Você está na página 1de 221

-�

J,;l•.·

-,
-�
�\
1

�J

�l
José Luís Jobim (org.)

�) Palavras da Crítica
j
- _ Tendências e Conceitos
'
i.
)
no Estudo da Literatura
1:
,)


. )

! }


\

j
-l

·Biblioteca Pierre Menard


Imago
© 1992
João Adolfo Hansen, Auto,; Norma Telles, Auto1-+-a;
Roberlo Reis, Cânon; Luís Fc,·nando Medeiros de Carvalho, Desconslmfão;
Maria Consuelo Cunha Campos, Gênero; SUMÁRIO
José Luis Jobim, Hist6ria da Literatura;
Pedro Lyra, Ideologia; Kathrin Holzermayr Rosenfield, lnconscierice;
Arlhur Nestrovski, bifluência; Luiza Lobo, Leitin;
Jorge Wanderley, Literawra; Zila Bern_d, Literaturq,Negra;
Célia Pedrosa, Nacionalismo Literário; Cláudia Neiva de Matos, Popular,
Benedito Nunes, Tempo; Roberto Acízelo de Sousa, Te01'ia da Literatura;
Lucia Santaella, Texto; Rosemary Affojo, Tradução.

IMAGO EDITORA LTDA.


Rua Sanlos Rodrigues, 201-A- Rio de Janeiro - RJ.
Tel.: 293-1092
José LuisJobim
20250-430 - Estácio - RJ
Apresentação
Todos os direitos de reprodução, divulgação e
9
tradução são reservados. Nenhuma parte desta João Adolfo Hansen

I ·:
obra pode1·á ser reproduzida por fotocópia, microfilme Autor
ou outro processo fot�mecânico. 11
Norma Telles
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros; RJ. Autor+a 45
Palavras da critica/José Luisjobim (org.) ...
Roberto Reis
Pl81 (et ai.]. - Rio deJaneiro: Imago Ed., 1992
448p. (Coleção Pierre Menard) Cânon 65

Bibliografia. Luís Fernando Medeiros de Carvalho


ISBN 85-312-0223-X Desconstrução 93
1. Crítica literária. I.Jobim,José Luis. li. Série. Maria Consuelo Cunha Campos
Gênero 111
CDD 801.95
92--0559 CDU 82.09
José LuisJobim
Impresso no Brasil História da Literatura 127
Printed i1i Braz.il
Pedro Lyra
Ideologia 151

KaLhrin Holzcrmayr Rosenfield


Inconsciente 185
"\;
•:••q
'�.
li ; Arthur Nestrovski
Influência 213
1 LuizaLobo Apresentação
�l Leitor 231
. )
i

1 José LuisJobim
Jorge Wander!ey
Literatura 253

l1<
Zila Bernd
Literatu�a Negra 267
.1
Célia Pedrosa
Nacionalismo Literárió 277
1:I;! )
Cláudia Neiva de Matos
Popular 307 Este livro poderia ser classificado como u!n meio-lermo entre o
Benedito Nunes dicionário e a colelânea de ensaio:;. Assemelha-se ao dicionário
Tempo pela sua organização em ordem alfabética, na forma de verbetes
343 et!_jo conteúdo é esclarecido pelos autores, todos eles professores
Roberto Acízelo de Sousa de grandes universidades do Brasil e do exlcrior, especialistas nos
\ lemas que lhes cabem. Comudo, quando for procurar a significa­
Teoria da Literatura 367
) ção de um verbete qualquer, o leitor encontrará um ensaio relati­
vamente extenso, cm vez de uma formulação sintética, própda aos
Lucia Santaella
dicionários. Esta extensão permitirá ao leitor ter uma idéia mais
Texto 391
) det.alhada das diversas questões envolvidas na conceituação dos
termos literários selecionados como verbetes. A bibliografia que se
Rosemay Arrojo
segue a cada um deles, mais do que apenas um mapa seguido pelos
Tradução 411 autores, serve também de sugest.-'io de leitura para os interessados
) em um estudo mais aprofundado sobre o termo.
O leitor perceberá que, dentre os 18 termos qualificados como
) NOTAS SOBRE OS AUTORES 443 literários, encontram-se v,írios que são importantes parn diversas
) áreas das Ciências Humanas. Perceberá também a ausência de
J._
)
outros, que talvez julgue necessários ou fundamentais. A esse
respeito, poderíamos invocar a nosso favor o argumento de que as
) . publicações deste gênero costumam ser censuradas mais pelo que
) deixam de forn do que pelo que incluem. Talvez este tipo de
censúra se esqueça de que a escolha feita pelo editor não implica
J
negar a validade de outras escolhas, que possivelmente seleciona­
I riam outros, ou até os mesmos termos, mas analisados sob difcren-
I
10 A/Jresentaçiio

te perspectiva. Por isso mesmo optamos pelo vocábulo palavras


para o título: cm vez do singular, o plural; em vez da univocidade,
a plurivocidade. "Palavras da cdtica" não pretendem ser dogmáti­
-
Autor
cas, nem pretendem cslabelccer de forma cabal e definitiva qual o
limite ou em que campo deve ser circunscrito o discurso sobre cada
'

termo. Pretendem, isto sim, ser as palavras da crítica, do hrinein, da


João Adolfo F.lansen
crise, quesLionando a própria estabilidade aparente de qualquer
11 termo.
1
r
Para concluir, não podemos deixar de agradecer: a todos os

i,d.1 colegas, que acredilaram no projeto, quando era apenas uma idéia,
1•
,. !

e o tornaram possível com seu trabalho; a Arthur Nestrovski, que


Lransformou a idéia em volume· da Biblioteca Pierre Menard; a
Roberto Acízelo de Sousa, que converteu cn'l um único padrão o
;l
-� emaranhado de diferentes sisteq1as de referências bibliográficas.
,1 f)
;
1. Estado da questão

Para a experiência imediata da QRinião, a noção de autor aparece


: J. L.J.

comQ a_µl..O.:.CY.Ldeut.e....ç refere í individualida�le empírica) res�onsá­


I•

vél, �mo causa criad�por objetos com a rubrica_de wn nome


'�

próprio, índice de sua autenticidade e propriedade. Assim repre­


'�
d,
la sentada, a noção é um princípio explicativo que postula um nexo
de necessidade entre efeitos de sentido e seu criador, tido como
.

identidade prévia ele uma unidade de intuição, ou de pensamento,


'.I

nos acidentes de uma biografia. Como nome próprio de um


indivíduo, o nome de autor classifica uma identidade ciYil-profissio-
na!: identific-: um_l��priet,írio! _rcgula direitos autorais sobre a
/
0
originalidade de seu cu exposta às apropriações - diferenciadas e
1 diferenciadoras de seu valor.
{l
_j
�-'L

Desde o século XIX" româi1ti�. q1:!._e gene;-alizou.....a_autpria _


�,;

como rrcsença elo indivíduo nas obras, a pertinência semântica ela


-�--j•
1) .
'5 nÕçãÕ idealisla assim pràclu:úda como "criação" iem sendo ques-.
tionada nas críticas à unificação substan�iaiizadora da sua particu­
.....,
_,

laridade histórica ele produção e produto. No século XX,


l
i

principaln1ente, por v,írias ps>siçõe� n� marxisn�o, q�e l,:!_1Ça�ajo


1

das categorias de 1ejm:se11laçâo, ideologia, produçii.o, produto, apropria-


, çii.o, vaiar contradiçâo. Com Marx t e Marx-Engcls2 evidencia-se que
toda aprojJriaçâo- Aneignung�, como pi·ÕdLição de valores de uso, é
um trabalho ele transformação de um objeto po1· um st�eito em
12 Autor Autor 13

põem a
\ q1;1e simultane:-t'mente se produz um sujeito para o objeto tran sfor­ "[onnalistas", "estruturalistas'.' e "pós-estruturalistas", que
Jevi-st r-aus­
mado. No caso dos disc ursos. as apropriacões produzem a repre­ lingüística jakobsoniana e saussuriana, a antropologia
como
sentação da sua autoria segundo uma posição determin ada nas siana, a psicanálise bcaniana e as várias escolas semióticas
s da
práticas pi·odutivas: por definição, são transformações contraditó­ disciplinas fq_rnecedoras de instrumental constitutivo de sabere
rias, em qu e se e,xplicita a luta de classes, no prod uto cm 91::c a estruturalidade das formações imagi nárias e simbólicas. Propondo
representação aut�al é situada�omo eosição de cl�c. 3 Proposto a "função'', o " roced
6
iment o"
7
a "prior idade dos elementos for­9

-�
'1 1
o autor comounidade represen tada na co ntradição em qu e se mais",ª i"mÕrte do autor " título de um ensaio de Roland Barthes,
refrata a divisão de classes nos discursos, a conceituação da autoria da ori� 'T_!.. e da prese n ça por conceitos
substitue� �neta física
ime_lica incluir os m odos h.istoriSlmente determinados dos produ­ como estnitum, escdtura, imanê ncia do discw 'So, faláci a intenciona�
tos culturais, propondo-se "recepção" não apenas como a modeli­ infertextualidade, lextualizaçiio , diferen ça, traço, no apaga mento siste­
zação retórico-poética do destinatário no contrato enunciativo do "natu reza", "sujei to", "teleo logia",
\ mático da represenmção como
dis·cu1·so, mas principalmente como apropriação empiricamente "verossimilhança", etc.10
9etêrminada, que ocorre como êontradição de p1·áticas assimétri­ É o trabalho de lvlichel f;u cauíl, porém, como dispositivo
correla­
cas de consumo cultural que produz também a representação de arqu eológico e genea\6gico, que critip a aut01ia e n oções
autor.4 Analisando a obnu:le D�ida, Kristeva e Fou cault em um conte mpor âneo, corr.1...0 as de
t:1s da er�istemc__e-do iodividual�mo
erand o as condiç ões
ensaio de 1984, Robert(.__�eima1'lnJ1Ürma que tais autores, ao invés influência,_ inte17>rntaçii.o,_ 01!._ra, J:.1·adição, ç_ç>nsid
e como "histó ria
de historicizar os discursos através dos atos situados de ler e de possibilidade da sua enunciação, no que propõ
â ea o tema da
l escrever, textualizam a historicidad�, propondo o s u jeito como da verdade". 11 Localizando na crítica contempor n
transf erênc ia das
\
fun ção dos t_extos; também afirma que não é possível definir o desaparição do autor, que se acompanha da
consiste
sttieito das práticas discursivas como um efeito, apenas, sem conhe­ análises para os próprios discu rsos, a operação de Foucau lt
lecer na
cê-lo _nos termos das práticas cçletivas de produção, como um "con­ cm indagar o que a regra de desaparição permite estabe
desap are­
junto _de energfas sociais e individuais". Toda reconsideração da lacu na. Não basearia repetir a afirmação de que o autor
ram
função da autoria, por exemplo, não deveria ser abstraída dessas ceu desde que seus ilustres avalistas, Deus e o homem, morre
-s e a
) atividades ou condições da história social e cultural, em que suas juntos; importa marcar o espaço deixado vazio, obse1-vando
que o
) transcrições apresentam graus mut.1veis e áreas diferenciadas e dife­ repartição dos silêncios e das falas pai-a especificar a função
"ideo­
renciadoras ela ação rcpresent.aLiva. Abandonando o mecanismo do desapareci 1nento faz su1·gir. Foucault recusa, por um lado, a
>
"rcílexo", a ci-ítica: 1narxisüt também poderia passar a definir a autoria sta, que contin ua pressu pondo a repre­
logia" da crítica marxi
a partir de uma posição situada para além da episteme contemporâ­ e, por o tro, o "signi Cicant e" ou a
) sentação e a consciência u
as em­
nea do individualismo, como fazem os autores criticados. Para tanto, "escritura", que continuariam a operar com as característic
)
seria impositivo analisar os discursos' como função do sujeito da érind -as para m anoni mat trans­
píricas do autor-jJ·rese11ça transf o u o

de autorfu ru;ão ou fu11.çã o-a11to r


) apropriação e, como Teny Eagleton propôs para o teatro çle �recht, cen dental de código. Sua noção
12

tomá-los como estiuturas de:_"presença-e-ausência", em que o objeto z éi1tre disc rsos nas prátic as de
descreve a relação que se produ u
me do
é realmente representado, mas representado no contexto da sua classiCicação e apropriação dos saberes-poderes: é no no
ia c.le prátic as dis cursiv as,
não-identiçlade. Em outros tei·mos, deCinindo o autor transindividuaJ­ ãutor, como uma objetivação classiCicatór
institu cionai s de vária_
mentc, nas práticas coletivas, como unidade contraditória da 1·epre­ que se teatralizam e efetivam as convenções
s são
sent..'"l.ç�o de uma não-unidade de representação que incorpora ordem que definem as tipologias discursivas nas qu ais valore
os produ tos, os pon­
necessariamente a categoria de trabalho à sua definição.5 atribuídos, como hierarquias que submetem
de dispên dio
> A crítica à noção rom:1ntica do autor-presença é realizada tam­ tos cegos de silêncio, ele exclusão, de interd ição,
comcn dri o.
} bém pelas práticas discursivas de correntes classificadas como supérfluo e anonimato, as técnicas c.le reprodução e

)
-�
,-.,.'

\
"',.,
J,f
...., -... Autor .;
11.
L Autor 15
Convenção, a autoria pode estar prevista como necessária
para alguns __. 2 -' afunção-aulor, de Michcl foucault, relação histórica, espe­
discursos, como facultativa para outrns, como inexistent cí(ica e descontínua, de um nome próprio de autor e um discurso,
e para mui­
tos. Convenção, a autoria não é uma categoria ti.!!nshistó como dispositivo classificaLório cm uma tipologia discursiva, da
dca. 13
As críticas evidenciam que a noção de.autor como prese qual também se acham t.-aços cm Dcrrida e desconstrucionistas
14
nça é
imediatamente anacrônica quando o efeito-da sua repre e em alguns textos de críticos ligados ao grupo Tel Quel, como
sentação
unitária é assumido e generalizado, estendendo-se a discu Philippe Sollers 15 e, principalmente,Julia Kristeva, que operam os
rsos que . ' <l " , ·1 . , . " ; IG
não o enunciam, como na repetição 1·itual das "socie
discurso" de rnpsodos da Crécia arcaica, nas sociedade
dades de
.
conceitos d e " P:º d d
UtlV':.,...il. e" e vcross1m1 smtatlco
s pré-colom­ 3 - o autor-contradiçã;;;do marxismo, unidade contraditória
bianas, em sociedades xamanist.as e cm outras, que não em que dados históricos e transindividuais de uma situação-posição
pressupõem
o indivíduo, a consciência e o p1·ogresso, como a antig de classe se refratam transformados na produção e no produto da
a Roma e as
inúmeras tradições latinas prnduzidas pelas apropriaçõ contradição-aulor. 17
es dos dis­
cursos antigos. É apenas no século XVIII que surge o autor É oportuno advertir que a autmia é recorLada, aqui, no âmbito
-presença
e� gencraliz<!_çào atu,\I da a.utoria,...fQ!_no identidade simplificado da produção dos discursos, não se tratando de outras
ideal_s!/ ou
causalidade psicologista, é invariavelmente a de esquemas modalidades que pode ter, por exemplo, nás artes plásticas, e,
projeti­ � . 1s , . .
��to próximos aos da exege�e c1jstã que alegava a a111
• 19
· da, na l 1ennencut1ca ou_ na ps1cana11se. Corno uma categona
santidade
do Autor quando pretendia provar o valor de um ·texto histórica, a autoria é um diferença, considerada historicamente ein
. No
anacronismo, opera-se éomo a prefiguração patrístico-escolás
tica t��cortes não-ev_olutiYOS e,aqui, n@-scqüenciai�, da�ua produ­
em que Moisés é o tipo anunciador de Cdsto, quando se ção e funcionamento. Re(erer��• neste texto:
substan­
cializam autores como indivíduos, principalmente os anter .a - o _au_ctor e a a1tclorilas,)das pr,í.ticas antiga s. do discurso,
iores ao
século XIX romântico, postos a profetizar o Advento do como modelosanônimos mcâiatizados por categorias da Retórica,
interesse
atual como contexto so.cial, luta de classes, neurose, nacio bem como a sua reatualização como àuclorilas patdstico-escolástica
nal-po­
pular, teologia da libertação, vangua_ rda, e, evidentemente, da hermenêutica bíblica, análoga da concepção teológica do tem­
confor­
mismo supra-histórico. Em posições inimigas, é contr po, como tipologia ou figuração profética da eternidade;
a tais
representações unificadas como transhistoricidade que b- 'l autoria na concepção romântica dos fins do século XVIII
as posições
marxistas e foucaultianas trabalham, evidenciando justam ao século XX, em que. a quantiCTcação progressista do tempo
ente a
não-evidência do autor-j1resença quando incluem, como cdtér arruina a persona. retórica e a pessoa teológica, constituindo-se o
ios da
sua q>nceituação, os modos histó1·icos da produção da autor autor como sentimento cio indefinido, infinitude de intuição reli­
idade,
bem como a codificação insti_tucional da classificação, descr giosa na livre conÇ_9rrência da origi11alida<le;
ição,
ordenação, circuito e controle, transformada nas aprop -�- 'Õ autor como ausência e como função, tomando-se os
riações
socialmente diferenciadas dos produtos óu no anonimato nomes de Roland Ilarthcs e Michel foucault como paradigmas
e impes­
soalidade dos dispositivos discursivos. autorais dessas posições.
- Esquemati_ca1ue°"'c, podem_��_r detecta_das, �sim, pelo
menos
:t� a déca·da de 1980,/ &ês posições coníl
itantes _,sobre a autoria,­
oposfas todas elas à do autor-presença romanliCÕ: 2. Em torno dos termos autor e artífice
1 - �o auloNlejunto, ausência da presença de "origem",
"sujei­
to", "consciência" e "1.eleologia", substiLuídos_peJa "estru Em grego, é um 1.ruísmo, teclmé designa um conjunto de atividades
tura" ou
pela "escritura" de códigos que se per1sam intransitiva qualificadas por uma habilidade específica: as teclmai são múlt.iplas.
mente nas
operações dos discu1·sos, postos a falar como máquinas da caça à mú_sica, da ret.órica à cosmética, da arquitetura à meta­
e não mais
como espelhos; lurgia, ela poesia �t ginástica: poie-ma é o nome genérico do produto
tp\k,-r;.ié,�t.. 'Oi
��( ��,
� ��-.
c:x'..l. �
cll �

r�
-
J.s. � �

\
Ex ) � ��� � � yv() /\.,� c)Jl..
16 Autol' Autor 17

do poiein, operante nelas como um "fazer". Em latim - por Em latim, desde o período i1,;üico,a aucloritas- como /autorida-
\ exemplo, nos textos de Cícero - o termo tclmé se diz ars, que se de/ e /autoria/ - parece pertencer :t língua religiosa e do direito.
opõe, como nõme de uma atividade humana qualificada por uma Émile Ilenveniste propõe que a auctmitas qualifica a :tção própria de
habilidade adquirida por exercício ou emulação, ao termo natura, um deus; assim, toda palavra pronunciada com a aucl01itas ritual
\
/natureza/. O tema -ti (de an, arlis) relaciona-se com um radical detennina uma mudança no mundo,22 concepção que encontra
\ ara, difundido por to'da a áre� indo-européia, com a noção genérica equivalência nas práticas rituais vedas ou gregas arcaicas, em que o
)
de /cu! tivo/, como hoje cm arar, com associações mítico-religiosas discurso vale pelo que faz,ou pelo modo da sua enunciação. Segundo
(sânscr. rtam, /ordem; uso correto/; lat. ara; ritus; port. ara; rito); Ernout-Meillet, o uso de auctor pode ser aproximado do sentido de
\ numéri;as (gr. arithmós,/número/; perillos, /ímpar/); e principal- "qui in senatu primus sententiam dicit" ("o primeiro que proferiu lei
mente,de ordenação,como,em latim, artus,/ articulação/; arlicu- no senado"), como se pode ler cm. Cícero, Pis. 35. é deste sentido
l-us,/ju·nção; ligadura; ordenação/ -(cf. sânscr. !·tuh,/estr�tura/; inaugural que decorre sua significação de su.aso1� /conselheiro/, e de
ingl. a,m. /braço/; armen. eri, / espádua/; gr. artzô, /arranJat/) - dux,/chefe/. Em direito,auclor designava ofiador. Como a venda em
\ que também indica, como /junção/, o momemo em que dois leilão se dizia auctio, o termo auctor tomaria o sentido de /o que leiloa;
) eventos coincidem no tempo; donde também a significação gené- o que põe em hasta/, por oposição a emptor,/comprador/. A partir
rica de /ajustamento/ como, em latim,em arti, /que cai bem/,ou deste sentido, teria também o de /proprieufrio/, corrente hoje na
em m·tios, /bem ajustado; proporcionado; que faz em intervalos definição jurídica de "direito autoral" como posse e prnpriedade do
regulares/ - (cf. gr. 1·hythmós, /par; ritmo/; an arsios, /desajusta- 1� bem cultural. É do sentido de auctor como /vended01/ que deriva
do/) - e, assim, m-s, /técnica; profissão/,20 como em "artem · outra significação de aucloritas, /qualidade do vendedor/, donde
exercere" (I-I_or.), "exercer uma técnica; uma profissão"; arlifex, também /posse/, /autenticidade/ e /autoridade/.23 Nesta linha,
/que exercita uma m:s/, como em "artifex scaenicus" (Plau.), como especifica Du Cange,111alusauclor significa, em Cícero,"aquele
"ator"; ou "artifex statuarum" (Quint.), "escultor"; e, ainda, arlifi- que não tem a auctoritas que afirmava ter".24
cialis, /conforme a a,:s; regulado/; artificiosus, / que conhece a m:s-; Na prática retóri ca , aucloritas passou a ter o significado que
perito/; artificium,/ regra; princípio; arte/ etc. apresentá, por exemplo, em Vitrúvio 1 praef 2, na expressão
Quanto ao termo autor, deriva, em português, da forma acu- "pul>licornm aedificiarum auctoritatcs" (liternlmente, "autorida-
sativa auct01·e(m),substantivo com a desinência de agente derivado des das edificações públicas"), deünidas como "razões (medidas)
do verbo latino augere (augeo, -es, auxi, auclum), ligado à raiz das edificações assim decorosamente ordenadas para poderem dar
indo-irânica awg-,/força/,com a significação de /produzir a partir autoridade e servir de exemplo para outros" ("sunl aedificiarum
de si mesmo/,em latim arcaico, e de /c1·escer/,em latim clássico. rationes ila aple dis/Jositae, ut auctmila.tem dare et pro exemplo aliis esse
� significação genérica de a-uclor é, assim,/ o que faz crescer/-, mas possi n t").25 Por isso, inicial mente a conceit1:_ação da aucloritas distin-
também /o que faz surgir; o que produz/. Na última acepção, guia, na regulação dos discursos, entre auclor e: se1iptor,segundo os .
relaciona-se à noção religi9sa de uma Lprodução privilégio dos critériõs platôniêõs cleãiégesee mi'lliese no exercício da a,:s: o_scriptor
deuses/, significando, por suas relações com os termos aulf'..:r, exerce umaãn mimética;-pois o nome designa aquele que narra
/áugure/, auguslus, /consagrado pelo áugure/. e auxilium, /-auxí- q11,alq uer coisa, Jn·óJJ1ia ou alheia, ou que a e1�ia escrit�;_ao passo quç_
lio/,a noção de/ promotor; o tjue promove/ .21 Na sua significação o auctor,de modo diegético,éãquele que edita os próprios discursos,
, posterior,·parecem concorrer, além do verbo augere, formas supi- • mantendo seu crédito, como se pode ler em Cícero, Tuscul. dis/1.
nas do verbo latino agere (ago, -is, egi, acl-um),/agir; fazer/,é o grego 5, 2º, 57. Veja-se, ainda, a possibilidade de associar-se aucto1· com
aufós, /próprio/, e autheT•tia, /autoridade; poder total/. Em por- actor /ato1/, do verbo agere, /agir; fazei/, na preceptiva retórica,
tuguês arcaico, houve uma forma oulor, de que decorrem, _em @ em que aclor é um nome descritivo do orador (poeta) que, na ação,

� (y � ...)
linguagem jurídica, outorga e oulo1gar. ,/\A, "�� 1 i111ita um auctor ou modelo do gênero de seu discurso.
J J V"'-" r' ► ,

. 9-:> � ..
-e: �
.o.,..n___,./

� o �O<.. .J... .� , �. • � � e.,... -' ,e),.


. JL o �'") � '.',. e.� N.. ,v-.,! �,lL o (e,�· ·\.() .
)
r.lJ o � � �e �> �
JS J\ulor
r
r
'
i
lt Autor 19
'
Na concepção antiga do auctor, é a noção do artios, /que faz r e :! divisão elo mundo unificado, gênio no limiar da loucura, da
cm intervalos regulares/, que se evidencia: nos tempos arcaicos, p1·ofecia, herói marginal das altas profundezas.
ritualmente anônimo, é um augw; áugurc promotor da presen,ça No caso da Literatura, historicamente constituída no século
augusta dos deuses; na Roma clássica, auctor é o que, tendo a posse XVTII, a concepção, do a-utor como artista passa a separar e a excluir
de uma técnica (a1:1"), exercita sua arte conio artifex, segundo regras o que a Antigüidade havia unido e incluído na figura do artífice.
precisas e específicas de articulação (artificialis). Como artificiosus, \� Partiç_ularização de a.ul01; m·tista designa uma atividade r._rofis�ional
perito, conforme um artificiwlL, ou princípio, é tambéin um gnarus ' diferenciada dõ"ãrtífice peloseudêsintcressê. -Ao1nesmo tempo
,
que não ignora a auctloritas e por isso narra, produ zindo artefat os ,11 dife·enciadoÍ
i
'a, pelo seu mito clemiórgicÕ-missioneiro, que se inte­
que dão autoridade e servem de exemplos para outros_. ressa de outros modos: Política, Amor etc., incorpora à sua consti-
tuição todas as antigas virtudes das Artes Liberais, enquanto
mantém a desqualificação do trabalho mecânico associada ao
3. O autor-presença artífice. No dispostivo do autor e da autoria como presença e
originalidade, apaga-se a produtividade da teclmé ou ars que carac­
fllo XVIIIJo autor começou
--;J> A p;-wtir ela segunda metade do sécomo teriza, genericamente, a concepção antiga do artefato como artifí­
a � produzido,__!!ª C!]tica htcrápa, u 11l efeit<:_> inQnito aa cio. Nele, relega-se o artífice para posições subalternas de produtor
õfi'rãs
interpretação, que JJassou a executar a intenção oculta das ,, sem originalidade, em que a propriedade individual está expropria­
sem saber,
� ·termos daquilo que-o a·(llor nelas teria expressado da e, com ela, também a posse da autoria, que se torna necessidade
iu-se
como uma r�Oexão poteifriaclã. Quando, por exemplo, assum de discursos específicos, como este.
nascid as
que o indivíduo podia mostrar-se sensível2a impressões A profundidade e a sublimidade do autor-presença, articuladas
u a ser
dele mesmo e expressá-las como assu11to, G o auto_r passo à noção de evolução ou progresso necessário, estão incluídas na
nça subjet iva sobre posta aos critér ios
co_ nccbido como uma difere profundidade de uma psicologia da raça e na sublimidade de uma
então mode lizado s pela Retór ica.
1 dos gêneros dos aucl.ores até , • 27 origem divina, autenticadas no tradicionalismo e no nacionalismo
D escob nr . iOITI!!.
C' l�E
l ªra 1• 11d'1v1'd uos art1st1cos passou a ser traba- de uma Igreja e/ou de um Estado. No dispositivo romântico-posi­
intenção das Qb_f,!S_p�ra ?
� da críticajjte1·ád<1,.QUe arre!,_na�a objeto
tivista do autor como presença divina nas obras,� autor é a presença
próprioã-utor e seu público. Na interpretação ue o constitui cio artista na obra, que se anula com..2...produto, substituído pefa
ou filosó fico, o or se
de un1 comenfá1°ió 15iográfico, ·1 o og1co au aura da criaçã_o co11To feticliTsinõ da mercadoria.
, éo
torna, como diferença. _nas artes e nas letras artista . O artista
onsciê ncia abso­
único or onde il- ompe a ongiOãllêlãêleêla Autoc
r
da
luta (Fichte; da- ekvaçaO_ dãêonsciência dO se!1s1veJ ao lirn_iª-r 4. Antigüidade - Platão - A autoria como sinônimo
do, su12_!i!n e (Schil -
Razão {HegCI); do patetismo, da.ing�nuidade,
rgl:! ncop ­
1�). P9r exe 1np�o,-corno gênio, qu� rÇ,l1).1aTízª a demiu Nos Diálogos platônicos, a afirmação recorrente de que é na enun­
la
; como
tônica como expressão sentimen_tal-reOexiya do ind�finido ciação que se pode investigar a origem do verdadeiro e do falso
tuã;qu � se rebela e rouba o fogo sagrado do Ideal; como p
rom1to, articula a questão cl,;, autoridade como autenticidade. O crivo
finito.
�e fu,°7da iron@--9 signo da insitisJª-ç�o voluptuosa com o principal da análise é a dissimulação do locutor no ci_ados,
ídãêlecte
A novidade posra em circulação é o artista como ong1nal como presença/ausência. Assim, ao traLar do poeta, iG ;
latãoJescr eve
a err.�
)-•

�le::0-d;!.,pcia concorrênc ia a u(trap assar- sc a si mesm que ele ode falar cm seu )ró )rio nome, sem passai� g.9r outl'ÕÕÜ
funê1a ment a a nocaõ ele como
momento, a originalidade autor rc·correr a c1taçii.o de outros, ·azendo no discu� u�ó_pia
ilimitaçfu) d�.;speriênci<!, posto em conta to com o Espfri to, como p_ropmcional, eilwstiluJ, (��ida ��Eiginal verdadeiro, qu11-n:_
ove a unific ação do mund o divi_ dido
l.!]11 augustQ, áugcre que prom do :;e tem a cnunciaç;1.o :;irnplc:::; ou ha.plé diégesis. Contudo, pode
�)
l
)
20 Autor Autor 21

·também dissimular-se e falar-se �orno--9�tro, exe_ondo-se duplo e, lzeit". 30 Alétheia- "não-esquecimento" -é retidão e justeza (orthotes)
do enunciado reminiscente da idea como boa proporção. Toda
,múltiplo no discur�, desapropriando-se em deformacões que enunciação, contudo, dá-se no vir-a-ser, no sensível; logo, alétheia
ocultam a verdade. !l_pela mimesis qu� se �pi�� o pod_er. dos mitos,
das belas mentiras de Homero e Hesíodo, e da linguagem em geral: sofre um velamento, que a desloca como esquecimento. Em outras
na enunciação; o locutor pode dramatizar-se com a homonímia, palavras, a verdade é definida nos Diálogos como não-esquecimento
que deforrna· a presença como uma fraude. Levando o interlocutor da Forma e exatidão do discurso reto posto sob o signo da
a crer na aparência falsa do duplo ou do múltiplo, a mimesis reminiscência dalrlea, mas o discurso é mirnesis, produção que afeta
também é mal político, pois oculta o próprio e desloca a presença a participação de toda produção e de todo produto na sua idéia. A
da fala reta, que Platão atribui ao filósofo. Enquanto enunciação, mimesis (re)vela, ou (des)apropria. Deste modo, como a retidão dos
o discurso deve pressupor uma jJoiélica (techné poieliké) diegética, discursos só seria absolutamente rigorosa se fosse totalmente
isto é, produzida por um locutor capaz de simplicidade e não-du­ alétheia, o que se produz na enunciação dos discUI·sos só tem o
plicidade. Autorizada, a diégese imita a autenticidade do P,·óprio "aspecto de", como na República, em que os produtos da mimesis
nas boas cópias. são chamados de j1hainmaena, apa1·ências. 6: mimesis produz dissi­
A mesma armadilha montada para capturar poetas é armada �ulª--ção: falar é repetir o eidos, a pres_ença, mas a regetição não
para caçar o "admirável animal", como PlaLào chama o sofista. Ele ,�ala o enunciado na pres �n�p_oi� m�� �r,etLçf!o é _
é um tagarela mimético, um teclmités, politécnico, que fala embara­ mimesis. Logo, a leclmépoiêfíke nao instala o eidos, a presença, como
lhando os aspectos, misturando as presenças, produzindo indeter­ ide�s como mero eidolon. O diminutivo é pejorativo: o eidolon
minação em simulacros, phanlasma. A retidão do filósofo, porque é supérfluo, negligenciável, no seu modo de aparecer, como uma
contempla as Idéias, exclui-o como deinos, algo como "nem morto, "presençazinha" degradada da presença. Como Platão esneve eidos
nem vivo". Definindo-o como indefinição, a retidão diegética e eidolon, a diferença aloja-se também no seu discurso e implica as
desautoriza sua teclmé jJhantaslihé politicamente, ao demonstrar operações de separar a boa mimesis de outras, más, produtoras de
que é infundada a pretensão mimética de saber tudo ou saber fazer eidola. Assim, saindo à caça do admirável animal, o sofista, Platão
tudo. atinge o animal ótimo, o filósofo.
No livro X da Reníblica, a personagem Sócrates é figu rada Estabelecido o filósofo e a sua boa mirnesis como diégesis, seu
afirmando que toe as <l_s coisas do gênero mimético "são feitas ara discurso é dotado do saber da diké,justeza:iustiça assegurada por
contamin<!I,...(lobi._�i.; · menta < ianoia dos ue as escutam - leis que remetem o leit01· à teoria dos gêneros supremos e ao
�os aos quais falta o ren��dio/'.veneno (P-hármalwn} gue 4..ereçi dialético, que enuncia falas proporcionadas e próprias, autoriza­
�1.m�1te o de con!}ec:!.:_(eidenaQ...2.L.e11tes tais guais se erese!)tifi- das, que também visam a política.31 Nas operações discursivas, o
mal político passa a ser identificado à disjunção e à falsidade: é
_cam".:rn Se o leitor observa que o diálogo figura mimeticamente a aquilo que se posiciona fora do teórico como homônimo ou
fala diegética ela personagem Sócrates contra os males da mimesis,
pode admirar-se; contudo, evidencia-sefüos Diálogos2;que diég.es.is apócrifo, exterior à -_visão e à supervisão do Autor, como na
também é .mi'lllesis e que a cli[ercnça entre ambas é de grau na agonística sofista e na merúira poética, constituídas como doxaslilié
) �12:!�<W--.na:Eorm;t. CTslJúI!ogo s podem ser lictos, por issÕ,� epistemé, "conhecimento opiniático". Funda-se a autoria como au­
uma teatralização astuciosa e antiteatral que visa, entre outros fins, toridade do Sinônimo, como r·epetição propor·cional ou boa cópia
7 do Anônimo. Como propõe Derrida, todas as presenças são suple­
a anular a ação elo sofista e a fundamentar a autoridade do filósofo
) como autor do discurso de verdade, alélheia. mentos, imagens vicárias, da Origem ausente, que insiste em cada
É a cletennin:-ição do ser como eidos/idea - "presença no ponto da fala, ci1·cularmente; e todas as diferenças 1·etornam, mais
aspecto" - que faz Platào propor a verdade como alélheia - ou menos dominadas, no sistema das presenças, como um efeito
"presença", "não-esqueci1ncnto", "clesvela1nento" ou "Unverslellt- il'l'edutível do que pern1anece além, Anônimo. De modo que, na
f 22
ó C,,v..,A-[ � > ")(. ..i- .,,,
. ·f{'J.../1/V � t. ,
h,).l..
-'-
Autor
i b
't' -...,Q.
.olu'L tla e: , Auto- r 23
fala, a não-verdade é verdade, a não-presença, presença- dualida­
de potenciada na escrita. Como a _repetição mimética se dá no um Aristóteles que autoriza seus enunciados, em retrospecção.
vir-a-ser, no sensível, não é dominada pelo valor da verdade além; Não há, desta maneira, a unicidade prévia de uma tradição

r�
i•
assim, a fundação dajusteza:iustiça tam\)érn implica sua distorção autoral, nas apropriações, senão como um material para trans­
ilimitada uma vez que, nesse dualismo;.a linguagem é e não é formações que a retrospecção compõe como tradição de aucto­
instrumento da verdade que postula como fundamento. Nos dis­ res, como produto. Esquematicamente, esta consideração critica
cursos, o sinônimo da enunciação dicgética mescla-se rniseravel- o evolucionismo p1·essuposto na noção corrente de tradição
� · · · 3
mente com os 1 1omo111mos, que o vamp1nzam, e dei:ormam.
e 2A
como uma unidade do valor que "iníluencia" os autores; e
plenitude invisibilíssima do Anônimo permanece indizível, como permite, heuristicamente, dissolver grandes sínteses imaginá­
um mais-além-da-presença, epéheina tes ousias. E, contudo, só agora rias, como as estilísticas.
o discurso tem autor, quando se define um jogo retórico como Quando se pensa a produção da autoria, também pode ser
poder de expurgar os falsos pretendentes, lançados fora do círculo elucidativo ensar nos 11 vimentos de "retorno" ao que se alega
familiar em que a boa semelhança define os laços de parentesco. como "autor undamental" d_ç um texto_obj.eto de apropriações.
O verossímil- o "semelhante ao verdadeiro"-, que se fundamenta Em conflito com outros "autores fundamentais" propostos por
de direito no verdadeiro, opondo-se ao falso pelo direito do outros "retornos" contemporâneo _ s ou anteriores ao mesmo texto,
fundamento, fundamenta-se efetivamente como umjogo de força, em cada reatualização o "autor fundamental" fica posicionado,
teorizado p_ or Aristóteles na modelização dos !ugare_s-comuns e ,1 _
geralmente, abaixo, aquém e mesmo· além da representação do
seus efeitos persuasivos, na Retórica e no Organon . autor corrente, dado como aparente ou equivocado pelo movimen­
to de "retorno" -por excmplo," 'voltar aojovem Ma1·x", "recuperar
. 5.' Antigüidade .:A Retórica: auctor e auctoritas ..-/
'---.::_------�------
)
Freud" etc. O "retorno" implica a produção da,..aU,.tQcia,-e.videate.:.
mente, segundo uma perspectiva específica, como também a mu­
dança teórica e7õu dOufriOáT-iãO o êãmp.o _d_os discu'i·sos qµf"se
Lê-se, neste texto, a Retórica, de Aristóteles, enunciada como uma ocup�1!! do tex_�o obj_ç:t� do "reton'!._o". Caso das partições medievais
unidade 1 mas é bastante seguro que a prática retórica nunca teve entre ortodoxia/heresia, cm que o estabelecimento do "autor
a generalidade formal legível na expressão. A constituição de um fundamental" é determinante. Na Antigüidade - em Roma-, tais
princípio autoral de discursividade é heterogênea em relação a suas "retornos" também são observíveis: .. o modo de citar Aristóteles,
transformações· posteriores, como lembra Foucault.33 No caso, a nele selecionando o que é oporluno; o modo de interpretá-lo e
heterogeneidade decorre de a formalização grega de Isócrates e adaptá-lo a uma perspectiva platônica, ncoplatônica, estóica, cínica
Aristótclcs3� ter possibil.itaclo im'11neras aplicações, ou aproptiações, ou cristã; o modo ele com ele autorizar a clareza ática ou autenticar
que a generalizaram a cada vez como um princípio unitário de algum ;::,cúmulo ashí.tico; os _modos de divinizá-lo como o autêntico
discursividade, "a Retórica, de Aristóteles", principalmente cm Aristóteles, enfim, também implicaram a não-unidaçle ou a hetero­
Roma e, ainda, nas apropriações dos séculos XV e XVI, do XVII e geneidade dos processos de constituição do princípio autoral da
cio XVIII, unificadas hoje como Renascimento, Barroco e Neoclas­ discursividade antiga, a aucloritas cio auctor.
sicismo: Posta a Retórica nas aplicações como princípio autoral Ao reatualizar a modelização cios efeitos verossímeis dos dis­
unitário, quanto mais elas insistiram no valor da sua autoridade, cursos, feita principalmente por Aristóteles, as práticas_:antigas
tarllo mais se constituíram como auct01itas de uma norma unitária posttJJ�m a autoria éom_o_a-utorü(q.ck_Çgi:-a.xiouur;_lat. aucto-ôt(4J.
de a Retórica. Com isso se diz que não é, propriamente, a Retórica C��G�n�nte, a auclorilas antiga é especificada pela doutrina do
arislotélica que causa, por exemplo, a Instituição oratór'ia, de Quin­ ecorum (gi:_;_-J!Jif!!fll), interno e externo. em gue o a-uctoré um nome
tiliano, mas é esta que, ao constituir a outra como auctorilas, produz 5=0111Q_etl ,queta d�unl._gênero, ou uma mediação retórico-�lítica,�-
·/·
1101·ma cívica do gênero do discurso como C<}!wenientia, adequação
) [
1
! Autor 25
21 Autor
autoral de discursividade, produzindo textos como contribuição à
à audiência. A aucto·1itas é típica e tipificadora, como evidencia, por glória do Auclor, sem pretensões a verdade, autoria ou originalida­
exemplo, a doutrina médica dos humores articulada à sua consti­ de. A exceção é Dante, que compõe a Comédia rivalizando com a
tuição. Por exemplo, é a alrabile o critério especificador de um Teologia, como expressão retórico-poética do seu próprio princí­
decoro aplicável à invenção do tipo auto1-al platonicamente manía­ pio de-interpretação hennenêutico-tipológica. No século XVIII,
co, oufuiiosus, como Cícero propõe o grego melancholillós, e do seu .iinda, na França, segundo o mesmo modelo de aucloritas reinter­
)

' caráter atrabili:frio, que se especializa em gêneros regrados como


excessos entusiasmados, coff10 no topos, reativado até o século
pretado no Neoclassicismo, a fixação <la língua escrila passou a
constituir como autoridades de norma cl:íssica ou discursos literá­
) XVII, "lágrimas de I-Iei-áclito e riso de Demócrito", no qual o rios do século XVU: Voltaire re[ere-se a eles como "nos auteurs
primeiro, tendo o fígado arruinado pela bile negra, só chora, classiques".
mesmo com as coisas mais ridículas, ao passo que o segundo, A regra nuclear da auctorilas antiga é o costume (consueludo),
padecente do mesmo mal, sempre ri, ainda com as mais dolorosas. que prescreve o decoro interno do discurso como adequação das
A aucloritas é, também por isso, a norma verossímil de discursos
p-:,rtes ao todo e, deste, aos preceitos da auclorilasjá realizada pelos
propostos como tradição escalonada em gêneros e formas retóri­ <;_lássico�_ ao mesmo tempo, prescreve o decoro externo, como
co-poéticas específicas, concebidos em Roma como "clássicos". O adequação verossímil à recepção. A auctorilas relaciona-se intima­
termo classicus designava um homem de "primeira classe": a-metá­ 36
fora retórica é a do patriarcado, evidenciando-se sua relação com �e �m a urbanilas, um uso cu�iviíc la TTngua. É impor­
tante lembrar que o decoro é, antes de tudo, um especificador de
a concepção antiga do auclor como /fiador/ e /proprietário/.
gêneros: é retórico. O que significa: em certas situações convencio­
Como chí.ssicos, os ª"!!-clo-res têt!!_1!yirlus g1�atical e retórica, como nadas, a vfrl11s retórica mio se idcntiGca com a vfrlus ética. Por
escreve Quintiliano ao tratar gos opti111i auclo1·es (também..9.1ama­
exemplo, a sátira de estilo sórdido, como a dejuvenal, totalmente
_...aos de su111::!!.!:i aur.lores; magni ª1.!:.clores; clas_!...ici scriplores). É devido �
decorosa pela aplicação de lugares-comuns e léxico obscenos; a
'!!._irlus que têm e dii.o autoridade: fornecem exempla, exemplos, que elegia erótica, como a de Ovídio, também decornsa pela aplicação
devem ser seguidos pela aemulalio, cmulação. 95 de esquemas da ars auwlo1ia; ou, ainda, a comédia, como a de
Reatualizada muitas vezes como exemplaridade da correção Plauto, decorosa sempre na caracterização dos tipos baixos do

f
do discurso, a auclo·ritas foi fornecida por auctores gregos, na época
apaixonado, do parasita, da prostituta e do servo, devem ser
de Augusto (séculos I a.C./I d.C.). Na doutrina patrística - por vetadas à juventude, que eleve crescer com os exemjJla de outros
exemplo, em Orígenes, Clemente ele AJexandria, Santo Agostinho - gêneros, que desenvolvem os modelos da urbanidade do cidadão.
e na sua reto1nacla escolástica - São Tomás de Aquino -, que se �
Evidenciando-se a auc/01ilas também como um princípio de classi­
apropriam da auclo1itas latina e a cristianizam, ela é a de um texto ficação dos a'l};flores _segundq_ circu nstânciaLQQ._decoro extern,2.
canônico, autorizado como autêntico, da tradição da hermenêutica
segue-se que, embora Ovídio, por exemplo, seja excelentíssimo
bíblica, a ser infinclavelmente retomado pelo comentário exegético
poemeróti'co, pois é m,cla--; de um de,.9?_ro lascivimJmais lascivo/,37
'
ela enulitio, memória ou erudição dos exempla e das interpretações naoéãdequado
' sempre, em todas as circunstfincias convencionadas.
canônicas, e ela divinalio, ou glosa alegórica ela Letra, como tipolo­
Da mesma maneira que aplica o termo lascivus a Ovídio,
gia. Como se pode ler em To1rnís de Aguino (Suma teológica), a
l _única auciõritas é a -da 13íblia, cuja verdade, revelada através da
Quintiliano escreve que Tibulo é ler.s-us, elegans, e Callus, durus: são
termos técnicos, especíCicos do a1·Lificium, propostos retoricamente
). f!..,guração por coisas que são interpretadas como alegoria factual
corno a,:r ou leclmé, e significam cai-acteres, como variáveis previstas
; (allegoria in fac/is), tem duas finalidades: a vc1:dadeira fé e a boa
do decoro a que a poesia elegíaca deve aplicar-se. Da mesma
cÜnduta. Assim, �uc� -Qeus, é a úniêa Coisa visada no
maneira, quando Ovídio se refere aos poetas que o precederam no
comentário. Por isso, ainda, muita vez poetas contemporâneos da gênero elegíaco, escreve que Catulo é doctus (A'lll. iii. 9. 62), que
Escolástica, no século XIII, tiveram de conformar-se a tal princípio
)
1 t'

.....v ,./ ..26


�-

.
, ç:: , �s . �éJ__a---J
a.,,_cLh .).
�· --
IJ-,tcJ-L.Uv-:,,
1...9- �lv....vw,--)
r-fr
l� - , �
� 1:. ..> r),v� ,·1 1 'A\,)
ulor
! .\ ' ':'
--
I' �� t-'
,:, d;✓ [ Autor 27
Tibulo é cullus, e Propércio, úlandus, termos também técnicos. Da
'• � : mesma manei1A, qy,anclo--ess<:y autores escrevem sobre os amores, um dos nomes, que taiill>ém elevem ser lidos, afirma Quintiliano,
.. - ✓, , aplicam �11 afeto vernssimi!,! ade�aclo à persuasão, em termos como auctores de toda a viela. A enarraiio auctorum também é leitura
1 �1
L:
••
' •
retoncos, -r:;l
como -fi'1-,.·T� b,- ' d ·r, . . I'
1u es.<.:.u.::i tam em e-t�·mo � art1 1c10 e 1mp 1ca, de oradores; logo, é matéria dos auctores da Retó1·ica.88
� _,
� .., como especificador da r�Iação de um discurso de um auctor e a sua - A Retórica aristotélica (Livros I e II) fornece os arg_umentos
���ncia, a·persuasão através de signos verossímeis: quando falha espc'cíficos (eidê); os opináveis verossímeis (endoxa); uma doutrina
L� _e m representar tal caráter ou tipo, o discurso é imediatamente dos juízos conforme tópicas do possível/impossível, do real/irreal, do
-- inepto, indecoroso, semfides. mais/menos, �unda1nentam.a�c.oncep_çfu)__g a ay,_çJorila.s_. Prescreve
-.J _ Como a poesia de Ovídio aplica uma fides dcliberada)!!ente também os repertórios de significações que o orador (poeta) deve
· artificiosa, que evidencia o procedimento, é comum .,? �crítica l ter em mente no ato de compor. Distribuídos segundo os gêneros
·moderna à sua falta .de sinceridade ou sentimento ve_rdadeiro de 1 d�_oratória- d<:_liberativa,judiciá1��pj�ítica - e segundo gkçrios
um a experiênci a real, formula<la segundo a êóncepção rom._ânticaJ êle cada um deles (o _põssívefquc se delibera; a causª q� seju..!_g a;
do autor como subjetividad(!. A crítica moderna não considera, o grau do que se louva ou_ _çe_�sura), OJ tempos-(o futuro-da
\evidentemente, no anatronis1�0, que a poesia de Ovídio está toda deliberação, o passado do julgamento, o presente da ponderação)
no verossímil de uma experiência real das convenções do artificiµm e_c�tegorias empregad_as neles. (o fim, o mfio, a_ qualidade, .a causa
codificadas em uma experiência ret6l'Íca comum ao poeta e à sua �te._). _Na emulação dos auctores que realizaram tais critérios de
audiência. Por isso, quando se escreve sobre a "(in)sinceridade" . modo decoroso, o orador (poeta) deve também lembrar critérios
dos amores de Ovídio e Corinna; sobre a "real identidade" de pragmáticos: as atitudes (éthe) de quem fala, como fides adequada
Lésbia-CI6dia e o "rcss·entimento" de Catulo; ou, em outro gênero, à persuasão, e, assim, os afetos (Palhas) de quem ouve, baseando-se
sobre os "problemas sexuais e financeiros" dejuvenal, é a não-ob­ 1 ' em elencos de definições morais semelhantes às da Ética Nicoma­
s�1'\'a. ção_d_a norma retóriça da q,uctoi:i!!E_ que proje@.Q.._anacronismo quéia, dadas no Livro II. Conforme a mesma convenção, a ordem
.}
ao autçr-subjetividade no discurso antigo. Nele, o nome próprio do discurso (gr. taxis; lat. disposilio) visa a utilidade (doccre) pela
•do autor - "Ovídio" - é uma etiqueta, lascivus, especificadora de clareza da argumentaçf10 e. disposição das partes, como persuasão
um decoro elegfaco-erótico na relação obra-gênero-audiência. O do destinatário (movere), que adere aos valores da opinião (endoxa)
nome descreve o modo específico, retoricamente regrado, como propostos para a invenção da causa tratada no discurso. Como um
uma quaeslio finita preenche os esquemas argumentativos das antídoto do tédio, a elocução (gr. lexis; lat. eloculio) visa o deleite
quaestiones infinitae próprias do gênero como casos da invenção (delectare) elo reconhecimento de um desempenho decoroso: dis­
-2 fornecidos em elencos. "Ovídio" diferencia-se de "Tibulo" ou de
"Propércio" porque, nos limites do gênero comum em que são
curso sem ornato é pedestre, <lidático, o excesso dele é obscurida­
de, incongruência e f rieza afetada, que revelam o esforço e tornam
ay.ctores, cada nome opera um verossímil ele aplicação: tem uma afides menor. O compro.misso de utilidade e deleite impede que a
� correção gramatical maior ou menor, em termos ele consueludo; elocução se autonomize - o que pode dar-se, porém, em gêneros
_1
.... dispõe as tópicas numa ordem mais ou menos patente; afasta-se, específicos (o .epidítico� ele louvor e censura ele objetos belos ou
nos limites prescritos de vulgaridade e de hermetismo incongruen­ feios, especificado por auctores de vidas, como Górgias, por trata­
..)

�,
..J

"\
....., te, mais ou inenos da ornamentação, utilizando mais ou menos dos sobre os caracteres, como o de Teof rasto, e por outros, como
�' \J ·, esquemas, como a ironia, ou trapos, como a metáfora. É nuclear os textos de auctores cômicos e biográficos: as descrições muito vivas
e!n cada variação específica, no entanto, a prescrição da persuasão de Cláudio como abóbora, por Sêneca, ou os casos das Vidas
verossímil, associada à defides. Neste sentido, dis-cute-se afides de Paralelas, ele Plutarco, são exemplares). O compromisso é obtido
cada auclor tendo-se à mão a enarratio auclorum, a lista. dos.autores por preceitos ·técnicos cujo operador é a proporção (proportio;
re_ co_mendados como modelares do gênero desenvolvido por cada commensuratio) conveniente. A medida adequad a num gênero ·é,
suposta a proporcionalidade, inconveniência noutro, impondo-se
,.. (Yvc�·I� Pr-{)-i::.: frt).J A ·&-Jl l<::'.õ)'l (..J; }1 (Ã,éÕ �- rlt... · 1,

' )
Autor
28

'
29
AttlOI'

existencial num tempo progrcssisla; como psicologia do estilo;


o sistema: a virtu.s retórica determina-se neg�iv�ente, com� !!9
c�mo pr�riedade pr!vacl� e di!·eitos autoi_:_�i� �o d�o antig_o1 \ /
horaciano "fugir ao vício": não se a(�t� d_emasiado da ling�.iagcm

I
t'
enlim, auclor e aucto·ntas espec1Cicam um genero, um uso, ou uma
urõãna;-evirm-comp--n1-açõcsóbvias ou abstrusas; Jugir_pa frie7:!1 ]
disciplim:c,911:0 �10 .Irivimu, cm que''CícÚÕ" é o_a!:!;E/õr da Rctó-
d'ecõrrente dos excesscrs; evitar hibridismos; manter a correção, a ,, ! 1
d5a; "Aristóteles , da lJial_ética;_ poetasãntigc:>s, da Gramática.
p�·opriedade, ã necessidade, a verossimilhança,tais como realiza­
Como um resíduo trivial, a concepç;'io da autoria como a1tclo-
l dàs-pet"o�ucloms.:::._ - 1ilas ainda hoje se acha em livros didáticos, como os de Gramática,
Como representação, a mediação dos auclores exclui todo em que t1·echos e frases de autores antologiados como "clássicos"
expressivismo: a auctmüas é uma norma retórica coletivizada e o
\
vernaculares são prescritos como auclores que exemplificam a
gênero é critério prescritivo. "Ovídio", como se disse, classifica um
moralidade de um uso autorizado e virtuoso. Está presente tam­
)

verossímil lascivo ela elegia erótica, não um homem. Alinal, como


bém em currículos de cursos de Letras, cujo cânone costuma
escreve Plutarcos9 não h;í homem bem-nascido que tenha desejado
oficializar clássicos por interesses aquém e além do estilo que estão
ser Anacreonte ou Arquíloco por haver tido prazer lendo-lhes as
no nacionalismo e em incisos dele, explícitos nos juízos de valor,
obras, pois não se segue, se a obra deleita, que seu autor deva ser
c?�º a Evolução, a crcnç� em Deus, as Leis Históricas e a_n�- _ ....-­
tomado por modelo. Como a emulação é prescritiva, tecnicamente
sana e op2r.tun.a I:wrocrac1a.
não há "plágio", embora possa ocorrer, quando não opera o
Como exemplaridade de au cto,ilas, lembre-se também que a
ingeniu m (engenho) próprio. Mesmo na extravagância, toda ars está
categoria antiga do auclor podia ser fransdiscursiva, na medida
sujeita ao decoro como "despropósito proposital" ou "inconve­ mesma que o nome designasse urna dout,·ina, uma teoria, uma
niência conveniente", nas palavras ele Emanuele Tesauro, precep­ tradição. É neste sentido transdiscursivo que Foucault propõe uma
tista do conceptismo. 40 Ainda nos gêne.r.os biográficos e
classe específica de autores, que chama de "fundadores de discur­
autobiográficos, a vida é tratada segunao exemj1la e como exemplum. sividade"41. Marx, Freud, Nietzsche - autores hoje, em tempos
Na compõsição das lembranças, o discurso é seletivo e aplica os neoliberais e pós-modernos, em grande parte arquivados não só
lugares-comuns de uma meinória de casos que especifica o lembrá­ em seus textos, mas principalmente nas regras de formação de
vel. A particulaí"'idadé de uma vida só é conveniente como caso se
outros e que ironicamente poderiam Ler Lido - Foucault escreve 1
pode conformar-se nos esquemas partilhados pela audiência, que
sobre a autoria em 1969, em era pré-pós-moderna- função autoral
é o árbitro da a1Lcl01itas e, portanto, dotada de autoria.
)
semelhante à de Aristóteles e Cícero nos dicursos antigos, até Q_
É assim que a noção de obra (opus) impõe-se, absoluta, aere
século XVIII.
)

perennius, mais perene que o bronze, na expressão de Horácio: a


) O?ra imo�aliza o aucto·r. Ela pressupõe os modelos da consu�liTdo,
costume, como u111clade de um auclor a que o füsc1.11·so particular
se subordina. Pela noção de obra, as operações do(no) discui:_so são
!
1 ,

j 6,, A destruição da presença


�s de uma racionalidade não-psicológica que se espelha nele e se \ 1 .::S
1 ) Na crítica literária francesa dos anos 60 e 70, o termo escritura, de
reconhece nos caracteres e tipos prelixados, como adequação antigas dout.ri11as cabalistas, escritu�ii' e textualistas," p�ssa a desig�.
,·etórica. · !lªr uma aproximação materialista da forma, deliniQSlo o processo
J
Com isto se diz, esquematicamente, que a auclorilas sistemati­ · da produção significan�e. Opõe-se radicalmente a "criação" e anui�
zada pela Retórica, pela Retórica para I-Ie,·ê-nio, pelo De '!!ªt.!!.re, pela � autor como subjetivfdacle na ohra. Como uma intervenção con­
Institulio oraloria e, a _partir do século XV, que a óescobre, pela ceituai que desloca a linearidade e a subjetividade que saturam o
)

Poética, �c9nhece o_aulor como se define a partir do século XVIII discurso metafísico S(?,bre ::x.significação,42 sua prática situa-se, se­
romântLco: �mo originalidads: � uma intuição expressiva; como_ gundo seus teóricos, ·como que no cruzamento de inconsciente_ e
uriicl a'de e profunclidade de uma consciência; como particularidade
)
}
)
)
r
30 Autor Autor 31

saber: não pertence à ordem �e nenhum dos saberes constituídos, É contra a re rescntação <lo autor como resença ue Roland

f
mas penn1te apreendei· as o Jerações que os constituem; não se Ilarthes.._aqui sumariamente reduzido a um paradigma e uma
íaentibca a P-1'0 u.ção..inconsClentc:ina�-r-en}litc decifrar s� eco­

1 -%1
Zonce ão ne ·ativa ela autoria, escreve "La mort de l'auteur",
nomia sini_b,ólica,-o-carátcr difcrc112�) da or_c!e�n signific<!_nt�_g ensa10 de 196 , ue contém a noção de "consumo auto· J" reiõ,;
sistema de deslocam,cotQl>, çondensações_e_concateJ1c!_çQe,s_g�e � ma a e desenvolvida em Le plaisir du texte, de 19 3, e em Fragmenls
2nstit_u!! , m�Designa uma atividade de transformação textual que, d'un discours amow:eux, de ! 977. l'{�{io, Barthes propõe qÜe i
7

como o desejo,não tem fim: processo contínuo, propõe-se a apagar escritu1-a, como destruição de toda origerr1, também destrói toda
toda origem; 12ela, o "cu" é efeitQ, apaxccendo apÇ_nas como i�ade, a cÕmeçârpel:rdo-corro -qúe escreve. Como sécõns­
suposto pela pluralidade de interv_cnçõç_s_móveis_qtJe não c�SE.!!!.. t1�ra çle toda fui1ção �e não seja a do SC..!J_próprio exercício,
..e __!!_-ansfon:nar-_;,�, enquanto o antigo sujeito da criação, assassina- (p quando a cscritu_ra começa, � autor ent11!...l@ sua p1:6pria rriortê.

3
-do, desaparece substituído pefa fonna ErOJ19_min�_ l de um "tu", ),.
�sfi'uição-do "império elo Autor" começaria a evidenciar-se na
destinatário-leitor investido çle função autoral produtiva. v
p�el lallarmeque, suprimindo-o en� be�1cfício da esc1{tllra,
Com a ese1ilura, a crítica atacou,. basicamei1te, a vero;;imilhan­ cOnfrê e um corpo anônimo alinguãge1"!}; CQ.!!tinuaria com Valéry,
ça, mimética e expressiva, caracterizando-a como "mitologia", � que recus�toclã-intedoridade co·mo superstiçã�; com Proust,
"efeito de real", "doxa" (Banhes); "motivação", "naturalização do queinve�_relãçãoroinântico:realista ele "vida e obrn", f�zen-
signo", "cratilismo" (Ccnette); "metafísica", "pulsão escópica", "so­ [Q da obra o modelo a sêrimitado pela viela; com os surrealistas
ciologismo", "ideologia positivista", "fonocentrismo" (Kristeva).
. Com a mesma nqção, teorizou-se uma "economia política" da
\ que;- pela prática de incluir no mesmo objeto as intervenções de
vários produtores, contribuem para "dessacralizar a imagem do
produção do signo e cfo inconsciente, em que confluíramjakobson -- -
Autor".
e os modelos fonológicos da lingüística estrutu1-al, aplicados à Alen1 da literatura, um dos princi r-ais critérios de 13arthes é
antroplogia e à psicanálise; Lacan e a teoria do inconsciente como fornecid'!, pela lingüística estrutural. Çomo demonstrapl os traba­
cadeia significante; AlLhusser e a crítica dos aparelhos ideológicos lhos de Êmile Ilenveniste sobre o <lisç_u_rs9_e_o sistCJ11a dos pronq­
e da consciência etc. Também os textos de um c011iunto de autores, mes, tod ã enunciação é vazia como processo, funcionando
postos como referência obrigatória de toda prática e teoria da �stemica�!!.__e1_ _s<:..!}: que seja necessário preenchê-la com a pess_oa,
escritura - entre eles, principalmente, 6 Mallarmé de Crise de vers, dos interlg_cutores. " O autor do discurso é um ei:onome, ...9u __um
Mimique, Les mots anglais e Un coup de dés; Lautréamont e Maldoror, sujêito-grnmatical, não uma f)Cssõâ'suõstanêi�C-Geralmente, diz
Flaubert e L 'éducalion senlimentale ou Madame Bovmy; Proust e a Barthes, o autor é dado como o passado de seu próprio texto, numa

1
Recherche; Valéry e sua poesia e escritos teóricos; Joyce e Ulysses e r relação de antecedência semelhante à de pai e filho. 1:,evando-se
Finnegans Wake; Kafka e O Processo e textos de A Colônia Penal; em conta o processo lingüístico da enunciação,_por�m. na escritura
Roussel e Locus solus e lmpressioris d 'Afrique; Artaud e o teatro da o autor nãoé mais um si:ue1to âe que o discurso seria o predicado:
crueldade; Brccht, o teatro chinês e as teorias do distanciamento
épico; Brcton e os textos surrealistas; Bataille, Klossowski e. seus r o Ul11CO tem2� escritura éodã enunciação - opresente da
leitura - corno unuqui-ago�·a ,clecóêligos. Logo, a e11ünciaçãode
rom<!,nces e textos filosóficos. Na medida em que a no�ão de
P:!_C1itura impjiÇQu..!_ambém a questao_dos lUUJ,J:es das regras, da
f qualquer discurso não teria outro conteúdo (enunciado) senão o
:õ ato ;:1�mo pelo qu,_ ,Lela se profere. Não sendo mais a expressão
•�ress�2, do goz�J;!ê_.castraç�o,�a_9e. Corno �texto.! Nietzsche,� ) ..1,e um produtor, nem a representação de um real preformado, o
� Heidegger propôs como _um t;_érmino quand.Q escreveu que o, 1
discurso é o traço, corno um produto, ele uma inscrição sem origem;
çsqu__e'êimento do ser e a repressão histórica da escritu1-a que, desde logo, sern subjetivid:ide e sem profundidade. E, .ul w
taneam�.nJ�,
o começo, foi"allistóda do niilismo ocidental, tinharn- durado o�to é iuLertexto:_dada a precedêncj_a d..9..§_cp.digos,_ a_ :coJ.��•­
,- ,
"desde Anax1man d r_o ate, N'1etzsc1 1e , ..·1•1
- - ---

-- -·
interior que o escri�or imagine exprimir não passa de "um dicio-
[l­
- - - - ....

r--
t -..L<.t c....l1.l,4.( �o
,..
� t..
tt.t
� '3 :::; 'V). Ú�,\.\..• l lt,_.
.

