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A ANÁLISE DO DISCURSO EM CONTRAPONTO

À NOÇÃO DE ACESSIBILIDADE ILIMITADA DA INTERNET

Cristina Teixeira Vieira de Melo1

1. Caindo na rede

Costuma-se dizer que, na internet, o hipertexto2 é um texto de


acessibilidade ilimitada, ou seja, não experimentaria qualquer tipo de censura
quanto às ligações que permite estabelecer, por isto mesmo, seria um espaço
profícuo para o desenvolvimento de formas de comunicação transversais,
interativas e cooperativas. Um dos grandes entusiastas do poder da Internet
como instrumento de democratização do conhecimento e da sociedade é o
filósofo francês Pierre Lévy.
No seu livro Cibercultura (1999), Lévy reutiliza a metáfora da arca de
Nóe para se referir ao que Roy Ascott3 chama de “segundo dilúvio”, o dilúvio da
informação. Segundo Lévy, diferentemente da operação de salvamento de
Noé, que deixou afogar tudo aquilo que não conseguiu reter, o novo dilúvio
salva a todos. Para o filósofo francês, enquanto no dilúvio bíblico a arca de Noé
simboliza uma “totalidade reconstituída”, isto é, fechada, única, estanque,
totalizante; no dilúvio informacional não há apenas uma arca, mas várias.

“Quando Noé, ou seja, cada um de nós olha através da escotilha de


sua arca, vê outras arcas, a perder de vista, no oceano agitado da
comunicação digital. E cada uma dessas arcas contém uma seleção
diferente. Cada uma quer preservar a diversidade. Cada uma quer
transmitir. Estas arcas estarão eternamente à deriva na superfície das
águas.” (Lévy, 1999: 15)

A cibercultura4, portanto, expressaria o surgimento de um novo


universal, diferente das formas culturais que vieram antes. Para Lévy, o
universal no ciberespaço5 se construiria sobre a indeterminação de um sentido

1
Professora Adjunto do Departamento de Comunicação Social da UFPE, doutora em
Lingüística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP.
2
Para Catherine F. Smith (1994:267) “o hipertexto, incluindo a hipermídia, é uma tecnologia
para definir unidades de informação significativas (nós) e produzir interconexões significativas
entre elas. Nós e links são as competências definidoras do hipertexto.” Para a autora, são
justamente as possibilidades de interconectar porções textuais (os nós) mediante seleções
feitas com interconectores (links) que dão ao hipertexto sua especificidade. Tanto assim, que
isto o torna diverso de um processador de texto, por exemplo, ou de um programa de busca e
de um banco de dados. Pois não se deve confundir um hipertexto com um banco de
informações virtualmente acessáveis.
3
Conhecido pesquisador da área de Tecnologia da Informação, fundador e diretor do CAiiA-
STAR (Centro Avançado para Pesquisa em Artes Interativas, da Universaidade de Wales.
4
Lévy (1999: 17) conceitua cibercultura como “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais),
de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem
juntamente com o crescimento do ciberespaço”.
5
Ciberespaço é para Levy o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial
dos computadores. Segundo ele, “o termo especifica não apenas a infra-estrutura material da
comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ele abriga, assim
como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo” (Lévy, 1999:17) .
global qualquer, e por isto ele o chama de “universal sem totalidade”. Ainda
nas palavras dele,

“A emergência do ciberespaço não significa de forma alguma que


“tudo” pode enfim ser acessado, mas antes que o Todo está
definitivamente fora de alcance. O que salvar do dilúvio? Pensar que
poderíamos construir uma arca contendo “o principal” seria justamente
ceder à ilusão da totalidade. Todos temos necessidade, instituições,
comunidades, grupos humanos, indivíduos, de construir um sentido, de
criar zonas de familiaridade, de aprisionar o caos ambiente. Mas, por
outro lado, cada um deve reconstruir totalidades parciais à sua
maneira, de acordo, de acordo com seus próprios critérios de
pertinência. Por outro lado, essas zonas de significação apropriadas
deverão necessriamente ser móveis, mutáveis, em devir. A tal ponto
que devemos substituir a imagem da grande arca pela de uma frota de
pequenas totalidades, diferentes, abertas, provisórias, secretas por
filtragem ativa, perpetuamente reconstruídas, pelos coletivos
inteligentes que se cruzam, se interpelam, se chocam ou se misturam
sobre As grandes águas do dilúvio informacional.” (Lévy, 1999: 161)

Portanto, o que autor destaca deste novo ambiente é sua capacidade de


integrar diferentes vozes, sem que uma prevaleça sob as outras. Cada
participante pode ter um papel ativo na rede. Cada grupo, cada indivíduo pode
tornar-se emissor e contribuir para “enchente”.

