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CIRCUITOS EXPERIMENTAIS:

ENSAIO DE ANÁLISE PROCESSUAL-PRAGMÁTICA DE


UM “WEB-DOCUMENTÁRIO” BRASILEIRO

Bráulio de Britto Neves

Ensaio apresentado com trabalho final da Disciplina “Documentário Brasileiro


Contemporâneo”, ministrada pelo prof. Dr. Francisco Elinaldo Teixeira no segundo
semestre letivo de 2007 na Universidade Estadual de Campinas – Curso de Pós-
Graduação em Multimeios – Cinema Documentário

Recorrentemente, nas conversas sobre arte contemporânea e sobre documentários de


arte, deparamo-nos na situação de termos de nos haver com os dilemas do uso do
cinema documentário no contexto da arte contemporânea. Associado à efetuação de
obras de arte imateriais, efêmeras, ambientais, esses documentários ficam como que
a nos indagar até que ponto haveria sentido em realizar trabalhos artísticos desse
jaez, ou mesmo se eles seriam factíveis enquanto enunciações, deixasse sua
efetuação de ser assistida pela câmera do documentário. Por outro lado, postos nas
situações, em geral institucionais, de apreciação desses documentários de trabalhos
de arte, os vemos lado a lado com enunciações de outra classe, que tomam o cinema
como expressão visual ele próprio, aquelas imagens que pretendem uma efetuação
estética imediata, na própria situação de apreciação. O que nos força, ao retornar aos
documentários de trabalhos artísticos, à observação das feições da retórica e da
fatura próprias da enunciação documentária.

UM PUNHADO DE QUESTÕES

• Até que ponto o trabalho de arte imaterial/efêmero é um “conteúdo”, independe


da sua documentação cinematográfica 1?

• O documentário de arte é um mero “veículo” ou “registro” dos trabalhos de


arte? Além dessa “transparência”, este documentário é uma obra de arte, e até
que ponto tem efeitos autônomos em relação aos eventos que ela registra e
difunde?

1
“Cinema” é aqui identificado às formas de comunicação através de imagens corporificadas através de
recursos tecnológicos modernos projetados para a produção de experiências compartilhadas de
“percepção como expressão” [Sobchack] visual e acústica.

1
• Será que a apreciação pública, a crítica, a teoria e a própria prática artística
dependem, são avassaladas pela lógica da produção do documentário? Se isso
for, justifica-se um juizo adorniano, denunciando e lamentando a “degradação
da experiência” nas práticas da produção, difusão e apreciação de trabalhos de
arte imateriais e/ou efêmeros?

• Admitindo-se - como parece o caso - a validade do documentário como obra e


como ferramenta de circulação de enunciações artísticas, haveria alguma
correlação entre “eixos éticos” das práticas do documentário (no sentido dado
por Fernão Ramos: ) e certas as características e interesses dos trabalhos de
arte efêmera e imaterial?

Não bastasse a dificuldade dos problemas semiótico-estéticos, quase sempre


conduzem a outros, no plano político:

Como o mínimo de autonomia, demandada tanto pelo documentário experimental


quanto pela arte contemporânea, pode ser sustentada no contexto de hoje, em que as
instituições ligadas à arte (escolas, museus, galerias, salas de exibição, empresas de
produção cultural), seguindo agendas corporativas (das burocracias privadas e
estatais) traduzem formas sofisticadas de dominação, através do controle (Foucault,
Deleuze, Gallaway) e de “captura de fluxos desejantes” (Deleuze, Negri e Lazzarato)?

Por que os públicos, os constituídos por produtores de arte contemporânea e os por


documentaristas, mantém-se afastados, com comunicação lateral precária, apesar de
serem óbvias (a) a convergência de temas e procedimentos, (b) a confrontação com a
esfera institucional (de fontes de financiamento, burocracias controladoras dos
circuitos) e (c) as demandas construção de espaços de visibilidade de públicos
perenes (públicos “intérpretes” e “concernidos”)2?

Que práticas e que ferramentas são pertinentes para os esforços de auto-controle dos
espaços de visibilidade do documentário experimental e da arte imaterial/efêmera por
seus públicos (propositores, participantes, intérpretes)?

2
“Publico intérprete” é aquele público que, em se encontrando em situações sociais orientadas à
apreciação das enunciações públicas, as realizam intencionalmente. “Público concernido” seria aquele
que habitualmente procura participar destas situações e que pode eventualmente se envolver na
produção de enunciações e/ou de situações de apreciação pública.

2
Na ambição de sair deste jângal de questões, o presente ensaio almeja, como
correlatos: (a) desenvolver de um conjunto de procedimentos de análise fílmica a
partir do de paradigma processual-pragmático; e (b) realizar a análise de um
documentário de uma performance artística a partir dos seus procedimentos de
produção e difusão. Nosso intuito, a esse respeito, é identificar as peculiaridades
retóricas3 desse documentário, seguindo o trabalho de rastrear eixos de
transformação do documentário brasileiro contemporâneo conexos às novas condições
de produção, difusão e apreciação, associadas à digitalização e a telematização desses
três processos.

O fenômeno empírico em exame é precioso para o a construção do instrumental


analítico e para a ànálise fílmica, no sentido em que ele próprio é uma crítica
processual ao circuito institucional da arte contemporânea embarcado em um projeto
de outra lógica de difusão da arte: o “Parangolé” de Lourival “Cuquinha” difundido
através dos “Circuitos Autodependentes em Vídeo”. O “Parangolé” de Cuquilha,é algo
como uma paráfrase sarcástica do “Pierre Menard, autor do Quixote” de Borges
aplicada ao parangolé “Guevaluta Baby” de Hélio Oiticica. Os “circuitos
autodependentes em vídeo” é uma mostra itinerante e independente (ou melhor
“autodependente”) produzida e organizada pelo artista curitibano Newton Goto, que
coletou pelo Brasil filmes e vídeos, novos e antigas, de todo tipo de de arte efêmera e
imaterial. Ao fazer duplamente, no documentário e na mostra, críticas contundentes
ao circuito institucional da arte contemporânea, o “Parangolé” de Cuquinha (nos
Circuitos de Goto) já é prenhe de sua análise processual-pragmática, porque ambos
são processos e procedimentos de produção de sentido, para os quais seria pouco
congruente tratar como fatos, estados de coisas, conteúdos ou substâncias. Como se
verá, os produtores de arte experimental (Cuquinha, Goto e comparsas, incluindo este
pesquisador) não satisfeitos com a efetuação4 dos eventos feitos objeto dos
documentários adotam procedimentos ativistas de produção visando à retomada,

(Tratar os participantes dos processos comunicativos como “alvo” e mesmo como “receptores” sugere
uma de passividade dos públicos que, além de incconsistente em termos lógicos, corresponde cada vez
menos com a realidade dos procedimentos sociais concretos de interpretação das enunciações públicas.
3
O sentido específico que adotamos para o termo “retórica” é o de “causação semiótica”, ou seja: estudo
dos processos e das práticas de produção de sentido, sobre como os signos se configuram como
“eventos produtivos” na produção de outros signos (Hulswit, ??). O uso desse termo, neste ensaio,
recusa as percepções mais céticas da retórica como “arte do engano”, que habitam as polêmicas do
pensamento ocidental desde a crítica platônica aos sofistas.
4
Preferimos reservar o termo inglês “performance” para identificar o gênero artístico hodierno e aliviar o
texto de anglicismos como “performar” (ou seja, efetuar), a “performance” (como prática, efetuação),
“performer” (efetuador).

3
pelos artistas, documentaristas e apreciadores de arte, das condições da efetuação
dos espaços de visibilidade pública das obras.

A argumentação deste ensaio deverá percolar através dos seguintes tópicos:

1. apresentação do paradigma processual-pragmático e justificação da sua


pertinência como matriz para a análise fílmica do documentário
contemporâneo;

2. discussão da identificação do cinema documentário como classe natural

3. apresentação da hipótese da identificação da adesão a éticas do discurso como


distintiva do documentário.

4. a eclosão de “comunidades virtuais” e de circuitos independentes na ponta das


“mudanças estruturais” dos espaços de visibilidade pública habitados pelo
documentário associados à sua digitalização e telematízação (e, en passant, um
breve balanço dos enganos de boa parte dos cinema studies quanto ao impacto
das “mudanças de suporte”, do fotoquímico ao eletrônico analógico e deste ao
digital-telemático);

5. o desenvolvimento de procedimentos experimentais de análise fílmica do


documentário, a partir da sua abordagem etiológica, como processo aberto de
produção de sentido (e não como “conteúdo proposicional” ou “artefato”)
impulsionado por sucessivos (e recursivos) atos-eventos retóricos;

6. o exame analítico experimental do documentário “Parangolé”;

7. a discussão da coalescência de perspectivas entre as práticas e dilemas da arte


contemporânea, as condições da mediação telemático-digital dos espaços de
visibilidade pública e as possibilidades fornecidas pela perspectivação
pragmatico-processual destes fenômenos.

