Você está na página 1de 12

FEIRA DO GUARÁ - PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE 112

FEIRA DO GUARÁ - PATRIMÔNIO


CULTURAL DA CIDADE
FEIRA DO GUARÁ: CULTURAL HERITAGE

Luís Gustavo Ferrarini Venturelli

Luís Gustavo possui graduação em História pelo Centro Universitário de Brasília


(2000) e Especialização em docência do ensino superior pelo Instituto Educa-
cional Superior Brasileiro (IDESB). Atualmente é professor da Secretaria de Es-
tado de Educação do Distrito Federal. Foi Coordenador do Ensino Fundamental
CEF 301, Recanto das Emas, em 2013, e foi Coordenador da regional de Ensino
Regional Recanto das Emas no ano de 2014. Contato: gugavent@mail.com.

RESUMO ABSTRACT

O objetivo deste texto é apresentar uma relação The purpose of this article is to present conecctions
entre o campo de pesquisa histórica e a cultura between patrimonial research and local culture. The
local, tendo como proposta a abertura de estudos structure of this paper recognizes the city as cultural
diante do reconhecimento patrimonial da cidade heritage. Guará has been changed a lot since the
definido pela sua própria história. Os apontamento “mutirão”. Nowadays this city became very expensive
feitos perpassam desde o início do Guará, o Mutirão, despite other cities in Distrito Federal. Besides, is the
até a atualidade, quando a cidade se destaca por house of one of the most famous market called ‘Feira
ter um dos metros quadrados mais valorizados do Guará’. This market represents a very important
do Distrito Federal. Considera a feira que pode location and can be used for social researches.
ser considerada um bom exemplo de objeto de This essay aims to delimit and expose the rich field
pesquisa histórica por dois sentidos; aproxima developments at other times in the area of ​​History
o conteúdo de sala de aula dos estudantes por and Patrimonial Education.
ter referencial prático. É considerada a pesquisa
bibliográfica como ponto de partida de trabalho Keywords: Popular Market, Cultural Heritage,
que pode ter mais desdobramentos em outros Culture, Research
momentos.

Palavras-chaves: Feira do Guará, Pesquisa histórica,


Patrimônio, Cultura.

https://doi.org/10.18830/issn2238-362X.v10.n2.2020.09
INTRODUÇÃO (BRASIL, 1988). Com base nesses marcos 1
constitucionais, a LDB, no Inciso IV de seu Os grupos de RAs são
Artigo 9º, afirma que cabe à União estabelecer, assim definidos e
O ofício do historiador é também buscar traços em colaboração com os Estados, o Distrito caracterizados: • Grupo
de um tempo passado, tentando recolher pistas Federal e os Municípios, competências e 1 (alta renda): Plano
documentais que podem nos aproximar do que diretrizes para a Educação Infantil, o Ensino Piloto, Jardim Botânico,
Fundamental e o Ensino Médio, que nortearão Lago Norte, Lago Sul,
foi, já que o passado não pode ser compreendido
os currículos e seus conteúdos mínimos, de Park Way e Sudoeste/
em toda a sua complexidade. O historiador busca modo a assegurar formação básica comum Octogonal. Em 2018, a
compreender o passado, muitas vezes por meio (BRASIL, 2018, p.10). população desse grupo
de textos e documentos, às vezes por fotos, por era de 384.913 pessoas,
artesanato, pergaminhos, os chamados fósseis. com renda domiciliar
Pode compreender também o estudo de edifícios A BNCC propõe atender às finalidades por média de R$ 15.622; •
e templos como marcas. Nessa esteira, a História meio de conteúdos fixados que permitam o Grupo 2 (média-alta
passa a trabalhar com patrimônios. O patrimônio desenvolvimento de habilidades e competências, renda): Águas Claras,
refletindo as recentes modificações no texto que Candangolândia,
histórico-cultural pode ser utilizado como ponte
Cruzeiro, Gama, Guará,
para aproximar os estudantes dos conteúdos inclui a alteração feita em 2017, pela lei Federal
Núcleo Bandeirante,
de História. A ideia do presente trabalho é fazer nº 13.415/2017, em seu artigo 35, que fala sobre Sobradinho, Sobradinho
dar abertura para uma proposta de estudo objetivos de aprendizagem, e no artigo 36 que II, Taguatinga e Vicente
interdisciplinar que aproxima a prática pedagógica versa sobre objetivos de aprendizagens: Pires. Em 2018, a
com a Educação Patrimonial. população desse
A relação entre o que é básico-comum grupo era de 916.651
Neste trabalho optou-se por um recorte espacial, e o que é diverso é retomada no Artigo pessoas, com renda
A história da cidade do Guará e sua relação com a 26 da LDB, que determina que os domiciliar média de
feira, pois demonstra grande potencial na relação
currículos da Educação Infantil, do R$ 7.266; • Grupo 3
Ensino Fundamental e do Ensino Médio (média-baixa renda):
da aprendizagem cultural. A localidade representou devem ter base nacional comum, a Brazlândia, Ceilândia,
lócus de perceptível mudança durante a ser complementada, em cada sistema Planaltina, Riacho Fundo,
constituição de um assentamento de trabalhadores de ensino e em cada estabelecimento Riacho Fundo II, SIA,
do Setor de Indústria e Abastecimento, quanto escolar, por uma parte diversificada, Samambaia, Santa Maria
demonstrou transformação acompanhando o exigida pelas características regionais e São Sebastião. Em
estabelecimento econômico da cidade. A feira e locais da sociedade, da cultura, da 2018, a população desse
economia e dos educandos (BRASIL, grupo era de 1.269.601
acompanhou a transformação do assentamento 1996; ênfase adicionada). Essa orientação pessoas, com renda
até a consolidação em bairro de classe média, induziu à concepção do conhecimento domiciliar média de R$
burguesa, com um dos maiores índices de renda da curricular contextualizado pela realidade 3.101; • Grupo 4 (baixa
capital, segundo o PDAD 2018, CODEPLAN1. local, social e individual da escola e do renda): Fercal, Itapoã,
seu alunado. (BRASIL, 2018, p.11) Paranoá, Recanto das
Uma das funções sociais da escola é despertar a Emas, SCIA–Estrutural
curiosidade orientada pelo método racional. O e Varjão. Em 2018, a
Currículo em Movimento da Educação Básica (2014) A Educação pode ser transformadora quando população desse grupo
propõe que isso aconteça pela multiplicidade incide no reconhecimento e na (re)construção era de 310.689 pessoas,
de conhecimentos. Conhecer é (re)conhecer, com renda domiciliar
semiótica de textos e na multiculturalidade, média de R$ 2.472;
possibilitando ao estudante, por exemplo, subsidia a criação de meios para a ação futura,
entender seu local de origem adotando uma transformando a realidade. Nesse sentido, o
aprendizagem mais humana e atraente diante conhecer se atrela ao revolucionar.
das mudanças sociais que acontecem de forma
acelerada. Assim, pode propiciar ao estudante ser Quanto mais se problematizam os educandos,
como seres no mundo e com o mundo,
curioso, obter conhecimento, ser protagonista na
tanto mais se sentirão desafiados. Tão
sua própria realidade. mais desafiados, quanto mais obrigados
a responder ao desafio. Desafiados,
A recente promulgação da Base Nacional Comum compreendem o desafio na própria ação
Curricular (BNCC) surge como uma proposta de de captá-lo. Mas, precisamente porque
integrar conhecimentos mínimos de aprendizagens captam o desafio como um problema em
que sejam significativos para os estudantes. Deste suas conexões com outros, num plano de
modo, os currículos, à luz da BNCC, visam dar totalidade e não como algo petrificado, a
cumprimento a princípios constitucionais: compreensão resultante tende a tornar-
se crescentemente crítica, por isto, cada
Para atender a tais finalidades no âmbito da vez mais desalienada. Através dela, que
educação escolar, a Carta Constitucional, no provoca novas compreensões de novos
Artigo 210, já reconhece a necessidade de que desafios, que vão surgindo no processo da
sejam “fixados conteúdos mínimos para o resposta, se vão reconhecendo, mais e mais,
ensino fundamental, de maneira a assegurar como compromisso. Assim é que se dá, o
formação básica comum e respeito aos valores reconhecimento que engaja. (FREIRE, 1997,
culturais e artísticos, nacionais e regionais” p. 45)