�v.,.v,r>-0
32 Autor Autor 33

n;í.rio inteiramente composto, cujos termos só po.9e!:_11 expli�ar-s� também não é meramente tradução <las lutas ou dos sistemas de
�rãvés g_e outrns". dominação, mas aquilÇ> por que se luta, um poder de que se tenta
_ _ __ _ apoderar-se.·18
(.� -A'nulada a presença do autof; destruída a representação, tam-l
implica uma partilha
�é� se ��>t:Da ·i111pertinente "decifrar" qualquer textoJ Historica­ 1J.-10utro princípio de exc\us:lo é o que
mente, lembra Barthes, o reino do autor foi também o do crítico �a rejejção, consistirLd<?_1.1a op2,si_çfl9..1.:;izão/loucur��Depois
intérprete. Na escritura, contudo, a crítica tem muito a "c.lesemba­ da Idade Média, a constituição da palavra do l o uco a faz nula,
sem autoria, sem aut o ridade, irrespons�ívcl; ao mesmo temp o ,
()
raçar", mantida a met�ffora do text o como "tecido", mas nada para .j

interpretar: como uma rede, a escritura pode ser seguida cm todos com poderes es"tranhos, como o de profetizar, dizendo uma
.}
,.} .
os seus fios, urdiduras e tramas, mas não tem origem, e seu sentido @\ ver�ade oculta. Até o sécul o XVIII, ainda, tal palavra ou não
compara-se aos buracos das malhas, difercJ1cial, posicional, e vazio
3 era nunca ouvida ou sempre foi ouvida como palavra de
da infinitude de código. Do que decorre a generalização: a escritura o verdade; antes do XVIII, foi objeto no teatro, onde o louco
desempenhou o papel da verdade mascarada. A partilha conti­
libera uma atividade contratcológica que é "revolucionária", por­
que a recusa de fixar o sentido como origem ou presença equivale nuaria em linhas diferentes, através de novas instituições e com
à recusa de Deus e suas hipóstases, a lei, a natureza, a ciência, a efeitos também diferentes; a orelha do médico que hoje ouve
consciência. A escritura marca-se como pr..i0c� trnnsgre��... basi­ essa palavra enfim livre ouve-a para manter a cesura constitu-
camente; assim, desloca-se para o leitor a função auto1.:_al, que deye tiva que a desautoriza.
reãlizar um sentido à custa da morte do autor como presença. Jal Um terceiro sistema de exclusão é � partilha, ou a oposição,
leitor é "uf!l qualquer", uma casa vazia indiciada por um pronome de verdadeiro/fruso, co1110 vontade de verdade que atravessa os
pessoal e sujeita a múltiplas aprnpriações que, tendo uma função díscursos implicando sistemas de exclusão. Tal vontade de verdade
tem suporte institucional na pedagogia, nas bibliotecas, no sistema
escriturai, ele scriptor, têm uma função produtiva."16
" das edições, nos laboratórios, no modo pelo qual �saber é repar­
Q ti9.o etc. Segundo Fo ucault, é de tal vo ntade de verdãde que
} 7. A função-autor: Michel Foucault e o dispositivo
de classificação 1 çlerivam os sistemas de exclusão - embora seja dela que se fale
menos, como se estivesse mascarada pela própria verdade, natura­
lizada como riqueza, força, fecundidade. Retomando Nietzsche (e
1
)
/"Qu'est-ce qu'un a�e�r?" Q969)}� L'o:::dre �u�isco1!r.s_(l970j Artaud e Ilat,.1.ille), foucault escreve que se ignorn a vontade de
}
_ �_ verdade como maquinaria prodigi o sa, destinada a excluir; contu­
textos em que Michel foucault apresen ta a hipótese de que, cm
toda sociedaãe, a produção dos discursos é simultaneamente con- � do, não são apenas esses os procedimentos de ex�lusão. I-1..í outros,
ti-olada, selecionada, ordenada e redistribuída por certo número
de procedimentos cuja função é co njurar-lhe os poderes e perigos, -.)
3 . "internos", p ois os discurs o s tamb_ ém exercem seu próprio contro­
le, com o princípios ele classiúcaçã o , de ordenação, de distribuição
dos eventos e do acaso. t-Jesses
"1
dominar o acontecimento aleatório, apagai· sua materialidade. ·· últimos é que se inclui o dispositivo
Foucault propõe três espécies desses procedimentos47: primeira�\ autoral.
mente,. o que chama de pro cedimentos de exclusão, dos quais --Xrticulando-se ao de autor, existe o comentário. É um dispositi­
talvez o mais familiar seja o interdito, modulado nos discursos � vo que pressupõe um desnível entre discursos que desaparecem no
_j
�o tabu êlooôjeto, ritu- alêlãcií-"cunsl:â!}C.!_a e privilégio exclusivo j ato mesmo em que são emitidos (sem autoria) e os discursos
J do sujeito que tom:iã palavra, como três tipos de proibições em .....Ç)•,J reatualizáveis sempre (com autoria): textos religio sos, literários,
pi·ocesso rnntínuo. As regiões a qu...s;_mais se aplicam os interdito� '0 e) jurídicos, íil osóúc o s, cientíúco s. O mesmo desnível é móvel, pois
s�s da p..9lítica e_da..sexualidade e, na exclusão, o discurso não é /"""" .,__:,""6'0 mudam os pontos de aplicaçã o do comenLário e a função do
apenas aquilo que oculta o desej o , mas também o objeto dele; \1.) desnível permanece. Na pdtica do comentári o que fundamenta a
)
)
l
!,
34 Autor Autor 35

função autoral, o desnível ésLabelecido entre o discurso primeiro indivíduo ("Aristóteles"), ao mesmo tempo o descreve ("o Estagiri­
e o discurso que o interpreta tem dois papéis solidários: permite ta", "o autor da ÉticaNicomaquéia" etc.). A relação de nome próprio
construir indefinidamente novos discursos e dizer pela primeira e individuo não é isomorfa da relação nome r-ró r-rio e discl,!rso _ ,
vez o que já está dito, repetindo-se, contudo, o que não foi' dito. quand� consideram as duas articulações de dcscriçã�<:_ designa­
Assim·, no comenLário o "novo" não está no que é dito, enfim, mas ção. Entre elas, alternam-se várias possibilidades autorais - por
no acontecimento do seu retorno. Por isso, comenlário e autoria são exep m lo, se for descoberto que Shakespeare não nasceu na casa
dispositivos proporcionais: se o comentário limita os acasos do que hoje se visita, é urna modificação que não altera o funciona­
discurso pelo jogo de uma identidade pressuposta, que teria a mento do nome do autor; se for estabelecido que não escreveu os
forma de um Mesmo na repetição, a autoria limiLa-lhe o acaso pelo Sonetos que passam por seus, a alteração certamente modifica o
C
jogo de uma identidade pressuposta, que tem a forma_â m.diY1- funcionamento do nome. E se fosse comprovado que Shakespea­
duãlida9..�cr''-eu":--A-autoriafiga-se intrinsecam�nte,_assif!l, à re escreveu o Organon, de Ilacon, haveria uma terceira alteração,
noção d_e obra-:- - que transformada totalmente o funcionamento dos nomes dos
--Esta implica o pressuposto de que o mínimo frag_mento-de autores.49
u�is_�so obj� do coment�·i_o apr�1�a �1��2e Outras considernções podem ser feitas sobre a função do
expressão de um pensamento, de uma experiência, da imagina­ nome próprio. Por exemplo, dizer que José da Silva não existe não
ção,-do inconscie11te, dasãeterminãções históricas etc. Tal uni­ é o mesmo que dizer que Homero ou Hermes Trismegisto não
dade, contudo, não é um dado, mas o resultado hi�tórjfo_:q__e um existiram. Num caso, fala-se que ninguém tem o nome "José da
írãbãlho interpretativo: que eram os papéis de Sade antes de ele Silva"; em outro, que muitos foram confundidos num mesmo
ser posto como autor de uma obra? Certarrtente, papé1s sobre nome ou que o autor verdadeiro não tem as características tradi­
os quais despejava seus fantasmas. E se é certo que os cadernos cionalmente atribuídas às personagens Hermes e Homero. Tam­
de notas de Nietzsche devem fazer parte de uma edição das Obras bém não é a mesma coisa dizer que Stendhal chamava-se Henry
Completas de Nietzsche, o rol da roupa suja mandada para a Bey!e; ou que Vitor Eremita, Climacus, Anticlimacus, Frater Taci­
lavanderia rabiscado neles também deve ser incluído? A resposta turnus, Constantin Constantius é Kierkegaard. E qual é o funcio­
à questão implica as noções de autoria e obra, e evidencia que namento e o sentido de um nome como Bourbaki?
são generalizações, como unidades descritivas e classificatórias. O nome do autor é, assim, uma função classificatória: agrupa
A sua unidade de ficção - o autor "Nietzsthe", as Obras Completas e delimita te�tos, �xclui �isc�rsos, 2põe-nos entre-si, estãbelece
- é resultado da ficção da unidade "Nietzsche" e "Obras": é um e ç f!_lia_ções �or exemplo, Hermes Trismegisto ou Hipócrates não
"'' 1. existiram - no sentido em que o autor Balzac existe - mas o fato

·i
resíduo, uma objetivação de práticas de definição e controle dos
discursos. Na noção de obra e autor também é visível, assim, a \.:, r-.J de inúmeros textos terem sido colocados sob a rubrica de seus
noção do tempocomÕ totalização ou contínuÕ, implkãndo-se a
),) �," nomes indica o estabelecirnento de relações de filiação, de explica­
-=J consciência como origem de toda prática. Por isso, a crítica ao
;,.. ção recíproca, de hornog�neidade etc. Q...fl_�1e _9Q__í!.._Utos_também
J �nt<i!j_o e à .!1oção de obra produz o deslocamentoimediatõ ::,:._ ipdjça_l!!!l m9do .Q.1:;_!?er d_Q_ discur§_o;_o fªto d_e se dizer "foi escrito
da noção d_� autor. - J;,
po!:_ " c!_á a entende�g�e não se trata d� discurso qu� simplesmente

i
,.J: ;.
Proposto �o �mo uin indivíduo, mas como um princíRio de passa, mas de algo que deve ser recebido e ]·eeetido de um modo
a_grup31mento de dig.w·sos_ mo ongem e urncfaaecte suas signi­ �

p"
específico pelo comentariQ. 50
·ficações, autor é um rincí )io ue classifica e descreve· lo o, que �Concfui-se que o nome do autor não é corno o nome 12róprio,
comunica, restringe, e�c�uL e incLuj. �"ser de r!!,zão", produzi o iga o discurso e o indivíduo ��_1�·od�z. O n<2rne do aú�_or

47l
-:.., �
po� p1�ocedimentos classificatórios que articulam um n�me pró­
-
ocorre no limite dos discursos: não está situado no estado civil do
prio.. O nome próprio opera segundo duas articulações: designa um <.;
produtÕ1:;--mas na ruptura ou na linl1a divisória que os discursos.

\J
-,
f:;

-"/ / I
t'f.
36 Autor Autor 37

instauram entre si, diferencialmente. Alguns têm[unção-autor2ou- quarto, o critério do momento cm que os discursos foram produ­
')
tros não a têm: uma carta particular tem um remetente, mas não o zidos: obviamente, excluem-se aqueles produzidos antes do nasci­
um autor; da mesma maneira, um contrato tem um fiador, não um, mento ou depois da morte do produtor.
/ ,
autor, assim como um texto anônimo lido na rua terá um redator, •_,.,/ Os mesmos critérios são insuficientes: basta lembrnr-se que o
não um autor. A função-autor caractei-iza, enfim,_o modo de exis- autor não se confunde nem com o escritor-produtor, n�rn com o
tência e de circulação de discursos quf_teriam passado a dotar-se �-rador fictício da obra atribuída a ele. A função autoral implica
dela no momento em que o produtor �de ser ca�tjgado _-_em �pluralidade de �go�or exemplo, o C_!! de um prefácio de
outras palavras, 1101110mento en1 que� disc-u1·so um tratado de matemática não é o mesmo que faz a-demonstração
- pôde ser trans-
gi·essivo,-- -- --- de um teorema naJorma de "comoqt1êríamos demonstrar". No
· Outra característica da função-autor é, como ocorre com o primeiro caso, e:_u remete.a um indivíduo g�e, num lugª1_e_temp�
comentário, a de não se exercer de maneira constante e universal determinados, conclui um trabalho; no segundo, nós designa um
sobre todos os discursos, pois os critérios de classificação são ápice da demoristi·ação �US._flÜalguer indivíduo pode ocupar. É
mutáveis. Caso dos discursos hoje tidos por "literários" e que, até oportuno, aqui, referir °tf.!ichcl de Certea� �uando escreve sobre
o século XVIII, não tinham necessidade da função autoral, ao passo a prática da escrita da história: o historiador escreve sua obra para
que os discursos "científicos" necessitavam dela, como reatualiza­
ção da auctorilas: "Plínio diz... ", "Segundo Euclides... " etc. A partir
do sé�ulo XVIII, mudou o ponto· de aplicação do comentário,
\ '> um destinatário preciso, que é um "lugar institucional", atualmente
a Universidade, como corpo1-ação cientííica que validará o trabalho
pelo comentário, pela crítica, pela citação etc. Ou o excluirá para
dcsenh<1:ndo-se um quiasma: os discursos científicos ingressam
num anonimato crescente, dada·sua sistematici<ladc, que só aplica
a autoria quando se trata de posicionar uma invenção, um teorema
\ as margens da disciplina através da "Conspiração de silêncio" ou
da sua classificação como teratologia, fora das p1·axes da disciplina,
ou como produto de divulgação. E, em todos os.casos, sempre
no sistema. Simultaneamente, todo poema ou romance sem função como exercício de um poder autoral de autorizar, de conferir
)
autoral começam a ser 1·ecebidos como um escândalo lógico ou autoridade.52 Neste sentido, também se pode acrescentar uma
) enigma, como algo a que imediatamente são atribuídas segundas terceira função autoral às referidas por Foucault. Consiste na
intenções.51 Outrn característica da função-autor é, ainda, a de não presença, no discu1·so panicular, de enunciados ou regras gerado­

-1
se formar espontaneamente, como atribuição de um discurso a um ras de enunciados tidos como v,ílidos por uma corporação intelec­
indivíduo, mas de ser resultado de operações complexas, que tual que, na repetição dos mesmos, constituiu-os como um sistema
constroem o "ser de razão" autor. Não se constrói um "autor de referência que ratifica sua autoridade, como uma "polícia
filosófico" da mesma maneira que um "poeta" ou um "cientista". discurs.,b ". -
O nome próprio, como marca individual, também não é suficiente, Conforme o dispositivo d Foucau t, �ssim.�is.te.n1-9uatro
principalmente quando é referido a uma tradição textual. No caso, car� 1cas imbricadas na Jun -0-a1�1-: primei_!A�_nente, liga-se
bom exemplo é o de SãoJerônimo que, entrevendo a possibilidade ao sistema institucionaL.gue dcteunina e _artiçula os_discursos; em
de haver dois autores com o mesmo nome ou a de um deles ....... Segt!ndo lugar, não se exerce de maneira uniforme e com a mesma
aprqpriar-se do nome do outro, estabelece quatro critérios de
fixação da autoria. O primeiro, que propõe o nível constante do N .. orma em todos oÇcliscursos em todas as épocas e em todas as
cultu1=-as; em te1·ceiro, não se deCine pela atribuição espontânea de

f
) ...,,,,_
valor do discurso, consiste em examinar um corpus atribuído a um um discurso a seu produtor, mas por operações específicas e·
)
autor, excluindo-se dele a obra que demonstre qualidade inferior complexas; finalmente, não remete pura e sirppJesmente a-uma
) às restantes; o segundo�- o do campo de coerência conceituai: dado individualidade empírica, pois pode dar lugar, simultaneamente, a
·um corpus, é duvidoso o discurso que se afasta doutrinariamente muitos "egos", a muitas posições-sujeito que diferentes classes de
dos restantes; o terceiro é o da unidade estilística dos textos e, o -indivíduos podem vir a ocupar.53

i
...
l� Cv'--
38 Autor Autor 39

Notas Jmidicas (Rio deJaneirn: Cadernos da PUC, Série Letras e Artes 16,
197'1).
1. Karl Marx, Elementos Fundauumtales para la Critica de la Economia 12. Foucault, "Qu'est-<:c qu'un auteu1·?".
Política (México: Sigla XXI, 1980). 13. Foucault, ibid.; L 'Ordre.
2. Karl Marx & Fdedrich Engels, A Ideologia Alemã (Lisboa: Presença, __ 14. Dcrrida, Gmmatologi.a (São Paulo; Perspectivas, 1973).
s.d.). 15. Philippe Sollers, "La Lucha Ideológica en la Escritura de Vanguardia",
3. Walter Be1tjamin, "O Autor com� Produtor", em Fl.'ivio R. Kothc, em Literatura e Ideologías.
org., Walter Benjamin (São Paulo: Atica, 1985). 16. Kristcv<!-, "A Produtividade Dita Texto", em Literatura e Semiologia
4. Louis Althusser, Pour Marx (Pnris: Maspcro, 1966); Mikhail Bakh­ (Petrópolis: Vaze�. 1972); Polylogue (Paris: Scuil, 1977).
tin, Le Mm-xisme et la Philosophie du Langage (Paris: Minuit, 1977); 17. Th. W. Adorno, Asthetische Theorie (Frankfurt am Maim: Suhrkamp,
·Benjamin, "O Autor"; 13ertold Brecht, "Theatre for Pleasurc or 1970); Benjamin, ''L'Oeuvre d'Art à l'Erc de sa Rcproductibilité
Thcatrc for Instructio1111 em David Craig, cd., Marxists.onLiterature
, Tcchnique", em Poésie et Révolution (Paris: Denocl, 1971); Benjamin,
(New York: Penguin, 1977); Rogcr Chartié'r; A Hisló1"ia Cultuml: "O Autor"; Macherey, Pom· une Theo1·ie; Weiman, "Text".
entre Práticas e Representações (Lisboa: Direi, 1990); FredericJame­ 18. Paul Ricoeur, Les Conjlicts des Interprétations (Paris: Seuil, 1969).
son, Marxismo e Fon11a (São Paulo: Hucitec, 1985); Hans Robert 19. Sigmund Freud, "Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua
Jauss, Pom· une Esthélique de la Réception (Paris: Callimard, 1978); Infância", em Edição Standa1·d Brasilefra das Obras Comj1letas de Sigmund
V. 1. Lenin, "Articlcs on Tolstoi", em Ma,-xisls on Literature; Pierre Freud (Rio deJaneiro: Imago, 1970), v. XI; Freud, "Sobre o Narcisis­
Macherey, Pom· une Théorie de la Prnduction Littéraire (Paris: Mas­ mo: uma Introdução", em Edição StandardB,·asi/eira das Obras Compl�
pero, 1978); Plekhanov, "011 Art for Art's Sake", cm Marxists on tas de Sigmund Freud (Rio deJaneiro: Imago, 1974), v. XIV;Jacques
Literature; Vítor Sergc, "The Writcr's Conscience", em Marxists on Lacan, Les Qualre Concepts Fundamentaux de la Psychanalyse (Paris:
Literaiurn; George Thomson, "Spcech and Thought", em Ma1-xists Seuil, 1973. Le Séminaire Livre XI); Lacan, Les Ecrits Téchniques de
on Literature; Leon Trotsky, "The Fonnalist School of Poetry and Freud (Paris: Scuil, 1974. Le Séminairc Livre I).
Marxisn�•t► cm Ma1-xists on Litemture. 20. A. Ernout & A. Mcillct, Dictionnaire Eymologique
t de la Langue Latine
5. Robert Weiman, "Text and History: Epilogue, 1984", em Structm·e and (Paris: Klincksieck/CNRS, 1959).
Society in Lilerai)• Histo1y (Baltimore/London; The Johns Hopkins 21. Emile Benveniste, Le Vocabulaire des lnstituitions Indo-Eumj;éenes 2
University Prcss, 1981), pp. 267-323. (Paris: Minuit, 1969), p. 149.
6. Jan Mukafovsky, Escritos de Estética y Semiótica de[ Arte (Barcelona: 22. Benvenhte, ibid., p. 150.
Gustavo Cili, 1977). 23. Ernout & Meillet, Dictionnafre.
7. V. Chklovski, "A Arte como Procedimento", cm Dionísio de Oliveira 24. Du Cange, Clossarium Mediae et lnflmae Latinitatis (Paris; Lib. des
Toledo, org., Teoria. da Literatura (Porto Alegre: Globo, 1971). Sciences ct dcs Arts, 1937. Tomus Primus).
8. I. A. Richards, Princij1les ofLitera1y Ciiticism (London: Routledgc and 25. Du Cance, ibid., p. 468.
Kcgan Paul, 1970); Rcné Wcllck, "The. New Criticism: Pro and 26. F. Schlcgel, Athenãum, frag. 433, apud Benjamin, "A Teoria do
Contra", em C1itica.l Inqui,y 1. Conhecimento Artístico na Primeira Fase do Romantismo", em Willi
9. Roland Ilarthes, "La Morlde l'Autcur", cmLe Bruissementde laLa11.g11e Bollc, sei., Walte1· Benjamin: Documentos de Cultura, Documentos de
(Paris: Scuil, 1981). Barbá,-ie (São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1986).
10. Jacques Dcrrida, "La Phannacie de Platon", em La Dis.sémiriation 27. Novalis, Schriflen, apud Benjamin, ibid.
(P;;u-is; Scuil, 1972);Julia Kristcva, "ldeología dei Discurso sobr·e la 28. Platão, Republique (Paris: Bclles Lct1·cs, 1948), p. 595 b.
Literatura", em Lileralm-a e Ideologias" (Madrid: Alberto Corazom Ed., 29. Platão, Le Sophiste (Paris: Bellcs Letres, 1950), 236 a/e; Cratyle (Paris:
1972). Belles Letres, 1931), 424 b, 425 a, 434 a/b, etc.
11. Michcl Fouc·ault, "Qu'cst-<:e qu'un autcur?", cm Bullelin de la Société 30. Martin Heidegger, Nietzsche (Paris: Callimard, 1971), v. 1, p. 166.
Fmnçaise de Philosoj1hie ( Paris: 1969); L 'Ordn: du Discom-s (Paris: Calli­ 31. Platão, Le Sophiste, 224 a.
mard, 1970); "Sobre a Arqueologia das Ciências", cm Estmturalismo 32. Dcrrida, "La Pharmacie", p. 192 e seguintes.
e Teoria da Linguagem (Petrópolis: Vozes, 1971); A verdade e as Fornzas 33. E'oucault, "Qu'est-cc qu'un auteur?".
' 10 Autor Autor 11

34. Isócrates, Discoui'S (Paris: Bclles Letrcs, 1956); Aristóteles, Rhétorique 8. __ . "O autor como Produtor". ln: KOTHE, Flávio R., org. Walter
(Paris: Belles Letres, 1932).
Benjamin. São Paulo: Ática, 1985.
35. Quintiliano, Instituition Omtoire (Paris: Carnier, s.d.), 5,11, 39. 9. __ . "A Teoi-ia do Conhecimento Artístico na P1·imeira Fase
36. Quintili�no, ibid., 1, t, 42.
do Romantismo". ln: BOLLE, Willi. Walter Benjamin: Documen­
37. Quintiliano, ibid., X, 1, 93. t o s de C u l t ura, Documentos de Barbárie. S ã o P a u lo : C u l­
38. Quintiliano, ibid., § 1140 e seguintes. trix/EDUSP, 1986.
39. Plutarco, "Vie de Péricles", em Les Vies des Hommes lllustres (Paris: 10. l3ENVENISTE, Emile. Le Vocabulaire des lnstituitions Indo-Européenes
Bibliotheque de la Pléiade, I, 1951 ). 2; Pouvofr, Droit, Religion II. Paris: Minuit, 1969.
40. Emanuele Tesauro, ldea de la Peifette Imprese (Firenze: Leo S. Olschki, 11. __ . "L'Apparil Formei de l'Enontiation". ln: __ . Problemes de
1975), pp. 111-2. Linguistique Générale II. Paris: Gallimard, 1974.
41. Foucault, "Qu'est-ce qu'un auteur?". 12. BRECHT, Bertold. "Theatre for Pleasure or Theatre for Instruction".
42. Kristeva, "Ideologfa". ln: CRAIG, David, ed. J\tiarxists on Literature; an Anthology, New York:
43. Jean-Louis Baudry, "Dialéctica de la Produé:ción Significante", em Penguin, 1977.
Literatum e Ideologias. 13. CHARTIER, Roger. A Histó1ia Cultural: entre Práticas e Representações.
44. Heidegger, Ei-nführung in die Metaphysic" (Tübingen: Max Niemeyer, Trad. de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990.
1935), p. 28. 14. CHKLOVSK.I, V. "A Arte como Procedimento". ln: TOLEDO, Dio­
45. Benveniste, "L' Apparcil Formei de l'Enontiation", em Problemes de nísio de Oliveira, org. Temia da Literatura; Fornialistas Russos. Porto
)' Linguistique Générale II (Paris: Callimard, 1974). Alegre: Globo, 1971.
46. Barthes, "La Mort".
15. DERRIDA,Jacques. "La Pharmacie de Platon". In: __ . La Di.ssérni­
47. Foucault, L'Ordre.
na.tion. Paris: Seuil, 1972.
48. Foucault, ibid.
16. __ . Gmmatologia.. Trad. de Miriam Schnaiderman & RenatoJanini
49. Foucault, "Qu'est-ce qu'un auteur?". Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973.
50. Foucault, ibicl.
17. DE CERTEAU, Michel. "A Operação Historiográfica". ln: __ . A
51. Foucault, ibicl. EsC1ita da Histó1ia. Trad. de Maria de Lourdes Menezes. Rio de
52. Michel De Certeau, "A Operação Historiográfica", em A ese1ita da Janeiro: Forense Universitária, 1982.
História (Rio eleJaneiro: Forense Universitária, 1982). 18. DU CANCE. Glossarium Mediae et Infimae Latinilatis. Concl. a Carolo
53. Foucault, "Qu'est-ce qu'un auteu1·?". du Fresne Domino Du Cange. Auctum a Monachis Ordinis S. Bene­
dicti cum Supplementis Integris etc. Paris: Lib. des Sciences et des
Arts. Tomus Primus, 1937.
Bibliografia 19. ERNOUT, A. & MEILLET, A. Dictionaire Etymologique de la Langue
_Latine;...:I�lisl.Q,_ire eles Mots. 4. ed. Paris: K.lincksieck/CNRS, 1959.
1. ADORNO, Th. W. 1\sthetische Theorie. Frankfurt am Maim: Suhrkamp, 2Ó, FOUCAULTl Michel. "Qu'est-ce qu'un auteur?" ln: Bulletin de la
1970. ÕCiêe •rn.nça.ise de Philoso/1hie. (Paris: 1969.)
2. ALTHUSSER, Louis. Pour Marx. Paris: Maspero, 1966. 21. __ . L 'Ordre du Discow-s. Paris: Callima1·d, 1970.
3. AlUSTÓTELES. Rh.étorique. Paris: Belles Letres, 1932. 22. __ . "Sobre a Arqueologia das Ciências (Resposta ao Círculo Epis­
4. BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov). Le Marxisme et la Philosophie du
Langage. Paris: Minuit, 1977.
5. BARTHES, Rolancl. "La Mort de l'Auteur". ln: __ . Le Bruissement
h-- - -- - -- ------- ---
temológico). ln: Estruturalismo e Teoria da Linguagem. Petrópolis:
Vozes,J.921.
, 23. __ . A Verdade e as Fonnas Jmidicas. Rio de Janeiro: Cadernos da
de la Langue; essais critiques IV. Paris: Seuil, 1984. ''----.!'UC, Série Letül,S.e.A1:tes--l0.,-19-9·4:- -- -- -- ----
6. BAUDRY,Jean-Louis. "Dialéctica de la Producción Significante". ln: 2•.1:. FREUD, Sigmuncl. "Leonardo da Vinci e uma Lembrança ela sua
Literatura e Jdeolog1:as. Madrid: Alberto Corazom, 1972.· Infância". ln: Ediçâ,o Standard Bmsileira das Obras Completas de
7. BENJAMIN, Walter. "L'Oeuvre d'Art à l'Ere de sa Reproductibilité Sigwu.nd Freud. Dir.Jayme Salomão. Rio deJaneiro: Imago, 1970,
Technique". In: __ . Poésie et Révolution 2. Pai-is: Denoel, 1971. V. XI.
J
12 Auto1· Autor
{(•
13

25. __ . "Sobre o Narcisismo: uma Introdução."/"Artigos sobre


Melapsicologia." In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas
de Sigmund Frnud. Dir. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1971, V. XIV.
r
11
48. RICOUER, Paul. Les Conflits des faterprétations; Essay d'Hcnnéncuti­
quc. Paris: Scuil, 1969. A
49. VITOR, Scrgc. "Thc Wrilcr's Conscicnce." ln: CRIG, David, cd.
.Ma1xists on Literature; au Anlhology. Ncw York: Penguin, 1977.
26. HEIDEGGER, Ma1·tin. Eifü!mwg in die Me taphysik. Tübingen: Max 50. SOLLERS, Philipe. "La Lucha Ideológica en la Escritura de Vanguar­
Niemeye1·, 1935. dia." ln: Literatura 11 Ideologias. Madrid; Alberto Corazom Ed., 1972.
27. __.Nietzsche.Paris: Gallimard, 1971, 2 v. 51. TESAURO, Emanuclc. Idea delle Pe1 feUe lmprese. A cura di Maria Luisa
E
28. !SÓCRAT S. Discoui-s. Paris: Belles Lctres, 1956, 4 v. Doglio: fircnze: Leo S. Olschki, 1975.
A
29. JMESON, Frederic. Marxismo e Forma; Teorias Dialéticas da Litera­ 52. THOMSON, George. "Speech an<l Thought." ln: CRAIG, David, cd.
tura no Século XX. Trad. lumna M. Simon, coord.; Ismail Xavier; Marxists on Literatttrn; an Anlhology. Ncw York: Penguin, 1977.
Fernando Oliboni. São Paulo: Hucitec, 1985. 53. TROTSKY, Lcon. "The Formalist School of Poetry and Marxism."
30. JAUSS, Hans Robert. Pour une Esthétique de �- Réceptwn. Paris: GalJi­ ln: CRAIC, David, cd. Marxists on Lileratu1·e; an Anlhology. New York:
mard, 1978. Pcnguin, 1977.
31. KR.ISTEVA, Julia. "Ideologia dei Discurso sobre la Literatura". ln: 54. WEIMANN, Robcrl. "Tcxt and Hislory: Epilogue, 1984." ln: Structure
Litemtura e ldeologías. Maddd: Alberto Corazom Ed., 1972. and Society in Litern1y Histo1y; Studies in thc History and Theory of
32. __. "A Produtividade _Dita Texto". ln: Litemtura e Semwlogia. Historical Criticism. Expandcd cd. llallimore/London: The Johns
Petrópolis: Vozes, 1972. Hopkins Universil)' Prcss, 1981.
33. __. Polylogue. Paris: Seuil, 1977. 55. WELLEK, Rcné. "Thc Ncw Criticis111: Pro and Contra." ln: C1itical
34. LACAN,Jacques. Les quatre Concepts Fondamentaux de la Psyclianalyse. luquiiy 4.

I
Paris: Seuil, 1973. Lc Séminaire Livre XI.
(\}-�

',
35. __ . Les Écrits Thechniqu.es de Fi-eud. Paris: Seuil, 1975. Le Séminaire
·"
p--v1'C-<ê'. '�
Livre 1.
36. LENIN, V. 1. "Articles on Tolstoy". ln: CRAIG, David, ed. Marxists on
Literature; an AnU1ology. New York: Penguin, 1977. 0
,.,,(.,,
' ,..,
----
37. MACI-IEREY, Pierre. Pou.1· une Théorie de la Production Littéraire. Paris: ' I
)' . ! .f
,J),
Maspero, 1978,-
38. MARX, Karl. Elementos Fmulamentales pam la Critica de la Economía
Política (Gnm.disse) 1857-1858. 11 ed. México: Sigla XXI, 1980. 'l "
39. __. & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Trad. Conceição
Jardim & Eduardo Lúcio Nogueira. Lisboa: Presença, s.d. 2 v.
10. MUKAROVSKY,Jan. Escritos de Estética y Semiótica del Arte. Barcelona:
Gustavo Gili, 1977.
41. PLATAO. Cratyle. Trad. Louis Méridier. Paris: Bellcs Letres, 1931.
,J2. __. Republique. Trnd. Emile Chambry. Paris: Bellcs Letres, 1948.
13. __. Le Sophistc. Trad. Augusto Dies. Paris: Belles Letres, 1950.
14. PLEKI-IANOV. "On 'Art for Art's Sake'." ln: CR.AIG, David, cd.
Marxists on, Literature ; an Anthology. New York: Penguin, 1977.
15. PLUTARCO. "Vie de Pérides". ln: __. Les Vies des Hommes /ilustres.
Trad.Jacques Amyot. Paris: Bibliotheque de la Pléiade, I, 1951.
46. QUINTILIANO. lnstituition Oratoire. Trad. Henri Bornecquc. Paris:
Garnier, s.d. 4 v.
'17. RICHARDS, I. A. Principies of Litera1y Criticism. London: Routledge
and Kegan Paul, 1970.
)
/

')

Autor+a

Norma Telles

My guilts are what/we catalogue,/


l'll take a knife/and chop a frog.
Anne Sexton

A inclusão numa antologia do verbete autora pode parecer a


muitos desnecessário e redundante, pois é fato g-ramatical e cultu­
ral estabelecid�gue o gênero masculino engloba o feroioioo Nos
{1ltimos anos, entretanto, tem-se demonstrado que os conteúdos e
significados para pares de palavras que denotam diferenças de
gênero não são os mesmos. Senhor, por exemplo, denota domínio
e controle, enquanto senhora o pertencimento a outro. "Que
infelizes, minha amiga, ambas amarradas por leis tão desumanas
que tornam a mulhe1· pertença sempre de al guém, domínio, terra
onde se pernoita e semeia.'' 1 Poeta, afirma o dicionário, deriva do
) grego: "aquele que faz"; poetisa, na mesma fonte, é mulher que
) faz poesia, algo menor, até pejorativo. Na verdade autora não é
feminino de autor nem lingüística, nem literária, nem cultural­
) me"nte.
) As teorias são responsáveis ·tanto pela inclusão e exclusão de
textos ou verbetes em :rntologias e cânones literários, quanto pela
maneira como são lidos:-O que nelas se omitia, até pouco tempo
atrás, era que quando lemos textos - ou quando escritores lêem,
decifram e registram·o mundo - utilizamos estratégias interpreta­
tivas historicamente determinadas e, moldadas, portanto, por de­
) finições ele gênero. A referência profunda à figura ela autora foi
) deformada por muitos fatores, silêncios e interrupções da memória
coletiva. Para se chegar a ela é preciso ler através das ocultações
que evidenciam conflitos sincrónicos entre as representações d�
mulher, as representações ele sua desfiguração e a afirmação pela
f
16 1\uto1-�a Aut01�a 47

escrita. Vamos encontrar uma série de antíteses entre temas da samos nos levar mais a sério ou morrer; quando temos que nos
cultura e temas das autoras. Eles não coincidem e as visões de livrar das encantações, dos ritmos pelos quais nos temos movido,
mundo que tecem, através de tensões, são dificilmente redutíveis irrefletidamente,/ e resgatar a nós mesmas, preservar-nos/ para o
uma à outra. A abo1·dagem de autores que também são mulheres silêncio, ou a escuta atenta, desobstruída/ [...]" 3
exige, pois, a discuss;io de questões mais amplas. Nos últimos cem anos, te6ricos - homens e mulheres - têm
A literatura escrita por mulhe1·es é, em certo sentido, um brincado com a idéia ele "um corpo de linguagem anatomicamente
palimpsesto, pois o desenho de supe1·fície esconde ou obscurece determinado, _que tt·aduza os termos e as articulações do corpo
um nível de significado mais profundo, menos acessível ou menos num corpo articulado de terminologia, que denominamos lingua­
aceit-ível socialmente. É uma arte que tanto expressa quanto dis­ gem" .4 Para integrai· o termo autora e as forças divergentes de
farça.2 Este exe1·cício de leitura, levando em conta a miríade de poder, linguagem e significado, é preciso traçar algumas das per­
influências que afetam nossas vidas, sonhos, faculdades críticas e mutações entre linguagem e contexto cultural mais amplo. Lingüís­
leituras, não pretende uma postura neutra;·mas segue o conselho tas como Dale Spender mostraram que existem,em inglês,noláveis
de Virgínia Woolf: girar o caleidosc6pio para desvendar novas diferenças entre as falas, vocabulários e comportamentos de ho­
paisagens a partir de uma perspectiva alienígena. Quando se faz mens e mulheres. As mulheres falam menos que os homens e com
esse tipo de leitura, que entrelaça os campos de significados e de maior cuidado gramatical e são também mais conservadoras quan­
atividades,verifica-se que as narrativas de autoras não s6 convidam to a inovações estilísticas. Robin Lakoff notou o freqüente uso de
a uma análi�e semi6tica,mas realizam esse gesto por nós. eufemismos,assinalando que isso é típico dos destituídos de poder.
O que distingue os estudos da crítica e teorias feministas das As mulheres podem empregar dialetos diferentes dos homens ou
últimas décadas é o desejo de alterar e ampliar o que é considerado escrever em forma vernácula, cm vez de empregar linguagem
relevante em nossa herança cultural e litenfria. Assim como a formal. A ·nível estrutural, iniqüidades semânticas não podem ser
literatura não é uma categoria derivada da biologia, mas uma facilmente remediadas,e, por isso,teóricas francesas, como Cixous
instituição social,também nossa leitura é uma atividade aprendida e Irigaray, abandonaram o empirismo e preferiram analisar .as
e hábitos de leitura fixos semp1'e funcionaram normativamente, "oposições hierárquicas" da linguagem patriarcal, tentando supe­
obscurecendo amplas áreas da paisagem. Mas a literatura tampou­ rar o binarismo e desvendai· uma ecriture Jeminine ou um parle-r·
co é destino. A inte1·venção dos estudos sobre literatura escrita por Jemme.
mulheres como Moers, Showalter, Cilbert e Cubar, Spacks, Spi­ Língua materna versus sermo paterno: na transformação da
vack, Kolodny, Miller e tantas outras foi crucial no sentido de língua em semw,foi fundamental o papel ela imprensa, a passagem
ampliar os modelos e mostrar novas maneiras de ler e desler, da omlity para a lilerncy. Nessa transformação, houve a intermedia­
infinitas variações do mesmo texto,ampliações e reordenações dos ção dos termos e temas do grego e do latim, aos quais só os
cânones. burgueses e intelectuais europeus tinham acesso. A partir da Alta
Adrienne Rich, como já fizera Virgínia Woolf, apontou a Idade Média, a línglla 11'@terna torna-se rude e vulgar, enquanto o
necessidade de um novo começo,querendo dizer que os materiais sermo f1aterno, elaborado por Dante e Chaucer em vernáculo, que
diponíveis para a simbolização e a figuração para os contextos das definiram como "materno", ou mesmo a transcrição semi-erudita
autoras são necessariamente diferentes daqueles tradicionalmente de canções, estiveram ancoradas no latim.5 "••• já nada mais pode
utilizados pai-a os homens. Por caminhos e com resultados diversos me acontecer neste mundo senão o viver sozinha a imaginar-me,
dos de Harold 13100111 (ver ensaio sobre "Influência" nesta col�tâ­ [ ...), enganando-me em cartas[ ... ] construídas todas elas em língua
nea),propôs que se excluísse a idéia de um texto fixo ou conhecipo, não materna[ ... ] tão doce e amarga tornada, desde que da boca
Sugeriu uma re-visão,isto é, um ato de olhar para trás de maneira dele a ouvi_ em proveito de meu uso", dizem as Novas Cartas
nova. "Há momentos - talvez este seja um deles - em que preci- Portuguesas.
)

)
18 Aut01+a Auto1+a 19
)

De Coleridge, Thoreau, Poe, Hopkins até Lawrence, Williams, zanclo Aurorn Leigh (185G) como pura "feitiçaria". Dickinso11 inver­
Olson ou os teóricos contemporfmeos, as fantasias lingüísticas te a colocação e celebra a "Insanicbde Divina" produzida pelos
masculinas podem ser lidas como uma revisão da língua materna "Tomos de Feitiçaria" de 13arrct llrowning. Redeí1ne a insanidade
)
realizada por um vidente que percebe o poder das palavras comuns como fonte de encantação, através da qual a poeta transforma os
ao mesmo tempo que define as palavas das mulheres como meros objetos comuns e o cotidiano numa "Ópera Titânica". Para Dickin­
balbucios. As defesas contra a fala feminina tornaram-se mais son essa "Feitiçaria n.io tem um pedigree", mas é um alento de vida
)
fe ro zes desde que as mulheres de classe média começaram a nova para a poesia feminina, ao mesmo tempo que estabelece uma
escrever. Assim, po1· exemplo, William Faulkner explicita o ideal ancestralidade secreta, fora da genealogia das publicações, mesmo
)
feminino: - "uma virgem sem pernas para me deixar, sem braços sem a autoridade de um pedigree. Dickinson enfatiza o sacrifício da
para me abraçar, sem cabeça para falar comigo", meramente uma mulher, associado à fala consicle1·ada ilegítima e à sexualidade
) genitália articulada.6 .. _ considerada ilícita, além de predizer a seqüência dos triunfos dessa
1 ) As escritoras, por sua vez, construíram ficções lingüísticas comunidade subterrfinea.8 Em Novas Carlos, também há referência
contra tais posições. Mas as fantasias femininas não são simétricas a Ilarret Ilrowning e jogos com alfabetos, letras, palavras: "Agora
às masculinas: nunca caçoam ou fazem pouco da linguagem mas­ vou inventar a palavra clesinteligente que é o que eu acho que sou
culina. Os imperativos femininos.de revisão lingüística envolvem por causa da confusão que me fazem as palavras e de estar sempre
geralmente todo o processo de simbolização verbal que subordi­
nou as mulheres. Nos séculos XIX e XX, as escritoras buscaram o
i. calada. A escrever as palavras são feitas de letras e só ouvem na
cabeça. Fim."
que Sylvia Plath denomina "alfabetos arcaicos", uma "grand-mato­ Essa comunidade p1·osseguiu até nosso século. Entre outros
logia" qtie colocam contra a gramatologia da lingüística patriarcal. exemplos, com Sylvia P);nh que, em A Redoma de Vidro, ao ler
De Mai-y Wolstonescraft a Mary Shelley, Emily Dickinson, as irmãs passagens do Fin11ega11s Woke, de Joyce, mergulha numa "sopinha
Bronte, George Eliot até Virgínia Woolf, Adrienne Rich, Monique de letras ... Palavras vagamente familinres mas estranhamente alte­
) Wittig, I-I.D., Margareth Atwood, Doris Lessing e tantas outras, radas, como rostos elianle ele um espelho mágico ... Vi-as [as letras]
)
pode-se rastrear esses "alfabetos", num esforço de se livrar dosenno separarem-se uma elas outras e saltitarem de maneira absurda.
paterno, de transformá-lo e numa tentativa de estabelecer uma Depois elas se juntaram cm formas fant,ísticas e intraduzíveis".
ancestralidade alternativa, associada a urna linguagem oculta. Para Com Virginia Woolf, em l\'lrs. Dalloway, quando Septimus escuta a
sanar, entre outros, o p ro blema da exclusão da mulher da educação canção enigmática da velha no parque: "voz sem idade, sem nexo,
formal, erudita, que incluía o grego e o latim, essas e outras autoras voz ele uma antiga fonle jorrando da terra; cio fundo elas idades -
)
tentaram transformar a linguagem clássica em língua nativa femi­ quando o calçamento era relva, era pântano, através das auroras
) nina, ante dor ao contrato social do patriarcado. O desejo sublimi­ silenciosas, estava cantando de amor que vinha de um milhão de
nar é o de apagnr a alfabetização ela história e a história do alfabeto anos ..." Com H.D., que ,:econstitui uma nova linguagem através
}
e superar a "sentença masculina", na expressão de Virginia ·woolf; de um processo alquímico ou em Ccrtrude Stcin, que transforma
) ou seja, "ultrapassar a sentença-como:iulgamento-definitivo, a sen­ o inglês em língua estrangeira e faz também uma encantação:
} tença-como-clecreto-interclição, através da qual a mulher foi man­ "Poesia patriarc:-il suas ol'igcns e suas histórias/ poesia patriarcal
tida fonge ela sensação de estar em plena posse da linguagem".7 suas origens, patriarcal, poesia suas histórias/ suas origens [ ...]"
) �;
Emily Dickinson pode ser considerada uma ancestral na arti­ Com Mau1-a Lopes Cançado, num conto ele O Sofredor do Ver(l 968),
) culação de uma fantasia sobre o poder da linguagem, ao atribuir no qual a personagem Jonna, calatônic:-i, presa a um qundro
autoridade e potência e seus versos e às vozes de suas antecessoras cinzento, espera que su1ja uma forma de expressão, enquanto
) ;,
e sucessoras. No poema a Elizabeth lbrret Browning, escrito por "pensa desesperada: scd o início da nova língua, agora que estou
) volta de 1862, parece responder às críticas ele Romncy caracteri- desmoronada?" N:io \J;í resposta.
)
50 Auto1-�a A1ao1+a 51

Gênero é uma categoria, um 1úodo de fazer distinções entre que criou o mundo e o nomeou, o artisla é progenitor e procriador
pessoas; urna construção cultural que classifica com base em traços de seu texto - um pat1·iarca estético. Nessas formulações moder­
sexuais, expandindo-se por cruzamentos de representações e lin­
tt
nas, foi negada à mulher a autonomia, a subjetividade implícita na
guagens. Como classe e raça, tem clin:iensõcs externas e internas: criação. O que lhe cabe é a encarnação mítica dos extremos da
a classificação ou rntulagcm é vista e lida pelos outros, assim como Alteridade, do misterioso e int1·ansigente Outro, confrontado com
pelo cu, e as semelhanças são interpretadas como interesses parti­ veneração e temor e uma vida sem história própria. Demônio ou
lhados, foi assim que também na sociedade ocidental moderna, o fantasma, a1-uo ou fada, é considerada como mediadora entre o
gênero codificou as diferenças entre um reconhecido patrimônio artista e o desconhecido, instruindo-o cm degradação ou exalando
cultural masculino e uma co1Telativa e suposta penúria feminina pu1·eza. É musa ou criatura, nunca c.-iadora.
(ou asiática, ou "primitiva", ou sul-americana). Gênero pode ou não No entanto, foi também a partir do século XVIII que as
importar para mim e para os outros; cm nosso _meio:sociocultural, mulheres começaram a escrever e publicar em grande número,
importa sempre. No século passado, Robert Southcy, em carta a tanto na Europa como nas Américas. Os liv1·os que escreveram não
Charlotte Bronte, afirmou que a "literatura não é o objetivo da vida diferiam muito cios esc1·itos pelos homens, pois umas e outros
da mulher, e nem poderia ser". Mas ainda cm 1989, Margareth enfrentavam geralmente questões semelhantes. Mas foram a posi­
Atwood conta que lhe foi sugc1·ido, com toda a seriedade, que as ção diferenciada, imposta pelos padrões e representações; a inter­
mulheres nunca deveriam escrever e "essa sugestão não foi feita dição de certas �í.reas da linguagem e da educação superior até o
telepaticamente, mas com sentenças faladas, pois, para os polemis­ século XX; a falta de mobilidade e independência econômica até
tas, assim como para_ os próprios escdtores, a alternativa à lingua- pouco tempo atrás - que lhes permitirnm esboçar paisagens dife-
,
gcm e o s1•1 cnc10
A •
.
I> 9
1·enciadas.
Os silêncios cercavam e cercam o patrimônio cultural das No século XVIII, Ann Radcliffe, com O llalian· o (1797) e Os
mulheres. Cada nova gernção precisa refazer os passos e retomar Mistérios de Udolfo (1791), torna-se a autora mais popular e bem
os caminhos. Octavio Paz afirma que autores não lidos são vítimas paga da Inglatc1Ta. Partilhando com Lewis a invenção dos "contos
do pior tipo de censura possível - a indiferença. O silêncio, o não de terror", ela é a criadora do que Moers denomina "gótico
dizer, não é ausência de sentido; ao contrário, o que não se pode feminino", referindo-se à sensação de medo que o gênero quer
djzer é o que atinge ortodoxias, as idéias, interesses e paixões dos produzir no leitor. Em Northarger Abbey , de Jane Austen, Henry
dominantes e suas ordens. Por outro lado, não se deve esquecer Tilncy conta que não conseguia parar de ler Os Mistfrios de Udolfo
que, embora muitas· vezes as rompam;· os autores participam e que o devorou cm dois dias, "o tempo todo com os cabelos em
freqüentemente elas proibições �kitas e imperativas que formam pé". Nesse mesmo livro, Austcn afinna discretamente que uma
o código do dizível em cada época e sociedade. mulher é um homem sem uma estória, ao menos do tipo das
O discu1·so sobre a "nalureza feminina", que se formula no estórias narradas nos livreis.
século XVIII e se impõe na sociedade burguesa em ascensão, As novelas góticas Lêm como personagem principal umajovem
definiu a mulh�r, quando maternal e delicada, como força do bem que é ao mesmo tempo uma vítima perseguida por um perverso
. disfarçado cm cordeiro e uma heroína corajosa. O gólico é para


- o a1tjo cio lar. Mas ela é também potência do mal, quando sai da
esfera p.-ivada ou "usurpa" atividades que não lhe são culturalmen- Ann Radcliffe o pretexto para mandar suas heroínas para lugares
- te atribuídas. Torna-se então um monstro: bruxa, malvada, devo­ i distantes, em viagens exólicas e excitantes, sem ofender os padrões
radora, decaída, ou tudo isso ao mesmo tempo. Esse discurso, que ; vigentes. Captt11·aclas pelos vilões, elas agem, porque são forçadas,

1
1
1 de maneira que jamais fariam cm oulras situações. Viajam sozinhas,
naturalizou o feminino, colocou-o além e aquém da cultura. Se­
guindo esse rastro, a tradição estéLica definiu o dom da criação percorrem labirintos, castelos e ruínas. As viagens internas s�o.

1
artística como essencialmente masculino. Tal e qual o Deus-Pai, igualmente perigosas, um desafio para a capacidade de tomar
j_ ', -
• •I
)
52 1\tllor+a A1llor1a 53
decisões, contornar a ingenuidade e test..'\r a própria força física. O faz uma personagem ler O Italiano e explo1·a a viagem externa; em
romance gótico torna-se um substituto feminino para a novela Jane Eyrn, esboça v:írias alternativas para a vida da mulher, cons­
picaresca. Nele, as mulheres panicipam de todas as aventuras e truindo um romance no qual o eixo cenu·al não é o casamento mas
perigos há longo tempo reservados aos homens na úcção e na vida. t a busca de uma idencicl:ide f'eminina. Emily llronte, em The Wuthe­
Mas, ao comdrio dos cavaleiros aridantcs ou dos heróis dos l ring Heights (1847), faz outra leitura co1Tetiva de Paradise Losl,
) romances de Scott, ou mesmo da mulher faL'\l, a heroína tt-ansfor­ \" criando uma espécie de llíblia do Inferno na linha de Illake; nela,
)
ma-se e envelhece e, no final, não \d. clima de glória ou euforia. ! a queda é invertida: e.lo reino que os teólogos convencionais
Em Ann Raclcliffe, Jane Austen ou George Sand, após muitas associam ao "inferno" (os /-feights) para um lugar que parodia o
aventuras e sofrimentos, ela se casa e o clima é de melancolia e "céu" (a Gronge). Poetas e rebelcles, as llronte são, como assinalam
fadiga. Gilbert e Cubar, das raras formadoras de autênticos mitos no
No mesmo período, Mary Wollstoncci-a_Çt, admiradora de Rad­ âmbito da literatu1-a escrita por mulheres.
cliffe, cria, cm T!te Wrongs of Woman, um outro cenário gótico que Há ainda um outro ccn:írio, especialmente nos romances de
terá uma long<l história at1-avés de uma linl1agcm de auto1-as: o asilo. língua portuguesa, que funciona para as heroínas como locus de
O que são os castelos, pergunta, "perto da mansão do desespero a confinamento mas também de descoberta: os conventos e interna­
um canto da qual Maria se sentava, esforçando-se por relembrar tos. Assim é, por exemplo, pa1·a Cuca de Três Mmias, de Raquel de
seus pensamentos dispersos!" E.ssa mansflo é o hospício no qual Queirós, ou para Joana, de Perto do Coração Selvagem, de Clarice
• fora trancafiada por um marido tirânico. Ali também há grades de Lispector. E o convento é também revisto/reescrito em Novas
ferro 1�a? janelas, algemas e carcereiros cruéis. Esse cenário, refor­ Ca1·tas Portuguesas: "E de novo nos encontramos juntas as três
mulado cm vários pci-íoclos, aparece cm obras de autoras diversas, igualmente aqui, coir10 cm muitos outros tempos e decisões:
como Charlotte nrontc, Charlotte Perkins Cilman, Sylvia Plath, retusando sermos sombra, sedativo, repouso de guei-reiro. Guer­
Maura Lopes Cançado. reiros, nós, mulheres de corpo inteiro e segura mão." Convento
Mary Shellcy, filha de Wollstonecraft, utiliza essa tradição onde "com paixão se desclausura a freira" e onde "ninguém me
gótica para criar, já imersa no Romantismo, um mito original peça, tente, exija, que regresse à clausura dos outros", onde se
sempre retomado pela ficção científica: Fran/cnstein
e
(1818). Pre­ percebe que "p:H·tinclo de Mariana, a primeira, sou eu a sétima
)
cursora da ecologia moderna, explora zonas proibidas e regiões geração" e se perguntam, "o que mudou na viela das mulheres? Já
gélidas como_ símbolos de uma vida artiCicialmente gerada pela não tecem,j:í. niio fiam, talvez, porque se desenvolveram a indústria
) ciência. Nessa estória, tantas vezes recontada em filmes e quadri­ e o comércio; as mull1cres [ ...] em suas casas, onde apenas mudou
nhos atuais, ela refaz a leitura de Paradise Lost, de Milton, reescre­ o feitio dos móveis, das cadeiras e dos cortinados".
vendo o significado da queda e.lo Paraíso. É uma linha de As imagens litcr:írias n:io s:ió neutras; s:io, ao contrário, um
questionamento, resumida pela pergunta "por que caí tão longe?", guia, um mapa para a realidade que nos ;�uda a perceber o "mundo
)
que foi retomada por autoras contcmpor."incas como Sylvia Plath real". No século XIX a mulher enco11Lra-se, como nunca anterior­
ou Anne Finch. Em 1vlary Shelley, é como se o monstro, a exemplo mente, restringida i't casa e interditada para a vida pública. Está
) da 1J1ulher, precisasse morrer, para deixar de ser temido por seu confinada à ai·quiLetura patriarcal, morando ein residências de
-l poder criador, identificado com o ambíguo poder materno de vida maridos, pais ou inn:ios, e aos palácios da {icç;io masculina.
e de morte. Como a mulher, o monstro sem nome pr6prio, fracassa O que algu11s críticos insistem cm ignorar - que o sexo do
)
no plano ele recriaç:io ele um mune.lo pací(ico, permanecendo sua intérprete ou do leitor é de crucial importância - foi h:í muito,
) estória fora da história. inserido por algumas autoras cm suas estórias. Jane Auslen, em
)
As irmãs Ilronte reconheceram as possibilidades abertas por Pe-rsuasion (1816), destaca a confusão histórica da cultura a respeito
Ann Radcliffe e pelo Romantismo. Em Shirley, Charlotte Bronte da autoridade litedria e da autoridade pàtriarcal, especialmente
)

)
.t
1
f

51 Jlutoi--+a
!
!
Jlutor+a 55
no último capítulo, quando Anne Elliot discute com o Capitão Coralina, casa sobre o rio na qual cresceu e se.fez jovem; mas seus
Harville e retruca com decoro, "os homens tiveram todas as "anseios exti·avasaram a velha casa [ ... ] Andei pobre, vestida de
vantagens ao contar suas estórias. A educação lhes pertence em um cabelos brancos voltei ..." E escreveu contos, estórias e poesias.
grau ·muito maior; a pena tem scn)pre estado em suas mãos." No século XIX,as autoras se defrontavam com dificuldades de
Virginia Woolf ressalta como Austen,cm seus maravilhosos peque­ autodefinição em virtude da socialização. Meninas educadas para
nos discursos, conversinhas dpidas, resumia tudo que precisamos papéis domésticos específicos, com condutas amororas limitadas,
para conhecer uma dada situação ou personagem, um método porém enaltecidas, tinham, antes de conseguir escrever, de rever
taquigráfico que contém capíLUlos de análise e psicologia sobre a esses ditames. Na1·cisa Amalia, afirma cm 1889: "A pena obedece
complexidade da natureza humana. ao cérebro, mas o cérebro submete-se antes ao poderoso iníluxo
É bem verdade que vários autores, c�mo Mark Twain, Emer­ do coração, como h;í de a mulher revelar-se artista se os preconcei­
son ou D.H. Lawrence,julgamJanc Austen-trivial e a·rcjeitam como tos sociais exigem que o seu coração cedo perca a probidade,
artiCicial ou a condenam como natural, co_ntradição que ela tão habituando-se ao balbucio de insignificantes frases convencio­
bem dramatizou. Recentemente, ·Anthony Burgess criticou Jane nais?" Vitimada, ela própria, pela oposição e pressão que sua obra
Austen porque seus romances não expressam uma confiança mas­ suscita, é colhida por "nev1·ose cardíaca",que a enfraquece para as
culina. Mas certamente não lhes faltam senso e sensibilidade, lutas da inteligência, e acaba morrendo,já adentrado este século,
engenho e invenção, nem a confiança derivada da "autoridade da esquecida, cega e paralítica. 10
experiência". Essa autoridade,tão enfatizada pela crítica feminista, Além da impressão de estar negando seu gênero, a escritora
não se refere somente às emoções, ao fazer coisas só por fazer ou sentia uma ansiedade decorrente do temor de não poder criar, ou
ao exame introspectivo da própria vida. Refere-se,sobretudo, a um de que o ato de ci-iação poderia isolá-la, até mesmo destruí-la. Tal
conhecimento derivado da exposição à pressão dos padrões e das ansiedade, Úlllitas vezes não conscientizada, além dé debilitante,
próprias respostas, tendências, medos, desejos, praze1·es e modos \ era fonte de distL1rbios, doenças e desconfianças que afloram em
de viver e morrer. .!
seus livros e em seus estilos. No século XIX, a maioria das escritoras
Charlotte Pe1·kins Cillman descreve seu "pesado viver", depois ainda lutava sozinha e o isolamento era sentido como enfermidade,
de obter o poder do uso <la linguagem, em The Yellow Wallpaper, alienação e loucura. Por isso, a maioria delas procurava um apoio
em que narra seu confinamento num quarto durante uma depres­ e um modelo numa antecessora,·dando origem a um "sororato"
são. A cura é pio1· do que a crise, as condições mentais da persona­ destacado pelas cl"Íticas feministas. Em conseqüência,para as auto­
gem deterio1·am rapidamente e o que n'tais a atormenta é o papel ras não se pode falar em angústia da iníluência. Como a busca de
de parcele elo quarto, ct�o padrão reproduz ditames culturais. ... uma autora/companheira pelas escritoras pa1·ece invalidar a colo­
"porque tem o h,füito ele narrar esLórias",sua paixão pela liberdade cação no feminino do conceito de l31oom, Cilbert e Cubar propu­
é projetada naqueles hieróglifos. O papel ele parede passa a ter, a seram para elas cm vez ele· "angúsLia da iníluência", a expressão
cc1·ta altura, "uma espécie de padrão subjacente numa tonalidade "ansiedade de autoria".
diversa, particularmente irritante, pois só pode ser percebido sob Constantemente cldinic.las pelos autores homens, as escritoras
ce1:ta luz e não com clareza". A leitura desse texto perderá parte parecem, em reação, ter achado nccess;irio encenar metáforas
de seu significado, se não levarmos cm conta a figuração, isto é, masculinas em seus Lcxtos, como se esLivcssern tentando entender
que o quarto onde a personagem fica confinada situa-se no terceiro suas implicações. Por razões facilmente discerníveis, as diferenças
andar, o andar do sóLão e do quarto de crianças, o que exige que entre suas preocupações e os papéis sociais prescritos constitueJTI

