2020b). Estes bairros de elite distantes de bairros pobres e
só entram nas estatísticas do COVID-19 quando favelas (ABREU, 2003). Uma localização espacial
os testes são realizados e há o diagnóstico mais específica de cada caso, que considerasse
positivo. Como não há testagem em massa, ao menos o Código Postal (para os que o
qualquer dado fornecido pelo município deve possuem) ou o topônimo da favela, já permitiria
ser analisado considerando a subnotificação. Foi uma espacialização menos imprecisa.
diante deste quadro que nos debruçamos sobre Quando colocados nos mapas, os dados
as informações disponibilizadas pela prefeitura nos revelaram que o trabalho de análise ocorreria
do Rio de Janeiro. mais por uma geografia da ausência do que da
Dos diferentes problemas que os presença. Estamos chamando de “geografia
dados apresentavam, dois nos pareceram das ausências” a possibilidade metodológica
mais relevantes para o tema da desigualdade de abordar conteúdos, fenômenos e processos
intraurbana: a identificação incompleta da variável socioespaciais a partir da falta, ou seja, daquilo
“local de moradia” e a ausência da variável “raça”. que os dados aparentemente não revelam,
Sobre a variável “local de moradia”, no dia 14 de não contabilizam estatisticamente, ou mesmo
maio o DataRio contabilizava 11.025 casos entre invisibilizam. Indo além, deve-se problematizar
infectados e óbitos. Dentre estes, em apenas assim a ausência enquanto uma categoria com
7.207 constava a identificação do bairro. Foram rendimento analítico que cria possibilidades
3.818 casos (34,6% da amostra) descartados também para produzir conhecimento. Não há nada

84 G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 .
TAT I A N A D E S O U Z A F E R R E I R A / E D U A R D O D E O L I V E I R A R O D R I G U E S

de muito novo nisto, uma vez que a cartografia O primeiro mapa data do período pré-
da ação social e o mapeamento colaborativo quarentena, ou seja, antes do dia 16 de março
já trabalham com métodos de visibilização quando medidas de isolamento social foram
daquilo que a cartografia tradicional omite (SILVA, decretadas. É possível observar que são os bairros
2011; ALMEIDA, 2014; RIBEIRO, 2012). O que que conformam a Zona Sul, identificada no mapa
estamos apontando, de forma preliminar neste pela regionalização oficial da prefeitura3 como
breve artigo, é o problema que se encontra “Área de Planejamento 2”(AP2), e o bairro da Barra
anteriormente à confecção de um mapa, de um da Tijuca, localizado na Zona Oeste e identificado
gráfico ou uma tabela, elementos visuais comuns no mapa na Área de Planejamento 4 (AP4) que
na prática docente em Geografia. Nos importa registram mais casos da doença. Segundo o
a abordagem do dado estatístico enquanto uma IBGE (2012), estes são bairros de alta renda e
construção social através da seleção de variáveis, predominantemente de população autodeclarada
da escolha dos critérios, dos métodos de coleta branca. Tais informações são compatíveis com
a serem utilizados, até mesmo do problema que os dados já citados do boletim epidemiológico
é considerado como estatísticamente relevante número 11 do Ministério da Saúde (2020) sobre
ou não. Posteriormente, são essas questões que o perfil racial das hospitalizações e dos óbitos
constarão nos mapas que elaboramos e utilizamos. neste período. No Mapa 2 já foi possível identificar
Estes problemas ficaram particularmente mais o avanço da doença para outras áreas da cidade.
aguçados ao olhar quando, para a construção Nesta segunda quinzena analisada, a
deste artigo, comparamos diferentes fontes de quarentena já estava vigorando por decreto
informação com as estatísticas do DataRio que do governo fluminense. Pelo mapa é possível
foram expressas nos mapas que elaboramos. observar a expansão do número de casos
Para melhor visualização destas questões, vamos pelos demais bairros da Zona Sul (AP 2) e seu
começar com o Mapa 1 sobre a distribuição dos espraiamento para outras regiões da cidade:
casos entre os dias 01 e 15 de março.