ACONTECIMENTOS, PROCESSOS, HÁBITOS

O que chamamos aqui de “paradigma processual-pragmático” [Debrock, Hulswit] é


um desenvolvimento bastante recente da filosofia ocidental, resultante da retomada
das formulações mais fulcrais do pragmatismo (original, do Metaphisycal Club5 e não

5
É o nome de um grupo de discussão informal na casa dos Peirce e ao qual acorriam filósofos, cientistas e
juristas em atividade nos meios acadêmicos de Boston entre 1871 e 1879. Partindo de indagações sobre
a fixação das crenças e “como tornar as idéias claras”, chegou-se (a origem do pragmatismo, com sóe
acontecer, é um tanto obscura) à estipulação nuclear de que sentido é hábito e que hábitos os há em
toda parte, estão difusos na natureza e, portanto o pensamento nem é privilégio humano, nem paira

4
esse mais recente e conhecido, da teoria dos atos de fala). Essa abordagem assenta o
conceito de hábito como fundamento unificador da produção de sentido humano e das
regularidades da natureza, o que é afirmado em formulações posteriores (e
parcialmente independentes) da “filosofia do processo” elaborado por Whitehead em
“Processo e Realidade”6. Trata-se, a rigor, da consolidação do projeto peirceano para
além dos limites da lógica e da fenomenologia, ampliando a validade da máxima
pragmática7 (de interesse epistemológico) para o âmbito ontológico. Debrock (2003)
propõe uma “definição estipulativa” da perspectiva filosófica processual-pragmática a
partir dos seguintes “proposições elementares”:

sobre a realidade. Esse achado parece ter sido, aliás, propiciado pela aproximação entre as indagações
da filosofia das ciências, sofrendo o recente impacto do evolucionismo darwiniano e os debates sobre a
interpretação e aplicação das leis e sobre a formação da jurisprudência. (
http://www.pragmatism.org/history/metaphysical_club.htm. )
6
O interesse de Deleuze pelo evenement [A Dobra, lógica do sentido] é, talvez, a referência familiar mais
antiga à discussão de Whitehead. A idéia de que o mundo não é a coleção dos fatos (Wittgenstein), mas
o conjunto de todos os eventos, e que além de todas os pontos de vista possíveis “a criatividade é o
último” e que a realidade não cessa de produzir o novo, inesperado, tem sido referência fundamental
para a crítica do pensamento moderno e das ciências, feito por [Deleuze] [Michel Serres] e [Bruno
Latour].
Talvez por influência do ceticismo neo-nominalista da semiótica francesa, estes autores, na melhor das
hipóteses tratam a semiótica peiceana como um utensílio taxonomico, tomando a repisada tríade ícone-
índice-símbolo como uma divisão de tipos de signos empíricos (e não uma distinção de funções
sígnicas). Graças aos pós-estruturalistas, a semeiotica vem há três ou quatro décadas sendo arrancada
do solo da ontologia pragmatista para enfeitar os vasos pós-estruturalistas, não permitindo que suas
suas implicações cosmologicas sejam apreciadas.
Para Latour, o prejuízo é particularmente grande, porque sua excelente abordagem etnometodológica
da produção de fatos científicos, perfeitamente consistente com as abordagens crítico-realistas sobre a
produção do sentido do cinema documentário (ao contrário do que pretende a manipulação de seu
argumento por Winston [in Renov, 1993: 37-57]) é solapada pelo ecletismo metodológico. Sua feroz
crítica aos auto-enganos do modernismo parece emasculada para a análise empírica, pois os modelos
de exame propostos só escapam do gen do cartesianismo (p. ex. no uso da narratologia estruturalista
para análise de processos inovação tecnológica e consolidação dos fatos científicos) ao preço de abrir
mão da formalização de procedimentos de análise, fazendo da “análise de controvérsias” que beira a
crônica jornalística.
7
“O verdadeiro sentido de qualquer produto do intelecto reside naquela determinação unitária que ele
venha a emprestar à conduta prática, sob toda e qualquer circunstância concebível, supondo-se que tal
conduta seja guiada pela reflexão levada a seu limite último” ('Additament,' comments on 'Neglected
Argument for the Reality of God', CP 6.490, c. 1910)
“...para que seja correto falar do ´sentido´ de um conceito, conclui-se que para alcançar o domínio
plano do seu sentido é preciso, em primeiro lugar, aprender a reconhecer o conceito sob qualquer
disfarce, através da extensiva familiaridade com exemplos dele. Mas isso, ao fim e ao cabo, não implica
em qualquer compreensão verz dele; de modos que será ainda preciso que façamos uma análise lógica
abstrata dele, nos seus elementos últimos, ou uma análise tão completa quanto pudermos alcançar.
Mas, mesmo assim, podemos ainda estar sem nenhuma compreensão vívida dele; e o único caminho
para competar o conhecimento sobre sua natureza é descobrir e recolhecer extamente quais hábitos de
conduta gerais a crença na verdade do conceito (para qualquer sujeito concebível e sob quaisquer
circunstâncias concebíveis) seriam razoavelmente desenvolvidos; quer dizer: quais hábitos últimos
resultariam de uma consideração suficiente desta verdade. É preciso aqui entender a palavra 'conduta',
no sentido mais lato. Se, por exemplo, a predicação de um dado conceito conduzir-nos a admitir que
uma dada forma de raciocínio concernente ao assunto do qual ele foi afirmado é válida, quando ela não

5
I - Princípio do evento: “Nada é, a menos que algo aconteça”, quer dizer, os
acontecimentos são anteriores aos entes, e são a sua fonte. Isso pode tanto sustentar
a posição de que estamos enganados ao acreditar na existencia dos seres, quanto
dizer que a experiência é explicada melhor através da perspectiva eventos.

II - Princípio da interação: “Nada acontece a menos que haja interação”. Embora


perfeitamente plausível em si, tomado em conjunto com o princípio do evento (I),
conduz ao postulado de que os seres se tornam o que são por suas interações,
emergem delas (o que recusa a crença, arraigada no pensamento ocidental, de que os
seres existam além das suas relações umas com as outras)

III - Princípio do processo: “Nada acontece isoladamente”, ou seja, a identificação de


eventos individuais é enganosa, pois estão sempre envolvidos com eventos anteriores
e subsequentes. O que conduz a três proposções explicativas complementares:

III.a – Princípio genético: “Tudo que acontece é feito para acontecer”, traduz o modo
consistente de expressar o princípio da causação, esclarecendo que “os eventos e
apenas eles tem causas” (DeBrock 2003:2) e que, se atribuímos causas à coisas e a
fatos, isso só é aceitável em virtude dos acontecimentos que neles estão implicados.

III.b – Princípio pragmático (ou operacional): “Nada acontece sem que faça algo
acontecer”, ou seja, só há eventos se houver a geração de diferenças. A despeito da
aparente tautologia, esse princípio manifesta a proposição de que os efeitos do que
acontece são parte dos acontecimentos: o que o evento é só é manifesto pelo que ele
descencadeia. Além disso, tomando este princípio em combinação com o princípio
genético, somos conduzidos ao princípio de conexão, segundo o qual todos eventos,
embora singulares, emergem a partir de eventos e fazem emergir eventos
subsequentes.

III.c – Princípio hereditário: “Nada acontece a menos que aconteça em conformidade


com alguma regra”, nos diz que as conexões entre os eventos ocorrem e são
percebidas pela condição de sua emergência se fazer conforme regras ou “hábitos”. É
o caráter recorrente, habitual, dos acontecimentos que os conecta entre si e que lhes
confere sua qualidade processual. Eventos não são apenas ocorrências enfileiradas em
cadeias causais, emergem de processos cujo cerne são as tendências imanentes do
universo (leis, hábitos, razões, pensamentos).

o seria de outra maneira, o reconhecimento desse efeito em nosso raciocinar seria, decididamente, um
hábito de conduta.

6
O rompimento com a tradição do pensamento ocidental8 fica claro aqui: se a
implicação (“se p, logo, q”) é implícita aos fenômenos naturais, a razão, a lógica e o
pensamento estão no seio da natureza (o que, por exemplo, proporciona um ótimo
ponto de partida para discutir as “máquinas de imagens” como “máquinas de
pensar”). Se os fenômenos naturais obedecem a hábitos que eles próprios
estabelecem, por exemplo, na gravitação, na evolução biológica ou no aparecimento
de “eixos ético-estilíticos” no documentário, o duradouro debate ocidental acerca da
relação entre “mente e matéria” fica com uma relevância próxima àquela sobre o do
sexo dos anjos. Segundo DeBrock, aliás, a origem e a consolidação dessas
postulações proviria principalmente das condições práticas da investigação científica
contemporânea, cujas recentes mudanças (do século XIX em diante) são muito mal
assistidas pela linguagem da ciência e da filosofia ocidentais modernas.9

Feito esse passei o pela cosmologia, retornemos à nossa principal “matéria”, o


documentário: por que interessa e o que seria uma abordagem pragmático-processual
do cinema documentário, mais especificamente, do documentário experimental?

