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UM PUNHADO DE QUESTÕES
1
“Cinema” é aqui identificado às formas de comunicação através de imagens corporificadas através de
recursos tecnológicos modernos projetados para a produção de experiências compartilhadas de
“percepção como expressão” [Sobchack] visual e acústica.
1
• Será que a apreciação pública, a crítica, a teoria e a própria prática artística
dependem, são avassaladas pela lógica da produção do documentário? Se isso
for, justifica-se um juizo adorniano, denunciando e lamentando a “degradação
da experiência” nas práticas da produção, difusão e apreciação de trabalhos de
arte imateriais e/ou efêmeros?
Que práticas e que ferramentas são pertinentes para os esforços de auto-controle dos
espaços de visibilidade do documentário experimental e da arte imaterial/efêmera por
seus públicos (propositores, participantes, intérpretes)?
2
“Publico intérprete” é aquele público que, em se encontrando em situações sociais orientadas à
apreciação das enunciações públicas, as realizam intencionalmente. “Público concernido” seria aquele
que habitualmente procura participar destas situações e que pode eventualmente se envolver na
produção de enunciações e/ou de situações de apreciação pública.
2
Na ambição de sair deste jângal de questões, o presente ensaio almeja, como
correlatos: (a) desenvolver de um conjunto de procedimentos de análise fílmica a
partir do de paradigma processual-pragmático; e (b) realizar a análise de um
documentário de uma performance artística a partir dos seus procedimentos de
produção e difusão. Nosso intuito, a esse respeito, é identificar as peculiaridades
retóricas3 desse documentário, seguindo o trabalho de rastrear eixos de
transformação do documentário brasileiro contemporâneo conexos às novas condições
de produção, difusão e apreciação, associadas à digitalização e a telematização desses
três processos.
(Tratar os participantes dos processos comunicativos como “alvo” e mesmo como “receptores” sugere
uma de passividade dos públicos que, além de incconsistente em termos lógicos, corresponde cada vez
menos com a realidade dos procedimentos sociais concretos de interpretação das enunciações públicas.
3
O sentido específico que adotamos para o termo “retórica” é o de “causação semiótica”, ou seja: estudo
dos processos e das práticas de produção de sentido, sobre como os signos se configuram como
“eventos produtivos” na produção de outros signos (Hulswit, ??). O uso desse termo, neste ensaio,
recusa as percepções mais céticas da retórica como “arte do engano”, que habitam as polêmicas do
pensamento ocidental desde a crítica platônica aos sofistas.
4
Preferimos reservar o termo inglês “performance” para identificar o gênero artístico hodierno e aliviar o
texto de anglicismos como “performar” (ou seja, efetuar), a “performance” (como prática, efetuação),
“performer” (efetuador).
3
pelos artistas, documentaristas e apreciadores de arte, das condições da efetuação
dos espaços de visibilidade pública das obras.
5
É o nome de um grupo de discussão informal na casa dos Peirce e ao qual acorriam filósofos, cientistas e
juristas em atividade nos meios acadêmicos de Boston entre 1871 e 1879. Partindo de indagações sobre
a fixação das crenças e “como tornar as idéias claras”, chegou-se (a origem do pragmatismo, com sóe
acontecer, é um tanto obscura) à estipulação nuclear de que sentido é hábito e que hábitos os há em
toda parte, estão difusos na natureza e, portanto o pensamento nem é privilégio humano, nem paira
4
esse mais recente e conhecido, da teoria dos atos de fala). Essa abordagem assenta o
conceito de hábito como fundamento unificador da produção de sentido humano e das
regularidades da natureza, o que é afirmado em formulações posteriores (e
parcialmente independentes) da “filosofia do processo” elaborado por Whitehead em
“Processo e Realidade”6. Trata-se, a rigor, da consolidação do projeto peirceano para
além dos limites da lógica e da fenomenologia, ampliando a validade da máxima
pragmática7 (de interesse epistemológico) para o âmbito ontológico. Debrock (2003)
propõe uma “definição estipulativa” da perspectiva filosófica processual-pragmática a
partir dos seguintes “proposições elementares”:
sobre a realidade. Esse achado parece ter sido, aliás, propiciado pela aproximação entre as indagações
da filosofia das ciências, sofrendo o recente impacto do evolucionismo darwiniano e os debates sobre a
interpretação e aplicação das leis e sobre a formação da jurisprudência. (
http://www.pragmatism.org/history/metaphysical_club.htm. )
6
O interesse de Deleuze pelo evenement [A Dobra, lógica do sentido] é, talvez, a referência familiar mais
antiga à discussão de Whitehead. A idéia de que o mundo não é a coleção dos fatos (Wittgenstein), mas
o conjunto de todos os eventos, e que além de todas os pontos de vista possíveis “a criatividade é o
último” e que a realidade não cessa de produzir o novo, inesperado, tem sido referência fundamental
para a crítica do pensamento moderno e das ciências, feito por [Deleuze] [Michel Serres] e [Bruno
Latour].