Mapa 1 - Distribuição espacial dos casos no período 01/03/2020-15/03/2020

G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 . 85
CARTOGRAFANDO SEGREGAÇÃO NA PANDEMIA: A GEOGRAFIA DAS AUSÊNCIAS E O SEU PAPEL NA PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTIC OS

Mapa 2 - Distribuição espacial dos casos no período 16/03/2020-31/03/2020

Centro (AP1), Zona Norte (AP3) e Zona (QUEIROZ, 2020). Vejamos o Mapa de número 4
Oeste (APs 4 e 5). Neste período são poucos os que consolida o padrão já identificado no Mapa
bairros que não apresentaram casos registrados, de número 3.
ou seja, em um curto intervalo de tempo, Apesar dos mapas permitirem a
aproximadamente uma quinzena, o vírus se visualização de um padrão espacial que já tem
deslocou por todo município. No Mapa 3, veremos sido reportado pelo Ministério da Saúde, não é
a consolidação deste deslocamento espacial. possível afirmar ou verificar nada que vá muito além.
Nesta primeira quinzena de abril é possível O problema técnico-político dos dados consiste
perceber um aumento significativo no número justamente em omitir informações mais precisas
de casos, inclusive na Zona Sul (AP 2) que foi que permitam mapear onde a contaminação e
a primeira a apresentar casos. É justamente no os óbitos têm sido mais representativos. Neste
final desta quinzena e início da próxima, mais ponto chegamos ao outro grave problema do
exatamente entre os dias 10 e 26 de abril, que levantamento estatístico da prefeitura: a ausência
os boletins epidemiológicos (MINISTÉRIO DA da variável “raça”.
SAÚDE, 2020) apontaram o deslocamento racial A segregação socioespacial da cidade do
da doença no Brasil. Rio de Janeiro tem cor. Considerando os dados
Na quinzena que compreende o período do censo do IBGE (2012) e utilizando a escala
entre os dias 16 e 30 de abril não há mudanças do município, percebe-se o predomínio de uma
significativas. O padrão de distribuição espacial população autodeclarada branca na Zona Sul
da COVID-19 permanece, exceto pela pequena da cidade e no eixo da Zona Oeste composto
diminuição ou aumento de casos em alguns bairros. por bairros de alta renda como a Barra da Tijuca
Considerando que os dados do DataRio foram e o Recreio. Já nas demais zonas da cidade,
por nós acessados no dia 14 de abril, essa ligeira predomina uma população autodeclarada preta
variação pode ser explicada pelo período de até ou parda. Observe o Mapa racial da cidade do
semanas entre a coleta de material, a testagem, o Rio de Janeiro feito com base nas informações do
resultado e o seu registro nos sistemas de saúde último censo do IBGE (2012).

86 G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 .
TAT I A N A D E S O U Z A F E R R E I R A / E D U A R D O D E O L I V E I R A R O D R I G U E S

Mapa 3 - Distribuição espacial dos casos no período 01/04/2020-15/04/2020

Mapa 4 - Distribuição espacial dos casos no período 16/04/2020-30/04/2020

G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 . 87
CARTOGRAFANDO SEGREGAÇÃO NA PANDEMIA: A GEOGRAFIA DAS AUSÊNCIAS E O SEU PAPEL NA PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTIC OS