2. Desatando alguns nós

De fato, tecnicamente, o ciberespaço aceita todos. Qualquer grupo ou


indivíduo, não importando sua origem geográfica e social, pode investir na rede
por conta própria e difundir nela todo tipo de informação que ache digna de
interesse, desde que para isto lance mão de um mínimo de competências
técnicas. As facilidades para lançar uma publicação na Web são, sem sombra
de dúvidas, infinitamente maiores do que na mídia tradicional.
Embora no ciberespaço cada sujeito é efetivamente um potencial
produtor de informação, a Análise do Discurso (AD) vai nos mostrar que
mesmo que a rede abrigue uma pluralidade de idéias, de pontos de vista, isso
não é suficiente para que haja uma democratização dos discursos. Não basta
as idéias estarem lá depositadas, é preciso que elas circulem, que elas tomem
corpo, que elas reverberem. Isto é, que elas entrem na ordem do discurso e
não fiquem apenas “à deriva na superfície das águas”.
Foucault (1996) já apontava, entre os procedimentos de controle do
discurso, a rarefação do sujeito, que implica dizer que nem todo mundo tem
acesso a todos os discursos, pois a sociedade seleciona o que pode e deve ser
dito (para quem) a partir de uma série de restrições com base em formas de
controle. Fica evidente, assim, uma distribuição desigual dos discursos.

“Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas


exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais
precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente
abertas e penetráveis”. (Foucault, 1996: 37):
É a partir destas colocações de Foucault que criticamos a postura de
Lévy quando diz que

“Quanto mais o ciberespaço se amplia, mais ele se torna universal, e


menos o mundo informacional se torna totalizável. O universal da
cibercultura não possui nem centro nem linha diretriz. É vazio, sem
conteúdo particular. Ou antes, ele os aceita todos, pois se contenta em
colocar em contato um ponto qualquer com qualquer outro, seja qual
for a carga semântica das entidades relacionadas.” (Levy, 1999:111)

Ora, quando realiza buscas de natureza informacional o internauta


costuma acessar as páginas dos jornais atrás de notícias. À semelhança do
que ocorre em outros suportes, as idéias não hegemônicas muito dificilmente
ganham espaço no jornalismo on line. Aqueles que têm acesso garantido aos
espaços discursivos da mídia tradicional (jornais, revistas, rádio e televisão)
são os mesmos que têm acesso à mídia digital. Da mesma forma, os que
tradicionalmente são excluídos, continuarão de fora. Afinal, as instituições que
estão por trás dos suportes se mantêm as mesmas. Ou seja, o posicionamento
discursivo da Folha de São Paulo ou de O Globo, por exemplo, será o mesmo
na sua versão impressa ou on line.
Assim, no ciberespaço, o discurso dos excluídos (as idéias do lado B) só
aparece em sites e homepages de iniciativa pessoal e/ou institucional e só
serão conhecidas caso o sujeito-internauta esteja realizando buscas de caráter
não puramente informacional, mas de natureza temática, que estamos
nomeando aqui como ‘buscas de conhecimento’.
Os sites de busca colocam em cena de maneira mais evidente o
fenômeno da polifonia discursiva, pois, como resultado de uma pesquisa o
leitor/navegador obterá uma listagem, de extensão variável, com indicações de
todas as referências que estão na rede sobre o assunto pesquisado. Ou seja,
uma pluralidade de vozes ocupa concomitantemente o mesmo espaço
discursivo, a tela do computador, e à medida que vai se clicando nos links
disponíveis, ter-se-á acesso a diferentes discursos.
Por este prisma podemos concordar que a Internet é um espaço
democrático e que “quanto mais o ciberespaço se amplia mais ele se torna
universal”, pois neste caso falar em universal significaria falar de diversificação
de vozes. No entanto, esta crença numa sociedade libertária, numa integração
geral, universal em que todos teriam acesso a tudo que necessitassem a
qualquer momento em tempo real só existe do ponto de vista técnico, virtual,
mas não do ponto de vista de práticas sociais efetivas. Ninguém consegue ter
acesso a tudo o que está na rede, pois, as trocas no ciberespaço funcionam
como quaisquer outras. Ou seja, estão vinculadas as condições de produção e
circulação do discurso (conhecimento, acesso, etc), como exposto
anteriormente a respeito dos procedimentos de controle dos discursos.