1t
consideremos a maneira como as mulheres habitavam 1 .
a casa. Há 1 quase uma marca registrada em seus livros. "Os homens" -dizjúlfa
casas e casas e manei ras ele mulher )labit,í.-las. Há o· casarão, Lopes de Almeida cm Elles e Elias (1910) - "teceram a sociedade
presente em Estórias <la. Casa Velha da Ponte (1986), de Cora com malhas ele d.ois t;un:1nhos - grandes pa ra eles, para que seus
'\ ,W-"
T

i
56 Autor+a
i Autoi-•·a 57

pecados e faltas sabm e entrem sem deixar sinais: e extremamente metáfora tem sido tão persistente e tão importante que a esquizo­
miudinhas para nós [...) E o pitoresco é que nós mesmas nos f renia de autoria (conformidade com/subversão do padrão) liga
convencemos disto!" A autora, com ironia, ressalta o maior obstá­ autoras do século passado �ls deste século. Liga, por exemplo,
culo que a mulher enfrenta: a internalização das idéias e valores Charlotte e Emily 13ronte a Virgínia Woolf(que tanto se projeta na
do padrão cultural. sã Mrs. Dalloway quanto no louco Septimus Warren Smith) ou a
)
As dificuldades para se <lesprcn<ler <lesses padrões foram . Doris Lessing (a sã Manha 1-Icsse e a louca Lynda Coldridge), ou
sintetizadas por Gilbcrt e Cubar na metáfora da "louca no sótão". a Maura Lopes Cançado (em Hospício é Deus). Liga Maria Firmina
A metáfora da "louca do sótão", moldada pela ficção de Charlotte dos Reis (Urs-ula, de 18!:>9) a Lya Luft (as gerações de mulheres
Bronte, refere-se ao aberrante duplo do artjo do lar que vive na sala loucas de Reunião de Família.).
de visitas da ficção e foi utilizada por muitas autoras em prosa e na Nofin-de-siecle, surgem modificações no mundo das publicações,
poesia. A metáfora implica que a arte das-mulheres contém um nas metáforas e temas da literatura. Tanto nas obras de autoras
traço oculto e persistente de incontrohível l9ucura, fruto da ansie­ como de autores, é central a redefiniçáo dos papéis sexuais, o
dade de autoria, da desobediência às regras e da dúvida quanto à mapeamento �o espaço entre sexo e gênero, pois a crise de gênero
possibilidade de se tornar criadora. Ao se livrarem do modelo do afetou tanto as mulheres quanto os homens. A própria expressão
anjo, daquilo que deveriam ser, as escritoras, consciente ou incons­ "fim-de-século" contém uma conotação melancólica que traduz a
cientemente, rejeitavam valores sociais. Assim, mesmo quando não ampla crise das últimas décadas do século passado: de classe, de
criticavam abertamente a sociedade - e, no século XIX, geralmente raça e de gênero. A questão da mulher passou para o centro das
n,lo o ·fizeram - estavam contestan<lo o padrão que gerara o discussões e uma retórica despropositada sobre uma iminente
paradigma. As autoras criaram inúmeros personagens, muitas "invasão" feminina permeou o discurso de vários inLelectuais.
vezes secundários, que encenaram sua reprimida e encoberta Muitos descrevem essa fase corno a ele uma b:1talha entre os sexos;
ansiedade e sua raiva, projetaram os impulsos subversivos que mas deve -se acrescentar que foi também um período de luta no
sentiam e a energia ele seu desespero cm figuras grotescas, defor­ interior dos sexos, como mostram ShowalLer, Cilbert e Cubar, e
madas, paralíticas, apaixonantes ou melodramáticas. Koso[sky Seclgwick. Esta última destaca a importância nodal, para
É como se o próprio ato de escrever fizesse surgir a figu1-a da toda a cultura ocidental contemporânea, da crise endêmica e
) louca. Como num sonl 10 mau, uma ensandecida e enraivecida mulher essencialmente masculina da definição homo/heterossexual, que
rompe um silêncio com o qual nem c:la nem sua autora podiam mais data do final do século XIX.
)
continuar concordando. tvluiLas vezes, a éscritora falava através dela, O romancista inglês George Gissing afirmou que aquelas eram
) ao narrar como havia surgido por Lrás de uma másca1-a plácida. décadas de "anarquia sexual" e Vita Sackville-West diz em 1920:
) "Sentada estava a Rainha,/ senlada em sua loúcura./ Que sombras·-­ "Estou.convicta cle.que,.com o decorrer do século,[ ...] os sexos se.
iam passando,/ naquela memória escura?/ Vagas espumas incertas/ misturar;lo quase totalmente devido a suas crescentes semelhan­
sobre afogada amargura.. ./" - canLa Cecília Meireles. ças." Em Orlando (1928),-.uma "carta de amor" a Sackville-West,
A "louca do sótüo" não é mcrnmente uma desafiante ou uma Virgínia Woolftrata ela mesma temática. Orlando tem vários eus à
antagonista ela heroína, como muitas vezes ocorre na literatura sua disposição e, em várias épocas, é alternadamente homem e
-J
masculina. É antes u111 duplo, uma imagem da própria ansiedade mulhel'. Woolf desenha a questão em termos do impacto dos
da autora. A figura é evocada para que esLa possa chegar a bons pac!J"ões e das. vestimentas sobre a identidade. Numa outrn pers­
ten11os com sua própria fragmentação, com a estranha sensação pectiva, em Um Teto Todo seu, revisa a literatura escrita por mulhe­
de não ser bem aquilo que deveria ser. É uma dramatização da res e cria a paradigmática e imaginá1-ia Judith Shakespeare. Na
cisão provocada pelo desejo de ser aceita por uma sociedade que verdade, os temas da mulher, da criação feminina e da and roginia
a autora está, q�1er queira quer não, contestando e desafiando. Essa estão presentes em toda a sua obra ficcional e crítica.
)
58 Auto1-�a J\uto- r i•a 59

Nos romances de sucesso, desde os mais eruditos até os da David-Neel, que vh�ou pelo Tibé, ou Elia Maillart, que percorreu

f'
literatura mais popular as crises do fim do século surgem entrela­ o Turquestão, a China e o Afeganistão.
çadas: de classe, raça e gênero: Ela e As lv!inas do Rei Salomão, de As utopias femininas também prolifcra1·am no fin-d.e-siecle,
Haggard,Lilillt, de :rvfac Donald, Salomé, de Wilde, entre outros, oferecendo uma paisagem diferente das masculinas. Para muitas
expressam as ansiedades do período· ao mesmo tempo que mode­ autoras do período as idéias do período não surgem como ameaça,
lam idéias que surgiriam depois em pensadores de diversas áreas, mas como novas possibilidades de existência. Tal como Conrad,
como Freud e MalinowskL A figura feminina pi-incipal é Ela-que­ O livia Scrinder, em The St01y ofan African Farm, como Isak Dinesen,
deve-ser-obedecida, a ve1·são da época da rornânticaBelle Damesans décadas depois,em Out oj Afiica e Charlotte Perkins Gilman, em
merci ou da mulher fatal do período anterior. Ela, feiticeirn, filha Herland, são atraídas pelas fímbdas da civilização,só que buscam
da Deusa, mulher primordial que arranca os poderes do homem, o coração feminino da escuridão não para recolonizar, mas para
descrita corno.se estivesse estado sempre p1:escnte; representa uma confrontar a própria colonização. Scrinder e Gilman criticam o
fatalidade semi-oculta; comanda uma linguagem enigmática e go­ cristianismo e examinam,como Florence Nightingale, as alternati­
verna uma terra estranha, como as que os europeus começavam vas teológicas,tentando redefinir o poder feminino. Muitas autoras
então a explorar. Ela é a Nova Mulher e se1·á destruída. A analogia fazem a ligação ent1·e o surgimento da Nova l'viulher e o de uma
entre mulheres e nativos - dois grupos até então silenciados e nova fase histórica, o Milênio. A idéia milenarista de um Cristo
privados de direitos, mas que começavam a manifestar impulsos mulher ressurge na associação entre mulher e martírio, ou entre
para a independência - pode ser claramente percebida também auto-sacrifício e feminismo.
na obra de Kipling,Burton e Conrad. A visão do matriarcado, apresentada porJJ. Ilachofen eJane
O fascínio por ·outras terras não era um fenômeno isolado, Ellen Hardson continuou sendo reelaborada, décadas depois,por
mas fazia parte de um questionamento mais abrangente. O que figuras tão diversas quanto Freud,D.H. Lawrence ou I-I.D., cada
antes se acreditava rude e simples começa a mostrar sua complexi­ qual respondendo ou com angústia (usualmente masculina) ou
dade, aumentando o enigma da altericlade humana: poderia ser, exuberância (usualmente feminina) a nova idéia poderosa da Deu­
não inferior como a maioria dos europeus acreditava, mas simples­ sa. Mas é preciso destacar que mesmo as autoras ou as mulheres
mente diferente. As mulheres começam a fazer, em maior número, mais engajadas em movimentos transformadores preferiram estra­
começam também a realizar suas próprias explorações de terras tégias de resistência passiva à rebelião ativa. O discurso sexual
desconhecidas e a escrever seus relatos. Em Marselha, por volta de dominante entre elas reproduzia e intensificava os estereótipos de
1890, não era incomum uma mulher embarcar num navio rumo não sensualidade e de "pureza" da mulher. No I3rasil, esse espaço
ao Oriente ou·ao Norte da África. Isabelle Eberhardt,jovem leitora à margem, no qual uma comunidade de mulheres vive tranqüila­
apaixonada, ali embarcou para a Argélia, obcecada pela idéia de mente, apa1·ece em v;írios romancçs deJúlia Lopes de Almeida.
se tornar escritora.
1
1 Mas, nessa transformação de metáforas e mitos há também
O itinerário que seguiu está 1·efletido em sua novela Vagabond. i autoras como Kate ChopJn e Maria Benedicta Bormann que,
Torna-se jornalista em Túnis, apaixona-se pelo deserto, converte-se 1 tentando utilizar a idéia revolucionária do "amor livre", encontra­
a uma seita islâmica, quase é assassinada por um adepto de uma i ram em figuras mitológicas (Afrodite) ou na recuperação de Safo
seita rival ·e é hostilizada pela maioria dos franceses. Em suas 1 como escritora, um tema-chave para a libertação do desejo. E
cavalgadas pelo deserto,vestia-se como um árabe,como já o fizera
a neta de Ilyron, Lacly Anne nlunt. Mon-e aos 27 anos, durnnte
.! encontraram também muita oposição entre seus contemporâ­
neos.11 Maria Benedicta Bormman, que escreveu sob o pseudôni­
1
1
tt
uma inundação no Saara e,junto a seu corpo,foram encontrados mo de Délia, ci-iou em Lésbia (1890) uma figura tão paradigmática
fragmentos do último manuscrito que escreveu. Neste nosso século quando Judith Shakespea1·e: a da escritora andrógina, agora de
muitas outras mulhe1·es lhe seguiram as pegadas,como Alexandra sucesso, que vive sozinha· e escolhe seus amantes e tem inde-

b
'
60 Autor+a A11.lo·1+a 61

pendência fin:-tnceira, um "teto todo seu", aqui um palacete no Rio palavras, ''.jóias de família", como as de Zulmi 1·a Ribei 1·0 Tavares.
Comprido. Além de narrar as dificuldades, venturas/desventuras No entanto, mesmo hoje, dizem As Novas Cartas Portuguesas, em
de uma escritora no Rio de Janeiro, a personagem encena a nova "13eja ou Lisboa, ele cal ou de calçada - há sempre uma clausura
idéia do amor livre, de ser dona de sua vida e de sua estória até o pronta a quem levanta a grimpa contra os usos:
fim, até a morte. freira não copula
Em t�osso século, as autoras discorrem com mais liberdade mulher parida e laureada
sobre a questão da criação feminina. Em Perto do Comção Selvagem esc1·eve mas n;1o pula
( 1944), Clarice Lispector mostra como a imitação do papel prescri­ (e rnufro menos se o fizer a três)
to provoca a fratura do eu, fazendo com que Joana se multiplique, com a Literatura .... "
" ...homem assim era Joana, homem. E assim fez-se mulher e
envelheceu". Como as identidades de gênero são máscaras, elas se
Notas
equivalem, são a1·tificiais e não correspondem à identidade primá­
ria.Joana transpõe os limites entre terdtórios, caminha por regiões 1. Ma1-ia Isabel Ihn-eno, Maria Teresa Horta & Ma1·ia Velho da Costa,
não mapeadas, encontra o vazio e este se transforma em tela onde Novas Cartas Po1-tuguesas (Rio de janei ro: Nórdica, 1971), p. 185.
projeta múltiplas autocriações, "movimentos sempre em transi­ 2. Sandra Cilbe1·t & Sus:rn Cubar, T!te Ma.dwoman in the Attic (New
ção". Néli<la Pii1on, em A Doce Canção de Caetana (1987), descreve Haven: Yale Unive1·sity Press, 1979), p. 81.
dois territórios, o círculo conservado1· tradicional e o outro, que 3. Adrienne Rich, The Dream of a Coimnon Language (New York: Norton,
nele se imbrica, marginal, de peças sem texto, para a glória de 1978).
Caetana, que nuncà renunciou a seus sonhos. 4. Cilbert & Cubar, No lV/an'.1· Lcmd (New Haven: Yale University Press,
1988), V. l, p. 228.
Nas décadas de 50 e 60 as autoras estavam odiando a própria
5. Para estratégias e exemplos de apropriação pelos homens da língua,
mãe que representava o que elas queriam ultrapassar; mas na litera­ gê neros literários e conco111itante modificação de símbolos, metáfo­
tura dos anos 70 essa "materfobia" é supe1-ada e se busca corajosa­ ras e contextos, ver Ri::i Lcniaire, "As cantigas que a gente canta, os
mente a mãe como se buscam as raízes. É o caso, entre outros, de amores que a gente quer", em Nádia I3attella Cotlib, org., A Mulher
Su·1Jacing (O Lago Sagrado) ele Margaret Atwood ou de A Morte da na Lite-mtum (Ilelo Horizonte: ANPOLL/VITAE/UFMG, 1990). Para
Mãe, de Maria Isabel l3arreno. Na literatura masculina a morte do pai as fantasias lingliísticas, ver Cilbert & Cubar, "Sexual Linguistics", em
sempre foi o l"Íto de passagem para o herói, aqui a morte da mãe, No Man's Lang11age, v. 1.
) testemunhada e transcendida pela filha, torna-se uma das ocasiões de 6. Cilbert & Cubar, No Man 's Land, p. 232. Ver também Elaine Showal­
maior profundidade ela literatura escrita por mulheres. ter, Sexual Anm'C!iy (New York: Viking, 1990).
)
As autoras contemporâneas, como Lilian Hellman, Doris Les­ 7. Cilbcrt & Cubar, ibid., p. 230. Ver Virginia Woolf, Um Teto Todo se-u
� (Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova F ro ntei ra, 1985); The
) sing, Armonia Somers, Carmen Martín Gaite, Adelaida Carda f Common Reader (London: The Hoganh P1·ess, 1948); The Death of the
Morales e Nadine Corelimer não aceitam ser definidas por seu t
t Moth and Other Essays (New York: Harcourt 13racc & Co., 1912).

1
gênero. Gordimer afirmou que não faz sentido julgar um livro pelo 8. Cilbert & Cubar, No Man's Land, p. 240. E rnily Dickinson, The
se:-co do escritor. Têm razão, pois o que sugerem é um questiona­ Complete Poe111s (Ed. by Thomas I-J.Johnson. London: Faber & Faber,
7 mento mais amplo cio contexto envolvente. E elas, como a conta­ 1981), poema 593, p. 291.

l
dora de estórias ele "Página em Ilranco" (em Anedotas do Destino) 9. Margaret Atwood, "Introcluction", em George Plimpton, ed., vVoman
de Isak Dinesen, ap1·encleram seu ofício com a mãe, que por sua W1üm:s at Wor!c; the Paris Review Interview (New York: Pcnguin,
vez aprendeu com a avó, que aprendeu com sua mãe e seus 1989), p. xii.
"cadernos ele mulher-goiabada" (Lygia Fagundes Telles}, c·onti­ 10. Ver nosso Encantações, Escritoras e Imaginação Literária no Brasil, Século.
XIX (São Paulo: PUC/SP, 1987. Mimeo.), a respeito de Narcisa Amália
nuam contando estórias, colocando nesta página em.branco letras,
e outras escritoras brasileiras mencionadas neste texto.
62 1\utoi-1-a Autor-+a 63

11. Showaller, Se:>.·ual Anarchy; Cilbcrl & Cubar, No Man 's Land (New 20. TELLES, Norma. Encantações, Escritoras e Imaginação Literária no
I-Iavcn: Yale Univcrsity Prcss, 1989), v. 2; Eve Kosofaky Sedgwick, Brasil, Século XIX. S;"'io Paulo: PUC/SP, 1987. Mimco.
Epistemology oflhe Closet (Los Angeles: Uuiversily of California Press, 21. WOOLF, Virgínia. The Death of lhe Moth and Other Essays. New York:
Hl90), a se1· publicado na Biblioteca Pierre Mena1·d. Para Maria Harcourt llracc & Co., 1912.
Ilcnedicta 13ormman, ver nosso Encantações. 22. __. The Common Reade,: London: The Hogarl11 Press, 1948.
23. __. Um Teto Todo seu.. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova
Frnntei1·a, 1985.
Bibliografia

1. A MULHER na Literatura. Belo Horizonte: ANPOLL/VI­


TAE/UFMC, 1990.
2. IlARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria. Tci-esa; COSTA, Maria
Velho da. Novas Cartas Portuguesas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974.
3. BELSEY, C. & MOORE, J. The Feminist Reade-r. New York: Basil
Blackwell, 1989.
4. CIXOUS, H. & CLEMENT, C. La ]e-une Née. Paris: Union Cénérale
des Editeurs, 1975.
5. DIAMOND, A. & EDWARDS, L. R. The Authori{y of Expe-,-ience.
Amherst: Univcrsity of Massachusetts Press, 1977.
6." DICKINSON, Emi_Iy. The Complete Poems. Ed. Thomas H. Johnson.
London: Faber & Fabe1·, 1981.
7. EISENSTEIN, 1 Icster.
- ConlemJ;orary Feminist Thought. Boston: C.K.
Hall & Co., 1983.
8. FUSS, Diana. Essentia.lly SJ;eahing. New York: Routledge, 1989.
9. CILBERT, $:melra & CUI3AR, Susan. The Madwoman in the Attic. New
Haven: Yale Universit)' Press, 1979.
10. __. No Man's Land. New Haven: Yale University Prcss, 1988. 2 v.
11. IIUCARAY, Lucc. SJ;eculwn de l'Autre Femme. Paris: Minuit, 1974.
12. JACCAR, A. M. & BORDO, S., cd. Cendei/ Body/ Krzowledge. Ncw
13runswick: Rutgers University Press, 1989.
13. LAK.OFF, Robin. Lang1wge and Woman's Placc. New York: Harper
Colophon, 1985.
14. MOEllS, Helen. Litermy Women. New York: Oxford· University Press,
1975. .
15. PLIMPTON, George, cd. Woman Writen at Worh; thc Paris Review
Intervicw. Ncw York: Peliguin, 1989.
16. RICI-I, Adriennc. Tlte Dream ofCommon Language. New York: Norton,
1978.
--17. SEDCWICK, Eva Kosofaky. Epistemology of the Closet. Los Angeles:
Univcrsity ofCalifornia Press, 1990.
18. SHOWALTER, Elaine, cd. T!te New Feminist Criticism. New York:

t
P;rntheon, 1985.
19. __. Sexual J\na.rc!ty. New York: Viking, 199Ó.

L
�(\
,,
)

Cânon

Roberto Reis

There is always souiethin.g outside the text


Frnnk Lcnt.-icchia

·1
I

Machado de Assis esueveu numa de suas crônicas que, tendo


descoberto que todos os relógios deste mundo não marcam a
mesma hot."t, cansara elo ofício de relojoeiro, porque tanto poderia
estar certo o seu relógio quanto o de seu barbeiro.
O que se segue é um excurso de um 1·elojoeiro que contempla
o mundo desde os ponteiros de seu relógio de pulso. Tanto pode
ser pontual o meu quanto o de meus leitores. Parn acertar um
mínimo as nossas horas e desenhar um horizonte no qual o que
pretendo elaborar sobre "cânon" ganhe maior coerência, necessito
) efetuar algumas observações preliminares. Emborn não haja muita
) novidade no que me p1·oponho a escrever nesta seção introdutóda,
vale a pena retomar algumas idéias, mais ou menos conhecidas, a
) fim de estabelecer um protocolo de leitL11·a.
) Isto posto, pl'incipio por anotar que toda escrita ficcionaliza o
seu leitor. E todo leitor acurnula um repertório de pré-noções e é
munido deste aparato que se acerca de um texto, com o qual seu
conjunto ele expectativas passará a atritar. Toda cultura nos inculca
um conjunto de saberes - e estes saberes, via de 1·egn1, de uma
forma ou de out1·a, s;io sabe1·es textualizados. Sempre lemos/inter­
pretamos (pode-se escrever que toda leitura é uma interpretação e
) toda interprct:tçào é uma leitura) aparelhados com este elenco de
conhecimentos; ou seja, de textos, na medida em que estes ou nos
l 66 Cânon
Cânon 67
são passados por meio de textos propriamente ditos ou por outras
� formações discursivas que se comportam como textos. mentar as suas práticas culturais - comércio, cerimoniais religio­

1
O segundo aspecto a destacar é que todo este intercâmbio de sos, conhecimentos ele astronomia, legislação, etc... Se a noção de
saberes - e saber é uma forma de <lomcsLicar, pelo conhecimento, poder estava escondida nas dobras dos parágrafos precedentes,
a realidade - está mediado pela linguagem. Entre o sujeito humano agora ela necessita vir à tona, pois a escrita sempre foi uma forma
e o que · chamamos real se interpõe a linguagem, que me permite de poder. Nas sociedades humanas o escdba e o sacerdote eram
falar·das coisas do mundo (realia): mediante os signos verbais me poderosos ou estavam a serviço do poder, da mesma forma que,
aproprio do objeto de que falo e, ao mesmo tempo, recrio este nas sociedadcs•pós-industriais, o monopólio da informação através
!
objeto numa outra dimensão, simbólica, humana, social, cultural. dos meios de comunicação de massa desempenha um papel fun­
· O senso comum nem sempre se dá conLa desta dimensão simbólica damental no que tange à dominação social.
da linguagem e da cultura, geralmente vendo (e uso este verbo de . Outro dia ouvi de um estudante, durante uma aula, que era
propósito) o trânsito entre signo e refei:énte como imediato e de necessário dar educação aos africanos. Observei que o vocábulo
mão única, como transparência, naturalizando - tornando como "educação" era problemático (para não falar no termo "africanos")
natural - o que é cultural. Os signos, como qualquer símbolo, em sua fala, pois pressupunha que nós, ocidentais (e "civilizados")
1 1 substituem o seu referente e me indicam a sua ausência: quando possuíamos alguma coisa ("educação") que eles, "africanos" (e
digo "folha" tenho as minhas mãos vazias. "primitivos"?) não tinham. E mais: em seu discurso, "edu-cação"
A cultura, com efeito, é um co1"tlunto ele sistemas simbólicos, parecia aludir a uma cultura (a ocidental) que está alicerçada na
de-códigos que,cle uma forma ou de outra, prescrevem ou limitam escrita, e que os "af ricanos", necessitando adquiri-la, pois a desco­
a co11duta huma1ia. O que nos sugere que a cultura implica ou nheceriam, não teriam "educação" - isto é, cultura. Ou seja:
requer mecanismos de cerceamento social.· Ou, dito de uma ma­ "educação" passava a ser sinônimo da nossa "educação" (tomada
neira mais precisa, no interior de qualquer formação cultural as esta como referência e implicitamente entendida como "supe­
camadas dirigentes se valem de diversas formas discursivas e as rior"). Com isso se ignorava por completo as milenares culturas
transformam cm ideologia para assegurar o seu domínio. africanas calcadas (não na csci-ita mas) na oralidade. Em síntese,
· A linguagem é, ainda, ·uma fonna de violência imposta à um enunciado cheio de boas intenções retomava (ou corria o risco
natureza. Ao dizer "folha" abarco numa única palavra um imenso de retomar), ainda que inconscientemente, toda a ideologia de
espectro de realia · que mantêm entre si enormes e inúmeras base do colonialismo.
diferenças em tei-mos de aparência, cor, espessüra, peso, idade, O episódio pretende ilustrar que a linguagem também hierarqui­
tamanho, textura, etc. O signo "folha" reduz a·realidade, multifa­ za e engendra em seu bojo mecanismos de poder, na medida em que
cetada e poliinorfa, a um único termo, a um mesmo. Neste sentido, ela articula e está a1·ticulada pelas significações fo1jadas no seio de
a linguagem não só metaforiza o real, mas o falseia. Mas a lingua­ uma dada cultura, no intei-ior da qual, como ficou dito, as ideologias
gem também 01·ganiza o real, de tal forma que pensaremos como estão operando ·para.garanlir a dominação social. As sociedades que
"real" aquilo que o horizonte ela linguagem (e a cultura da qual ela têm escrita usaram e abusàram do alfabeto como forma de subjugar
faz parte) articula como tal. A realidade passa a ser conhecid� e o as culturas "ágrafas" e esta foi uma das maneiras como, por exemplo,
mundo, uma vez insenaclo na ordem simbólica, assume um caráter os europeus colonizaram os povos do chamado Terceiro Mundo.
humano e social. SegundoJacques Derrida, a escrita foi reprimida no Ocidente porque
Naquelas sociedades que conheceram a escrita, o aspecto havia o risco ele ela passar parn as mãos do outro, opdmido pela tirania
ordenador da linguagem se complica (e, com isso, não· quero do alfabeto, e o outro, se de posse ela escrita, poderia deslindar os

1
insinuar que as sociedades que não conheceram a escrita· fossem mecanismos de sua própria dominação.
por isso menos complexas) mediante as várias maneiras de doeu- Gostaria de lembrar que, quando falamos de literatura, aludi-·
. .
mos primordialmente a algo escrito (necessitamos acrescentar
,, 1

68 Cânon Cânon 69

"oral'' quando nos referimos a out1-as, o mais das vezes menosca­ O texto pnssa, assim, a ser entendido como lugar de interseção
badas e desprestigiadas, formas de literntura, não calcadas na de uma complexa teia de códigos culturais, de convenções e de
escrita). Em várias culturas a escrita se complexificou extremamen­ outros textos (explicitamente aludidos ou não), numa espécie de
te, a ponto de ter sido necessário criarem-se instâncias reproduto­ "mosaico de citações" (Kristeva). Lemos sempre por transparência,
ras de seus meandros, como a escola, a fim de que se pudesse pois lemos outros textos num texto. O espaço da leitura é a cultura,
passar, de geração a geração, os segredos da vigilância social por entendida esta como conjunto de textos - contexto - de diversa
ela propiciados. natureza, como <li111ensão simbólica que superpomos à realidade
O que fiz até agora foi sugerir que por trás de noções como e que funciona como mediação nas nossas interações com o real.
linguagem, cultura, escrita e literatura, mesmo se não as tratarmos Depois dos estudos de Micl1el Foucaulc, sabemos também que
(como seria mais indicado) em termos históricos e menos abran­ todo discurso é uma violência, uma pr:í.tica que impomos às coisas
gentes, se esconde a noção de poder. Parà' trabalhar o conceito de e ao mundo. A cscritn e o saber, na cultura ocidental, estiveram via
"cânoi1'.' é importante ter em mente este horizonte, pois o que se de regra de mãos dadas com o poder e funcionaram como forma
pretende, ao se questionar o processo de canonização de obras de dominação.- Todo saber é produzido a pal'lir de determinadas
literárias é, em última instância, colocar em xeque os· mecanismos condições históricas e ideológicas que constituem o solo do qual

de poder a ele subjacentes. esse saber emerge. Toda interpretação é feita a partir de uma dada
posição social, de classe, institucional. É muito difícil que um saber
esteja desvinculado do pode1·. Com isso deduzimos que os textos
II não podem s�r dissociados de uma cena configuração ideológica,
na proporção em que o que é dito depende de quem fala no texto
e de· sua inscrição social e histórica. O que equivale a afirmar que
Um texto liter.írio, escrevejenaro Talens, não é uma presença, todo texto parece estar imimamcnte sobredcterminado por urna
mas .um espaço vazio, ctüa semantização esLá para ser produzida instância de auto1·idacle. O critério para se questionar um texto
pela p1·axis historicamente determinada do leitor. É o ato de leitura literário não pode se descurar do fato de que, numa dada circuns­
que faz· com que o espaço vazio se transforme cm uma obra tância histórica, indivíduos dotados de poder atribuíram o estatuto
literária, produzida depois de ter sido transformada em algo de literário àquele texto (e· mi.o a outros), canonizando-o.
dotado de um signiíicado pela apropriação por um leitor. Se A litc1·atu1-a parece te1· sido uma dessas grandes narrativas
) . acatarmos a anotação de Talcns, se poderia desde logo inferir que (para ampliar um termo cunhado porjean-François Lyotard) que
) a leitura estará condicionada pelo eslatuto de classe, pelo "gosto", - pelo menos desde os princípios da era moderna, em fins do
pelo lugar ocupado pelo leitor no tecido social e num dado século XIV, quando a arte. foi pàulatinamente se separando da
)
momento histórico. religião, até o advento dos meios de comunicação de massa e da
Com efeito, sabemos hoje que o sentido não se dá em presen­ sofisticação dos aparelhos ideológicos de Estado, que disseminam,
ça, sendo antes resultado de um jogo de diferenças na cadeia e a um nível microfísico, outras formas, bem mais eficazes, de
significante e da interferência do intérprete neste jogo. Por outro regulamento social -, se prestou a consolidar a hegemonia das
7 lado, interpretar implica em construir a partir de signos físicos, elites letradas. Sendo uma ideologia, tem ocultado e reforçado a
enquadrando o que deve ser interpretado num conjunto de refe­ divisão social, inclinando-se a transfonnar o discurso de uma classe
rências culturais (Jrames), na exata medida em que interpret.ar é um em discurso de toda a sociedade. O discurso da chamada alta
ato dialogal por excelência. Terry Eaglcton observa que os sentidos cultura tem, o mais elas vezes, estado a serviço do poder e do

r
humanos são, em uma acepção profunda, histó.-icos; interpretar é f Estado: os sistemas sígnicos;as prálicas significantes (a linguagem
uma atividade radicalmeme histórica. i cinematográfica, da televisão, da ficção, das ciências, da religi.10)
) '-'-

1

r
1
Cânon 71
!! 70 Cânon
Se seguirmos esta noção, tão corrente nos circuitos da chama­
produzem efeitos e moldam formas, de que se tem mais ou menos da alta cultura e t;'io consagrada pelas instâncias abonadoras da
consciência, que estão relacionadas muilo d<: perto com a manu­ produção de bens simbólicos, verificamos que a corpus canônico da
tenção ou transformação dos sistçmas de poder existentes. Con­ literatura (e, via de regra, não se usa o adjetivo "ocidental", embora
cordando com Michel de Certeau, diria que estes discursos como
os autores sc�jam oriundos do Ocidente) está envolto por uma
que sancionam a força que exerce o poder.
redoma de a-historicidade, como se houvesse sido estipulado por
O fato não preexiste à sua dimensão textual, de linguagem, de
uma supracomissão de cúpula e de alto nível (infensa a condicio­
discurso; não temos acesso ao mundo "real" a não ser a partir das namentos de· ordem ideológica ou de classe) que, por uma espécie
representações construídas sobre o mundo, as quais, por sua vez,
de mandato divino, houvesse traçado os contornos do cânon,
são versões sobre os eventos. Todo documento é uma versã0, uma
elegendo tais obras e autores e varrendo do mapa outros autores
interpretação do que "realmente ocorreµ", da história "verdadei­
e obras. Por alguma razão, quase sempre não muito clara, vale a
ra", esta inapreensível em termos de origem. A ·produção de pena preservar algumas obras (e a escrita e a imprensa tornaram
representações é uma dirnensão da praxis .social tanto quanto as
isto possível), uma aristocracia de textos acima de qualquer suspei­
ações efetivamente realizadas pelos agentes sociais. É dent1·0 destes
ta. Os monumentais clássicos contêm verdades incontestáveis,
parâmetros que devemos indagar o conceito de "cânon". atemporais e universais, transcendem o seu momento histórico e
fornecem um modelo a ser seguido. Quais os critérios para efetuar
tal tarefa de seleção (e exclusão)?
m Os defensores do cânon possivelmente argumentariam que as
obras liteddas possuem qualidades int1insecas, estão dotadas de
O termo (do grego, "kano1J'', e;;pécie de vara de medir) um valor estético - a sua "literal'Íedade" (e uso o te1·mo de um
entrou para as línguas ro_ mânicas com o sentido de "norma" o u
modo emblemático, para condensar distintas correntes que privi­
"lei". Durante o s primórdios d a cristandade, teólogos o utiliza­
legiaram e continuam a privilegiar o primado elo texto, acabando
ram para selecio11ar aquele� autores e textos que mereciam ser por instituir, ao sacramentá-lo e fetichizá-lo, a tirania do texto). Em
preservados e, em conseqüência, banir da Bíblia os que não se poucas palavras, é possível detectar este valor inato e inerente à
prestavam para disseminar as "verdades" que dev�riam ser in­ obra, sem levar em conta nenhum elemento "externo". Não é à
c9rporaqas ao livro sagrado e pregadas ao seguidores da fé toa, convém frisar, que a canonização abstrai esta eleita plêiade de
cristã. O que interessa reter, mais do que uma diacronia, é que obras ele suas circunstâncias históricas.
o.conceito de cânon implica um princípio de seleção (e exclusão) Pdncipiemos o questionamento desta posição colocando que
e, assim, não pode se· desvincular da ·questão do poder:· obvia­ a própria noção de literatura é ideológica, estando ine:;xtricavel­
mente,. os que selecionam (e excluem) estão·investidos da auto­ mente ligada à questão do· poder. O conceito de literatura tem
ridade para fazê-lo e o farão ele acordo com os seus interesses cumpl'Íclo uma nítid,i função social: no final do século XVIII e
(isto é: ele sua classe, de sua ·cultura, etc.). Convém atentar ainda princípios do século XIX - acompanhado ela disciplina que o
para o fato ele que o exercício desta autoridade se faz num legitimaria, a estética - cdou-se este territó1·io desinteressado,
determinado espaço institucional (no caso, a Igreja). onde a suprema beleza poderia ser contemplada a salvo das maze­
Nas artes em geral e na lite1·atura, que nos interessa mais de las do capitalismo que arrancava célere rumo a seu apogeu. Supo­
perto, cânon significa um perene e exemplar conjunto de obras - nho que não por mera coincidência a ent1·onização do termo tem
os clássicos, as obras-primas dos grandes mest1·es -, um patrimônio por corolários não apenas a idéia de capitalismo, mas de indivíduo
da humanidade (e, hoje percebemos com mais clareza, esta "huma­
(ênfas_e acentuada no autor ou, posteriormente, no crítico) e da
nidade�• é muito fechada e restrita) a ser preservado para as futuras burguesia que o usaria pa'i-a autenticar-se. Mais tarde, a literatura
gerações, cujo valor é indisputável. 1
'
·�
,;a; t
. ·y
,:-i
72 Câuo-n Cânon 73

servirá para enaltecer um certo Lipo de escrita, peculiar às elites cfü10n das grandes obras ela literatura ocidental, salta aos olhos que
educadas e, como resultado, serão desprezadas outras formas, bem a presença dos autores europeus é esmagadora (não creio que
mais populares, ele cultura. figure um Machado ele Assis); que os cio sexo masculino, originá­
O estudo ela literatura seria mel] 1_or equacionado considernndo-o rios das elites e brancos predominam de maneira notória. Há
dentro da dinâmica elas práticas sociais: a escrita e a leiturn estão poucas mulheres, quase nenhum nfto-branco e muito provavelmen­
sujeitas a variadas formas de controle e têm sido utilizadas como te escassos membros elos segmentos menos favorecidos da pirâmi­
instrumento de dominação social. Nos dias atuais, a instituição mais de social. Com efeito, a literatura tem sido usada para recalcar os
empenhada nesta tarefa é a universidade (onde se ensiná a ler as escritos (ou ·as 111anifes1.ações cu!Lurais não-escritas) dos segmentos
', culturalmente marginali�aclos e politicamente reprirnidos - mu­
"grandes obras", chancelando, desta maneira, o cânon literário), que
se presta a reproduzir a estratificada estrnturação social. lheres, etnias não-brancas, as ditas minorias sexuais, culturas do
Nesta linha de raciocínio, o conceito.. de literatura seria enten­ chamado Terceiro Mundo.
dido- e quero insistir neste ponto - como uma pr..ítica discursiva, Não resta dúvida de que existe um processo de escolha e
entre outras, dentro ela ordem cio discurso: Ao invés de enfrentá-lo exclusão operando na canonizaçfto de escritores e obras. O cânon
desde uma ótica ontológica - ou seja, como se fosse possuidor de está a serviço dos mais poderosos, eslabclecendo hierarquias rígi­
uma inerente especificidade-, passaríamos a enfoGí-lo desde um das no todo social e funcionando como uma fer..amenta de domi­
ângulo funcional - ou seja, dependendo <la função que se lhe nação. Para desconstruir este processo, sem dúvida ideológico,
conceda. Um texto não é literário porque possua atributos exclu­ faz-se necessário problematizar a sua 11istoricidade. Quer dizer: não
sivos .que o distinguem de Outro texto, mas porque os leitores se questiona o c:1non simplesmente incluindo um autor não oci­
(entre eles incluídos os críLicos), por inúmeras razões, o vêem como dental ou mais algumas ouras escl'itas por mulheres. Um novo
tal. Assim dimensionada, a literatura se converte numa forma de cânon decerto não lograria evitar a reduplicação das hierarquias
praxis discursiva e social, não apenas representando mas também sociais. O problema n:io reside no elenco de textos canônicos, mas
criando a realidade. na própria canonizaç;io, que precisa ser destrinchada nos seus
Historicamente, a literatura (bem como as demais artes) tem emaranhados vínculos com as malhas do podei'.
sido um eficaz veículo ele transmissão de culturn. A literatura tem Seria o caso ele perguntar, então, quem articulou o cânon -
sido uma das grandes instituições de reforço de fronteiras culturais de que posição social falava, que interesses representava, qual seria
e barreiras sociais, estabelecendo privilégios e 1·ecalques no interior seu público-alvo e qual a sua agencia políLica, qual o seu estatuto
'
) da sociedade. Ao olharmos para as obras canônicas ela literatura de classe, ele gênero ou étnico, por quais critérios norteou a sua
)
ocidental percebemos ele imediato a exclusão de diversos grupos eleição e rejeiçio ele obras e autores. A noção de valor e a atribuição
sociais, étnicos e sexuais cio cânon literário. Entre as obras-primas de sentido não s;"io empresas sepadvcis cio contexto cultural e

f
) político em que se produzem, n;"io podendo, por conseguinte, ser
que compõem o acervo literário da chamada "civilização" não estão
representadas outras culturas (isto é, africanas, asiáticas, indígenas, desconectadas de u1n qua_clro histórico. O signiucado de qualquer
muçulmanas), pois o cânon com que usualmente lidamos está juízo de valor sempre depende, entre outras coisas, do contexto
centrado no Ocidente e foi erigido no Ocidente, o que significa, em que fo1· emitido e ele sua relação com os potenciais destinat.·frios
---,) por um lácio, louvar um tipo ele cultura assentada na escrita e no e a sua capacidade ele afet:í-los ou mesmo convencê-los.
alfabeto (ignorando os agrupamentos· sociais organizados em tor­ t Além disso, impon:u·ia considerar o locus insLilucional em que
no da oralidade); por outro,· signilica dizer que, com toda a se efetiva o juízo ele valor, q11e sclcciona/clescarta as obras cio
probabilidade, o cânon está impregnado elos pil:ires básicos que cânon, tais como a escola ou a universidade. A instituição legitima
sustentam o edifício cio saber ocidental, Lais como o patriarcalismo, . a autoridade do juiz que clccreLa o veredito. Autoridade (e autor)
o arianismo, a moral crisLã. E, mesmo se nos restl'ingirmos ao está etimologicamente engatado ao latim aucto1·, tenno que, na·

)
·J

i.

74 Cií.11,on Cânon 75
i
l
l o racionalismo, o humanismo, o Iogoccntrismo, o falocentrismo,
1 Idade Média, designava o escritor cujas palavras impunham respei­
-)atri�c;li�1;10, O �t�Ze�triSJno-:-O capitalismo, O colonialis�no,
1
O
to e credibilidade.
Necessário ainda avcdguar de que forma o cânon é reprodu­ o imperia ismo, a 1egemonia 6urguesa, o a1'ianismo701·acismo, a
zido e como circula na sociedade, investigando, para enumerar homofobia, os mitos do Estado, da objetividade, da ciência, do
alguns meios ele divulgação,jornais·c suplementos literááos, anto­ progresso, da tecnologia, a mornl judaico-crisnt.i.,para listar os mais
logias e -currículos escolares e univcrsit;írios, resenhas e crítica releva1Úes. Todos estes sabe1·es serviram pa!"a assegurar a domina­
literária, comendas e p1·êmios, eh.Is de Academia e noites de ção do Ocidente, do branco,do homem, das classes privilegiadas
autógrafos, nomes de logradouros públicos e adaptações para sobre�outra�f.!!!turas, etnias, grupos sociais, sexuaffêfãdes. -
outros mídia, como o cinema ou a televisão. É mediante tais Hoje se percebe que a cfivis:lo da natureza-em i·emos trai uma
veíçulos que se propaga e perpetua o cânon. A indagação da certa concepção do mundo; que não há nenhum motivo físico para
literatura não deve, cm suma, se resumii· a pensar o que lemos, que todos os mapas-mundi tenham como centro o oceano Atlânti­
interpretando o livro ou o poema que ·'temos diante de nós: é co e o Ocidente po1· ele banhado; que a matemática, longe de ser
imperioso considerar quem lê e quem escl'eveu e cm que circuns­ uma linguagem universal, tem sido uma e.las mais poderosas armas
tâncias históricas e sociais se deu o ato de leitura, sem deixar de de imposição ela culturn oci<lenLal; que a noção de Estado está
ter em conta que tipos de textos são escritos e lidos e,neste último marcada genericamente; que é no Primeiro Mundo que tais conh e­
cimentos são concebidos e legitimados e que foram formulados
·caso, por que leitores.
por sapientes autoridades; que a Antropologia (no interior da qual
Sob este pi-isma, o texto lite1-ário deixa de ser um objeto
se trava um acirrado debate) acabou sendo, de certo modo, cúm­
estático ( e estético) e passa a se entrnnçar com o aútor, o leitor,
com o horizorite histórico que lhe é subjacente ou que lhe deixou plice do colonialismo. Ou seja: estamos diante de conslruclos sociais
pegadas,com out1'os textos,com o passado e o presente e o futuro, e culturais (isto é, as taxionomias elas ciências da natureza, os
estabelecendo uma emaranhada rede de afiliações intertextuais. mapas, as ,;1atem;iticas, o Estado, etc.) e uão em face de categorias
Nunca percainos de vista a História. Autores e leitores são ou discursos universais, passíveis de extrapolar as condições socio­
constituídos por sua posiç.i.o cultural e social,pois o ato de leitura culturais ele sua procluç.i.o. Ao çontr.írio, plantadas na sua histori­
cidade, tais noções e práticas estão atravessadas por marcas
é, a seu modo; político. Se, como estou argumentando, a leitura
está implicada -c om questões de autoridade.e poder, poder-se-ia ideológiças de v;i1·io teor.
Um enfoque nestes termos do discurso conduz ao estudo das
dizer tjue cada texto apresenta uma proposta que almeja dominar,
instituições e do papel nelas desempenhado pelos intelectuais e
apagar ou· distorcer outrns propostas .de sentido. ·A linguagem,
letrados. Cabe ressaltar que o crítico foi o grnnde beneficiário
matéria de que se nutre a literatura, sendo parte da vida política e
quando, cm especial cm nosso século, se separou a obra do autor
soda!, não só molda nossas pcrcepções como é moldada pelo
para concentrar o objeto <:!a an;ílise literária no próprio texto. É o
social. Sendo capital na percepç.i.o da realidade, a linguagem tem
crítico quem passa _a exercer a autoridade sobre o sentido, à
sido canalizada para ·atender aos interesses dos grupos dominantes.
estrutu1-a, as relações inrcrnas do artefato litedrio e, através do
Os trabalhos de Foucault chamaram a atenção para como as
exercício profissional, a dissc1ninar as interpretações que lhe con­
instituições, os discursos e suas respectivas disciplinas são funções
do·poder porque,sobretudo nas sociedades ditas modernas, distri­ vém pa1·a leitores e alunos. Sem o autor pam reivindicar a sua
interpretação e a integridade semântica <le sua obra, o crítico eslá
bu_em. os �feitos cio poder..Seria razoável escrever que as formações
ç:liscursivas são uma réplica das estruturas da sociedade. liberado pa1·a direcionar a exegese de acordo com suas premissas
ma inclagaçtio do cânon tampouco deve ser apartada de toda e propósitos, sejam eles conscientes ou não.
uma tendência,nesta época tidaspor pós-moderna, de colocar entre Para se reverter o hierárquico processo entranhado na sacra­

-- -
, lização de autores e ob1·as é forçoso, como espero tenha ficado·
------------------- --
parênteses.alguns dos alicerã: ·c1a cultura ocidental: a metafisica,
'-- o;
e
-�i

:,
�-,
�i
;tí1 .:
Y!

76 Cânon 1.

::
- Cânon 77

..
claro, aricorar nossa indagação na História e encarar a História vínculos com os estratagemas do poder da sociedade na qual circula,
dialeticamente, como um jJ-roblema. Quer dizer: tentando dar conta
� de tal modo que o campo litenfrio e cultural reproduz a estrULura de
das complexas e múltiplas contradições que engendram a dinâmica classes. O processo ele canonizaç;i.o não pode se1· isolado dos interes­
ses dos grupos que foram responsáveis por sua constituição e, no
entabulada entre o texto que assediamos e as v�'irias afiliações com
qu e ele se embaralha (o autor, o leitor e a comunidade de intér­ f
fundo, o cânon reflete estes interesses e valores de classe.
O cânon é um evento histórico, visto ser possível rastrear a sua
pretes; c_ontexto; tradição, etc.).
construção e a sua disseminação. Não é s u ficiente repensá-lo ou
Além disso, é preciso aclarar nossa própria contingência de

tt
� revisá-lo, lendo outros e novos textos, não canônicos e não cano­
intérp1·etes e explicitar nossos pressupostos, eviLando que critique­
nizados, substituindo os "maiores" pelos "meno1·es", os escritores
mos a a u toddade alheia sem atinarmos, por exemplo, que sou eu
que m escrevo este texto e que, ainda que ficcionalize meus leitores pelas escritoras, e assim por diante. Tampouco basta - ainda que
e leitorns de uma maneirn o mais possível plural, não posso saber isto seja extremamente neccss;í. rio - dilatar o cânon e nele incor­
de imediato como estão me lendo. Daí ter usado a metáfora do porar outras formações discursivas, como a telenovela, o cinema,
relojoeiro machadiano. Minha expectativa é que a postura antiau­ o cordel, a propaganda, a música popular, os livros didáticos ou
toritáda que tento adotar - por meio da qual espero minimizar a infantis, a ficção científica, buscando u ma maior r e pr e.
minha "autoridade" ele auto1· deste ensaio- reverbere também em sentatividade dos discursos cullurais. O que é problemático, em
minha escrita, seja por meio de hesitações, de impasses, de bre chas síntese, é a própria existência de um cânon, de u ma canonização
e descominuidades, ele empecilhos de leit ura como osparênteses
que reduplica as relações i1�ustas que compartimentam a sociedade.
e fravessões ou pelo movime nLo do texto e a feição da frase , que É também fundamental lançar mão de outros paradigmas de
leiturn, est«"l.belecendo o contexto histó1·ico como solo da iú:terpre­
\'Ísam. � conferir ao que estou. escrevendo um torneio menos
tação. O u seja, est:í. cm jogo uma 111aneira de ler, uma estratégia de
monolítico e uma auto-reflexão, q ue desnude a s ua contingência e
leitu1·a q ue seja capaz de fazer emergir as diferenças,· em particular
suasJimitaçõe s.
aq u elas que conílitem com os sentidos que foram difundidos pela
, .Em função disso, quero insistir que se tenha em mente a
leiturn canônica, respons;ível cm última análise pela consagrnçio
mecânica de.produção; reprodução, circulação e cons umo do texto
e perenidade dos monumentos literários e via de regra reforçadora
e, nessa tarefa, questionar o esta Luto do a utor, <lo crítico e do leitor
ela ideologia dominante, subvertendo, desse modo, a hierarquia
e nquanto autoridades e receptores, insUlncias situadas em uma
J embutida em todo o processo.
dada historiciclacle e por ela atravessadas. O texto praticamente
Na seç.i.o seguinte me proponho a Lecer algumas considerações,
não exist_e sem o leitor: é a leitura que d;;í. sentido ao texto, ainda f e ele modo bastante panorfünico, que se me auguram capitais, como
que .seja cabível cogitar que este cristalize um mundo de significa­ 1
' ponto de partida, pa1·a uma desconstrução do cânon brasileiro,
çõe s e contrnclições. O ato ele leitura.é um fenômeno altamente j
) discorrendo sobre o sistema litcrúl"io e o sistema intelectual para, na
complexo e possui um car:í.Ler eminentem e nte dialogal: na leitura
J última parte, ilustrar como seria também imperioso adotar uma certa

1
interagem não apenas o leitor e o texto mas, através do texto, o
maneira de ler se nos· move o inLenLo de pôr e111 xeque a sedimentação
leitor entab u la uma conversação com o autor, com o contexto
de escriLores e obras no panteão glorificador das histórias literárias.
histórico e social plasmado no texto, com uma cultura, uma

t
tradição litedria, uma vis:1o de mundo, um acervo lingüístico.

li
7 O texto, em geral encenado na moldura cio livro, transita por
IV.
uma sociedade na qual existem hierarquias de classe estratificando

[
os indivíduos que compõem aquela sociedade. Para Pierre Bour­
No capíwlo inicial ele sua Litermy The01y, Tcrry Eagleton
dieu, um texto, como qualquer outro bem simbólico, está engajado
demonstra corno a insLiLucionalizaç;i.o da literatura na Inglaterra e
num circuito ele troca e esL;1 permeado por imímeros e intricados

) !'.
�i
,l
,,
' 78 Cânon
\•
Cânon 79
nos Estados Unidos acoplou-se "i.ntimameme com questões de
' poder, estando, por esta razão, imbuída de um significativo con­ pendeu às necessidades ideológicas de uma: recém-emancipada
L torno ideológico. Creio ser tarefa p1·cmente um estudo análogo no "aristocracia" nacional. Por outro lado, como acentua Roberto
que tange ao caso brasileiro. Ventura, a identificaç,i.o dos letrados com os valores metropolita­
De acordo com Flo1·a Süssckind, durante o século XVIII tem nos e cosmopolitas vai ensejar uma relação eurocêntrica com o
início a confonnação de um sistema-literário no 13rasil, quando o meio local e etnocêntrica no que diz respeito às culturas populares,
letrado começa a adquidr um status próprio e a beca e o diploma mais vinculadas a elementos de extração indígena, africana e
de doutores cm algum cios saberes ela época facultam ingresso mestiça, que são enc,:u·adas como obstáculos à universalização. dos
certo no restrito círculo das Academias. Entre os letrados e os princípios liberais propalados pelas camadas dirigentes que vege-
tam no poder. Este ide,ído, a princípio "fora do lugar", segundo

t
grnndes proprietários de ten-a não havia conflito, uma vez que
o enfoque de Roberto Scl�warz, uma vez adaptado à tacanhez e ao
-�
aqueles eram rep1·esentantes dos intc1·esses destes últimos. Em \.
outras palavrns, a beca traduz uma posição de classe e se torna traço provincianismo do 13rasil do século passado acaba se reajustando
distintivo na rarefeita socieda.de coloniaL · Por trás da máscara e servindo como inst1·umento de dominação por parte dos setores
pastoral, os poetas árcades· ostentam o prestígio de serem letrados ligados à economia agro-exportadora. A literatura participou des­
e senhores, sendo os destinat�frios ele seus poemas ou outros poetas ta empreitada. Adem:1is, estas mesmas idéias, que vão ser adotadas
ou os poderosos da época, eventuais mecenas numa sociedade também como indício de fidalguia, como ornamentação e marca
onde o público leitor é ainda ralo e basicamente composto pela de distinção social, ocultam os estragos do capitalismo na perife­
� ria, constituindo-se num "berloque" que confere vernizes de civi-
parca nata de ilustrados que sabia lei' e escrever. A constituição de
um sisteri1a litedrio pouco a pouco engendr�·uma norma estética f-- lização.
e regras de controle, capazes de conservar a identidade destes ·caberia salientar ue o ideário romântico no Brasil é um
int_electuais, ao mesmo tempo que rebaixa e recalca aquelas mani­ 6 projeto e aftrmação d�1aciÕnaliclade, no que encontrava total
festações literárias que inf ringem o sistema em gestação. Assim, -5 respaldo do-Segundo Reinado, igualmente empenhado em enfilei-
enquanto ficam entronizados os Dirceus se risca a voz subversiva � 1-ãro pais ao lado das nações civilizadas. Não dispomos de suficien-
do Sapateiro Silva, relegada para a ia La de lixo da história literária, (_, I tes estudos que dêem conta das várias instituições que, de algum
como conclui a arguta ensaísta. modo, interagem com o fenômeno literário e com o restante da
É a_l!1da Süssekin.i;I_quem, e!TI.9_lJ!f0 t13ball10,__!! l�s�omo os produção cultural. Não existem pesquisas ele fôlego sobre as Aca­
demias dos séculos XVII e XVIII; sobre a atuação da Academia

t
ficcionistas elas décadas de 30 e 40 si.E século_essado, de posse de
mapastraçados de antemão e embebidos.pela leitura dos_viãjantes Brasileira de Letras, elo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
do Colégio Pedro II e elos v;trios jornais, que desempenharam um

1
e naturalistas europeus que visitaram o llrasil, saíram em busca da
fünaaçã� lit�rária ela .!}aciQ!}A!ida_cJ_!:, !:1U!,!l_'',!l!g!.:.._ess()" à octgem,)10 enorme papel· na vicia intelectual oiLOcentista, tão abdgada sob as
·esforçô de demarcai: urn c�ntrn. Esta p1·9sa de ficção coincide com asas do Estado monárquico e encampada pelas elites pensantes,
o per.íodo de esforço de consolid_,1ção monárquica e de afü·maç,1o porta-vozes dos segmentos de propriet,írios de terras e da alta

1
!
poht1co-hterána de um<.!_ naci.9-na_lidade soldada pela_coe��to dªs., burguesia que se encorpava; sobre a Ig1·eja Católica, a Maçonaria,
êtitesourocráticas e senho1-iais. De novo, estes 'literatos parecem o Positivismo, ou, 111;1is recentemente, as Universidades. Uma
scm15I<efálãr entre s1 cparn si, sem maio1·es contactos com out1·as pesquisa que aquilatasse a iníluência destas e ele ouLras instituições,
camadas sociais que não a burguesia a que pertencem ou o grupo enquanto insL,1ncias ele autenLicação e repro<lução do literário,
·senhorial a que se aconchegam. seria de inestimável valia para um melhor equacionamento do peso
O nacionalismo é a ide.ologia ele base que_ costura estes proje­ e do papel desempenhado pelo cânon no contexto cultural brasi­

t
tos das eliLes letradas e a valorização da natureza tropical corres- leiro, em particular quando pensamos que no 13rasil se lê pouco e
�.
� que o livro é um objeto de luxo entre nós, com tiragens que

...
�-'
!I'

�l
I.
:
'.