Mapa 5 - População não-branca por setor censitário

A ausência da variável “raça” só consegue relativos aos logradouros, seria possível, por
ser minimamente compensada quando utilizamos exemplo, gerar um mapa de calor que permitisse
outra base de dados. A invisibilização racial no maior precisão quando sobreposto aos dados
Brasil e a ausência dessa variável nos dados da de raça por setor censitário do IBGE. É por esta
prefeitura se remetem ao problema do racismo razão que os mapas elaborados sobre a pandemia
estrutural (ALMEIDA, 2018) – sendo essa uma das do COVID-19 não são elucidativos sobre um
chaves possíveis na leitura do problema. perfil racial mais apurado da doença no espaço.
Embora a escala do município, quando Sabe-se que a doença se espalhou para áreas de
utilizado o recorte do setor censitário para o população majoritariamente preta e parda e sabe-
levantamento de dados, já denote o padrão racial se também que são estes quem mais morrem em
segregador da cidade, é no recorte das “zonas” relação aos brancos (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
ou APs que o padrão socioespacial racial da 2020). Contudo, os dados não mostram onde os
urbanização evidencia-se. É neste recorte que diagnosticados com a doença estão no território
a segregação de pretos e pardos em favelas é e qual é o impacto diferenciado da pandemia nas
explicitada quando comparada com a presença de favelas e nas áreas não-favelizadas. A Zona Sul é
brancos em áreas consideradas não-favelizadas um caso bastante expressivo do problema, mas
dos bairros. Veja o Mapa racial de número 6 da AP bairros periféfricos como Bangu e Jacarepaguá,
2.1, que compreende a Zona Sul carioca. ambos na Zona Oeste, ou os bairros da Tijuca
Nos mapas que mostramos anteriormente e da Ilha do Governador, ambos na Zona Norte,
sobre a distribuição espacial dos casos, os círculos entre outros inúmeros exemplos que poderiam
que representam o quantitativo de diagnósticos ser apontados, também possuem áreas de
e óbitos são concêntricos ao polígono de cada segregação racial com predomínio de pretos e
bairro, pois não é possível identificar internamente pardos em favelas e de brancos em seu entorno
quais são os locais mais afetados pela doença. (IBGE, 2012)4.
Com uma maior exatidão em relação aos dados

88 G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 .
TAT I A N A D E S O U Z A F E R R E I R A / E D U A R D O D E O L I V E I R A R O D R I G U E S

Mapa 6 - População negra por setor censitário

Por todos esses elementos, embora não CONSIDERAÇÕES FINAIS


tenha sido possível explorar junto aos estudantes
a visualização espacial e racial mais precisa O presente artigo objetivou refletir sobre
da doença na metrópole carioca, foi possível o processo de construção social dos dados
estabelecer, por outro lado, uma reflexão sobre estatísticos na sua relação com uma prática
como a ausência pode ser tomada enquanto fundamental do trabalho docente: a produção de
objeto na produção de conhecimento. Nesse materiais didáticos. Procuramos mostrar, através
pequeno exercício crítico, sua geografização nos da sugestão de uma geografia das ausências,
ajudou a refletir não somente sobre os processos que dimensões aparentemente sem visibilidade
de urbanização e segregação no Rio de Janeiro, em um mapa podem ser problematizadas
como também, de maneira mais geral, sobre pela consideração dos processos político-
alguns problemas de ordem político-metodológica metodológicos ligados à produção dos dados
na produção estatística. Perceber algumas que servem de insumo para sua construção.
dimensões desse processo de construção social No caso da prática descrita em específico,
dos dados no mostra assim que a dificuldade trabalhamos com os dados fornecidos pela
relacionada à notificação não ocorre apenas prefeitura do Rio de Janeiro com o objetivo de
pela baixa testagem, pela carência de recursos e analisar o espraiamento do COVID-19 sob a chave
profissionais ou pelo intervalo entre o diagnóstico da segregação. Como mostrado, duas variáveis
e a finalização de seu registro no sistema de saúde fundamentais se apesentaram problemáticas
(RIBEIRO e OLIVEIRA, 2020). A subnotificação, a nesse processo: a “raça” e o “local de moradia”.
ausência de variáveis ou a escala de produção Foi através de um olhar sobre a forma como
dos dados é também tributária de elementos de esses dados foram construídos (ou mesmo
ordem política que recaem sobre qual “realidade” da sua completa omissão) que percebemos a
deseja-se representar. necessidade de transformar justamente a ausência
em uma categoria analítica capaz de produzir

G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 . 89
CARTOGRAFANDO SEGREGAÇÃO NA PANDEMIA: A GEOGRAFIA DAS AUSÊNCIAS E O SEU PAPEL NA PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTIC OS

também conhecimentos a serem debatidos NOTAS


junto aos nossos estudantes. Sugerimos assim
a ausência não enquanto algo que esconda um 1
Disponível em: <www.data.rio> Acesso em: 20 maio 2020.