3. Tudo não passa de uma ilusão

Ainda tomando como base as teses da Análise do Discurso (AD) não


podemos concordar quando se diz que o ciberespaço “se contenta em colocar
em contato um ponto qualquer com qualquer outro, seja qual for a carga
semântica das entidades relacionadas”. Isso absolutamente não é verdade.
Este ponto de contato só se dará entre Formações Discursivas (FDs)
assemelhadas, FDs contrárias a minha jamais serão acessadas através de
links presentes no meu site ou homepage. Isto porque todo hipertexto funciona
da mesma forma que um texto, ou seja, é produzido com base em
determinados interesses e suposições
Neste sentido, por exemplo, sites jornalísticos, de partidos políticos, de
ONGs etc vão restringir suas conexões somente a determinados lugares na
rede que estejam em consonância com a sua FD, com exclusão de tantos
outros sites, páginas e homepages. Pode-se dizer, portanto, que a conexão é
bastante diretiva e o efeito de sentido final, estabelecido entre os interdomínios,
tem caráter monofônico, apesar da heterogeneidade de vozes (cf. Authier-
Revuz, 1982 ). Tomemos os dois exemplos que seguem retirados de um site
pessoal que aborda a questão da energia nuclear e do site da Associação dos
Ambientalistas a favor da Energia Nuclear (AAEN).

Exemplo 1:

Associação dos Ambientalistas


a favor da
Energia Nuclear (AAEN)
Para uma informação objetiva, completa e honesta
sobre energia e o meio ambiente

mailto:nuc-po@ecolo.orgnuc-po@ecolo.org
55 rue Victor Hugo, 78800 Houilles, France
Telefone: +33 1 30 86 00 33 - Fax: +33 1 30 86 00 10
Click here for a presentation of EFN in PDF format, which you may print,
photocopy and distribute to your friends

Apresentação
A Associação de Ambientalistas a favor da Energia Nuclear (AAEN) é uma
organização ambiental sem fins lucrativos, cujo objetivo é informar, de maneira
completa e correta, sobre as questões energéticas, divulgar as vantagens ambientais
da energia nuclear e reunir as pessoas favoráveis a uma utilização inteligente e com
fins pacíficos da energia nuclear, respeitando o meio ambiente.

Histórico da "Associação de Ambientalistas a favor da Energia Nuclear"


A AAEN começou em 1996 com Bruno Comby , autor do bestseller: "Ambientalistas a
favor da Energia Nuclear", após a publicação do seu livro e da sua participação em
vários debates na TV sobre o assunto, quando fez oposição a Thilo Bode, Diretor
Executivo do GreenPeace International e a Michèle Rivasi (Presidente da Crii-Rad,
comissão de pesquisa e de informação independente sobre radioatividade). A
publicação de seu livro e suas primeiras entrevistas resultaram em desafetos, ligações
anônimas, ataques indiretos, e foram objetos de insultos e atitudes não muito
amigáveis, atitudes surpreendentes, originárias de grupos e indivíduos antinucleares.
O aspecto positivo foi unir pessoas que decidiram se expressar e defender o ponto de
vista de B. Comby e criar a associação internacional AAEN para promover a energia
nuclear de forma pacífica para um planeta melhor e mais limpo. A AAEN se preocupa
em fornecer ao público informações completas e honestas sobre esta formidável fonte
de energia, como meio de proteger o nosso meio ambiente.

