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1.

A SOCIEDADE EM REDE E A CIBERCULTURA: CONTRACULTURA,


LITERATURA E FICÇÃO CIENTÍFICA ENTRE AS DÉCADAS DE 1960 E
1980.

2. FORMULAÇÃO E DELIMITAÇÃO DO PROJETO DE PESQUISA

O intento desse projeto será apresentar um estudo da cultura digital, à partir de


movimentos de dissensão da cultura tecnológica, partindo, do cotejamento entre um
discurso distópico ficcional e uma utopia filosófica. Situando, assim, esse estudo da
tecnologia na lógica discursiva de movimentos sociais e da história das mentalidades
(CHARTIE, 2002) antes da técnica que se traduz em forma material.

Primeiramente, a definição da palavra: “a mentalidade de um


indivíduo, mesmo sendo um grande homem de seu tempo, é
justamente o que ele tem de comum com os outros homens do seu
tempo”, ou ainda “o nível da história das mentalidades é aquele do
cotidiano e do automático, é o que escapa aos sujeitos individuais da
história porque revelador do conteúdo do impessoal de seu
pensamento” (as duas definições são de Jacques Le Goff). É assim
constituído como objeto histórico fundamental um objeto que é o
contrário mesmo daquele da história intelectual clássica: à ideia,
construção consciente de uma mente individuada, opõe-se termo a
termo a mentalidade sempre coletiva que regula, sem que eles saibam,
as representações e julgamentos dos atores sociais (CHARTIE P. 35,
2002).

Sendo assim, será um dos objetivos dessa pesquisa mostrar como a produção
discursiva ficcional e utópica originária com a revolução digital foi produzida por
pessoas comuns, que ao produzirem sua literatura causaram impacto considerável sob o
imaginário social: “Eram cruzados tecnológicos, convictos que estavam modificando o
mundo como acabaram mesmo fazendo” (CASTELLS p.104, 2017).

Assim, por meio da produção do conteúdo discursivo delimitado pela cultura digital
iniciou-se o processo de conexão de computadores no interior do sistema de defesa
estadunidense nas universidades de Santa Bárbara, Stanford, Los Angeles e Utah. A
criação dessa rede de canais de comunicação interpessoal nos mais variados níveis
possibilitou a emergência de um novo espaço de experiência (ciberespaço), e a
efetivação das chamadas comunidades virtuais e da chamada sociedade em rede, como é
possível notar na obra A Sociedade em Rede de Manuel Castells e Cibercultura de
Pierre Lévy.

Em paralelo com o trabalho do Pentágono e dos grandes


cientistas de criar uma rede universal de computadores com acesso
público, dentro de normas de “uso aceitável”, surgiu nos Estados
Unidos uma contracultura de crescimento descontrolado, quase
sempre de associação intelectual com os efeitos secundários dos
movimentos da década de 1960 em sua versão mais libertária/utópica.
O modem para PCs foi inventado por dois estudantes de Chicago,
Ward Christensen e Randy Suess, em 1978, quando estavam tentado
descobrir um sistema para transferir programas entre
microcomputadores via telefone para não serem obrigados a percorrer
longos trajetos no inverno de Chicago (CASTELLS p. 104, 2017).

Um elemento em comum que pode-se encontrar na obra de pensadores como


Manuel Castells e Pierre Lévy é a ideia de que a revolução da tecnologia da informação
digital nasce do espírito inquieto de jovens adeptos à movimentos com contornos
contraculturais nos anos de 1960, um exemplo é o movimento que ficou conhecido
como “The Hackers”, indivíduos que criaram conceitos, compartimentos de
microeletrônica e acima de tudo um movimento social.
Por exemplo, apesar do papel decisivo do financiamento militar
e dos mercados nos primeiros estágios da indústria eletrônica, da
década de 1940 à de 1960, o grande progresso tecnológico que se deu
no início dos anos 1970 pode, de certa forma, ser relacionado a cultura
da liberdade, inovação individual e iniciativa empreendedora oriunda
da cultura dos campi norte-americanos da década de 1960
(CASTELLS p.65, 2017).
Dentro do universo dos movimentos de oposição da juventude em relação a
ordem instituída pelos “adultos”, se destaca Ted Nelson, um filósofo, de acordo com sua
entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura no ano de 2007, que servirá aqui
como fonte, criou no final dos anos de 1960 os conceitos de hipertexto e hiperlink em
uma determinada plataforma, o Projeto Xanadu, na qual a principal proposta libertária é
a transformação da realidade através da tecnologia da informação digital:

Se tomarmos a palavra “texto” em seu sentido mais amplo (que não


exclui nem sons nem imagens), os hiperdocumentos também podem
ser chamados de hipertextos. A abordagem mais simples do hipertexto
é descrevê-lo, em oposição a um texto linear, como um texto
estruturado em rede. O hipertexto é constituído por nós (os elementos
de informação, parágrafos, páginas, imagens, sequências musicais
etc.) e por links entre esses nós, referências, notas, ponteiros, “botões”
indicando a passagem de um nó a outro (LÉVY p.58, 2010).
Isso é o diferencial em relação à proposta de universo virtual criada por Ted
Nelson, citado pelo próprio no programa Roda Viva, enquanto a maioria das interfaces e
programas se preocupam, desde os seus primórdios do desenvolvimento da sociedade
em rede e da informação digital, em copiar a realidade no mundo virtual, um exemplo
disso são os arquivos de Word e PDF, que copiam o formato do papel atrás de uma tela,
o Projeto Xanadu busca criar um novo mundo virtual, com uma nova forma de
comunicação e de organização da informação que remete a mente humana:

Para Ted Nelson, era necessário criar um mecanismo que


desse ao usuário acesso total ao mundo do conhecimento, permitindo-
lhe escolher entre vários caminhos de acesso e, assim, fazê-lo decidir
livremente qual trilha hipertextual seguir de acordo com seus
interesses e necessidades. Em seu Projeto Xanadu, a noção de
hipertexto se liga basicamente a um sistema de escrita não-sequencial,
que funcionaria da mesma forma que a mente humana, isto é, por
associações, em que um item puxa outro, movendo-se,
instantaneamente, para o próximo, em meio a uma complexa rede de
caminhos, atalhos e encruzilhadas (XAVIER p.284, 2003).
Para os jovens da década de 1960 que encorpavam os movimentos de
contracultura, como para Ted Nelson, reproduzir a realidade não é uma opção, a única
opção viável é transformar a sociedade, criar uma nova, uma conectada em rede, com
novas formas de produzir e organizar a informação, um ambiente que abra novas
possibilidades, em um certo sentido uma comunidade virtual, onde se amplie as diversas
faculdades do intelecto humano.

“(...) Ted Nelson que, em seu panfleto de 1974, “Computer Lib”, convoca o
povo a usar o poder dos computadores em benefício próprio. Nelson imaginou um novo
sistema de organizar a informação batizou de “hipertexto”, fundamentado em remissões
horizontais” (CASTELLS p.106, 2017).

Esse cruzado da era digital, buscava uma transformação social, a criação de um


novo mundo virtual. “É virtual toda entidade “desterritorializada”, capaz de gerar
diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem
contudo estar ela mesma presa a lugar ou tempo em particular. (LÉVY p.49, 2010). E
nesse caso vai surgir em oposição a toda organização tecnocrática centralizadora que
procurava se reproduzir na sociedade em rede.

Devido ao fato dessa pesquisa exigir um cuidado especial com o sentido e o


significado histórico das palavras e dos conceitos, torna-se necessário pensar a produção
discursiva sobre hipertexto e hiperlink através da problematização posta por Koselleck,
na qual o historiador deve estar atento a historicidade conceitual dos objetos e
reconhecer que existe uma política de nomeação da realidade que se transforma de
acordo com o contexto histórico, político, epistemológico e linguístico:

Portanto, a história dos conceitos é, em primeiro lugar, um


método especializado da crítica de fontes que atenta para o emprego
de termos relevantes do ponto de vista social e político e que analisa
em particular empenho expressões fundamentais de conteúdo social
ou político. É evidente que uma análise histórica dos respectivos
conceitos deve remeter não só a história da língua, mas também a
dados da história social, pois toda semântica se relaciona a conteúdos
que ultrapassam a dimensão linguística. (KOSELLECK p.103, 2006)