FEIRA DO GUARÁ - PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE 114


2 O Currículo em Movimento da Educação Básica, tomando decisões baseadas em argumentos
Esta concepção enquanto proposta da Secretaria de Estado de e fontes de natureza científica. (BRASIL, 2018,
“bancária” implica, Educação do Distrito Federal (SEEDF), vem sendo p.572)
além dos interesses pensado e atualizado desde 2014 sob a proposta
já referidos, em de transformação das práticas escolares ao
outros aspectos A habilidade EM13CHS104 aponta que se deve:
apresentar flexibilização de tempos e espaços
que envolvem sua “Analisar objetos e vestígios da cultura material
falsa visão dos durante o processo de ensino-aprendizagem em e imaterial de modo a identificar conhecimentos,
homens. Aspectos contraposição às práticas escolares tradicionais, valores, crenças e práticas que caracterizam a
ora explicitados, ora educação bancária (FREIRE, 1997).2 O grande identidade e a diversidade cultural de diferentes
não, em sua prática. desafio é exposto ao se tentar sugerir formatos
Sugere uma dicotomia sociedades inseridas no tempo e no espaço”
mais atraentes, principalmente relacionando o (BRASIL, 2018). Ainda, a Competência 4 aponta
inexistente homens- conteúdo de História com a educação patrimonial.
mundo. Homens alicerces seguros para afirmação de que a educação
simplesmente no Nesse sentido, o ato de conhecer é dar voz à quem patrimonial está alinhada com a nova realidade da
mundo e não com instrumentaliza os artefatos necessários para essa educação brasileira quando propõe:
o mundo e com os empreitada, é estar propenso a criar condições
outros. Homens atualizar as premissas da democracia e do exercício Analisar as relações de produção, capital e
espectadores e da cidadania. trabalho em diferentes territórios, contextos
não recriadores do e culturas, discutindo o papel dessas
mundo. Concebe a sua Na seara das DCNEM, os conhecimentos relações na construção, consolidação e
consciência como algo devem ser integrados a partir dos transformação das sociedades. Nessa
especializado neles e eixos ciência, tecnologia, cultura e competência específica, pretende-se que os
não aos homens como mundo do trabalho. Assim, a pesquisa estudantes compreendam o significado de
“corpos conscientes”. deverá constituir um dos princípios trabalho em diferentes culturas e sociedades,
A consciência como do cotidiano escolar, tanto na prática suas especificidades e os processos de
se fosse alguma seção docente, amplificando o conceito estratificação social caracterizados por uma
“dentro” dos homens, freireano de professor pesquisador, maior ou menor desigualdade econômico-
mecanicistamente quanto na rotina dos estudantes, social e participação política. (BRASIL, 2018,
compartimentada, proporcionando-lhes uma nova forma p.572)
passivamente aberta de olhar os acontecimentos a sua
ao mundo que a volta, desenvolvendo a capacidade
irá “enchendo” de opinar, pensar e usufruir dos novos Não destoando do sentido que a habilidade
de realidade. conhecimentos. (DISTRITO FEDERAL, EM13CHS401 pretende, a saber, “Identificar e
Uma consciência 2014, p. 17)
continente a receber analisar as relações entre sujeitos, grupos, classes
permanentemente sociais e sociedades com culturas distintas diante
os depósitos que o A prática educacional no Distrito Federal, das transformações técnicas, tecnológicas e
mundo lhe faz, e que a partir dos pressupostos do Currículo (DISTRITO informacionais e das novas formas de trabalho ao
se vão transformando longo do tempo, em diferentes espaços (urbanos e
em seus conteúdos. FEDERAL, 2014), deve refletir a união entre o
conhecimento teórico e prática. A prática se rurais) e contextos” (BRASIL, 2018).
Como se os homens
fossem uma presa torna revolucionária nesse sentido, uma vez Nesse ínterim, os objetivos das Ciências Humanas
do mundo e este que a revolução dentro da escola subverte uma estão estabelecidos no Currículo em Movimento
um eterno caçador hierarquização do conhecimento ao reposicionar os
daqueles que tivesse buscando essa relação de ensino aprendizagem
professores e os alunos num processo dialético de existente na BNCC, de forma focada no
por distração “enchê-
los” de pedaços seus aprendizado conjunto; possibilitando a formação protagonismo social:
(FREIRE, 1997, p..40) de estudantes que se reconhecem cidadãos e que
são protagonistas. Está aí a integração entre as A área de Ciências Humanas visa
habilidades e competências propostas na BNCC à tradução do conhecimento em
com os objetivos de aprendizagens do Currículo, “consciências críticas e criativas”,
refletidos no entendimento e prática da Educação principalmente no que concerne à
Patrimonial e no conteúdo escolar de História. formação de um “protagonismo social”
responsável. Para tanto, é necessário
Essa proposta está alicerçada à intenção traçar um conjunto de objetivos que
permitam colocar em prática este projeto
da BNCC que dá subsídios que apoiam a ideia de
de construção e formação da cidadania,
integrar a pesquisa patrimonial às aulas regulares. que devem subsidiar o planejamento
A Competência 1 de humanidades diz: interdisciplinar da e na área de Ciências
Humanas:
Analisar processos políticos, econômicos, a) Possibilitar que o estudante entenda
sociais, ambientais e culturais nos âmbitos a sociedade em que vive como fruto da
local, regional, nacional e mundial em ação humana, que se faz e refaz num
diferentes tempos, a partir da pluralidade de processo dotado de historicidade.
procedimentos epistemológicos, científicos
e tecnológicos, de modo a compreender e b) Permitir ao estudante compreender
posicionar-se criticamente em relação a eles, o espaço ocupado pela sociedade como
considerando diferentes pontos de vista e espaço construído e modificado a partir