Aparecem primeiro as vantagens para a espantosamente árida discussão da “definição


de documentário”, que pode então ser reativada segundo outras bases (que a afastem
dessa espécie de reencarnação do debate escolástico sobre os universais), tomando
os documentários como como processos e não como fatos ou substâncias.

Ao fornecer um modelo semiótico não-antropocentrico e não logocêntrico, que


respeita as peculiaridades semiósicas das imagens técnicas sem reduzir seu sua
materialidade a modelos derivados do discurso verbal e a escrita alfabética (que é a
força do argumento de [Christin]), uma semiótica pragmático-processual abre-se

8
Embora perfeitamente congruente com paradigmas de pensamento que enxergam a realidade como um
enovelar-se de relações em processos, caso do taoismo “filosófico” chinês, do budismo e do zen-
budismo. Isso não passou desapercebido por Peirce (CP 1.24, "Intended Characters of this Treatise,"
capítulo 1 da "Minute Logic", 1902) e por Whitehead (1978 [1929], 7), e é plausível que os classicos
chineses tenham lhes servido de inspiração (para dizer o mínimo).
9
DeBrock encontra convergência do pensamento tardio de Heidegger e Wittgenstein com a perspectiva
pragmático-processual.
Incluimos o pragmaticismo peirceano e a filosofia do processo (ou do organismo) whiteheadiano na
classe do “pensamento não-moderno” demarcado por Latour (para si mesmo e para seus companheiros
das Science Studies). É impressionante a correspondência entre as duas fraturas apontadas pelo autor
francês (entre humanidades e ciências naturais, entre teoria purificadora e práticas hibridizantes) e os
três modelos incompatíveis de causalidade utilizados pelo pensamento moderno (um baseado numa
ontologia substantiva das ciências humanas, de origem aristotélica, outro, na ontologia factual na maior
parte dos domínios das ciências “exatas”, de origem newtoniana, e uma mistura delas, no senso
comum) identificados por Hulswit (2002). A unificação peirceana obtida em “From Cause to Causation”,
porém, parece ainda ter sido ignorada pelos Science Studies, apesar do pragmatismo peirceano ser
conhecido por autores como Stangers [citação a Peirce em Penser avec Whitehead].

7
como percurso explicativo para a duradoura adesão dos procedimentos de produção
documentária à “imagem-câmera” (problema, segundo Ramos, não solucionado
plenamente pela abordagem analítica que da “asserção pressuposta”).

Por exemplo, se partirmos da máxima pragmática peirceana aceitando que o sentido


de um signo está no campo virtual de práticas deliberadas que este signo projete e
possa ocasionar em/para uma dada comunidade, e, portanto, se percebermos o
caráter enganoso de identificar o sentido de um signo (ou de uma classe deles) com
quaisquer definições verbais que se possa formular10, a tarefa de definição dos
domínios, gêneros, modos e estilos cinematográficos, perde muito do seu interesse.
Nesse caso, é muito mais pertinente compreender, na singular composição do
documentário e nas vicissitudes de sua difusão e apreciação por públicos reais, a
maneira como seu sentido emerge.

CINEMA DOCUMENTÁRIO COMO “CLASSE NATURAL”


Relativizar as definições formalizadas não nos deixa despidos de critérios de
identificação de conjuntos de práticas de discursivas no cinema, se lançarmos mão
dos conceitos de “classes naturais” e “classes artificiais”, os quais fornecem um
quadro epistemológico alternativo bem fundado.

“...coisas pertencem a uma mesma classe natural, não por causa de certas
qualidades (Primeiros), mas conforme uma essência metafísica que é uma
causa final (ou Terceiro). Portanto, as classes naturais peirceanas são
caracterizadas por (a) um caractere definidor, que é a causa final e (b) um
números de caracteres de classe ou carcteres empíricos teleologicamente
determinados (caracteres ETD); além disso, (C) os caracteres ETD dos
objetos de uma classe natural aglomeram-se em torno de valores médios; (d)
os caracteres ETD não são caracteres essenciais porque não são condições
nem necessárias, nem suficientes, para tornar algo um membro de uma
classe; (e) não há fronteira nítida entre classes naturais estreitamente
relacionadas; (f) classes naturais, embora bem reais, não são entidades
existentes; sua realidade é da natureza da possibilidade, não da actualidade.
(Hulswit 2002, 120-1)
Não deixamos de constatar que “domínios” ou “gêneros” cinemáticos (experimental,
ficcional, documetário), assim como a dos “modos” ou “eixos éticos”, têm consistência
como classes naturais, mas não precisamos mais de tirar categorias da cartola para
dar conta dos filmes híbridos, singulares ou inovadores, pois nada exige que as
enunciações cinematoráficas pertençam a apenas uma classe natural: na medida em
que um mesmo signo pode servir a vários propósitos e determinar efeitos de sentido
diversos. Isso conduz a questões interessantes (a) sobre quais caracteres considerar

10
Peirce, (CP 6.481-482, 1908; CP 6.490, c. 1910)

8
pertinentes para distinguier classificações artificiais e classificações naturais e (b)
sobre a hierarquia entre as classes naturais do cinema, indagações sobre quais seriam
as mais fundamentais, pelo caráter mais geral de suas causas finais.

Um outro aspecto relevante, a arrimar a adoção desta qualificação do cinema


documentário como classe natural, é o caráter evolutivo das causas finais. A
concepçao pragmaticista-processual da causação como geração de eventos em um
processo contínuo os toma como resultantes da articulação entre causas eficientes
(forças mecânicas atuais), causas finais (hábitos e propósitos, tendências imanentes)
e o que se chama de acaso objetivo, o que traduz a condição de que cada evento
empírico é em algum grau não-causado (ou causa de si próprio). Isso não apenas
respeita a singularidade de cada enunciação cinematográfica documentária concreta,
mas também facilita abordar a dinâmica pela qual cada uma delas reconfigura os
“modos” ou “eixos éticos” (subclasses naturais, ou mesmo classes artificiais) ao quais
pertence e em alguns casos, em que os traços teleologicamente determinados
ganham a autonomia e consistencia dos traços definidores (nos “filmes que fazem
filmes”, como diria Rouch) ocasionando o surgimento de novas “classes naturais” no
cinema. [Hulswit cap.3]

Por exemplo, uma classe artificial do cinema seria “o uso de encenações”, porque é
apenas um atributo de muitos filmes, mas que não corporifica qualquer conjunto
específico de efeitos práticos em termos de atualização e virtualização de hábitos
(aquisição de crenças, adesão deliberada a padrões de conduta) que possam ser
atribuídas ao procedimento de filmar eventos ensaiados com pessoas que estão
representando outras (ou mesmo a si mesmas, em alguma dimensão diferente). Uma
classe natural identifica-se pela geração de determinações quanto às tendências
matriciais de produção de sentido, ou seja, suas causas finais em convergem
propósitos, hábitos e leis (por exemplo, quando as leis da física quântica que
governam o comportamento de um CCD se acoplam aos procedimentos de
continuidade espaço-temporal dos cineastas e estes à consistência de um discurso
“assertivo” por seus públicos).

A essa altura, não mais nos esquivar de formular explicita e verbalmente nossa
própria conceituação do que seja o documentário como classe natural.

9
DOCUMENTÁRIO E “ÉTICA DO DISCURSO”
Percebemos o cinema documentário como aquele cinema que se configura como ação
comunicativa, apropriando-nos da formulação (peirceana na origem) da pragmática
universal, por [Habermas] (e Appel). A plausibilidade desta identificação entre
documentário e a ética do discurso apoia-se, por um lado, na razoabilidade das
observações de [Fernão Ramos], Mas afinal, o que é documentário quanto a ser a
evolução estilística do documentário desenvolvida em torno de eixos éticos; por outro,
na constatação de que o documentário se corporifica como ação comunicativa, quer
dizer, uma classe de enunciação que é dirigida a espaços de visibilidade pública (que,
retroativamente, se atualizam em enunciações desse jaez).11

Como ação comunicativa, a inteligibilidade do documentário enquanto tal atualiza-se


nas circunstâncias em que ele, como enunciação,

(a) se compromete com condições de validez, ou seja, conforme-se a uma


ética do discurso,
(b) identifica quais as suas pretensões de validação, específicas para a sua
aceitação pelos enunciatários, e
(c) busca fornecer razões específicas pelas quais essas pretensões deveriam
ser acolhidas pelos enunciatários conformes às condições dadas.