80 Câuon C<i'llon 81

raramente ulti·apassam os 3 rnil exemplares, percentual ínfimo c01J1us literário e como que tende a avaliar os textos e escritores cm
para um conLingente populacional que excede a marca dos 150 função do grau maior ou menor de "nacionalidade" que porven­
milhões de habitantes. tu1·a contenham.
Ac1·edito que é durante o romanLismo - movimento contem­ Como assinalou Roberto Ventura, a hisLória liter:iria está
podinco à independência de Portugal - que se sedimenta o cânon alimentada, desde os primeiros esboços do romanLismo, pelo afã
literário, que dera seus primeiros passos corn os árcades. Tendên­ de definir uma entidade abstr:ua corporificada nas obras, rebentos
cias como o indianismo e o sertanismo são esforços para captar a individuais que tornari:l.m manifesto um "caráter" ou "espírito"
cor local do país e o ethos brasileiro, numa mfmesis de corte realista, coletivo: o "ser nacional". Ora, se problematizarmos o conceito de
que obedece ao primado da observação. Um exame cuidadoso da "nacionalismo" itnplic::u:lo neste juízo crítico (questionando, por
literatura de nosso oitocentos, entretanto, revelaria como aquela exemplo, o seu alcance e a sua represe11Lativicbde, e sobretudo o
ficção acaba dizendo mais a respeito das camadas sociais que a seu corte de classe), coloca111os entre parêntese a historicização do
escreviam e a fruíam do que dos índios ou-sertanejos que suposta­ texto literário brasileiro, tal como esla se acha estampada nos
mente pretendiam captar, tomados estes como "heróis" dos textos compêndios disponíveis. Isto para não mencionar outros esqueci­
cm que comparecem. Neste sentido, se poderia escrever que uma mentos, que fazem com que nossa história literária contenha
considenivel parcela da produç;io liLc1·ária do Brasil oitocentista poucas criações que dêem voz, de modo exemplar e sem precon­
acaba se conligurando como uma espécie de auto-retrato das elites ceitos e palen1alismos, a outros setores <la sociedade que não seja
que a produziam e consumiam. No esforço de fo1jar uma repre­ o hegcmônico. N;Lo é à toa, por conseguinte, que aprendemos nos
sentação "realista" do país· (de sua natureza, de figuras como o bancos escolares que os maiores escritores de nosso romantismo
indígena ou o home.111 elo interior), na exata medida em que esta e ele nossa literatura foram e süo aqueles que a dotaram de um
captação serviria para delinear o "perfil nacional", ela acaba se rosto inconfundivelmenle "brasileiro".
traindo, se contradizendo e fon1ecendo um retrato da ideologia Na mesma ordem de considerações, o Mockrnismo tende a
dos segmentos senhoriais. Ser brasileiro, para aquelas frações ser o período posto cm destaque, porque com os modernistas
ilustradas, "desterracbs em sua própria terra", era ser europeu nos alcançamos nossa "maturidade" e "maioridade" literárias. Ao in­
trópicos. O "nacionalismo" prcscnle nesta produç:"io é aquele que grediente "11acionalismo" vem se juntar o de "modernização" e
interessa ao projeto de consoli<laç:"io do Estado nacional. ambos se irmanam numa imbatível dobradinha ideológica. A par
Ora, se. um não desprezível elenco de olm.ts e escritores da das noções evolucionistas que se escondem nos desvãos de uma tal
literatura brasileirn são en<lcusac.los pelo sopro nacionalista que concepção de história, detecto aí uma teologia, que arrola o acervo
evola de suas p:íginas n,"io eleve causar surpresa.. Car��� literário brasileiro com o próposito ele direcion,í-lo para um telos
trabalhos que visem a qucstiona1· os pressupostos teóricgs, ideoló­ que já se achava aprioristicamentç dado no engajamento naciona­
gicos e estéticos de 11ossos críLicos, a meu ver tarefa de inegável lista e moclernizanLe cio próprio críLico, ansioso por afastar de sua
importância quando pensamos em desmontar o processo de cano- exegese o fantasma e.la cl<:pencJência e de grudar úaml-aids (para
1uzação de autorcse texlos levado~ª cabo p�r O_?SSa�riogúlfií!_ usar uma feliz met:ífora de Flora Süssekind) em nossa estilhaçada
litcrana tradicional, ainda b:1stante norteada pelo conceito estético identidade cu1Lu1-.d.
dos '.'estilos de época". Seja dito também, embora muito de passa­
gem, que um número expressivo de histórias literárias e de estudos
.sobre a literatura brasileira esLá orientado por um paradigma V
nacionalista e um veL01· teleológico: a crítica, engajada num proces­
so de "emancipaç;t0" da cultura brasileira da dependência que a O g1-au ele comprometimento da inteligência brasileira com o

t,
tem acossado desde os tempos coloniais, p1·ojeta a sua ideologia no discurso cultur:d e o cp1a11to este discurso scd posto a se1·viço da


r-. 7

Câuon Câ11on 83
82

constr uç.. io de um Est ado nacional e moderno, merecedor elo lema da FEB e responsável pelo ide;trio (igualmente de cunho naciona­
"ordem e progresso", é outro veio que julgo ser imp erioso per se­ lista e modernizado1·) posto cm voga ao longo dos governos
guir quando pensamos o processo de canonização literária enlre nós. miliL.a·u-es, sobretudo depois de decretado o AI-5. Ciente do risco
Suspeito qu e o movimento de ta_! disc urso se dcílagrou mesmo de estar incorrendo numa generalização extrema, imagino plaus í­
antes da Independência, quando j ..i entre os poetas setecentis tas, vel tr açar-se um grnnd e arco do pensamento brasileiro - inevita­
s e ensaia a constituição de um sistema literár io e e ste s istema se
velmente deixando de lado as nuanças existentes -, desde os
presta a delimitar o o;ísis das elit es no pode r. E irá se articular com tempos coloniais até a at ualidade, e rastrear n esta trajetória as
mais fo1·ça durante o o caso do Segu ndo Império, ocasião em que, marcas que pretendem armar um "caráter nacional".
c_m distintos esta-atos da produção cultu rnl b1-asileira, se elaboram Se, por um lado, se poderia reconhecer como válido o anel de
propostas q ue apontam para a constituição de um Estado forte e identidade (que aliás, cst;i presente em toda a América Latina e em
cent ralizado. ou tras culturas, de outros continentes), por outro se poderia
Com efeito, após o surto de u m p ens �111ento "b1-asileiro" com argumentar que os resultados desta procura nem emancipaa-am a
a Escola do Recife e com a paula�ina urbanização e modernização cultura brasileira - hoje avassalada sob as pressões da indústria
do paí s e o concomit. ante aburguesamento da s elites letrada s, e ste cultural que nos chega de fora ou pelas cadeias nacionais que
discurso, na virada do século, adotará o cie ntificismo, encontrando "unificara m" o pa ís, o u sotenac.la pelos roldões do "desenvolvimen­
formu lações "p uriíicado1-as" na ação dos higienistas, na intelectua­ to"-, n em modernizaram completamente a nação. E mais : ambos
lidade da úelle éJ;oq-ue, no racismo científico de um Nina Rodrigu es, os processos não s e efetuaram de uma maneira igualitária - a
sociedade não foi atingida na s ua inteireza-, e não se reconhece­
na· política meia ! de branqueamento da população , patente no
e s tímulo à imigração européia para substituir a mão-de-obra de ram as variadas manifestações culturais do povo brasileiro nem se
escrnvos negros. É neste momento que, visando-se a incorporar.os permitiu que este discurso da identidade nacional contivesse as
largos continge ntes de pessoas de cor na força p rodutiva, passo marcas da diferença. Em outros tcnnos, e parafraseando Lúcia Lippi
indispeúsávcl pa ra se lograr a engatinhanle industrial.i,zação, ,ff de Oliveii-a, o nacionalismo é uma categoria que privilegia uma
reconceitua a noç;io ele "trabalho", que passa a rece ber, ao qmtrâ­ tótalidade e, em decorrência, n;io enfatiza as dife1·enças internas,
rio do que ocorria nos temp os da escravatu ra, uma conotação nem trabalha com aquilo que distingue os homens no espaço
social. Numa palavra: o nacionalismo e o <lesenvolvimentismo
"digna", co111 a cautela de qu e isso não acarrete uma mudança
modenlizado1· se tornar am uma ideologia e, enquanto tal, foram
dr:ística na estratificação social. De ac ordo com Vera Lin s, mais ou
us ados pelas cama das dominantes para exe1· ce1· o poder. Minha
me_nos na mesma ép oca se introduz no -Rio, nos clube s de 1·emo e
tese é de que a literaturn, cm larga medida, compactuou com este
futebol, a prática ele csporLes, que estimula mas funcioná como
projeto e foi veicula dora deste discurso.
uma caa·tase da agressividade.
Nos primeiros decênios do no sso século o discurso que almeja Assediando-se discronicamente o discurso cultural brasileiro
colocar a nação brasileira n os trilhos do s tempos modermos terá produzido pelas elites se pode notar que esta acabou por construir
um "s ujeito"- o intelectual� extremamente autodt,irio, abrigado
continuidade no pcns;imcnto cm voga nos anos 30 (ligado ao
te.nentismo, aos ideólogos do Esta do Novo, ao integ ralismo, à no estreito cía·culo do poder. Nos v:írios ll-:.1balhos disponíveis sobre
os letrados l)l"asilei1·os no Lam-sc algumas co nstantes: a elite pensan­
direita católica, à incipiente esquerda), passando pelos modernis­
tas, que por sinal conviveram c om esta eferv escente e in stável te pactuou com o soerg·ui111enlo de um Estado nacional forte,
atmosfen.1 intele ctual. E, mais tarde, o 1·ccnco nll-aremos no desen­ centralizado e maciço, Lendo sido cooplada ou parasitado na
volvimentismo isebiano ela década ele 50, naqueles que abraçaram garupa do poder, buscando usuf ruir das benesses de comendas e
a te oria da ckpe11dêncb, até desaguar na Doutrina de Segurança cargos, o que, sem dlÍvicla, em muito esvazia sua atividade de
Nacional, gestada na Escola Superior de G uerra após a campanha contundência. A inteligência tem se atribuído o papel de porta-voz
f'\ti
f; '·
! s,, Cânon Cri11on 85

da nação, farol e guia do povo. Longe de assumir um papel detonados pela Semana de Arte Moden1a, e as décadas subseqüen­
realmente crítico e problcmatizador, o grosso do pensamento tes, o que tende a deitar por tcITa a veleidade de ruptura: a
brasileiro tem fornecido ,Hibis pa1·a a dominação exercida pelos fundação da Universidade de S:1o Paulo, por exemplo, propiciará
grupos hegemônicos, além de exaurir-se em b;�ulações que buscam um out1·01·epe11.saro Ilrasil, nas obras, entre outros, de um Florestan
o amparo e o benepl;ícito do Estado e de extraviar-se numa Fernandes ou de um Caio Prado Junior, germinadas já no meio
erudição-de efeito orn:11nental. É visível seu fascínio pelos modelos universitário.
esti-angeiros, não raro importados sem muito discernimento: Tra­ Na frente estritamente literária, a história coordenada por
ta-se ademais de uma rellexão que dá as costas pa1·a o presente ou Afrfü1io Coutinho (edição lançada cm 19SG), de inspiração franca­
se catapulta para o futuro, abstendo-se de estar na JJistóri.a,
- endo"s­ mente eslética e estilística, calcada no modelo do new crilicism
sando suspeitas noções de "nacionalismo", com as quais intenta norte-americano e instituindo o "primado do texto", li-aduz uma
recompor a fragmentada identidade do país, e alardeando uma concepção da literatura como um objeto de estudo mais ou menos
"moden1idade" que reverte cm uenefício próprio. Não raro enclau­ independente, dissociado de outras disciplinas com as quais estive­
surados numa torre de marfim, os lclradqs rechaçam o contágio ra mesclado no passado. Mais ou menos o meslllo, apesar de seu
das manifestações de cunho popular, que apreendem paternalisti­ maior interesse pelo aspecto sociológico, poderia ser dito da
camentc e que poderiam macular seu arianismo, o mais das vezes Formação da literatura b-msilei- ra, de Antonio Cândido (publicada cm
disfarçado de-democracia racial. Em síntese, tendo escapado de se 1959): a reação de Coutinho, cm Conceito de literatura brasileira,
dobrar a uma indag-ação do conflito e da <life-rença, a intelectualidade revela, sem sombra de clt'1vida, uma disputa, travada já internamen­
nfl o reíleliu criticamente sobre o drama ele seu tempo. te, pela hegemonia do podcr no campo Iiter:írio. Ambos os ensaís­
Roberto Ventura, num relevante estudo sobre o clima cultural tas sei-ão os decanos das duas moe.lemas escolas de crítica no Ilrasil,
do século XIX, mosll'.a como os "bacharéis" representaram um cm voga até mais ou menos a década de 70, quando tendências
modo de transição da oralic.ladc para a escrita, cuja difusão entra várias, tais como o estruturalismo e o pós-estruturalismo, vii-ão, ele
cm choque com os valores tradicionais. Na virada do século vai se uma forma ou de outra, contest:í-los.
ensaiando a proGssionalizaç,io do csuitor, sendo a fundação da A escola, ali:ís, é uma das instituições capitais na implementa­
Academia J3rasileira de Letras um sintoma deste movimento rumo ç:i.o de um dinon litcdrio. No llrnsil, a escola ou os órgãos aliciais
à delimitação ela literatura como um ca111po autônomo, ao mesmo incumbidos ela cultura também funcionaram cm clave elitista. A
tempo _que indicia a agonia da "geração de 1870". A obra de José escolarização na Primeira República deu prosseguimento às distor.._
Veríssimo, em oposição ;l de Silvio Romero, conferindo suprema­ çõcs em voga no Império. Os diplomas, tanto os de nível superior
cia ao estético, seria outro indício desta paulati.na legilimação da quanto os elo secuncl:írio, eralll instrumentos que brindavam com
atividade crítica e lited.ria, num movimento que se materializa, prerrogativas uma minoria que tinha acesso:\ educação formal. O
recentemente, com a criação dos cursos universitários de Letras tÍlulo de bacharel sabicbmcnte concedia foros de nobreza e confe­
no país e, nos anos 70, com a formação de cl"Íticos literádos ria honrarias e vantagens a seus possuidores. Havendo no país um
profissionais, mediante a implantação <la pós-graduação nesta extenso contingente de analfabetos, apenas uma pequena fatia da
área. população ingressou na escola e i'ls instituições de ensino superior,
A leitura canônica do Modernismo enfatiza a "fase heróica de <le implantaç:io tardia entre nós, tiveram acesso, fundamentalmen­
22" em relaç:io a instantes precedentes da literatura brasileira (sem te, os jovens dos escalões mais aquinl1oados <la sociedade. Até cerca.
levar em conta que o Modernismo se institucionaliza com o Estado de algumas clécacb.s atr:ís, as antologias que eram utilizadas para o
Novo). Mas, como estou a sugerir, haveria uma continuidade entre ensino do idioma (tipo Carlos de Lact) continham t1·cchos dos
a elite intelectual da gcraçf"lO de 1870, basicamente reunida em grandes escriLores, da mesma maneira como as gramáticas norma­
torno da Escola de Direito do Recife, os decênios de 20 e 30, tivas, após apresentarem as regras do bem escrever, enGleiravam
t
.

'
.

('
i
86 Câ-non
'
um rosário de exceções que estavam v�lidadas pelo fato de terem
saído da pena dos Gan-cts, Herculanos ou Camilos.
Como postula l3ourdieu; praticamente todas as instâncias
cultu.-ais- esta é a suspeita levantada por este ensaio - parecem
Cânon

parece importante traçar este per�u1·so abrangente para se averi­


guar então em que medida este ou aquele texto, este ou aquele
poeta ou ficcionista infringem o padl'ào p1·edominante. Seja dito,
87

em tempo, que este ensaio não pretende dec1·etar que todo texto
ter exercido o papel de legitimadores e reduplicadores da ordem
literário, subjugado por umjaclum, sucumba invariavelmente nas
social existente e, por tal motivo, n�o redundaram em genuírios
garras tenazes do poder. Trata-se- e isto é inevitável neste tipo de
agentes de transformação da sociedade. favorecendo quase sem­
trabalho- de um corte, que mapeia um determinado atalho para
pre o texto e segregando-o nos muros da imanência, a crítica
se pesquisar, em seguida, os casos que discrepam, da linhagem
literária não deu o salto, indo além da leitura da obra. A produção,
caracterizada. E, nunca é demais lembrar, marco as horas de
a circulação e a reprodução dos bens culturais devem ser explora­
acordo com os ponteiros de meu relógio.
das; as esferas que autenticam o objeto artístico são outras tantas
Agora, tendo deixado claro que a an;ílise textual não é por si
faces, talvez complementares, do assédio'_,�o texto. O campo cm só bastante para da1· conta do fenômeno litenírio cm toda a sua
que se inserta um livro, um poema, um conto, u1n 1·omance está
extensão e complexidade - em particular se pensamos em sur­
atrnvcssado por uma rede de relações múltipias e por um intricado
p1·ecndê-lo em sua interseção com a trama social-, cabe acentuar
jogo de forças que a simples aproximação da obra deixa de fora.
que uma abordagem cio texto,· mesmo daqueles canônicos, que
esteja animada pelo mencionado paradigma e que o exponha a
uma diferente maneira de ler já faz emergir um leque de idéias
VI
fecundas para se pensai· a literatura e a cultura b rasileira , as quais
deveriam ser arrematadas, num outro e simultâneo gesto de leitu­
Nas seções pre·ceclentes se acha esboçado um paradigma de
rn, pelo invenLádo elas condições ele circulação, reprodução, legi­
leitura que se acercaria do co1jJus literário brasileiro por um flanco
timação e consumo deste mesmo texto no interior do campo e da
diverso do que tem sido palmilhado por boa parte da crítica. Uma
sociedade cm que figurar. Ou seja: não se trata de atribuir primazia
orientação nestes moldes já implicaria uma maneira de ler distinta, e estatuto de exclusividade à chamada "an;ílise interna", mesmo
de inspiração social, preocupada mais com o discurso e em flagrar
porque, no marco teórico cm que me locomovo, esta distinção
as interseções do litcr,írio com outras formações textuais. Espero
entre "intrínseco" e "extrínseco" carece de relevância, uma vez que
que tenha ficado evidente que é necessário enraizar a interpretação lidamos sempre com textos, que pertencem à ordem das formações
textual no solo da História e que como sentencia ·ª epígrafe de discursivas. Tampouco, penso, seria o caso ele se descartar o assédio
Lentricchia, há sempre algo fora do texto à espera da nossa indaga­ ao texto, sob o provável i-isco de:: se fazer sociologia e não uma
ção. Quer dizer: longe de ac1·eclita1· que a análise interna seja um interpretação social ela literaLura, se é que procede t..,I demarcação
fim em si mesma ou que se baste a si 111csma (esta foi uma jogada
de territórios, quando os domínios e.las c.lisciplinas se acham tão
ideológica), estou convicto ele que o lugar da literatura é a cultura
nebµlosos.
(entendida, confonne o ensinamento de Lévi-Strauss, como con­
Tomo como breve amostragem dessa maneira de ler um roman­
junto de sistemas simbólicos); neste espaço o literário dialoga com
ce como Menino de engenho, ele José Lins do Rego, publicado pela
outras formações discursivas e desempenha um determinado pa­
primeira vez em 1032, uma das obras canônicas do Modernismo
pel, tambéiu ideológico e inextdcavelmentc emaranhado com os
brasileiro, lislada no seu "segundo momento", o dos anos 30,
tent,ículos do poder e com as diversas práticas responsáveis pela
quando se afirma .que a literatura recebeu um tratamento mais
manutenção do cont1·0Je social.
social. Deixo ele belo algumas ciucstõcs menores que começam a
Mesmo que admita que c·ste não terá sido o destino de todos
complicar estes juízos já ton1ados clássicos; existiu antes o regiona-
os textos literários que foral)) escritos no ou sobre o Brasil, me !ismo sertanista na flcç:io brasileira e a produção poética de uma

t
ti'\ ,w;
t,..
f•.
► ' �-
lf•
>
p' ,.:t

w
88 Câ1101t Cânon 89

Cecília Meireles ou na1Taliva ele um Lúcio Cardoso Lidas, respecti­ "beijos quentes". É digno de not:1 o detalhe: [ora de casa, Carlos
vamente, por cspirilllalisla e intirnisla-psicologista, são, a rigor, de Melo é semp1·e o neto do Coronel Zé Paulino, prefeito e
contcmpon'i.ncos ao livro de estréia do autor paraibano - ora, a manda-chuva da terra.
etiqueta "social" parece n;io Mcntar pa1·a o fato de que o espiritual Abandonando o "paraíso" do engenho (e "paraíso", na econo­
e o psicológico não estio infensos ao social e o róLulo de rompi­ mia do livro, conoL'l "pecado", em constrasle com a pureza e
mento, com insistência apegado na testa dos modernistas, se santidade do intcl'Íor e.la casa-grande), o protagonista se mistura
evaporn quando os encade:\Jnos aos que os antecederam, igual­ com os outros meninos. Na scnz;1.la, localizada simbolicamente
mente movidos pelas idênticas preocupações de pintar um afresco num extre1i10 oposlo cm relação ;t c:1sa, pontificam as mulheres de
do Brasil, motivações que, inclusive, permeiam com insistência cor, que trabalham de g1-aça, "com a mesma alcgda [dos tempos]
todo o nosso itinedrio cultural. da escravid;io"; no eito, os cabras, que cortam cana para o senhor
As versões canônicas sobre este romance (e sobre a parcela de terras, cujo engenho se co11funde com seu próprio corpo. Nesta
mais aclamada da obra de José Lins) podel'iam ser sintetizadas da exterioridade aberta, alL'lmente sexualizada e habitada sobretudo
seguinte maneira: literatura de cunho memorialístico, na qual se por personagens negros, Zé Guedes será o mcslre, agora ele
documenta a região canavieira do nordeste e se denuncia uma "porcaria"; a negra Luísa irá sujar a "castida<le de cdança" de
ordem social decadente, com maior ênfase no homem e não Carlinhos, que cont1·airá "doença-do-mundo" com Zefa Cajá. A
apenas um retrato do meio, como fora a tônica do regionalismo estes personagens, paladinos da iniciação sexual do narrador, se
até então. contrapõe a prima Maria Clara, imaculada desde o nome, que
Eu chamaria a alenção para o comprometimenlo afetivo do inclusive evoca a Virgem, por quem Cados nutre um "pegadio" e
narrador pam com o personagem do Coroneljosé Paulino, a quem cujos "olhos limpinhos" n;io elevem conspurcar-se com o amor livre
o protagonista, o me11ino Cados, vê como um "santo", ''justo" e da "canalha cio curral".
"bom". No episódio que envolve tviaria Pia, narrado no capítulo A caracLerização ele Maria Clara se coaduna com a de Tia
18, no entanto, fica patenlc que o se11hor <k Len-as tem dois pesos Maria e com a· da mãe do protagonista ("cheia de pudor e de
e duas medidas: supondo que o Cabra Chico Pereira fosse o recato") - as três s;io autênticos anjos. A nan-ativa se encaixa
culpado, o coloca no tronco; ao saber que seu filho,Juca, fora, o como uma luva numa recorrente Lendência do texto literádo
"autor do malfciLo" ;t mulata, 11ada aconteceu. A passagem, a brasileiro (e do discurso cu!Lural gerado no âmbito das elites),
despeito ela simpatia do naffador-personagem pelo cabra tortura­ que reserva para as mulheres brancas dos estratos superiores
do, abre uma isotopia subtcn-i'inea de lcilura que refrata o ponto uma relação vertical e espiritualizada, recalcando o desejo eró­
de vista que coagula semanLicamenLe o relato e contradiz a imagem tico: no capítulo com Maria Clara, são os concds, beliscando os
santificadora que ele compõe de seu avô. cajus vermelhos, que chiam de gozo. E as mulheres de cor e/ou
Era a brecha que precis;ívamos para mostrnr como os espaços de baixa condição social scr:io objelo de uma relação hodzontal
em J\tlenino de engenho est;io hierarquizados: a casa-grande é, pd­ e carnal.
mordialmente, o local das mulheres (desde a aulorit:iria Sinhazi­ Tal anotação importa na exata medida cm que trnduz as dgidas
nha à angelical Maria), mas também dos brancos (pois aí imperam barreiras de gênero, raça, classe e sexo, encobertas nos bastidores
o velho patl'ia1·ca e seu filho J uca); há o quarto dos santos, por onde dos textos, pondo ;is cl:u·as uma sociedade hierarquizada que estava
se consente que transitem os moleques; na sala c.le coslura as mascarada na antccena con-espondc11Le à dimensão mais epidér­
mulheres fuxicam sobre os outros engenhos; e há a cozinha, reduto mica ela narrativa. No caso do 1·omance em pauta, embaçada pelo
das negras. Saindo ela casa-grande, existem espaços inLermedi:irios, enfoque sentimental e afeLivo com que o narrador apreende o
como a escola e, e111 particular, a casa do Dr. figueiredo, onde mundo do engenho. ?vfesmo a distf1ncia temporal entre nanador
,dite ensina ao protagonista as primeiras letras entre ab1-aços e (adulto) e personagem (menino), que confere àquele alguma pers-
I
I
;1
11: 90 Cânon

l
Cânon 91
�·
pectivà cdtica, não é capaz, de forma cabal, de diluir o envolvimen­
VII
to e a nosLalgia com que é evocado o mando dos coronéis.
f A estória de lvlenino de engenho evolui gradativamente, desde
Quero encerrar com uma nota de caráter pessoal. Até bem
a perda da mãe - com sua conotaç · ão nitidamente edipiana, que
pouco havia um consenso de que o trabalho crítico e intelectual
faz com que Carlos esteja sempre a buscar figuras SL!bstitutas para
devia primar pela objetividade e pela clareza. Pergunto-me se,
recompor a família nuclca1'-, como a tia e o avô - até a ida para a
assim procedendo, não fazemos o jogo do poder. Todo texto tem
escola, com que se encerra a fabulação. Em Doidinho, livro seguinte
seus interlocutores. Entretanto, é possível escrever um texto que,
no ciclo da cana-de-açúcar, Carlos nem sempre será tratado como
não obstante firme uma posição contrária às versões em vigência,
neto do Coronel, pois irá conviver com outros filhos e netos de
terça armas com os adversários sem necessariamente se envolver
outros coronéis, com quem terá que compartilhar as regalias do
cm uma disputa pelo louro de dono da verdade ou pelo poder do
internato, numa escola que reproduz a àu_toritária estratificação
saber. Ao deixar cristalino que o que ficou escrito contém a
social. Voltando à obra de estréia, que inaugui·a o ciclo, vale
parcialidade de minha interpretação - estando, portanto, sujeito
enfatizar que o espaço aí está totalmente hierarquizado - casa­
grande x senzala (ou eito)-, dividindo brancos e negros, homens a uma historicidade, sendo uma fala a partir de uma determ.inada
plataforma e lugar, contendo inevitavelmente juízos de valor e
e mulheres, demarcando os territórios da pureza e da porcaria, a
sendo mais um suplemento de leitura, que intenta dotar nosso
prisão e o pamíso, o mais sagrado e o mais profano. A trajetória
entendimento do objeto focalizado de uma plural e multifacetada
do personagem vai se contagiando de sexualidade à proporção em
complexidade - espero ao menos neutralizar a "autoridade" e a
que elç se afasta do centro patriarcal e familiar, que se acha em
"sapiência" do analista e desfazer o mito da neutralidade, já que
crise.
nenhum discurso é inocente.
Uma interpretaç;"io como a proposta, cartografando o desenho
Abri este ensaio lembrando um escrito do bruxo Machado de
hierá1·quico do cspaç_o e ela sociedade representados no romance,
Assis, que acena, entre outras coisas, para o seu. decantado ceticis­
faz espoucar tópicos relacionados com gênero, raça, classe e sexo, mo. Sou descrente, como aquele relojoeiro, no que diz respeito ao
que parecem haver escapado ao olhar das leituras canônicas e que
raio de alcance político da atividade intelectual em nossos dias -
têm pertinência por _levantar questões a respeito da compacta
talvez ela tenha que se efetivar com uma intervenção mais aguda
ordem social brasileira. Não sei até que ponto se poderia asseverar
ao nível da praxis. De qualquer modo, estou convencido de que é
que o ficcionista, a quem se atribui "um grande interesse social
possível uma atuação microfísica e, embora circunscritos à esfera
regionalista" e uma "atitude crítica" para·com o universo focalizado
das idéias, podemos solapar, mesmo que milimetricame"nte, o
em sua obra, está problem. atizando os valores que minha análise
discurso do poder. Um grande amigo meu acha que uma crítica
procurou explicita1· ou, ao invés, está s.ubscrcvendo, e com prous­
como a que sugeri nestas páginás não tem necessariamente nada
tiana saudade, as fronteiras que seg1·egam e discriminam os indiví­
de política. É bem possível que ele tenha razão. Seja como for, ela

(
duos. Tal leitura mereceria ser acompanhada não só pelo exame . me parece mais politizaâa do que uma que cisme em apontar
de outros LexLos de Lins do Rego e de contempo1·âneos seus, como
influências de O sertanejo, de Alencar, em Os sertões, de Euclides da
também deveria investigar, entre outras coisas, a 1·ecepção de
Cunha.
Menino de engenho entre os pares e junto à cdtica, sua canonização Mas, retomando Macha90, os relógi.9� des_te mundo - baten-
ou a participaçào do r.omancista de Fogo morto nas instituições de
/ �o, quem sabe as badaladas da_dijer(!1]ça - nã<? m�cam � mesma
seu tempo. Recordemos que ele chegou a filiar-se ao Integralismo,
cuja ideologia curupira, autq_1;iLária e "nacicfüalista", é sobejamente / �Felizmente. ·
conhecida.
�-

··• , 1
92 Cânon

Bibliografia

1. EAGLETON, Teny. Litermy T!teo,y. Minneapolis: University ofMin­ Desconstrução


ncsota P1·ess, 1983.
2. JOHNSON, Randal. "LiLcrature, culturc and Authoritarianism in
,· Ilrazil, 1930-1915." Worlcing Pape1-s, Washington, D.C., The Wilson
Luiz Fernando Medeiros de Carvalho
Center, 179, 1989.
3. LENTRJCCHIA, Frnn & MCLAUCHLIN, Thomas. C1·ilical Te1,1isfor
Litem1y Study. Chicago: Univc1·sity of Chicago Press, 1990.
4. MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-1945).
São Paulo: Difel, 1979.
5. NEEDELL, Jeffrey. /\ Tropical Bel/e Époqúe: Cambridge: Cambridge
University Prcss, 1987.
6. SEVCENKO, Nicolau. Liternlum como Missão. São Paulo: Ilrasiliense,
l. 1983.
7. SÜSSEKIND, Flora. "Nas suas costas estava escrito- sapateiro." ln:
__._. & VALENÇA, Raquel. O Sapateiro Silva. Rio de Janeiro: Fun­
dação Casa de Rui. Ilarbosa, 1983, pp. 3-105. Definir desconstrução seria antes de tudo um gesto contraditório.
8. __ . O Brasil não é lo11ge daqui. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. Porque assinalaria no fluxo do dizer caractel'Ísticas negativas do
9. VELLOSO, Mônica Pimenta. Os Intelectuais e a Política Cullural do perfil do definido. Porque apontaria para aquilo que a desconstru­
Estado Novo. Rio de janeiro: CPDOC, 1987. ção não é, não quer e não pretende: sc1· compreendida como um
10. VENTURA, Roberto. Estilo fropical. São Paulo: Cia. das Letras, conjunto de caracLerísticas ou t.-aços i<lentiCicáveis que permitiriam
1991. o reconhecimento, desde o nome, de algo semelhante a um con­
ceito, ou algo com cadte1· permanente é sobre o qual se pudesse
sempre retornar e assegurar a identidade a si, o ·próprio dela
mesma.
Definir desconstrução poderia ser a tentativa de dar conta da
atividade múlLipla de produzir marcas que se inscrevem por um
)
lado, e por outro, se auto-apagam. É da natureza da atividade
desconstrutiva carregar em si esse auto-apagamento.
Somente na contracol'l'ente do dizer, na contradi(c)ção do que
) se escreve, ela poderia ser comentada, ou seja, poder-se-ia dizer que
o que se afirma, por conseqüência se apaga (daí a contradição) -
)
a definição do termo sendo portanto uma atividade de auto-apaga­
..\ mento na medida em que a desconsLrução traçaria em tudo o que
opera a impossibilidade de fechamento e de totalização e, portan­
to, de formalizar numa definição o ser do nome, dos constituintes
do nome em si, ela deCinição cm suma do termo desconstrução no
que este encerra de pronto propriedades definitivas, isoladas e
enfeixadas num limite semântico, tópico, contextual, preciso e
fixável.

)
•·
� �;
,,
,.
-i�r.
' Desconstruçc1o 95
' 91 Desconstruç'üo
não fosse já estaria reapropriada na economia do mesmo, como
Mas a palavra existe. Na superfície dos inúmeros textos pro­ obra e como totalidade previsível ele Livro. Escrever sobre Derrida
duzidos e na economia de recepção que recorta e elege o termo nessa perspectiva seria recair na espccularidade metafísica da obra
l). desconstrnção como resultante e cristalização identificadora de um com suas colunas matriciais de referência (sua produção inicial, sua
rigoroso trabalho de crítica de modelos clássicos e de diferentes "origetn").
práticas de linguagem, este trabalho passou a ser chamado por este Os demais livros e toe.la a produçflo subseqüente seriam eles- ·
i' nome, desconstrução. Para ser compre .endido e para ser domesti­ dobramentos desse c01"Dunto orgânico e datado. Sendo assim a
cado. interpretação ela obra de Dcn-ic.la, sobre Derdda, constituiria a
A palavra, portanto, existe na sua dimensão de traço que surge especularidade de sua própria citaçüo. A citação, quando apanhada
a partir de um processo de repetição de uma prática estranha aos p�la especularidade da linguagm, pode fixar-se na consumação
F cânones da ensaística filosófica em geral. Sarah Kofmanjá aludia
ao caráter, fazer filosofia:
aut01·al e recuperar a identidade do próprio. Toda citação de
fragmentos da obra de Derrida repetiria o traço, apagando-o como
força e instituindo-o como signo de um novo centramento: a
Não é eslra11Jw ver nm.ascer angústias arcaicas à leitura dos esa-ilos de 1·emissã9 à obra de referência, o tornar-se obra de referência.
1: Jacques Denida: de vê-los 1·ejeilados em bloco, julgados incompreensíveis,
1 ilegíveis, exilados. Como Sócrates, ele também atópico, indivíduo de espécie Tomemos a página de dentro de uma edição de texto de
1 demoníaca, alguns ama1·iam condena,· Deriida a beber venéno. Angústias Derrida (por exemplo, L'aulre Cap, edições Minuit, 1991). Ali está
diante da inquietante estranheza da esaila: diante do duplo e da repetição a lista em paradigma, colunas do Livro, mostração do que se pode
1·1 ler ali dentro, do que as obras oferecem. Os títulos engajam o leitor
01iginá1ios, diante dos "espectros". 1
na busca da compreensão; no afã de percorrer todas as unidades -
EsCl"ever sobre a desconstrução é também corresponder à livro ali clencaclas e desejadas, o leitor quer encontrar o fim, o te/os
expectativa de respóncler �t pergunta que subjaz: o que é descons­ do entendimento ela obra e do seu autor, um escritor "difícil". O
trnção? E na esteira dessa, outras questões: Há um caráter siste­ nome Dei-rida consolida o selo que autentica o. todo da obra. Pode
mático na desconstrução? Alguma consciência afinal? Que tipo de ser a obra na totalidade quantitativa de seus títulos surgidos ou um
prática este nome anuncia? f: ele suficientemente adequado para simples ensaio tornado opúsculo, Den-ida e seu filho-texto passam
dar conta do que suge1·e e anuncia? A propósito, qual o lugar do a objeto de referência, constituem-se na referência por excelência,
léxico representante dessa prática e suas subjacências, seus termos num modelo para se tentar um discurso sobre o novo, a partir de
correlatos? Que vinculações disciplinares ele convoca? Seria a uma nova abordagem, uma "aplicação" diferente. Só que por aí o
desconstrução portadora de um léxico próprio e uma sintaxe velho Hegel ressurge: pela postulação de uma nova tese e assim
específica com a finalidade de produzir uma. técnica de citações e sucessivamente.
comentários, e portanto estaria ela no âmbito de uma teclme? Para tal perspectiva de leitura a obra de Derrida reveste-se do
Justamente esta compreensão seria o perigo para uma tarefa co1pus platônico . .À. La! fOncepção de livro e de obra, Derrida
de desconstrução: o de se tornar um co1-Dunto disponível de oferece a estranha e inquietante disrupção da escrita, sua ene1·gia
procedimentos regulamentados, de práticas metódicas, de cami- aforística, transformando o cmjn1s em corpo sem partes próprias
11hos acessíveis. nem hegemônicas, constituído de enxertos; sem corpo principal.
A palavra nos chega e retenhâmo-la na sua dimensão apare­
cente de algo que surge, suscita coment;,írios, mas nem por isso se A lógica do le:xLo é alógica, lógica do grifo ou da enxe,·tia que apaga a
deixa comprometer com a formulação atribu'ída .a ela e que inter­ oposição dofora e do dentro, do 111es1110 e do outro. 11 operaçâo textual é aquela
preta a sua perfo.rmance. A produção de Jacques Derdda se de uma enxertia genera.liz.a.da cujo movimento não mais tem começo nemfim
absolutos. 2
caracteriza, pela transformação, pelo escape a qualquer centramen­
to, pela organização "en abime" dos seus enunciados - se assim
''°t-: ' �r.
) •\.
ó�

•• 96 Desconslruçi'i9 Desco11slntçrio 97
'
O trabalho de texto, assim, para além do corpus, seria deixar destinado, singularmente dedicado a alguém, freqüentemente ao
vir a alteridade naquilo que ela tem de ultrapassagem do especular, amigo, homem ou mulher, lo,ngínquo ou próximo, vivo ou não,
de retorno à identidade. conhecido ou desconhecido. As vezes mas nem sempre um poeta
Em 1987, Dcrrida publica Psyc!té, lnventions de l'aulre, livro que ou pensac\01·, íilósofo ou escritor. Às vezes mas nem sempre alguém
reúne os escritos publicados no curso elos dez últimos anos, ex­ que atua em cena nestes mundos que chamamos a política, o teatro,
cluindo o conjunto ele escritos consagrados à instiLUição universi­ a psicanálise, a arquiteLUra." Deste conjunto destacam-se dois
tária e ao ensino de Ciloso(ia que apareceram num volume textos: o primeiro por apresentar uma siLUação epistolar que
separado, intitulado Du Droit à la philosophie. No prefácio, os testemunha o envolvimento de Dcrrida com os comentários à
escritos ali reunidoss são chamados de dissociados, separados, palavra desconstrução (LeLL1·e à un ami japonais), que mais adiante
"distraits". Dcrrida joga com esses dois aspectos implicados no ser�í. objeto de mais detalhamento tendo em vista que concentra
livro: a separação e a união que a unidadc�livro possibilita. um aspecto de avaliação do próprio autor sobre a recepção de sua
) Para escapar à estrutura fechada da noção de livro enquanto obra na perspectiva prismatizada pela palavra desconstrução. O
unidade espacial limitada, ele anuncia que os referidos escritos se outro texto foi escolhido por Derdda para abri1· o volume de 652
marcam em suaformação, entendida essa palavra como "movimen­
) . to que engendra dando forma ou (igu1-a que congrega uma multi­
páginas porque contém o programa da formação entendida como
configuração no deslocamento. Situado cronologicamente a meio
plicidade móvel: a configuração no deslocamento. Uma formação caminho da produção dos demais escritos (redigi<lÇ> em 1983 e
deve avançar mas também se avançar agrupada". Derrida procura proferido em 1984), tal aspecto serve de estímulo pfi-a a metáfora
jogar �om este paradoxo: como dar conta do aspecto congregante implicada no título do ensaio Ayché, Invention de l'autre). Derridá
e do dispersivo, si111ult:111eamente, cm se tratando de escrita ensaís­ joga com as várias possibilidades semânticas do nome Psyché,
) tica que não se deixa ap::rnhar pela datação histórica ou pela ordem sobretudo com a acepção de psyché que indica "grande espelho
\
do discurso interpretativo? móvel montado sobre um chassis com pivôs graças aos quais
Dcrrida prossegue seu prefácio observando que a formação - pode-se incliná-lo ;, vontade e se olhar em pé" (Dictiormaire Petit
por uma lei explícita ou não - deve se espacejar sem se dispersar Robert, p. 1560). Derrida põe em jogo esta significação com outras
demais. "Se se (izesse desta lei uma teoria, a' formação destes previsões, a noção "grega de alma" e a noção de "conjunto de
escritos procederia como uma teoria dispersa (théorie distraite)." fenômenos próprios considerados como fo1·mando a unidade pes­
Neste sintagma instigante o termo "distrait" mantém em francês o soal". Derrida se arrisca de saída na formulação desse título e na
jogo que para Derrida é fundamental: o de insnição e apagamento escolha do ensaio com este título para abri1· a série congregante -
na pr6pria tensão articulat6ria do prclixo "dis" com a base "trait". de ele próprio recair numa estrutura remissiva especular de cu1iho
Assim proposto o nome paradoxal para designar esse conjunto metafísico a partir do par opositivo e complementar sensível/espi­
de escritos, ele desdobra um coment,írio sobre o próprio sintagma ritual, inteligível: o espelho e a alma.
"Théorie dist1·aite" oferecendo a possibilidade de se pensar aí a Mas o risco calcula-se i10 traço da metáfora do espelho móvel:
teoria descontínua ou o procedimento discreto da série. O aspecto tal psyché parece girar em torno do seu próprio eixo para refletir
J da_ linearidade cronológica está ressaltado, mas também o aspecto à sua maneira os textos que o precederam como os que se seguem.
do retorno sobre o mesmo ponto. Assim ele pode escrever: "os Do mesmo modo, um espelho móvel Cinge 1·eunir o livro: naquilo
textos se seguem ( ...] se encadeiam ou se correspondem entre si que lhe parece ser imagem ou fantasma.
apesar da diferença visível de motivos ou temas e da distância que De que espécie é esta lógica metafórica? O discurso do prcfáci�
separa os lugares, momentos e circunst..fi.ncias." se valeria da metáfora do espelho para dizer que no jogo de
Derrida indica que escreverá sobre nomes, sobretudo nossos remissões entre os ensaios, em suas coJ'l"espondências haveria um
próprios: "cada um desses ensaios parece com efeito consagrado, centro de ancoragem para o qual tudo se dirigiria; a metáfora
"õi
i
r
"
t•
.-1_l

98 Desconstrução Desconstrução 99
..,.
.
1'
I• estaria a serviço do jogo narcísico do espelhamento de urna autoria ordem do calculável. A recepção pode esgotar a surpresa nas
{,, dispersa que encontraria sua reunificação na construção do "eu" abordagens do texto. Seria nesse caso a procura da invenção do
(moí) que o espelho enquanto metáfora cio livro ton1aria aparecen­ m
· esmo
te? Pelo estatuto da metáfora na Poé�ica e na Retórica de A_ristóteles,
sim. Naquele regime de uso a metáfora está subordinada' ao . A invenção do outro não se opõe à do 111es1110. Suá diferença assinala
estatuto da unívocidade; a metáfora situa-se na dimensão de uma uma mdra sobrevinda, em dfreçc!o a esta outra invençcio a qual nós sonhamos,
polissemia: controlada pela hierarquização do sintático ao semân­ . a do _totalmente outro, aquele que deixa vir uma alteridade ainda inanteci­
tico. O jogo só é possível com o co1_1trole de suas regràs ditadas a pável e pela .quàl ne11Jium horizonte de expectativa aparece ainda pronto,
pa1tir de _um centro disciplinador: o sentido e a referência claras. . disposto, disponível. Entretanto é p1·eciso_prepamNe, po1·que para deixa1·vir
'ti o oulrn, a passividade, uma certa espécie de passividade 1·esignada pela qual
Neste prefácio e nos textos que se lhe seguem; a metáfora corre
.tudó.vol_ta ao 111esmo não é boa estratégia. Deixai· vir.o outro não é da ordem
o risco de se dispersar. Um espelho móvel fing�· mostrar o livro da inercia disponílÍel à qualquer coisa. Sem dúvida a vinda do outro, se ela
enquanto im�gcm de reunião. A lógica de sua mobili9-ade é a de -deve pennanece,: incalC1úável e. de m11a ce.rta maneira .aleatória (depara-se
produzir imagens <lesconce1·tantes cio "eu" que jamais se encontra com _o outrn no reencontro), se subt1·a"i. ·{], toda programação. Porém, esta
1·eunificado numa instância narcísica da citação d� si ou de um aleató,ia do outro deve ser heterogênea ao aleató,io integrante num cálculo,
lugar. de exposição de si absólutamente administrado pelo dizer · como naforma indecidível pela qual se medem as temias dos sistmiasJonnais.
lógico·de uma demonstração, do tipo aristo.télica. A metáfora do .Para �l,ém de todo estatuto possíve� esta invenção do totaluiente outro, eu a
espelho �nóvel antes de _constn.iir nos textos do livro a imagem .chamo ainda invenção porque nela se prepara, nela.se Jaz passo <kstinado
devolvida a si mesmo, especularizada - imágem de um "eu" por ·a deixar vir o O!,Llro, invenir o outro. A invençc!o do outro, advento do outro,
não se const,·ói ce,·tamente como um ge,iilivo subjetivo nem como um-genitivo
fim ree11contra�o no jogo e.las remissões_:._ abre cami_nho para o
objetivo,. mes11tÇJ se a invençc!o vem do (!Ut1·0. Porque_ este, desde então, não é
trabalho metonímico de espelhamento do fragmento.. Cada texto , · .nem sujeito nem objeto, nem um "eu" (moi), nem uma consciência, nem um
é fragmentado de um todo jamais encontradq na unidade do Livro im::onsciente. Pref,a.rm�se f1àra esta vinda do outro, é o que se pode chamar
fingido pelo.espelho móvel: "psyché". Em sua estrutura aforismá­ -de desc·oristrução.3
tica a metonímia arruina qualquer pretensão de.totalidade.
Se o .trabalho do prefácio ao livro.Psyché. fo L-.orientado no Podemos dizer que · o prefácio de Psyché, o ensaio "Psyché:
· sentido de pensar a especularidade da linguagem para além de seus l'invention de l'autre" e -o texto "Lettre à un arni japonáis" são
limite� possíveis, escavando na formação me�afísica a poss.ibilidade textos exemplares da "resposta'' às "tentativas de Teapropriação da
de advento_ da altericlade, tal proposta,. no entanto; não'coincide estrátégia·-desconstrutiva: ós três apontam para o caráter proble­
com a prática de recepção dos textos anteriores à recolecção mático <lo termo desconstrução. Então vamos esmiuçar a formação
intitulada Psyché. Este livro é de alguma. forma resposta (assim
como a carta ao professor japonês é o paradigma da res.posta) à
tentativa .de encen·ar os textos· da <lesconstrução na economia do
e fraqueza·. Vamos <!º
do vocábulo e acompanhar o seu·horizonte de expansão, sua força
léxi'co registrado fora do co11texto de uso.
Vamos:à'-mornda do vocábulo: o dicionário. Vamos arrumar a rede,
r
mesmo, ainda que seja"n lidos· pelo prisma da invenção .. Como a gra-de Elos est'ikmas historiais constituidores do termo· descons­
invenção aplicada-a outros.contextos de estu,dp. Aplicação, desdo­ t1·ução. Desta fo n11a pas-sn·rcmos pela possível e talvez precária
bramento de uin dispositivo técnico-inventivo que, .por. analogia, c0nsistê nci._t iuevi ta\'cl I ncnte-dada _pela etimolo_gfa.
pode pro . jetar-se em outro-s campos .discurs_ ivos. Mesmo a prática O Petit Robert i:eg:istra não a palavra- mas-0 termo que1he·serve
:·citaciomüde-fragmentos de textos,de.Den-i.cl,a ii1co1Te nessa remis- de base: -eonslruction, cio latim conslructio que _pr.ovérn de construere,
são ·especulai:.·. ao; engenho inventivo.. A.:margem,al�atóda.que a que por.sua.Yez-remete a cor1struire, que provém de struere (= erguer:
. ''.invenção". do texto, de_ Derdda._ pudesse oferecer. permaneceria st-1·uo, is, ere, st,ruxi, sti:uctum-} dispor cm pilhas, em .camadas,.
homogênea . ao _cálculo ,da recepção dos textos,. pei•m�meceria na empilhar, erigir, co·nst-ruir, edificar, trama.1·, maq uinai·. Os termos

.t.
�r
\
100 Desconsl1:uçiio Desconst1'11çào 101
y
construction e co11sl1-ui re têm como antônimos démolilion, desfruclion. dadas porJacqucs Dcrric.la a propósito dos vários modos de definia­
Constrnir uma palavra, 01·ganizar um enunciado· dispondo os e criticar a estratégia. Derrida sempre esteve interessado na des­
elementos (pabvrns) segundo uma ordem determinada (regras, construção <la desconstrução, ou seja, em escapar ao modo histó­
nomes). "Construir uma f rase". Antônimos: desfazer, inverter, rico de neutralizar a força do seu trabalho num conjunto de
demolir. procedimentos que recebe este nome desconstrução, agora com
A palavra desconstrução (déconstruction) não se encontra no um passado rico de remissões.
elenco dos antônimos. Ela devel'ia entrar como col'!'elato de demo­ Assim quando ele escreve sobretudo Psyché é para demonstrar
lição. esse caráter saturado que a recepção insisLc.,-em impdmir como
t;
No que tange ao uso freqüente dos vocábulos, o termo é efeito de leitura. Como se pela repetição do .termo ou <le aparentes
singular, não aparece no Petit Robert. Vejamos ainda o regime estratégias os enunciados deixassem transparecer a mesma estru­
semântico do prefixo de- (elemento do latim d�s- ausência que tura, a configuração de um monumento já acabado e portanto
. indica distanciamento, separação, privação, ausência). No elenco historicamente datado.
dos vocábul�s este prefixo não se associa à construclion. No entanto Os textos mais recentes de Derrida abalam o edifício da
a riqueza semântica do prefixo abre possibilidades de compreen­ saturação discursiva fazendo remissões de toda espécie na tentativa
der. a palavra insólita: déconslruclion. Insólita mas não nova, neoló­ de ton1ar não saturável a quantificação datada de seus escritos.
gica. Derrida repõe em circulação a palavra desconstrução, em Concentram-se no comentário do comentário, no comentário à
novo contexto e com efeito inédito em relação à inserção original recepção do comentário. Intensificam-se as polêmicas que se des­
do termo, registrad_o pelo dicionái'-io do filósofo Littré. dobram·num jogo labiríntico. A surpresa aumenta quando Derrida
A remissão ao termo não implica entretanto tentativa de comenta Den-ida: vai-se alargando a pi-ática da desconstrução. O
_ buscar nesse nível os [unclamentos esclarecedores de uma prática comentário à assinatura Derrida, partindo de dentro, ·não suscita
inscrita em algo oculto mas facilmente decript,í.vel através dos confessionalismos ou jogos previsíveis de expressão da subjetivida­
indicadores semânticos do diciomí.rio, que dariàm acesso a uma de. Antes, aqui e ali, vão acontecendo irrupções na escrita de um
hermenêutica dos processos de composição das palavras. A procu­ outro "eu" fragment,frio que revela a alteddade radical em relação
ra da etimologia nesse caso se comporta como propedêutica da sobretudo ao Ocidente.
disseminação: nem mesmo no nível dos constituintes mórficos o
procedimento analítico encontra o caráter totalizante (a parte pelo Estmngefro sou fJorque não sou nem Americano - do No1·te ou do Sul
todo) ele uma explicação definitiva e fechada. Nem o dicionário é - nem Europeu do Norte ou do Sul. Eu não sou propriamente Latino. Eu ·
uma estrutura fechada, n�m o vocábulo, o guardi�10 da origem no nasci na África e eu vos assegtll'O que dela 111eficou alguma coisa. 4
dilaceramento de suas partes. Por outro lado, na força do prefixo
di.s- indicam-se possibilidades de atuação sobre uma base (separa­ [ ... ] eu que venho da outm 11u11gem, senão de outra ponta (de uma
111a1gem q1ie 11üo é sob- rcl-udq__ nem francesa, 11e111 1!111'0/Jéia, 11e111 lalina, nem
ção, distanciamento, privação ou ausência) em relação a algo dado,
cristã). 5 .
erigido, ereto: o struclttm. ·
. O prdixo prenuncia o trabalho da metonímia abrind _o _ o . .
Como anundamos antcriorá1ente, vamos deslacar do livro
-1
vocábulo para a série, a _dispersão, a errância.
Psyché, o seguinte texto fundaó1ental pam deixar passar o trabalho
. A desconstrução j;í existe não só como palavra historicamente
da desconstrução. Nesse caso trata-se do paradigma das respostas
datada.(De lçi. Gm111matolog-ie, Minuit, 1
_ 967), mas como amontoado
dadas ao que chamamos _de saturação discursiva da. recepç:1o.
estratificado de ci_tações em inúmeros ensaios ,posteriores. Já se
Trata-se de um testemunho epistolar ("Leltre à un amijaponais")
pode fazer a história do nome e da 1·ecepção de sua es.tratégia. Por
no qual um "eu" se inanifesta não para concentrar sobre si a
isso estam_os interessados em contextualizar as dife1·entes respostas
unidade especular ele uma formação subjetiva - o "cu" Derdda -
,�
,r::

••
•},
102 Desconsl1'UÇ('1o Desconstrução 103

mas para tornar mais est1-a1Jha ainda a co1we1·sa entre "estrangei­ Em outro passo ela carta ele informa ao leitor japonês que
'· ros" a prop6sito de algo "unheimlich", a desconstrução. a palavra descoüslrução surgiu pela primei1·a vez no ensaio De
.
,. A carta ao islamólogo japonês, To.shihiko Izutsu, segue o
gênero da entrevist.a (."entretien") heideggeriana porque con�ém
la Grammatologi.e, 1967, e que o termo ganhou relevância que
escapa à intencionalidade imediata no contexto daquele ensaio.
respostas a possíveis perguntas elípticas no texto. Em ambos os Tratava-se ali de traduzir e adaptar aos seus propósitos as pala­
1' casos perguntador e destinat.írio são japoneses. No contexto do vras heideggerianas "Destruklion" ou "Abbau". Mas Derrida
"entretien" hcideggeriano, tratava-se de explicar a um japonês a observa que em francês o termo "<lestruction" implicaria visivel­
palavra. "Dasein". No contexto da carta de Derrida ao "cél_ebre mente uma aniquilação dist.ante do Lipo de leitura proposto..
islamólogo japonês" há um mot.ivador extratcxlual, uma·conversà· Procurou então sabei· se a palavra chegada a ele de modo tão
na qual Derrida escreveu sobre a palavi-a desconstrução·: "eu .pro­ espontâneo tinha um caráter vernacular, em bom francês. E a
meti.ao senhor algumas reflexões - esquemáticas e prelimínares­ encontrou no Litt-ré. A consulLa ao LiUré é sintomática de uma•
sob 1·e a p. alavra ('desconstrução')." A carta é o resultado· do enga­ estratégia de distanciamento e de diferenciação cm relação aos
jamento possível e concreto na realização dessa promessa, atenden­ usos 1·egistrados, por exemplo, no Petit Robert ("É preciso dizer
do a todas as condições-de sucesso desle ato -·a promessa-, na que a palavra era de uso raro, praticamente desconhecida .na
acepção dos Speech Acts. Ema'is aind;'.l: explorando éultrap�san-· França"). O Littré é um dicion.frio antigo, demodé, positivista. E,
do a detenninação original do conceito, inventa o performativo da curiosamente, o enfoque do dicionarisla associa-se por sugestão
promessa, ou a- promessa enquanto perfonnativo, apróximando-a com a estratégia, associação que pareceu feliz num primeiro
da vivência- da palavra no interior. da ti-adição judaica. Prometer. momento, dado que o enfoque lingüíst.ico achava-se associado a
não é .esgotar, mas abrir caminho at.rav�s de, criar passagem, ir um enfoque maquinísLico.
além da aporia, ou seja, do impasse.
O motivador inlcrno da cart.a é a necessidade·de traçar prolegô­ Permita-me citar alguns artigos do Lillré. Déconstruction/Ação de
menos a uma· tradução possível da palavra de.sconst.rnção emjaponês. desconstmi-1/Tenno de gramática. Deso1ganfr.ação da constnição das pala­
E de '.'tentar uma determinação ricg-. itiva das significações ou conota­ v1·as mmta frase. /Déconslruirc/ 1. Separár as fartes de um lodo. Descons­
ções a evit.ar se possível". Derrida formula a pergunta: o que é ·que a truir uma máquiua para transportá-la al!tw·es.
desconstru��o não é? Ou melhor, não .deveria ser? Em ambas as frases
sublinha a palavra "possível" e "deve.-ia". E deixa claro ao professor Derrida deixa claro que a afinidade com o que ele queria dizer
que· a palavra desconstrução não é adéquada em franéês a alguma não concernia senão metaforicarnente com modelos ou regiõçs de
sentido e não com a totalidade daquilo que a desconstrução pode
significação clara e unívoca. Quando se refere ao francês o faz
assinalando aspas. Em seguida tece considerações inleressantes quan­ visar na sua mais 1-adical ambição..
to ao valor de uso do termo e sua inserção em contextos diferentes. O texto da carta cl 1ega deste modo ao seu primeiro axioma
denegativo: a desco1ütrução não se limita nem a um modelo
Há 11.a "minha" língua ("ma" la11gue), um sombrio prnúlema de lingüístico-gramatical, nem mesmo a um modelo semântico, muito
tnidu.ção entre o que se pode visar aqui ou l.á, sob esta palavra, e o uso mesmo, menos a um modelo maquinístico. Fica aqui a ressalva_ de que a
o recw'So desta palavra. Efzca desde já .claro que as coisas mudam de um desconstrução não se presta a um uso a pártir de uma concepção
conlexlo.a outro, utesmo em francês. 6 tecnicista.
Der.-ida afirma enLão que o valor de uso do termo,já que a sua
Éínteressante,101..ar o efcito-ue estranhamento causado pelas prática era rara, deveu-se à det.erminação pelo discurso que foi
aspas. -Pelas aspas, a gJ,1.Cia desse "eu" que .desloca fronteiras, então tentado em ton10 e a partir de De ·la Gra11�matológie ..É-este
espelho móve}, dcstraçado. valor de uso no contexto ela sua produção ensaístici que ele 'deseja
r�
'"1,
...,r,,
,. .).\�

;;;I · Desconstruçiio 105


"i:
n,
.( 101 Di:sco11sl ruçtio
O que a desconsti-uçrio 11lio é? mas tudo!

'') precisa,·, e não qualquer sentido pi-imitivo, qualquer etimologia O que é desco11struçrio? n{l(/a/ 1º _,
resistente à estratégia contextual.
.i
O enfoque principal da carta recai a partir daí sobre a neces­ A palavra cm si não tem um definido, urn traço próprio, é
sidade de não se imprimir ao tci·rno desconstrução um caráter destraçada, retirada <lo seu traço, destratada, "distraite", o seu
valor ganhando peso relativo cm função de sua inscrição numa
í negativo, ainda que tal aparência sej_a difícil de apagar. E Derrida
cadeia de substituições possíveis, ou contexto. Através de peque­
vai concluindo de modo surpreendente e coerente com sua lógica
1

estranha, apontando para o caráter substitutivo da palavra descons­ nos comentários e demonstrações r;ípidas vai despojando a
trução, enxertável em contextos diferenciados, neste aspecto cor­ palavra desconstruç;i.o de qualquer a jJriori institucional de sa­
ber. O caminho aberto para o nada nomenclatura] é o processo
�; roborando a tese de Austin da ausência de significação de um
vodbulo isol�do. de apagamento da intencionalidade classificatória, taxionômica:
movimento da percepção e produção de traços constituintes
É por isso que esllt palavra, /Jor si só ao menos, jamais me pareceu passíveis de serem apropriados pelo leitor. Diante desse quadro
a estratégia desconstrutora anuncia o impasse. É da natureza
·1 satisfatória (mas qual palavm o é?) e deve sempre ser cfrcunscrita por um
discurso. 8 desta estratégia tal anüncio. Estabclecic.lo o impasse, começa-se
a pensar os pólos constituidores do paradoxo. Por exemplo, na
A partir desse ponto, Dcrrida chega às pi-incipais afirmações sua cdtica ao método - de como a desconstrução não pode ser
), da carta: transformada em método -, Derricla chama a atenção para o
caráter tecnicista ou instn1mentalizador ele tal concepção. Ora,
Desta forma, a/1esa,· das a/Jarências, a desconstrução não ·é nem uma ao colocar em crise tal concepção tecnicista de método, Derrida
análise nem uma crítica, e a traduçii.o deveria levar isso em conta. Não é esgarça pela via ela contradição um dos aspectos relevantes da
uma análise, porque a desmontagem de uma estrutura não é uma 1-egi-essão crítica de Paul c.lc Man a Heidegger.
em direção ao elemento simples, em dfreçlio a uma o,igem indecomponível.
As reflexões de Paul <le Man comentadas por Derrida se
Estes valores, tais conw os de análise, são eles mesmosfilosofemas submetidos
à desconsfruçiio. encaminham na direç,'io de não subsci-evcr Heidegger naquilo que
...
[ ] o seu texto, sobretudo Was heist Denken? (O que significa jJensar?)
tem de dissociaç;io hierarquizante entre pensamento e técnica:
Eu diria o mesmo parn o método. A desconstnição nlio é um m'étodo e
não pode ser transformada em método. Sobretudo se se acentua nesta palavra
a significação f,rotocolm· ou tecnicista. ·É verdade que, em certos meios J-Ieidegger aí assinala o 1-igor de uma exterioridade essencial e de uma
(universitários ou culturais, f1enso pa1"ticulannente nos Estados Unidos), a hierarquia implícita ent1·e de uuw fJa1·te o pensamento como me1nó1·ia e por
"metáfora" tecnicisla e metodológica que pai·ece .necessa,iamente ligada à outro lado a ciência mas também a técnica, a esc,-ila e 111es1110 a literatura. 11
palavra "desconstrução" pôde seduz.ir ou extraviar. Daí o debate que se
desenvolveu nestes mesmos ambientes: a desconstrução pode lornai�se uma Ainda insistindo sc1_i:1pre nas armadilhas que o uso do termo
metodologia da leitura ou da inte,p-retação? Ela pode deste modo se deixar desconstrução sobretudo nos Estados Unidos pode conter, Derdda
,·eaprofJ1ia1· e domeslica1· f1elas instituições acadêmicas'? escreve,ª um só tempo sobre as instituições domesticadoras de
_,
saber e sob os impasses na obra de Heidegger. Através do anúncio

t
Derrida abre o cami11ho para pensar a "desc011strução" através da disjunção pensamento/técnica, Derrida pode então situar a
do paradoxo de suas formulações. É na situação do impasse - de problemática do uso ela palavra desconstrução dentro de uma
aporia - proYocado pelas formulações que não se situam em "política" específica, a diferença entre memória pensante e memó­
nenhum lugar demarcado, sabido ou controlado por disciplinas ou ria interio,·izante que implica uma leitura e.Ias concepções de .Pau]
instâncias de saber - é nessa aporia que ele dá a pensar o que de Man e Heidegger.
"seria"� desconstrução: um nada.
» 106 Disconstmçãó Desco11slnlÇã0 107

Seja dito 1-apidamente,· se se quer analisar esta nebulosa chamada através portanto ele uma Auscinanclcrsetsung (= discussão). Por
"desconstn.u;ão" u.a América, é preciso também, não somente mas também "Ausein:mdcrsetsung" Del'l'ida não entende explicação de texto,
levar em conta esta problemática sob todos os seus aspectos. Não há descons­
no scnLido da explicituclc definitória dos conceitos inventados por
trução que não leu/ta começado j;or se medi,· por aí ou por se preparar a se
medir por aí e que nci.o co111ece po1· n!Coloca1· em questão a dissociação entre Austin. Auseinandersctsung é explicar com o outro. É explicar Paul
pensamento e técnica, p1incipal111e11te· quando ela tem uma vocação hiera"' de Man discutindo os conceitos de Austin. Esta operação invagina
quizante, seja sua, s_ecrcla, sublime ou denegada. 12 o sistema interpretativo ele Denida neste livro sobre Paul de Man,
bem como todos os ensaios do livro Psyché. Derrida não vai aos
O método enquanto procedimento técnico ficaria no mesmo conceitos de Austin como se eles fossem já estratificados pelo saber
nível_ do tratamento da desconst,·ução corno técnica vinda de fora. da escola analítica. É enquanto espelho móvel, giratório, Psyché,
n O que De,·dda rcivjndica para a dcsconstrnção é que ela não seja que Derrida deixa passar na sua discussão com Paul de Man as
compreendida como mc1:a técnica, por um efeito de recepção que novas configurações do constativo e do performativo.
submeta a técnica a uma dimens;lo que"isólc o modo de pensar que Assim tanto no livrn Mé-m.oires - pour Pattl d.e Man (1988),
a funda, a sua co-implicaçãó (dentro desse mesmo movimento, é quanto no livro Psyché ( 1987) Derrida assina comentários que
que .a escrita, para DeiTida, ,ião pode ga,�hai: o estatuto de artifício denegam a cst1·utura assertiva que caracteriza o conslalivo. O modo
representante �a líng_ua falada). apa1�entc do constativo é a terceira pessoa do singular do presente
do indicativo e se formaliza no enunciado S é P, formulação que
Pelo lado da desconst1ução, se se pode dize,� · e ao menos sob sua fonna percorre a lógica clássica desde Pannênidcs. Na primeira conferên­
·explicitada em Paul de Man., cnti·e a memói-ia ·pensa1úe e a memória cia de Austin (de um total de doze sempre sobre os mesmos
técnico-científua não exclui, ao contnfrw, mas penuite um pensamento da conceitos) a noção de constativo guardaria esta caracte.-ística, qual
essência da·técnic a, pensamento em ,·elação ao qual não cogita a lógica da
seja, a de apontar para a produção de marcas no campo fechado e
desaoustmção de 1·emmcia.1·.
ilusoriamente saturado por um contexto bem definido e regulador
É po1:qUf! esta desco11stmção não é lecnicista ou lecnologista no momento
mesmo em qu.e ela. põe em questão esta separação hiera1·quizante enh-e das operações lingüísticas. 01-a, permanecer na crença da existên­
' •
,
pensam�nto e lccnzca. , 13 cia do constativo - o que o própi-io Austin põe cm dúvida ao longo
de doze conferências - é persistir na lógica do pensamento clássi­
co. Definir desconstn1çflo seria, portanto, recair na estrutura asser­
Para Aléni d_a Aporia, a Desco�strução Formula-se como tiva do constativo. Por aí a desconstrução se prestaria a uma
P1·01nessa definição do tipo Sé P, e, cm breve tempo, estada neutralizada na
sua força, domesticada.
O _abandono de·uma concepção instrumentaljzadora da descons­ A tentativa· de u!Lrapassar os limites estabelecidos pelo discur­
trução como técnica de leitura implica •\ passagem para outro so constativo, assenivo, fonnulac.lor de certezas produzidas pela
l'!)Odo de pensar a técnica� a escrita através da rcílcxão cm torno intencionalidade deum ato comunicativo, configuraria a experiên­
elas categodas de constativo e pcrfonnativo, produzidos pela teoria cia de invenção de um discurso outro, sempre cm transformação.
dos Speech Acts. A parLi1· do livro Mémoires - pour Paui de Man, Tal discurso invenlaria sua própria formulação sem referência
coi1fcrências pronunciadqs cm 1984 acresçidas de um quarto texto noutro luga1·, externo, e lentaria pensar o futuro, o outro, o ,por-vir,
sobre o pi·ocesso inquisiLório movido contra Paul de Man, escrito sem projeções colonizado1·as da subjeLivi<lade intencional. Ü•enga­
em 19�8, e· public. aclo no mesmo ano, os conceitos de Austin jamento no futuro só se dá através da reelaboração do performa­
cnt1·a!TI na intc1-prct.,ção de De1Tida e se constituem num sistema tivo enquanto ato.de fala. O mundo aparente do performativo é,
de referências a parLir do qual D�rrida escreve sobre o 9utro para Austin, a primeira pessoa do singular do presente do indica­
através dessa discussão, atrnvés da discussão com esses conceitos, tivo. O "cu" enquanto age institui em ato a produção da própria
r,117

�,.•
)...
J;· '
Desconslntçúo 109
108 Desco-nstruçii.o
J
v1-a e comentamos a pala­
coisa, do fazer, do engcndmr. Todos os performativos não são dimensão metonímica escrevemos a pala
para o desfecho deste
-r certamente refleLidos, de algum modo eles não se descrevem em vra enquanto a mão se se para da máquina
alhou para que este texto
espelho, especula1·mente, eles n.io se constatam como performati­ comentário. Todo o tempo a mão tnlb
hi se encontra, mas que
vos no momento em que têm lugar. Eles opernm uma transforma­ não fosse a reprodução constativa do que
a de ler o outro, dizen-
ção escavando no constativo o seu aspecto meramente descritivo de novo mirasse o espelho móvel cm busc
parà desfazer a lógica oposicional bin:íria e inventar o outro nessa do-o de outra maneira.
co-implicação. O perforrnativo descreve e efetua seu próprio en­
gendramento.
Podemos ent;io esnever gue it semelhança do performativo, Notas
a estratégia da desconstrução é um ato pcrfonnativo de pensar o
, p. 20.
!l
futuro. Como ato de inv entar o outro diante do impasse causado 1. Sarah Kofm:m, Lectures de Deri-ida (Paris: Calilée, 1981)
pela delimitação assertiva. Enconll-a-sc em Austin o paradigma do 2. Kofman, ibid., p. 16.
pcrformativo: a promessa. A leitum que D errida oferece deste 3. Jaques Derrida, Psyché (Paris: Calilée, 1987), p. 53.
pe1·formativo liberta a fonnulação de Austin do dogmatism9 que 1. Den-ida, ibid., p. 231.
5. Derrida, L 'Aut1·e Cap (Paris: Minuit, 1991), p. 38.
seus discípulos imprimiram �l explicitação do paradigma. Deste
6. Derrida, Psyché, p. 387.
modo-De rrida pode escre ver: 7. Derrida, ibid., p. 387.
8. Derrida, ibid., p. 390.
Uma pmmessa é semp1·e excessiva. Sem esle excesso essencial ela 9. Derrida, ibid., p. 391.
,, 1·e�onim·ia a uma descrição ou a um conheci111enlo dofultl1'o. Seu ato seria 10. Derrida, ibid., p. 392.
a _estrutura de uuia constataçii.o e ruio de um f1e1fornialivq. Mas esta 11. Derrida, Mémoires (Paris: Ca\ilée, 1988), p. 109.
"demasia" da promessa não f1ertence ao conteúdo (prn111etido) de uma 12. Derrida, ibid., p. 109.
fn'01nessa que eu nr'io seria caf1az de sustentar. É na estru.tm·a do ato de 13. Derrida, ibid., p. 112.
prnmess_a que o excesso vem i11se1_·eve1· uma espécie de pe,·tm·bação ou de 11. Derrida, ibid., p. 99.
peruenão i,·remediâvel. Esta jJe,venão que la111bé111 é uma arniadilha
pe1'lttl'ba sem dúvida a lin!fuagem da fJromessa, o pe1fon11ativo como
prnmessa,· mas ela o torna da mesmaforma possível - e indestntlível. Daí Bibliografia
· .
1 o 1nac1·eti·ila.ve • . de loda p1·0111essa. 1-1
' l., e o co111ico,
\ 1. AUSTIN,John. Qurmd dire, c'estjafre. Paris: Scuil, 1970.
ell University
A desconstrução só tem sentido, portanto, em contextos inter- 2. CULLER,Jon:i.tl i an. On Deconstruclion. Ncw York: Corn
cambiáveis, e avança como promessa não da verdade demonstrati­ Press, 1982.
Seuil, 19G7.
va, estabelecedora de distinções· transpare11tcs (do tipo Sé P), mas 3. DERRIDA,Jacques. L'Ecritm·e· el la Di.fférence. Paris:
promessa de inventar e deixar ler o outro na aporia. 1. ___.De la Crmm natolo gie. Paris: Minui t, 1967.
A desconstn1ç:io é uma promessa e, como tal, um ato perfor­ 5. ___. Positio11s. Paris:Minuit, 1972.
mativo naquilo guc tem de excedente. É promessa não como meta 6. ___. Mcnges - de la Philosophie. Paris: Minuit, 1972.
de atingir um conhecimento totalizante sobre um objeto em estudo 7. ___. Schibbol.eth; pom· Paul Celan. Paris: Caliléc, 1986.
-1 ou sobre o futuro do conhecimento sobre o objeto. Ela prome te 8. _ lvfémoil-es -ponr Paul de Man. Paris: C:ililéc, 1988.
9. ___. PsycluJ: /nve11tio11s de l'/\ut1·e. Paris: Calilée, 1987.
na medida em que é e�eito de disjunção e não de reunificação dos
1O. ___. Limited lnc. Paris: Calilée, 1990.
traços de idenLiclacle. Ela promete a lucidez na aporia. 11. _ L'J\11tre Cop. Paris: Minuit, 1991.
la Modemité. Paris:
Destaca,· do todo a pedra angular, a própria palavra descons­ 12. HABERMAS,Jürgen. Le Discom-s PhilosojJ!tiq11e de
trução, pat�l abalar o edifício de sua construção pela citação. Na Callimard, 1988.
f .''
rf;", '

f,}; 110
Desconstrução
�·,
13. KOFMAN, Sarnh. Lectw-es de !
Denida. Paris: Caliléc, 1984.
14 -. LUC FERRY/Alain Rcnant. Pens
amento 68; ensaio solxc o anti-hum
••. ' nismo contempoi-.'inco. São Pau
lo: Ensaio, 1988.