115 REVISTA ESTÉTICA E SEMIÓTICA | Volume 10 |Número 2


de suas interferências, entendendo-se senhores feudais. Não havia demanda, a produção 3
também como produto dessas relações. era de subsistência. Para o autor, somente uma Açúcar em meados
c) Proporcionar experiências para que demanda ‘sustentada’ criaria condições para do século VII foi que
o estudante compreenda os processos o comércio, principalmente para as feiras. As o açúcar foi tomando
de socialização e coletividade, características mais
cruzadas e a reabertura de caminhos seguros
conscientizando-se dos diferentes próximas do produto
para passagem de mercadorias modificaram de hoje Por volta
espaços de interação social e refletindo
sobre as individualidades e diversidades essa realidade definitivamente; as feiras e burgos de 650, os exércitos
culturais e individuais neles presentes. passaram a ser essenciais na transformação árabes conquistarama
política da Idade Média europeia. Enquanto que Pérsia,região em que
d) Possibilitar que o estudante reflita e
o feudo era autossustentável, as propriedades existiam avançados
problematize mudanças advindas das
pertenciam apenas aos nobres e ao clero, os estudos referentes ao
tecnologias no desenvolvimento e na
desenvolvimento de
estruturação da sociedade. produtos de primeira necessidade eram produzidos
técnicasquefacilitariam
e) Propiciar ao estudante o e consumidos em seus territórios. o transporte do
desenvolvimento da consciência crítica açúcar através do
sobre conhecimento, razão e realidade O século XII viu o comércio se desenvolver com as seu refinamento. Ao
sócio-histórica, cultural e política. constantes idas e vindas do oriente que criaram dominarem esse espaço,
f) Promover a apropriação de ferramentas postos comerciais, nos quais as excursões se os árabes tiveram o
tecnológicas para a produção do alimentavam e se reabasteciam. E não só isso, as interesse de plantar
conhecimento da área. próprias cruzadas traziam produtos que acabaram mudas de cana em
g) Instigar o estudante a entender as caindo no gosto dos europeus, como o açúcar, outras regiões em
que o cultivo também
relações de produção e consumo como por exemplo3. Cidades como Veneza, Gênova, e
potencializadoras das desigualdades pudesse prosperar. Na
Pisa eram cidades de mercadores e buscavam Baixa Idade Média, o
sociais e o papel das ideologias nesse alimentar seus clientes nessas idas e vindas.
contexto. (BRASÍLIA, 2014, p.59) desenvolvimento das
Consequentemente, surgia um personagem que Cruzadas abriu portas
arrecadava e juntava o dinheiro, o comerciante, para que os cristãos
O Currículo em Movimento reconhece a necessidade que se inseriu nas cruzadas e voltava com os viessem a conhecer um
produtos desejados. É nesse contexto que entre os pouco melhor o produto
de uma Educação que humaniza, que prepara para já consumido pelos
a vida em sociedade. Uma forma possível de iniciar séculos XII e XV as grandes feiras se estabelecem árabes muçulmanos. No
a mudança é desenvolver a reflexão como hábito, segundo Huberman (2010): próprio Velho Mundo,
possibilitando articular e modificar a realidade em a presença dos árabes
que se está inserido; para tanto, se faz necessário o É importante observar a diferença entre os na Península Ibérica
mercados locais semanais dos primeiros permitiu que, já no
(re)conhecimento da espacialidade e historicidade tempos da Idade Média, e essas grandes século XII, os espanhóis
das localidades nas quais se constroem as próprias feiras do século XII ao XV. Os mercados eram de Andaluzia também
vidas. É nesse sentido que o presente trabalho pequenos, negociando com produtores locais, conhecessem o doce
busca apontar a articulação e explicar o significado em sua maioria agrícolas. As feiras, ao contrário produto. SOUSA, Rainer
da feira do Guará, enquanto monumento histórico, eram imensas, e negociavam mercadorias Gonçalves. História do
simbólico para a cidade, e compreender, o por atacado, que proviam de todos os açúcar; Brasil Escola.
processo de formação da cidade, exemplificar o pontos do mundo conhecido, eram o centro Disponível em: <https://
distribuidor onde os grandes mercadores, que brasilescola.uol.com.br/
processo de surgimento das feiras historicamente se diferenciavam dos pequenos revendedores curiosidades/historias-
e sua característica transformadora. Assim, se errantes e artesãos locais, compravam e acucar.htm>. Acesso em:
crê estabelecer a relação entre o processo de vendiam mercadoria estrangeira procedentes 23 de agosto de 2020.
criação com a transformação do perfil da cidade, do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul
explorando os aspectos culturais existentes ainda (HUBERMAN, 2010, p.18).
hodiernos. Fazendo isso, se alcança a pretensão
de relacionar a questão patrimonial aos conteúdos
Huberman (2010) afirma que as novas cidades
escolares e seus potenciais pedagógicos.
que surgiram do processo de reavivamento do
comércio. Uma ‘nova vida’ que apresentava uma
nova dinâmica a partir dos burgos, cidades sem
vínculos de senhores feudais, com estruturas, leis
CONTEXTUALIZANDO e segurança próprias, tudo em função da atividade
HISTORICAMENTE O dos novos atores que surgiram ali e se fortaleceram
nesses lugares: os burgueses. Essa organização
SURGIMENTO DAS FEIRAS acontecia simultaneamente e próxima aos feudos
que continuavam organizados com todo tipo de
Feira é local de troca e de cultura, sua importância restrição de poderes tradicionais, ligados na posse
aumentou após a reabertura das rotas comerciais. da terra. Nos burgos o poder era determinado por
Segundo Huberman (2010), alguns motivos outro fator advindo das trocas, a posse do dinheiro.
impediam a produção de excedente como os
controles da produção pelos bispos e pelos As trocas não aconteciam sem vínculos, existiam
as associações comerciais, ou corporações. Era