A falha em atender a essas exigências, ou mesmo a falha em identificar condições do


seu atendimento congruentes com o universo de discurso constituído na enunciação,
não tornam os discursos menos públicos. Quer dizer: documentários incorretos,
ideologicamente enviesados, confusos ou ruins não deixam de ser documentários,

11
Esta abordagem permite conciliar as postulações de [Carroll] e [Plantinga] (quanto à “indexação” como
fonte da distinção do documentário), as de Odin, (sobre as vinculações da “leitura documentarizante” e
do “conjunto documentário” à práticas determinadas de interpretação e a arranjos institucionais a
“produção individual” e a “produção institucional”) e as de Ponech (que apela para a identificação do
documentário pela incorporação da intencionalidade assertivo-constativo nos procedimentos de
produção).
A diferença é que se os dois primeiros procedem indutivamente, dos filmes e dos contextos de
circulação empíricos para a identidade, os últimos adota percursos dedutivos, partindo de uma
conceituação universal para os casos concretos. Com conclusões antípodas: Odin postula a
indeterminação última da atribuição de sentido pelo público intérprete; Ponech, a determinação última,
em função da supostamente incontornável intencionalidade da enunciação documentária. Como era de
se esperar da demanda metafísica de uma definição de documentário, os primeiros são conduzidos a
definições “abertas” (vagas e lábeis) como os de family rassemblances, pois é impossível inferir
universais partindo apenas de singulares existentes; os segundos, pela universalidade abstrata do
conceito definidor (seja a intencionalidade assertivo-constativa ou o leitura documentária), para dar
conta dos processos de produção de sentido dos documentários reais, são forçados a criar tal
quantidade de regras específicas.
Esperamos aqui poder delinear uma demarche abdutiva, tomando o documentário como uma classe
natural e os seus sentidos como eventos que emergem de em processo.

10
embora essas defasagens possam levar enunciações cinematográficas a, no limite,
deixar de serem reconhecidas como documentários, em algumas situações e para
determinados públicos.

Essas condições de validação, entrelaçadas com a de inteligibilidade12, são:

(1) a verossimilhança, correspondência referencial a uma realidade além da


enunciação, “assertividade constativa”, indicialidade),
(2) a sinceridade, transparência das intenções13 dos enunciadores, e
(3) a autorização, conformidade entre a relação entre enunciador e
enunciatário plasmada na enunciação e aquela empírica, habitualmente
estabelecida entre os participantes do evento comunicativo.14

Finalmente, o cinema documentário, ao buscar satisfazer as condições de realização


dos discursos para a esfera pública, caracteriza-se (agora pela lente da teoria dos atos
de fala):

(α) no plano locutório pela “assertividade constativa” e pela indicialidade da


enunciação, cujos signos que apontam para um universo que lhe exterior,
(β) no plano ilocutório, pela projeção e indexação de uma aliança do
enunciador com uma comunidade intérprete na atualização de um certo
universo discursivo compartilhado, e
(γ) no plano perlocutório, pela adesão a condutas de caráter comunicativo,
ou seja, ao estabelecimento de ethoi, parâmetros para a ação deliberada
(ou omissão, ou “não-ação”) dos membros do público intérprete. O aspecto

12
Inteligibilidade, aqui, é uma propriedade do discurso que inclui não só a sua adesão a procedimentos
de enunciação simbólica habituais de uma comunidade intérprete (ou pelo menos um diálogo com eles),
mas também, no plano dos procedimentos não-simbólicos (quasi-sígnicos e sígnicos degenerados), a
realização dos procesos “pré-reflexivos” da “percepção enquanto expressão” peculiar à imagem-câmera
[Sobchack].
Note-se que para a pragmática universal de Habermas e Appel, há uma co-determinação entre
inteligiblidade e ética: a adesão à ethoi discursivos é que propicia a inteligibilidade, que por sua vez
atualiza comunicação a adesão a princípios (que, como causas finais, evoluem a cada atualização).
13
Habermas faz uma distinção entre atos expressivos auto-interpretáveis (os atos de fala e os atos
expressivos não-lingüísticos na perspectiva dos participantes) e hetero-interpretados (os atos
expressivos não-linguísticos vistos do ponto de vista de um participante externo), com base na suposta
transparência intencional dos primeiros (a natureza da ação desempenhada pela elocução está nela
própria). É a mesma razão pela qual Ponech se apoia na atribuição de intencionalidade à enunciação
como critério de distinção do cinema documentário. Porém, não partilhamos da disposição de fazer essa
distinção a-priori, primeiro porque a “causação semiótica” concreta sempre comporta sua incerteza
(que, aliás, confere singularidade), segundo porque o caráter de inscrição do cinema o situa a meio
caminho entre a insubstancialidade do discurso verbal e a opacidade intencional do artefato.
14
Essa condição de validez corresponde à passagem do espaço externo ao espaço interno do discurso,
quando o enunciatário decide se e até que ponto irá se aceitar o lugar oferecido (o Leitor Implícito de
Iser), no discurso, pelo enunciador. [Carneiro, O Discurso da Mídia].

11
perlocutório também se refere à maneira pela qual as enunciações públicas,
retroativamente, conduzem à emergência de públicos intérpretes e
concernidos (a eclosão, perenização e eticização de relações entre os
enunciatários).

Temos, portanto, três eixos de determinação que permitem identificar o cinema


documentário como classe natural, que podem ser desdobrados como um sistema de
categorias para a análise empírica. Há, a nosso ver, ainda outros ganhos heurísticos
a serem alcançados ao se abordar o cinema (e o cinema documentário, em
específico), como um processo que se desenvolve através de um míriade de atos de
produção de sentido, cada qual um evento a consubstanciar as enunciações
documentárias como signo. Quer dizer: o cinema é menos um conjunto de
enunciados realizados por imagens em movimento do que um movimento
(enunciativo) do pensamento por imagens. Esse movimento ou processo, em cada um
de seus eventos (cuja autoconsistência deriva de procedimentos habituais de
produção de sentido) comporta três dimensões entrelaçadas: uma teleologia
(causação final), para onde convergem todos aqueles “deveres-ser” mencionados
acima, uma atualidade ou efetividade (causação eficiente), que é a condensação
concreta desses atos no signo tal como ele se apresente a um intérprete situado, e
finalmente uma singularidade (acaso objetivo) pelo qual os “deveres-ser” se
confrontam com outras ordens de determinações obscuras (e mesmo absolutamente
locais, idiossincráticas, irrepetíveis). Os fatos da enunciação sempre divergem
ligeiramente do pretendido por suas teleologias exatamente porque sempre há
alguma fonte concorrente de determinação que escapa às instâncias enunciadoras, e
que não apenas é fonte dos seus traços singulares, mas também constitui a inevitável
deriva dos “deveres-ser” no curso de suas atualizações.15

O que isso resulta, em termos de análise empírica, é que, desde a concepção de um


ato de cinema (geralmente fruto da exposição dos enunciadores a outras
enunciações) até, por exemplo, a sua mais recente incorporação como caso em um
discurso analítico sobre “eixos éticos” do documentário, passando por todos os
“tagueamentos” do signo pelas plataformas telemáticas de difusão de imagens, cada
enunciação cinemática é um e o mesmo processo. Como ação comunicativa, cada um

15
Na cosmologia processual-pragmática, aliás, o caráter irredutível do acaso é que garante que em todo
fenômeno mecânico haja tendências infintesimais (algo que Deleuze identificaria com o clinamen
estóico) que define a teleologia dos acontecimentos reais e o caráter unidirecional da causação e do
tempo. Vide [Hulswit, cap 3].

12
e todos os atos enunciativos (eventos produtivos) que o compõem estão governados
por ethoi os quais têm suas convergências, divergências e concorrências. Estes atos,
ao se realizarem, configuram-se como eventos produtivos, conformando as condições
de realização dos atos subseqüentes e também, retroativamente, transformando os
ethoi que tentam determinar seus traços concretos.