15. PONCE, Francis. Mét!todes. Par
16. SANTIAGO, Silviano, 01·g.
is: Callim;u·d, 1961. Gênero
Glossá1io de Derrida. Rio de Janeiro
Alves, 1975. : F.
17. SEARLE,Jolm R. Les Acles de
Laugage. Pads: Hcnnann, 1972. Maria Consuelo Cunha Campos
18. -· Seus et Ex/m1ssion. Pad
s: Minuit, 1982.

1'•
;
1
1

Até os anos 60, ao abordarem a categoria de gênero, comumente


os lingüistas faziam p1·évia distinção entre esta e a noção de sexo
biológico. Enquanto este seria da ordem do dado, identificado à
natureza, aquela perténceria à ordem do construído, alinhando-se
no pólo da cultura. Procedendo assim, os lingüistas, à época, não
considerãvam que a base natural, da ordem do biológico, não existe
no universo humano, fora das chamadas identidades sexuais, já
revestidas culturalmente. Papéis sociais dos sexos o são dentro de
um determinado recorte cultural, o que permite dizer que, concei­
tualmente, feminino e masculino, ao se assentarem sobre a natu­
reza, transbordam-na, todavia.
Foi, exatamente, atentando para isto que a Antropologia
tomou, mais tarde, de empréstimo à Lingüística, a categoria de
gênero. Ou, de modo mais preciso, o sistema gênero-sexo, enquanto
constituição simbólica sócio-histórica, modo essencial, através do
qual uma realidade social se organiza, divide-se e é vivenciada
simbolicamente, a partir da interpretação das diferenças entre os
sexos, prisma através do qual se lê uma identidade incorporada,
modo de ser no e de vivenciar o corpo.
Assim entendidos, os sistemas gênero-sexo historicamente
realizados revelariam, na relação masculino e feminino, a opressão
e exploração deste último pelo primeiro: a história das sociedades
até agorn existentes constituii-ia uma hist61·ia da subordinação das
mulheres pelos homens em base aos sistemas gênero-sexo q�e
r•. 1'
t. 112 Cênem Cênem 113
1•
culturalmente produziram. Donde não se tratar de pura diferença, Constituirá, efetivamente, dado bastante original, a re0exão
mas sim de diferença hierarquizada em vista de poder. Ao gênero, contemporânea sobre a condição feminina a que o tipo de organi­
lingüi�ticamente considerado,associa-se o emprego de desinências zação social hegemônico no Ocidente vem assistindo,pois.nenhu­
diferenciadas para formação, mais comumente, do feminino; ao ma outra, antes, abrigou em si questionamento de igual ordem
gênero,antropologicamente focalizado,associam-se atributos cul­ ace1·ca dos papéis afribuídos aos sexos, vale dizer, produziu tal
turais,alocados aos sexos, a partir da dimensão biológica do ser desnaturalização.e desideologização dos mesmos. Tendo o sexo
humano.· permanecido,nas demais sociedades,como que não questionado,
Mediante a oposição animado/inanimado, como ponto de isto é, tido por incorporado ao plano da natureza e sendo o
partida,a categoria lingüística do gênero teria repartido os nomes domír:iio desta identificado ao universal,donde ao comum a toda
das línguas indo-européias em masculino e feminino (animado) e a espécie,a "naturalização" de papéis sociais atribuídos aos sexos
neutro (inanimado). A lógica desta primeira oposição genérica consolidou-se hierarquicamente, como se fossem da ordem do
teria se esvaído,já no latim clássico,tornando-se o significado da senso comum,quando,em verdade,neles se abdgam a dominação,
categoria conceptu.almente complexo, por abrigar, então, variá­ a opressão,a exclusão. Não sendo,pois,sinônimo de sexo - que
veis: ora reportando-se à distinção sexual,como na maior parte dos diz respeito à identidade biológica,à totalidade de uma orientação,
nomes de animais,ora dissociando-se desta distinção para repor­ de um comportamento e de uma preferência sexuais - gênero
tar-se ao puramente arbitrário da tradição idiomática. concerne à experiência social e pessoal de um e de outro sexos;
Quanto à origem da categoria de gênero em línguas do grupo desenvolve-se enquanto categoria analítica a partir do pensamento
indo-europeu,o lingüista Otto Jespersen invocava a possibilidade feminista,nos anos 80,caracterizando-se pelo corte transdiscipli­
de ter havido uma divisão em seres fortes (masculinos) e em seres nar que opera (Antropologia,História,Filosofia,Psicologia,Biolo­
fracos (femininos), enfatizando a rela"ção destes últimos, ainda, gia utilizam-na) e assinalando uma transformação relativamente a
, com o grau diminutivo1 analogamente à afirmativa de Trombetti, centros de interesse da década anterior,tais como uma história das
de que,na origem da categoria,se radicaria uma divisão entre seres mulheres, a questão da ginocrítica,isto é, do estudo feminista da
superiores (masculinos) e inferiores (femininos). Na superioridade escrita da mulher, pressupondo-a marcada pelo sexo. Transcen­
tradicionalmente relacionada ao masculino nas línguas do grupo dendo,porém,as fronteiras da pesquisa feminista,vai inscrever-se
indo-europeu, de que provieram em grande número os idiomas nas categorias das ciências humanas e sociais (tais como classe,
nos quais se formou a tradição cultural ocidental,subjaz,portanto, parentesco,etnia, etc),de sorte que sua utilização paraleliza-se às
a sua compreensão como universal e não marcado,por oposição demais categorias indicadoras de diferença.
ao gênero feminino, cuja forma é marcada (seja pela desinência
correspondente, seja por outro indicador, como o artigo, etc.).
Donde uma assimetria de cunho nitidamente sexista. Isto nos Se Universal, Natural?
permite observar que,enquanto,de fato,a diferénça biológica dos
sexos é marca elementar e universal da alteridade,o conteúdo de Se, até agora, na história das sociedades existentes, dá-se a ler a
tal diferença.já transcende o biológico e,inscrevendo-se no cultu­ subordinação das mulhe1·es através dos sistemas gênero sexo pro­
0

ral,mergulha no variável e no relativo históricos. Por analogia com duzidos, não estaríamos diante do mesmo horizonte projetado
o que ocorre,no domínio lingüístico,na categorização do gênero sobre a quest,�o do interdito do incesto: se universal,então natural?
elos nomes,a antropologia identificou,no empréstimo à categoria Analisando as estruturas elementares do pa1·entesco, Claude
de gênero, a possibilidade, para seu campo de investigação, de Lévi-Strauss estabelece·o constante a todos os seres humanos como
pensar a distinção entre atributos culturais conferidos a um ou a critério riecessário para o transbordamento do domínio dos costu­
outro sexo. mes,das ·técnicas e instituições,os quais ensejam a diferenciação e
11'1 Gênero
Gênero 115
oposição entre g1upos humanos. Norma e universalidade seriam, pois,
O princípio de estab ele cimento das alianças
o duplo critério, permitindo, pd o menos relativamente, o isolamento considera a mu­
lher so b o foco de o bjet o d o desejo de um
ele elementos naturais dos cultura�s. Atribuindo ao universal/natural h omem qu e, t endo-a
p or interdita, a vê, entretanto , c om o o bjeto
a· característica da esponta neidade, o antrop ólogo ass ocia norma a do desej o de um ou tro
h om em, donde meio de s e lhe unir p or alian
cultura e estas aos atributos relatividade e particularidade. A tal ótica, a ç a . Se a mulher, com
isto, combina o ser signo com o seu valor, co
proibição do incesto se apresentaria com a aparência de um escânda.­ m o o quer Lévi-Strauss,
devido à particulal'idade de
lo, pela c onfluência de atributos contraditórios excludentes. Regra ou cada qu al delas em relação à gene�ali­
dade de sua espécie, tal nã
o ocorre sen ão já sobre a
norma, tal proibição seria, entre a particularidade das demais, univer­ transformação do feminino em bem de tro
base da
sal. A prova de seu caráter normativo é apresentada pelo antropólogo ca.
Semelhantemente ao que ocorreu à pro
a parti 1· da variabilidade do campo de sua aplicação, nos grupos ibição do incesto,
a ntes que a démarche lévi-str
au ssiana a de sgarra sse d a natu
humanos. A demonstração de sua universalidade se dá negativame n­ ralização
que a envolvia, também a dominação m asculi
te, isto é, p or . não se ter notícia de sociedade . onde .não exista na, apresentada COn?O
universal nas sociedades c onhecidas, passou
absolutamente qualquer tipo de casamentQ proibido. Reunindo a tradicionalm ente por
per tenc er à ordem natural, como deriva
universalidade própria às tendências instintivas ao· caráter coe rcitivo da do papel biol ógico
feminino na repr odução da espécie.
próprio a l eis e a instituições, a proibição do incesto poria, assim, um �, ·Rel e va notar que, ain da qu
problema ao antropólogo e a seus critérios. a ndo justific ada no discur so
judaico -cristão d o Gênesis, c om o a · m a
Concluindo que o lugar da proibição do incest o é, simult anea- ldição bíblic a de Eva,
indu tora de A dã o ao pecado, a domin açã
m ente, o limiar da cultura, seu i nterior e ela própria, Lévi-Str auss o so bre a m ulher aí se
asso cia a o estado de de sord em na cri
a ção, nisto dife rindo da
visa à demonstração de · que tal inte1·dito constitui· a· démarche ideo lo gia da nat uralizaçã o , que a apresen
funda mental m ediante a qual e pel a .qual, mas p rincipalmente, na ta em c ongruência c om
a o rdem dita.n o rmal das c oisas. S e, n o
qual �e oper aria a passagem da natureza à cult ura. Natural enquan­ entant o, a des.igu aldade
entre os s exo s se radica s o bre a distin çã
o de papé is bi ológicos,
t o condição ge1:a1 da c ultura, ela• se caracterizaria, formalmentç, el a o faz a p reço de tra nsfo rmar o qu e é,
po r sua universalidade, sendo, no enta nto,j� cultura , ao impo r-se tão-som ent e, diferença,
e m diferen ça hierarquiza
da. A o e st abelecer-se c om o r el ação de
enqua nt o regra no se io de fenôm e nos que dela, entretanto, não poder, ela assim o passa à o rdem da cul tur
a . É o que ocm-re na
de pendem. Não p rovi ndo nem . da i nstân cia biQlógica nem <l:a forma histórica do patria1·cado, o que
se viabiliz a a o as so ciar
social, a proibição constítuiria o elo a uni-las, ou melhor, a op erar ideoló gica, arbitr ai-iame nte, a se cundarie
dade a o feminin o em
uma passagem; no se:;nti do de que, previam ente a ela, a cultura vist a de seu papel na repr odu ção . S end
ainda não seria dada; c o m ela, cessaria de existir a n atu reza c om o o a desigualdade de
papéis s o ciais, ati-ibuídos a o s sexos, da o
u m r e ino s oberano para o h omem. P ortanto, ela op erada vi nda de r dem d a c u ltura - o que
se c omp1·o va pela sua relatividade e pa
rticularidade - ela n ão é
uma n o va orde m; pela qual uma est ru tu ra d e ·nov o tipo, vale d izer,
c ondição ne ces sária das s ociedades, senã
o de determinad os
de maior complexidade, se formaria e se sup e rp oria, em se inte­
tipo s e organizaçõe s de p oder de s tas e
grando a elas, às estruturas mais simples da vida animal. S endo, , c om o tal, passível de
t1·a nsformação.
fundam e ntalm e nte,· uma decisão so bre a partilha de mulheres
entre h omen s e implicand o a ausência da escolha do parcei1·0, da
parte delas, por sua transformaçã o . e m equivalent es à m oeda.e.aos
O Impacto da Crítica Feminista
sign o s, be ns de tro ca, a pr ópria prnibição universal do incest o , tal
c omo apresentada em As estruturas elernentares do parentesco, pelo
O estabelecimento do gênero como cate gori a fu ndam ental à análise
que contém de regulamentação do desejo de outrem, já sup õe a
literária ensejou, desde os anos iniciais da crítica feminista, alguns
dominação das mulheres pel os h omens.
abal os à tradição ocidental.
116 Gênero Gênero l17

Patenteando a misoginia de obras-primas do cânon ocidental, escritoras até então desconhecidas ou tidas como de segundo
através, por exemplo, do exame dos estereótipos femininos (tais. plano. Além disso, a muitas críticas feministas interessa especifica­
como mulheres-anjos ou mulheres-monstros) nelas reforçados e mente o estabelecimento da existência e significado de uma tradi­
questionando a própria exclusão de escritoras do cânon, a srítica ção literária feminina e, neste sentidQ:
feminista deu condições para que·se compreendesse de uma nova a) o estabelecimento de uma tradição de caracteres femininos
forma a conexão entre duas das formas de rebaixamento a que a delineados por autoras;
mulher_ esteve sujeita, o social ·e o literário. Com isso, abala-se a b) o exame da leitura feminina das obras destas escritoras,
tradicional afirmação de inexistência de um ponto de vista de enquanto predecessoras ou contempor;1ineas das mesmas ensaístas
gênero, segundo a qual haveria um único ponto de vista, o do e ficcioni'stas. Parn esta última perspectiva confluem as pi'·oblemá­
gênero humano, que, "coincidentemente", teria ocorrido ser sem- ticas do gênero (ingl. gende r) e do Gênero (ingl. genre) literário,
pre masculino. · · · através do que Elaine Showalter denomina "a subversiva conspirn­
r
À desnaturalização e desideologização da opressão sof ida pela ção entre autora e audiência", a propósito da consideração da
mulher, a crítica feminista vai acrescentar a desuniversalização do ficção feminina como algo menor e da utilização de gêneros
ponto de vista masculino em literatura através da compreensão de literários ditos populares na literntura considerada de elite.
que escritóras produz.em uma literatura toda sua, obscurecida - em Nestes abalos ao cânon literário, a crítica feminista vem distin­
sua coerência histórica e temática e, sobretudo, em sua importância guindo procedimentos que dizem respeito a escritoras encobertas
artística - pelo predomínio dos valores patriarcais na cultura. por fatores tais como diferenças étnicas, de classe social e de
Analisando o processo de estabelecimento do cânon literário, orientação sexual, podendo-se assim já reconhecer importantes
a crítica feminista ataca o sistemático desprezo pela contribuição diferenças entre, por exemplo, uma tradição literária feminina
da mulher, desprezo este que assume a forma da exclusão de branca de classe média ou alta, que se confronta, para esta:bclecer­
determinadas escl"Ítoras e da distorção ou da incompreensão rela­ se, com menos estigmas e ltandicaps do que o que ocon-e com
tivamente às poucas dentre elas incluídas nele. A predominância escrito1-as negras e/ou lésbicas e/ou de classes populares, a.tingidas
masculina resultaria, no caso, tanto da própria assimetria social simultaneamente por mais de um lta.ndicajJ. O ·reconhecimento e o
entre ambos os sexos quanto da ideologia sexista mesma, enquanto estudo de tais diferenças atenta pai-a a especificidade e as articula­
propagadora e fundamento do papel tradicional da mulher. Equa­ ções que se estabelecem, dentro da crítica feminista globalmente
cionar alternativas à tal predominância e propor atitudes críticas considernda, não para reduplicar os critérios valorativos da pers­
face ao cânon vigente são desafios à crítica feminista. pectiva vigente, mas, ao contrário, exatamente para mais eficaz­
À quase inexistência de autoras entre os clássicos da At1tigui­ mente abalá-los. Exemplificando: o estabelecimento da crítica
dade Ocidental, tal crítica contrapõe a desconstrução, nas grandes feminista negrn tem de enfr<;:ntar o duplo desafio representado por
obras dos escritores, das imagens fc�inistas que produziram. Ao uma sociedade simultaneamente 1:acista e sexista, o que equivale
recortar histórico-didaticamente os cânones vigentes, ela vai fazê-lo afirma·r que a continuidade da escrita de mulheres negras tanto
de f01 ·ma a inclui,· autoras. Ao partir, _por exemplo da épica concerne à literatura negrã globalmente considerada quanto, nela,
anglo-saxônica chega a Virginia Woolf. Relativamente ao lugar ao questionamento, também da predominância de escritores ne­
..l. atribuído pelo cânon vige·nte .a escritoras, algumas correntes da gros. Estabelecer então uma tradição de mulheres negras escritoras
crítica feminista norte-americana propõem revisões valora.tivas supõe fazê-lo não só no interior da literatura· negra mas. tambérn
caso a caso e como conseqüência da própria emergência de uma no da comum herança literária norte-americana nacional,-no caso.
nova compreensão do feminino e do questionamento da inferiÓri­ Assim como, no âmbito das ciências humanas, deu-se� denún­
zação tradicional da mulher. A representação de autoras no cânon cia do etnocentrismo que, estatuindo a cultura do pesquisador
é, também, alargada através da descoberta e reedição de ob1-as de como 1·efe1"ência, fazia 1·edunda1· sua inda gação num jogo com


. ·; r--

118 Gênero Gênero 119

cartas previamente marcadas pela prévia inferiorização da cultura Duas tendências dentro do movimento localizam-sé, inici al­
do Outro tomada como objeto, assim também, na crítica feminista, mente, de acordo c om o propó sit o em direção ao qual atuam:
ocorre a denúncia da p erspectiva .androcêntrica que, estatuindo ·o 1) o chamado feminismo radical francês, e_m demanda de uma
ponto de vista ma sculino como a referência, fazia redundar o nova teória da atual sociedade sexista (o que aqui assim se nômeia,
cânon literári o n umj og o de cartas nã o menos previamente marca- ,;-- independente de qualquer relacionamento a qualquer teoria é o
das, pela: inferiorização feminina prévia . feminismo que vincula a liberação da mulher indissoluvelmente a
Com os abalos ao cânon da tradição Ii_terária ocidental, a crftica uma t1·ansformação social p rofunda);
fe minis ta visa a demonstrar qu e, longe de ser o p retendido univer­ 2) o especificamente socialista que, reconhecendo embora a
sal, o verdadeiro , o objetivq, . o racional, o ponto de vista que inadequação de sua antiga teori a acer�a da po sição da mulher, mas
p1·esidiu à formação desta mesma tradição literária ocidental é, em crendo ainda na viabilidade de tal metodologia para sua a nálise,
verdade, apenas aodrocêntrico: p o1· el_e a ideologia mantenedora visa à revolução , vendo nela papel sem precedente em ·relação à
do lugar ma sculino do poder atua, recobrindo de pretensa . objeti­ libertação da mulher.
vidade sua verdadeira tai-efa, de dissuadir em relação a mudanças . Bem mais do que o marxismo é, no entanto, atualmente; a
Ao desconstruir-se o ethos da a té então tida por objetividade psicanálise"( e a lingüí stica) que ocupa o·lugar de relevo na distinção
acadêmica, que perpetuav a tal ideologia, torna-se possível. propor entre os f eminismos franceses.
um outro ellws acadêmico. Não se trata de .uma inve rsão., mas de Enquanto o femini smo anglq-americano vem se interessando
uma diferença. pelo re sgate de escritoras perdidas no p assado, pelas re visões de
lugar daquelas que conseguiram alinh ar-se no cânon literári o, .em
suma, por reco nstruir uma histó ri a das mulheres, pelo preen chi­
Femini�mos: Francês e Anglo-Americano mento dos-silêncios cultu rnis e das casas v azias do discurso, com
ênfase nas condiçõ es sociais· e psicoló gicas da mulher, na França
C om certas semelhanças de superfície, os femini:;mos francês e centram-se foi·ças no vié s antiburguês radical e na desconstrução
anglo-americano efetivamente divergem. Malgrado o eventual tra­ do discurso literá1·io e filosó fic o ocidental, relacionando a opressã o
balho em co nj unto de alguns grupos de uma e outra extração em da m ulhe1· a outro s aspecto s da cultur a, derivados da projeção da
torno d� temas relevantes para os e'studos sobre a mulher ( e as economia libidinal masculina em sistem as patriarcai s como a lin­
trnduções de obras , ainda quando isso ocorra com cert� desigual­ guagem, o capitalismo, o socialismo, etc.
dade, de uma e de outra partes) e de _ _que. resultam um aumen to
geral da co nscientização acerca da causa feminista e da próp ria
qualidade d e vida, não só para as mulheres mas p ara a sociedade, Mulher e Escrita
em geral, há linhas de força diferentes e divergentes. Não ap énas
a proporção de mu lheres envolvidas no movimento de liberação é Em The Madwoman in thejlttic, Sandra M. Gilbert e Susan Cubar
numericamente mais .significativa do lado a nglo-americano , m as focalizam o que denominam (p arafraseando o Harold Bloom da
também (sem _ simpli smos, todavia), verifica-se uma certa ênfase Angústia da influência) a angústia da autoria, experimentada pela
nÚ\io r na ação do mesmo lado. O próprio uso de termos como escritora ·pelo fato mesmo de s�-lo numa cultura cujas definições
Je-minismo e Jerninista é também menos f eqüente na França, no
r
bá sicas acerca da autoria são , fundamentalment e, patriarcais . A
trato da ques tã o da mulher (para o que, possivelmente, contribui questão dos predecessores, da ti-adição literária, na qual ou contra
a agressividade 1naior que o cerca). A rigor, falaríamos em feminis­ a qual se insc1·eve um novo escritor, confi gu raria, para este, segun­
mos franceses, atentando para a pluralidade que apresenta o fenô- do a psico-histó rica bloomiana, a angú stia da influência: temor de
1neno. ouvir, em sua obra, o eco da escrita ancestral de outros hom�ns
120 Gênero
Gênero 121
que, existindo antes - e diante - dele, se agigantariam, na subjeti­
vidade de sua percepção, em relação ao seu próprio texto. Em tal predecessoras, nos dois últimos séculos lutaram, no isolamento, na
modelo o·corria o relacionamento pai-filho, tal como definid9 obscu1·idade, para vencer a endêmica ansiedade que .cercava a
freudianamente, numa espécie de luta literária edípica na qual um autoria.
, novo escritor assim se tornaria somente ao "castrar"/"matar" o. pai Visando a periodizar a história da conquista da escrita
literário; o predecessor. literária pelo mulher, Elaine ShowaÜe1· reconhece três fases. Na
Embora o modelo seja nitidamente masculino/patriarcal, ele primeira, quando imitava a escrita masculina, visando a afirmar­
levanta, do ponto de vista de uma leitura feminista, interessante se, a mulher adota pseudônimos, vestuário e padrões de conduta
tópico, que escapou a outros críticos: o das implicações contextuais masculinos, inte1·nalizando normas que não são suas (é a escrita
de ordem psicossexual q1:1e cercam cada texto literário. Assim, feminina). A isto teria sucedido, com a luta pelo direito ao
enseja a distinção - que as duas autoras efetivamente desenvolvem sufrágio, a escrita feminista, marcada pelo protesto em relação
em seu livro - entre escritoras e escritores, do ponto de vista das ao rebaixamento e éxclusão. A última das fases, a da escrita
angústias com que têm de defrontar-se para se tornarem tais. fêmea, marcada pela ainda recente conscientização deslanchada
Se a autora elo século XX não teria experimentado a ansiedade a partir dos anos 60 de nosso século, assinalaria a maturação, a
da influência da mesma sorte que o escritor, isto teria sido devido auto-realização da escrita-mulher.
a seu confronto ter ocorrido com precursores majoritária ou Semelhantemente à segmentação proposta por Showalter,
mesmo exclusivamente homens, diferentes, portanto, dela, e nos Beth Miller identifica, inicialmente: a) uma androginia, a que se
quais se encarnaria não apenas a autoridade patriarcal, mas, tam­ seguiria. uma consciência de que, sendo a vivência da mulher
bém, a redução do· feminino a estereótipos fortemente contrastan­ diferenciada em relação à do homem, isto implicaria a construção
tes com a sua própria experiência de si e de sua criatividade de ele um discurso próprio; b) feminina. Finalmente, a consciência de
mulher. uma trndição ele p1·edecessoras, no estabelecimento deste discurso
O temor, no caso da escritora, consistiria, portanto, num medo próprio, marcaria a (c) feminista.
) radical de que, por não poder criar, de que, por não poder.torna-se
ela própria uma precursora, o ato de escrever a isolasse ou mesmo
a destruisse, uma vez que ela não poderia lutar com um escritor Leito�, Leitora: Leituras
l como seu predecessor em termos masculinos e vencê-lo. A luta,
portanto, em termos femininos, teria de ocorrer sob a forma de Do ponto de vista da crítica de gêne1·0, ao ler-se um cânon ·generi­
um processo de revisão, não principalmente da leitura do mundo camente hegemônico, tal como o �ndrocêntrico ocidental, a ques­
operada pelos escritores, mas da leitura deles com relação a ela tão do "como se lê" está indissoluvelmente ligada à "daquilo que é
prójwia. lido": o androcentl'ismo estrutura a experiência de leitura ele
Parn clefini1·-se como autora, a mulher teria que redefinir então maneirn diferente, segundo o gêne1·0 de quem lê - ao leitor, ele é
os próp.-ios termos de sua socialização: a busca de modelo femini­ ponto de encontro do pessoal com o universal, o leitor é convidado
no, de precursoras, estaria ligada ao desejo de legitimação, quando a sancionar a equação masculinidade=humanidade, enquanto o
-< o ·gênero é percebido dolorosamente como uin obstáculo ou uma lugar textual assinalado à mulher,. como personagem/heroína
inadequação, pela internalização da inferioridade com que o pa­ aproxima-se ao assinalado na visão lévi-straussiana do parentesco,
triarcalismo a vitimou. Aí se radicaria, em vários sentidos, a origem o de mediadorn da troca entre homens (autor/leitor). O androcen­
da doença, do distúrbio, da desconfiança detectados em literatu1:a trismo no cânon literário cumpre, pois, uma função, a de instru­
ele mulheres antes do século XX. Se, neste, escritoras podem, com mento de uma política sexista, dirigindo a leitora num processo
energia�. autoridade, desempenhar-se de seu ofício, é porque suas que a utiliza contra ela, ao peqir-lhe a cumplicidade na ratificação·
da diferença masculina como sinônima de unive1·salidadc e na
!/
122 Gênero Gênero 123
conseqüente negação da diferença feminina como alter-idade, em saída da heteronomia para autonomia enquanto passagem nature­
reciprocidade. za/liberdade, associada ao afastamento do. homem da proximi<:ia­
Cânon andrncêntrico, modos ou estratégias de leitura andro­ de feminina em que tem início a vida, exemplificam-no.
cêntrica geram um círculo vicioso:.o que se ensina a leitoras não é Se o feminismo, enquanto reflexão histórica, configura-se
o ler textos, 1nas, em verdade, paradigmas, tendentes à reprodução movimento tipicamente moderno, pela proposição da igu al�ade
canônica de outros textos and1·0.cêntricos e à exclusão dos demais. social como objetivo, ele, entretanto, toma distância em· face deste
ideário inacabado que embasa a m�dernidade, ao analisar os
papéis desiguais .desempenhados por-diferentes grupos sociais, ao
Feminismo e Pós-Modernismo se determinarem padrões de julgamento. Revelando o ideológico
subjacente a sistemas de valores, antes tidos por _universalmente
Durante muito tempo, Ma1·xismo e Feminismo. fizéram uso de·um válidos, objetivos� o feminismo já assinala, portanto, a falência do
conceito -o de conscientização - para abqrdar, respectivamente, ideário iluminista.
a compreensão progressiva, a respeito do otdenament.o e corres­ Entendido, portanto, já no âmbito do pós-modernismo, o
pondente ideologia sexista, compreensões entendidas c.oqio fun­ feminismo constitui uma das formas do desconstrucionismo, pois
damentais à libertação do sujeito da influência 111:esma de tais que .ele revela-e contribui para-a incerteza.que a cada dia cr-esce,
forças, pois, enquanto não as compreende, não tem como resistir .
no Ocidente, acerca das propriedades distintivas de _um eu estável,
a elas. Deste prisma, o consciounsness-raising; o despertar da cons­ . coer,ente, nos moldes preconizados pelo Esclarecimento, consti-
ciência feminista coincidiria ce.m o exame, por parte da mulher, tuü:1.do o leitor privilegiado das "leis-da natüreza".
em seu comportamento e em sua vida íntima, dos sinais de acomo­ . Questionando a ad�quação racional-verdadeiro, o feminismo
dação; de .aju_stamento _ a uma cultura adversa, de modo a que este é um dos descoristruto1:es do pressuposto de.que a razão forneça
processo a. levasse a superar gradualmente .a auto-aversão .decor­ . (undàmento universal, real e imutável, independente_d,a existência
rente do ajustamento à cultura patriarcal. contingente do eu, pela afirmativa da afetabilidade da mesma razão
A Razão Iluminista propusera as-idéias de 'universalidade e de pélas éxperi�ncias corporais, históricas e sociais do gênero. Bem
racionalidade no horizonte teórico dos últimos séculos, .em que como ·o. é o p·ressuposto da neutralidade cjentífica em métodos e
passaria a predominar a concepção .de humanidade empenhada em conteúdos alia-da à necessária positiv-idade de seus resultados
rumo à moral universal e à auto-realização nacional (donde sujeito parn a humanidade. E, ainda, da _transparência da lingu_agem que,
de uma experiência histórica universal).A crença na razão humana ingenuamente, preconizava, em·analogia ao uso correto da razão
universal dimensionava como progressistas ou não as novas .t en­ em vista dé um conhecimento que representava o real, uma cor­
dências em política e em organização social, no sentido de que só respondência palavra-cois_a. Ao problematizar a questão das rela­
as primeiras realizai-iam o pressuposto desta i:acionalidade. Partin­ ções de gênero como uma· categoda de abrangência de um
do ela negação da démarche do Esclarecimento, P . ós-Modernismo e conjunto de relações so•ciais, _o feminismo, longe de cingir-se à
Feminismo convergem, em aportes_mútuos consideráveis. A crítica questão da mulher como indag.ação .:emblemática, p.ostula que
da;transcendência�oi:no.ideal moral, que produzem, revela como, ·ambos� homens e mulheres, são prisíonei-ros do gêne1::o --ainda
desde seu .início,.,a filosofia ocidental cria esquemas imag�ticos quando diferentemente, mas de modo inte1- ·-rcla6onado.
univisionais do. homem como representante "normal", "completo" Como uma construção-de pensamento, -então, a c:ategot�a-de
da"espécie;:como seu contraponto, tal filosofia identifica a mera gênero revela.sua relevância.no -entendimento -das .culturas -p.t1Ti­
1iatureza, à·:f�minilidade-: .a saída.· platônica da caverna-útero,..do culares.. mas -também, -ao m�smo tempo, -não ·escapa :de dar; ,ela
·senso :comum ·ao conhecimento, :o· deixar. para trás .. o..mundo p1·ópria, a le1 · as práticas sociais que deseja.enteride1:. -Ou seja: uma
privado,,obscuro;.�a: família em <:1,ireção -à-hegeliana maturidade, a ve� que, nas.soóedades ocidentais conlem.porâneas, siste,nas -gêne-
121 Gênero Gênero 125

ro-sexo têm sido sistemas de dominação, sua utiliza ção conceituai 18. ORGANON; Revista cio Instituto ele Letrns ela Universidade Fedem)
não pode ter apenas aspecto crítico, devendo tê-lo, também, com­ do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 16, A Mulher e a Literatura,
1989.
pensatório, isto é, de recu peração do excluído pela perspectiva 19. RAVEN, Arlenc et alii. Feminist Art C1itici1m; Anthology. New Ymk:
dominante.
Icon, 1991.
20. REVISTA Tempo Brnsileiro, Rio de Janeiro: 101, Fen�inino e Litern­
tum, abr./jun. 1980.
Bibliografia 21. RUTI-IVEN, -K.K. Feminist Litera,y Studies. Cambddge: Cambridge
University Press, 1990.
1. ABEL, Elizabeth & ABEL, Emily K., ed. The Signs Reader; Wo�an 22. SHOWALTER, Elaine, ed. Feminism ç,:iticism; Essays on Woman
Gender & Scholarship. Chicago: The University of Chicago Prcss, Literature and Theory. New Yoi-k: Panthcon, 1985.
1983. i
23. __, ed. Speahing of Gender. New York/London: Routledge, 1989.
2. BLOCH, R. Ho'Í-vard & FERGUSON, Fra�ces. Misogyny, M sandry and 24. TRAVESSIA, Florianópolis, UFSC, 21, Mulher e Literatura, 2 11 sem.
Misanthropy. Berkeley: UCLA Prcss, 1989. 1990.
3. BOWLES, Gloria & KLEIN, Renate Duelii. Theori.es of Women Studies. 25. WEEDON, Chris. Feminist P.ractice & Poststructitralism The01y. Massa­
London/Néw York: Routledge, 1983. chusetts: Cambridge Center, 1991.
4.' BRANCO, Lúcia Castelo & BRANDÃO, Ruth Silviano. A Mulher
Escrita. Rio de Janeiro: Casa Maria Ed., 1989.
5. CÂMARAJR.,J. Mattoso. Dicionário de Filologia e Gramática. Rio de
Janeiro:]. Ozon, 1964.
6. __. Pâ.ncipios de Lingüística Geral. Rio deJaneiro: Acadêmica, 1964.
7. __ . História e Estrutum da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Padrão, 1975.
8. DU PLESSIS, Rachel Blau. Waiting beyond the Ending; Narrative
Stratcgies of Twentieth-Centu ·ry Women Writers. Bloomi'ngton: In­
diana University Press, 1985.
9. FARNHAM, Christie, t;d. The lmpact of Feminist; Research in the
Academy. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Prcss,
1987.
10. GILBERT, Sandrn M. & CUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic.
New Haven/London: Yale University Press, 1984.
11. GILLIGN, Carol. Uma Voz Diferente. Rio deJaneiro: Rosa dos Tempos,
s.d.
12. HEILBORN, Maria Luíza. Do Gênero: antropologicamente.... Rio de
Janeiro: CIEC, s.d.
13. ILHA do Desterro; Revista de Língua e Literatura, Florianópolis, 11,
_\ ·. Woman W1itel's/Mulheres Escritoras, 211 sem. 1985.
14. JESPERSEN, Otto. Language, its Nature, Development and Origin. Lon-
don: Allen and U.nwin, 1928.
15. �- The Philosophy of Grammar. London: Allen and Unwin, 1929.
1_6. LE:,VI-STRAUSS, Claude. Les Structm·es Elémentaires de la Pa1·enté. Paris:
. Mouton, 1967. .•.
17 .. MARI<S, Ela'(rie .& COÜR.TIVRON, Isabelle de,. eds. New French
'Feminisms. New York: Sclio•cken Books, 1981.
I
História da Literatura

José Luisjobim
(u6nff/u�)

Quando se fala em História da Literatura, é freqüente imaginar


que a tarefa do historiador se resume em acompanhar, através dos
tempos, o percurso de um objeto a que se chamou literatura. JVIas
será que existiria este objeto, que permaneceria o mesmo, desde a
sua criação, para vários e sucessivos receptores?
O que a própria História da Literatura nos mostra é que houve
sucessivas e diferentes representações daquilo a que chamamos
"literatura". Ou seja, a· nossa civilização ocidental concebeu de
modos diferentes o que denominou "literatura": dependendo do
momento, do ponto de vista, do lugar a partir do qual se fale, ela
pode não ser a mesma coisa. Assim, uma parte do problema da
história literária consistiria em investigar quais foram as repre­
sentações que se construíram para este termo.
Se, ao produzirmos uma História da Literatura, partimos do
pressuposto de que um determinado universo de autores e obras,
consagrados como clássicos pelo cânon que herdamos, constitui
necessária e suficientemente nosso objeto, teremos um resultado
diferente do que se partimos do pressuposto �e que a primeira
tarefa do historiador é de determinar seu objeto. Neste caso, a
própria definição, bem como os critérios que a fundamentam, seria
parte daquela tarefa:
No século XX, por exemplo, os formalistas russos 1 imagina­
ram que seria possível constatar uma propriedade, pres�nte nas.
obras literárias, que as caracterizaria como pertencentes à literatu-

:-.;_�·,
História da Literatura 129
128 História da Literatura
volta para o que o passado considerou literatura, o historiador
ra. Mas será que esta propriedade, que os formalistas chamaram
literário confronta a su'a perspectiva presente com as anteriores.
de "literariedade", existiria mesmo?
Os modos.de produção de sentidos do presente interrogam os elo
A resposta poderá sei· decepcionante, para o leitor interessado
passado, a formação social do historiador entra em contato com
apenas em opiniões definitivas e irrefutáveis, porque há argumen­
outra formação, às vezes profundamente diferente da dele. Mas,
tos tanto a favo1· de um sim quanto de um não.
se podemos verificar, em diversos momentos, modificações nas
A argumentação positiva sustentaria que existe a "literade­
concepções e critérios sobre o que é literatura, será que isto nos
dacle", porque podemos verificar objetivamente a existência de
conduziria necessariamente a um ceticismo de tal ordem que
propriedades ou características que, quando presentes em uma
passaríamos a duvidar da própria possibilidade de existência de um
obra qualquer, permitem-nos não só classificá-la como literária,
objeto de pesquisa, suficientemente delimitado? Não, pois a mu­
como também inscrevê-la em um estilo de época. A "literarieda­
dança não implica necessariamente caos ou anomia. Na verdade,
de" seria aquela propriedade, caracteristicamente "universal" do
literário, que se manifestaria no "particular", em cada obra em cada período histórico podemos observar uma certa ordem, a
partir ela qual se estabelecem, com maior ou menor rigidez, as
literária.
fronteiras do literário.
Contudo, é bom lembrar que, em vez de imaginar que a
No período neoclássico, por exemplo, pretendeu-se estabele­
"literariedade" é um universal que se manifesta no particular,
cer nitidamente os limites da literatura, através de uma série de
podemos também supor o contrário: a "literariedade" seria um
normas bem explicitadas, entre outras fontes, nas "artes poéticas".
particular que se pretende universal. Nesta perspectiva, "literarie­
Posteriormente, no período romântico, buscou-se modifica,· estes
dade" -seria um rótulo que receberiam os critérios socialmente
limites, insurgindo-se contra aquelas normas. O paradigma do
estabelecidos para se considerar uma obra como pertencente à
literário no Neoclassicismo brasileiro, para citar um caso, pode
literatura. Assim, o pesquisador selecionaria, dentre todas as obras
\ ele natureza verbal, aquelas que possuíssem a tal "literariedade", constituir-se, entre outras coisas, da "busca do natural e do simples"
e da "adoção de esquemas rítmicos mais graciosos (entendendo-se
para formar a lista das obras reconhecidas como literárias.
) 'graça' como uma forma específica e menor de beleza)"/ assim
Por outro lado, a argumentação contra a existência de uma
como, no _Romantismo, o paradigma pode constituir-se ele "um
propriedade que possibilitasse a identificação de uma obra como
certo nacionalismo", do "banimento da mitolog·ia e cios processos
literária afirma que o termo "literariedade" não teria um conteúdo
contrastados pela numerosas artes poéticas clássicas", do "indivi­
permanente, mas variável. Em outras palavras, Rornan Jakobson
dualismo".� etc.
poderia ter-se equivocado, ao imaginar a "litcrariedade" como
Cada época tem seu g�adro de rcfe1·ência p�u·a identifi.car a
"aquilo que faz uma mensagem verbal uma obra de arte",2 porque
literatura, tem suas normas estéticas-, a partir� 9_!:,lais efctu�j_ulga­
"aquilo" variaria de acordo com o momento. Poderia ser algo
�QS_,___ Em outras palavras, cada época tem suas_conven_ç õ_çs,
diferente, caso adotássemos o ponto de vista do Renascimento ou
cio Modernismo, po1' exemplo. valo1·es, visões do mundo, formando um�rto universo, cujos
élcmentos interdependentes mantêm entre si relações associativas
No entanto, se concebermos a "literariedade" como sujeita a
e fUií'êíõnais,e"i'n constante processg. 5 Uma obra pod_e ser c91]side-
mudanças, será que isto não significaria que não podemos mais
-i 1·a�edria (_ou nã�) em função de um julgamento que, em cada
determinar, com um certo grau de precisão, o que ·vem a ser
pe.!i2._do, é con_seqüência das normas estéticas a parti i:_ das quais se
literatura? Como entào ficaria o trabalho do historiador literário,
julga. Ou seja, considerar um- texto como literário (Q.u__ não) depen-
se seu objeto nào tem delimitação precisa?
derá do contexto.
Para começar, reafirmaríamos o que já dissemos antes: a
Evidentemente, isto não implicaria na existência ele algo - o
própria mudança nos critérios e concepções sobre o que é litera­
contexto - que fosse externo ao texto, que o determinasse. Não
tura pode ser matéria de estudo para o historiador. Quando se
)
130 História da Literatura História da Literatura 131
haveria uma oposição dentro versus fora, não existiriam comparti­ A Recepção
mentos incomunicáveis, separando o texto·do contexto, que não
seria visto como "externo" em relação ao "interno" do texto. Hoje em dia, é comum conceber um estilo de época como um
Poder-se-ia, isto sim, dizer que o conte:,çto está "dentro", já que universo de autores e obras produzidas em uma "seção de tempo
determina as próprias fronteiras do que pode vir a ser considerado dominada por um sistema de normas literárias". 7 Caso adotásse­
como texto. Em outras palavras, o contexto não se reduziria a mos esta perspectiva, poderíamos dizer que p�rtenciam ao Roman­
envolver ou circundar o texto, porque, na medida em que fornece tismo as obras produzidas no intervalo temporal correspondente
as normas a partir das quais se delimita o que é texto, torna-se àquele estilo. Contudo, uma dúvida possivelmente surgiria, quan­
também parte constitutiva deste. do nos perguntássemos se pertenceriam ao sistema romântico
Será que um autor poderia ter a intenção de produzir uma somente os textos produzidos nesta "seção de tempo" ou também
ob i-a literária, se não houvesse uma concepção do que é literário, os textos que, embora escritos antes, ainda fossem lidos, ainda
anterior à produção de sua obra como· tal? A existência deste tivessem circulação e influência no meio sociàl. Em outras palavras,
"modelo" é o resultado das normas estéticas vigentes, que permi­ talvez nos indagásseirios se a história do Romantismo poderia
tem ao literato conformar-se com elas ou delas discordar, até limitar-se a registrar a produção das obras literárias desta "seção
mesm<? propondo sua substituição por outras. De qualquer jeito, de tempo" ou se deveria abranger também a recepção, inclusive
ao respeitai· as normas ou contestá-las, ele sempre conf1rma a das obras produzidas antes.
existência delas. Hans Robert Jauss, em um ensaio hoje famoso, assevera ser
O autor produz e o recepto,· lê uma obra considerada "literá­ necessário recuperar a dimensão da "recepção" da Literatura, visto
ria" dentro de um quadro de referências em que outras obras que mesmo o crítico que julga uma nova obra, o escritor que
"literárias" já foram e estão sendo produzidas. F. neste horizonte concebe sua obra à luz de normas positivas ou negativas de uma
que se manifesta a nova obra: a partir de uma concepção determi­ obra anterior, e o historiador literário que classifica uma obra em
nada pelas no1·mas vigentes, �anto o autor pode reivindicar produ­ sua tradição e a explica historicamente são, antes de tudo, simples­
zir quanto o leitor pode reivindicar ler uma obra enquadrada como mente receptores (leitores):
literária.
Portanto, é possível conceituar, delimitar ou definir objeti­ No tiiângulo de autor, obra e público, o último não é parte passiva,
vamente o que é literatura; já que um determinado contexto, a não é elo meramente reativo, mas, em vez disto, é ele próprio uma
partir de suas normas est�ticas vigentes, pode forn�cer uma energia formadorn da história. A vida histórica de uma obra_ de arte
certa representação "objetiva" -do literário. Mas também é pos­ literáda é impensável sem a participação a�iva de seus receptores.
sível suspeitar, como faz Jacques Derrida, que aquilo a que Porque é somente através do processo de sua mediação que a obra
chamamos "objetividade" impõe-se somente dentro de um con­ entra no horizonte de experiência mudável de. uma continuidade em
texto que é extremamente vasto, antigo, poderosamente estabe­ que ocorre a perpétua inversão da recepção simples à compreensão
lecido ou enraizado em uma rede de convenções (por exemplo, clitica, da recepção passi�a à ativa, das normas estéticas 1·econhecidas
a uma nova produção que as ultrapasse.8
as da linguagem) e que ainda assim permanece um contexto:
nesta perspect;va, "a emergência do valor da objetividade (e por
O triângulo autor-obi-a-público recebeu também a atenção de
conseguinte de tantos outros) também pertence a um contex­
Jorge Luis Borges, no seu Pierre Menard, autor do Quixote. Neste
to".6 Assim como pertence a um contexto o nosso discurso ao texto, que pertence a um volume significativamente intitulado
longo deste ensaio, que pretende apenas discutir esquematica­
Ficções, há um narrador não identificado cujo discurso é uma
mente quatro questões ligadas à História da Literatura: a i·ecep- paródia de uma beletrista típico da passagem do século XIX para
ção, a descrição, a origem e a tradição. o século XX. Ele discorre sobre a obra de um tal Pierre Menard,

j_,
132 Histó,ia da Literatura
Histó1ia da Literatura 133
autor qu e teria pretendido, trezentos anos após a publ icação do tiva , derivada ele uma pré-compreensão do gênero, forma e temas
Dom Quixote, escrever esta obra de Cervantes. Menard teria dito, das obra s que l he sel'iamjá familiares. O gênero, forma e tema s
em u ma carta : "Posso premeditar sua escrita, posso escrevê-lo, sem das "ficções caval eirescas" provavelmente não fariam parte de seu
incorrer numa ta utologia ."9 repertói-io, o que impediri a que este leit or sequer percebesse o
Possivel mente teríamos afirmado que a obra de Mena rd é igual ca ráter parodístico do Quixote. Ta l vez p u déssemos até imag-ina ,·
à de Cervantes, é uma cópia ou imitação literal , ou simplesmente que o repertól'io deste leitor hipotético não incluiria nem o próprio
que se trata da mesma obra. Mas o n�rrador nos diz que esta Cervantes; faríamos isto, é claro, só com o intuito de espec u lar que,
"mesma " obra é u ma "outra": "O texto de Cervantes e o de Menard neste caso o leitor atribuiria aquele texto apenas a Men ard: como
são verbalmente idênticos, ma s o segundo é infinitamente mais num al impsesto, a escritura anterior teria sido a pagadá e uma
rico."1º Por quê? Quais seriam as diferenças entre os dois textos o utra e so repona a el a. Contudo, não é para este caminho que
"verbal mente idênticos"? se dirige a reflexão do narrador:
Para começar, o primeiro Quixote ocupou um lugar vazio, por
assim dizer, que se preencheu com sua publ icação, enquanto o Refleti que é lícito ver no Quixote "final" uma es pécie de palimpsesto,
segundo encontrou um lugar já ocupado pelo primeiro.· Menard o qual devem transluzir os rastos - tênues, mas não indecifráveis -
diz que, enquanto Cervantes escreveu com liberdade de "inven­ da "prévia" escritura de nosso amigo. 14
ção", foi "espontâneo" e "não recusou a colaboração do a caso", ele
teve que aniquil ar qualquer possibilidade de "variante do tipo Pode-se também interpretar que os dois Quixotes "verbal mente
�ormal ou psicológico", teve que sacrificar esta s possibil idades ao idênticos" são u ma imagem construíd a por Ilorges pa ra disculir a
texto original, porque contraiu o "misterioso dever de reconstr uir questão da permanência e continuidade da "mesma" obra. Cervan­
literalmente sua (de Cervantes) obra espontânea". 11 tes e Menard podem significar que o "mesmo" pode ser um
A.s duas obras eram "verbalmente idênticas", ma s na opinião "outro". Em outra s palavras, o problema dos dois Quixotes ( que são
do narrador beletrista, tinham estilos diferentes. As mesma s pala­ um só?) pode nos leva r a pensar que a estrut u ra de um mesmo
vras de Cervantes, quando empregadas na época de Menard, são texto, "verbalmente idêntica", impl ica também al teração, fazendo
"arcaísmos"; além disto, sendo francófono, para Menard o espa ­ com que, em última instância, o texto só possa permanecer o
nhol é uma língua "estrangeira ". Por estas razões, o bel etrista mesmo como um outro.
a firma : O historiador literário, hoje, tem diante de si o Dom Quixote de
} Cerva ntes como um remanescente de outra époc a: ele apreende
Vívido também é o contraste dos estilos. O estilo arcaizante de nesta obra o pa ssado que ela nos lega, como resquício de um
Menard - no fundo estrangeiro - padece de alguma afeu�ção. Não momento histórico que já não existe, ao mesmo tempo em que
assim o do precursor, que com desenfado maneja o espanhol çorrente
percebe o presente de su a própria subsistência, como objeto. O
de sua época.12
Quixote é também uma espéçie de estt·utura iterativa que se repete
e pode ser lida, o u não, a qualquer momento, o que lhe permite
Podería mos-acrescentai: que o primeiro Quixote encontrou, em
insc1·eve1·-nos em vários e sucessivos contextos e, ao mesmo tempo,
sua época. de publicação, u m leitor que estava familiarizade com
escapar do controle do autor e de suas possíveis intenções, do
os roma nces de ca valaria, e pôde entendê-l o como u ma paródia
público inicial e de seus sucessores, eximindo-se de pertencer
destes, ou como u ma-narrativ a 9ue aparer:itava inicialmente satis­
excl usivamente a qualquer contexto .
fazer o horizonte de expectativa 5 do leitor, para depois insatisía­
Se a s possibi lidades de inscrição em contextos diferentes são
zê-lo, ao romper com o modelo cavaleiresco. O leitor da época de
Menard, por outro lado, não teria o mesmo horizonte de expecta- infinitas, então a própria idéi a ela perma nência a bsol,uta parece
prejudicada. A obra, como estrutu1·a ite1·aciva, remanesce ap6s e
J

)
131 História da Literatura História ·da Literatura 135
além de normas e convenções de seu momento de produção, encaixará? Como saber o ponto de vista com que os. críticos e
reinscrevendo-se em outros momentos históricos, sob outras nor­ historiadores julgarão as obras contemporâneas, passadas e futu­
mas e convenções, que pod�m deslocar, subverter e desencaixar a ras? Como conhecer as significações e valores que nortearão ·o
obra em relação à sua "origem", tra.nsformando-a, de certa manei­ julgamento da poste1·idade?
ra, em "outra coisa". De qualquer maneira, se o leitor está implicado na própria
Borges, em vez de aderir à concepção de que existe um único construção da imagem da obra, talvez possamos dar ouvido� a Paul
Quixote, sempre igual a .si mesmo, preferiu imaginar que este
·.� de Man. Para ele, "as bases para o conhecimento histórico não
-
...,, a
�.'
"igual" pode ser diferente, que este um pode ser outro. O Quixote �
serão fatos empíricos, mas tex.tos escritos"; por conseqüência, a
seria este mesmo que se altera em cada contexto singular, a cada leitura - a "interpretação literária - desde que seja uma boa
leitura. Daí a importância atribuída por Borges ao leitor. Para ele, 18
interpretação" - é de fato história literária.
"os bons leitores são cisnes ainda mais negros e s�ngulares que os Como um livro é uma estrutura que !;C reitera e se reinscreve
15
bons autores" e "a glória de. um poeta depende, em suma, da em sucessivos contextos de recepção, pode inclusive vir a produzir
excitação ou da apatia das gerações de homens anônimos que a efei_tos indesejados e insuspeitados pelo autor- até mesmo contrá­
aprovam na solidão de suas bibliotecas". 16 dos a suas intenções. É possível que autores e ob ras não sejam,
É claro que a aprovação destes homens anônimos - ou a sua afinal de contas, uma propriedade absoluta do passado, inde­
reprovação - não é um ato absolutamente individual, atribuível pendente das sucessivas interpretações e reinterpretações com que
exclusivamente a cada um deles; pois a leitura apresenta aspectos se lhes descrevem.
privados e públicos, ao mesmo tempo. Afmal, o leitor singular
também se inscreve em uma tradição cultural em que se enraízam os
critérios que fundamentam a sua concepção de arte, a partir dos quais A Descrição
ele vai aprovar ou reprovar a obra na solidão de sua biblioteca.
A história das leituras no faz ver a obra como po1·ta.dora de Quando usamos conceitos como "período
literário" ou _"estilo de
uma significação passada, que pode ser para nós "estranha" "im­ époc·a", é impo1°tante estarmos conscien
tes de que este uso· implica
perceptível", "inaceitável", "correta", etc., mas que, de qualquer normalmente adotar um tipo de descrição
de um grupo de autores
maneira, nos sugere que a leitura é o encontro entre o paradigma e suas obras com o qual estes próprios auto
res não se descreveriam.
herdado; que constitui o horizonte a partir do.qual o leitor recebe Será que Lima Barreto se descreveria
como um autor . do
qualquer obra, e a obra específica que de efetivamente lê. Borges "período pré-modernista"? Seria possível,
para ele, desc1·ever Triste
imaginou que o livro é sempre "uma relação, é um eixo de fim de Policmpo Quaresma como uma obra pert
encente ao "pré-mo­
inumeráveis relações": dernismo"? Faremos uma breve digressã
o sobre as implicações
destas perguntas, pa ra que possamos nos
situar melhor frente a
Uma literatura difere de outrn ulteri.01· ou anterior, menos pelo texto elas.
do que pela maneirn de ser lida; se me fora outorgado ler qualquer Para começar, afirmaremos que não seria
página atual - esta, por exemplo - como será lida no ano dois mil, possível a Lima
Barreto descrever sua obra como "pré-IT!_
eu sabe1·ia como será a literatura do ano dois mil. 17 Odernista" pela si_mples
razão de que esta descrição não é contemp
orânea da obra: o termo
"Pré-modernismo" foi criado depois do
Na verdade, não só é impossível ler uma obra presente como "Modernismo", pela adi­
ção de um prefixo cuja funçãó consistiria
os leitores futuros o farão, como também não se pode prever com em situar aqueie período
antes deste, numa seqüência cronológ
exatidão sequer se esta obra será considerada digna de ser lida, aos ica. 19 Por ser predicado
atribuído postei-iormente a Triste fim de Polic
olhos deles. Como saber em que quadro de referência ela se arpo Quaresma, "pré­
Moden1ista" é, por conseqüência, uma qual
ificação retrospectiva-