FEIRA DO GUARÁ - PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE 116


4 possível vender ou hipotecar propriedades terras pesquisa, pela comunicação e pela troca podendo
No contexto da Roma nos burgos, sem pedir permissão ou pagar taxas ser estimulada. Segundo MONTEIRO, GRUNBERG
Antiga, o espaço rural aos senhores feudais, a liberdade ganhava forma. e HORTA (1997), no Guia Básico da Educação
era conhecido como Essas populações reviviam os tempos das urbes4 Patrimonial, a produção de novos conhecimentos
agir e no espaço urbano da antiguidade. Definitivamente, o burgo era mais favorece a valorização e conservação desses
era chamado de urbs
(a palavra urbe deriva dinâmico que o campo que a estrutura do feudo. E bens culturais. É importante o entendimento
precisamente deste como tudo isso se liga à Feira do Guará? dos elementos históricos locais e não apenas
vocábulo). Atualmente os conhecimentos formais dos livros. Por mais
seguimos lidando com que tenha acontecido um processo de mudança
esta diferença geográfica conteudista nos materiais de apoio dos estudos de
e costumamos dizer História, ainda é interessante uma nova abordagem
que uma pessoa EDUCAÇÃO PATRIMONIAL:
que suavize o hiato entre a aula e a aprendizagem
mora no campo ou na
cidade. As cidades da
AS FEIRAS ENQUANTO O significativa. Buscar sair dos personagens heroicos,
Roma Antiga foram PATRIMÔNIO IMATERIAL LOCAL. das datas, dos feriados, e apresentar os locais de
concebidas com critérios vivências dos estudantes, parece ser interessante;
de utilidade. Do ponto são recursos necessários e podem ser utilizados
de vista urbanístico, A Educação Patrimonial é um tipo de
pelos professores, tornando o conteúdo mais
apresentavam uma multiletramento5 quando situa a pessoa em contato
próximos dos alunos.
estrutura retangular e com a cultura material e imaterial, por meio de
reticular em forma de uma ‘alfabetização cultural’, transformando sua Neste processo dinâmico de socialização
tabuleiro de xadrez.  percepção. Ela possibilita a leitura da realidade em que se aprende a fazer parte de um
(Disponível em: <https://
construída e constituída em que se vive, cria grupo social, o indivíduo constrói a própria
etimologia.com.br/
uma relação de significado e de importância ao identidade. Reconhecer que todos os povos
espaco-rural-urbano/>
transformar a pessoa em leitor desse mundo produzem cultura e que cada um tem uma
Acesso em: 08/07/2020
forma diferente de se expressar é aceitar
20:00) vivido. Assim, o objeto passa a se comunicar com
a diversidade cultural. Este conceito nos
a própria pessoa pela sua carga histórico-social. permite ter uma visão mais ampla do
Dentro dessa proposta, se faz necessário que haja processo histórico, reconhecendo que não
na escola a promoção de projetos que tenham existem culturas mais importantes do que
capacidade de mobilização e de que criar interesse outras. (MONTEIRO; GRUNBERG; HORTA, 1997,
nos estudantes, por meio da significação de suas p.5)
próprias localidades.

Os edifícios são construções humanas resultantes Descobrir até onde a Educação Patrimonial pode
de um processo imagético, que conflui criatividade, auxiliar uma redescoberta da curiosidade histórica
resolução de problemas, evolução tecnológica por parte dos estudantes torna-se uma proposta
e social. Enquanto obra humana, são resultados válida. O aspecto multicultural do Currículo pode
de processos, podem ser considerados arte, e ser apontado e alcançado de vários modos:
servem de fonte primária para o estudo histórico
conectando a região aos citadinos e às atividades A educação patrimonial consiste em provocar
situações de aprendizado sobre o processo
desenvolvidas. Os edifícios representam cultural e seus produtos e manifestações que
conhecimento, possuindo histórias que acontecem despertem nos alunos o interesse em resolver
toda hora, seja pela negociação, pelos vínculos de questões significativas para sua própria vida,
solidariedade, pelas disputas, ou pela identidade pessoal e coletiva. O patrimônio cultural e o
do espaço e de quem o ocupa. meio ambiente histórico em que está inserido
oferecem oportunidades de provocar nos alunos
A alfabetização cultural proporciona a constituição sentimentos de surpresa e de curiosidade,
de vínculos em quem estuda. O vínculo se dá levando-os a querer conhecer mais sobre eles.
durante o diálogo entre o pesquisador e objeto de (MONTEIRO; GRUNBERG; HORTA, 1999, P .6)

5 Em termos gerais, uma prática pedagógica realizada na perspectiva dos multiletramentos deve considerar
o mundo e a escola pela lente da diversidade, da multiplicidade de linguagens e de culturas. Desse modo, os
conteúdos trabalhados precisam favorecer a formação de uma sociedade multiletrada, que seria, em resumo,
aquela em que homens e mulheres desempenham de forma bem sucedida práticas letradas com propósitos
culturais específicos; cidadãos que entendessem o papel que as diversas linguagens desempenham em
diferentes esferas sociais (escolar, científica, artística, institucional, de entretenimento etc.). Há, ainda, outro
aspecto a ser levado em conta quando se pauta um currículo na Pedagogia dos Multiletramentos: o processo
de formação de cidadãos críticos em relação às diversas realidades e pontos de vista construídos em diversos
textos que circulam na sociedade. (BRASÍLIA, 2014, p.20)