Exemplo 2:

Atualmente existem mais de quatrocentas usinas nucleares em operação no mundo


– a maioria no Reino Unido, EUA, França e Leste europeu. Vazamentos ou explosões
nos reatores por falhas em seus sistemas de segurança provocam graves acidentes
nucleares. O primeiro deles, na usina russa de Tcheliabínski, em setembro de 1957,
contamina cerca de 270 mil pessoas. O mais grave, em Chernobyl, na Ucrânia, em
1986, deixa mais de trinta mortos, centenas de feridos e forma uma nuvem
radiativa que se espalha por toda a Europa. O número de pessoas contaminadas é
incalculável. No Brasil, um vazamento na Usina de Angra I, no Rio de Janeiro,
contamina dois técnicos. Mas o pior acidente com substâncias radiativas registrado
no país ocorre em Goiânia, em 1987: o Instituto Goiano de Radioterapia abandona
uma cápsula com isótopo de césio-137, usada em equipamento radiológico.
Encontrada e aberta por sucateiros, em pouco tempo provoca a morte de quatro
pessoas e a contaminação de duzentas. Submarinos nucleares afundados durante a
2a Guerra Mundial também constituem grave ameaça. O mar Báltico é uma das
regiões do planeta que mais concentram esse tipo de sucata.
Podemos observar que embora tratem do mesmo tema, a abordagem
em e em outro site é totalmente diferenciada, mais do que isto é oposta. A
própria configuração icônica de abertura das páginas confirma isto. Enquanto
no site da AAEN, temos o uso de cores que lembram a natureza (verde e azul)
e a imagem de um pintor que ao retratar uma usina nuclear termina pintando
uma árvore; no outro site a energia nuclear é tratada como uma ameaça, as
cores são fortes e aparece inclusive a figura de uma caveira. (desenvolver um
pouco mais esta análise)
Apesar de apontarmos que o efeito de sentido final de determinados
sites é monofônico, a AD não nos deixa esquecer que todo discurso é
interdiscurso. Portanto, o discurso de um outro aparece no meu discurso, no
nosso caso de análise, nos sites; porém nunca como objeto de discurso (com
exceção dos casos de ironia e paródia), mas como princípio constitutivo de
qualquer falar (todo discurso carrega em si um contradiscurso).
Para expor melhor a idéia de discurso como interdiscurso, retomamos o
que propõe Maingueneau (1984) sobre o tema. Para ele, “tratar de discurso é
opor um sistema de restrições de boa formação semântica (a formação
discursiva) ao conjunto de enunciados produzidos de acordo com o sistema (a
superfície discursiva)” (Maingueneau, 1984: 10). Para este autor, o termo
“discurso” refere-se à própria relação que une os dois conceitos precedentes.
Ou seja, trata-se menos de um corpus efetivo, do que de um conjunto de
restrições a partir das quais ele é produzido (“... remete menos a um conjunto
de textos efetivos, do que de a um conjunto virtual, o dos enunciados que
podem ser produzidos de acordo com as restrições da formação discursiva”.)
(p. 10).
Possenti (2002: 197) chama atenção para o fato de que, em
Maingueneau, o interdiscurso precede o discurso no sentido do Outro ser
desenhado a partir do Um. Comenta Possenti,

“esse caráter do interdiscurso faz com que a interação semântica entre


os discursos seja um processo de interincompreesão regrada. Cada
discurso introduz o Outro em seu fechamento, traduzindo seus
enunciados sob a forma do `simulacro`”. (p. 196).

Assim, as principais teses e argumentos sustentados pelo discurso de


um Outro sofrem sempre um rebaixamento no interior de uma formação
discursiva. E como bem lembra Possenti, mesmo não havendo um outro, seu
discurso, na forma de simulacro, poderia ser criado a partir de um discurso
existente. Se isso ocorre ou não, depende de haver confronto entre discursos.