TELEMATIZAÇÃO DOS ESPAÇOS DE VISIBILIDADE


Os ganhos heurísticos desse tipo de abordagem não são tão evidentes nem
necessários quando lidamos com enunciações cinemáticas associadas às formas
institucionais clássicas, ou mesmo modernas, de produção, difusão e apreciação do
cinema documentário, quando os procedimentos relativos a essas dimensões da
comunicação encontram-se bem estabilizados e são reflexivamente compartihados
pelos públicos intérprete e concernido. Nesse tipo de circunstância, é perfeitamente
aceitável e produtivo tratar os filmes como “enunciados”, “fatos” ou “artefatos”. Pode-
se lidar abstratamente com eles como se estivessem destacados de fatores co-
textuais, paratextuais e contextuais, pois, efetivamente os processos são pertinentes
a esses aspectos estão no silêncio de seu funcionamento esperado. Porém, assim
como no caso de obras idiossincráticas (em geral, no domínio do cinema
experimental), não ocorre o mesmo quando as enunciações emergem no contexto de
períodos de desestabilização das formas institucionais, em que a experimentação de
possibilidades comunicativas e expressivas é quase compulsória, por não mais haver
ou ainda não haver “procedimentos normais” a seguir e a reconhecer.

Se concordarmos com a argumentação de [Hansen, in Williams, 1997)] quanto a


terem sido estas as condições do “cinema das origens” e quanto a estarmos
vivenciando uma situação parecida, de desestabilização dos processos de enunciação
cinemática, desde a introdução do vídeo doméstico, somos forçados a observar que as
transformações procedimentais na era da digitalização e da telematização vão mais
longe do que as esperadas por esta teórica estadunidense – e muito mais longe do
que puderam supor boa parte dos estudiosos, preocupados com as mudanças de
suporte. Há dez a quinze anos atrás, no calor dos debates sobre o real valor
epistêmico do cinema documentário, muita tinta foi derramada em juízos a fazer
diante da “perda do referente” das imagens-câmera, supostamente ocasionada pela
então futura hegemonia da mediatização digital. A mudança de suporte não deslocou
o uso prosaico e cotidiano das máquinas de imagens, não levou os praticantes a
divergir do seu arraigado uso iconico-indicial. Porém, o super-rebaixamento dos

13
custos de produção de imagens, com a aquisição de uma reprodutibilidade ilimitada e
a consubstanciação de um meio não-hierárquico de difusão de imagens, tem sido os
vetores de uma transformação radical da esfera de visibilidade pública percorrida
pelas enunciações documentárias.

No oceano de imagens digitais, as condições de indexação e de acesso ao plano


intencional dos enunciadores se tornaram muito árduas para o intérprete individual
que, na circunstância anterior poderia contar com inúmeras fontes de informações
colaterais sobre as enunciações. A ampliação do acesso aos documentários, como a
facilitação de sua produção e difusão parece ter conduzido os públicos e as instituições
ligadas ao cinema a buscar novas formas fornecimento de co-
texto/paratexto/contextualidades, imprescindíveis para a estabilização dos sentidos
nos processos de enunciação. Podemos chamar estas novas práticas e dispositivos de
“ambientais” (usando um conceito caro a Oiticica), pois se trata de criar espaços
reticulares de visibilidade e reconhecimento mútuo entre os públicos concernidos,
participantes e intérpretes. Notavelmente, a partir do sucesso das plataformas de
publicação aberta (originalmente de natureza ativista, como a rede Indymedia),
diferentes tipos de organizações sociais passaram a se dedicar à arquitetura e ao
urbanismo dos contextos telemáticos de produção, difusão e apreciação do
documentário, que se configuram segundo topologias muito variadas.

A participação na produção e o acesso a meios de difusão de enunciações


documentárias, “bandeira histórica” da militância e do ativismo ligado às liberdades de
comunicação, e também prática favorita das vanguardas artísticas e artistas
experimentais, encontram-se hoje promovidas por corporações transacionais da
indústria da cultura. A captura das dinâmicas de adesão de públicos a determinados
contextos de interação e de compartilhamento de imagens, na formação de
“comunidades virtuais” de tipo estético (no sentido de Bauman)16 tornou-se uma
forma cobiçada de Capital. Nesses contextos, as obras se tornam capital especulativo
e o capital se torna estético.

16
Bauman, 2003, 63 e ss. Bauman distingue dois tipos de comunidades, na contemporaneidade: uma
heterodeterminada (pelas tecnoburocracias) e de vínculos ocasionais e voláteis (ainda que afetivamente
intensos) e outra, a “comunidade ética” auto-determinada e que busca sua autonomia através da
consolidação de compromissos éticos (de valores e de condutas) de longo prazo. Bauman define este
último tipo partindo do conceito de autonomia de [Castoriadis (1982)] e das análises habermasianas
sobre o papel fundamental da ação das “organizações autônomas da sociedade civil” para a manutenção
do caráter crítico da esfera pública [(Habermas 1984, 1997b)] Preferimos assumir tais conceitos como
pólos extremos, para observar os possíveis processos de transição e propor práticas pelas quais a esfera
pública seja regenerada pela geração de tendências a eticização dos coletivos.

14
Nenhuma fonte seria melhor do que a ativista para esclarecer “porque eu não deveria
usar o sacanatube” (no original: “Why shouldn't I just use ScrewTube ?”)

1. Exploração: o sacanatube explora sua produção de vídeo livre e gratuita


para vender publicidade para o império Google/Murdoch 2. Vigilância: Uma
vez que o Sacanatube registra seu endereço de IP, publicar seus vídeos lá
submete você aos riscos de vigilância e de rastreamento de IPs, tanto por
corporações quanto pelas instituições legais e pelo Estado. Por exemplo, em
2004, a Yahoo colaborou com autoridades chinesas para identificar o
blogueiro dissidente Shi Tao. Ele agora cumpre uma penas de 10 anos de
cadeia. Muitas páginas gravam seu endereço de IP, não apenas as de projetos
corporativos. 3. Censura: ao colocar seus vídeos no Sacanatube você abre a
porta para a censura, já que eles promovem ocultações por violaões de
direitos de cópia ou a pedido do Estado. 4. Quando compartilhar não é
realmente compartilhar: Sites como o Youtube apenas permitem você
compartilhar vídeos com outros membros ou ao incorporar um vídeo do YT no
seu blog. Não há redistribuição via redes interpares (p2p) ou disponibilidade
para baixar vídeos com alta resolução para exibição em mostras, festivais de
cinema ou em compilações.
5. Quando o gratuito não é realmente gratuito: Tais sites são de uso grátis,
não custa nada. Porém, a plataforma é fechada: se você quiser usar a
tecnologia do Sacanatube, você tem que usar a plataforma do Sacanatube.
Precisamos de plataformas em software livre para que qualquer um tenha a
liberdade de criar seu próprio site de compartilhamento de vídeos.
6. Quando uma comunidade não é realmente uma comunidade: Youtube foi
vendido ao Google por 1,65 bilhóes de dólares em ações da Google. Se uma
comunidade pode ser comprada e vendida, é mesmo uma comunidade (ou ela
é apenas um pó de pirlimpimpim)? Não há controle da comunidade sobre as
páginas do Sacanatube, elas são organizadas por motivo de lucro, não pelos
interesses das pessoas que constituem essas comunidades. O controle
editorial e dos softwares deveria ficar nas mãos da comunidade.
7. Propriedade Intelectual: Sites como o Sacanatube impõem termos e
condições exploratórias para as suas contribuições, que permitem a eles
revender e remixar seu trabalho. Por exemplo o Sacanatube prescreve que:
"…by submitting the User Submissions to YouTube, you hereby grant YouTube
a worldwide, non-exclusive, royalty-free, sublicenseable and transferable
license to use, reproduce, distribute, prepare derivative works of, display, and
perform the User Submissions in connection with the YouTube Website and
YouTube's (and its successor's) business… in any media formats and through
any media channels."
Se usarmos tecnologias existentes, éticas e piratas, vamos nos dar muito
melhor. E se você está querendo dedicar um pouco de tempo para buscar
distribuir conteúdos éticos de justiça social, você realmente tem a tarefa de
ao menos fazer um esforço nesse sentido.
17
[da lista de discussão “Transmission”, ligada à rede Indymedia (trad. do
autor)]
É evidente que a apropriação de procedimentos outrora marginais de grupos políticos
e artísticos de oposição foi seletiva e excluiu diversos dispositivos organizacionais e

17
http://www.m2hz.net/forum/viewtopic.php?p=14&sid=fb59a88529a4edd6c06bf55fcaa85bec em
20/01/08.

15
dinâmicas ético-procedimentais. Estes grupos (ou “coletivos”, como costumam se
autodenominar), tem empreendido um constante esforço no sentido de denunciar
como enganosas as facilidades e os atrativos das novas plataformas telemáticas de
difusão como formas de exploração do tempo de trabalho (imaterial) não pago em
diversas dimensões: apropriação sub-reptícia dos direitos patrimoniais, geração de
valor especulativo da visibilidade dos espaços de visibilidade corporativamente
controlados, exploração da atenção do público para a venda de publicidade, extração
de informações comercial e politicamente estratégicas quanto ao comportamento dos
membros do público e até mesmo a colaboração com o aparato repressivo de alguns
estados nacionais. Por outro lado, eles tem sido extremamente inovadores quanto à
criação de novos procedimentos e novos conjuntos de procedimentos na enunciação
pública – e, no que nos interessa, na enunciação cinemática documentária.