117 REVISTA ESTÉTICA E SEMIÓTICA | Volume 10 |Número 2


O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico a diversidade de um saber tradicional que 5
Nacional (Iphan) lançou um importante obra aparecia sob forma de literatura, objetos, Os argumentos
sobre a relação das feiras com a história da própria artesanatos de barro, couro, madeira, utilizados para essa
além dos produtos rurais tradicionalmente sua classificação como
cidade, se mostrando uma união indivisível. A
comercializados em uma feira. (MADEIRA, Patrimônio Imaterial
obra, A cidade e suas feiras: um estudo sobre as VELOSO, 2007, p.20) se baseiam todos na
feiras permanentes de Brasília, MADEIRA e VELOSO ideia da relevância da
(2007), faz essa relação. As autoras analisam a feira como forma social
relação das feiras com as cidades, afirmam ser As feiras não representam o comércio e o significativa na dinâmica
impossível que uma não tenha favorecido a outra, abastecimento no sentido estrito da compra e de um importante
lançam mãos de exemplos no Rio de Janeiro, venda, pela simples troca certamente a geração segmento da cultura
de Caruaru e de Salvador. As feiras são partes de riqueza é essencial. Afinal, o crescimento brasileira (MADEIRA,
VELOSO, 2007, p 21)
constituintes das cidades, as suprindo com os vinculado ao desenvolvimento econômico é o que
produtos vindos do velho continente. No Rio de qualquer localidade visa como plano. Contudo,
Janeiro, a feira acontecia no paço imperial: isso não explica outra riqueza que se desenvolve
entre suas bancas, a riqueza interpessoal da
Tão antiga quanto a própria cidade do Rio cultural imaterial5. A cultura dos que ali se instalam
de Janeiro é a tradição das feiras. Feiras para comprar e vender, os hábitos alimentares, a
de Peixe, no cais do porto, em frente ao
escolha dos ingredientes, as músicas regionais, a
Paço Imperial, onde chegavam os barcos
de volta da pesca. A venda de alimentos escolha dos dias e horários, as trocas e vínculos
nas ruas e praças do Rio de Janeiro era interpessoais, o reconhecimento dos iguais devem
bastante generalizada e informal. Toda a ser levando em conta. Pode-se afirmar que são
iconografia da época é eloquente sobre lugares de sociabilidade, onde as diversas classes
como a cidade era um grande mercado. sociais se comunicam e interagem. O Iphan
Vendia-se de tudo: vassouras, esteiras, caracterizou essa interação pela relevância social
tonéis de água potável, tecidos, aves e
animais vivos ou abatidos. Encontravam- na promoção da cultura brasileira:
se também em vários pontos as
aglomerações de negras quitandeiras Para além do ato do consumo, do
que, acocoradas ao ar livre, vendiam individualismo e da ênfase no tempo
seus produtos – frutas, bolos, quitutes, presente da cultura contemporânea,
cocadas – dispostos em tabuleiros, como as feiras permitem aos habitantes de
pode ser visto nas aquarelas de Debret.” uma cidade que encontrem algum
(MADEIRA, VELOSO, 2007, p.19) lugar de ancoragem e não vivam como
transeuntes anônimos em um não-
lugar (Augé, 1994). O sentimento de
No Rio, a feira acontecia em apenas um dia, seus pertencimento a uma localidade torna-
se possível no ato de compartilhar uma
dias de riqueza e crescimento foram no decorrer história e um mesmo gosto estético,
do século XVII devido à movimentação intensa nos culinário, musical, de referências
portos da cidade. Em Salvador, o projeto da feira culturais, o que representa um
estava desenhado no projeto da cidade, inclusive patrimônio valioso para numerosos
este previa dois dias de feira para abastecimento. grupos que nas feiras encontram um
Mas a grande estrela das feiras brasileiras é a feira lugar para transmissão de tradições.
Tradição– entendida em seu sentido
de Caruaru, talvez, a maior e mais antiga feira do
etimológico, “dizer através de” – diz
Brasil. respeito a um repertório de saberes e
práticas que são transmitidos de geração
A Feira de Caruaru condensa muitos sentidos. a geração, e remete a valores ancestrais
Ela é uma das mais antigas e talvez a maior comuns. (MADEIRA, VELOSO, 2007, p 23)
de todas no Brasil – mais de um milhão
de pessoas circulam ali por ano –, celeiro
da cultura popular, tendo no cordel, na
xilogravura e na cerâmica imaginária alguns POR UMA HISTÓRIA DA
dos pontos mais evidentes de seu interesse
para o patrimônio nacional. A feira e a cidade CULTURA
nasceram juntas, sendo impossível dissociar
suas histórias – desde o século XVII, no adro
de uma capela dedicada a Nossa Senhora da Estudar história pode ser uma viagem fascinante
Conceição, em uma sesmaria doada a José desde que o foco das aprendizagens seja proposto
Rodrigues de Jesus, fazenda onde surgiu essa de forma clara. Quem não quer saber mais sobre sua
feira livre. Por situar-se na rota do gado, a cidade, sua escola, sua rua? Quem não quer saber
ser comercializado entre o sertão e o litoral,
por que as ruas ganham os nomes que possuem?
teve grande importância como mediadora de
duas tradições que ali se encontravam. Com o De quem são esses nomes? Questionamentos
tempo, tornou-se um lugar de referência e de desse tipo podem ser um bom ponto de partida
divulgação da cultura popular, evidenciando para a discussão sobre a relação entre o conteúdo

FEIRA DO GUARÁ - PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE 118


formal de sala de aula com a produção de pesquisa e consolidam sua concepção de mundo,
conformam as consciências, viabilizam
significativa. Existe um potencial relevante para a
a convivência, transformam a natureza,
proposição de projetos ligados à História, dando constroem a sociedade e a história.
aos professores e estudantes argumentos para (BRASIL, 2014, p.17)
projetos de pesquisa científica.