problema. Pelo contrário: ela pode ainda torná-lo 2


As variáveis utilizadas pela prefeitura eram: classificação final; data
mais explícito. de notificação; data de início dos sintomas; bairro de residência/
estadia; área de planejamento da residência/estadia; sexo;
Por outro lado, a impossibilidade de faixa etária; evolução; data de atualização. Em muitas delas as
acompanhar a espacialização detalhada do informações estavam ausentes.
COVID-19 denota que as próprias políticas 3
Os mapas utilizam a regionalização oficial do município em Área
públicas são, muitas vezes, marcadas por lacunas de Planejamento (AP). No material disponibilizado aos estudantes,
houve um debate sobre as regiões e a regionalização em diferentes
registradas também nos dados estatísticos que
escalas, bem como sobre as regionalizações informais que por
as subsidiam. Longe de ser um deslize, falha vezes são mais utilizadas do que as oficiais, como é o caso próprio
ou mesmo um desvio normativo praticado pelo da cidade do Rio, onde a divisão por zonas é mais difundida do que
a divisão por áreas. No material, assim como neste artigo, à título de
Estado, a ausência pode ser, como argumentam
melhor compreensão dos estudantes optamos por utilizar os dois
Das & Poole (2004), a própria política pensada formatos de regionalização.
e produzida por esse mesmo Estado. Tal ponto 4
Enquanto a prefeitura do Rio omite a variável “raça” de seus dados,
nos remete ao que Souza Lima (2015) chama a o estudo de Baqui et al. (2020, p. 1-2) aponta que não somente a
atenção sobre a impossibilidade de definirmos o condição racial é o segundo fator de risco mais importante no Brasil
logo após a idade, como também que as regiões Norte e Nordeste
Estado enquanto um objeto material dotado de apresentam maiores comorbidades à doença do que o Centro-Sul.
racionalidade própria e de coerência sistêmica. O único desvio no padrão regional de vulnerabilidade, segundo o
O Estado é, sobretudo, um processo dinâmico e estudo, foi justamente o Rio de Janeiro, uma vez que suas condições
de risco se assemelham a estados como Pernambuco e Amazonas
inconcluso de formação que acontece também sob por conta da maior vulnerabilidade de pretos e pardos à pandemia.
uma perspectiva também performativa, de maneira
a construir e desconstruir permanentemente as
realidades da vida cotidiana. Sua legitimidade
tem a todo momento que ser reafirmada, e
a produção dos dados estatísticos, como
procuramos mostrar, se configura enquanto uma
das tecnologias mais poderosas na conformação
dos discursos criadores de diferentes “realidades”
que embasam suas ações.
Neste sentido, compreender o
conhecimento enquanto parte de um processo
inventivo animado por relações de poder
(FOUCAULT, 2003, p. 17) é compreendê-lo,
precisamente, enquanto a centelha gerada pelo
“faiscar de espadas desembainhadas” apontadas
outrora por Nietzsche (2008, p.16). No âmbito
do debate sugerido pelo artigo, isto significa
pensar, em outras palavras, na  construção
social dos dados através de uma dimensão
simultaneamente política e metodológica. Isso
nos parece um exercício fundamental na disputa
sobre os sentidos do conhecimento que estão
presentes na sala de aula em nosso cotidiano
enquanto docentes em Geografia. 

90 G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 .
TAT I A N A D E S O U Z A F E R R E I R A / E D U A R D O D E O L I V E I R A R O D R I G U E S

REFERÊNCIAS

ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana do Rio de Janeiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos. 2013. 156p.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Cartografia social da Amazônia: os significados de território e o rito de passagem da
‘proteção’ ao ‘protecionismo’. In: SIFFERT, N.; CARDOSO, M.; MAGALHÃES, W. de A.; LASTRES, H. M. M. Um olhar territorial
para o desenvolvimento: Amazônia. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2014. p. 350-369.