\

136 História da Literatura História da Literatura 137

mente imposta à obra-por um historiador inserido em um momen­ ros", mas impossíveis· de serem detectados por-uma testemunha
to futuro (entenda-se: futuro em relação ao momento de produção ocular na época.
da obra). É claro que, nas descrições históricas, este tipo de frase, em
Na pesquisa histórica, é um lugar comum afirmar que os que se conjugam elementos pertencentes a momentos diferentes,
eventos anteriores vêm antes dos posteriores, os antecedentes é muito freqüente. 20 E ce1·tamente seria difícil rejeitar uma sentença
antes dos conseqüentes, as causas antes dos efeitos e assim por descritiva, sob a alegação de que o predicado remete a um momen­
diante. Certamente, se adotarmos esta perspectiva, diremos que o to histórico diferente do sujeito. Mesmo porque este tipo de
"Pré-Modernismo", vem antes do "Jvfodernismo", ou que aquele é sentença também caracteriza desuições cuja extensão pode conec­
antecedente e este conseqüente. Mas será que não poderíamos tar dois elementos separados no tempo, gerando significações
dizer que foi o conseqüente (o "Modernismo") que gerou o ante­ diferentes. Se dizemos "Machado de Assis influenciou Cyro dos
cedente, e não o contrário? Afinal, sabemos que o "Pré-Modernis­ Anjos", devemos nos conscientizar de que indicar Cyro dos Anjos
mo" só virou antecedente depois do "Modernismo" ter ocorrido: como obj�to da influência de Machado de Assis significa, entre
a criação deste termo é que determinou· a criação daquele, e não outras coisas, descrever este autor. de urna maneira diferente
o contrário. Em outras palavras, ao criar o termo "Pré-Modernis­ daquela como o teríamos descrito se não existisse aquele outro
mo", o que o historiador fez foi traduzir uma tentativa de descrever autor, ou se não o conhecêssemos.
o antecedente a partir do conseqüente, uma- tentativa de repre­ Este exemplo sumário serve para demonstrar que um mesmo
sentar o que vem antes a partir da imagem do que vem depois. autor pode ser submetido a várias e não-idênticas descrições por
.É bem verdade que determinar o antes e o depois ·parece ser diferentes historiadores, em vários e sucessivos instantes, sem que
uma tarefa comumente atribuída ao historiador, mesmo quando o necessariamente se tenha de rejeitar como "falsa" ·uma delas, sob
"conseqüente" se projeta na própria descrição do antecedente, a alegação de que não co1Tesponde à outra. O predicado "influen­
) como vimos. Contudo, poderíamos também perguntar: será que ciou Cyro dos Anjos" não apareceria numa descrição do st�eito
esta projeção do depois na descrição do antes implicaria necessa­ "Machado de Assis" produzida no século XIX, mas isto í1ão signi­
} riamente uma ce1·ta deformação da própria descrição? fica que se tenha que _rejeitá-lo, por esta razão, ou por não corres­
Tomamos como exemplo, para discutir esta questão, uma ponder a outros predicados p1·oduzidos naquela época. Na
frase - "O autor de Esaú e Jacó nasceu em 1839" -, que parece verdade, cada "novo" predicado pode somar-se a -outros, não
simples e não problemática, pelo menos para o senso comum do mutuamente exclusivos ("é o auto1· de 1-Jelena, era casado com
leitor contemporâneo, informado sobre os dados bibliográficos do Carolina Augusta Xavier de Novais, etc.), numa série sempre
mais famoso 1·omancista brasileiro. Porém, _se pudéssemos Voltar aberta, em que as possibilidades são infinitas.
no tempo, para alcançar um leitor hipotético em julho de 1839, à. As descdções históricas est.-'io submetidas, não somente às
quem mostra1·íamos a mesma frase, talvez nos surpreendêssemos. implicações do passado, màs também às suas conexões com efeitos
Pois, para este leitor, o sintagma "O autor .de Esaú e Jacó" não e conseqüências posterio1:es. Nas representações contemporâneas
possuiria referente. Afinal, como pode1·ia ele predizei· que o i:ecém­ da história da literatura brasileira, certamente podemos dizer que
_)
nascidoJoaquim Jvlaria 1'v1achado de Assis viria a ser escritor e Machado de Assis é um antecedente que tem como "conseqüente",
) publicaria, no século seguinte, este romance? Então, podemos entre outros, Cyro dos Anjos. No entanto, mesmo se fosse possível
imaginar até que aquele leitor hipotético tenha sido testemunha voltar no tempo, não elidamos que Machado de Assis tencionava
ocular do nascimento de Machado de Assis, mas que jamais escre­ iníluenciar Cyro dos A1-üos, já que esta intenção não encont1·a1·ia
veria o evento com a frase: "O autor de.Esaúejacó nasceu em 1839." objeto em que se pudesse concretizar. Então, existe uma situação
) Isto po1·que, se o fizesse, estaria descrevendo um evento "presente" em que a obra de 1\ifachado de Assis apresenta efeitos e conseqüên-.
à luz de "coisas futuras", pois a descrição contém dados "verdadei- cias imprevistos pelo prd(,1·io aútor, embora nem por isto menos
:./
f J.
138 Histó1·ia da Literatura Hist<nia da Literatura 139

dignos de consideração por parte do historiador. Machado de Assis do conexões entre autores e textos, de uma maneira específica. A
.
f!
jamais se imaginou como antecedente ou precursor de Cyro dos
Ar-uos, embora uma descrição co'ntemporânea possa estabelecer
narrativa de Borges, ao agrupar estes determinados aut01·es desta
maneira, estabelece uma ordem, cria uma estrutura significativa
ligações entre ambos. Todavia, é interessante nos conscientizarmos que pressupõe critérios em relação aos quais a própria narrativa se
de que, neste caso, o antecedente ou precu_rsor s6 é reconhecido constitui assim. Na imagem histórica construída por Borges, entre
como tal após a presença do conseqüente. Ou em outras palavras: out1·as coisas, os textos e autores agrupados não têm o mesmo
é o conseqüente que· torna possível atribuir a qualificação de sta.tus, visto qt1e quase a totalidade deles teleologicamente.remete
antecedente. Se não existisse Cyro dos Anjos, a frase "Machado de a um: " ... as peças heterogêneas que enumerei se parecem com
Assis influenciou Cyro dos Ar-uos" não encontraria referente e Kafka ( ...)". 2'1
Machado de Assis não poderia ser descrito como influenciador,
precursor ou antecedente deste. �.
Jorge Luis Borges, em um brilhante ensaio intitulado "Kafka A Origem
e seus precursores", produz uma ar·gumentação interessante so};)re
esta questão. Examinando uma série de textos de Zenon, Han Yu, Nas histórias da Literatura Brasileira, são comuns as repre­
Kierkegaard, Leon Bloy e Lord J?unsany, que ele denomina "pre­ sentações teleológicas. Em outras palavras, é comum representar­
cursores", chega à seguinte conclusão: se a História da Literatura Brasileira como uma "evolução" em
direção a um objetivo, a autonomia, entendida como rompimento
Em cada um destes está a idiossincrasia de Kafka, em grau maior ou dos laços com a metrópole e criação de uma identidade própria.
meno1·, mas se Kafka não houvesse escrito; não a perceberíamos; vale Freqüentemente esta representação pressupõe que Portugal seja o
dizei·, não existiria. 21 "outro" em relação ao qual o nosso "eu" ·se constitUi.
Assim, ao imaginarmos a Literatura Portuguesa como o "ou­
Segundo Borges, "cada escdtor cria seus precursores": "seu tro" a partir do quaVcontm o qual/com o qual a nossa Literatura se
trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modi- constitui, construímos muitas vezes ·uma imagem totalizadora e
22
ficar· o futuro". originária daquela Literatura. Dizemos, por exemplo, que Portugal
Se desejássemos acrescentar novos tópicos à argumentação do é a origem de estilos de época que imitamos. Contudo, se deslo­
escritor ar·gentino, poderíamos dizer que considerar qualquer carmos nosso ponto de vista, se nos permitirmos imaginar outras
autor como "precursor" de Kafka significa mais do que apenas origens, podemos também indagar: "por que dizemos que imita­
fazer uma afirmação sobre esse autor qualquer. Considt!t.U- Han mos estilos de época portugueses, se não podemos afirmar que
Yu como "precursor" de Kafka é também vê-lo de uma maneira estes estilos eram originalmente·portugueses?"
diferente da que o veríamos, s� não conhecessêmos . o escritor Será que não estaremos limitando nossa imagem d� "origem"
theco. Além disso, se a obra do chinês só fosse considerada como ao considerarmos apenas a possibilidade da Literatura Portuguesa
relevante por um historiado1· por ter antecipado temas kafkianos, como fundamento absolutamente originái-io da Literatura Brasi­
então teríamos uma curiosa circunstância em que a importância leira? Afinal, também podei-íamos perguntar em que se enraíza este
de Han Yu se1·ia derivada da existência de um autor que ele jamais fundamento, que não funda a si próprio, mas é engendrado a partir
conheceu, porque lhe foi posterior: Kafka. de uma herança histórica que ele próprio não inaugura, herança a
Ao atribuir a Kafka este "precursor", Borges já estava cons­ que chamamos, entre outros nomes de "civilização ocidental".
tn1indo uma imagem histórica: estava elaborando uma. narrativa Outro problema, ainda relacionado a o�igem, que atormenta
.
que, de certo modo, d escreve e exp1rca,2a orgamzan
• , .
do os top1cos
nossos historiadores, é o de determinar qual é a obra que_ inicia.
do discurso de acordo com um quadrO"de referências, estabelecen-
determinado estilo de época: seria O Mulato (1881), de Aluísio
1
110 História da Literatura História da Literatura 141

Azevedo, ou Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) de Mach :i do anteriores; 2) uma noção preestabelecida socialmente sobre o que
de Assis, o "marco inicial" do Realismo no Brasil? é Literatura; 3) um arsenal de recursos artísticos (rima, acentuação,
Curiosamente, esta freqüente preocupação com a definição narrativa em primeira ou terceira pessoa, figuras de linguagem,
do marco inicial não gerou, paralelamente, uma reiterada preÓcu­ etc.) previamente existentes, que nos fazem, no mínimo, pensar
pação com um marco terminal. Parece que ao desejo de marcar que esta pretensa originalidade da obra tem outras origens.
vigorosa e enfaticamente a origem não tem correspondido um Se mudássemos o foco de nossa indagação, para abordarmos
oposto simétrico: o desejo de marcar o término. A mesma voz que as origens das designações dos períodos literários, não deixaríamos
afirma com segurança e precisão que o Romantismo no Brasil de encontrar também problemas complexos. Afinal, há várias
começa em 1836, com a publicação de Suspiros poéticos e saudades, perguntas sem respostas sàtisfatórias. Devemos manter os nomes
pode ser extremamente reticente quanto ao seu final, usando dados aos estilos de época, correndo o dsco de esquecer· que estes
expressões vagas e imprecisas: "cerca de" , ."ao
. redor de", etc. Talvez nomes -e o âmbito daquilo que designam -são o testemunho de
a própria idéia de atribuir limites temporais aos estilos -vinc_ulados uma perspectiva do passado, portanto sujeita a críticas? Ou deve­
a obras e autores - esteja merecendo estudos mais aprofundados, mos criar agora novos nomes, com o risco de projetar sobre o
que questionem as próprias noções de término e origem. passado os valores da nossa nomeação presente, talvez perdendo
Além disso, há também a idéia de "originalidade", que parece a noção de especificidade dos fenômenos passados?
ser o valor básico de _muitos historiadores e críticos contemporâ­ Quando usamos o termo "Barroco" para classificar autores
neos. Valoriza-se este autor, porque é orig·inal, condena-se aquele como Gregório de Matos ou Antônio Vieira, precisamos ter em
porque não o é. _ Gregório de Matos, . por exemplo, tem sido mente que aqueles autores jamais se classificariam assim, não
tradicionalmente acusado de não ter originalidade. No entanto, porque disco1·dassem do emprego deste vocábulo para designar as
poderíamos indagar, como o fez João Carlos Teixeira Gomes, 25 se obrns deles, mas simplesmente porque o termo não eta empregado
esta concepção de originalidade não seria um valor recente na como designação de um estilo de época, nó momento em que os
História da Literatura, derivado basicamente de "crença românti­ dois escreveram. Ao que parece, o primeiro autor a usar a palavra
ca" na possibilidade de se criar uma obra "produzida nas camadas "13arroco" com referência a Literatura foi Heinrich Wolfflin, em
profundas do eu criado1: com o selo peculiar de um fato irrepetí­ 1888, e, mesmo assim, o vocábulo não seria ad_otado correntemen­
vel". A partir desta indagação, podemos até concluir que, se houve te por um longo período: "A enorme voga do Barroco como termo
26
·momeritos em que se valorizou a possibilidade de _criar uma obra lite1-ário só começou na Alemanha, po1· volta de 1921-1922."
completamente "original", também houve momentos em que se . Além disso, se fizermos um mapeamento dos significados
valorizou à-"imitação dos mestres". E nestes momentos, obviamen­ atribuídos ao Barroco, veremos que este não posslii apenas uma
te a originalidade (no sentido rom�ntico do termo) seria mal vista, acepção, invariável através dos tempos. Em outras palàvras, em vez
desvalol'izada ou mesmo inconcebível. No caso de Gregório de ele imaginarmos o termo c·omo dotado de conteúdo permanente,
Jv-fatos, que escreveu num momento e.m que a absorção de outros universal e _ imutável, parece ser mais condizente com a realidade
textos, precedentes ou contemporâneos, e1·a a norma predominan­ iinaginarmo-lo como uma casca verbal, preenchida por vários e
)
te., se.-ia inadequada a cobrança de "originalidade", como sugere sucessivos conteúdos, não necessariamente semelhantes. Uma vi­
Gomes. - são histórica cio Barroco deverá levar em consideração que o
E clarn que poderíamos acrescentar outros tópicos� se argu­ conteúdo que lhe atribuímos influirá na imagem que po'ssuírnos
meritássemos contra ·uma idéia radical de odginalidade. Observa­ dele como um elo na cadeia dos estilos de época.
ríamos, por exemplo, que uma obra literária nunca tem "origem" Nas Histó.-ias da Literatura é também freqüente· verem-se os
} apenas no auto1· ou em si mesma.- Ela se fundamenta, entre outras estilos de época _como Sistemas que possue·m limites, geográficos.
coisas; em: l).urna língua que a constitui, cuja origem e uso lhe são e/ou temporais. Quando se fala em Romantismo Brasileiro, ima-
)

)
142 História da Literatura História da Lit.erat.ura· 113

gina-se, por exemplo, um sistema cujo limit<:;·temporal inicial é vida toda ou apenas parte dela? As obras produzidas por este autor
1836 e cujo limite geográfico, por assim dizer, é o território enquanto viveu no Brasil pertenceriam à Literatura Brasileira e as
brnsileiro. Esta visão apresenta um grande número de problemas, outras à Literatura Portuguesa? Para julgar se os autores são
alguns dos quais passaremos a enumerar, seguincf:o as sugestões de brasileiros ou não, devemos considerar retroativamente os limites
Flávio Kothe.Z7 ·- geográficos atuais do estado brasileiro, ignorando que, anterior­
Primeiramente, poderíamos indagar: é "possível falar em Lite­ mente, não existiam nem estes limites nem este_ e�tado? Além disto:
ratura Brasileira, quando o Brasil não existia como nação, hem
como país"?28 É bom lembrar que as idéias de nação e nacionalis­ Se a definição é feita segundo a certidão de nascimento, devem ser
mo, não só aqui como também em todo o Ocidente, estão longe excluídos da Literatura Brasileira todos os autores que nasceram em
de representar conteúdos neutros e universais, válidos _em qual­ Portugal e escreveram aqui? Se a definição se dá segundo o critério
29
quer momento, assim como a definição das fronteiras "geográfi­ do local onde o texto foi escrito (para incluir os portugueses que
cas" do estado que hoje se denomina Brasil ou a sua transformação escreveram no Brasil), <levedam ser excluídos da Literatura Brasileira
em "país" autônomo politicamente em relação a Portugal, são todos os textos escritos por bras1leiros no estrangeiro (inclusive a
Canção do Exílio)? Qual a classificação de um texto escrito por alguém
eventos relativamente recentes ... nascido no Brasil, sob1·e tema brasileiro, mas redigido cm língua que
Ao usarmos a designação "Literatura Brasileira", projetamos - •
nao seJa o portugues
• ?30

sobre o passado uma noção de estado constituído, que já vem junto


de uma série de outras noções, entre elas: nação, limites jurídicos Questões desta natureza não se restringem ao âmbito da
e geográficos, etc. Consideramos Gregóri� de Matos pertencente Literatura Brasileira e podem ser formuladas em outros contextos
à Lite1'atura Brasileira, embora saibamos que, na época dele, o nacionais. Elas põem em xeque os próprios pressupostos a pa1·tir
Brasil não existia como estado constituído. dos quais se constituíram as diversas Histórias da Literatura e nos
Assim, devemos nos conscientizar de que atrelar os limites dos fazem suspeitar de que cada uma delas paga um pesado tributo à
"sistemas" às variantes jurídicas e geográficas que definem os sedimentação cultural a que chamamos de "tradição".
estados significa, concretamente, submeter-se à idéia de um siste­
ma literário cujas fronteiras e conte�dos variariam de �empos em
tempos. Significaria submeter-se à idéia de que, �ntes da reunifica­ A Tradição
ção, haveria um "sistema" literário da Alemanha Ocidental e outro
da Alemanha Oriental, por exemplo. Após a reunificação, ambos Paul Ricoeur afirmou, em ensaio recente, que a constituição
os sistemas, imediatamente, se transformariam em um só, modifi­ de uma tradição "repousa sobre o jogo da inovação e da sedimen­
cando suas fronteiras e conteúdos, através da fusão. tação".31 Muitos teóricos têm fundamentado suas obras em afirma­
No1·malmente, a adoção de limites "geográficos" traz também ções análogas. Os formalistas russos, que seguiram esta �ireção,
consigo uma noção de origem. Isto é, freqüentemente classificam­ imaginaram que a evolução literária se dari<!- quando os procedi­
se como pertencentes ao sistema da Literatura Brasileira os autores mentos artísticos inovadores de uma obra ou de um grupo de obras
nascidos e textos produzidos no Brasil. Mas esta classificação está desafiassem um s_istcma sedimentado de elementos dominantes: a
também longe de ser pacífica, pois acarreta uma série de outras passagem de um período literário para outro seria considerada
questões mal resolvidas. Se adotarmos o critério de considerar que como uma "substituição de sistemas". Quando os procedimentos
pertencem à Lite1·atu1·a Brasileira todos os autores que nasceram artísticos Ínovadores do sistema neoclássico, por exemplo, passas­
ou viveram no Brasil, por exemplo, podemos perguntar: Antonio sem a ser adotados por um grande número de escritores, então se
José, sua obra e sua visão do mundo seriam brasileiros? No caso tornariam "automáticos", perderiam o.caráter de novidade, para
dos que viveram no Brasil, como Antonio Vieira, seria preciso a se tornarem mera repetição. Por conseqüência, surgiria a �ecessi-
\
144 História da Literat-'ura História cja Literatura 145

dade de uma "desautomatização", da criação de um estilo«novo" A idéia de que há efetivamente um estado sincrônico, uma
- o Romantismo - que proporia diferentes elementos como "ordem existente" que "está completa antes da nova obra surgir"
34

"dominantes" e possuiria "procedimentos" inovadores em relação talvez não torne claro que a própria constituição da imagem de
aos anteriores. completude requereu uma série de operações prévias. Eliot insinua
Curiosamente, embora adotasse o ''.jogo da inovação e da um quadro de estabilidade, que somente seria perturbado pelo
\ sedimentação", os formalistas não associaram este ''.jogo" à palavra advento de uma "nova" obra:
tradição, cujo emprego criticavam:.
Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre eles, que
A noção fundamental da velha história literária, a "tradição", não é é modificada pela introdução da nova (da realmente nova) obra de
mais que a abstração ilegítima de um ou muitos elementos literári9s arte entre eles. 35
de um sistema no qual eles têm um certo emprego e certa função,
não é mais que sua redução aos mesmos elementos de um outro Só que, se repararmos na argumentação de Eliot, a "nova obra"
sistema no qual eles têm.um outro emprego. O resultado é uma série
de certa maneira invoca a "tradição", os "monumentos existentes",
unida apenas ficticiamente, que não terri senão a aparência de
"entidade".32 para que se note sua diferença em relação a eles . Afinal, ele afirma
que nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte possui sua
Um dos mais influentes ensaios teóricos a tratar desta questão significação completa sozinho36 : são necessários "contraste" e
foi "A tradição e o talento individual", de T.S. Eliot. Neste texto, "comparação" parn avaliá-lo; é preciso relacioná-lo com os "poetas
ele afirmava que o senso histórico de um escritor implica a percep­ e artistas mortos",37 isto é,-COf!1 aquele grupo que constitui os
ção não. som.ente do caráter pretérito do passado, mas do seu "1nonumentos" que forma1n a "tradição", ou o "cânon", se quise­
caráter presente: rem.
Na visão eliotiana, o "novo" p1·essupõe a "tradição" contra a
... o senso histórico compele um homem a escrever não meramente qual se insurge, pará depois ser assimilado:
com sua própria geração na sua pele, mas com o sentin1:ento de que
a totalidade da literatura da Europa desde Homero - e, dentro dela, A ordem existente está completa antes da chegada da nova obra;
a totalidade da literatura de seu próprio país - tem uma existência para a ordem persistir após o advento da novidade, toda a 01·dem
simultânea e compõe uma ordem simultânea. 33 existente deve ser, ainda que muito levemente, alterada; e assim
as relações, proporções, valores de cada obra de :trte em relação
Quando Eliot fala da "totalidade da lÍteratura da Europa desde ao todo são 1·eajustadas; e isto é a confon11idade entre o velho e o
Homero", podemos presumir que não se trata literalmente de novo. 38
todas às obras escritas desde o poeta grego, mas apenas de um
Em última anális_e, a chegada de uma obra "realmente nova"
universo selecionado a que se atdbui valor positivo, que constitui
a "tradição", segundo a expressão eliotiana, o "cânon", segundo significa a adesão dela ao fundamento da "ordem existente", a
outros críticos. 1-'las devemos sempre ter em mente que o processo partir da qual ela foi considerada "nova". A imagem d� uma
ele ·constituição da "tradição" não é aleatório; necessariamente ', "ordem existente", idêntica a si mesma, oculta as diferenças que se
agregam a esta identidade, pois o "novo", o diferente passa a'·integrar
adota determinados pontos de vista, visões de mundo e normas,
em detrimento a outràs. Trata-se de selecionar ou recusar, incluir
·,
�' esta "ordem", que, paradoxalmente, não é idê_ntica à anterior. Em
�..: out1·as palavn1s, falai· em "01·dem existente" também é, de certa
ou excluir, lembrar ou esquecer,'valorizar ou desvalorizar, aceitar ·•;,1-
;
maneira, criar uma imagem de identidade, escamoteando a alteri­
ou rejeitar, condenar ou reabilitar, ainda que, em determinado

t
momento, haja dificuldade de perceber estas operações. t dade que a.constitui. Ao adotar esta fala, dificilmente estaremos
disponíveis ou abertos para o que ainda não é, par-a o que não pode

)
116 História da Literatura História da Literatura 147

�er p�nsado a parti�· desta "ordem", porque não pode ser captado, 6. Jacques Den-ida, Limited Inc. (Evanston: Northwestern University
1magmado ou previsto por seus paradigmas estabelecidos. Press, 1988), p. 136.
O outro desta ordem não pode ser o _que adere a ela, o que 7. René Wellek e Austin Warren, The01y of Literature (New York: Har­
confirma sua representação de identf,dade, ainda que se chame de court Brace & Wodd, 1970), p. 265.
8. Hans Robert Jauss. "Literary History as a Challenge to Litera1-y
"novo". T<_tmbém não pode ser o seu oposto, pois o modelo negativo, Theory", em Toward an Aesthetic of Reception (Minneapolis: The Uni­
mesmo contrapondo-se a ela, utiliza a pr6pria ordem como refe­ versity of Minnesota Press, 1985), p. 19.
rência. O outro talvez seja o que é impossível referir a e$ta ordem, 9. Jorge Luís Borges, Ficções (�o de Janeiro: Globo, 1989), p. 34.
o que não se pode enunciar, anunciar ou prenunciar a partir dela. 10. Borges, ibid., p. 36.
. Entretanto, a representação de identidade desta ordem tam­ 11. Borges, ibid., p. 35.
bém pode ser questionada pelo estudo daquilo que foi desvalori­ 12. Borges, ibid., p. 37.
zado, esquecido, rejeitado.ou excluído por·ela,já q\le este estudo 13. Sobre a noção de "horizonte de expectativa", cf. Jauss, op. cit.;
Wolfgaµg !ser, The Act ofReading (Baltimore and London: The Johns
pode servir para tornar mais claras as convenções, normas e valores
Hopkins University Press, 1978).
que a fundamentam, e a partir de que se determinaram a valoriza­ 14. Borges, Ficções, p. 38.
ção, a lembrança, a aceitação e a inclusão. 15. Borges, História Universal da Infâmia (Rio de Janeiro: Globo, 1988),
É claro que alguns historiadores e críticos sempre poderão alegar P· XX.V.
a impossibilidade de "descalçarem seus próprios sapatos", de "serem 16. Borges, "Sobre os Clássicos", em Nova Antowgia Pessoal (Rio de
dife1·ent�s do que efetivamente são" - ou qualquer outra figuração Janeiro: Sabiá, 1969), p. 238.
de linguagem que justifique absterem-se de ir além dos limites de seu 17. Borges; Obra Completa (Buenos Aires: Emecé, 1974), p. 747.
modo de conhecer. Explicariam, assim, a sua permanência no círculo 18. Paul de Man, "Litera1-y Histo1-y and Literary Modemity", em Blindness
das significações perigosamente comuns, que compõem a "tradição" and insight (Minneapolis: The University ofMinnesota·Press, 1983),
p. 147.
deles. Contudo, estes historiadores e críticos poderão também vir a
19. Para uma noção mais detalhada do "Pré-modernismo", ver: SOBRE
suspeitar que estes "sapatos" e esta "maneira de ser" não são os únicos o Pré-modernismo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
possíveis. A suspeita talvez evite que,arrogantemente,tentem impor 1988.
sua sombra às margens do vulto que projetam. Ou talvez implique 20. Para uma análise detalhada das chamadas "sentenças históricas", ver:
eles se imaginarem os artífices da construção de seu próprio vulto, Arthur C. Danto, Narra.tion and Knowledge (New York: Columbia
com uma reserva incalculável de sombra. University P1·ess, 1985). Seguimos o caminho dele, em nossa argu­
mentação.
21. Borges, Obm, p. 711.
22. Borges, ibid., p. 711.
Notas 23. Sobre o discurso histórico como natTativa, ver: Danto, Narration;
Hayden White, The Contmt ofthe Fonn (Baltimore: TheJohns Hopkins
1. Cf. B. Eikhenbaum et alii, Te01ia da Literatura (Porto Alegre: Globo, University Press, 1987); Louis Minsk, Histo1ical Understanding(Ithaca:
1976). Comell University Press, 1978).
2. Ibid., p. IX. 24. Borges, Obra, p. 711.
3. Alfredo Bosi, 1-Iistdria Concisa da Literatura Brasileira (São Paulo:
Cultrix, 1977), p. 61.
l 25. João Carlos Teixeira G�mes, G1·egório de lvfatos, o Boca de Brasa
(Petrópolis: Vozes, 1985), especialmente pp. 84-90.
4. A. J. Saraiva e O. Lopes, Históiia da Literatura Portuguesa (Porto: 26. René Wellek, "O Conceito de Barroco na Cultura Literária", em
Porto-Figueirense, s.d.), p. 666. Conceitos de C11tica (São Paulo: Cultrix, s. d.), p. 74.
5. Cf.José Luis Jobim, "A Norma Estética", em M. C. Wanderley e J. L. 27. Flávio Kothe, Litemtum e Si.stemas Intersemióticos (São Paulo: Cor­
Jobim, org., Sociologia da Literatura (Niterói: Universidade Federal tez/ Autores Associados, 1981 ).
Fluminense, 1989), p. 23.

'i
\

'\
'\
118 História da Literatura I-Iistó,ia da Literatura lL/9
)
) 28. Kothe, ibid., p. 62. 16. RlCOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983-5, v. 1-3.
29. Cf. Ei-ic Hobsbawn, Nações e Nacionalismos desde 1780 (Rio-de Janeiro, 17. SOBRE o Pré-Modernismo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
'\
Paz e Terra, 1991). Barbosa, 1988.
) 30. Kothe, Literatura, p. 62. 18. WELLEK, René. "O Conceito de Barroco na Cultura Literária."
31. Paul �coeur, Temps et récit (Paris: Seuil, 1983), v. 1, p. 107. In: ___. Conceitos de Crítica. São Paulo: Cultrix, s. d.
32. Teoria da Literatura (Porto Alegre: Globo, 1976), pp. 106-7. 19. __ . & WARREN, Austin. Theo1y of Liierature. New York: Harcourt
33. T. S. Eliot, "Tradition and Individual Talent", em Hazard Adams, ed., Br.ace & World, 197ú.
Critica[ The01y Since Plato (San Diego: Harcoúrt Brace Jovanovich, 20. WHITE; Hayden. The Content of the Fonn; Narrative Discourse and
1971), p. 784. Historical Representation. Baltimore: TheJohns Hopkins Unive1·sity
Press, 1987.

Bibliografia

1. BORGES.Jorge Luis. "Sobre os Clássicos". ln: __. Nova Antologia


Pessoal. Rio de Janeiro: Sabiá, 1969. pp. 236-8.
2. __. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974. ·
3. __. Histó,-i.a Universal da Infâmia. Rio de Janeiro: Globo, 1988.
4. __. Ficções. Rio de Janeiro: Globo, 1989.
5. BQSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo:
Cultdx, 1977.
6. DANTO, Arthur C. Narration and Knowledge. New York: Columbia
University Press, 1985.
7. DE fyfAN, Paul. "Litera1yHisto1-y and Literary Modernity." ln: __.
Blindness arid Insight. Minneapolis: The University ofMinnesota Press,
1983, pp. 142-164.
8. DERRIDA, Jacques. Limited Inc. Evanston: Northwestern University
Press, 1988.
9. EIKHENBAUM, B. et alii. Teoria da Literatura; Formalistas Russos.
Porto Aleg1·e: Globo,· 1976.
10. ELIOT, T. S. "Tradition and Individual Talent." ln: ADAMS, H., ed.
C,itical Theo1y since Plato. San Diego: Ha"rcourt Brace Jovanovich,
1971, pp. 781-7.
11. GOMES.João Carlos Teixeira. Gregório de Matos, o Boca de Brasa; um

j
estudo de plágio e criação intertextual. Petrópolis: Vozes, 1985.
12. HOBSBAWN, Eric. Nações e Nacionalismos desde 1780; Programa, Mito
7 e Realidade. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1991.
13. JOBIM, José Luis. "A No1-ma Estética." ln: WANDERLEY, M. C. &
JOBIM, J. L. Sociologia da Literátura. Niterói: Universidade Federal
Fluminense, 1989, pp. 23-33.
11. KOTHE, Flávio. Literatura e Sistemas Intersemióticos. São Paulo, Cor­
tez/Autores Associaçios, 1981. ;
15. MINSK, Louis. Histo,·ical Understanding. llhaca: Cornell University '
Press, 1978.

IJJ
Ideologia

PedroLyra

1 - Introdução

Depois da derrocada dos sistemas de poder instalados em nome


do marxismo, muitos analistas proclamaram o fim da ideologia -
e de algu ns outros pilares identificadores da modernidade, como
a luta de classes, a gu erra fria, o humanismo, e até mesmo o fim
da própria história, além da grande a1·te, das.grandes construções
filosóficas, etc. � o fim de tudo isso seria o fim de uma era, de
um mund..Q, de uma b.UlI@..lli.dade.,J:QJXLo_c.ons.e.qüente e necessácio­
�arec..iraento de_outi;a era, de outro mundo,_de ruitra.h UIJ1a.nW.a.
de. Mas basta abrir os olhos ou ligar a tevê para perceber que não
�augurou nenhuma nova era - e que a era capitalista, com o
colapso da socialista, ganhou força para prolongar a sua hegemo­
nia p01· mais um século; que não sui·giu nenhum novo mundo - e
que o mundo burgu ês, sem o confronto com um outro, estruturado

�1
em bases divergentes, amplióu-se e voltou a se estender por todo
o plane.ta; que não apareceu nenhum novo homem - e que o
homem pós-soviético, com a revigoração do individualismo, ape­
nas retornou a padrões sociais de comportamento que o socialismo
tenta1·a ultrapassar.
É que coisas como essas não findam assim. A idéia de fim da
.�' história representa uma simplóri;;t confirmação de uma das mais

J
caras teses do p1·óprio marxismo: a q_e que �Ga-V-iàa
:;·�
�mmana até. hoje tem sido arenas a história da luta eela vida.
.----­

�1'·
)

152 Ideologia Ideologia 153

Acabou-se a luta, acabou-se a história. Em al guns países do primeiro seus fundamentos filo_sóficos não apena�Qermanecem intactQS_
mundo, os trabalhadores já haviam conquistado há algum tempo, �- como foram reconhecidQâ..P-ela cuítuiã ocidental - des_p.�qúe nãQ_
) bem antes da jJerestroika, os direitos sociais básicos. Para esses \,•.
. <;fega:n. suas esti:u.tura.s P-Olíü_co�canômicas. K;iesmo assim, algumas
povos, a luta de classes perdeu o seu apelo: em parte, eles vence- �- de suas propostas sociais acabaram incorporadas pela pT"6priã'""
ram. Não .que as suas sociedades esteja� se encaminhando para a pratica ca-n-t'<i·lísta sobretudo através da social-democracia eu..J:.Q;:_
superação das classes, mas para a eliminação do abismo que as _eeia. esses interessa o fim a ideologia, porque será o fim da luta,
separava:� a distânciaE,nã_o...é...tã.a.gxande,_o ideal marxista_de.uma­
sociedade humanizada pode estar sendo construído elos seus
ou seJã:o fim da ameaça a sel!s privilégios. Dedução: o fim de tudo
iss ': seria, �1mplesmente, � fim da esperança; e não ode ser � fi .
da 1deolog.@..P-,QLÇ e exatamente a sua no
t.'
1 ,

1/
' .
_prop..1].Ps
--���[tl �:versm� a sua pressao. O gia,__ //,
Naquele mundo, pode ter chegad ao fim a luta de classes, Assim, no primeiro mundo. Se olharmos ao terceiro; veremos
com a satisfação das necessidades básicas da classe_ trabalhadora e que é como se a história continuasse a se desenrolar em outro
com o acesso a certos bens da civilização contemporânea; e tam­ palco; como se essa enorme periferia não fizesse parte do planeta,
bém a gu erra fria, com a perda de poder real de um dos conten­ a não ser como fornecedores de matéria-prima e de mão-de-obra
dores, com a supressão da animosidade e com o reconhecimento -� descartável · ou como consumidores de mercadorias e serviços
do triunfo do out1·0, transformado em árbitro do planeta. Mas a
história só terá chegado ao fim como luta: está chegando ao seu . � lf rudimentares. Não como agentes e beneficiários da evolução.
N_este terceiro mundo, longe de findar. a história ainda está P-Q.r..
começo, como vida. Nesse sentido - como fim dos desníveis entre \_ começar; a h.1.ta-El.e-€1.a-sses_d__e.y_ora milhares de indivíduo..s a cada
os indivíduos, como fim das próprias classes, isto é, da divisão da �JJrn�a fcia_oãoJlud.o u_pp_rgu�1.9.,:fQL.só_fr.ia;_�a i9..eologi�
sociedade em ricos e pobres - o fim da luta de classes seria uma entre algun,!..�-s..e..l adicalizou ao E.2,Ilt9 d�p_cr:dei:�ei:i[n.:.
conquista universal. Mas o que eles querem impingir é apenas_Q___ eia de visão de mundo r.ara se efÕn!2_ar ÇIJl fan!1-tismo_p.elo qual
Jlm.-cl ta reservando as .sses, com a conseqüente resi� milhares de_R,es.so _ ..as.=.s.e.m.ne1Jhuma diferença - oferecem_ s ua vl_da
çl_os..explo�os para que Qossam exercer em paz asua exploracãa... em holocausto ou_�Ii!!!ifülm ª' dos outros em vingança.
Por isso �gam também o fim do humanismo - que seria não o A conseqüência mais notória e abrangente da queda do socialismo
'I'

firnêla'rutopia" de uma vida di na para todos mas a enas . o fim real é que o segundo mundo acabou-se em sua formulação primitiva, e
dÕ1·e s· peito ao outro, com um� a--!g!lª-ªP�ara os privile­ refluiu ao terceiro, aumentando o quintal do primeiro. Essa supressão
giados; o fim da filosofia - 9ue �_r.m, oão o fim daR,uel�gi:an� produziu a imagem perfeita do abismo que opõe os povos: não há mais
�fru:.ç�r<;1. forneçer uma compi::.eens.ã..9 .de conj.11.!1to do_uni-\lei;so._ seg1.mdo. O planem volta a ser manipulado por uma única ideologia no
) mas apenas� fim da provocação do pensamento: o fim da grande poder. Agora, só há o fosso - a separar a abundância e a privação, no
arte _ _:_ ue seda não a enas o fim do grande artista, mas o altar do mercado novamente universal, regido pela única "lei" que eles
) _$!l.il-Qnamento !Poteótico e absoluto da a1xana da cultura de reconhecem: o caos da oferta e da p1·ocura. Mas até quando o terceiro

_)
) �s_sa,_c__oJn a ofer elo �udismo comodista no lugar do.incômodo

uestionamento. . esse-''1-ruVõ'' m - reino encantado a
me 1ocn ade-embruteci a e satisfeita - eles chamam de pós-moder­
�!
�+:
vai se deixar explorar? Aqui, a luta continua, a história vai te1· de um clia
começar e a ideologia é a arma de que se clispõe para conscientizar esta
t1-ágica realidade. Conscientizá-la e tra1:isfo1·má-la.
) nfrlade. Triste conseqi.iência de uma era tão brilhante, que deu ao <:;;)
J · 1íolÍ1em a maior de todas as esperanças já alimentadas pela história
e depois o prost1·ou com a maior de todas as frustrações já p'ropor­ 2 - Consciência e/ ou Deform.ação
J cionadas po1· essa mesma história. Se e-se a era do consumo
gu
) inconseqüente da existência, sem alte1·nativa para um futuro pró­ �alavra ideologia engl.oha a totaliclad.Ldas can.çgecões_c_ultu1�.tUL,
ximo. � ideologia? A marxista perdeu o poder políti_co, m� os_ c!e um dete1·minad<Lagx.up_amento humano, 11J!!!!.!'l detea.uinada
)
.�
)
j
154 Ideologia· Ideologia 155
fase de sua evolução histórica. Assim, falamos em ideolo�a antiga, Mas, se foi Marx o primeiro a conferir uma forma totalizante
ideologia oriental, ideologia renassentis,E, i9e2_Ig'w ocidentà1: à ideologia, tal como foi a fonte da restrição sobrepolitizante do
'ideologia modern,3,lili:�olçgia burguesa, ideofogia fascista, ideolo­ seu conceito, foi também ele o responsável pela denúncia da
gia nazista, iaeologia trabalhista, ideologia social.1$_ta,--id�ol0g;ia ideologia como "falsa consciência", como máscara, como um con­
éÕmunista,.ideologiaJip�eral,_o_u seJ�.; ç_pl9raçõ<:;_s c:!.iv_ersas do_i,dea junto de p1·eceitos teóricos pseudocientíficos destinados não a
sôcfil de certos grupos, em tempos e espaços diferentes. conscientizar a verdade histórica ·mas a contorná-la por adversa, a
�e sentido totalizante dã ideologia foi focado por KãrI Marx, na fim de defender e justificar privilégios materiais. Foi num texto
Contribuição à critica da economia política. No famoso Prefácio - como anterior, não programado para publicação mas igualmente conhe­
todos recordam - afirma ele que "o conjunto das relações de produ­ cido, que ele assim carncterizou a ideologia:
ção constitui a estrutura econômica da sociedade" e sobre essa base
"se eleva uma superestruturajurídica e políÕ:�a", a que correspondem ,.,,--A:onsciência� �ão pod; ja�ais -;er oÜtra coisa senão o Ser \
"certas formas de consciência social determinadas". 1 /con;ciente e o Ser dos homens é o seu processo de vidà real. E se,
Aí temos a ideologia em seu sentido positivo, porque globali- · em toda ideologia, os homens e �uas relações nos aparecem de \
zante: é a consciência social de uma época, de uma classe, de um 1 cabeça para baixo como numa câmera obscu1·a, este fenômeno
partido, de um grupo ou até de um indivíduo, vinculada às condi- ; deriva de seu processo histórico de vida, exatamente como a )
ções concretas da existência humana como produto dialético da ( ão do_ s_ o�etos na retina deriva de seu processo vital objeli­
\ �'.�':',:��ntc f1s1co.
interação realidade-pensamento. A totalização se explicita a seguir. �
Ao afirmar assim que "em toda ideologia, os homens e suas relações
Quando se consideram tais alterações, é necessário sempre
distinguir a alteração material das condições de produção econômi­ nos aparecem de cabeça para baixo", Marx generaliza um conceito
cas, constatadas com o rigor das ciências naturais, e as formas que ele mes"mo havia particularizado. Subjacente a essa afirmação,
jurídicas, políticas, religiosas, artísti�as ou filosóficas, numa· palavra: está claro o sentido negativo que ele aqui atribui à ideologia,
as formas ideológicas sob as quais os homens tomam consciência encarando-a como um instrumento manipulado por indivíduos
deste conflito e o conduzem a seu desfecho.2 contrariados pela realidade para forçá-Ia a ajustar-se a seus capri­
chos e interesses egocêntricos.
Como a ideologia marxista esteve, desde suas origens, dirigida Vivenciada como falsa consciência,a ideologia se des/mascara
para um ideal político, e como, ao longo de sua. história, configu­ numa série de situações concretas típicas, bem exemplificadas por
rou-se como o marco ideológico referencial do planeta/ o· mundo Karl f',1Ían�um livro j;j.�ssico: __ - · __
_
contemporâneo opei-ou uma redução do conteúdo da ideolog� -- - - -----\
seu componente político: caracterizou-a como um sim les ia / Como exemplos de "falsa consciência", assumindo a forma de
para a açao,,� a e�ecificameute r-ara o roder, não mais como uma interpretação incorreta de si mesmo e seu papel, podemos citar
�ncee_tualiwção do mundo, destinada à compreensão do 1 aqueles casos em que as pessoas tentam encobrir suas relações "reais" \
processo vital. Deste modo, ao lançar ao mundo um repto por consigo mesn1as e com o inundo, e falseiam para si 1nesmas os fatos
essência político, o próprio Marx se transformou, paradoxalmente, básicos da existência humana, deificando-os, romantizando-os ou
idealizando-os, recon-endo, em suma, ao artifício de fugii·em de si

ij·
na fonte involuntária da deturpação do conceito de ideologia. E se mesm�. s � mundo, dando margem a falsas interpretações da
ainda hoje, conforme afirma Marcuse, "A luta pela vida, a luta por ex_e_enencia. ____ -- - -/
Eros, é a luta f,olítica",4 então compreende-se de imediato a razão
da superpolitização da ideolog_ia e por que o ideológico acompa­ Como se deduz, essas são atitudes plenamente conscientes - mas
nhou a trajetória do ma1·xismo como o problema primordial destes de uma consciência p,ervertida, que rs.,g.!sa.o-Feal-apenas· porque
tempos. contrár�s seus desejos. ---
. 1,p.�,
J-,v - ,_PJ>
)
' >". r-;?,\'
{. jvV �('J· �
156 � Ideologia Ideologia · , V 157
\ . . ( \
N o primeiro caso, temos a 1'deo1 ogia . como a1 go pos1t1vo e a cham�i�r-Ies�nt� ideologia domi71:� - está, por uma
necessário
"--- - tiro conjunto de idéias
""--·----=--:- q'\Je ori'_enta"iii:o mportamen- espécie de não-assumida consciência de culpa e uma espécie de
tooo homem em seu percurso histórico; no -,,-;:_
i
segph , temos algo espasmo pela passividade dos explorados, previamente condenada
1�tivo e pernicioso - ÜmcoO}untode princípios�tificializados, a jamais se expressar com espontaneidade: pelas injustiças que
destiAado.s3uus.tent. ação de_pri'lilégios maotido_s sob op�ãP:--- comete, ela sabe que o impulso de mudança inerente à história a
Que é e·ntão ideologia: consciência ou deformação? Anteci­ condena. No lugar de questionar a realidade (ou seja: a si mesma),
pemos: as duas coisas.Quem decidirá do seu conceito será o ela deriv�para uma série_âe �1estões inconseqüentes e, quando se
o_pjetivo c_Q_m qill: ela for �mpreg�a: se o desejo d�m� permite algum· tipo de mai;:tifestas� es_ta s_e_camuíla artificiosa­
.-:--;---:-- - -----
glg_bal da realidade, se a tentativa de retenção de uma realidade
t1·ans1tona.
..
...-a.. !:_l1ente numa correspondentesérie c:Je ardis semânticos,1pelos quais
ela sonha COn:La eternil<l,Ç�e legi.1_imação dQ. privjlégio. Simone
de Beauvoir mostrou a "t::itica" com uma profundidade -e clareza
_, ()M t)ÂV ---
- - -
exemplares:
3 O CÓnflito Ideológico í\i�
Toda a astúcia consiste em fazer do privilégio a manifestação de
No seu livro ja citado, Karl Mannheim caracteriza esta bifurcáção / um valor cuja presença conferiria precisamen te ao privilegiado o
Uo conceito de ideologia como total e parcial: para ele, a concepção direito ao privilégio: é-lhe necessário ler um poder econômico parn
totalizante se reporta à ideologia "_çle uma época ou de um gr.1..tpo defender o bem que se encarna nele, e cujo sinal é justamente cs:;e
poder.9
histórico-�ocial concreto, por exemplo, a de uma classe, ocasião em \.
que nos preocupamos com as características e a composição da
Ou seja: um círculo fechado e mudo, em que a simples existência
estrutura global da mente deste época ou deste grupo"; o signifi­ do privilegiado basta para justificar a existência do privilégio - e
cado particular se evidencia "quando o termo denota estarmos vice-versa.
céticos das idéias e r�esentações apresentadas p�o�Rosi­
Enquanto a ideologia dominante vai assim contornando a
tor',-:-Caso �m que essas representações,exibindo,2,_�ela falsa
verdade em colocações ambíguas e foge da discussão para não
f:Onsciência.., "são encaradas como disfarces mais ou menos cons­ colocar em questão esses privilégios, a ideologia das classes
c�ntes da real natureza de uma situação, cujo reconhecimento não
7 subjugadas ou a que organiza os interesses dessas classes - e que
estai-ia de acordo com seus interesses":- • - - - -
passaremos a chamai· de ideologia oponente - se expressa com

[i}
) Na base do pensamento de Man�heim encontra-se a oposição toda nitidéz e toda sinceridade para desnudar o real e conquistar
de internsses - e é exatamente a figura da "psicologia de interesses"
adeptos no sentido daquela implantação de uma ordem nova.
que ele indica como um dos principais elementos distintivos destas
Tão grande é� perigo ª qu� seu discurso expõe o sigema de;
duas acepções de ideologia. Materiais e opostos, eles se originam
põaer e�lora9or �e_s_ó uma ordem ver�adeiramente de�rá
ida estrutura econômica estratificada da socie9ade, isto é, d,vit1lí,l- _ :.
fica assegura o seu direito à expressãc:,. Quanto maior a injustiça,
ç�o spcialconcr.eta. que fo1ja a elaboraçã9 das ideologias como
- maior a necessidade de falar por parte da ideologia oponente e \
01-gan_ização mental desses interesses que se opõem. J
f maior a de calar por parte da dominante. Esta polarização
Por sobre suas múltiplas rami icações, pelo�enos dq,as graE:.
ideológica projeta, no plano mental, o choque de interesses~d'
des ideologias, nitidamen�e per<:_rytíveis,�xi�em � toda soc�­
plano material.
c!�de de classes: a da classe doll':!..inante, q� visa à conservação _s!a
o_ rd�m vigente para a P..reservação de seus privilégios;ea das elas� Daqui, deste conflito, se deduz a precariedade da conceituação
.
abstrata da ideologi� ao pretender âbranger num conceito genC
: e xploradas, que visa à superação des.
sa ordem Rara a implanta�o
ele uma nova. A ideologia da classe dominante - que passãi='"emos i:icõas e
figuras contrárias das ideologias-oponente dominante�
·1 Dizer, simplesmente, ·que ideologia-constitui ''u�a m:lscara para�-
)

)
i
ivtv (J)b, ;:+-
1
H°lAÃ 11
'õlf e. I''>
ft 74· ,<c, l.4.ÁI(\ ( tl) /
10 I'
�_,,\,
'
'
1
.\.,
'\
\, \." .'
1
t,- )�
9,'
t V
'- \.) t-'
, O, P ·
'(
]58 Ideologia
l"{·r t Ideologia } 159
ocultar v erdades adversas", é reduzi-la ao seu c oncei to negativo propriedade indi_\lidualista,-propõe�liv x:e..iniciativa �.silen_ciandp
ele falsa �nsciência, esq uecendo·sua utiliz ação como visão coe­ que, num sistema c�italist a, a _libex..da_de está com o_c_apital e não
r�o m undo ; dizer, sem especific ações, que ide ologia cons­ com o esefrito; no lugar de denomj!2_ar-se Pa1:tido da _aurguesia,
titui "uma visã o c oerente d o mundo", é legitimar as a mbições e i:ent:ãím__e_i�gir Ull} ''Pa rtiaQ....S oci al'..'.. -;; trai_nd_o_sistem_aticamente '
racionalizações da classe no pode r, esquecendo a sua ut ilização s�programa�lei toreiros. Su.i. preocupação maior consiste em
c om o falsa ·consciência . Esta posição nã o-esp ecificada nã o per­ esconder as suas chagas - e par tir para a arr ogan� condenação da
cebe ( ou o sufoca) que a dominante p erde u a coerência d e sua proprieêiade sod a_! e das organjzações populares. Soment e ness.a
visão do m undo exatamente no rµom ento, não em qu e se tornou pratica contra-ide ológic a ela se sente à vonta de. Quando tem que
d ominante (p ois que isso eq uivaleria a condenar a op onência ao -afirmar as suas próprias conc epções, faz um patético esforço pa ra
m esmo destino de farsa de t oda s as id eologias que, como sobre­ cumprir a obrigação de falar sem co1..-er o risco de dizer - como
vivênci a de um passa do v enc i do, en v elh eceram n o poder), m·as
qualquer de seus minist ros na televisão. Em suma: a id�ologia
no momen to de transição em que sua ríecessidad e histórica dominante restringe-se a c ontestar os princípios teóric os da op o­
sa tur ou-se. No pólo op ost o, ·aquela posição simplificada também nent e e p_o_r isso é ela quem se configura como um contrapensarnen­
não percebe (ou, do mesm o modo, sufoca) que a oponente se to.11 Ao inv és de afirmar a sua visão do mundo, procura antes
comporta diametr almente ao contrário: como p ortadora do contestar a visão de mundo que a contesta - caso típic o da
futuro, ela se expõe com a maior ni tidez possíveljustamente para ideologia burguesa. Pot exemplo: ela nunca esteve à vontade para
d esmascarar os embustes da dominante no momento e, concre­ defender abertamente o lucro. E até seria fácil: pois não é o luuo
tizando a transição, impulsiona r o m ovimento da história. São em si que se condena (a palavra admite até um certo uso metafórico
duas versões dis_torcidas do problema . positivo) mas a contradição ent re a sua extorsão soci al e a sua
Se, ��.c eita de ideologia, a atribuição genéri ca de um apropriação individual.
o posi_tivo r�força a dominante , a d e um sentido negativo
/ j 1s� _
_ ptid
! \ esva�ia a op.oo.s:J1te
. São _práticas típicas _de explorador es e de
e c-----
r -- ,.._�
. ,- .- • ,... i,

ingênuos!.. ambas ��ti�e�tejd�ológicas, a ser viço·da ordem


\.

êodificada: uma, por retirar de d iscussão os fundamentos que


4' Id eologia e Classe
� ir-
. " ,....; , . -• _ �, _ •
1-r ,, �
procuram j ustificar os privilégios forn ecidos por tal ordem; out ra, "D esde_o_âng11lo �nais comprometido até o mais criador" - afirma
{ \ \r ' . {

por negar validade à discussão que poderia conduzir à liquidação ...._ !Eduard o P2rtella- "o conceito de ideologia é, cada vez mais, uma
desses fundamentos. Em defesa própria, a dominante ca racteriza � categoria central do pensamento contemporâneo'} 2 Nem o fracas:
a oponente com o "contra-ideologia" - e, nesse jogo verbal, num .{, so do marxismo como p oder re.tlrou-a dess e espaço privilegiado.
daqueles ardis semânticos, instala-se mais uma manipulação t eódca -'\. O caráter criador da ideologia se manifesta na.sua concepção como
de finalidacl� pr<!��tica, p orciue quem se configura col_!l.9 contra-_ tota lização da cultura de uma época, no seu c ontínuo d vir. A
ide ologia é, de fa to, a dominante: sonhando com a eternização de j posição comprome tida consiâ_te exatamente na preponderância do
.e,

<:

seu domínio, ela.não tem_!llajs na_c!.� a ex�essar e só s9bre_vive cQm componente político e, portanto, na sobrevalência da práxis. Re­
a condição de camuflar seus interesses em artifícios retóricos, conheça-se, porém, que a própria posição comprome tida - en­
10

mistificando - nas suas três táticas mais visíveis - o social em nat�raZ: (' quanto ideologia oponente=-rev ela-se radicãlmente criadora, no
como ao dizer que "o homem é perverso·por natureza"; o histórico seu es[orço d�ilTlpulsionar o movimento histórico. Sob ambos os
em ontológico, como ª? diz�que "a viçla é um et�rn_Ç> sofrimen�o"/ aspectos, é a ideologia que tem comandado o comportamento dos
õ classista enínacional, com o ao dizer que "o Estado visa ao bem agente s de nosso tempo, até aqui Condicionado eel.9 cgnfli§ -
comum". Envergonhada, ela não ousa dg;cutir esses "princípiC>s" id eológico - entre a privatização e a socializaç_ ão d� propriedade
nem sequer enunciai· seu próprio nome: no lugar de defender - das fontes da vida. -
--·- -- a
'j f lL'::. L•"-·6 f.�
tr•· .,..
·-
.' -a (>,
,,,.(
,r,v -
' .-
- ,.,..,. "· -

À ,'
,..,,,,-. -�
/ ' •,

r
1

]60 Ideolo gia , Ideologia 161

Centralizada na ação, voltada para a conservação ·ou p_ara a que.já não a sociedade, mas nem mesmo a natureza é imutável. E

;( , , ;;1/
conquista do poder-. restritã:" portanto, ao �1! componente polí- esta idéia ganhou força com a derrocada do socialismo soviético.
ticõ - a ideologia corre ou gera .um risco duplo. Por parte da \ ) 1 1 Será o homem_ oaturalmente_individualista e tentou-se fazê-lo

)
dominante, o risco do)Jloqueio, que pr9duz a alienação: à classe no
poder não interessa discuti-lo - o que, em momentos de crise, ·é
l
1
ideologicamente_:wcialista? O certo é que, atualizando aquelas três
táticas antes mencionadas, seus defensores seguem o destino de
1'
'} vedado até a alg!!!}s d� seu membros. A sociedade é fechada. com i toda elaboração ideologizante: apresentár a sua ideologia como a

91
,, a trava da censura, as decisões são tomadas em segredo e os 1 expressão da "natureza das coisas" e não com a abstração de uma
,
" indivíduos ficam literalmente_à_margem do _gue se _.eass�eu - dada forma de organização social; apresentar o estado humano
�!
1,
mundo. Por parte da oponente, o risco da ortodoxia,... que anuncia presente como a cristalização do "estado humano" em si, o mesmo
1,I o fanatismo: na luta pela conquista do_Eoder, certos indivíduos ou em todas as épocas históricas; apre�ntar seus in�resses como
·) mesmo certos grgpos têm amortecida. a sua capacidade crítica interesses gerais "de toda a sociedade" e não apenas da classe que
_
t r11•,
!r·-J1:'
1
perante �ideal e a ele se abandonam como a um absoluto., tanto a dõmi�. A alienação arrasta os ignorantes a_;_i.ceitar como verd:l­
mais obsessivo quanto mais bloqueado. O resultado muito fre�n- des essas imposturas.-0-recursõ mais sedutor consiste em atribuir­
te é a perda de �us rtlerent�ontextuais, da liberdade e 3!-té da lhes um cunho "científico": não. uma ideologia, mas uma idéia
_
�I
própria vida- salvando-se a dignidade. Em ambos os casos, reve­ universal - portanto verdadeira e, por �sso, incontestável. O caráter
la-se o caráter de classe da ideologia assim levada a extre_mos, pois ciass1sta desse malabarismo mental transparece nítido no esforço
;·t�/ se trata fundamentalmente de defender/promover as idéias que que as clãsses cm conílito empreendem para destruir os princípios
!{
teóricos sobre os quais a dominante estabelece o seu domínio e a.
R justiqcam os interesses da classe por que lutam os indivíduos que

t··•. ' as expressam, a custo de sua própria in<lividuali�ade. oponente persegue seu resgate.

p
Esse caráter classista da ideologia foi também definido por Comentando Walter 'Benjamin, escreveu Flávio Kothe:

r�,r-,. -
-�, numa passagem que conservará sua validade enquanto as

,e-
sociedades forem divididas em classes: Ideologia é um termo que não guarda apenas o senlido de "falsa '\

-��·
t�l consciência". Para Benjamin, a ideologia também podia ter 11111
.
As idéias dominantes não são mais do que a expressão ideal das sentido positivo, enquanto arma.ª ser utilizada na batalha cultural,
J-1,
t,J,, relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes como parte da luta de classes. Ao "dizer o outro", a literatura tinha o
·L'1' seu momento de verdade, mas, sendo ui:n espólio arrastado no cortejo
16 concebidas como idéias; as relações que fazem de determinada classe
cios vencedores e dominado,-es, assumia o caráter negativo da ideo-
a classe dominante são, portanto, também as que conferem papel
1 dominante i:1s duas idéias. 13 logia. Combatendo-o, assumia o caráter positivo desta. 14
�: - �
Os patrocinadores das idéias hoje dominantes - concentradas Claro está que esse "sentido positivo" da ideologia, segundo Ben­
fodas, hoje mais que nunca, na idéia de !}alw'E:,lidade da proprieda­ jamin, só se revela enquanto oponência - enquanto "arma" a ser
'(e) de privada - não suportaram esta revelação e, no resguardo desta utilizada no combate ao espólio dos "vencedores" da História; pois,
mesma propriedade, devolveram a Marx a guerra que Marx abrira quando instalada no poder a lutar pela eternização de privilégios,
contra eles. Tenta1·am, usando literalmente todos os meios_, de­ atrelada ao "cortejo de dominadores", a ideologia assume esse
monstrar que esta idéiacentral não é interess�de uma classe, mas "caráter negativo" de uma consciência que não pode sei· senão
uma realidade instalada desde sei:npre e para sempre na na_tJJreza falsa, porque a verdade já dese1·tou das fileiras de tais "vencedores".
9�ois1b\,e das_relações T'rnmanas, UJ1]�ealidªge eterna e imutável, A históri:\ registra casos de ideologias oponentes que perde­
e que, portanto, toda 1·evolta contra ela será inconseqüente, porque ram o seu conteúdo humanista ao se tornarem dominantes. Que
constitui uma revolta não contra a propriedade privada capitalista, aconteceu? Nada, rigorosamente nada na ideologia considerada
mas contra a própria nature7.a. Em sua fúria apropriante esquecem cm si própria, que continua a mesma. Mudou, no entanto, a sua

>, l;
��-
IJ
* • 1 -, ('• .