SENTIDO = MUDANÇA DE COMPORTAMENTO ⇒ CIRCUITO = OBRA

Observando a confluência entre os quadros teóricos discutidos, o leitor deverá já ter


notado a continuidade conceitual entre (I) postular que o cerne do sentido de
qualquer símbolo jaz na projeção da possibilidade de adesão, de uma comunidade
intérprete, a comportamentos, formas de conduta (ou seja, ethoi), (II) a identificação
da ação comunicativa como o discurso produzido segundo parâmetros éticos e (III) a
observação do documentário como uma prática cujos conjuntos procedimentais,
temáticos e textuais que evolui a partir de em que o estilístico e o ético encontram-se
são indissociáveis. De maneira bem explícita, não é outra a posição de Hélio Oiticica a
respeito do propósito do objeto artístico, explícita na suas propostas de “anti-arte
ambiental”, em cujo cume se situa “de maneira definitiva” o Parangolé:

Seria pois o Parangolé um buscar, antes de mais nada, estrutural básico na


constituição do mundo dos objetos, a procura de raízes da gênese objetiva da
obra, a plasmação direta perceptiva da mesma. (...) ...não toma o objeto
inteiro, mas procura a estrutura do objeto, os princípios constitutivos dessa
estrutura, tenta a fundação objetiva e não a dinamização ou o desmonte do
objeto. [HO, “Bases fundamentais para uma definição de Parangolé”, AGL, 66-
7]
O que seria então o objeto? Uma nova categoria ou uma nova maneira de ser
da proposição estética? A meu ver, apesar de também possuir esses dois
sentidos, a proposição mais importante do objeto, dos fazedores de objeto,
seria a de um novo comportamento perceptivo, criado na participação cada
vez maior do espectador, chegando-se a uma superação do objeto como fim
da expressão estética. Para mim, na minha evolução, o objeto foi uma
passagem para experiências cada vez mais comprometidas com o
comportamento individual de cada participador; faço questão de afirmar que
não há a procura, aqui, de um ‘novo condicionamento’ para o participador,
mas sim a derrubada de todo condicionamento para a procura da liberdade

16
individual, através de proposições cada vez mais abertas visando fazer com
que cada um encontre em si mesmo, na disponibilidade, pelo improviso, sua
liberdade interior, a pista para o estado criador – seria o que Mario Pedrosa
definiu profeticamente como ‘exercício experimental de liberdade’. (...) As
proposições que surgem, ora lançam mão do objeto (palavra, caixa etc., indo
a todas as modalidades, até a ‘coisa’ e à ‘apropriação’), ora do ambiente,
absorvendo, catalisando seus elementos, mas visando à proposição em sua
essência. (...) O que importa, ainda, é a estrutura interna das proposições,
sua objetividade. O conceito de Nova Objetividade não visa, pois, como
pensam muitos, diluir as estruturas, mas dar-lhes um sentido total, superar o
estruturalismo criado pelas proposições da arte abstrata, fazendo-o crescer
por todos os lados, como uma planta, até abarcar uma idéia concentrada na
liberdade do indivíduo, proporcionando-lhe proposições abertas ao seu
exercício imaginativo, interior – esta seria uma das maneiras, proporcionada
neste caso pelo artista, de desalienar o indivíduo, d torná-lo objetivo no seu
comportamento ético-social. O próprio ‘fazer’ da obra seria violado, assim
como a ‘elaboração’ interior, já que o verdadeiro ‘fazer’ seria a vivência do
indivíduo. [HO, “Aparecimento do supra-sensorial na arte brasileira” AGL,
102-3]
O artista não é então o que declancha os tipos acabados, mesmo que
altamente universais, mas sim propõe estruturas diretamente ao
comportamento, inclusive propõe propor, o que é o mais importante como
conseqüência. A obra antiga, peça única, microcosmo, a totalidade de uma
idéia-estrutura, transformou-se, com o conceito de objeto, também numa
proposição para o comportamento...: estruturas palpáveis existem para
propor, como abrigos aos significados, não uma ‘visão’ para um mundo, mas
a proposição para a criação do ‘seu mundo’, com os elementos da sua
subjetividade, que encontram aí razões para se manifestar: são levados a
isso. [HO, “A Obra, seu caráter objetual, o comportamento”, AGL, 120]
Não haveria espaço suficiente para explorar a notável pertinência, para a discussão do
documentário contemporâneo, das observações de Oiticica, sobre as “apropriações”
empreendidas na produção dos seus trabalhos (que, para ele, não se confundem com
os objectes trouvées nem aos ready-mades da arte moderna). O que fica muito claro,
porém, é que, para Oiticica, o efeito de sentido que interessa ao artista é a produção
de novos hábitos de consciência, de percepção e de comportamento coletivo através
dos objetos. A obra não é uma coisa atual, mas uma corporificação tangível de um
signo catalisador, propiciador de modificações (por isso o “anti-”) contextuais (daí o
“ambiental”, apontando já para a crítica à circulação institucional), de natureza aberta
(ao acaso, quer dizer, signos de causas finais e eficientes tão variadas que alcança o
status de indeterminação). A “Nova objetividade” defendida por Oiticica é o oposto da
promoção do “objeto” a um novo gênero da arte (como escultura, pintura, desenho),
que testemunhamos hoje pelas galerias comerciais e museus corporativos e estatais:
é o propiciamento da entrada dos membros do público (ou seja, pela singularidade, a
causa sui de cada indivíduo) em comportamentos não codificados, ou seja,
experimentais. Neste sentido “ambiental”, as vicissitudes da circulação das obras de
arte como os parangolés é parte fundamental das “causas finais” delas, da mesma

17
maneira como a referência a parâmetros éticos guiam a produção e permitem o
reconhecimento do documentário enquanto tal.

Diante disso, a crítica à incongruência entre as condições institucionais para a


circulação dos signos (obras de arte e documentários experimentais) e as estruturas
de significação destes tornou-se compulsória para os artistas e documentaristas.

Hoje, com as proposições de uma arte-totalidade, torna-se cada vez mais


impossível essa separação ou adaptação posterior de tais idéias, cada vez
mais radicais, às estruturas de museus ou galerias – cultura e consumo – a
que não interessam experiências que não se possam reduzir a isso. E, a cada
dia, estas se tornam mais complexas e irredutíveis, donde se vê que os que
devem mudar são eles, ou esse conceito acadêmico de cultura, ambivalente
já na origem, mas perfeitamente aberto à condução que se lhe queira
imprimir. [HO, “A Obra, seu caráter objetual, o comportamento”, AGL, 118-9]
Comparando as objeções de Oiticica, nos anos 1960, e as de Newton Goto, nos anos
2000, vamos observar que a esfera institucional é alvo de objeções muito
semelhantes. A diferença está, porém, nos meios disponíveis para os enunciadores
em termos de desencadeamento de novos processos de produção, difusão e
apreciação, conformados agora pela não-linearidade, reticularidade e reprodutibilidade
fisicamente ilimitada. Quase quarenta anos depois, o artista Newton Goto parece
tentar oferecer, na prática (como catalisador dos “Circuitos Autodependentes em
vídeo”) e no discurso crítico, respostas às indagações deixadas Oiticica:

… as produções artísticas, estratégias e conteúdos críticos dos circuitos


18
autodependentes geralmente são distintos dos do circuito tradicional:
afirmam outros artistas, idéias e processos. …
Hoje existe um número significativo desses circuitos no Brasil. É uma
intensificação política no campo das artes, pois a liberdade e autonomia do
agir estão em prática. E há um certo desvencilhamento dos formatos, lugares,
processos, prazos, hierarquias e interesses cultivados pelas relações
institucionais tradicionais. No Brasil do final dos anos 90 esses circuitos
autogeridos começaram a ter uma maior visibilidade dentro do meio artístico,
vindo a ser denominados habitualmente de coletivos de artistas, circuitos
independentes ou arte de ativismo cultural. Foram sendo construídos em
distintos lugares a partir de diferentes motivações e desdobramentos
históricos. ...
...
Algumas táticas desses circuitos artísticos tornam-se recorrentes:
disponibilização de espaços físicos próprios para a manifestação da arte;
delimitação de áreas urbanas e outros “sites” para performances e
intervenções; ocupação de espaços institucionais com programação própria de

18
Citação de Goto: “O conceito da autodependência é usado por Werner Herzog como uma alternativa
para a compreensão das produções do “cinema independente”, pois, ao contrário de imaginar esse
âmbito produtivo como algo desvinculado de parcerias e relações – independente – o cineasta vê esse
campo de atuação como algo que fundamentalmente depende do próprio autor para existir, inclusive
nas articulações de parcerias. In: HERZOG, Werner. "Coração Selvagem". Paulo Camargo e Carlos
Augusto Brandão (texto e entrevista). Jornal Gazeta do Povo. 31 Jan 2005. Curitiba: Caderno G.”