4. A leitura hipertextual na internet

Marcuschi (1999) lembra que o conhecimento que o hipertexto


internetiano nos dá é muito fragmentário. Ao permitir vários níveis de
tratamento de um tema, o hipertexto oferece a possibilidade de múltiplos graus
de profundidade simultaneamente, já que não tem seqüência nem topicidade
definida, mas liga textos não necessariamente correlacionados. Diante disso,
Moulthrop & Kaplan (1994:227, apud Marcuschi, 1999) lembram que, no
hipertexto, “em termos práticos, ‘o espaço de escrita’ pode ser considerado
infinitamente expansível e, assim, promíscuo” (grifo dos autores). Tal
promiscuidade deve-se à possibilidade de se partir de uma dada posição para
seguir a qualquer outra, mesmo que não seja relevante nem correlacionada.
Esses aspectos confirmam, o que Marcuschi (1999) aponta: “uma leitura
proveitosa do hipertexto exige um maior grau de conhecimentos prévios e
maior consciência quanto ao buscado, já que é um permanente convite a
escolhas muitas vezes inconseqüentes”.6 Marcuschi chama a esta sobrecarga
exigida do leitor do hipertexto de stress cognitivo.
Podemos exemplificar tal processo da seguinte forma: se alguém entrar
em alguma página da INTERNET com o intuito de buscar alguma informação
muito específica, certamente vai navegar por muitos canais antes de chegar ao
que deseja. Digamos que queira inteirar-se sobre um dado pintor mexicano da
atualidade. Após entrar na página de artes, deve seguir para a de museus e
desta para os museus na América Latina e então para as artes
contemporâneas e chegar ao México para depois de algumas escolhas e
leituras atingir seu objetivo. Até aí não aprendeu nada, não satisfez nenhuma
curiosidade e, se não for bom no manuseio da INTERNET terá perdido a si e
sua paciência várias vezes. Claro que teria ido direto ao assunto se tivesse à
mão o “site” daquele pintor. Mas isso não é fácil saber e por vezes é o que
queremos saber.
Esse caminho é, portanto, muitas vezes, uma construção penosa e cheia
de curvas para pouco resultado. Exige conhecimentos de várias ordens e uma
capacidade de relacionar e associar fatos, dados etc. que nenhuma leitura de
um livro vai requerer. De certo modo, o que aqui ocorre é que a compreensão
se torna algo que não se constrói apenas na relação direta de enunciados
concatenados, mas na relação de porções textuais propiciadas por
expectativas, interesses, necessidades e outros aspectos que envolvem
crucialmente conhecimentos de base mais sólidos. Isto conduz a uma nova
visão das teorias de produção e compreensão textual. Seguindo o que afirma
com Johnson-Eilola (1994:216), Marcuschi (1999) defende que o conceito de
hipertexto traz não um deslocamento do texto impresso, mas sim uma revisão
de nossas formas de pensar o letramento e as condições de produção social
do conhecimento. Em especial vem “dar voz aos silenciados em nossa cultura”
e esclarecer as relações bastantes complexas entre autor e leitor, mesclando
suas posições.
Neste ponto vale a pena retomar as considerações de Possenti (2002:
18) acerca do leitor de textos na Internet.

“... o leitor que emerge dos textos sobre hipertexto é constituído um


tanto paradoxalmente. Por um lado, ele é todo poderoso, pelo menos
mais poderoso que o autor, tanto que decide ir por aqui ou por ali
segundo seus interesses pelos links que quer visitar. Mas, por outro
6
A rigor, um hipertexto, ao delegar ao leitor a decisão da integração de conhecimento, faz
exigências cognitivas muito fortes e difíceis. Por outro lado, o hipertexto não é um banco de
dados, pois como bem frisa Snyder (1997:35), diferentemente do que ocorre com bancos de
dados, os hipertextos não foram construídos para serem pesquisados, mas para serem lidos.
Os hipertextos contém informações para serem entendidas por seres humanos e não
máquinas. São produtos finais para uso e proveito imediato.
lado, surge assim um leitor sem história ou sem interesses. (...) O leitor
sem interesses parece um leitor que tem a sua disposição um tempo
infinito, é um leitor em férias permanentes, que pode dispersar suas
consultas ao bel-prazer dos impulsos imediatos.”