,., . ,
'. 1 ,,.
162 Ideologia
./
1/ ' 1
v '(' �
Ideologia 163
/ \,_
relação com o poder: agora jqen;,5cados, o poder transferiu à
ideologia todo o conteúdojesumano da dominação-e a desuma­ para a mais perfeita exposição de tal idéia sobre tal problema, a
nizou. Ela fica então condenada a correr o risco· de reproduzir fim de possibilitar o sugestionamento do leitor. Pois nenhum autor
todas as práticas cuja condenação a conduziu a esse mesmo pod.er. persegue aquela expressão perfeita por um simples· capricho de
perfeccionismo expressionaT: ele ql!er uma expressão_perfeita para
\.,
Dedução: a maldição está no poder; que continua a ser elitista; não
na ideologia, que continua a ser necessária. mêlhor enunciar a sua idéia, se tem_realmente - alguma idéia a
enunciar. s-;·--
O que ele pretende e realiza, no plano do imediato, é
· -
l'
1\n:. dizer, como plataforma para tudo o mais. E por que pretende dizer
·1 essa idéia da melhor maneira? Para infundi-la mais facilmente na
consciência do leitor, tentando - intencionalmente/ consciente­
5 - O Comprometimento Literário
i
l Tanto num sentido como no outro (quer com<? totalização da mente ou não - persuadi-lo de sua veracidade. Noutros termos: a
cultura de uma época, quer como.conscientização das lutas políti­ linguagem, a fi guração, a estruturação, a forma etc. são simples
meios - sempre e sempre a aperfeiçoar - para promover a conse­
1

l
l' cas de uma classe), a literatura se encontra comprometida com a
_ ideologia: no sentido toÜlizante - porqueelã integra, como arte, cução do fim da obra de arte. Qual é esse fim? Num primeiro nível:

l- �·'
as manifestações superestruturais de qualquer agrupamento civili­ provocação de um prazer e/ou transrnissão de um conhecimento. Num
1
i
zado; no sentido restritivo-poque todas as_manifestações culturais se gundo: infundição da ideologi.a, insinuada no prazer provocado
do mundo contemporâneo, inclusive a religião, se envolveram no e/ou no conhecimento transmitido. Ora, se os recursos utilizados
1

repto político lançado pelo marxismo. Uns tomaram partido aber­ são artísticos e se são canalizados para a infundição da idéi_a que

;:r/1/� tamente - e produziram uma literatura de ostensiva intenção � gerou e condensa a obra, deduz-se sigilosamente: a arte está,
socializante: um Graciliano e seu romance, um Maiakovscki e sua .._, sempre compro�etida com a jde9logia. Ou melhor: a arte é,

poesia, um Brecht e seu teatro, etc. E os que pensam que não se sempre, manifestação da ideologia do artista. E, de todas �s�r�s,
._)
1� \•
r:: i' a mais cç_mpi:.ometida _ é_ precisamente_ a literatura, por trabalhar -
envolveram, se envolveram sim: porque, suprimido o neutralismo
com o próprio instrumento de politização do homem - a palavra.
tf
.,, \
/
pelo radicalismo próprio do nosso tempo, não tomar partido
\ acabou se configura1i.do como uma maneira tácita de tomar partido
Justo por isto, quem faz literatura não pode deixar de se envolver
'i
í' \ contra. com o problema central do homem no seu tempo. Como a ideo­
1' Como se sal;le, não há obra litçrária que não porte a cosmovi­ logia infundida porta uma filosofia de vida que sugere uma forma
/
'.. \ são particular de seu autor. E que é esta cosmovisão? Exatamente: de ação para o aperfeiçoamento do mundo, temos: o fim último
a sua ideologia - a sua maneira própria de encarar o mundo em da arte é a humanização do mundo a partir da persuasão do público.
\1 que vive, a estruturação social que o condiciona, as relações sociais
E aqui está o segredo de toda a relação entre literatura e
que o envolvem e de se situar e se mover nesse universo. Se não se ideologia: a jJersuasão. Todo texto ideológico (seja religioso, políti­
\.,' 011-�.,.e l_e é porque concorda com ele; se não concorda. mas não co, jurídico etc.) intenciona ·persuadir o leitor: se é também ideo­
�e-opee:' tolera-o - o que configura um modo menos digno de lógico o texto literário; também ele pode vir a produzir esse efeito
/ concordar. Assim, tanto na participação quanto na·omissão, ·mani- persuasivo.
\·j
(1
festa-se o seu comportamento ideológico.
.- Da seguinte maneira: toda obra literária parte de um proble-
ma. O autor tem uma idéia mais ou menos definida em torno desse 6 - O Efeito Persuasivo
,._,

problema!:deseja mais ou menos inte_ns�mente ver a sua posição


1 compartilhada. por toda a hµmanidácr�. Todos os seus recursos Partimos da constatação de que toda pessoa que usa da palavra
artísticos_l>ão canalizados para a ma.ximizaçã clacomunicabifidade;
o
tende a exercer uma influência sobre seus leitores ou' ouvintes,
variando segundo a natureza desse uso o grau de sua influência.
·ti·

='�
161 Ideologia

No discurso político, por exemplo, ela alcança o grau mais


l Ideologia

dominado essas condições - quando estiver apto a "aplicar estes


165

·-�,ij·
�\,tt'i
elevado,já que se destina ostensivametné a persuadir o receptor.
No discurso poético, em que a persuasão nem sempre assume a
discursos determinados,deste modo determinado, para persuadir
este homem destas coisas determinadas" - aí então e só então,"em
�t- -li
�?· ;:
sua intencionalidade, o grau é diminuto: aqui,o poeta toma uma toda sua beleza e perfeição estará consumada a arte da oratória"
1 ·• posição em·torno de um problema e, acreditando na sua veracida­ (1972: 879).
1r
'<te. �.
n t' V' de,deseja,ao menos inconscientemente, vê-la compartilhada pelos No Górgias, diálogo que trata especificamente da Retórica,a
111RJ-;
��J'.-;.t'r. seus leitores. O seu esforço expressivo segue uma escalada; dizer da
melhor maneira, para persuadir do que diz. Como lemos em Boileau:
discussão do problema é mais detalhada e também mais próxima
da literatura: basta mencionar que, �egundo o protagonista, a
",,
,;li. 1 � t

' 1 1·
L' "O efeito infalível do verdadeiro, quando bem enunciado,é con­
vencer os homens."16
finalicla.de da Retórica é "produzir encanto e prazer" 18 - através da
M t'ffi.
��: r�::
·• ' persuasão.
Tendo relacionado no Fedro a Retórica com a verdade,Platão

��f� i . �r'
a relaciona no Górgias com as outras duas grandes metas da arte
L ;)'.·_.' G. 1 - Condições para a Persuasão ao longo da História: a beleza e a justiça. Afirma que "a grande
finalidade da Retórica é evitar que se cometam injustiças", 1� e

�"'Z :· n!�'
r-�-·1 ! t· ➔i
vincula a justiça com a felicidade ao afirmar que feliz é o· homem

i t;
A) Na Retórica Clássica "que não tem maldade na alma". 20 Ora, a principal componente da
)- !· ��;' felicidade é a beleza,tudo aquilo que é "agradável e útil"21 - efeitos
� õ' Devem-se a Platão e Aristóteles os primeiros estudos sistemáticos
', especialíssimos da obra de arte.
�J:; f da persuasão como·categoria central de um certo tipo de discurso.
_;
A Retórica, no entanto, só pode ser considerada como arte
1 r;-;t. � l�
Ambos a situaram no cerne da Retórica, tendo em vista os discursos quando seu exercício visa à descoberta e transmissão da verdade;
. . i 'j reivindicatórios, no primeiro, e os demonstrativos, no segundo. enquanto artifício para arregimentar adeptos, é rejeitada como
r -�� • Nos dai� casos, tratasse de discurso para o presente, com uma atividade perniciosa, própria de sofistas - numa distinção que
IM� .,:··.
:·ft: finalidade imediata: em Platão,o justo e o injusto; em Aristóteles, poderíamos aproximar daquela referente à ideologia. Sócrates
ti. !'r
i{i' 1
o belo e o feio. Ora,a beleza sempre foi uma categoria central da diria que "a arte oratória oferecida por aquele que não conhece a
arte e a justiça está cada vez mais intensamente impregnando a
1

)i ' f- , • , •
verdade e não faz mais do que reunir opiniões será uma arte
1]1 l' pratica estet1ca f
q;rntempora,., nea. n"d'1cu1 a, un1a arte d esprov1'da de arte" .22

11f :,.
1 ;
1 ··' 1

No Feclro, Platão coloca Socrates a imaginar a própria Retórica
antropomorfizada a proclamar que "sem mim, ninguém possuirá
em grau elevado a arte de persuadir, ainda que possua a própria
A reflexão de Aristóteles é mais sistematizada e mais extensa
que a de Platão. Ele aprofunda a relação retórica-persuasão e, ao
aprofundá-la, aproxima-a mais �inda da literatura. Num dado
1 i; �
) ''
essência das coisas". 17 E mostra, a seguir, o caminho que · o autor
deve percorrer rio intuito deliberado de obter a persuasão do
momento, afirma que "a fu_nção da Retórica não é propriamente

""1':
persuadir, mas descobrir os meios que cada objeto comporta de
auditório: em primeiro lugar, "descrever com exatidão o que é a persuasivo" . 23 Abrandandõ o componente intencional e situado o
alma", pois é à alma qµe o discurso se dirige; depois,"mostrar que discurso ao nível da instrumentalidade,o efeito persuasivo dilata
,,
o objeto a conduz, naturalmente, a produzir algo e o quê, ou a o seu raio de ação, estendendo-a sobre a totalidade do campo das
� ,., sof rer algo por efeito de quê",atribuído à alma, como produto e atividades exercidas através da palavra. Portanto,também a litera­
efeito, o discurso e a persuasão; por fim, deve classificar "os tura.
gêneros de discursos e de almas, adaptando cada um ao seu Para procluzi 1· a persuasão, o orador se serve de provas técnicas
correspondente", para demonstrar por que razão tal alma de tal e extratécnicas. Só as técnicas nos interessam: são aquelas forneci­
natureza é persuadida por tal discurso. Quando o autor houver das por meios pessoais, como 1) a autoridade do or,;tdor, 2) a

l
1'·

[ J.
f"%1i l
166 Ideologia Jqeologia 167

disposição.do auditório 3) a argumentação demonstrativa. A pri­ Mostra Bremond que o fato a decorrer da mensagem recebida
meira reside no caráter do próprio orador; a segunda, nas mudan­ pode ser concebido com um objeto desejável, como um meio praticá­
ças do estado de espírito da platéia; a terceira, na evidenciação da vel ou como um fim obrigatório. A essas modalidades do desejo
demonstração contida no discurso. Para persuadir pelo caráter, é corresponde uma situação cronológica quanto à retribuição: a do
preciso que o discurso seja capaz de tornar o orador digno de fé, objetivo desejável é concomitante - o sujeito se satisfaz ao praticar
tendo em vista o fato de que as pessoas dignas inspiram maior o ato; a do meio praticável é poste,ior- ele pratica o ato e aguarda
confiança. Mas que esta confiança seja efeito do discurso, não a retribuição; a do fim obrigatório é anterior - ele já tem a
apenas de um prévio conhecimento sobre o caráter do expositor. retribuição antes de praticar o ato. Os móveis dessas ações se
A persuasão é produzida através da disposição do público quando distribuem igualmente por três ordens: hedônica na primeira - o
o discurso o conduz a provar uma pai.xão, despertada pela ação da obj�tivo é desejado .como agradável cm sua própria essência;
lii1guagem. Finalmente, persuade-se pelo poder demonstrativo da pragmática na segunda - a escolha é feita por interesse ou cálculo;
argumentação quando o discurso revela o que há de verdadeiro ou ética na terceira - o comportamento é ditado por consciência de
verossímil no persuasivo que cada matéria comporta. uma dívida contraída. 26
Como Bremond, ao afirmar que esses dois tipos básicos de
influência (intelectual e afetiva) "podem ser identificados com os
B) Na Retórica Estrutura.lista dois caminhos da inventio: convencer (fulem Jacere) e comover
(animos impellere)", Roland Barthes abrira a mesma senda nesta
Modernamente, o estudo da persuasão foi retomado pelos estru­ figura clássica da Retórica, ao propor:
turalistqs, no seu esforço para recuperar a Retórica da colocação
pejorativa imposta pelo formalismo. Uma das elaborações mais Da inventio partem dois grandes caminhos: um lógico, outro
consistentes é a de Claude Bremond. Diz ele que: psicológico: convencer e comover. Convencer (jidem Jacere) requer uma
aparelhagem lógica ou pseudológica, chamada comumentc Probatio
·t':1: a influência lende a modificar as disposições da pessoa influenciada (domínio das "Provas"): pelo raciocínio se faz uma violência justa ao
'; i� ,..1 a respeito de uma sitµação presente ou dos acontecimentos futuros espírito do ouvinte, cujo caráter, disposições psicológicas, t1ào são
de que possa participar, seja como mero paciente, seja como agente consideradas: as provas possuem força própria. Comover (animos
t·� i •
e pactenle ao mesmo tempo.2,1 impellere) consiste, ao con.trário, em pensar na mensagem probatória,
não em si, mas segundo o cleslinatário, segundo o humor de quem a
·1: 1
• Essa modificação do comportamento pode assumir duas formas: deve receber, consiste em mobilizar provas subjetivas, morais. 27

Comover, convencer: os dois desejados·efeitos imediatos de qualquer


u-J, l. lnte/.eclual: O influenciador age sobre o conhecimento que seu
discursó. A comoção pode sé esgotar no plano emocional, sem
..,
,ti parceiro possui a respeito dos dados da situação presente, ou da
] eventualidade de um acontecimento futuro; quer de modo posilivo,
informando ou co11:finnando uma notícia já recebida, quer negativamen­
nenhum envolvimento ideológico; mas o convencimento é a pró­
pria persuasão - aquela "violência" que o texto faz ao receptor, ao ..,
,(li
te, dissimuland-0 uma informação possível, ou ainda desmentindo-a, se demovê-lo de suas convicções anteriores.
j� foi 1-ecebida anteriormente. ✓

2. Afetiva: O influenciador age sobre os móveis que podem


conduzir seu parceiro a desejar ou a temer a realidade de certos dados
da situaç,-'io presente ou a realização de certas eventualidades, que,· C) O Propósito Persuasivo
.,/
despertando neste parceiro a esperança de certas satisfações ou o
receio de insatisfações, quer, ao contrário, procurando inibir tais Embora possa introduzir-se em todas as generalizações platônico­ ..)

esperanças ou temores. 25 aristotélicas bem como em todas as esquematizações estruturalistas


.,1

;J
.. -�1�·

168 Ideologia 169


Ideologia

sobre o discurso, nada disso se refere especificamente ao literário, Por isso, a persuasão em literatura não pode ser considerada no
ao poema. Mas isso se restringirmos a atividade do escritor ao mesmo plano de intencionalidade em que se e·ncontra, por exem­
plano do consciente, da intenção deliberada. Agora, se considerar­ plo, em discursos, como o político. Mas nenhum bom livro deixa
mos a margem de indecisão do autor sobre o seu texto; a.parcela o leitor no mesmo nível e na mesma situação em que se encontrava
de sugestão do texto sobre seu autor; e, mais que a intenção do antes da leitura: a modificação de seu modo de ser, se não foi
autor, o efeito da leitura sobre quem lê - então não se pode intenção do autor, é, pelo menos, um efeito do texto - e, delibe­
desprezar a possibilidade de que a obra literária, participando de rada ou espontâ_nea, ostensiva ou simulada, a persuasão se confi­

mt'.f�r,·,
1�_· l:\f,

J�:r:i�_,;
um gênero particular de discurso, produza também ela esse efeito gura como uin categoria central da obra literária, desentranhando
persuasivo. o seu envolvimento ideológico.

,it!:LI;_
Ao afirmar que a função da Retórica não é tanto persuadir
quanto procurar os meios de persuasão inerentes· a toda matéria,
o próprio Aristóteles acrescenta que est..1. · é_uma função comum "a D) As Situações Prévias
todas as artes".27 É que, em última instância, os recursos artísticos
- instrumentos de estetização da ideologia do artista- constituem Tendo em vista a relação texto-leitor - ou seja: a possibilidade de
típicos artifícios retóricos e, como tal, exercem uma função que não ação ideológica da literatura, através. da persuasão - há duas
pode ser senão persuasiva, isto é, ideológica. Já a aproximação com situações possíveis antes da leitura: l) o leitor pensa com o poeta; 2) o
os est1uturalistas é mais óbvia. Os dois caminhos da inventio decolam leitor pensa contra o poeta. Depois, essas alternativas se desdobram,
::•íflf:f' claramente dos dois aspectos do poema: convencer, do aspecto da seguinte maneira:
.�!;il
f( ,.
cognitivo, para infundir urna idéia; comover, do aspecto sensorial,
t. para provocar uma emoção. A tipologia dos móveis de Bremond. 1) o leitor pensava com o poeta antes da leitura:
f !·rr proporciona uma aproximação mais ampla . O objetivo desejável é o 1.1) continua pensando com;

!l_
1.2) passa a pensar contra;
;J1_t'.
aspecto sensorial em todo o seu hedonisi:no: o leitor recebe o prazer
do texto no próp1io ato da leitura, numa retribuição concomitante;

l... t.. :·
�:>.·_ t·''t'f'1:f.i i
f 1
o meio praticável é o aspecto cognitivo em toda a sua pragmaticidade:
2) o leitor pensava contra o poeta antes da leitura:
.� . t. ! 2.I) continua pensando contra;
mais que prazer, o leitor recebe do texto uma informação que lhe será 2.2) passa a pensar com.
>. ! ". '1 útil em sua prática social, numa retribuição posterior; o fim obrigató­
;
rio já se projeta sobre a área fatilógica da arte, em sua dimensão moral Considerando essa relação ideológica que se estabelece entre
[/::,
�?:
. l . •
mais ampla: convicto da estrutura insatisfatória do presente, o leitor o autor e o leitor, observamos que ocorre: em l. l) uma confirmação;
1:! \' 1

Ji.;·,·
:· persuadido pode desenvolver uma ação no sentido de sua humaniza­ em 1.2) uma reversão; em 2.1) uma ,·e-negação; e somente em 2.2)
j:
' ção, e terá uma retribuição no momento mesmo de sua decisão,
' verifica-se a persuasão. A ação modificadora do texto sobre o leitor
i,, . 1
independentemente do resultado - p-ortanto, anterior. não acontece nos subi tens-um (nem numa relação de confirmação
Se, al gu mas vezes, encontramos expresso um propósito per­ nem numa re-negação) pois em ambos os casos processa-se um
� l 1
suasivo, é preciso reconhecer que, na quase totalidade dos casos- reforço da consciência anterior do leitor, que pemanece na mesma
' ) ! !'i'
por inconsciência ou por receio de fracasso - ele é ininten·cional. situação: em l.J) afim e em 2.J) oposta à do autor. Essa modificação
� - ''·j,'

a.
LJtr ?i. Declarações como esta de Alencar são exceções: só acontece nos subitens dois (numa relação de reversão ou de

�: :·:' persuasão) pois somente nestes casos a consciência sofre uma

�Jtt·,
Este romance não é como oJocelyn de Lamartine uma obra de mudança e o leitor· transita para uma outra situação: em 1.2) passa
sentimento; mas um livro d_e razão. Não foi es.crito para comover; só a oposta e em 2.2) passa a afim do autor. Numa prévia terceira.
.1 aspira convencer.29
hipótese - em que o leitor não pensava nem com nem contra, por

r. '1
170 Ideologia• Ideologia 171

não ter posição definida ou assumida sobre o problema questiona­ mo de sensibilidade não evitará a comoção. Mas em nenhum
do - fica evidentemente muito mais viável a.persuasão. momento ele será tentado a meditar/ questionar a dicção do poeta,
Se o leitor concorda com o poeta, o poema tem garantida· a o que apenas lograria quebrar o estado de semiletargia em que o
sua repercussão - o prolongamento de sua existência em outros texto o coloca pela magia da palavra emotiva. Ao explorar uma
espíritos. Não se trata, portanto, ·de uma simples repercussão emoção, o poema só poderá produzir efeito persuasivo se esta
social,fruto de um infantil desejo de fama - o que não passaria de emoção-base for objetivamente redutível à idéia que a condensa.
vaidade,incompatível com a grandeza da missão do poeta. A fama Para produzir persuasão, o poeta pode - repetimos: conscien­
sem a qual se torna difícil escrever,30 a fama que é válida, que é temente ou não - seguir dois caminhos diversos:
necessária, é o reconhecimento crítico/popular, ou seja: a reper­ °
cussão ideológica da obra - a idéia se fecundando na aceitação 1 ) a sensualização da ideologi,a - quando ele introduz racional­
pública e se irradiando sobre outros seres, sobre a própria socie­ mente a sua idéia, mas a desenvolve ludicamente, envolvendo-a de
dade, através do que a cosmovisão do poeta se desdobra e, com certas conotações emotivas;
' isso,ele se afirma como agente cultural. Essa distinção social/ideo­
lógica da repercussão da obra é bem evidente no comportamento 2) a inte/,ectualização do prazer - quando ele introduz sensorial­
mente a sua emoção, mas a explora racionalmente, dissecando-a por
da censura; ela aceita o risco de· promover a repercussão social,
;1
' proibindo a circulação, desde que neutralize a repercussão ideoló­
certos procedimentos lógicos.

1 gica, evitando a leitura. Ela sabe que esta ·repercussão é uma Berlold Brecht, para quem a persuasão pelo poema era não
queslã_o vital para o poema e precisa destruí-lo - como constata apenas um objetivo consciente mas também uma necessidade vital,
1 Lukács: declarou que a função social da obra "deverá ser a de uma repro­
1 dução da realidade destinada a exercer influência sobre essa mes­
Objelivamcnte, a arte sempre faz parle da vida social. Uma art_e ma realidade"33 e, com este ostensivo propósito, oferece exemplos
' i
:tl i
que seja por definição sem eco, incompreensível para os outros -
uma "arte" que tenha o caráter de um puro monólogo - só seria
definitivos das duas práticas.
.!J1,1,1 possível num asilo de loucos, da mesma forma que uma filosofia que
.1.r,'.1 levasse o solipsimo às suas últimas conseqüências. A necessidade de
1 repercussão, tanto do ponlo de vista da forma, quanto do conteúdo, A) A Sensualização da Ideologia
é a característica inseparável, o traço essencial de toda obra de arte
,•• j,

i !'.l
.J,;

:ir. autêntica em Lodos os tempos. A relação entre a obra e seu público


( ...)éa base constitutiva, o fator efetivo da obra, tanto em sua gênese
A persuasão talvez se torne mais viável quando o poeta - em face
da prevalência do sentimento so_bre o raciocínio no espírito do
quanto em sua existência cstética.111
1
:�

homem médio - introduz a sua idéia e, no lugar de discorrer


intelectualmente, como uma dissertação filosófica ou política,
explora essa idéia pelo aspecto sensorial, envolvendo-a de certas
6.2 - Técnicas de Persuasão conotações lúdico:emotivas. É o que Ilrecht fez neste poema -
"Dificuldade de governar":
A persuasão só é pertinente ao aspecto cognitivo do poe(!la,já que
só se poclt; persuadir alguém de uma idéia. Ou, por outra: não há 1
de que se persuadir, ao explorar-se uma emoção, caso em que se
procura apenas comover. Leia-se o "Cântico do Calvário",32: talvez Todos os dias os ministros dizem ao povo
o mais comovente poema· ela língua portuguesa: ao passo que a Como é difícil governar. Sem os ministros
leitura/audição se desenrola,o leitor/ouvinte que tenha um_míni- O trigo cresceria para baixo cm vez de crescer para cima.
-T
172 Ideologia

Nem um pedaço de carvão sairia das minas


Se o chanceler não fosse tão inteligent<';. Sem o ministro da Propa-
ganda
l Ideologia

autoridade não basta e não conhece a disposição do auditório vago


a que se dirige: tem que investir tudo na argumentação demons­
173

Mais nenhuma mulher poderia ficar. grávida. Sem o ministro da trativa. Mas como acreditar nessa demonstração? O auditório pode
Guerra não conhecer a auto1�idade do autor, rejeitar sua argumentação e
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se-ia a nascer o sol discordar. Aí temos uma antítese, uma contraposição pessoal, que
Sem a autorização do Führer? pode ser decorrência menos de urna observação objetiva da reali­
Não é nada provável e se o fosse dade sócio-política do que de uma simples intuição ou de um
Ele nasceria por certo fora do lugar. projeto ideológico. Para prová-la e convencer o leitor, o poeta vai
tentar seduzi-lo explorando sensualmente a sua idéia, envolvendo-a
2 de uma agradável carga lúdica, de humor e_ ironia, fornecida pela
inversão do natural, pelo absurdo, grotesco, ridículo, tudo realçado
É também difícil, ao que nos é dito, pelo confronto com o óbvio, que não pode deixar de seduzir a
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem. quem o lê. Pelo vigor de sua argumentação e pelo ludismo de sua
Se algures fizessem um arado demonstração, o texto vai condicionando Ó espírito do auditório
Ele nunca chegaria ao tampo sem para a síntese conclusiva, onde o poeta retorna a dicção intelectua­
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem, lizada e condensa tudo numa formulação objetiva - um remate
De out1·0 modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que capaz de convencer o receptor na proporção direta do seu enyol­
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural? vimento no processo de recepção. E conclui com a retornada da
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia idéia 01·iginária: só é difícil governar assim, pelo privilégio, porque
batatas. este não pode ser mantido sem mentira e opressão - coisas que o
povo, apesar do conceito que dele fazem os governantes, percebe
} 3 muito bem. Tocado em sua sensibilidade pelos atrativos da lingua­
gem irônica, o leitor se desarma e, se pensava _contra, tende a acabar
Se.governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do a leitura pensando com o poeta se -não tive1- rtcos motivos para
Führer. continuar pensando contra.
) Se o operário soubesse usar a sua máquina Deduz-se disso que o poema de base cognitiva deve também
E se o camponês soubesse distin ir um campo de uma fôrma para ser capaz de seduzir ou comover - por isso mesmo que ele não
) gu
tortas pode deixar de se propor a provocação de um prazer. Por uma
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários. razão muito óbvia: se ele quer convencer, será tanto mais persuasivo
E só porque toda a gente é tão estúpida quanto mais comovente for - d·esde que a idéia central esteja clara.
) Que há necessidade de algu ns tão inteligentes.
Logo, ele também explora uma emoção, sensualizando a sua

-J
4 'i ideologia. Mas numa diretriz oposta à do· poema apenas senso­
rialista: aqui, a emoção arrasta ao êxtase, ao consumo passivo do
Ou será que próprio prazer que provoca; ali, a emoção tende a conduzir à
)
Governar só é assim tão difícil por ue a exploração e a mentira ação, pela revolta que pode produzir. É quando o prazer do
) � poema vem acompanhado de um sentimento de 1·epulsão pelo
São coisas que custam a aprender? �
j fato apresentado.
Ele abriu o poema com uma idéia: a alegação governamental de
) que é difícil governar. Vai demonstrar o contrário. Sabe que sua
)
174 Ideologia 175
Ideologia

B) A Intelectualização do Prazer Deduz-se disso que o poema de base emotiva, se quiser persua_­
dir o leitor, tem que promover a fusão emoção/idéia; que reduzir
A tática reversa ·consiste erri abrir o poema com uma descarga a emoção à idéia em que ela se formula intelectualmente, assim
emocional e desenvolvê-lo racionalmente pela idéia que a conden­ como os poemas predominantemente cognitivos ganham força
sa. É o que Brecht fez n_este poema: persuasiva com o envolvimento sensorial. Com este processo, o
prazer do texto é intelectualizado: como não se trata de um texto
Meu filho, deixa que a tua mãe te diga
puramente emotivo, a emoção originária tampém tende a conduzir
.
que a vida que te espera é pior que a peste.
à ação, pois o prazer vem acompanhado-do mesmo sentimento de
Mas eu não vou te pôr no mundo
pra que você suporte essas coisas. repulsa pelo fato exposto.

O que você não �em, não dê por perdido.


Aquilo que não te dão, faz que seja teu. C) A Recusa da Persuasão
Eu, tua mãe, não vou te pôr no mundo
pra que um dia vá dormir deba�xo das pontes . A estética lúdica, que identifica poesia com ludismo, nega a per­
suasão como tarefa do poema: para ela, o poema é só ludismo,
Quando de noite eu estou junto de ti sem dormir, emoção pura - e não há de que se persuadir ao explorar-se uma
eu sempre procuro e tateio o teu punho. emoção. Emil Staiger, caracterizando o lirismo, observa:
Eles projetam guerras pra você,
e como te impedir de acreditar nessas mentiras? Quem não se dirige a ninguém e se preocupa apenas com pessoas
esparsas que se encontram em idêntica disposição interior, não
Por isso, meu filho, fica com teus irmãos! i:iecessita da arte de· convencer. 36
Pra que o poder deles se dfasolv� na poeira,
você, filho, e eu, e nossos semelhantes Está correto: o lírico, que dispersa a sua ideologia, não procura
temos de ficar todos juntos, e fazer isso de um jeito
pra que não haja mais dois tipos
convencer ninguém. Não procura - o que não significa que não
de homens sobre a terra.35 possa. Mas, se ele "não se dirige a ninguém", é apenas durante
o processo criador: acabado o poema, a sua primeira preocupa­
Ele abriu o poema com uma violenta carga emocional: a revolta çã<:> é, exatamente; dirigir-se a outrem - como tod_o agente
contra a situação social que aguarda o feto de um proletário numa cultural.
certa sociedade capitalista. Mas, ao longo do texto, desenvolve esta
emoção muito racionalmente, numa série de argumentações lógi­
cas, pontilhadas de conselhos objetivos-e interrogações provocado­ 7 - O Quiasma Ideológico
ras. Para convencer ó auditório, re(orça a demonstração com o
ostentar de su_a emoção, exibindo o� quadros da miséria com toda A figu1..a da persuasão pelo poema reúne as estéticas opostas num
a força de sua 1·eyoltante nudez: vida ao léu, dormida sob pontes, quiasma ideológico: ambas promovem e negam a mensagem poemá­
-
doenças, p.1-ivações, subjugação, mentira, guerra etc. E remata o tica, conforme ela poetize uma tese da própria ou da outra ideolo
texto com uma síntese ideológica: é preciso lutar, para acabar com gia. Como no quadro abaixo:
os desníveis de classe. Se o leitor não tjver uma firme convicção
de suas idéias políticas, ele pode ao fim da leitura estar 1) Mensagem poetiza tese da ideologia oponente:
também pensando com o poeta. 1.1) mensagem negada pela estética dominante;
1.2) mensagem promovida pela estética oponente;
176 Jdeologi.a Ideologia 177

2) Mensagem poetiza tese da ideologia <k>minanle; Esse quiasma oferece quatro espaços de leitura, que se desdo­
2.1) mensagem negada pela estélica oponente; bram em oito situações concretas:
2.2) mensagem promovida pela estética dominante.
1) Campo A_ -Ação da classe dominante:
AI) - ela promove a sua própria ideologia, como se vê nos hinos
escolares, etc;
A3)- ela nega a ideologia-oponente, com se vê nas formas de censura,
etc;

2) Campo B - Ação das classes subjugadas:


B2)- e_la nega a ideologia dominante, como se vê na crítica politizada,
etc;
B4) - ela promove a sua própria ideologia, como se vê na literatura
de combate, etc;

· 3) Campo C - Poetização do dominante:


l Um gráfico visualizará o problema com as quatro relações CI) - as teses da ideologia dominante são promovidas pela estética
possíveis: dominante, como em A
) C2) - as teses da ideologia dominante são negadas pela estética
oponente, como em B2;
1 IDEOLOGIA DOMINANTE 3
) 1 .,, 4) Campo D - Poetização do oponente:
1
} , ............ .-;..,'\...
... D3) - as teses da ideologia oponente são negadas pela estética
1
A ,,,."",,,, -� dominante, como em A3;
). .
., .......... ,,,.
D4) - as teses da ideologia oponente são promovidas pela estética
. ""º <ff:?.�º.,
., -- ., .....,� ....
1 C>i•
, oponente, como em B4.
1
) �e-
"� .,. .,,
e1;
......
\ Como se vê, os dois fenômenos típicos · estão à direita do
, .............. ,,
1 POETIZAÇÃO C D POETIZAÇÃ1 quiasma. São os que se referem à elaboração estética de temas
bo DOMINANTE DO OPONENT: opositores: 1 9 ) negação da mensagem pela ideologia dominante; 2 2)
l:l-, .,
1 , promoção da mensagem pela ideologia oponente. Ambas sabem que a
J . .,o .... persuasão abriu a á1·ea fati16gica do poema e o leitor persuadido
1 e,\..,., ,, pode preenchê-la coi:n uma ação revolucionária: por interesses
,,

�----
) B
1 ideológicos, a primeirn precisa evitar esta ação, a segunda precisa
l estimulá-la.
1
2 4
IDEOLOGIA OPONENTE
8 - Como Conclusão

A tentativa de infundição de uma ideologia pelo poema só confi­


gura um "caso" político quando o autor a manifesta cxpressamen-

J
178 Ideologia Ideologia 179

te, como num Brechet ou num Maiakovski. Pode reduzir-se a um g) aburguesante - num Alberto Caeiro:
mero "caso" psicológico, quando a manifestação é inconsciente. Haver irtjustiça é como haver morte.
Mas em qualquer das duas hipóteses, a tentativa de persuasão é Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
claramente perceptível, como se deduz desta série de esforços: Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
a) cristianizante - num José Albano: Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
Comigo quantas vezes imagino E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.43
na terra o amor humano,
Se
Que - doce
é tão
nao sera, no ceu
, o amor d' v1nof.
. �31 h) liberalizante - num Mudlo Mendes:
!
Não me inscrevo em _nenhuma teoria,
estou no ar,
b) evolucionizanle- num Augusto dos Anjos: na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
Creio, como o filósofo mais crente, no meu modesto quarto da praia de Botafogo,
na generalidade decrescente no pensamento dos homens que movem o mundo,
com que a substância cósmica evolui.38 nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
- 44
sempre em transformaçao.
c) hedonizante - num Raul de Leôni:
Por que este desespero de que falas? i) socializante - num Carlos Dmmmond de Andrade:
Se não crês bem nas cousas, nem descrês, O poeta
Ama-as embora, porque o teu prazer declina de toda responsabilidade
Lhes dará a mais viva das verdades! na marcha do mundo capitalista
Não é preciso crer nas cousas, basta amá-las, e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
Sendo que amar é muito mais que érer. 39 promete ajudar
a destruí-lo
como uma gedreira, uma floresta,
d) nihilizanl.e - num Machado de Assis: um verme.
Sei de uma criatura antiga e formidável
Que a si mesma devora os·membros e as entranhas
-Com a sofreguidão da fome insaciável. Como se viu, uma ideologia que pode vincular-se à classe social
························· ·· com que o autor se identifica� mas que não porta necessariamente
Tu dirás que é a, Morte. Eu direi .que é a Vida. 40 uma carga política expressa: aqui, ela conserva todo o vigor da sua
totalidade - visão de mundo, não apenas arma de combate. O
e) espirilua.lizantc - num Cruz e.Souza: político não será mais que· um de seus elementos componentes,
Paladinos da límpida Cruzada! predominante ou não. Mas, qualquer que seja a tônica de uma ou
Conquistemos, sem lança e sem espada, outra concepção ideológica, esta - numa sociedade estratificada -
As alm.as que encont1·ai·ni'os no Caminho. 41 não pode deixar de servir a uma das classes em conflito. Levemos
a coisa até o fim: dos nove exemplos citados - que apresentam
f) materializante - num Manuel Bandeira: algumas das principais posturns ideológicas do nosso temp<? - A,
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade C, D e G servem à ideologia dominante; B, H e I servem à ideologia
Que a vida é traição oponente; e, dependendo da finalidade com que sejam atualizadas,
E saudava a matéda que passava E e F podem servir a qualque1· uma.
Liberta para sempre da alma extinta. 42
�,
�/
�I 180 Ideologia
��! Ideologia 181
�� y­ A recusa da per:;uasão como possível efeito da obra literária é 13. Marx, La ldeología Alemana (Montevideo: Pueblos Unidos; Barcelona:
�' f uma postura típica da classe dominante: ela não admite modifica­ Grijalbo, 1972), p. 50.
. � ções .na estrutura social vigente e o poema pode induzir o leitor
1,i; 14. Flávio R. Kothe, Para ler Benjamin (Rio de Janei ro: F. Alves, 1976), p.
l persuadido a uma ação modificadora. Esta atitude se torna mais 109.
�. '
evidente ao se atentar para a-mensagem veiculada: ela é sistemati­ 15. Determinadas correntes do pensamento contemporâneo ensinam
camente rejeitada em sua qualidade de componente poemático que o literário reside na forma e na linguagem das obras. Podia
' i quando se trata da poetização de alguma tese da ideologia oponen­
remeter o leitor ao nosso ensaio "A deserção lingüístico-est1·uturalista
(em Literaiura e Ideologia. Petropólis: Vozes, 1979), mas quero afirmar
:, 1
� te. Mas a própria class_e dominante se serve da poesia, da literatura aqui: isto é um simples ardil para contornar o problema ideológico.
�� e da arte em gemi como veículos de propag�ção da sua ideologia, Também para a literatura é válido este preceito: quando se pretende
j como se vê _nos hinos escolares, nas canções religiosas e patrióticas,
!' alcançar um determinado fim, devem-se· aperfeiçoar os respectivos
,\; na música popular, nos livros oficiais ·e em certa literatura infantil; meios. Informados disso, esses teóricos se centralizam na forma e na
}I numa atitude profundamente massificadora, procura condicionar linguagem, mas - desprezando o objetivo final da obra comentada,
� { pela raiz a consciência em formação de suas crianças. geralmente contrário aos seus interesses - dissecam os meios como
se esses constituíssem os únicos elementos literários da obra e,
)
(, l po_rtanto, seu próprio ser, mais que um simples fim. Sem perceberem,
) fazem a crítica pela cdtica, retornando à velha alienação da arte pela
1,; Notas
) arte.
\1 \ 16. Boileau, L'Art Poétique (Paris: Larousse, 1972), p. 35.
') 1. Karl Marx, L'Ideologie Allemande/Theses sur FeuerbachjPréface de la 17. Platão, "Fedro/Górgias", em Obras Completas (Madrid: Agu ilar, 1972),
1·· 1 Cont?ibution à la C1itique de l'Economie Politique (Paris: Ed. Sociales, p. 872.
' ) 1972), p. 251.
lil 18. Platão, ibid., p. 367:
. \ 2. Marx, ibid., p. 253. 19. Platão, ibid., p. 380.
i 3. Cf. Karl Mannheim: "Para a maioria das pessoas, o termo 'ideologia'

i
20. Platão, ibid., p. 379.
se acha intimamente ligado a marxismo."(Ideologia e Utopia. Rio de 21. Platão, ibid., p. 378.
1: Janeiro: Zahar, 1976, p. 81). Esta associação foi o fator responsável 22. Platão, ibid., p. 874.
� pelo preconceito burguês contra o conceito, transformand0-0 em 23. Aristóteles, Rhétorique (Paris: Belles Letres, 1967), v. 1, t. 1, p. 75.
\ tabu.
l : 24. Claude Bremond, "O Papel do Influenciador", em Pesquisas de Retórica
4. Herbert Marcuse, Eros e Civilização (Rio de Janeiro: Zahar, 1969), p.
(Petrópolis: Vozes, 1975), p. 41.
1
23. 25. Bremond, ibid., p. 42.
� 5. Marx, L'Ickologi.e, p. 73. 26. Bremond, ibid., p. 47.
r : 6. Mannheim, Ideologia; p. 122. 27. Roland Barthes, "A Retórica Antiga", ern Pesquisas de Retórica (Petró­
7. Mannheim, ibid., p. 82. polis: Vozes, 1975), p. 184.
)'1 8. Mannheim, ibid., p. 83.
28. Aristóteles, Rhétorique, p. 75.
9. Simone de BeauvoÍr, O Pensamento de Direita, Hoje (Rio de Janeiro:
29. José de Alencar, "Ex-homem", ç:m Obra Completa (Rio de Janei ro:
)', Paz e Terra, 1972), p. 83.
� I •. '
10. · Uma eloqüente - e cínica - demonstração disso é fornecida pelo Aguilar, 1965), v. 3, p. 1085.

l
'
-j. 30. Bertold Brecht, Estudos sobre Teatro (Rio de Janeiro: Nova Frontei ra ,
•:. "Decálogo do Político Mineiro", que reza no segundo mandamento:
1978).
"O importante não é o fato, é•a versão." Cf. Sebastião Nery, Folclore
31. Georg Lukács, Mm-xismo e Teoria da Literatura (Rio de Janeiro: Civili­
Político (Rio de Janeiro: Record, 1976), p. 24.
,. 11. A expressão é de Simone de Beauvoir. Cf. O Pensamento, p. 112.
zação Brasileira, 1968), p. 259.
32. Fagundes Varela, "Cântico do Calvário", em Poesias Completas (São
12. Eduardo Portelia, Fundamento da Investigação Literá,ia (Rio deJaneiro:
� Paulo: Saraiva, 1962).
Tempo Brasileirn, 1974), p. 119.
j 33. fü·echt, Estudos, p. 181.

j
182 Ideologia Ideologia 183

34. Bt-echt, Poemas (Lisboa: Prcsçnça, s. d.), p. 66. 13. __ . Poemas. Trad. Arnaldo Saraiva. Lisboa: Presença, s. d.
35. Brecht, Folheto da Peça "O que mantém um hom,em vivo" (Fortaleza: Dir. 14. BREMOND, Claude. "O Papel do Influenciador." ln: COHEN,Jean
Renato Borghi, 1975). et allii. Pesquisas de Retórica. Petrópolis: Vozes, 1975.
tml,1 36. Emil Staiger, Conceitos Fundamenta4 da Poética (Rio deJaneiro: Tempo
Brasileiro, 1969), p. 50.
15. CAEIRO, Alberto. "Poemas". ln: PESSOA, Fernando. Obra Poética.
Rio deJaneiro: Aguilar, 1960.
37. José Albano, Rimas (Rio de Janeiro: Pongetti, 1948), p. 244. 16. KOTHE, Flávio R. Para ler Benjamin. Rio de Janei ro: F. Alves, 1976.
38. Augusto dos Anjos, Eu (Rio de Janeiro: SãoJosé, 1962), p. 90. 17. LEÔNI, Raul de. Luz Mediterrânea. Rio deJaneiro:Jacinto Ribeiro dos
39. Raul de Leôni, Luz Mediteminea (Rio deJaneiro:Jacinto Ribeiro dos Santos Ed., 1922.
Santos Ed., 1922), p. 153. 18. LUKÁCS, Georg. Ma·1,--ismo e Teoria da Literatura. Rio de Janeiro:
40. Maçhado de Assis, Olnu Completa (Rio de Janeiro: Agu ilar, 1962), v. Civilização Brasileira, 1968.
3, p. 181. 19. LYRA, Pedro. Literatura e Ideologia. Pet1·ópolis: Vozes, 1979.
41. Cruz e Sousa, Obra Completa (Rio de Janeiro: Agu il ,1.r, 1961), p. 193. 20. MANNHEIM, Kad. Ideologia e Utopia. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar,
42. Manuel Bandeira, Poesia.e Prosa (Rio de Janeiro: Agu ilar, 1958), v. l, 1976.
1 p. 248. 21. MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar,
'1
1
43. Alberto Caeiro, "Poemas", em Fernando Pessoa,
Janeiro: Agu ila1·, 1960), p. 193.
·· Obra Poética (Rio çle 1969.
22. MARX, Karl. L 'Ideologie Allemande/ Theses sur Feuerbach/ Préface de la
,,"
1
44. Murilo Mendes, Antologia Poética (Rio de Janeiro: Fontana/MEC, Contribution à la· C1itique de l'Economie Politique. Paris: Ed. Sociales,
:i 1976), p. 13. 1972.
t
t
15. Carlos Drummond de Andrade, O&ra Completa (Rio de Janeiro: 23. __. La Ideologia Alemana. 4. ed. Montevideo: Pueblos Unidos;

1l
Agu ilar, 1967), p.. 148. Barcelona: Grijalbo, '1972.
24. MENDES, Murifo. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Fontana/MEC,
1976.
Bibliografia 25. NERY� Sebastião. Folclore Político, 2. Rio de Janeiro: Record, 1976.
26. PLATAO. "Fedro/Górgias". In: __ . Obras Completas. 2. ed. Madrid:
A guilar, 1972.

,�il
1. ALBANO,José, Rimas. Rio de Janeiro: Pongetti, 1948.
27. PORTELLA, Eduardo. Fundamento da Investigação Literária. 2. ed. Rio
2. ALENCAR, José de. "Ex-homem." ln: __ . Obra Completa. Rio de
de Janei ro: Tempo Brasilei ro, 1974.
Janeiro: Aguilar, 1965. V. 3.
28. SOUSA, Cruz e. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1961.
1 3. ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra Completa. 2. ed. Rio de
i 29. STAIGER, EmiL Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro:
1 Janeiro: Aguilar, 1967.
4. ANJOS, Augu sto dos . .cu. 29. ed. Rio deJaneiro: São José, 1962.
Tempo Brasileiro, 1969.
1
30. VARELA, Fagundes. Poesias Completas. São Paulo: Saraiva, 1962.
5. ARISTÓTELES, Rhétorique. 3. ed. Paris: Belles Letres, 1967. V. 1, t. 1.
6. ASSIS, Machado de. Obra Completa. 2. ed. Rio· de Janeiro: Aguilar, )

11. .!"
i
1962. V. 3.
Í·l'i'. 7. BANDEIRA, Manuel. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: A gu ilar, 1958. V.
11 1,
. '
1.
'

� 1 8..BARTHES, Roland. "A Retórica Antiga." ln: COHEN, Jean et alii.
Pesquisas de Retó1ica. Petrópolis: Vozes, 1975.

;�!:
I 1

,,,(·,. 9. BEAUVOIR, Simone de. O Pensamento de Direita, Hoje. 2. ed. Rio de


. Janeiro: Paz e Terra, 1972.

Jti
10. BOILEAU. L 'A,·t Poétique. Paris: Larousse, 1972.
11. BRECHT, Bertold. Folheto da Peça "O que manthn u1n homem vivo" Dir.
Renato Borghi. Fortaleza: 1975.
12. __. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
r'·l
)
\ i
'<! 1) '
e:• •
';:{_
(.,(; '
, , ,_ I '-? , I ,e 1. J...,.-4 t
r ;-• ' '-·"'
l
t--1 ( { ' çl_ '
:
y

� 1 ·/
._,,,,�•./

J, o
;:) ' C,_v v t,
/
r7--_l,t, tt;>< -
...?
r
.
-� e.,. l e..]: _!: ul" Inconsc1ente 1
'�� e-

Kathrin Holzermayr Rosenfield

fosse o desejo o bastante para movimentar o


papel em branco e nuvens deixariam esta
margem e margens.deixariam simplesmente
de existir como se escrever não fosse delimi­
tar-se
João MouraJr.
Páginas Ama.relas

O termo

A noção de inconsciente faz hoje parte da vida cotidiana. Temos


inclusive o hábito de atribuir a esta vaga entidade tudo o que escapa
) de uma explicação racional. O uso banal da palavra, resultado da
ampla vulgarização da psicanálise nas últimas décadas, leva assim
) a confundir acepções mu"ito heterogêneas e historicamente distin­
) tas deste termo. Do conceito filosófico e metafísico do século XIX
(Hartmann, Nietzsche, Bergson), passando pela noção literária de
J
memória inconsciente que Samuel Butler (1880) deduz das consi­
) derações fisiológicas de Ewald Hering2 sobre "neuro-processos
) inconscientes e materiais" (considerações que impressionam dura­
·
velmente Freud), até os diversos usos que este termo vai conhecer
na obra de Freud, não há continuidade nem ·"evolução" mas,
sobretudo, torções, rupturas e reviravoltas.
7 As sinuosidades, tanto na constituição histórica do termo
inconsciente como nas oscilações às quais ele é submetido na obra

1
freudiana (onde ele tem estatutos diversos, ora tópico, orafuncional,
ora descritivo), dificultam seu uso preciso e pertinente. O desconhe­
cimento destas múltiplas elaborações conceituais representa uma

j
fo1·te hipoteca na aplicação da noção de inconscieniê,a, outras áreas
de conhecimento, Os freqüentes deslizes entr� as. v;irias'
acepções
.

'1j
·'f
[•
rl.ifi
'1

dri
l
186 Inconsciente Inconsciente 187

históricas do termo, que marcaram a psicanálise aplicada, levaram maior clareza, articulações mais discretas. Tais concatenações se­
inúmeros críticos literá1·ios ( entte os quais, por exemplo, Anato!

í
cretas são o lastro no qual se instala e realiza o desejo inconsciente
Roscnfeld3) a desacreditá-la ou ridicularizá-la, rejeitando o conhe• graças ao trabalho oní rico ou Jantasmático.
cimento psicanalítico como perspectiva válida na crítica ou na
interpretação literárias.
Trata-se, portanto, não apenas de conciliar ou acomodar a A imagem-adivinha, a clupla leitura e o nivelamento do texto
crítica literária com a psicanálise, mas de mostrar que a técnica de
·,r investigação instaurada por Freud e a metapsicologia - a teoria do
funcionamento do aparelho psíquico - permite transpor e deslo­
Freud descreve este fenômeno de duas representações, duas histó­
rias concomitantemente presentes no mesmo espaço pictórico ou
car· os limites do saber filológico. O presente trabalho se quer um no mesmo relato, utilizando-se da imagem do "Vexierbild" (ima­
convite à releitura de Freud, cujo edifício con.ceitual e cujos proce­ gem-adivinha). Conhecemos bem as imagens-adivinha das revisti­
dimentos de escuta e de leitura oferecem perspectivas extrema­ nhas de crianças, onde o piquenique dissimula (sem encobrir) o
mente férteis à crítica e à interpretação literárias. chapéu de Napoleão, ou o caçador no bosque pode ser visto, com
um certo esforço do olhar, como o leão caçado. Uma versão mais

�,1
li sofisticada do mesmo princípio seria o famoso quadro de Holbein
fi
4l
O Problema da Abordagem Psicanalítica Os Embaixadores, todo ocupado pelos personagens e objetos mais
mundanos, a tal ponto que o espectador não atribui importância

�. A psicanálise não desconhece a longa tradição hermenêutica. Os a um objeto anódino e, neste contexto, enigmático, que aparece

I!
primeiros capítulos da Interpretação dos Sonhos representam uma embaixo dos pés do dois embaixado1·es. Esta mancha opaca e sem
respeitosa discussão e crítica destes procedimentos desde a antigui­ sentido transforma-se numa certa perspectiva (na perspectiva de
dade até os autores contemporâneos. Além disto, Freud sempre quem deixa o ambiente.mundano da representação saindo por
acolhe com grande interesse os trabalhos e contribuições dos seus uma porta situada ao lado do quadro) em caveira: imagem da
colegas e discípulos sobre os simbolismos literários e as estruturas vaidade embutida nas pretensões mundanas.
Ih do imaginário universal. Nesta tarefa hermenêutica, a psicanálise São estas pequenas e, às vezes, ínfimas zonas de sombra e
W•
!�l1 introduziu, no entanto, uma série de procedimentos e regras que de irracionalidade, -os "erros" e as "incongruências" que fazem

lj
1� ! vão além da simples leitura sirnbó.lica e fenomenológica, não sendo contudo parte da obra enquanto elementos significantes. Eles
1::1
ti
sempre de fácil aplicação à hermenêutica literária.. constituem os pontos de suspensão de uma outra história que
Interpretar psicanalíticamente exige proceder pela livre asso-­ pontua - e põe em perspectiva - a história aparente, da mesma
�f,!' ciação: pela regra, imposta ao analisando, de não dirigir ou censurar maneira que a caveira ele Holbein. suspende a mundanidade no
11,: ií seu discurso, de não omitir nenhum elemento, por supérfluo, '), abismo da morte.
lt·
1: I'. �
1 anódino ou 1·idículo que pareça. Entretanto, corno aplicar esta A grande modificação j_ntroduzida pela abordagem psicanalí­
l ' regra à intc1·pretação literária? Tratar-se-ia da livre associação do tica do relato (seja ele de um sonho ou de qualquer outro co1"tiunto
.� Jcito1) De um personagem? Ou deveríamos rastrear os lapsos do significante, inclusive da obra de arte) consiste no nivelamento do
1.1 ..' autor ou do nanador? A inviabilidade desta regra compensa-se, no texto. Isto significa que nenhum elemento, por preponderante que
entanto, pela contrapartida na atitude do analista. A regra da apareça ou por determinante que seja seu papel na obra, merece

1l
�-

ri
t
atençãoflutuante exige que a pessoa que escuta, lê e interpreta não
privilegie nenhum elemento, tema, tópico, por mais destacado que
maior atenção do que outro. Freud demonstra esta técnica não
apenas na Jnle-Jj>retação dos Sonhos, mas igualmente na interpretação
1' seja, no relato. Esta atitude leva a um desmantelamento das estru­ de certos mitos bem conhecidos e suportes de um simbolismo
turas manifestas e racionais, permitindo assim·que apareçam, com consagrado.
r.

t-,,,
, ,1

�;;.
ii,
lt
►JtJl·i 188 Inconsciente Inconsciente 189
t �� t
-.J A leilura do "pequeno traço" no mito de Prometeu complexidade do relato. A psicanálise �ão visa, em primeiro lugar,
••J
f-i...-�-� a compreensão ou a interpretação da história manifesta, do relato
·Ji'
) i
� Freud retoma, por exemplo, o mito do i-apto do fogo por Prometeu na sua coesão e ordenação aparente. O que interessa, antes de
\' na contracorrente das análises "simbólicas" que desdobram todas
:I'!) tudo, é a duplicidade ou a multiplicidade de tramas que aparecem,

'
.J
as vertentes do simbolismo do fogo, perguntando, ao contrário, para o olhar ''oblíquo", nas _articulações desconcertantes, apanmtemenle
Nt• ·, : pela significação da rriarieira estranha de carregar o fogo roubado. absurdas, supéfltlas
r
e an6dinas.

, .. d "' Prometeu esconde o -fogo, com.•efeito, num tubo vegetal, ou seja,


1
J:-':' Assim, a psicanálise não fornece novas chaves para uma her­
num recipiente predestinado a cat-regar água. Por esta via, Freud menêutica milenar, porém implica numa modificação do procedi­
t\ não chega a uma interpretação contrária à dos outros intérpretes, mento de leitura, de escuta e de análise. Uma atenção latente,
J;i,:.
,1
que vêem no mito de Prometeu a história de um ato civilizador e desp.reocupada com a compreensão imediata, precisa ouvir, além
t,tP.·· (_.. fundador da cultura humana. Se_u novo olhar traz à tona a d�ip-
tagem de ürna histó,:ia complementar que constitui, de certa forma,
ou concomitantemente à história coerente, uma "história" feita de
repetições, hiatos, truncagens e torções. Nestes restos e incon­
p li o avesso do gesto triunfante do homem civilizado. gruências manifestam-se representações que não cabem no univer­
r.1)!i, Esta história complementar descreve algo como a pré-história
do avanço cultural, as etapas que precisam ser vencidas pelo
so das coisas e das relações que fazem sentido para o sujeito.
� -
�rt
�. homem para·poder realizar este gesto heróico. Freud evidencia a
,..., ,, ,.
�l'f.i
,vV-
partir deste detalhe aparentemente anódino uma outra configura­
' ,ti
A Constituição do Inconsciente
ção: Prometeu não é apenas o herói de uma conquista, mas ao Ç-{qv'\,�
III}
� mesm�a renúné:ia. Pãi·a obter fogo, ele preãsa o O_recalcamento cria um outro lugar e um outro modo d� fun�iona-
IM l abrir mão deüm 1mpu1To fundamentalmente ligado às imagens da mento: o inconsciente..!:!Pico éJuncional 1
''() 11
I•
água - o impulso urinário, representado no pequeno detalhe do
H
l tubo vegetal, que exp1·ime uma moção pulsional mais "primitiva" Para Freud, os conteúdos do inconsciente são fragmentos de uma
! do que o impulso fálico e genital relacionado com os símbolos do
t fogo. A maneira de carregar o fogo - o bem cultural - traz a marca
�vlvlda p..elo sujeLto. Enquanto tãis, eles aeveriãmfazer

'..'.j
sentido, ser significantes e compreensíveis. Por que então sua
(o sinal mnésico inconsciente) do impulso primitivo (reprimido) irrupção incongruente, absurda e incompreensível no tecido de
de apagar o fogo com o jato urinário. A moção originária recalcada um texto ou de um relato?
que foi confinada no inconsciente não permanece, no entanto,
., .
�-.. t
Freud atribui este fato insólito a uma operação que não
'í inerte neste confinamento. Ela tende a retornar em múltiplas procede da vontade consciente do sujeito - o recalcamento -,
j distorções de camuflagens, por exemplo, sob a forma nobre e podendo funcionar de duas maneiras diferentes. Ou ele alcança
j•,'
superior de uma autoi'idade irada. A vingança destas forças pulsio­ um esquecimento durável (amnésia) do elemento a ser recalcado,
� ). nais reprimidas reaparece, na projeção imaginária do mito, na ou ele fratura os seus nexos causais com o seu contexto, deixando-o
,l
, l
figura dos deuses todo-poderosos, que punem Prometeu fazenclo-o
sofrer lá,mesmo onde ele exerceu a repressão: no fígado, sede das
subsistir na consciência, Ú:ansferindo, no entanto, a carga de afeto
que lhe correspondia para outros elementos·. Neste último caso, o
lid )
pa�ões . .O castigo aparece assim_çlaramen�cornOãinanifestaçã.ç> sujeito co,J:lserva na sua memória determinados fatos, sem vê-los
Õomsentimento das pulsões reprimidas. 1 X·' num contexto particular que transferiria o impacto e a significação
A rapidez com a qual Freud frisa o simbolismo do fogo mostra que possuíam antes do recalcamento (deslocamento). Neste sentido,
que ele não desconhece nem nega o valor deste símbolo, mas explica-se por que conteúdos que são topicamente inconscientes não
considera estas imagens chamativas e preponderantes como as precisam necessariamente ser inconscientes do ponto de vista
marcas (e armadilhas) da censura cultural que ofusca a visão da descritivo. f
<")• -
\ ,.. ---t.e.......... J-,--� '),\,{..t-._ �

1 ·, .�,·e, .,,_ '·'""' /, I , O::,


,N 190 Inconsciente lnconscienle 191

:t As representações inconscie!}tes pertencem a um domínio condensadas e confundidas nuil1 mesmo signo, tentando reencon­

1
diferente do aparelho psíquico: de um lado, elas constituem um trar o evento que criou, na história do sujeito, as condições
lugar, topicamente distinto e separado do resto deste aparelho, do p1·opícias parn este tipo de confusão e de curto-circuito.
outro lado, elas obedecem a regras de funcionamento muito mais O caráter estanque e incompreensível das produções incons­
soltas do que as representações conscientes e a linguagem comu­ cientes, que permanecem inacessíveis às intenções e à vontade do
nicativa. Freud designa este modo de funcionamento de processo sujeito, remete à incapacidade deste último de integrar determina­
primário, que permite um deslocamento muito livre da energia de dos contéudos - sobretudo aqueles vinculados aos problemas
investimento entre as representações, de forma que as idéias fundamentais da origem, da morte e da sexualidade - na trama
inconscientes podem formar-se, veiculando imagens na ordem da coesa das coisas e das relações que fazem sentido.
t,'•t',,,}1' sem,elhança (metáfora) e da contigüidade (metonímia), condensando Em um primeiro momento, Freud, ao construir o conceito de
inconsciente a partir de casos patol?gicos, atribui a clivagem destes
1,
numa única imagem várias relações que o raciocínio consciente distingui­
[f, l
r
ria segundo seus nexos lógicos (con�ação). ·· conteúdos patogênicos, doravante separados da consciência, a um

n
Tomemos um exemplo. A palavra "gato" como significante e evento traumático e real - a sedução sexual do sujeito num estado
símbolo universal - isto é, como signo na ordem da comunicação imaturo e, portanto, incapaz de çompreender a significação deste

f:;�tH,
- designa um animal e remete a um vasto campo de significações ato sexual. O gesto incompreen<;lido permanece, primeiro, como
envolvendo os felinos (sensualidade, independência, sabedoria, um resto - estanque e sem integração. Ulteriormente, no momen­
to em que o sujeito adquiriu uma fase de maturação que lhe

tt
etc.) que se plasma no imaginário social e poético. Com um
levíssimo deslize fonético, viabilizado, no caso, pela reminiscência permita compreender o sentido e o caráter transgressor deste
·de ter ouvido um estrangeiro pronunciar "gat6", o "discurso" gesto,· o conteúdo é rejeitado,. caindo no esquecimento.
inconsciente pode agora usar a imagem do gato (a representação Com a çrescente experiência clínica, a noção de sedução ganha
de coisa-gato) como "signo" que abriga uma série de pensamentos _ progressivamente um sentido e um papel diferente. Por um lado,
ligados a "guató" - por exemplo, à Rua Guató onde mora alguém Freud constata o trabalho inconsciente não apenas em casos pato­
ou aconteceu algo que importa para o sonhador. Desta ordem de lógicos, mas igualmente em pessoas normais. Por outro, a extrema
associações "embutidas" secretamente na palavra gato, pode partir freqüência de relatos de sedução ,da parte dos seus pacientes
mais uma outra cadeia de associações, a que leva da primeira sílaba provoca em Freud a suspeita de que estas lembranças poderiam
gua - de Guató à Guaíba, isto é, às idéias de água e de pântano remeter muitas vezes a desejos e fantasias e não a verdadeiras
etimologicamente contidas na palavra, ou a acontecimentos e fatos seduções.
'I •
1•
que envolvem o rio Guaíba. Ora, esta revisão não obriga Freud a abandonar radicalmente

Í.l,.·l
Como se vê, para a linguagem comunicativa e universalmente a sua teoria da sedução como tray,ma que abala a percepção das
válida, os "signos" do inconsciente não são tais, mas cacoetes relações causais entre as coisas. Ela o leva, isto sim, a uma reformu­
1
incompreensíveis ou avalanches de elementos para os quais vale lação total do conceito de·sexualidade, coincidindo, esta pesquisa,
,, com a descoberta da sexualidade infantil, do auto-erotismo e do

llf;n
tudo. O inconsciente não "fala", como �e diz freqüentemente,
numa "lógica" diferente da da racionalidade, mas "vomita" signos fantasma.
de maneira· totalmente anárquica, e com o intuito destes signos não
serem compreendidos nem jJelo próf;rio sujeito que os produziu. Fazer falar
· estas avalanches de fragmentos desordenados é a tarefa da análise, (O desamparn (Hiiflo,iglwit) do pequeno,,,. humano )
; (1
r
·1�.,).'
IÍ:
·l
do esforço de descobrir, atrnvés da associação livre, as múltiplas
cadeias significantes enozadas e embaralhadas. Nesta empreitada, De onde vem esta curiosa incapacidade de registrar objetiva­
mente fatos, causas e efeitos resultando no recalcamento e na
'f'
11 \.'
..' ·11
interpretar é evidenciar a diferença entre as diversas associações