18
atividades – a partir de curadorias e agenciamentos coletivos feitos por
artistas; organização de encontros, debates e mostras; apoio à produção de
trabalhos; criação de estratégias diferenciadas de sustentabilidade
econômica; elaboração e publicação de textos críticos, relatos e registros de
ações em revistas impressas ou eletrônicas; estabelecimento de programas
de intercâmbio entre artistas; criação de arquivos de documentos e vídeos.
Enfim, práticas que afirmam uma real perspectiva de autogestão social da
informação e da produção artísticas.
[Newton Goto, http://www.rizoma.net/interna.php?id=250&secao= artefato]

Como se percebe, o circuito, ou o “ambiente”, que se configura pelas dominantes


éticas de práticas e (anti-)instituições sociais que fornece as informações colaterais ao
documentário “Parangolé” (de autoria de Pedro Urano, Lourival “Cuquinha” Batista e
Daniela Brilhante) seria do tipo ético-estético, onde se buscam relações de co-
responsabilidade política entre os participantes. Mesmo que não o faça de maneira
anedótica e linguisticamente explícita, os processos singularmente enfeixados neste
documentário experimental também confrontam os dilemas da autonomia e da
cooptação.

LOURIVAL “CUQUINHA” BATISTA, CRIADOR DO PARANGOLÉ


Quem encontrasse em uma exposição de arte uma video-instalação como a vista na
fig.1 (anexo), poderia acreditar que se tratava de uma paráfrase do famoso conto
conceitual de Borges “Pierre Menard, autor do Quixote”. Bem borgeanamente, a
recursão é múltipla: o objeto é composto por uma gaiola eletrificada a circundar uma
réplica da réplica autorizada do parangolé “Guevaluta Baby”, dependurada em um
suporte de madeira; nele está fixado um monitor que exibe um documentário sobre
os acontecimentos que levaram à produção daquela réplica e de toda a video-
instalação, denunciando “ambientalmente” o ambiente de captura da anti-arte
ambiental de Oiticica pelo circuito artístico institucionalizado.

A primeira parte do documentário mostra Cuquinha, (artista premiado no Mam por um


trabalho chamado “Concurso do Mickey feio”) vestiu um das réplicas dos Parangolés
de Hélio Oiticica e participou de um coquetel oferecido aos artistas no museu carioca.
Não pode devolvê-lo, pois quando deu por si, os seguranças do Museu já impediam a
entrada. Como que tomado pelo espírito do “objeto supra-sensorial”, Lourival passa a
interpelar e a envolver (algumas vezes fisicamente, nas alças do parangolé) os
circunstantes, que relatam para a câmera as suas vivências com parangoés.

19
Em seguida, sai pelas ruas do Rio de Janeiro, rodopia sob os Arcos da Lapa com
amigos, e com sua ajuda sobe em um pilar dos Arcos. Realiza, portanto, de uma
espécie de experiência de reativação das proposições estéticas da anti-arte ambiental.
Através da disponibilidade do objeto e dos sujeitos, catalisa novamente os
acontecimentos, mas que agora adquirem um tom sarcástico, pela vinculação às
formas de difusão e apreciação convencionais.

No início da segunda parte do documentário, a secretária eletrônica da casa de


Cuquinha, reproduz uma voz feminina (provavelmente de uma funcionária do Museu)
ameaçando “chamar a polícia” caso o artista não devolva a réplica do Guevaluta Baby
“até o meio-dia de hoje”. Ironia do destino, um objeto destinado a libertar o
espectador de seus condicionamentos experienciais, quando capturado pelas
instituições, acaba ameaçando a liberdade do jovem artista que o
interpreta/incorpora. E assim vemos o jovem artista pelo aterro do Flamengo
correndo atrás dos pássaros e dando ultimas rodopiadas de despedida, antes de
entregar o objeto “supra-sensorial” no MAM. Finalmente, manifestando uma recusa
em partilhar a definição da situação de tomada com os participantes pela uso da
câmara escondida (levada por Cuquinha ao entrar no MAM-RJ), vemos os operadores
do Museu gracejar com o artista e chamá-lo de “maluco”.

Ao final, entremeado aos créditos, vemos as tomadas de uma segunda citação


recursiva: Cuquinha e comparsas inalam um pó branco cuidadosamente depositado
para formar desenhos brancos sobre um monitor de computador que exibe uma
fotografia de Oiticica, reativam a Cosmococa e ritualmente partilham a substância
com o seu inventor.

ANÁLISE DE SITUAÇÕES DE TOMADA19


Pudemos identificar no documentário experimental “Parangolé” sete diferentes
blocos20 de situações de tomada (vide anexo).

19
“Situações de tomada” é um operador derivado do conceito de “situações” e de “definição de
situações”, oriundas da microssociologia de [Goffmann]. Trata-se de uma noção que caracteriza os
procedimentos “cênicos” empreendidos pelos atores sociais, em geral estabilizados como padrões de
conduta institucional, e, eventualmente, idiossincráticos. No caso das tomadas de imagens em
movimento, trata-se dos esforços de mise-en-scène e auto-mise-en-scène (termos propostos por
[DeFrance]) que atualizam, no evento pró-filmico, as intenções e perspectivas dos participantes do ato
da tomada cinematográfica, que emerge das convergentes, divergentes ou concorrentes.
[Rouch] assume uma posição radical ao qualificar como de cine-transe essas situações, mas em geral se
adota esse termo apenas para as situações de grande indefinição, quando o acaso objetivo (ou seja, a
multidão ou o caráter inconsciente das “causas finais”) é a fonte predominante da definição das
situações. (O que parece ser o caso da primeira parte do documentário sob nosso escrutínio).

20
A primeira (bloco I) e a última (bloco VII) são gravações de objetos inanimados: a
primeira (“como pregar botões”) alude ao caráter artesanal do Parangolé e talvez à
atitude de “pregar peças”, adotada pelos documentaristas em suas interações com as
pessoas do “meio artístico”; a que aparece no final do documentário, são letreiros
caligráficos (que são entremeados em meia-fusão como créditos aos participantes das
tomadas durante o coquetel no MAM).

Na segundo bloco, no final do terceira e no início da sétimo (e último) blocos


aparecem tomadas de projeções de imagens em movimento. A da primeiras
aparentam terem sido provavelmente feitas na mesma ocasião, de uma projeção de
cinema em uma sala. A imagem mostra planos os prédios no Aterro do Flamengo
(cercanias do Museu), do MAM e do espelho d’água que fica diante do anexo do
Museu: no abertura, esses planos aparecem desabitados. No encerramento aparece
um velho sambista passando ao longo do espelho d´água (e do plano pictórico),
justaposto a uma reclamação (do cineasta? do montador?) contra o caráter confuso
do roteiro. As imagens do meio do documentário (final da terceiro) são quadros
congelados da reprodução do salto de Cuquinha, descendo do pilar dos Arcos da Lapa.

No caso das imagens do Aterro do Flamengo e do Mam, podemos inferir o interesse


de construção do MAM como cronótopo, na medida em que o Museu é efetivamente
um símbolo fonte de boa parte das causas finais dos eventos mostrados no bloco II,
no final de IV e em VI. Pode-se inferir da imagem da caminhada do velho sambista de
branco uma alusão ao contexto de invenção do parangolé (o samba) e a seu caráter
proposicional e ambiental. No caso das imagens videográficas (III), a imagem da
suspensão do protagonista (Cuquinha) e do tempo do acontecimento e da exploração
do atravessamento de mediações no tempo do relato (os videogramas congelados)
atua como demarcador do ponto de inflexão do documentário, no qual a ameaça
sucede o transe.

O bloco III desenvolve-se a partir da atuação de Cuquinha-com-Guevaluta Baby


como “intercessor”, catalisador de enunciações do publico concernido da arte
brasileira contemporânea. Em IIIa, emerge uma patente discrepância entre, de um
lado, a familiaridade do intercessor com os jovens artistas e apreciadores, que
manifestam uma disponibilidade conjunta para a atualização dos propósitos

20
A distinção entre cada “bloco de situações” é feita pelo predomínio de uma situação, por exemplo,
quando se usa uma como fonte do “conteúdo proposicional” e outra como “decoração”, como acontece
no bloco II (as imagens de parangolés são usadas como “planos de corte”).