A plataforma Xanadu trata-se da gênese conceitual da conexão virtual de


computadores (network) propõe a ideia de que sejam construídos documentos
totalmente interativos entre si rompendo assim com a simples imitação papel, o conceito
de hiperdocumento abrange diferentes formatos de arquivos como textos, vídeos,
imagens, áudio.
Outra diferença em relação as interfaces e sistemas operacionais mais conhecidos é
o fato de Ted Nelson se entender como um diretor de cinema e não um engenheiro da
computação, além de criar novos conceitos que vão se fazer materiais na sociedade
posteriormente, essa interface digital filosófica se faz utópica porque remete as chamas
e a luz eterna, mencionada por Roszak (1972), onde frio do cálculo e da técnica jamais
ousa tocar, os recôncavos da arte em reação a toda organização da tecnocrática que se
estende nas sociedades do mundo bipolar da década de 1960 e 1970.
Para melhor compreender historicamente o contexto que compôs o imaginário
dos jovens do final do anos de mil novecentos e sessenta e começo de mil novecentos e
setenta, o presente estudo se orientará pela obra CONTRACULTURA de Theodore
Roszak, na qual o autor vai desenvolver a descrição do movimento de contracultura da
juventude, uma grande negação ao sistema tecnocrático que imperava com conivência
de seus pais, assombrados pelo passado recente da bomba nuclear, dos campos de
concentração nazistas e todo o controle científico extremamente eficaz e sob a tensão da
eminencia do conflito nuclear entre EUA e URSS, uma negação dessa suposta
segurança em detrimento a elementos menos técnicos frios e mais calorosamente
humanos:

Entretanto, o que mais além dessa corajosa (e promissoramente


humanística) impertinência, é capaz de lançar um desafio radical à
tecnologia? Se a melancólica história das revoluções do último meio
século tem algo a nos ensinar é a inutilidade de uma política que se
concentra ingenuamente na derrubada dos governos, classes
dominantes, ou sistemas econômicos. Esse tipo de política termina
apenas redesenhando os torreões e as muralhas da fortaleza
tecnocrática. O que se deve procurar são os alicerces do edifício. E
esses alicerces jazem entre as ruínas da imaginação visionária e do
senso de comunidade humana. Na verdade era isto que Shelley
percebia já nos primeiros dias da Revolução Industrial, quando
proclamou que na defesa da poesia devemos invocar “luz e fogo
daquelas regiões eternas onde a faculdade do cálculo, de voo rasteiro,
jamais se atreve a guinar-se” (ROSZAK p. 66)
Roszak, está de acordo com Manuel Castells, em relação a importância da
cultura dos campus universitários, Roszak defende que de forma semelhante as
hediondas usinas das etapas iniciais do capitalismo, que aglomeraram a mão de obra e
ajudaram a acender a fagulha da consciência de classe, o campus universitário, que
chegava a abrigar 30.000 estudantes, serviu para edificar uma identidade grupal entre
esses jovens e a contracultura.

Para compreender melhor do ponto de vista da história se utilizara nesta


pesquisa uma análise sociocultural da literatura como a que é proposta pela escola dos
Annales e vai considerar as condições sociais tanto da produção da obra, quanto da
condição social do leitor, também vai levar em conta as apropriações e as diferentes
formas que literatura se apresenta: “Uma história da literatura é, pois, uma das
diferentes modalidades de apropriação dos textos (CHARTIE p.257, 2002), no presente
caso é a obra de ficção científica Neuromancer de William Gibson lançado em 1984.

“- Autonomia, esse é o busílis com relação a sua IA. Minha aposta Case, é que
você está indo até lá cortar as algemas de hardware que impedem essa coisinha fofa de
ficar mais inteligente.” (GIBSON p.161/162, 1984). Imerso, em um imaginário coletivo
como o que orientou a criação da utopia filosófica de Ted Nelson, o pós segunda guerra
e a guerra fria, como já foi descrito anteriormente, influenciou a criação de um universo
totalmente distópico, militarizado e diferente de cibercultura que posteriormente vai
ganhar materialidade na sociedade no final dos anos mil novecentos e oitenta.

Esse romance afetou diretamente a forma de pensar da sociedade pós 1984,


assim como Ted Nelson, William Gibson vai inaugurar novos conceitos como
cibercultura e ciberespaço que vão povoar o imaginário da sociedade em rede que
formar posteriormente, porém esses conceitos surgem primeiro em forma de literatura
para posteriormente adquirir um caráter material, fora da ficção científica.
O ciberespaço que a literatura já mencionada vai descrever é um cenário
apocalíptico, distópico, uma cibercultura dominada por grandes corporações e
inteligências artificiais sofisticadas, imensos blocos de dados chamados ICE, nesse
contexto, a rede de dados é acessada por determinados indivíduos treinados, trata-se
claramente o ciberespaço como um ambiente militarizado onde soldados, como o já
referido Case, treinados acessam essa rede de dados se conectando através de eletrodos,
há uma espécie de relação orgânica com a cibercultura e o ciberespaço é um ambiente
bastante restrito onde as inteligências artificiais se utilizam dos seres humanos e seu
intelecto.