Talvez por influência do ceticismo neo-nominalista da semiótica francesa, estes autores, na melhor das
hipóteses tratam a semiótica peiceana como um utensílio taxonomico, tomando a repisada tríade ícone-
índice-símbolo como uma divisão de tipos de signos empíricos (e não uma distinção de funções
sígnicas). Graças aos pós-estruturalistas, a semeiotica vem há três ou quatro décadas sendo arrancada
do solo da ontologia pragmatista para enfeitar os vasos pós-estruturalistas, não permitindo que suas
suas implicações cosmologicas sejam apreciadas.
Para Latour, o prejuízo é particularmente grande, porque sua excelente abordagem etnometodológica
da produção de fatos científicos, perfeitamente consistente com as abordagens crítico-realistas sobre a
produção do sentido do cinema documentário (ao contrário do que pretende a manipulação de seu
argumento por Winston [in Renov, 1993: 37-57]) é solapada pelo ecletismo metodológico. Sua feroz
crítica aos auto-enganos do modernismo parece emasculada para a análise empírica, pois os modelos
de exame propostos só escapam do gen do cartesianismo (p. ex. no uso da narratologia estruturalista
para análise de processos inovação tecnológica e consolidação dos fatos científicos) ao preço de abrir
mão da formalização de procedimentos de análise, fazendo da “análise de controvérsias” que beira a
crônica jornalística.
7
“O verdadeiro sentido de qualquer produto do intelecto reside naquela determinação unitária que ele
venha a emprestar à conduta prática, sob toda e qualquer circunstância concebível, supondo-se que tal
conduta seja guiada pela reflexão levada a seu limite último” ('Additament,' comments on 'Neglected
Argument for the Reality of God', CP 6.490, c. 1910)
“...para que seja correto falar do ´sentido´ de um conceito, conclui-se que para alcançar o domínio
plano do seu sentido é preciso, em primeiro lugar, aprender a reconhecer o conceito sob qualquer
disfarce, através da extensiva familiaridade com exemplos dele. Mas isso, ao fim e ao cabo, não implica
em qualquer compreensão verz dele; de modos que será ainda preciso que façamos uma análise lógica
abstrata dele, nos seus elementos últimos, ou uma análise tão completa quanto pudermos alcançar.
Mas, mesmo assim, podemos ainda estar sem nenhuma compreensão vívida dele; e o único caminho
para competar o conhecimento sobre sua natureza é descobrir e recolhecer extamente quais hábitos de
conduta gerais a crença na verdade do conceito (para qualquer sujeito concebível e sob quaisquer
circunstâncias concebíveis) seriam razoavelmente desenvolvidos; quer dizer: quais hábitos últimos
resultariam de uma consideração suficiente desta verdade. É preciso aqui entender a palavra 'conduta',
no sentido mais lato. Se, por exemplo, a predicação de um dado conceito conduzir-nos a admitir que
uma dada forma de raciocínio concernente ao assunto do qual ele foi afirmado é válida, quando ela não
5
I - Princípio do evento: “Nada é, a menos que algo aconteça”, quer dizer, os
acontecimentos são anteriores aos entes, e são a sua fonte. Isso pode tanto sustentar
a posição de que estamos enganados ao acreditar na existencia dos seres, quanto
dizer que a experiência é explicada melhor através da perspectiva eventos.