Como lembra Possenti, os leitores sempre se dividiram, sempre tiveram


mais de um interesse, mas aquele que declara que perdeu o dia inteiro na
Internet, porque uma coisa puxa outra, e no final do expediente nem lembrava
mais o que tinha ido procurar, parece viver uma situação atípica, pois não
estaria submetido aos controles institucionais, e seria mais ou menos livre para
dar vazão a suas preferências, seguindo as associações quase-livres que o
meio lhe permite.
Nas palavras de Possenti (2002: 219),

“o leitor do hipertexto, tal qual emerge dos textos que tratam dele,
lembra menos o leitor de textos e mais o cidadão que está
bisbilhotando numa livraria, que analisa livros, que se encanta aqui
com uma figura na capa e ali com o acabamento do livro, depois vai à
estante de sua preferência e começa a ler orelhas e a verificar preços
para, em seguida, lamentar seus baixos rendimentos e o pouco tempo
de que dispõe.”

Esse leitor de hipertexto nunca é apresentado como o constituidor de


sentidos de um texto, na tensa interação com o autor, a obra (o texto) e tudo o
que já se disse sobre a obra ou seu tema. O leitor de hipertexto parece estar
sempre lendo pela primeira vez, e ele precisa, assim, que lhe forneçam pistas
muito claras, em cores, para saber em qual momento pode ou deve derivar do
texto (trecho?) que lê para outro texto (trecho?), que, eventualmente, fornecerá
informações a mais (aliás, quase sempre se trata de informações...), ou, se
tiver menos sorte, lhe fornecerá o endereço de uma livraria ou a propaganda de
uma escola de línguas.

5. Balanço da rede

“Num extremo, um documento hipertextual pode ser tão restritivo que os


leitores considerem que têm não mais (e talvez muito poucas) escolhas de
navegação do que teriam numa versão linear de texto. No outro extremo, um
documento hipertextual poderia ser tão aberto, interconectado e controlado
pelo leitor que os usuários poderiam considerar-se sobrecarregados pela
multiplicidade de escolhas” (Snyder, 1998: 128)

Também não podemos esquecer que a internet abriga gêneros textuais


diversos, como as listas de discussão, o correio eletrônico, as salas de bate-
papo. Estes espaços permitem aos sujeitos entrarem em contato com outros
grupos ou pessoas, participar de comunidades virtuais, enfim, de interagir
virtualmente.

6. Referências Bibliográficas:
AUTHIER-RÉVUZ, Jaqueline. (1982) “Heterogeneidade(s) enunciativa(s)”. In:
Cadernos de Estudos Lingüísticos, 19. Campinas: IEL/UNICAMP. pp. 25-42.
FOUCAULT, Michel. (1970) A ordem do discurso. (3ª. ed). São Paulo: Edições
Loyola.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. (1999). (2ª. ed). São Paulo: Ed. 34.
MAINGUENEAU, Dominique. (1984). Genèses du discours. Bruxelles: Pierre
Mardaga, Editeur.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. (1999). O Hipertexto como um novo espaço de
escrita em sala de aula. (mimeo).
POSSENTI, Sírio. (2002). Os limites do discurso. Curitiba: Criar Edições Ltda.
O pensamento de Pierre Levy na berlinda

Trecho (02)
“O desenvolvimento do digital é, portanto, sistematizante e universalizante não
apenas em si mesmo, mas também, em segundo plano, a serviço de outros
fenômenos tecno-sociais que tendem à integração mundial: finanças,
comércio, pesquisa científica, mídias, transportes, produção industrial etc. (...)
a mensagem dessa mídia é o universal, ou a sistematicidade transparente e
ilimitada. Acrescentemos que esse traço corresponde efetivamente aos
projetos de seus criadores e às expectativas de seus usuários”. (Levy, 1999:
113)

Críticas:
O ciberespaço se constitui num paradoxo: almeja atingir a universalidade, no
sentido de uniformidade de sistemas, e ao mesmo tempo pretende abrigar a
todos.