A partir da literatura o conceito de cibercultura vai ganhar conceituação histórica


a partir das ideias de Pierre Lévy acerca da cibercultura e ciberespaço, para o propósito
de análise das mentalidades estabelecido neste projeto é preciso definir estes conceitos:

O ciberespaço (que também chamarei de “rede”) é o novo meio


de comunicação que surge da interconexão de computadores. O termo
especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital,
mas também o universo oceânico de informação que ela abriga, assim
como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo.
Quanto ao neologismo “cibercultura”, especifica aqui o conjunto de
técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos
de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o
crescimento do ciberespaço. (LÉVY p.17, 2010)
Dentro de um panorama muito menos apocalíptico e muito mais otimista do
ponto de vista da análise histórica Pierre Lévy vai discorrer em sua obra “Cibercultura”
que foi escrita em 1999, a partir de uma sociedade em rede já pavimentada, mas, em
constante transformação, que a cibercultura, apesar, dos interesses de Estados e grandes
corporações é um espaço aberto, internacional, desenvolvido por uma juventude sedenta
por novas experiências:

Pensar a cibercultura: esta é a propostas deste livro. Em geral


me consideram um otimista. Estão certos. Meu otimismo, contudo não
promete que a Internet resolverá, em um passe de mágica, todos os
problemas culturais e sociais do planeta. Consiste apenas em
reconhecer dois fatos. Em primeiro lugar, que o crescimento do
ciberespaço resulta de um movimento internacional de jovens ávidos
para experimentar, coletivamente, formas de comunicação, e cabe
apenas a nós explorar as potencialidades mais positivas deste espaço
nos planos econômico, político, cultural e humano. (LÉVY p.11,
2010)
Percebe-se aqui, que com contornos muito menos bélicos, a cibercultura que se
apresentou na sociedade, na segunda metade do século XX, diferente da literatura de
Gibson e o conceito de cibercultura que serviu como base para pesquisa teórica por
parte de Pierre Lévy, este enxerga com bons olhos o comércio no ciberespaço, ao
mesmo tempo em que detecta um caráter libertário das redes e propõe que uma
característica não anula a outra.

O ciberespaço que se apresenta, basicamente pela rede mundial de computadores


se caracteriza por aquilo que o autor vai chamar de segundo dilúvio, o da informação e
vai ser a forma como lidamos com esse dilúvio, como surfamos ou navegamos por ele, é
que também pode-se determinar como um movimento social.

Percebe-se, portanto que se predispões aqui a analisar do ponto de vista da


história das mentalidades duas formas de discursos diferentes: filosófico e literário
ficcional, produzidos por indivíduos comuns, que não tem seus nomes gravados como
grandes pensadores da humanidade, criaram conceitualmente elementos, embebidos por
todo um movimento social de contexto contracultural, que posteriormente vai se
desenvolver materialmente tanto na rede mundial de computadores como na obra de
pensadores como Pierre Lévy.

3. OBJETIVOS
Os objetivos devem estar especificados em “gerais” e “específicos”.
Gerais:

Pensar historicamente, sobre a formação do ciberespaço e de uma cibercultura,


enquanto uma mentalidade de atores desconhecidos e com elementos contraculturais,
que para além da técnica, acabaram por desencadear um movimento social,
característica que se sobrepõe aos componentes materiais, desencadeando em práticas e
apropriações de elementos culturais.

Específicos:

Refletir também a história intelectual ou do discurso filosófico, como o projeto


Xanadu que no final da década de mil novecentos e sessenta vai fundar conceitualmente
os meios de organização, distribuição da informação na sociedade em rede ou
ciberespaço, traduzidos, aqui basicamente por hipertextos, conceitos mais abrangentes
ligados a escrita e a leitura.

Partir de uma utopia literária aqui representado pelo romance Neuromancer,


extraindo dela todo seu contexto, sociocultural e de apropriação histórica da obra na
sociedade, apresentar que da mesma maneira que uma utopia filosófica, a distopia
literária apresentada (exposta) anteriormente vai fundar novos conceitos, como
cibercultura, que se apresenta na literatura de ficção científica de maneira diferente
daquela que se deu na sociedade.