III.a – Princípio genético: “Tudo que acontece é feito para acontecer”, traduz o modo
consistente de expressar o princípio da causação, esclarecendo que “os eventos e
apenas eles tem causas” (DeBrock 2003:2) e que, se atribuímos causas à coisas e a
fatos, isso só é aceitável em virtude dos acontecimentos que neles estão implicados.
III.b – Princípio pragmático (ou operacional): “Nada acontece sem que faça algo
acontecer”, ou seja, só há eventos se houver a geração de diferenças. A despeito da
aparente tautologia, esse princípio manifesta a proposição de que os efeitos do que
acontece são parte dos acontecimentos: o que o evento é só é manifesto pelo que ele
descencadeia. Além disso, tomando este princípio em combinação com o princípio
genético, somos conduzidos ao princípio de conexão, segundo o qual todos eventos,
embora singulares, emergem a partir de eventos e fazem emergir eventos
subsequentes.
o seria de outra maneira, o reconhecimento desse efeito em nosso raciocinar seria, decididamente, um
hábito de conduta.
6
O rompimento com a tradição do pensamento ocidental8 fica claro aqui: se a
implicação (“se p, logo, q”) é implícita aos fenômenos naturais, a razão, a lógica e o
pensamento estão no seio da natureza (o que, por exemplo, proporciona um ótimo
ponto de partida para discutir as “máquinas de imagens” como “máquinas de
pensar”). Se os fenômenos naturais obedecem a hábitos que eles próprios
estabelecem, por exemplo, na gravitação, na evolução biológica ou no aparecimento
de “eixos ético-estilíticos” no documentário, o duradouro debate ocidental acerca da
relação entre “mente e matéria” fica com uma relevância próxima àquela sobre o do
sexo dos anjos. Segundo DeBrock, aliás, a origem e a consolidação dessas
postulações proviria principalmente das condições práticas da investigação científica
contemporânea, cujas recentes mudanças (do século XIX em diante) são muito mal
assistidas pela linguagem da ciência e da filosofia ocidentais modernas.9
8
Embora perfeitamente congruente com paradigmas de pensamento que enxergam a realidade como um
enovelar-se de relações em processos, caso do taoismo “filosófico” chinês, do budismo e do zen-
budismo. Isso não passou desapercebido por Peirce (CP 1.24, "Intended Characters of this Treatise,"
capítulo 1 da "Minute Logic", 1902) e por Whitehead (1978 [1929], 7), e é plausível que os classicos
chineses tenham lhes servido de inspiração (para dizer o mínimo).
9
DeBrock encontra convergência do pensamento tardio de Heidegger e Wittgenstein com a perspectiva
pragmático-processual.
Incluimos o pragmaticismo peirceano e a filosofia do processo (ou do organismo) whiteheadiano na
classe do “pensamento não-moderno” demarcado por Latour (para si mesmo e para seus companheiros
das Science Studies). É impressionante a correspondência entre as duas fraturas apontadas pelo autor
francês (entre humanidades e ciências naturais, entre teoria purificadora e práticas hibridizantes) e os
três modelos incompatíveis de causalidade utilizados pelo pensamento moderno (um baseado numa
ontologia substantiva das ciências humanas, de origem aristotélica, outro, na ontologia factual na maior
parte dos domínios das ciências “exatas”, de origem newtoniana, e uma mistura delas, no senso
comum) identificados por Hulswit (2002). A unificação peirceana obtida em “From Cause to Causation”,
porém, parece ainda ter sido ignorada pelos Science Studies, apesar do pragmatismo peirceano ser
conhecido por autores como Stangers [citação a Peirce em Penser avec Whitehead].
7
como percurso explicativo para a duradoura adesão dos procedimentos de produção
documentária à “imagem-câmera” (problema, segundo Ramos, não solucionado
plenamente pela abordagem analítica que da “asserção pressuposta”).
“...coisas pertencem a uma mesma classe natural, não por causa de certas
qualidades (Primeiros), mas conforme uma essência metafísica que é uma
causa final (ou Terceiro). Portanto, as classes naturais peirceanas são
caracterizadas por (a) um caractere definidor, que é a causa final e (b) um
números de caracteres de classe ou carcteres empíricos teleologicamente
determinados (caracteres ETD); além disso, (C) os caracteres ETD dos
objetos de uma classe natural aglomeram-se em torno de valores médios; (d)
os caracteres ETD não são caracteres essenciais porque não são condições
nem necessárias, nem suficientes, para tornar algo um membro de uma
classe; (e) não há fronteira nítida entre classes naturais estreitamente
relacionadas; (f) classes naturais, embora bem reais, não são entidades
existentes; sua realidade é da natureza da possibilidade, não da actualidade.