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento. 2018. 204p.

ALVES, Domingos. Estimativa de casos de COVID-19. Portal COVID-19 Brasil: Disponível em: <https://ciis.fmrp.usp.br/covid19-
subnotificacao/>. Acesso em: 20 maio 2020.

BAQUI, P.; BICA, I.; MARRA, V.; ERCOLE, A.; VAN DER SCHAAR, M. Ethnic and regional variations in hospital mortality from
COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. The Lancet, v. 8, issue 8, p. e1018-e1026, aug. 2020.

CASTRO, Iná Elias de. Escala e pesquisa na geografia. Problema ou solução? Espaço Aberto, PPGG-UFRJ, v. 4, n. 1, p. 87-100,
jan./jun. 2014.

DAS, Veena & POOLE, Deborah. State and Its Margins: Comparative Ethnographies. In: DAS, Veena & POOLE, Deborah (Org.).
Anthropology in the Margins of the State. Nova Déli: Oxford University Press, 2004. p. 3-34.

FILHO, Herculano Barreto. Covid: mortes avançam em favelas e superam 3ª cidade com mais óbitos no RJ. Portal Uol, Rio
de Janeiro, 10 mai. 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/10/coronavirus-
mortes-em-favelas-do-rio-aumentam-oito-vezes-em-um-mes.htm>. Acesso em: 11 maio 2020.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora. 2003. 158p.

______. O nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 590p.

______. Microfísica do poder. 10ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra. 2019. 431p.

G1. Casos de coronavírus e número de mortes no Brasil em 5 de junho. Portal G1, Brasil, 5 jun. 2020a. Disponível em: <https://
g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/05/casos-de-coronavirus-e-numero-de-mortes-no-brasil-em-5-de-junho.
ghtml>. Acesso em: 05 jun. 2020.

______. Cartórios registram aumento de 1.035% nas mortes por síndrome respiratória. Portal G1, 28 abr. 2020b. Disponível
em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/04/28/cartorios-registram-aumento-de-1035percent-nas-mortes-por-
sindrome-respiratoria.ghtml>. Acesso em: 05 jun. 2020.

GRANER, Fábio. Verba para o Censo tem corte de 87,2% do Orçamento. Valor Econômico, Brasília, 07 maio 2019. Disponível
em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/05/07/verba-para-o-censo-tem-corte-de-872-do-orcamento.ghtml>. Acesso
em: 01 jun. 2020.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE. Metodologia do Censo Demográfico 2000. Rio de Janeiro:
IBGE, 2003.

______. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.

______. Avaliação da qualidade de dados geoespaciais. Manuais técnicos em Geociências nº13. Coordenação de Cartografia.
Rio de Janeiro: IBGE, 2017.

G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 . 91
CARTOGRAFANDO SEGREGAÇÃO NA PANDEMIA: A GEOGRAFIA DAS AUSÊNCIAS E O SEU PAPEL NA PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTIC OS

JESUS, Suzana C. de. Educação e tecnologias digitais em tempos de pandemia. Boletins Cientistas Sociais e o coronavírus,
ANPOCS, n. 41, p. 1-5, 2020.

KANT DE LIMA, Roberto. A polícia na cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro: InEAC/
UFF, 2019.

LIMA, Átila de M. Precarização docente, EAD e expansão do capital na educação: correlações com a portaria nº 343/2020 do
MEC em virtude da pandemia do COVID-19. Boletins Cientistas Sociais e o coronavírus, ANPOCS, n. 41, p. 5-8, 2020.

MAIA, Gustavo e GULLINO, Daniel. Sem provas, Bolsonaro questiona número de mortos por Covid-19 e fala em fraude para ‘uso
político’. O Globo, Brasília, 27 mar. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/sem-provas-bolsonaro-questiona-
numero-de-mortos-por-covid-19-fala-em-fraude-para-uso-politico-24333952>. Acesso em: 01 jun. 2020.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. São Paulo: n-1 edições. 2018. 72p.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim epidemiológico, n. 11, Brasília, 17 abr. 2020. Disponível em: <https://portalarquivos.saude.
gov.br/images/pdf/2020/April/18/2020-04-17---BE11---Boletim-do-COE-21h.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2020.