Perceber através de um discurso acadêmico a maneira como o ciberespaço e a


cibercultura se traduziram na sociedade nos finais de década de mil novecentos e
oitenta, para tal se trará ao debate o discurso acadêmico contido na obra de pensadores
como Pierre Lévy e Manuel Castells, elementos como sociedade em rede e cibercultura
enquanto fruto da mente de sujeitos comuns e que vai compor um movimento social
caracterizado por uma imersão, uma navegação do ciberespaço.

4. REFERENCIAIS TEÓRICOS

Partindo da perspectiva francesa da história das mentalidades, ramo teórico que vai
se sobrepor a história das ideias ou mesmo história intelectual, que englobam os campos
da história da filosofia, história da arte ou história da literatura, que também pode ser
definida como história social das ideias ou história sociocultural como é possível
perceber em Chartie (2002).
Segundo essa tradição historiográfica a comparação entre consciência e pensamento
se dá de uma nova maneira, mais próxima da tradição durkheimiana da sociologia,
deixando claro que esquemas e mesmo conteúdos de pensamentos, mesmos aqueles
expressados por determinados indivíduos, estão correlacionados, no inconsciente e estão
interiorizados em um determinado coletivo, sem que isso seja explicitado, esses
elementos em comum se traduzem por exemplo, por um sistema de representações e um
sistema de valores.
Um dos objetos maiores da história da psicologia coletiva é, com
efeito, constituído pelas ideias-forças e pelos conceitos essenciais que
habitam o “mental coletivo” (a expressão é de Dupront) dos homens
de uma época. As ideias, apreendidas através da circulação das
palavras que as designam, situadas em seus enraizamentos sociais,
pensadas em sua carga efetiva e emocional tanto quanto em seu
conteúdo intelectual, tornam-se assim exatamente mitos ou valores,
uma destas “forças coletivas através das quais os homens vivem seu
tempo”, portanto, um dos componentes da “psique coletiva” de uma
civilização. Aqui, há como que uma conclusão da tradição dos
Annales, tanto na caracterização fundamentalmente psicológica da
mentalidade coletiva quanto na redefinição do que deve ser a história
das ideias, ressituada em uma exploração global do mental coletivo
(CHARTIE p.36/37, 2002)
Chartie (2002) vai recorrer a Lucien Febvre para dizer que em relação a história das
mentalidades é essencial constituir uma articulação entre os pensamentos e o social,
para amparar tal análise, recorre ao conceito de “visão de mundo” retirado de Lukács,
permitindo assim compreender um conjunto de sentimentos, ideias e aspirações em
comum de um determinado grupo, geralmente da mesma classe social e contrapor a
outros grupos ou classes sociais, permitindo assim atribuir uma significação e posição
na sociedade de textos filosóficos e literários, mostrando assim, um todo coerente sob o
qual as obras singulares devem ser relacionadas.
Na verdade, o que se deve pensar é como todas as relações,
inclusive aquelas que designamos como relações econômicas ou
sociais, organizam-se segundo lógicas que colocam em jogo em ação,
os esquemas de percepção e de apreciação dos diferentes sujeitos
sociais, portanto, as representações constitutivas do que se pode
chamar de uma “cultural”, quer seja comum a toda uma sociedade,
quer seja própria a um grupo determinado (...). Pensar diferentemente
a cultura, e portanto, o próprio campo da história intelectual, exige
concebe-la como um conjunto de significações que se enunciam nos
discursos ou nas condutas aparentemente menos “culturais”, como faz
Clifford Geertz: (O conceito de cultura ao qual adiro (...) designa um
conjunto de significações historicamente transmitido e inscrito em
símbolo, um sistema de concepções herdadas expressas nestas formas
simbólicas por meio da quais os homens comunicam, perpetuam e
desenvolvem seu saber sobre a vida e suas atitudes diante dela)
(CHARTIE p.59/60, 2002)
De acordo com Keselleck (1979) o que causa impacto sobre homens são narrativas
que se constroem acerca dos fatos, seguindo essa ideia as palavras possuem um poder
peculiar, sem a qual, o sofrer e o fazer dos homens sequer seriam transmitidos, essa
concepção foi retirada o Epiteto e vai remeter a uma retorto a relação, entre as palavras
e as coisas, linguagem e mundo, espirito e vida, consciência e existência, assim parte-se
do princípio que sem conceitos em comum não pode haver uma sociedade.
Dessa forma o conceito é muito mais complexo do que a simples interpretação de
comunidades linguística organizadas sob conceitos-chave, ele deriva de sistemas
político-sociais que vão variar de acordo com a especificidade de cada sociedade, o quer
dizer que a história dos conceitos, aqui apresentada, não se prende somente ao
significado léxico dos termos, mas todo o contexto social, político e cultural que o
cercam:
Delimitaremos as reflexões seguintes entre dois pressupostos: não
se tratará aqui da história da língua, nem mesmo como parte da
história social, mas sim apenas da terminologia política social
considerada relevante para o campo da experiência da história social.
Além disso, consideraremos preferencialmente conceitos cuja
capacidade semântica se estenda para além daquela peculiar às
“meras” palavras utilizadas no campo político e social (KOSELLECK
P.98, 2006).
É relevante para tal análise que se entenda claramente, a partir de que momento os
conceitos passam a ser empregados de forma mais rigorosa, mostrando assim as
transformações sociais e políticas com profundidade histórica, que consequências estes
conceitos impactaram na sociedade, como por exemplo, os conceitos que já foram
citados anteriormente, como hipertexto e cibercultura, e para Koselleck (1979) a
definição de conceito é:

Um conceito pode ser claro, mas deve ser polissêmico. “Todos os


conceitos nos quais se concentra o desenrolar de um processo de
estabelecimento de sentido escapam às definições. Só é possível de
definição aquilo que não tem história” (Nietzsche). O conceito reúne
em si a diversidade da experiência histórica assim como a soma das
características objetivas teóricas e práticas em uma única
circunstância, a qual só pode ser dada como tal e realmente
experimentada por meio desse conceito (KOSELLECK p.109, 2006).
Assim como o privilégio político, que após a revolução francesa, foi concebido
primeiramente em forma de linguagem os direitos que apenas posteriormente foram
conquistados no campo político e social, após o que Koselleck (1979) vai chamar de
batalha semântica, os conceitos aqui abordados também foram concebido em forma de
linguagem filosófica e literária com profundos elementos que vão ultrapassar a
dimensão linguística e influenciar a mentalidade de um determinado grupo, essas
relações entre conceitos tornam-se mais claro, pelo viés de sua constituição linguística.

Se apropriando das ideias propostas por Koselleck, busca-se estabelecer uma


história dos conceitos e das mentalidades (CHARTIE 2002), à partir de uma utopia
filosófica digital como o projeto Xanadu, também é possível fazê-lo a partir de outra
obra de arte, mais especificamente a literatura de ficção científica, que por hora estará
representada pela obra Neuromancer de William Gibson, lançada em 1984,
compreendendo o texto impresso como um elemento do qual pode se extrair uma
história social e cultural como é possível notar abaixo:

Poderia até ser chamada de história social e cultural da comunicação


impressa se essa definição não fosse tão extensa pois sua finalidade é
compreender como as ideias foram transmitidas sob a forma impressa
e como a exposição à palavra impressa afetou o pensamento e a
conduta da humanidade nos últimos quinhentos anos (DARNTON
p.190, 2009).
O historiador que analisou os textos literários a maneiras da escola dos Annales,
partindo da história sociocultural tem como objeto fundamental para história literária e
da crítica textual, o modo como os ouvintes expectadores, ouvintes ou leitores se
apropriam e atribuirão sentido aos textos, partindo então da recepção da obra por parte
de seus consumidores e a diferentes formas de significação que este vai atribuir
(CHARTIE 2002).
Dessa forma, vale ressaltar que aqueles que assistem, ouvem ou veem são parte
integrante da constituição do significado e é perceptível também como as diferentes
formas pelas quais se apresentam os textos vão mudar o seu sentido, um texto pode ser
apresentado de diversas maneiras (hipertexto ou livro) e essas diferentes formas de
apresentação vão mudar a recepção e o sentido de texto, em seu conceito mais genérico
como é possível em Chartie (2002).
Essa historicização da especificidade da “literatura” tem por
corolário a interrogação sobre as relações que as obras mantêm com o
mundo social. Mantendo distância da tentação (que infelizmente, foi
grande entre os historiadores) de reduzir os textos a um mero estudo
documental, deve-se trabalhar sobre variações. Variações entre as
representações literárias e as realidades sociais que elas representam
deslocando-as sobre o registro da ficção e da fábula. Variações entre a
significação e interpretação corretas tais como a fixam a escritura, o
comentário ou a censura, e as apropriações plurais que, sempre
inventam, deslocam subvertem. Variações, enfim, entre as diversas
formas de inscrição, transmissão e recepção das obras (CHARTIE
p.258/259, 2002)
Portanto, trata-se aqui utilizando da história das mentalidades, da história dos
conceitos e da história da literatura caracterizar os efeitos, próprios da recepção e
transmissão dos textos, reintroduzindo no seu cerne do questionamento a historicidade,
logo a descontinuidade desses objetos, como uma condição essencial para evitar todo o
anacronismo da compreensão das obras. Logo todo esse quadro de análise que identifica
os efeitos produzidos pela forma, seja como o livro, seja como o hipertexto, por
exemplo, que passa por diferentes usos e apropriações que vão se fazer por parte da
sociedade ou de grupos sociais.
5. METODOLOGIA E FONTE