(Hulswit 2002, 120-1)
Não deixamos de constatar que “domínios” ou “gêneros” cinemáticos (experimental,
ficcional, documetário), assim como a dos “modos” ou “eixos éticos”, têm consistência
como classes naturais, mas não precisamos mais de tirar categorias da cartola para
dar conta dos filmes híbridos, singulares ou inovadores, pois nada exige que as
enunciações cinematoráficas pertençam a apenas uma classe natural: na medida em
que um mesmo signo pode servir a vários propósitos e determinar efeitos de sentido
diversos. Isso conduz a questões interessantes (a) sobre quais caracteres considerar
10
Peirce, (CP 6.481-482, 1908; CP 6.490, c. 1910)
8
pertinentes para distinguier classificações artificiais e classificações naturais e (b)
sobre a hierarquia entre as classes naturais do cinema, indagações sobre quais seriam
as mais fundamentais, pelo caráter mais geral de suas causas finais.
Por exemplo, uma classe artificial do cinema seria “o uso de encenações”, porque é
apenas um atributo de muitos filmes, mas que não corporifica qualquer conjunto
específico de efeitos práticos em termos de atualização e virtualização de hábitos
(aquisição de crenças, adesão deliberada a padrões de conduta) que possam ser
atribuídas ao procedimento de filmar eventos ensaiados com pessoas que estão
representando outras (ou mesmo a si mesmas, em alguma dimensão diferente). Uma
classe natural identifica-se pela geração de determinações quanto às tendências
matriciais de produção de sentido, ou seja, suas causas finais em convergem
propósitos, hábitos e leis (por exemplo, quando as leis da física quântica que
governam o comportamento de um CCD se acoplam aos procedimentos de
continuidade espaço-temporal dos cineastas e estes à consistência de um discurso
“assertivo” por seus públicos).
A essa altura, não mais nos esquivar de formular explicita e verbalmente nossa
própria conceituação do que seja o documentário como classe natural.
9
DOCUMENTÁRIO E “ÉTICA DO DISCURSO”
Percebemos o cinema documentário como aquele cinema que se configura como ação
comunicativa, apropriando-nos da formulação (peirceana na origem) da pragmática
universal, por [Habermas] (e Appel). A plausibilidade desta identificação entre
documentário e a ética do discurso apoia-se, por um lado, na razoabilidade das
observações de [Fernão Ramos], Mas afinal, o que é documentário quanto a ser a
evolução estilística do documentário desenvolvida em torno de eixos éticos; por outro,
na constatação de que o documentário se corporifica como ação comunicativa, quer
dizer, uma classe de enunciação que é dirigida a espaços de visibilidade pública (que,
retroativamente, se atualizam em enunciações desse jaez).11
11
Esta abordagem permite conciliar as postulações de [Carroll] e [Plantinga] (quanto à “indexação” como
fonte da distinção do documentário), as de Odin, (sobre as vinculações da “leitura documentarizante” e
do “conjunto documentário” à práticas determinadas de interpretação e a arranjos institucionais a
“produção individual” e a “produção institucional”) e as de Ponech (que apela para a identificação do
documentário pela incorporação da intencionalidade assertivo-constativo nos procedimentos de
produção).
A diferença é que se os dois primeiros procedem indutivamente, dos filmes e dos contextos de
circulação empíricos para a identidade, os últimos adota percursos dedutivos, partindo de uma
conceituação universal para os casos concretos. Com conclusões antípodas: Odin postula a
indeterminação última da atribuição de sentido pelo público intérprete; Ponech, a determinação última,
em função da supostamente incontornável intencionalidade da enunciação documentária. Como era de
se esperar da demanda metafísica de uma definição de documentário, os primeiros são conduzidos a
definições “abertas” (vagas e lábeis) como os de family rassemblances, pois é impossível inferir
universais partindo apenas de singulares existentes; os segundos, pela universalidade abstrata do
conceito definidor (seja a intencionalidade assertivo-constativa ou o leitura documentária), para dar
conta dos processos de produção de sentido dos documentários reais, são forçados a criar tal
quantidade de regras específicas.