O processo de definição de temas e áreas que É importante fazer definições de estratégias


encantem os estudantes, para além de pesquisa capazes de despertar paixões pelos estudos de
formal, visa criar novos vínculos e interesses. É História nos estudantes. Nesse sentido, se propõe
certo que estes estudantes têm casa e família, um tipo de relação de ensino aprendizagem pela
trazem neles mesmos potenciais de reflexão, pesquisa, em uma busca pela história cultural
são seres históricos na perspectiva da cultura local. A História local, ou História cultural, permite
imaterial. Mas os estudantes sabem disso? O o (re)conhecimento de uma perspectiva de história
exemplo da feira tem como mote mostrar as ‘interna’ em relação ao do grupo da localidade:
influências da arquitetura ou a utilidade da feira
no desenvolvimento regional, por exemplo. Existe A abordagem interna trata da presente
a possibilidade de se propor ao estudante pensar renovação da história cultural como uma
acerca de sua realidade e de sua história. reação às tentativas anteriores de estudar o
passado que deixavam de fora algo ao mesmo
A área de Ciências Humanas, no Ensino tempo difícil e importante de se compreender.
Médio, engloba as Ciências que envolvem “a De acordo com esse ponto de vista, o
compreensão do significado da identidade, historiador cultural abarca artes do passado
da sociedade e da cultura” e diz respeito que outros historiadores não conseguem
aos conhecimentos de História, Geografia, alcançar. A ênfase em “culturas” inteiras
Sociologia e Filosofia. Em termos gerais, oferece uma saída para a atual fragmentação
o objeto de estudo da área de Ciências da disciplina em especialistas de história de
Humanas são os seres humanos em suas população, diplomacia, mulheres, ideias,
relações espaciais, econômicas, sociais, negócios, guerra e assim por diante (BURKE,
culturais, políticas, ambientais e científico- 2004, p.6).
tecnológicas nas diversas temporalidades.
(BRASÍLIA, 2014, p.58)
O campo do estudo visto como permeado de dados
significativos pode significar uma importante
O projeto pedagógico deve contemplar interesses passagem no entendimento do como se estuda a
da própria comunidade de forma intencional e História em âmbito escolar, ultrapassa o simples
planejada, principalmente sob a intencionalidade decorar de conteúdo, desvinculado de sentido, e
da superação da História tão somente como alcança a reflexão do fato histórico. É pelo refletir
processo de estudo de datas comemorativas, ou que se apropria da realidade e dos fatos que se
de heróis, p.ex.; deve superar o pressuposto de inter-relacionam. A reflexão e a apreensão dos
eurocentrismo, possibilitando a contemplação processos, nessa perspectiva, fornecem conteúdos
de questões que tenham referências próprias e significantes. Assim, o processo de aprendizagem
próximas dos estudantes. Não é necessário ir muito em História passa a ter uma carga de conteúdo
longe para valorizar a própria História local como simbólico reconhecido e entendido.
matriz de cultura. Pode-se oportunizar a reflexão
de si, favorecendo o desempenho dos estudantes O terreno comum dos historiadores culturais
pode ser descrito como a preocupação com
ao incentivar e o estimular prática que os incluem
o simbólico e suas interpretações. Símbolos,
como agentes atuantes, convivendo com situações conscientes ou não, podem ser encontrados
geradoras criadas nessa interação pessoal com em todos os lugares, da arte à vida cotidiana,
o local. Isso possibilita legitimar posturas sociais mas a abordagem do passado em termos
e o protagonismo de vida. O Currículo busca de simbolismo é apenas uma entre outras.
estabelecer meios de empoderamento pela (BURKE, 2004, p. 7)
cidadania.

O princípio educativo do trabalho leva- Bittencourt (2009), em Ensino de História


nos a compreendê-lo como todas as Fundamentos, afirma algo semelhante a Peter
formas de ação que os seres humanos Burke quando diz que a História se uniu em
desenvolvem para construir as condições dado momento com a Antropologia. Assim, essa
que asseguram sua sobrevivência. união trouxe o modelo da Antropologia como
Implica reconhecê-lo como possibilidade de pesquisa histórica, quando há
responsável pela formação humana
e pela constituição da sociedade. É uma valorização de campos, de grupos humanos
pelo trabalho que os seres humanos que foram deixados de lado pela teleologia
produzem conhecimento, desenvolvem positivista. Novos métodos de investigação