NIETZSCHE, Friedrich W. A filosofia na idade trágica dos gregos. Textos Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 2008. 112 p.

OLIVEIRA, Luiz Antonio Pinto de; SIMÕES, Celso Cardoso da Silva. O IBGE e as pesquisas populacionais. Revista Brasileira
de Estudos da População, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 291-302, 2005.

PARAGUASSU, Lisandra. Apesar de trégua, Bolsonaro contraria Mandetta e insiste em uso amplo da cloroquina. Reuters, Brasília,
7 abr. 2020. Disponível em: <https://br.reuters.com/article/idBRKBN21P3FS-OBRTP>. Acesso em: 3 jun. 2020.

PASSOS, Ursula. Professores, pais e entidades procuram Justiça contra obrigatoriedade do ensino remoto. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 1 maio 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/05/professores-pais-e-entidades-
procuram-justica-contra-obrigatoriedade-do-ensino-remoto.shtml>. Acesso em: 1 jun. 2020.

QUEIROZ, Christina. A dimensão da pandemia. Revista Pesquisa FAPESP, São Paulo, 29 maio 2020. Disponível em: <https://
revistapesquisa.fapesp.br/a-dimensao-da-pandemia/>. Acesso em: 1 jun. 2020.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. Territórios da sociedade, impulsos globais e pensamento analítico: por uma cartografia da ação.
Revista Tamoios, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 3-12, jan./jun. 2012. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.
php/tamoios/article/view/3295>. Acesso em: 29 mai. 2020.

RIBEIRO, Ludmila; OLIVEIRA, Valéria. O que os registros de homicídios nos ensinam sobre os dados de mortalidade por Covid-19.
DADOS: Revista de ciências sociais, Rio de Janeiro, IESP, 21 abr. 2020. Disponível em: <http://dados.iesp.uerj.br/registros-
homicidios/>. Acesso em 7 maio 2020.

ROSA, Isaac Gabriel Gayer Fialho da. Temos uma crise no currículo brasileiro? Sobre a BNCC, Geni e o Zepelim e cortinas de
fumaça. Giramundo, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4. p. 15-28, jul./dez. 2015.

ROSE, Nikolas. Governing by numbers: figuring out democracy. Accounting Organizations and Society, v. 16, n. 7, p. 673-692,
1991.

SILVA, Cátia Antônia da (Org.). Cartografia da ação e movimentos da sociedade: desafios das experiências urbanas. Rio de
Janeiro: Lamparina. 2011. 200p.

SOUZA E SILVA, J. N. de. Investigações sobre os recenseamentos da população geral do Imperio e de cada província de per
si tentados desde os tempos coloniaes até hoje. Relatório do Ministério dos Negócios do Império. Anexo D. Rio de Janeiro:

92 G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 .
TAT I A N A D E S O U Z A F E R R E I R A / E D U A R D O D E O L I V E I R A R O D R I G U E S

Typ. Nacional, 1870. 167p. Reimpresso em edição fac-similada, São Paulo, IPE/USP, 1986.

SOUZA LIMA, Antônio Carlos. A Antropologia e o Estado no Brasil: breves notas acerca de uma relação complexa. In: FRANCH,
M.; ANDRADE, M.; AMORIM, L. (Org.). Antropologia em novos campos de atuação: debates e tensões. João Pessoa: Mídia
Gráfica Editora, 2015. p. 23-39.

TRIOLA, Mário F. Introdução à Estatística. 10ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008. 722p.

VILELA, Pedro Rafael. Vírus vai atingir 70% da população, diz Bolsonaro. Empresa Brasileira de Comunicação, 28 abr. 2020.
Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-04/virus-vai-atingir-70-da-populacao-diz-bolsonaro>.
Acesso em: 29 maio 2020.

G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 7 , N . 1 3 , P. 7 9 - 9 3 , J A N . / J U N . 2 0 2 0 . 93

Você também pode gostar