Esperamos aqui poder delinear uma demarche abdutiva, tomando o documentário como uma classe
natural e os seus sentidos como eventos que emergem de em processo.
10
embora essas defasagens possam levar enunciações cinematográficas a, no limite,
deixar de serem reconhecidas como documentários, em algumas situações e para
determinados públicos.
12
Inteligibilidade, aqui, é uma propriedade do discurso que inclui não só a sua adesão a procedimentos
de enunciação simbólica habituais de uma comunidade intérprete (ou pelo menos um diálogo com eles),
mas também, no plano dos procedimentos não-simbólicos (quasi-sígnicos e sígnicos degenerados), a
realização dos procesos “pré-reflexivos” da “percepção enquanto expressão” peculiar à imagem-câmera
[Sobchack].
Note-se que para a pragmática universal de Habermas e Appel, há uma co-determinação entre
inteligiblidade e ética: a adesão à ethoi discursivos é que propicia a inteligibilidade, que por sua vez
atualiza comunicação a adesão a princípios (que, como causas finais, evoluem a cada atualização).
13
Habermas faz uma distinção entre atos expressivos auto-interpretáveis (os atos de fala e os atos
expressivos não-lingüísticos na perspectiva dos participantes) e hetero-interpretados (os atos
expressivos não-linguísticos vistos do ponto de vista de um participante externo), com base na suposta
transparência intencional dos primeiros (a natureza da ação desempenhada pela elocução está nela
própria). É a mesma razão pela qual Ponech se apoia na atribuição de intencionalidade à enunciação
como critério de distinção do cinema documentário. Porém, não partilhamos da disposição de fazer essa
distinção a-priori, primeiro porque a “causação semiótica” concreta sempre comporta sua incerteza
(que, aliás, confere singularidade), segundo porque o caráter de inscrição do cinema o situa a meio
caminho entre a insubstancialidade do discurso verbal e a opacidade intencional do artefato.
14
Essa condição de validez corresponde à passagem do espaço externo ao espaço interno do discurso,
quando o enunciatário decide se e até que ponto irá se aceitar o lugar oferecido (o Leitor Implícito de
Iser), no discurso, pelo enunciador. [Carneiro, O Discurso da Mídia].
11
perlocutório também se refere à maneira pela qual as enunciações públicas,
retroativamente, conduzem à emergência de públicos intérpretes e
concernidos (a eclosão, perenização e eticização de relações entre os
enunciatários).
15
Na cosmologia processual-pragmática, aliás, o caráter irredutível do acaso é que garante que em todo
fenômeno mecânico haja tendências infintesimais (algo que Deleuze identificaria com o clinamen
estóico) que define a teleologia dos acontecimentos reais e o caráter unidirecional da causação e do
tempo. Vide [Hulswit, cap 3].
12
e todos os atos enunciativos (eventos produtivos) que o compõem estão governados
por ethoi os quais têm suas convergências, divergências e concorrências. Estes atos,
ao se realizarem, configuram-se como eventos produtivos, conformando as condições
de realização dos atos subseqüentes e também, retroativamente, transformando os
ethoi que tentam determinar seus traços concretos.
13
custos de produção de imagens, com a aquisição de uma reprodutibilidade ilimitada e
a consubstanciação de um meio não-hierárquico de difusão de imagens, tem sido os
vetores de uma transformação radical da esfera de visibilidade pública percorrida
pelas enunciações documentárias.
16
Bauman, 2003, 63 e ss. Bauman distingue dois tipos de comunidades, na contemporaneidade: uma
heterodeterminada (pelas tecnoburocracias) e de vínculos ocasionais e voláteis (ainda que afetivamente
intensos) e outra, a “comunidade ética” auto-determinada e que busca sua autonomia através da
consolidação de compromissos éticos (de valores e de condutas) de longo prazo. Bauman define este
último tipo partindo do conceito de autonomia de [Castoriadis (1982)] e das análises habermasianas
sobre o papel fundamental da ação das “organizações autônomas da sociedade civil” para a manutenção
do caráter crítico da esfera pública [(Habermas 1984, 1997b)] Preferimos assumir tais conceitos como
pólos extremos, para observar os possíveis processos de transição e propor práticas pelas quais a esfera
pública seja regenerada pela geração de tendências a eticização dos coletivos.