Trecho (03)
“A interconexão generalizada, utopia mínima e motor primário do crescimento
da Internet, emerge como uma nova forma de universal. Atenção! O processo
em andamento de interconexão mundial atinge de fato uma forma de universal,
mas não é o mesmo da escrita estática. Aqui, o universal não se articula mais
sobre o fechamento semântico exigido pela descontextualização, muito pelo
contrário. Esse universal não totaliza mais pelo sentido, ele conecta pelo
contato, pela interação geral”. (Levy, 1999:119)

Críticas:
Se lermos outros trechos do livro Cibercultura, veremos que Levy tem uma
visão ingênua do que é a escrita (algo estático, descontextualizado etc). Outro
ponto de discussão é a ênfase que se dá ao aspecto da interação geral. Ora,
NINGUÉM CONSEGUE TER ACESSO A TUDO O QUE ESTÁ NA REDE. Isso
é humanamente impossível. Essa integração geral, universal, só existe do
ponto de vista técnico, virtual, mas não do ponto de vista de práticas-sociais.
Dessa forma, as trocas no ciberespaço funcionam como quaisquer outras. Ou
seja, estão vinculadas as condições de produção do discurso (conhecimento,
acesso, etc).

Trecho (04)
“O que nos revela a reivindicação do “acesso para todos”? Mostra que a
participação nesse espaço que liga qualquer ser humano a qualquer outro, que
permite a comunicação das comunidades entre si e consigo mesmas, que
suprime os monopólios de difusão e permite que cada um emita para quem
estiver envolvido ou interessado, essa reivindicação nos mostra, a meu ver,
que a participação nesse espaço assinala um direito, e que sua construção se
parece como uma espécie de imperativo moral”. (Levy, 1999: 119)

Questionamento:
Que importância tem a Internet para a democracia social e cultural?

Trecho (05)
“O que é o universal? É a presença (virtual) da humanidade em si mesma.
Quanto à totalidade, podemos defini-la como a conjunção estabilizada do
sentido de uma pluralidade. (...) a totalidade ainda permanece no horizonte do
mesmo. A cibercultura, por outro lado, mostra precisamente que existe uma
outra forma de instaurar a presença virtual da humanidade em si mesma ( o
universal) que não seja por meio da identidade do sentido (a totalidade)”. (Levy,
1999: 121)

Questionamento:
Qual a diferença que se estabelece entre “universal sem totalidade” e “pós-
modernidade”? (v. pág. 120/1 de Cibercultura)

 Existe a idéia de que o texto impresso se desenvolveria na lógica da


exclusão e ofereceria as informações no contexto lógico do “ou/ou”
 Já o hipertexto se desenvolveria na lógica da inclusão, ao sugerir que
o conhecimento se dá na seqüência “e..e...e...e” de forma infinita.
 O texto impresso favoreceria a dissociação e argumentação e o
hipertexto a associação e ampliação do horizonte.

No entanto, na vida prática, o ciberespaço ainda é um mundo restrito


aqueles de maior poder econômico. Portanto, permanece a hegemonia de uns
sobre outros.

Não quero dar a entender, com isso, que a universalidade do


ciberespaço é “neutra” ou sem conseqüências, visto que o próprio fato
do processo de interconexão já tem, e terá ainda mais no futuro,
imensas repercussões na atividade econômica, política e cultural. Este
acontecimento transforma, efetivamente, as condições de vida em
sociedade. Contudo, trata-se de um universo indeterminado e que
tende a manter sua indeterminação, pois cada novo nó da rede de
redes em expansão constante pode tornar-se produtor ou emissor de
novas informações, imprevisíveis, e reorganizar uma parte da
conectividade global por sua própria conta”. (Levy, 1999:111)
Segundo Possenti, a história nos mostra leitores com interesses
diferentes. E é em decorrência destes interesses que eles selecionam o que
devem ler, seja em decorrência das tarefas que devem realizar, seja em
decorrência de certas idiossincrasias, seja em decorrência de seus interesses
particulares. Assim, alguns visitarão páginas de sexo, outros, listas de
bibliotecas. Os visitadores de links, creio, são parecidos. Conheço alguns: os
que só vão atrás de literatura, os que sabem onde encontrar notícias sobre
recentes descobertas da física, os que lêem tudo sobre vestibulares ou sobre
esporte, etc. Claro que todos, de vez em quando, visitam um site que informa
sobre comidas de cachorro ou verificam as novidades na área das ofertas
sexuais.

(“Eles foram extintos da Terra; ficou somente Noé e os que estavam


com ele na barca” – Gênesis 7,23)

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