119 REVISTA ESTÉTICA E SEMIÓTICA | Volume 10 |Número 2


histórica podem dar novos ares à relação entre planejada para superar o modelo de crescimento
ensino e aprendizagem para o nosso campo. desordenado. Como projeto urbanístico, Brasília
Existe uma vinculação entre a micro-história e a adquiriu o status de cartão postal, quase uma
macro-história, para Bittencourt insere-se uma pedra fundamental do Brasil moderno e industrial,
perspectiva de outros grupos sociais que não a em contraposição ao modelo de Brasil rural.
dos ‘donos do poder’ tradicionais, a perspectiva
sociocultural. Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos (2013),
traz uma narrativa nesse sentido, quando aponta
A história regional passou a servir como o surgimento de uma sociedade diferente daquela
possibilidade de trabalho de pesquisa e muitas estabelecida e organizada de forma rural. A
hipóteses podem ser formuladas para debates. A proposta de Brasília parece se aproximar dessa
teleologia das explicações no macro estrutural promessa de urbanização, sociedade moderna, e
tem o distanciamento dos estudantes muitas de novos espaços de poder, como descreve FREYRE
vezes como marca, mesmo quando falando (2013).
de Brasil. Em vez da Europa, temos a mesma
estrutura explicativa, trocam-se os Estados do VELOSO e MADEIRA (2007) ressalta que:
velho continente por locais como São Paulo, Rio
Acreditava-se, então, que o urbanismo e
de Janeiro e Minas Gerais. Reproduzindo temáticas a arquitetura teriam o poder de modelar
distantes de uma população que é migrante no hábitos e práticas, criar novos estilos de
Distrito Federal, as coisas e pessoas, histórias e vida e de convivência, sendo assim tomados
condições vividas, a construção da identidade como vetores de modernização e de
local são deixadas em segundo plano no decorrer desenvolvimento. Em Brasília, mostra-se de
da prática pedagógica. A relação de pertencimento forma evidente a intenção de planejamento
generalizado da vida social. As funções
deve ser entendida como a “associação entre
principais da cidade – morar, trabalhar,
cotidiano e histórias da vida dos alunos que divertir-se e circular – se dão de forma regular,
possibilita contextualizar essa vivência em uma previsível, setorizada, organizadas por
vida em sociedade e articular a história individual siglas. Apesar da racionalidade que presidiu
a uma história coletiva (BITTENCOURT, 2005, p. a ocupação dos espaços –a construção
170)”. Assim, a História local pode favorecer a da “cidade de pedra” –, muitos destes
identificação dos espaços de convivência, casa, dispositivos do planejamento urbano foram
alterados pelas populações que vieram de
comunidade, trabalho, lazer problemas atuais diversas partes do Brasil para viver, trabalhar
por meio do levantamento de memórias. Nesse e construir a “cidade de carne”. 2 Essas
sentido, as memórias podem e devem estar diferentes populações imprimiram padrões
vinculadas à pesquisa favorecendo o desenrolar da culturais trazidos de sua região de origem,
questão científica, mesmo não tendo seu registro dotando a cidade de núcleos e redes de
histórico propriamente dito. As memórias são relações que passaram a ser referência para
base do processo de reconhecimento identitário, as muitas levas de migrantes que, desde
então, não pararam de chegar à cidade. As
quer sejam encaminhadas pela oralidade ou pelo alterações sobre o plano piloto surgiram
reconhecimento dos lugares e dos vestígios de espontaneamente e foram aos poucos se
que a história se serve; assim, os monumentos sedimentando. (p.9)
e edifícios públicos ou particulares tornam-se
objeto de estudo que devem ser considerados.
Cada lugar é singular, mas também é parte do todo Nesse sentido, as feiras surgem na cidade planejada
(BITTENCOURT, 2005, p. 172), seja pelas relações de por necessidade dos que aqui vieram para construir
produção estabelecidas ali, suas dinâmicas, e/ou a capital. Entretanto, a racionalidade modernista
como se dá os usos dos espaços em determinado. não as previu porque não estava no escopo do
planejamento suprir as necessidades de diversos
tipos das pessoas e famílias que vieram trabalhar.
A utopia da cidade suplantou os vários saberes
tradicionais relegando-os ao esquecimento, senão,
BRASÍLIA E A FEIRA DO ficaram por um tempo nas interações necessárias às
GUARÁ: UMA HISTÓRIA, DOIS estabelecidas nos barracões. As necessidades mais
MOMENTOS comuns e básicas ainda existiam, tinham que comer,
beber, se vestir, gastar seu dinheiro em algum tipo
de lazer durante o período da construção. O espírito
A Feira do Guará está inserida em diversos de sociabilidade vai se organizar, em detrimento da
contextos de políticas públicas. Brasília, enquanto vontade oficial ‘esquecedora’. A feira, mesmo assim,
conceito de interiorização do país, representava vai se orienta pela ação dos sapateiros, costureiras,
o sonho de um Brasil mais moderno. A cidade foi panelas, verdureiros.

FEIRA DO GUARÁ - PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE 120


6 A feira desponta assim como um molhados’ que, aos poucos, têm sido substituídos.
Para começar o laboratório vivo, evidenciando como A substituição de artigos regionais e de artesanato
mutirão, Rogério Freitas a cultura tradicional se mantém, se por produtos industrializados trouxe ao mesmo
reuniu cerca de 100 modifica e se transmite de forma tempo um processo de descaracterização da
interessados dentro dinâmica, em um contexto urbano.
A feira instaura um lugar em que feira. Até mesmo o perfil do feirante tem mudado,
da Novacap, e entre
eles escolheu 30 para formas horizontais de sociabilidade o que ressalta uma substituição de laços de
começar o mutirão e de solidariedades são possíveis. familiaridade e solidariedade por relações de
“Depois que todos Espaço público, isto é, uma construção exploração imobiliária. Outro fator pertinente, que
viram o que estávamos social, lugar em que os indivíduos se pode ser considerado durante alguma pesquisa
fazendo, recebemos transformam em sujeitos capazes de de reconhecimento da feira enquanto patrimônio,
tantas adesões que exercer sua palavra, lugar que incita a é a evolução dos valores relativos aos pontos
tivemos que deixar de interação, por meio de associações, redes
de parentesco, vizinhança ou, um estudo comerciais. Percebe-se aí alguma relação de poder
cadastrar muita gente”.
À medida que o mutirão sobre as feiras permanentes de Brasília conflituosa no estabelecimento da localidade
ia tomando corpo, de profissionais. É ainda como espaço enquanto discurso, vez ou outra é manifesto pelas
as modificações iam público construído pela experiência necessidades e pujanças naturais, outra está sob
aparecendo, inclusive dos próprios feirantes que a feira ganha o princípio da especulação imobiliária. MARTINS
por sugestão dos significado como lugar de trocas, que (2004) ressalta que:
próprios participantes. dota de um sentido de pertencimento
O início do mutirão uma comunidade específica, os feirantes, É preciso considerar que a própria cultura
foi muito difícil. Havia que participou ativamente da história é um motivo de conflito de interesses nas
uma descrença geral no de construção de cada feira. (Veloso e sociedades contemporâneas, um conflito
projeto, inclusive dentro Madeira, 2007, p.10) pela sua definição, pelo seu controle,
da própria equipe do pelos benefícios que pode assegurar. Esse
governo do DF, (Jornal do embate de forças pode ser percebido na
Guará, 2020) A Feira do Guará, data do ano de 1969, acompa- disputa por bancas na Feira do Guará,
nhou o desenvolvimento da cidade bem de perto. antes destinadas a feirantes pioneiras,
Sua localização original era próxima ao Setor de hoje comercializadas como propriedade
Indústria e Abastecimento (SIA). O Guará foi pen- privada (mesmo sem ser). O progresso do
sado em função do SIA, como bairro que ofereceria Guará gerou riqueza e desenvolvimento,
moradia para os trabalhadores do setor e da che- mas como contraponto se tem a exclusão
social e a expulsão dos ambulantes atuais
gada de funcionários públicos de renda menor que para a periferia da Feira, uma vez que a
seriam transferidos para a nova capital, em compa- exploração imobiliária atingiu também o
7
ração com a renda dos ocupantes do Plano Piloto. valor do “ponto” comercial das bancas,
Quando cada fileira Nesse contexto, foi organizado o mutirão6, “O local presença do mercado. (p.33)
(conjunto) de casa
mais próximo e mais adequado seria o da Vila Gua-
ficava pronto, Rogério
reunia os participantes rá, ao lado do córrego do mesmo nome e ao lado
do Parque.7”. (Jornal do Guará, 2020). Segundo levantamento do Iphan apontado pelo
e colocava o nome deles
num inseparável chapéu Jornal do Guará (2020), a Feira do Guará possui
de palha. À medida que A feira acontecia durante os finais de semanas em 526 bancas ocupadas por confecções, juntas
iam sendo sorteados, os meio a obras, poeira, tablados, ou seja, de forma representam mais de 70% faturamentos. Ainda,
participantes do mutirão precária, tudo era muito amontoado. Em 1965, há uma quantidade de restaurantes e pastelarias
escolhiam suas casas. a feira passa a ser montada onde está localizado que são oriundas da própria localidade, nas quais
(Jornal do Guará, 2020) supermercado Pão de Açúcar atualmente, a população pode degustar a imensa variedade de
segundo a pesquisadora (MARTINS, 2004). Ainda, sabores regionais. As peixarias podem também
aponta que a feira passou por quatro outros representar o perfil de preferência dos moradores,
locais antes se estabelecer no lugar atual, no lote se destacando com peixes frescos que alimentam
do Hospital do Guará I, depois na QI 07 (sendo restaurantes da região. Há de se pensar de como o
que foi abandonada por causa da quantidade contexto feira ainda possui artefatos significantes
de ratazanas que incidia no último local) e na oriundos das relações sociais locais que persistem,
QI 17 do Guará II. Em 1985, o galpão onde ela se para além das complexas relações econômicas
encontra atualmente foi entregue. A feira, agora advindas pelo setor imobiliário.
permanente, possui estrutura semelhante até hoje.
Em 2000, foi permitida a construção de lojas em Se Brasília representava esse novo horizonte, e em
alvenaria, dando fim ao processo de montagem e sua história foi definindo o espaço geográfico, ao
desmontagem, o que facilitou que a feira passasse mesmo tempo foi afastando a população que a
a funcionar durante os dias úteis da semana. construiu de seu centro para a periferia. É curioso
notar que mesmo um local de representação
Essa última mudança favoreceu também o cultural, apresentou traços indicativos desse
significativo estabelecimento do setor de mesmo processo.
confecções em relação ao famosos ‘secos e