14
Nenhuma fonte seria melhor do que a ativista para esclarecer “porque eu não deveria
usar o sacanatube” (no original: “Why shouldn't I just use ScrewTube ?”)
17
http://www.m2hz.net/forum/viewtopic.php?p=14&sid=fb59a88529a4edd6c06bf55fcaa85bec em
20/01/08.
15
dinâmicas ético-procedimentais. Estes grupos (ou “coletivos”, como costumam se
autodenominar), tem empreendido um constante esforço no sentido de denunciar
como enganosas as facilidades e os atrativos das novas plataformas telemáticas de
difusão como formas de exploração do tempo de trabalho (imaterial) não pago em
diversas dimensões: apropriação sub-reptícia dos direitos patrimoniais, geração de
valor especulativo da visibilidade dos espaços de visibilidade corporativamente
controlados, exploração da atenção do público para a venda de publicidade, extração
de informações comercial e politicamente estratégicas quanto ao comportamento dos
membros do público e até mesmo a colaboração com o aparato repressivo de alguns
estados nacionais. Por outro lado, eles tem sido extremamente inovadores quanto à
criação de novos procedimentos e novos conjuntos de procedimentos na enunciação
pública – e, no que nos interessa, na enunciação cinemática documentária.
16
individual, através de proposições cada vez mais abertas visando fazer com
que cada um encontre em si mesmo, na disponibilidade, pelo improviso, sua
liberdade interior, a pista para o estado criador – seria o que Mario Pedrosa
definiu profeticamente como ‘exercício experimental de liberdade’. (...) As
proposições que surgem, ora lançam mão do objeto (palavra, caixa etc., indo
a todas as modalidades, até a ‘coisa’ e à ‘apropriação’), ora do ambiente,
absorvendo, catalisando seus elementos, mas visando à proposição em sua
essência. (...) O que importa, ainda, é a estrutura interna das proposições,
sua objetividade. O conceito de Nova Objetividade não visa, pois, como
pensam muitos, diluir as estruturas, mas dar-lhes um sentido total, superar o
estruturalismo criado pelas proposições da arte abstrata, fazendo-o crescer
por todos os lados, como uma planta, até abarcar uma idéia concentrada na
liberdade do indivíduo, proporcionando-lhe proposições abertas ao seu
exercício imaginativo, interior – esta seria uma das maneiras, proporcionada
neste caso pelo artista, de desalienar o indivíduo, d torná-lo objetivo no seu
comportamento ético-social. O próprio ‘fazer’ da obra seria violado, assim
como a ‘elaboração’ interior, já que o verdadeiro ‘fazer’ seria a vivência do
indivíduo. [HO, “Aparecimento do supra-sensorial na arte brasileira” AGL,
102-3]
O artista não é então o que declancha os tipos acabados, mesmo que
altamente universais, mas sim propõe estruturas diretamente ao
comportamento, inclusive propõe propor, o que é o mais importante como
conseqüência. A obra antiga, peça única, microcosmo, a totalidade de uma
idéia-estrutura, transformou-se, com o conceito de objeto, também numa
proposição para o comportamento...: estruturas palpáveis existem para
propor, como abrigos aos significados, não uma ‘visão’ para um mundo, mas
a proposição para a criação do ‘seu mundo’, com os elementos da sua
subjetividade, que encontram aí razões para se manifestar: são levados a
isso. [HO, “A Obra, seu caráter objetual, o comportamento”, AGL, 120]
Não haveria espaço suficiente para explorar a notável pertinência, para a discussão do
documentário contemporâneo, das observações de Oiticica, sobre as “apropriações”
empreendidas na produção dos seus trabalhos (que, para ele, não se confundem com
os objectes trouvées nem aos ready-mades da arte moderna). O que fica muito claro,
porém, é que, para Oiticica, o efeito de sentido que interessa ao artista é a produção
de novos hábitos de consciência, de percepção e de comportamento coletivo através
dos objetos. A obra não é uma coisa atual, mas uma corporificação tangível de um
signo catalisador, propiciador de modificações (por isso o “anti-”) contextuais (daí o
“ambiental”, apontando já para a crítica à circulação institucional), de natureza aberta
(ao acaso, quer dizer, signos de causas finais e eficientes tão variadas que alcança o
status de indeterminação). A “Nova objetividade” defendida por Oiticica é o oposto da
promoção do “objeto” a um novo gênero da arte (como escultura, pintura, desenho),
que testemunhamos hoje pelas galerias comerciais e museus corporativos e estatais:
é o propiciamento da entrada dos membros do público (ou seja, pela singularidade, a
causa sui de cada indivíduo) em comportamentos não codificados, ou seja,
experimentais. Neste sentido “ambiental”, as vicissitudes da circulação das obras de
arte como os parangolés é parte fundamental das “causas finais” delas, da mesma
17
maneira como a referência a parâmetros éticos guiam a produção e permitem o
reconhecimento do documentário enquanto tal.