Sob a perspectiva da história das mentalidades, que segundo Chartie (2002) é mais
exercida do que teorizada, que vai compreender-se a mentalidade como elemento
comum entre homens, do qual até mesmo o indivíduo mais singular partilha desse
sistema de pensamento, é o método que vai embasar o cotejamento entre um discurso de
utopia filosófica representada aqui projeto Xanadu, projetado por Ted Nelson e que teve
sua gênese no final dos anos 1960 e uma distopia literária ficcional em forma de
romance denominada Neuromancer, cujo autor é William Gibson e ela foi lançada no
ano de 1984.
Para tal feito, levar-se-á em conta os conceito de hipertexto e hiperdocumento para
além da simples análise linguística, como, por exemplo, a história intelectual ou
filosófica, que pode ser apreendida, neste caso através do hipertextos apresentados no
site www.xanadu.com e da entrevista concedida por Ted Nelson no programa Roda
Viva no ano de 2007 e a maneira como esses conceitos reverberaram no imaginário
coletivo de acordo com a ideias apresentadas por Roger Chartie em sua obra: Á beira da
falésia: A história entre certezas e inquietude
Nessa mesma perspectiva apresentada na obra citada anteriormente, também
pode ser estabelecida em relação a obra Neuromancer, posto que trata-se de um discurso
literário que vai inaugurar novos conceitos como cibercultura e ciberespaço, e esses
conceitos como é possível apreender a partir da obra de Koselleck, vão surgir primeiro
enquanto discurso, aqui no caso literário antes de ganhar materialidade na sociedade
apenas posteriormente.
Nesse sentido, então a história dos conceitos é primordialmente um método
especializado de crítica das fontes que prima pelo uso dos termos que Koselleck (1979)
vai designar como relevantes e fundamentais, do ponto de vista político, social e
cultural, no caso deste projeto, para compreender a maneira como estes conceitos se
desenvolvem e “impregnar” na sociedade em rede.

No entanto, segundo o mesmo autor a história dos conceitos não é um fim em si


mesma, por não ter uma metodologia própria, pode assim ser descrita como uma parte
metodologicamente autônoma da pesquisa histórica e social, logo se trata de uma
metodologia em que história dos conceitos e história social se completam mutuamente.

Então trata-se aqui de uma análise de comparação de discursos do ponto de vista


qualitativo, partindo metodologicamente da história das mentalidades, que foi
apresentada aqui por Roger Chartie, analisando a mentalidade coletiva, partindo de uma
perspectiva social e não meramente linguística, analisando a cultura e percebendo como
os conceitos, pensados de acordo com a concepção de Rainhart Koselleck, com sua
profundidade social e psicológica coletiva que vai para além do significa linguístico,
explorando conceitos em seu caráter polissêmico e forma como eles povoam o
imaginário coletivo.

6. BIBLIOGRAFIA
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7. CRONOGRAMA

Atividade Data
Levantamento Bibliográfico Até julho de 2020
Aprofundamento das fontes De julho até Janeiro de 2021
Participação de Congressos Em todo o período
Elaboração da dissertação Até setembro de 2021
Qualificação da Dissertação Data
Defesa de Dissertação Data

Sugestão de leitura: A Instituição Imaginária da Sociedade, de Cornelius Castoriadis

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