121 REVISTA ESTÉTICA E SEMIÓTICA | Volume 10 |Número 2


CONSIDERAÇÕES FINAIS Sendo as feiras locais, tradicionalmente pontos de
artesanato e de afirmação cultural da comunidade,
ainda assim, muitos outros processos podem
Relacionar a Educação Patrimonial com as determinar sua transformação de acordo com
aulas e projetos em História, considerando as interesses sociais, políticos e econômicos. O
competências e habilidades definidas BNCC, os processo de Educação, baseada em conteúdos de
objetivos de aprendizagens do Currículo, se mostra sala de aula, a partir de um olhar da juventude,
uma estratégia interessante. As aprendizagens pode apontar para a importância do patrimônio
estão voltadas para o desenvolvimento de imaterial e material que a feira do Guará representa.
conhecimentos por meio da introdução de novos Pode-se alcançar tal intento (re)estabelecendo
conceitos significativos. Assim, a Educação vínculos sociocomunitários que ainda estão lá,
Patrimonial utilizaria nas aulas projetos que mas que precisam de uma (re)pactuação pelas
podem propor aprendizagem por meio da cultura novas gerações.
popular local; provocando situações e aguçando
a curiosidade frente ao ambiente histórico local,
despertando interesse em questões da própria
comunidade.

FEIRA DO GUARÁ - PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE 122


REFERÊNCIAS

ARRUDA, José Jobson de A. História Antiga e GRUNBERG, Evelina; HORTA, Maria Lourdes
Medieval. São Paulo: Editora Ática, 1990. Parreira; MONTEIRO, Adriane Queiroz; Guia
Básico da Educação Patrimonial, Museu Imperial/
BURKE, Peter. O que é história cultural? 2a Ed Trad.: DEPROM – IPHAC -MINC, 1999
SÉRGIO GOES DE PAULA. Rio de Janeiro: Editora
Zahar. 2004. HISTÓRIA DO GUARÁ. Jornal do Guará Brasília,
Disponível em: <https://jornaldoguara.com.br/
___________. Variedades de História Cultural. São historia-do-guara>.
Paulo-Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000
HUBERMAN, Léo. História da Riqueza do Homem.
BRASIL, Base Nacional Comum Curricular, 2018. 22a Ed. Trad.: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro:LTC,
DISTRITO FEDERAL, Currículo em Movimento Ensino 2010.
Médio, 2014. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade.
BRASIL ESCOLA, Histórias do Açúcar. Disponível em: Fundamentos de Metodologia Científica. 3. Ed. São
<https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/ Paulo: Atlas, 1991.
historias-acucar.htm> MADEIRA, Angélica; VELOZO, Mariza. A cidade e
FEIRA DO GUARA. In Wikipédia. Disponível suas feiras: um estudo sobre as feiras permanentes
em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Feira_do_ de Brasília. DF: IPHAN / 15a Superintendência
Guar%C3%A1#:~:text=Uma%20das%20feiras%20 Regional, 2007.
mais%20conhecidas,pertencia%20aos%20 MARTINS, Fernanda Ramos. Diga-me o que comes
funcion%C3%A1rios%20da%20Novacap> e eu te direi quem és: como a gastronomia, na feira
ETIMOLOGIA. Disponível em: <https://etimologia. do Guará, revela-se locus de identidade, Monografia
com.br/espaco-rural-urbano/> especialização em Turismo e Hospitalidade –
Universidade de Brasília. Centro de Excelência em
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17a ed. São Turismo. Brasília, 2004.
Paulo: Editora Paz e Terra, 1987.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos;


Decadência do Patriarcado rural e desenvolvimento
urbano. 1ª Ed. São Paulo: Global, 2013.

123 REVISTA ESTÉTICA E SEMIÓTICA | Volume 10 |Número 2

Você também pode gostar