18
Citação de Goto: “O conceito da autodependência é usado por Werner Herzog como uma alternativa
para a compreensão das produções do “cinema independente”, pois, ao contrário de imaginar esse
âmbito produtivo como algo desvinculado de parcerias e relações – independente – o cineasta vê esse
campo de atuação como algo que fundamentalmente depende do próprio autor para existir, inclusive
nas articulações de parcerias. In: HERZOG, Werner. "Coração Selvagem". Paulo Camargo e Carlos
Augusto Brandão (texto e entrevista). Jornal Gazeta do Povo. 31 Jan 2005. Curitiba: Caderno G.”
18
atividades – a partir de curadorias e agenciamentos coletivos feitos por
artistas; organização de encontros, debates e mostras; apoio à produção de
trabalhos; criação de estratégias diferenciadas de sustentabilidade
econômica; elaboração e publicação de textos críticos, relatos e registros de
ações em revistas impressas ou eletrônicas; estabelecimento de programas
de intercâmbio entre artistas; criação de arquivos de documentos e vídeos.
Enfim, práticas que afirmam uma real perspectiva de autogestão social da
informação e da produção artísticas.
[Newton Goto, http://www.rizoma.net/interna.php?id=250&secao= artefato]
19
Em seguida, sai pelas ruas do Rio de Janeiro, rodopia sob os Arcos da Lapa com
amigos, e com sua ajuda sobe em um pilar dos Arcos. Realiza, portanto, de uma
espécie de experiência de reativação das proposições estéticas da anti-arte ambiental.
Através da disponibilidade do objeto e dos sujeitos, catalisa novamente os
acontecimentos, mas que agora adquirem um tom sarcástico, pela vinculação às
formas de difusão e apreciação convencionais.
19
“Situações de tomada” é um operador derivado do conceito de “situações” e de “definição de
situações”, oriundas da microssociologia de [Goffmann]. Trata-se de uma noção que caracteriza os
procedimentos “cênicos” empreendidos pelos atores sociais, em geral estabilizados como padrões de
conduta institucional, e, eventualmente, idiossincráticos. No caso das tomadas de imagens em
movimento, trata-se dos esforços de mise-en-scène e auto-mise-en-scène (termos propostos por
[DeFrance]) que atualizam, no evento pró-filmico, as intenções e perspectivas dos participantes do ato
da tomada cinematográfica, que emerge das convergentes, divergentes ou concorrentes.
[Rouch] assume uma posição radical ao qualificar como de cine-transe essas situações, mas em geral se
adota esse termo apenas para as situações de grande indefinição, quando o acaso objetivo (ou seja, a
multidão ou o caráter inconsciente das “causas finais”) é a fonte predominante da definição das
situações. (O que parece ser o caso da primeira parte do documentário sob nosso escrutínio).
20
A primeira (bloco I) e a última (bloco VII) são gravações de objetos inanimados: a
primeira (“como pregar botões”) alude ao caráter artesanal do Parangolé e talvez à
atitude de “pregar peças”, adotada pelos documentaristas em suas interações com as
pessoas do “meio artístico”; a que aparece no final do documentário, são letreiros
caligráficos (que são entremeados em meia-fusão como créditos aos participantes das
tomadas durante o coquetel no MAM).