21
ambientais e anti-artísticos do parangolé e, de outro lado, da atitude amedrontada e
contida diante d a típica atitude de soberba de um crítico e curador. Nesta tomada,
adeus ao processo supra-sensorial, nada de Cuquinha-GuevalutaBaby: prevalece uma
ontologia das substâncias e dos fatos, os corpos se separam como o artista iniciante
Lourival Batista e o Objeto de Arte Contemporânea. Poder-se-ia dizer que, no primeiro
caso, a definição da situação de tomada é compartilhada com os participantes, na
segunda, barganhada com um adversário.

No final do bloco (IIIb), de tomadas sob os Arcos da Lapa nos transporta para fora do
contexto artístico institucional e nos lança, no cronótopo da boemia carioca, ao
paroxismo do transe catalisado, quatro jovens girando e gritando o nome do espírito
que os possui (três visíveis e um ou uma gravando). Cuquinha-GuevalutaBaby sobe
no pilar, salta, e permanece “suspenso nas mediações”.

No bloco IV, a imagem do final da sua queda segue a tomada da secretária


eletrônica reproduzindo a ameaça, metáfora de uma “queda das núvens”. Na “volta à
cena do crime”, Cuquinha-GuevalutaBaby percorre o Aterro do Flamengo
compartilhando com a cinegrafia a definição das situações. Tem destino certo, mas
seu deambular não é funcional, passeando pelos monumentos e correndo atrás dos
pássaros. Como que se despedindo do transe, Cuquinha dá uma última rodopiada no
parangolé antes de transformá-lo de novo em Objeto Museológico. O cinegrafista aí
assume uma atitude visual e fisicamente distanciada, evitando ter de compartilhar a
definição da situação com os funcionários do MAM.

Em V, permanece mesmo o compartilhamento consciente da definição da situação de


tomada, mas agora o ambiente apresenta-se estabilizado para a realização da
tomada, em que o artista pernambucano conversa com o cinegrafista sobre a pressão
que sofreu.

No bloco VI, como já mencionamos, a candid camera portada pelo próprio Cuquinha
penetra no espaço do museu e o mostra sendo “suavemente” admoestado por três
funcionários: Lourival é um artista profissional, não quer confrontar diretamente às
instituições. Mas é um ato agressivo: aos demais participantes da tomada é recusada,
como já comentado, o compartilhamento na definição da situação de tomada (embora
não na situação social, e é essa a ambiguidade deste plano).

Ao final, no bloco VII, vemos uma transposição da Cosmococa: a mídia de massa


impressa (as capas de jornais, revistas e discos) que serviam de base para o pseudo-

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plágio da maquiagem do projeto CosmoCoca, temos agora um segundo pseudo-plágio
sobre a face do próprio pseudo-plagiário, reproduzida na superfície infográfica da
mídia digital. Este deslocamento sugere-nos dois cursos interpretativos: primeiro, um
comentário à digitalização sobre a homogeneização dos suportes e à banalização
radical das máquinas de imagens, reverberando a identificação da câmera digital
como personagem, no meio do bloco IIIa. Outro curso é a atualização da proposição
CosmoCoca, imbricada com a pesquisa do “quasi-cinema”, desenvolvido por Oiticica
junto com o cineasta Neville de Almeida, funcionando como uma resposta
procedimental à queixa ouvida no início do bloco: “não reclama não, porque isto é
quasi-cinema, cinema (documentário) experimental!”

CONCLUSÃO: EM DIREÇÃO À UMA EFETUAÇÃO EXPANDIDA

Pretendemos neste ensaio construir uma plataforma conceitual a partir de três


perspectivas, que acreditamos convergentes: a da abordagem do cinema
documentário como processo, a sua identificação como ação comunicativa, e o caráter
de inovação ética da sua ativação experimental (ativista e anti-artística). Sem dúvida,
permanecem muitas questões sobre as conexões entre esses arcabouços teóricos. O
maior deles, ou o que tende a suscitar mais objeções, talvez sejam (a) a decisão de
distinguir o documentário de maneira não-opositiva em relação a outros domínios do
discurso por imagens em movimento e (b) ao vinculá-lo a exigências éticas que, no
campo original da ciência política, já são muito controversas.

Acreditamos que ao considerar o cinema como processo de pensamento por máquinas


de imagens, a nossa opção de nos esquivar de definições verbais seja
heuristicamente mais proveitosa exatamente por não mais obrigar o teórico a escolher
qual é o “dono da bola” na produção de sentido. Há circunstâncias de produção,
difusão e apreciação em que efetivamente a instância enunciadora tem o poder de
estabelecer as causas finais, de modo que os atos de cinema subseqüentes ocorrem
dentro dos limites inicialmente determinados. Mas não se pode afirmar o mesmo em
situações onde não há inícios ou autorias identificáveis, e também a instância
enunciadora passa ao largo das distinções epistemológicas modernas (entre fato e
ficção, sujeito e objeto, mente e matéria etc.). A opção de atribuir à instância
enunciatária, à comunidade intérprete a capacidade de arbitrar unilateralmente o
valor epistêmico de uma enunciação cinemática é igualmente limitadora, pois filmes
não são sistemas de notação abstrata e não promovem uma difusão estritamente
simbólica. Para cada enunciação, há que se acompanhar os processos, percorrer

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densa rede que vai de antes da concepção até depois das conversas entre os
membros dos públicos. Nossa opção é identificar as causas finais atuantes, como se
como elas se atualizam em atos, como convergem ou divergem e quais as
singularidade dos eventos resultantes. Existem recorrências, sedimentações retóricas
e institucionais, mas devemos vê-las como processos produtivos recorrentes
(autopoiéticos) cuja deriva pode ser muito lenta.

Quanto às possivelmente excessivas exigências éticas, temos a dizer que vemos os


documentários não como meras asserções, mas como argumentos. Ou melhor, é a
perspectiva da enunciação de argumentos que governa os documentários, por mais
que eles sejam obscuros, poéticos, tendenciosos ou não-intervencionistas. Sem
dúvida, todos os documentários são obrigados a fazer asserções e constatar estados
do mundo. Mas haveriam estados do mundo em si mesmos, a contemplar? Existe uma
contemplação realmente desinteressada (se houvesse, a quem ela interessaria)?
Difundir imagens organizadas segundo um modo de perceber estritamente assertivo
não é inevitalvelmente um projeto (de não-ação ou, inversamente, de prostração)
para o outro, o público intérprete?

Uma ética implícita habita a reflexividade sem transparência do documentário “pós-


moderno”, uma ética de aparente modéstia que é tão eficaz quanto a que habitou a
da educação, da apreensão “direta”, da participação. Em uma espécie de luto pelo fim
dos grandes discursos da modernidade, a pretensão de dizer do “mundo real”
permanece ao explorar apenas uma fração dele o mundo interno do enunciador e dos
meandros da enunciação.

Tomo aqui o conceito semiótico de argumento como classe de função sígnica atinente
a todo e qualquer ação comunicativa. Argumento não é necessariamente verbal, nem
depende de haver tensão na sua aceitação. Argumentos são signos que se constituem
como signos por atualizar suas próprias causas finais (interpretantes finais e últimos),
prescrever sua própria retórica (ou, no mínimo, algumas condições segundo as quais
esse signo deveria desenvolver-se e a gerar outros). Poesias são argumentos porque
buscam gerar efeitos estéticos, relatos, efeitos epistêmicos. E, como a teoria do atos
de fala ensina, todo e qualquer discurso dispõe de dimensão perlocutória de
(estranhamente esquecida das discussões dos teóricos que declaram filiação à filosofia
analítica). A definição de documentário feita sem a levar em consideração privilegia
um certo tipo de documentário que tampona sua própria responsabilidade política.
Discursos públicos comprometem a enunciação com valores compartilhados, atualiza

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esses valores e os prescreve. A arte e o documentário que chama para si a
qualificação de experimental ou ambiental está ávida de assumir plenamente esta
responsabilidade, assim como o documentário que problematiza seu próprio circuito e
que tenta construir recursos de enunciação que sejam eticamente consistentes com
seu caráter argumentativo são, portanto, documentários genuínos, no sentido
semiótico e éticos, no sentido político.

Hoje, a reversibilidade das posições na enunciação audiovisual é mais generalizada do


que nunca. Não apenas provocamos a precipitação das determinações imateriais da
sociedade na atuação diante e detrás das câmeras. A pós-produção, a indexação, a
difusão e a apreciação das imagens em movimento, outrora distintas, tendem a
confluir em um emaranhado de práticas “ambientais”. E se o capitalismo, por força da
sua necessidade de inovação, é capaz de capturar os aparatos criados pela sua
oposição (a fantasmagórica “esfera pública proletária” de [Negt e Kluge]), é inapto
para replicar sua coerência ético-estilística, exatamente porque não pode nem
efetivamente se abrir ao acaso, nem substituir a fonte do acaso (a comunidade
intérprete, os públicos) que explora.

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