20
A distinção entre cada “bloco de situações” é feita pelo predomínio de uma situação, por exemplo,
quando se usa uma como fonte do “conteúdo proposicional” e outra como “decoração”, como acontece
no bloco II (as imagens de parangolés são usadas como “planos de corte”).
21
ambientais e anti-artísticos do parangolé e, de outro lado, da atitude amedrontada e
contida diante d a típica atitude de soberba de um crítico e curador. Nesta tomada,
adeus ao processo supra-sensorial, nada de Cuquinha-GuevalutaBaby: prevalece uma
ontologia das substâncias e dos fatos, os corpos se separam como o artista iniciante
Lourival Batista e o Objeto de Arte Contemporânea. Poder-se-ia dizer que, no primeiro
caso, a definição da situação de tomada é compartilhada com os participantes, na
segunda, barganhada com um adversário.
No final do bloco (IIIb), de tomadas sob os Arcos da Lapa nos transporta para fora do
contexto artístico institucional e nos lança, no cronótopo da boemia carioca, ao
paroxismo do transe catalisado, quatro jovens girando e gritando o nome do espírito
que os possui (três visíveis e um ou uma gravando). Cuquinha-GuevalutaBaby sobe
no pilar, salta, e permanece “suspenso nas mediações”.
No bloco VI, como já mencionamos, a candid camera portada pelo próprio Cuquinha
penetra no espaço do museu e o mostra sendo “suavemente” admoestado por três
funcionários: Lourival é um artista profissional, não quer confrontar diretamente às
instituições. Mas é um ato agressivo: aos demais participantes da tomada é recusada,
como já comentado, o compartilhamento na definição da situação de tomada (embora
não na situação social, e é essa a ambiguidade deste plano).
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plágio da maquiagem do projeto CosmoCoca, temos agora um segundo pseudo-plágio
sobre a face do próprio pseudo-plagiário, reproduzida na superfície infográfica da
mídia digital. Este deslocamento sugere-nos dois cursos interpretativos: primeiro, um
comentário à digitalização sobre a homogeneização dos suportes e à banalização
radical das máquinas de imagens, reverberando a identificação da câmera digital
como personagem, no meio do bloco IIIa. Outro curso é a atualização da proposição
CosmoCoca, imbricada com a pesquisa do “quasi-cinema”, desenvolvido por Oiticica
junto com o cineasta Neville de Almeida, funcionando como uma resposta
procedimental à queixa ouvida no início do bloco: “não reclama não, porque isto é
quasi-cinema, cinema (documentário) experimental!”
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densa rede que vai de antes da concepção até depois das conversas entre os
membros dos públicos. Nossa opção é identificar as causas finais atuantes, como se
como elas se atualizam em atos, como convergem ou divergem e quais as
singularidade dos eventos resultantes. Existem recorrências, sedimentações retóricas
e institucionais, mas devemos vê-las como processos produtivos recorrentes
(autopoiéticos) cuja deriva pode ser muito lenta.
Tomo aqui o conceito semiótico de argumento como classe de função sígnica atinente
a todo e qualquer ação comunicativa. Argumento não é necessariamente verbal, nem
depende de haver tensão na sua aceitação. Argumentos são signos que se constituem
como signos por atualizar suas próprias causas finais (interpretantes finais e últimos),
prescrever sua própria retórica (ou, no mínimo, algumas condições segundo as quais
esse signo deveria desenvolver-se e a gerar outros). Poesias são argumentos porque
buscam gerar efeitos estéticos, relatos, efeitos epistêmicos. E, como a teoria do atos
de fala ensina, todo e qualquer discurso dispõe de dimensão perlocutória de
(estranhamente esquecida das discussões dos teóricos que declaram filiação à filosofia
analítica). A definição de documentário feita sem a levar em consideração privilegia
um certo tipo de documentário que tampona sua própria responsabilidade política.
Discursos públicos comprometem a enunciação com valores compartilhados, atualiza
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esses valores e os prescreve. A arte e o documentário que chama para si a
qualificação de experimental ou ambiental está ávida de assumir plenamente esta
responsabilidade, assim como o documentário que problematiza seu próprio circuito e
que tenta construir recursos de enunciação que sejam eticamente consistentes com
seu caráter argumentativo são, portanto, documentários genuínos, no sentido
semiótico e éticos, no sentido político.
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