1·1
1,

j
192 Inconsciente Inconsciente 193

constituição do inconsciente? Onde está o trauma se não há de satisfação (ligadas sobretudo à oralidade) reativa os traços
necessariamente sedução real? mnésicas (representação do objeto externo) e as ine1-vações das
Freud aponta para uma determinação biológica do ser huma­ partes do próprio corpo implicadas neste processo. Ela medeia
no - sua "prematuriedade", isto é, seu nascimento num estado assim a implantação da atividade auto-erótica, ou seja, a excitação
biologicamente inacabado do qual decorre uma longa dependên­ ativa de determinadas zonas do próprio corpo (a mucosa bucal, a
cia aos cuidados de um outro. A instância materna, suporte de epiderme, os genitais, mas igualmente o olfato, a visão, etc.) para
todos os gestos necessários à sobrevivência, adquire assim uma a obtenção de um prazer igual ou semelhante às primeiras satisfa­
importância desproporcional, pois a relação com este primeiro ções.
objeto fornecerá a matriz das satisfações e dos perigos que o sujeito Em outras palavras, o que Freud chama de prindf1io do prazer
pode esperar do mundo exterior. não é a busca consciente de prazeres e diversões, porém a disposi­
· Desde 1895 (Esboço para uma Psicologia científica), Freud pro­ ção, decorrente-da condição desamparada do recém-nascido, de
cura delimitar com precisão todas as implicações do desamparo simular com gestos exercidos sobre o seu próprio corpo (chupando
fisiológico do recém-nascido, que depende.inteiramente de outrem o dedo, friccionando a epiderme, etc.) as primeiras sensações de
para satisfazer suas necessidades vitais,-uma vez que o ser humano satisfação envolvidas na sucção do leite materno.
não possui montagens instintivas prontas que assegurem sua so­ Os gestos auto-eróticos (excitação da mucosa bucal pela suc­
brevivência. O seu sistema nervoso não está ainda preparado para ção, do intestino terminal pela retenção das fezes, dos genitais, etc.)
coordenar qualquer ação específica. Em outras palavras, o ser tornam-se independentes de qualquer satisfação orgânica e são
humano nasce num ·estado que não lhe permite regular, com acompanhados de uma rica atividade fantasmática. Estes fantasmas
razoável autónomia, os equilíbrios fisiológicos do seu próprio constituem cenários que fundam a relação do sujeito com seu
1 organismo. A satisfação das necessidades vitais - assegurada por objeto, isto é, a encenação capta certas representações e as fixa
intermédio de um outro - acontece assim de maneira inexplicável, duradouramente num jogo de posições que expressa o vínculo do
surpreendente e quase que mágica, o que transmite às primeiras sujeito com o objeto-de-prazer.
experiências prazerosas a marca do indelével. O caráter inefável - Trinta anos mais carde, no ensaio "Inibição, Sintoma e Angús­ 'I
pois incompreendido no momento da sua incidência - destas tia" (1926), Freud insiste ainda neste fator biológico da prematu­
experiências fornece a condição do destjo-jamais superado de ração que implica na necessidade da diferenciação do Eu e do Id,
reencontrar fantasmaticamente este prazer. Entretanto, uma vez instaurando o ser humano numa dependência de outrem que se
que esta satisfação permanece intelectualmente inassimilável, ela perpetua ulteriormente, ao nível psicológico, na "demanda de
ge�a simultaneamente uma intensa angústia plasmando-se nos amor que não abandonará nunca mais o homem". 5 É nesta pers­
fantasmas de aniquilação e de perseguição. pectiva que Freud retomará a teoria do sujeito humano, mostrando
como este se constrói a partir de modelos-objetos outros que ele
mesmo, fornecendo os elemento� fundamentais de um Eu-por-vir.
Auto-erotismo, princípio de prazer e fantasma É apenas por intermédio deste percurso que o Eu assumirá, lenta
e precariamente, a responsabilidade de assegurar as funções vitais
O desejo como busca do objeto da primeira satisfação obrigai-á o e a sobrevivência, garantidas, inicialmente, graças aos cuidados
sujeito desamparado a reproduzir de maneira alucinatória (e não maternos. O conceito de fase de espelho de J. Lacan reelabora a
através da ação efetiva e voltada para a realidade) o prazer originá­ concepção freudiana do desamparo com o intuito de dar forma
rio, engajando-se então no campo aparentemente marginal de um teórica ao problema da constituição específica da subjetividade
prazer fantasmático que tende a predominar sobre os interesses da humana. 6
função vital. A reprodução alucinatória das primeiras experiências

l
J
194 Inco11scumle Inco11scíente 195

Pulsão, trauma e sedução presentifica sob dois aspectos (o "bom" objeto e o "mau" objeto7 :
ou -como presença prazerosa, gratificante e benéfica, ou como
Prematuração, desamparo e dependência - são estas as condições perigo na forma da perseguição e da aniquilação.
que conferem às primeiras experiências de satisfação um valor
muito especial. A incapacidade de regulai·; pela ação, os estímulos
externos representa não apenas um perigo real para o sujeito. Ela Instinto não equiva/,e à pulsão
comporta ao mesmo tempo a ameaça do sujeito ser submerso pelo
excesso de excitações internas que ele não tem condições de A pulsão aparece como historicamente constituída e mediada por
descarregar por uma ação específica. Daí a necessidade urgente da uma busca gu iada por representações do desejo (Wunschphanta­
constituição de um dispositivo (o aparelho psíquico), cuja função sien) visando restabelecer um estado anterior, o da satisfação
consiste em ligar estas energias livres, assegurando assim um perdida. Nisto, ela distingue-se dos gestos instintivos que visam
equilíbrio energético (êxtase pulsional). fundamentalmente o preenchimento de certas funções biológicas
É desta maneira que um pequeno número dentre as primeiras preestabelecidas, tendo portanto conteúdos (esquemas sensoriais
impressões sensoriais e satisfações é "selecionado" (como se estas e compo1·tamentais) fixos e cessando assim que a necessidade
fossem sublinhadas, realçadas e destacadas entre o resto das ima­ fisiológica esteja satisfeita. Incapaz de coordenar ações específicas,
gens sensoriais), tornando-se as representantes da pulsão. Nesta o recém-nascido humano parece, contudo, ser levado para os
relação de represe11tação, a pulsão deixa de ser mera força •ou "desvios" de um gozo que tende a prelerir o útil pelofantasmático.
energia livre, fixando-se em imagens (representações que repre­ Tendo sid<? surpreendido, do falo de seu despreparo fisiolpgico,
sentam a pulsão na ordem-do figurável) e transformando-se-assim pelo caráter inesperado, inexplicável e, conseqüentemente·, inefá­
em moção (movimento provido de uma certa qualidade). Neles vel das primeiras satisfações, toda sua atenção parece ir no sentido
solidifica-se o objeto da pulsão que o sujeito tentará doravante do reencontro deste prazer primordial. A atividade pulsional, que
reencontrar na realidade - em um primeiro momento, através da visa o prazer marginal além da satisfação funcional e fisiológica, tem
atividade auto-erótica e que visa, fundamentalmente, ofantasma. assim uma certa independência cm relação às funções do corpo,
O auto-erotismo renuncia à satisfação real de uma necessidade manifestando-se na excitação aulo-erótica de suas mais variadas
fisiológica e apoia-se na produção fantasmática de cenários que zonas, sem que esta atividade Lenha, num primeiro momento,
põem em jogo a 1:elação do sujeito com os objetos primordiais.No qualquer relevância funcional.
fantasma aparece aquilo que o sujeito, no seu es�do despreparado, Esta constituição do ser humano a parti1· do campo marginal
pode perceber e reter da sua relação com o outro: aparição e perda do prazer, seu engajamento nos meandros e desvios que representa
do "seio." enquanto significante de satisfação, calor, segurança, a busca do desejo em relação à fu1�ção orgâ11ica, ilumina de
proteção. Mediada pelo fantasma, a relação com o outro (o termo maneira particular o conceito psicanalítico de sedução. Não há
materno) aparece então sob o duplo aspecto extático/prazeroso e necessidade de uma sedução real (no scnLido e.la violentação sexual)
traumático/angustiante. para criar a predisposição ncu,:·ótica. A constituição do fantasma
Embora haja textos freudianos que se opõem explicitamente comporta todos os elementos que podem adquirir, ulteriormente,
a esta visão dialética da primeira relação com o objeto (jase oral), o a significação da sedução: despreparo e incompreensão frente à
coi:junto da reflexão freudiana apont..'1. muito claramente para uma irrupção do outro (objeto materno), ct�jos cuidados (o "seio" como
,
concepção ambivalente da pulsão. E neste linha do pensamento satisfação oral e a excitação das zonas crógrnas na higiene) impor­
freudiano que Melanie Klein prossegue em suas análises de recém­ tam (de fora) no mundo do recé111-nascidD as imagens que fixam a
nascidos, mostrando claramente as duas faces do fantasma. A pulsão. Interiorizando as irnagcns.:objetos trazidos por um outro,
instância materna faz-se presente como irrupção traumática-que se o pequeno ser humario parece, de fato, ser "seduzido", asseguran-
196 Inconsciente Inconsciente 197

do suas funções vitais mais por amor do objeto materno do que ção não implica apenas na aquisição de uma nova angústia além
pelo interesse objetivo na sobrevivência do seu organismo. . das que marcaram as fases anteriores, mas ele introduz critérios,
As sensações e experiências ligadas a determinadas zonas do representações e raciocínios permitindo ordenar as experiências
corpo (em particular a boca e as regiões anal e genital) medeiam anteriores e superando assim as angústias mais arcaicas com seu
modos específicos de relacionamento com o objeto, descritos, impacto desestruturante. A angústia de castração difere da angús­
muitas vezes, em termos defases. As fases ora� anal fálica e genital tia arcaica na medida que ela não aparece como uma mera ameaça,
tendem a ser compreendidas como etapas sucessivas do desenvol­ mas como uma sanção, isto é, ela toma a forma de uma lei que
vimento infantil, nas quais predominam certas ações e funções enquadrn o desejo em determinados limites e anuncia as penas de
orgânicas. Cabe ressaltar, portanto, que as chamadas fases não são uma eventual transgressão.
predominantemente etapas de uma evolução linear, mas momentos A fasefálica é marcada por uma visão do mundo na perspectiva
de uma experiência méntal, afetiva e pu!sional que·· é acompanhada de de um critério único: o pênis ou, melhor dito, o falo, enquanto
uma intensa investigação. atributo cuja presença marca não o sexo masculino, mas a integri­
dade do sujeito. Independentemente da observação empírica, a
criança escolhe o falo (enquanto lugar fantasmático, onde se
Fase fálica, complexo de castração e complexo de Édipo concentra o máximo de excitação e de prazer, e não como órgão

sexual masculino) como critério válido para ambos os sexos. Na
Estes três conceitos determinam-se mutuamente, articulando a
fase fálica, o pênis representa não tanto o órgão sexual masculino,
posição do sujeito no triângulo familiar. Afase fálica é marcada pelo
mas uma parte hipervalorizada do corpo, de forma que a criança
privilégio que o pênis mantém no imaginário da criança e pela
deveria literalmente fazer-se violência para admitir que um ser
angústia ligada a uma eventual perda daquilo que este representa
humano possa ser desprovido deste membro privilegiado pelo
ao nível fantasmático: um lugar estranhamente autônomo da vontade
gozo.
e da intenção consciente e suscetível de urna intensa excitação sexual. Este Este "preconceito" fálico vale também para a menina·, cujas
privilégio na ordem da pulsão e do gozo faz com que o falo, o sensações no clitóris a induzem a considerar que teria ou um pênis
pênisfanlasmático, tenda a tornar-se representante do sujeito·como muito pequeno ou que o ganharia ulteriormente. Em outras pala­
tal, o que imprime à ameaça de castração as conotações de uma v1-as, o pênis não é percebido como um órgão qualquer do corpo,
perda capital. · ·
porém como um atributo ou algo da ordern de um emblema da c01nj1le­
O complexo de castração enquanto perda do falo instaura-se tude, e sua ausência nas mulheres tem imaginariamente o valor de uma
na matriz de perdas anteriores.Já mencionamos que a captação da ameaça virtual ou de um castigo consumado. A partir desta percepção,
pulsão nas primeiras representações (orais e anais) coincide·i al­ a ausência do pênis é interpretada como uma sanção, como um
gu
mente com a representação de uma perda. Ora, nestas prime iras castigo decorrente de uma transgressão ligada ao gozo, à atividade
experiências, a perda faz-se presente, de maneira pouco organiza­
auto-erótica e aos fantasmas cdipianos.
da, em fantasmas cataclísmicos do ser-devorado, triturado, despe­
Em que consistem os fantàsmas cdipianos e o que faz com que
daçado ou perseguido, que respondem, negativamente, aos
estes se tornem insustentáveis, de forma que sucumbem a uma
-,, fantasmas do gozo (oral ou anal). 8
Ora, a série de vivências precoces marcadas pela incapacidade
pressão? O complexo de Édipo é muitas vezes visto como a relação
amoi:osa do filhp,com.a.mãe,.da filha com o pai. Ora, esta relação
de intelecção do sujeito - desde a separação no nascimento, a é somente um;�spêcto ·do,Édipo, a chamada constelação direta. No
perda do seio depois da mamada, até a perda das fezes na evacua­ Édipo completo enísa.;igµalm·e nte a constelação invertida, isto é, a

1
ção - será revista e i:eelaborada na fase fálica, recebendo· desta relação d<? .. �rn.�r..hórnqss�}{ual do,fill_10 com o. pai, da filha com a
maneira um �enticlo novo e determinante. O complexo ele castra- mãe. Estas duas constelàções:manifestam-se numa trama de fantas-
198 Inconsciente huonsciente 199

mas onde o sujeito (tanto a filha como o filho) ocupa alternada­ intenção deste sujeito. Para Freud, não se trata apenas de "reduzir"
mente o lugar do pai afim de substituí-lo junto à mãe ou põe-se no esta trama a elementos mais primitivos. O que importa é descobrir,
lugar da mãe para ser amado pelo pai. nas marcas do originário, as encruzilhadas que permitam perceber,
A visão fálica, no entanto, na qual está implícito o complexo além da coesão narrativa racional do texto, outras tramas coerentes
de castração (isto é, a possibilidade de ser castrado, de não ter ou que vinculam diferencialmente as imagens, os temas e as figuras
de perder o falo), presentifica-se no fantasma edipiano, como do texto. Este procedimento permite mostrar o vínculo oculto
ameaça que inviabiliza toda possibilidade de realização. Como rival entre temas aparentemente distintos, como, por exemplo, os do
do pai, o menino corre o perigo do castigo daí decorrente (a medo e do amor. 10
castração), na posição feminina, ele precisa aceitar a condição sine
qu.a nón desta posição
a
- o ter-sido-castrado (o que é o sentido
fantasmático da flta do pênis na mulher). . . Mudar de método: a atenção flutuante e a descoberta do mil� da irara
No quadro edipiano, o compl,exó de castração vai adquirindo um
duplo sentido - negativo e positivo (que poderia ser formulado, Abstendo-se de escolher racionalmente os temas e os motivos dignos
seguindo a sugestão de Jean Laplanche, como imperativo hipoté­ ele atenção e de interrogação, uma leitura menos preocupada com
tico e como imperativo categórico9 ). De um lado, a angústia de a interpretação hermenêutica e que .se dá ao "luxo" da atenção
castração corresponde à idéia de uma sanção: "Se tu amares flutuante, encontrará as articulações de um outro relato que passou
(gozares sexualmente de) a tua mãe/o teu pai, então serás castra­ -desapercebido. ·Nivelando o texto, isto é, prestando atenção não
do." De outro lado, ela tem a virtude de direcionar o sujeito para exclusivamente à história manifesta, mas aos pequenos detalhes
um caminho de saída do curto-circuito incestuoso (isto é, o quadro que a acompanham, nota-se, por exemplo, que as primeiras men­
cdipiano) quando "lida" da seguinte forma: "Para gozares sexual­ ções do nome de Diadorim e do ele Hermógenes estão acompanha­
mente, tu precisas ser -castrado do teu desejo edipiano (isto é, das da menção da imra - bicho que não mais aparece no restante
renunciar à tua mãe/ao teu pai)." do texto.
Nos casos favoráveis de resolução do édipo, a teoria fantasmá­ No imaginário brasileiro, 11 a irara ocupa um lugar � uma
tica da castração, que articula a angústia de castração, a fase fálica e função que parecem particularmente interessantes na perspectiv�
o complexo de Édipo, não apenas leva o sujeito a renunciar tempora­ psicanalítica da relação do objeto. Ela é dona do mel, ou seja, um
riamente ao seus desejos edipianos (paralisando a atividade sexual produto marcado por uma diferença intrínseca, por uma oscilação·
no período de latência), mas abre um horizonte. positivo: a possibili­ entre duas posições extremas. De um lado, o mel é um excelente
dade de restituição de um outro objeto de amor, a promessa de uma alimento, do outro, devido ao modo como ele é consumido pelos
troca - no lugar dos pais virão outros objetos sexuais. índios (diluído com água, portanto sujeito à fermentação), ele pode
tornar-se um veneno perigosíssimo e até fatal. Além disto, a irara
é o "correspondente" mítico dq__ Urubu - dona do tabaco, produto
Da Teoria à "Aplicação" igualmente "vertente", benéfico e maléfico -, de forma que a marca
da irara medeia múltiplas conexões: entre Diadorim e as figuras da
ambivalência (matéria vertente, etc.), entre os opostos (benéfico-ma­
O problema da homossexualidade em Grande Sertão: Veredas léfico, Diadorim-Herrnógenes, água-fogo, vida-morte, etc.).
A lógica dos mitos da irara e do urubu corresponde perfeita­
A articulação freudiana do inconsciente e o deslocamento do mente ao mecanismo da clivagem do objeto que as análises de
problema ela sexualidade instalam o sujeito numa trama ele repre­ Melanie Klein desvendam na atividade fantasmática dos primeiros
sentações (fantasmas) que escapam ao domínio, à vontade e à
1 meses de vida da criança. Nesta época, a relação com o "mundo"
1
l
.i
)

200 Inconscienlc Inconsciente 201

(reduzido a poucos objetos) 6 regida por um mecanismo de defesa, salvação da alma dejoé Cazuzo (sintada, ela, n o registro espiritual).
que consiste essencialme nte na projeção das qualidades su bjetivas Ambas as versões da salvação são viabilizadas pela intervenção de
"bom" e "mau" sobre os respectivos aspectos de um mesmo objeto, imagens fantasmáticas que ev ocam os cuidados e a proteção ma­
dorav ante clivado segundo dois "modos de ser". Da mesma manei­ ternos. A figura da Virgem introduz Joé Cazuzo no universo da
r a, o bom mel, nutritivo, gratificante e saudável aparece, no relato redenção, enquanto o braço pr ote_tor do embalo propiciado pela
mítico, como a objetivação do "bom" seio, do objeto parcial das .figura andrógina Diadorim dispensa, ao longo do romance, gestos
pi-imeiras satisfações orais. O mau mel, o álcool o u o veneno tipicamente matern_os. As belas mãos que cuidam da higiene do
resultante de um processo de fermentação difícil de controlar ou corpo de Riobaldo, preparam comidas mais refinadas e consertam
de p rever encena, na textura social, a vertente maléfica e persegui­ as roupas e os u tensílios, evocam a presença materna, da mesma
dora do objeto, cuja ameaça desestruturante é o m odo de manifes­ forma que a dedicação e o olhar vigilante do amigo supervisionam
tação da pulsão de morte. Riobaldo, a tal ponto que este compara os olhos de Diado rim ao s
de sua própria mãe.

Irara e Virgem: mediadoras da passagem entre o desamparo e salvação


A tradução _do texto-imagem
Esta configuração sugestiva obriga a verificar a função da marca da
ii- a ra no texto de nosso romance. É portanto necessário situar este Ora, o método psicanalítico adverte o analista de não se deixar
e lemento no ritmo nan-a.tivo qu e o traz à tona. A menção do nome enganar pelo aspecto "narrativo" bem construído das produções
de Dia.dorim faz parte de uma dupla seqüência. qu e relata a saída fantasmáticas (isto é, a trama predominantemente co erente). É
insólita de uma batalha pcnlid a. Neste momento desesperado, um preciso ler esta seqüência não como um relato discursivo (como
companheii·o de Ri obalclo,Joé Cazu zo, tem a visão mi raculosa da representação dejJa/avras), mas c omo um encadeamento de imagens
Virgem, joga as armas, anuncia gritando o milagre e suspende (como representação de coisas qu e caracterizam o "discurso " incons­
assim, po r um curto lapso de tempo, o tiroteio. Esta ocasião é ciente ou fantasmático) - imagens estas que necessitam, como as
aproveitada por Riobaldo que salta morro abai.xo até vir parai· da charada, de uma t radução dos elementos imagéticos para
debaixo de uma espessa moita, n uma toca de irara. A toca está ainda fazerem sentido .
qu ente do corpo da ira ra, logo Riobaldo está seguro de não correr Lendo o texto ao nível de sua concretu de imagética, ele
nenhum pe rigo proven.iente de bichos como cobras ou aranhas, perde seu aspecto de "causo" sertanej o . Ao c ontrári o , ele fala da
porém ele está convencido de ser perseguid o pelo inimigo e sente oposição fundamental entre o desamparo (sensação de perda e
sua morte iminente. Nesta angústia de morte surge o fantasma do de aniqu ilação iminentes) e o ser-amparado (a sensação extática
abraço terno ele Dia�orim: do ser-salv o por um outro atr4vés da visão ou graças à satisfação
plena d o abraço caloroso). Tanto a visão deJoé Cazuzo como o
"Com meu arn!po Diadorim me abraç,wa, scnlimento meu ia voava abraço salvador ao qual Riobàldo se entrega fantasmaticamente

-
reto para ele." 1- podem muito bem ser lidos como a t ransformação literária de
'
fantasmas origi.nários, como encenações que representam a cap­
Em outras palavras, o fantasma elo abraço de Diaclorim corres­ tação da pulsão ao nível especular e epidérmico-oral. Ambas
ponde, ao nível imaginário, ao "abraço" calo1·oso e bem concreto experiências (visão e fantasma) respondem e correspondem a
do ninho ela irara que acolhe, ao níve l da realidade física, o corpo u ma intensa angústia (o medo da morte iminente na batalha).
de Riobaldo. A seqüência ela fuga-e-salvação de Riobaldo repre­ Seu surgimento permite, "in extremis", a superação desta amea­
senta, por sua vez, uma réplica (no registro material e físico) da ça traumática.
202 lncons"<;ienle Inconsciente 203

Ora, a análise do texto mostra em todo o romance um vínculo ��: relação a Diadorim e a Hermógenes afloram secretamente desde
íntimo entre o tema da virgem (tanto da moça-vi em como da
rg a travessia com o Menino e, paradoxalmente, em relação a este
Virgem-mãe) e o tema_ da guerra (vínculo este que constitui um dos
mesmo personagem. O narrador perguntar-se-á aind,1.: "Mais, que
resíduos dificilmente inteqxetáveis do t1""áb_alho filológico). Da "can­
coragem inteirada em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo?"
ção de Siruiz" às cidades Virgem-Mãe e Virgem da Lage, da aparência - evocando, em seguida, a ferocidade sem limites do "menino do
andrógina e virginal de Diadorim até sua "metamorfose" em Nossa Nazaré" que não reconhece nenhuma lei, a não ser a da sua própria
Senhora da Abadia (fantasma de Riobaldo), o relato das andanças força e agilidade. Tanto o Menino como o menino do Nazaré são
jagunças volta inces·santemente à evocação e à invocação da Virgem exemplos do "veácr" repentino que transforma crianças indefesas
.
Na canção do jagunço Siruiz, as saudades da moça virgem parecem cm perigosos "urutus" cujos lances são fatais.
paradoxalmente alimentar o gosto das avenluras guerreiras. Entre­
Toda a experiência da travessia do São Francisco tem algo de
tanto, este paradoxo não permanece estanque, po'is_a aparição fantas­
uma encenação imagética do "verter" e da ambivalência que carac­
mática de Nossa Senhora coincide reiteradamente com o ap�lo de
terizam a clivagem do objeto. Marcada ·pelas sensações extremas da
DiadoriJTI para a guerra e a vingança. Assim, não é por acaso que a
exaltação e do medo desesperado, ela parece realizar a projeção
imagem feroz da luta entre Diadorim e Hermógenes, de dois corpos
sobre objetos distintos da satisfação pulsional e do decorrente
dilacerados, transforma-se na visão de Nossa Senhora, serena, calma
desequilíbrio - psíquicamente sentido como "perigo" - que toda
e materna como a outra face do belo e alvo amigo. modificação dos investimentos pulsionais implica. O momento do
Este "verter" dá imagem de Diadorim entre reconfortan­ encontro fatídico - adolescência - é particularmente propício para
te/protetor� irado/ameaçador/dilacerante .é preparado desde este tipo de abalo que reativa, sob um novo aspecto, a sexualidade
o
enco'ntro com o belo e fascinante M_enino: A faquinha do adoles fantasmática infantil.
­
·centé: (que fere o mulato) transforma-se no emblema
do punhal O Menino e, mais tarde Diadorim, não são apenas persona-
qu'e pd·petua seu impacto· traumático. Diadori:m desfere gens reais que surgem no horizonte de Riobaldo, mas têm algo do
botes
repentinos, mais rápidos do que o olhar, abrindo profundas ferida "fantasma" ---:- tanto no sentido psicanalítico como no sentido da
s
no envelope íntegro do corpo. Esta ameaça de dilaceramento/an sombra do. passado. que retorna ..A exaltação quase mágica que

·quilamento emprenha-se no olhar e na ·merí1ória de Riobaido, a scote Riobaldo frente à aparência andrógina do Menino, e em
reminiscência insistente parece fazer eco a algo que lhe �iz direta
­ relação à sua ternu1·a calma e firme, aparece assim como a repeti­
mente· 1·espeito, de forma que ele não parece surpreendido, na
ção, em um novo registro, da relação fantasmática com o objeto
noite· posterior ao encontro amoroso com Otacília, de ver a ameaç
a materno. Há inúmeros pontos d� _encontro· entre as imagens
do punhal de Diadodm dirigido contra si mesmo. Desde a
sua infinitamente ternas do amigo e da "mãe Bigri" criadas pelo
primeira menção, o nome de Diadorim ·está iminentemente vincu­
narrador. Riobaldo evoca a mãe como dedicada e terna, porém
lado a um faritasma ambivalente (ou à ambivalência ·do fantasma?)
firme e capaz de limitar os "demaseios" do seu filho, da mesma
- em todo caso, a uma experiência vital do "verter" que a psican
á­ forma que o Menino impõesespeito e distância apesar da sua
lise designa como o processo de clivagem do.objeto marcand_o a
vida aparência delicada e frágil. Os olhos de Diadorim, vigilantes no
pulsional e fantasmática.
sentido do cuidado protetor, mas também inquisitivos e ameaça­
dores, evoca1n "os olhos da minha mãe".
Em outras palavrns, na atomização da figura de Diadorim, que
O retorno dofantasma na figura do Menino não se presentifica como personagem propriamente psicológico
("character"), mas como "neblina" - projeção e rejlet01/espelho da
As duas modalidades do fantasma - dois tipos de fascínio simetri­

l1
atividadefantasmâtica de Riobaldo -, faz-se presente o difícil proble­
camente invertidos na sua qualidade - que Riobaldo sente em ma da unificação das pulsões parciais e da integraç;io do objeto
;:,,�
�·�
�, 204 Inconsciente Inconsciente 205
l•'
1

clivado. Nas aventuras e experiências que 13,iobaldc, vive com linas mãos, o olhar, a pele alva e os traços femininos junto à
Diadorim aflora a "travessia" da vida pulsional infantil com seus onipotência, que caracteriza, na visão do recém-nascido, o objeto
objefos parciais e clivados (o "bom" e o "mau" objeto apa1·ecem nas materno, conligura1n- uma fixação na relação fantasmática com a
vertentes benéficas e maléficas, "loucas", do olhar, dos gestos e das mãe. Seguindo nesta trilha a al}álise freudiana da reminiscência
atitudes) para a unificação do objeto e o conflito edipiano, cuja infantil de Leonardo da Vinci, 15 uma leitura superficial disporia
solução viabiliza o acesso do sujeito à sexualidade genital e à aparentemente de material suficiente para demonstrar a posição
escolha de um objeto total. homossexual de R.iobaldo. Como na obra de Leonardo, encontra­
Ora, Riobaldo, que é perfeitamente capaz de uma relação mos em Grande Sertão: Veredas inúmeras figuras que apontam para
sexual e amorosa ·que reconheça a mulher como pessoa (e não uma lixação fantasmática no objeto materno.
apenas como objeto parcial, isto é, meio para a obtenção da satisfa­ A passividade de Riobaldo, que está sempre disposto a deixar­
ção), que aprecia cada mulher que conheceu .no seu modo de ser se levar, faz a tal ponto parte de sua personalidade e de seu caráter
particular, começa a vacilar na sua escolha assim que seu amor é que ela se presentifica, de forma muito particular, no nome "Rio­
visto ou observado por Diadorim. O "Bem-te-vi", pássaro emble­ baldo". Segundo as próprias indicações de Guimarães Rosa, -bal­
mático de Diadorim, atrapalha ainda a vida do narrador - "perse­ do remete à "baldanza", à imagem dantesca do gozo e da entrega
guindo a minha vida". Não seria a relação especular, a captação do que vem à tona no vício da pregu iça. Rosa traduz "baldanza" como
sujeito que se reconhece na imagem do outro (da mãe), o funda­ "saborear preguiçoso" - atitude esta que parece bem caracterizar
mento deste embaraço e da atitude passiva de Riobaldo? Ele Riobaldo, tanto no período em que ele vive "na Iordeza" das
sente-se verdadeiramente atrelado ao desejo e às direções de fazendas de Selorico Mendes, como também nos cu1·tos momentos
Diadorim ''feito cachon=o magro que espera viajante em ponto de de repouso quando se entrega aos cuidados de Diadorim e ao
rancho" . prazer de observar os gestos delicados e a beleza do amigo.
\ Nesta perspectiva, a existência de "segu idor", como Riobaldo­ É precisamente esta atitude, esta captura pelo fantasma da
narrador se autodefine, 1.1ão apareceria mais exclusivamente como entrega passiva, que surge, mais uma vez, no final do romance, na
o efeito e a conseqüência de u ma escolha homossexual (embora noite que antecede a batalha final. Ela parece causar uma certa
certos traços que entram na constituição homossexual possam distração em Urutu Branco, que na manhã seguinte, prolonga o
estar presentes), mas COITespondeda a uma errança própria do fantasma do abraço de Diadorim no desejo de um banho na água
sujeito humano. Com·o já foi exposto na parte teórica, este consti­ fresca. Este abandono no ser-sustentado e carregado pela água
tui-se a partir da imagem de um outro (estágio do esj;elho, cf nota 4) adquire um papel decisivo na narrativa, pois esta "ausência" fan­
em um processo comparável a um périplo (a "travessia" rosiana) tasmática faz com que Urutu Branco perca seu faro estnHégico e a
que é da ordem do desvio e da sedução na acepção psicanalítica do direção efetiva do bando. Esta falt:a de mando conduzirá à lula
termo. Ora, a sensação intensa e dolorosa do ser-seduzido e do corpo a corpo e à morte de Diadorim e de Hermógenes - imagem
ser-desviado desempenham um papel importante na trajetória terrificante que responde como em negativo ao fantasma positivo e
geográfica e narrativa de Riobaldo. extático da noite al}terior, parecendo materializar-se no impacto

., desestruturante que abala a constituição moral e física de Riobaldo.


Ser sustentado por um braço materno e �uluar no "abraço"
Homossexualidade e captura pela imagem materna revigorante da água são dois desdobramentos de um mesmo
fantasma que encena a ent1·ega à fig u1-a andrógina de Diadorim,
Neste sentido, é importante observar a progressão da cena da presença materna e onipotente. O paradoxo da mãe fálica é bem
travessia com o Menino. Em um primeiro momento, Riobaldo delineado na figu.-a de Diadorirn qúe associa a delicadeza com a
p.t rece capturado pelas reminiscências femininas e maternas. As força, a meiguice feminina com o potencial de agressividade e de
;,.f,,

t
206 Inconsciente
Inconsciente 207
,,
1 destreza guerreira que lhe conferem a aura da i nvulnera bilid a d_�, :
sonho e do fantasma que proporcionará o encontro com a fada
mágica (o corpo.fechado). Desde o primeiro encontro com o Menino,
Riobaldo aparece fascinado e paralisado pelo retorno de um encantada e a volta a um estado de união e de plenitude próximo
do fantasma infantil. Riobaldo e o Menino descansam numa espé­
fantasma infantil que o coloca em uma posição desamparada
cie de clareira (lugar pred_ileto dos amantes medievais) e, como
(hilflos) frente ao apelo, à sedução e à potência mágica da figura
uma verdadeira criança, Riobaldo recebe da mão do amigo a
andrógina e fálica do Menino.
guloseima por excelência da infância (rapadura) junto com as
diretrizes maternas quanto ao bom comportamento. Este estado
de plenitude em um lugar fechado, que salienta a sensação de
A figura poética não é caso clínico, mas modelo das posições múltiplas
proteção e de união, é rompido pela intrusão repentina de um
que fodo sujeito percorre no seu vir-a-ser.
personagem repugnante.
Quando da irrupção do mulato, Riobaldo (re)descobre a
Cabe ressaltar, no entanto, que esta primeira-·posição· constitui
·possibilidade de uma relação homossexual - em um primeiro
somente uma parte da aventura da travessia. Se esta é marcada, na
momento, como desejo alheio, atribuído a um outro repugnante.
ida para outra margem, pelo sentimento extático da beleza_ e pelo
Riobaldo não admite nenhuma intenção neste sentido: " ...não
terror da aniquilação (ser-mer gu lhado/devorado) na á gu a (isto é,
estávamos fazendo sujice nenhuma ...". No entanto, quando o
peia ambivalê_ncia d.a relação oral com o .objeto materno), o pique­
Menino finge aceitar a solicitação do Mulato, ele pensa: "Então,
nique na outra margem rep1·esenta uma espécie de reviravolta que
era aquilo?" - "aquilo", isto é, algo conhecido através da atividad�
anuncia a saída desta posição e. o vislumbrar qe um novo horizonte.
fantasmática infantil, esquecido/recalcado no período de latência
N� volta, Riobaldo escuta e aceita como eficaz a mensagem de um
e· redescoberto sob um novo aspe_cto na adolescência. Sem respon­
pai capaz de impor limites ao terror amórfico embutido na relação
der nem sim nem não, Riobaldo permanece fixado na surpresa,
fantasmática com a mãe.
suspendido num hiato que aparece como uma brecha apontando
A relação de Riobaldo com Diadorim não é um caso particular
diretamente para a vida fantasmática infantil. Ele sai deste estado
de homossexualidade, mas o fascínio frente ao objeto impossível traz à
de fixação no exato momento em que o Menino desfere seu "bote
tona uma posição na "travessia" da constituição de todo sujeito hJJ,mano. de Urutu" - o "não" castrador que interrompe todas as veleidades
Na figura de Diadodm surge não apenas as imagens de uma
homossexuais.
predisposição homossexual (a fixação no objeto materno, o desejo
Ora, esta cena, envolvendo um lugar aprazível e a ruptura da
de reencontrar-se na posição passiva que a _criança ocupa nos
atmosfera paradisíaca, aparece como a retomada de um topos que
primeiros anos e meses de sua vida - totalmente entregue às
já aflorou anteriormente: o relato que Riobaldo faz a Reinaldo-Dia­
manipulações maternas), mas, sobretudo, as figu ras de um estado
dor\m da sua infância com a mãe Bigri' no paraíso dos Alegres. Esta
de beatitude, de entrega e defelicidade plena que será rompido e perdido,
felicidade foi amargamente interrompida pelo padrinho Cramace­
fazei:ido recuar para horizontes longínquos o objeto do desejo e da
do que leva mãe e filho par.a o porto do de Janeiro e que será
busca. Voltemos à ce�1a do piquenique.
doravante o símbolo da perda e do ódio. São estas facetas de
experiências pulsionais remotas que parecem retornar, de·maneira
condensada, na figura de Diadorim, determinando de maneira
Locus amoenus: o jJaraiso perdido do abraço materno
insólita a qualidade deste amor.
O amor de Riobaldo situa-se portanto aquém de uma escolha
A aventura com o Me11ino transcorre como nos romances e contos
ou definição homossexual, referindo-se antes de tudo a um objeto
medievais, onde a travessia de um rio significa a transposição de
impossível, inacessível, que apârece, na psicanálise/como o resíduo
uma fronteira para o "outro mundo", o universo do desejo, do
ou a transformação fantasmática do· objeto materno proibido,
208 Inconsciente Inconsciente 209

inviabilizado pela palavra patern a e assim ligado à amea ça da deslize delirante do pactário, leva este a o encontro com o nada e
castr a ção (sempre presente na imagem do punh al-emblema de à renovação de u m pacto salvador com os signos da maternidade
Dia�orim. 14 A interdição castradora apresenta-se também com mítica.
o Menino-Diadorim no seu gesto cortante que põe fim a toda
realiz�ção do desejo que fixa Riobaldo na posição passiva-ho­
mossexual frente a Diadorim. O pacto e a criação jÍoética
A salvação pelo fantasma da presença materna está intimamente
O duplo pacto do ser humano: aceitar a "sedução" e a lei ligada à capacidade de invenção e à riqueza de cr·iação imagética.
Ora, não é sem importância mencionar que a capacidade ilimitada
Reunindo em u m mesmo personagem signos do apelo sedu tor das de inventar, isto é, fundamentalmente a im aginação poética, é
manipulações matern as e do corte simbólico (ameaça de castração) ressentida, por Gu imarães Rosa, não apenas como um dom qual­
que põe término à uriião/sedu_ção da relação materna, Guimarães quer, mas como um dom demoníaco e difícil de manipular e
Rosa revela e dissimula na fi gura de Diadorim a problemática controlar. 15 Este pressentimento de Rosa recorta de maneira inu­
fundamental da constituição do sujeito hu mano. Este reside na sitada a mediação problemátic a que a poesia estabelece entre
necessidade de um duplo pacto. Primeiro com a mãe, cujos gestos processo primário e processo secundário, entre a realidade do
"sedutores" viabilizam a sobrevivênci a e fornecem as imagens-nú­ fantasma e a realidade do pensamento racional.
cleos do sujeito-por-vir. Segundo, o pacto com a lei paterna que A s a ída deste curto-circuito, da erranç a maluc a da campanha
implica na renúnci a ao objeto materno, na separação irremediável de Urutu Branco, levado pela compu lsão de "inventar", trans­
que é a condição do enc·ontro· com outros objetos, viabilizando a gredindo todas as regr as e leis, parece ser viabilizada pelo seu
realização sexual e amorosa do sujeito. encontro com a única figura paterna digna, solene e inteiramen­
O fascínio de Diadorim reside não apenas no apelo sedutor te respeitável. Seu Ornela s, que impressiona Rio baldo pela tran­
mas, também, na promessa de dirigir (ducere e não se-ducere) até qüilidade firme com que ordena seu universo, transmite-lhe a
um a figura paterna cuja palavra é convincente e eficaz, ou seja, pal a vra eficaz do causo do Dou tor Hilário: história na qual aflora
capaz de pôr fim ao conflito edipiano. Contudo, todos os chefes- o problema da representação e do ser-outro, isto é, da subjetivi­
; . pais que Riobaldo encontra ao seguir Diadorim revelam-se como
dade moderna .
frágeis e precários por trás de sua aparência imponente. Desta
maneira, R.iobaldo erra, ca pturado pela sedução do amor-impossí­
·ve1 e pela promessa de um Pai que o liberaria desta captura. A Noto.s
sensação aguda de cu lpa que persegue o narrador é o eco deste
conflito, desta dificu ldade de articu lar o "pacto materno" com o 1. Este trnbalho está baseado na leitura da obra de Freud, que não será
"pacto paterno" num universo selvagem (sertão), onde não existem citado passo a passo, a fim de não sobreca1Tegar o leitor com um
pais confiáveis. aparato bibliográfico demasiadamente extenso. Para maiores indica­
A ausência de figur as paternas convincentes e eficazes (as ções e informações conceituais, o leitor é remetido, para os termos
quedas súcessivas dos "antigos chefes", a traição e a fra queza de Zé técnicos que figu1-am em itálico neste ensaio, ao Vocabulário de
Psica.nálise, dej. Laplanche eJ. B. Pontalis (São Paulo: Martins Fontes,
Ilebelo, o "retorno" da imagem do padrinho fra co na horn do
1977), assim como às obras referidas na Bibliografia.
encontro com seu Habão, etc.) precipitam a procura desesperada 2. Um curto comentário de Freud quanto ao inconsciente fisiológico de
de um pai qualquer - "pai do mal" se necessário. A procura Ewald Hering encontra-se na edição de estudos: S. Freud, Studienaus­
desesperada do pai enqu anto garantia da Ordem, que dá lugar ao gabe (Frnnkfurt: S. Fischer, 1975), pp. 163-5.
J 210 Inco11scienle J11conscienle 211

,,
il 3. Anato! Rosenfcld, Texto e contexto (São Paulo: Perspectiva, 1976). 2. DAVID, Christian. L'Etat Amareux. Paris: Payot, l 979. (Trad. portu­
,. 1. Cf. S. Freud, Gesammelle Werke (Frankfurt/Main: S. Fischer, 1977), v. guesa: O Estado A111ornso. Lisboa: Palas, s. d.)
d 14, pp. 186--7. 3. FREUD, Sigmund. Studienausgabe. Frankfurt/Maio: S. Fischer, 1975.
f 5. Freud, ibid., v. 14, PP· 186-7. 1. __. Gesaimnelte We1·h. Frnnkfurt/Main: S. Fischer, 1977, 18 v.
6. Cf.Jacques Lacan, Ecrils (Paiis: Seuil, 1966), pp. 93-100 . 5. KLEIN, Mclanie. Contribuições à Psicanálise. São Paulo: Mestre Jou,
7. Cf. Melanie Klein, Conlribuiçio à Psicanálise (São Paulo: MestreJou, 1970). 1970.
8. Cf. esta prnblcm.ítica conceitualmente apreendida por Melanie Klein 6. LACAN,Jacques. Ecrits. Paris: Scuil, 1966. (Trad. brasileira: Escritos.
como "posição paran6ide" e "posição depressiva" na obra citada São Paulo: Perspectiva, 1978.)
acima, assim como no Vocabulário de Psicanálise. 7. __ . Hamlet fJor Locan. Campinas: Escuta/Liubliu, 1986.
9. Jean Laplanche, Problématiques; II- Castration/Symbolisations (Paris: 8. LAPLANCHE, Jean. Prnblématiques; I - L'Angoisse; II - Castra­
. Presses Universilai1·cs de France, 1980), pp. 72-5. lion/Symbolisation.s; III - La. Sublimation; IV - L'Inconscicnt ct le
10. Cf. Kathrin Holzennayr Rosenfield, Os (Des)caminhos do Demo; Tradi­ Ça. Paris: Prcsses Universitaires de France, 1980.
ção e Ruptura no Grande Sertão: Veredas (Sãq Paulo: EDUSP, 1992). É 9. __ . Vic et lviort c,i Psydia.11alyse. Paris: Flammarion, 1970.
. preciso reportar-!ie a esse ensaio para a demonstração propriamente 10. __ . & PONTAL.IS, J. B. Vocabulá1io de Psicanálise. São Paulo:
dita de nossa interpretação de Grande Sertão: Veredas. Manins Fontes, 1977.
11. Cf. Claude Lévi-Strnuss, Mythologi.ques II; du Miei aux Cendres, pre­ 11. LEVI-STRAUSS, Claude. Mythologiques II; du Miei aux Cendrcs, pre­
miere partie (Paris: Plon, 1966), pp. 50-159. miere partic. Paris: Plon, 1966, pp. 50-159.
12. João Guimarães Rosa, Grande Sei·tã.o: Veredas (Rio de Janeiro: J. 12. RICOUER, Paul. De l'Inte17m:talion; Essai sur Freud. Paris: Seuil, 1975.
Olympio, 1979), p. 19. (Trad. brasileira: Dalnte1jJretação. Rio de janeiro: Imago, 1977.)
13. No seu ensaio sobre Leonardo da Vinci, Freud ressalta a posição 13. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: J.
particular que o filho sem pai ocupa junto à mãe. Essa relação Olympio, 1979.
privilegiada pode estar na origem da fixação fantasmática na atitude 11. __ . Con-espond;ência com seu T1·adutor Italiano, Edoai·do Bitwn·i. São
passiva, determinando o primeiro tipo de homossexualidad_e detec­ Paulo: T. A. Queiroz, 1976.
tado por F1·eud. Este constitui-se pela identifiçação com a mãe e faz 15. ROSENFELD, Anato!, Texto e Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1976.
com que o homem adulto escolha seu objeto sexual conforme _o 16. ROSENFIELD, Knthrin Holzermayr. Os (Des)caminhos do Demo; Tra­
modelo daquilo que ele mesmo fora outrora para a sua mãe. Ele dição e Rupturn no Granel.e Sertão: Vcrndas. São Paulo: EDUSP, 1992.
escolhe narcisicamente um objeto que se assemelha de alguma ma­
neira à pequena criança mimada.
14. Cf. a bela análise que faz]. Lacan, cm Hamlet por Lacan _(Campinas:
Escuta/Liubliu, 1986), do amor de Hamlet por Ofélia, amor que �
renasce como paixão no momento cm que a morte o tornou impossível
e que se transmite e irradia para o irmão Laerte (p. 74).
15. Cf. João Guimarães Rosa, Con-espondência com seu Tradutor Italiano,
Edoardo Biumri (São Paulo: T. A Queiroz, 1976), pp. 67-8, Qndc Rosa
se desculpa pelas opacidades desmedidas das suas invenções, decla­
rando-se possuído pela "invenção", pelo "demõnio", pela "cachorra".

Bibliogmfia

1. CASTORIADIS-AULAGNIER, Piera. La Violeiice de l'Inte1pretation; du


Pictogrammc à l'Econcé. Paris: Presses Universitaires de Francc,
1981.
J
r
l
e
• e, J..c. ,.,... (1,. L'-'---�
r \... J /"\-

C,,,{ r,J'"" ,,.__.,L � \_.,l_._,,L

r"--l
...... l CCt "'·Cu..L'-'=>
1 1 �o.

0
.,- l � e- 1_.
_.,, 1'-
?
UN� " L..., ,,.. ,yJ•J.-..1
u--vr0...u.-
(1..-t.,LÁ .,-vv•-\-{_,Ll t
,_· �
u \jv_,,->-.,.-v Influência
..__

Arthur J\Testrovshi

l Em fins de 1912, escrevendo a sua amiga Edith Wharton pouco

1
após a publicação de The Reef. Henry James se permite um raro
elogio à ficção moderna, enumera as qualidades "rncinianas" de
j Wharton e conclui seu comentário com as seguintes palavras:

Antigamente, percebia-se em você, aqui e ali, algumas nuances que


eram como refinadas e benevolentes marcas da boa George Eliot -
ecos de suas leituras extensas daquela excelente senhora ... Mas agora
é você que é como um "mestre do passado" (de preferência grego),
¾1 um mestre que ela parece ter lido e de quem só se observa, nas
texturas dela., uma reflexão enfraquecida. 1
l
1
í Observações de poetas sobre a influência, quando não franca­
l

l
mente fantasiosas, tendem mesmo a _ser ambivalentes e ii·ônicas,
j como nessa carta. Ninguém jamais encontrará "ecos" de Edith
Warthon em Middlemm·ch ou_Daniel Deronda, mas poderá muito
bem perceber, "aqui e ali", uma "reflexão enfraquecida" de Hemy
James; e com certeza vai encontrar James por todos os lados em
\,Vharton (incluindo The Reej). Seu comentário, de fato, diz menos

i respeito a Wharton ·do que a si mesmo, e serve par-a alterar
! obliquamente os raios mais diretos da influência de Eliot, que caem
e 1·ecaem sobre James. Lida dessa forma, a passagem serve de
exemplo a uma concepção de influência que pode-se obse1var
operando por toda a história da literatura, mas que não correspon­
de às descrições normativas desta história. É esta a influência que
�'--'-'
,;-J---'· •"\ • "j
.1 c. í 5v--
.r1 ..,,O'-" • .--, J
( /t// ' t\-4
1 p--'' •-• .
1VI) ·
2U bifluência Influência 215

vai se tornar um tema central da crítica e da teoria literária no medida em qu,e se sacrifica e se extingue a personalidade. Todo
perío �r, 10uen1 na obra de poetas e críticos como T. S. Eliot e poeta, quandd tem fo1·ça o bastante para ingressar no contínuo da
'.1
Jorge � : s Borges, ou, mais recentemente, Harold Bloom. literatura, altéra o passado assim como se deixa determinar por ele;
a i1�fluência/,tem duas mãos, e o gênio é uma força de resistência
�- � __;_ ��<.--� ! � �-�\J-_ capaz de eqpilibrar, se não suplantar, o fluxo maciço das influências
I passadas� ,
1\.lmpessoalida<idé outro tema freqüente nos escritos mode1:­
Naus neJaisons que naus entreglaser. i1os sobre a literatura, marcadamente na obra de algu ns pessoalís­
Montaigne simos autores franceses, como Valéry, Blanchot, ou Levinas. Mas
a impessoalidade na teoria de Eliot se confunde com a influência,
de uma forma especial que nos concerne aqui. No curso de sua
A palavra "influência" vem do latim infl'uere, "fluÍr para den­ carreira poética e crítica, Eliot viria a formular um novo padrão
tro". Em seu sentido 9riginal, a influência é o.fluxo de um fluido canônico da literatura européia, esvaziando Shakespeare, reduzin­
etéreo das estrelas, supostamente responsável pelas alterações do do Milton e nulificando os românticos; favorecendo, em seu lugar,
caráter e das ações humanas. Quando se diz, no dia-a-dia, que "a simplicidade e inteligibilidade" do estilo comum de Dante e a
determinada pessoa, ao tomar uma decisão, se deixou influenciar "sensibilidade unificada" dos poetas metafísicos, ou de Jules Lafor­
por outra, é ainda o sentido medieval dos astrólogos que marca a gue e outros simbolistas franceses. Eliot, o crítico, se põe em busca
nossa linguagem. É o mesmo caso quando se diz que determinado da verdadeira ordem dos monumentos da arte, já que a tJ-adição
autor foi influenciado por outro. Subjacente a esta idéia está a estabelecida revela-se longe d� "ideal". Há muitos fatores em jogo
noção de uma história linear e unidirecional da literatura, onde os na escolha de Eliot, fatores esses que vão desde o impulso moderno
autores mais antigos influenciam os mais modernos e onde grande de originalidade e a erudição escolástica até seu verdadeiro fervor
parte da individualidade poética não é, no entanto, outra coisa moral e puritanismo, sem descontar outras obscuras profundezas
senão a capacidade de se livrar da influência dos outros..----- políticas e psíquicas. Não é fácil, assim, refletir sobre a teoria da
_Q_brey_e, mas_p_eEuasivo ensaio de T. S. Eliot sobre a(Tradição influência de Eliot; e a questão se torna mais espinhosa ainda,
e o Talento Individua " publicado em 1919 e até hoje t1êlo como considerando que sua influência tem sido avassaladora. As conse­

verdadeirosmólío :elh do modernismo, expressa uma visão manifes­ qüências pragmáticas de sua empreitada são, na verdade, impossí­
tamente diversa da influência. 2 Para Eliot, existe uma ordem ideal veis de menosprezar. A inversão de prioridades realizada por Eliot
dos monumentos da arte, mas esta ordem é "modificada pela (e adotada, com variàções, por out1·os críticos importantes; como
introdução da nova obra de arte (da obra de arte realmente F. R. Lei.1.Vis, ou Allen Tate, e também por poetas-críticos como Ezra
inovadora)". A nova obra altera "a ordem integral" da arte, de tal Pound ou Robert Penn v\�arrcn) e as estratégias de leitura assumi­
modo que as relações e valores de cada obra com o todo são das por ele numa rica seqüência de estudos - cujo racional é o
reajustados. O "talento individual" é a capacidáde qUe tem o artista ensaio sobre a "Tradição" - levaram i1ão apenas _ a _uma considerá­
de reconstruir a tradição, através de su� própria obra. Paradoxal­ vel reformulação do cânone, mas virtualmente à instituição do mais
men,te, são naquelas passagens mais individuais de seu trabalho influente método de análise literária num longo período que se
que se r�vela a "afirmação de imortalidade dos poetas mortos, dos estende da década de 30 até fins dos anos 60: o "New Criticism",
ancestrais". Mas o pa1·adoxo não é um contra-senso, porque para cujos reflexos enfrat1uecidos . se percebe até hoje em diversas
Eliot a individualidade é impessoal, a individualidade só diz respei­ correntes da crítica (internacional e brasileira).
to ao "meio específico" da arte e, desta perspectiva, é o contrário .A influência jJara Eliot, a influência em Eliot e a influência de
da personalida,de. A consciência poética se desenvolve na mesma Eliot são, porém, coisas diferentes. A influência, para Eliol, é o
r
ü 1 f '• f t,l I )/'-/ ,r
fí(", ét 1• J �1 íó)�
-A
(_µ, €>l 00ff\-�
_,

216" Influência
Influência 217

f?t;.or q�__prganiza a trad.ição;9 t11!_dição,_ou melhQL a consciência


A tortuosa relação de Eliot com se us ancestrais, re ais e fictícios,
que o poeta se faz da tradição é precisa� o qu e pode (ou não)
é melhor comp1·ee ndida a partir da ·pequena fábula, ou conto
fazer dele:; um eoeta, "passados os vinte cinco anos". A tradição d:i
moral de Borges, "Kafka y sus precursores". 3 Se "Tradição e o
sigr1ificãdoãol:einQQ, e a construção de linhagens passadas faz
Talento Individual" é uma das senhas do modernismo, "Kafüa"
pàrte, portanto, de uma tarefa de depuraç·ão ou salvamento, etica­
serve hoje de lema antitético do pós-modernismo. E de fato a
mente imposta ao poe ta moderno. O modernismo para Eliot, é
relação e ntre os dois textos já é, por si só, análoga do embate
sem dúvida uma consciência irônica, mas uma consciência irônica
sublime entre e ssas duas tendências, ou períodos. O argumento de
_ue afirma a possibilidade de recupe ração. As descontinuidades
. Borges é bem conhecido: tendo-se proposto identificar precurso­
características d� SlJa obr<!,_a,..conri"'"ência.fllllJ entre " oesia"
res de Kafka na história da literatura, o narrador· só encontrará
e "versos", a1parataxe � a combinação de.. e lementos.desigu_ai , que
uma lista dispersa de nomes, sem nenhum e lemento em comum
é o que tanto o atrai na po esia de Donne ou �arvell, são co_ntra­
exceto um certo tom kafkiano que os caracteriza a todos. Fica claro,
postas a uma visão total, integradora, que dissolve o poeta: no "texto
portanto, que não são precursores de Kafka, mas pelo contrário, e
único" (livingwhole) da poesia. ·
de uma forma aparent emente absurda, seus descendentes. É só a
Mas é justamente em passagens como e sta que o demônio das
' ficção de Kafka qu e permit e ler o que há de "kafkiano" em
continuidades vem projetar sua sombra. Porque o "poe ma único"
Browning ou Lord Dunsany. Kafka "cria seu s precursores" e "sua
envolve o poeta no domínio da influência: não como escolha, mas
obra modifica nossa concepção· do passado, como haverá de mo­
sobredetermina_ç�p. O "po ema total'! já era uma obsessão român­
dificar o futuro".
tica, tema de Schf egél, como de Shelle y, o representante máximo
A transformação da tradição pela nova obra já fora descrita
do romantisrno combatido por Eliot. A po esia limítrofe de Shelley,
li9r Eliot como um resgate; parª-Borges, es_sa mudança_f_ll}ais \\
sempre rastreando as bordas entr e psicologia e forma, representa
eropriamence uma cri,açàQ, uma inven ão de e lementos novos que \
1
1

para Eliot - juntamente com a voz miltoniana - o inimigo e


surpreendentemente passam a fazer part�d_Q_2.assª- o. a visãO de
anátema por excelência. Mas com o bene fício de algumas décadas,
Borges, é a leitura, portanto, que coordena a tradição; e não o
e a virada recent e dos ventos, fica mais fácil hoje se perceber o
contr-ário. Para o leitor que conhece Kafka, Han Yu ou Léon Bloy
qu anto a po esia de Eliot deve a pr ecursor es românticos como Walt
são kafkianos; aqui e ali, Mozart parece estar citando Bee thoven;
Whitman ou Tennyson, e através deles a Keats e Shelle y e Words­
Bee thoven, Schumann e Schumann par ec e um pastiche de Schu-
worth, e o quanto .uma ficção de precursores setecentistas faz parte
mann composto por Elliott Carter. Neste ponto, B,2!1res se afast�
da obra (e é independente da genealogia) de Eliot. Só os mais
do aristotelianismo de T. Uliot e dos "N..Ê,.w_Critics" çle Chicago,

• 1l1
arraigados velhos "novos críticos" poderiam negar a presença de
pai-a se .ª-.rml'@r com a trac!_ição 3lte.!:n<:.tiva ç e Longinus, autor do
Whitman em Ash-Wednesday ( ou de Robert Bro,vning nos Cantos
Peri. Hypsous, primeiro manifesto teórico sobre o sublime na_litera-
de Pound). A "infiuência" de Eliot é forte o bastante para resgatar
��Já com ��12ginus, erii ple _�o sécu�o Qã"�õ'rçâ do texto.§_<JesF!]t�7
_
1 John Donne, mas não como precursor. A qu estão mais ·cr ucial,
como a capac1âãêfedep1mlúzir ho1e1tor a 1mpressao de qu��e
portanto, é compreender essa resistência aos antecessores. A condi­
mesmo, o autor daquilo que Iel!,_)f;rõ momento "sublime", as �
ção de "serenidade , quietude e reconciliação" descrita por Eliot
ronteiras se dissolvem, e o leitor é tomado pela idéia, como se
.... ( em "Poesia e Drama") como função última da arte parece distante
idéia e texto lhe pertencessem. É e sta imagem de Longinus que
da realidade de antagonismos regendo as passagens de estágio a
Borges apropria e traduz para o nível da relação entre os sucessivos
e stágio nesse grande texto da poesia. "M emória e desejo", ao que
textos da literatura:
tudo indica, não são só misturas de abril; me mória e desejo são,
A ap,:opriação, contudo, não pára por aí. Pois se para Longinus
para o po eta, sinônimos, "raízes obtusas" da impessoalidade poé­
a força do texto é roduzir a ilusão el e fo1·ça no leitor, então existe,
tica.
�<:_!ato, umª-._P-rioridade_ do autor sobre seus e1tores, uma priori--
�kG\'0-P
���e-
218 Injluê7uia l11jluência 219

clade invisível, ou tornada invisível pela mesma força que concede pacifica a disseminação das referências e esconde a tradução, ou
força ao outro. O crítico, de sua parte, recolhe fragmentos e metamorfose realizada por Borges do próprio Kafka (num sentido
compõe um texto no intertexto, como uma espécie de superestru­ diverso de sua tradução para a língu a espanhola de "La Metamo-
tura figurativa, que resiste como pode às figurações de cada texto fosis").7
individual. Longinus é um mestre das construções inte_rtextuais, Neste horizonte, fica difícil preservar uma leitura inocente
como têm apontado seus críticos desde Pope e Boileau (veiculador da "impessoalidade" de Eliot. O cenário da tradição está longe
e teórico do sublime como um "je ne sais quoi", "pathos de todas as do equilíbrio e d� redenção descrito�. .IJOr ele, C011::!0está longe da
,
paixões").'1 Neste sentido, e tendo em vista ainda o movimento generosidade aparente. ou real de Borges. P�rodiando Freudt
""'
particular, e inteiramente desvestido de nostalgia, com que as põaeriamõs 'd-izer q-ue já-havia bloqueio antes de hayer_o q!.l�
citaçõ·es são desmembradas e recompostas noPeriHypsous, o crítico bloquear, .9ue a literatura s�mo_\'e..,pQLfor.ça..ik r�sist�nci� e �e_
moderno mais próximo de Longinus seria talvei_Walter Benjamin.5 ãimpessoalia:ãcfe, o_gjnumanidade da arte não implica no desapa-
Mas Borges é, dentre todos o� nomes mais recentes da crítica, o 1:;;cimento, mas sim na dramatizaçã_o de figt;!ras dà vontade, onde
exemplar máximo da releitura pós-moderna de Longinus e dos ''liID!ra" e "vontade" têm p� iguais. Literatura é influência, ou_
bibliotecários alexandrinos. Sua obra toda se dá no agon, num pelo menos é esse o nome de que dispomos ag_ora_2_aranomear o
teatro de conflito com as figuras passadas. Se essa força do combate que-Col:,_ri�ge e }IazliÜ aindª-J�odiªQ1 châmarsle�ginaç�o� À
é mascarada pela ironia, não é menos verdade que em seu énsaio imaginação, para Pater e Wilde, Valéry ou Pessoa, vai se traduzir
sobre os precursores ele se mostra capaz de apropriar-se, de uma em "influência", e?]...Qgm2s_çle (!nterioridade e,modei:nidadealter­
só vez, de Eliot e de Kafka; transformando o se gundo em figu ra nanclo-se uma a outra como ponto de origem. Mas nad� do_
borgiaria e o primeiro em mero "precursor". nada.como diz Emerson,�e a influência também tem -o seu pr.eço.
Aqui como em tantos outros pontos, Borges é ambivalente em Se a tradição é uma retórica da influência, seu tropo principal não
seu tratamento das fontes ou figu ras primárias. Mas a ambivalência é a ironia, mas a angústia. A literatura se estabelece na relação entre
com relação à autoridade é mesmo uma característica de todos os poetas - naus ne Jaison que nous entregloser - e a tradição é uma
modernismos, e no caso da literatura esta autoridade não é outra figura antjg� ��a o _q�eJ1.o� e s�� nhece, não menos figu1-ativamen-
,coisa senão "a prioridade concecí10a aos _p� pa � pela te, comp angusua da influencia. 1 .
iineTisiãáÕd_e_s.JJ.u.b.ML,_ç_omo diz outro grande crítico moderno,
Thomas Weiskel. 6 O romance familiar entre Borges e seu_s precur­
sores está situado nesse terdtório longuiniano do sublime e envol­ II
ve, em particular, a figura ou fantasma de um "agente bloqueador"
- aquele elemento, tão caro aos scholars, que serve para interrom­ Said I then, .sunk in tone,
per a expansão infinita do espaço sublime, e garantir com isso 'Iam merest mimicker and counterfeit! -
ilossa integridade. Pois o momento sublime, em todas as suas Though thinking', Iam I,
manifestações (invocações da natureza, imaginação, libido, música, And what Ido Ido myself alone.'
"o inominável") é sempre uma instância do aparecimento e da Thomas Hardy, "The Pedigree"
resistência, ou velamento do precursor. O sublime é o ponto da
citação, da citação sublimada; e os teóricos do sublime invariavel­ Publicado em 1973, A Angústia da Injl.1.Lên.e.ia é até hoje o livro
mente elegem algum bloqueio para sustar a proliferação, ou aba­ mais estudado do cdticõíiorte-americano Harold Bloom.irA ex­
lamento da origem. Esse agente bloqueador - a consciência pressão, no entantõ,""'Já aparecera 1·epetidasveze�volume
transcendental em Kant, o complexo de Édipo em Weiskel - anterior, The Ringers in the Tower (1971), e o conceito em si vinha
coincide, no texto de Borges, com o nome próprio "Kafka", que preocupando Bloom virtualmente desde o início de sua carreira.
)
J
,t

1
\
220 Influência Influência 221

Shelley's Mythmahing, sua tese de doutorado, circundava o tema da •'I

l
-í Pode-se ver, assim, como um estudo retórico da literatura
relação entre os sucessivos textos da tradição, e anunciava a postura interessará a Bloom. Pois se para ele o sentido de um texto está
antiformalista e antiessencialista de Bloom. Escrever sobre Shelley entre os textos, então éada texto é, antes de mais nada, uma figura
em Yale, em 1955, significava ir de encontro ao próprio genius loci
-i - a sinédoque - para o texto maior que engloba a todos. E este
da escola, num primeiro padrão de desvio ao qual se sobreporiam
i nível de figuração será qualificado pelas figuras do movimento dos
outros dois: os desvios de Shelley com respeito a Milton, e os
desvios de Bloom estudando os caminhos de Shelley.
A resistência de Bloom a Eliot viria a encontrar paralelos mais
l textos entre si. Todo texto é uma leitura: uma leitura de outro texto.
E a leitura é sempre defensiva, porque no domínio do interpoético
a leitura, quando acontece, é sempre contra a influência. "Ler bem
tarde na obra de alg·uns colegas, posteriormente reunidos a ele e � é criar espaço para si mesmo", dizia Valéry parodiando Bloom por

1·otulados cortjuncam.ente como os "desconstrutores de Yale": i antecipação. Compete ao crítico identificar os padrões de desvio,
Geoffrey I-Iartman, Paul de Man,Jacques Derrida eJ. Hillis Miller. 'j de figuração de um texto com relação a outro.

li
1 Todos os cinco, de uma forma ou de outra, se concentrariam sobre 1
;I Assim como Borges, também Bloom postula a criação do
l a leitura de autores românticos, de Wordsworth a Nietzsche, de precursor pelo novo poeta. "Más a relação entre o efebo, ou poeta
Hardy a Rousseau ou Kant. Suas leituras, fundadas no estudo da novo e seus precursores não pode ser limpa de polêmica e rivali­
retórica, são estimulantes não apenas como uma espécie de neces­ dade - nobre como é o idealismo estético de Borges - porque a
sái-ia (e tardia) higiene hermeffêutica, mas também como a de­ i·elação em si não é limpa. A iníluência poética, para muitos
l
monstração de que os padrões de desleitura, manifestos na ' críticos, é simplesmente algo que acontece, uma transmissão de
tradição de crítica ao Romantismo, não são senão um efeito de· idéias e imagens, e o surgimento ou não de angústia no poeta
caracteríscica·s já articuladas nos próprios textos românticos e um posterior é visto como uma questão de temperamento e circuns­
efeito, portanto, até certo ponto previsto por eles. A aversão ao tância. Mas o efebo jamais poderá ser Adão ao nascer da aurora.
Romantismo, na visão desses críticos, é melhor compreendida Os originaisjá existiram ejá nomearam todas as coisas. E é o peso,
como uma resistência à leitura., curiosamente replicada a cada agora, de retirar esses nomes que dá impulso às verdadeiras guerras
1 tentativa de teorizar sobre a literatura e em particular sobre a litera­ combatidas sob o estandarte da influência poética, guerras decla-
tura romântica, onde "teoria" e "leitura" se tornam temas da própria 1-adas pela perversidade do espírito contra a riqueza acumulada por
poesia. Ao favorecer a gi-a.mática e a lógica sobre a retórica, os "New ele, a riqueza da tradição".º
Cdiiês", como tan-1bém os estruturalistas de maneira geral, eliminam A angústia da influência éJ!. sensação paralisadora que todo
do estudo precisamente aquele elemento-o tropo-que ao contrá1;0

\\
eoeta tem do precursor; é a falência da imaginação quando o
dos demais pertence piimordialmente à linguagem e cuja estrutura "Homem-Célebre" de Machado de Assis se afasta do piano e
ambivalente problematiza a identidade da própria literatura. Suspen­ confessa a si mesmo que sua inspiraç�o era "apenas o eco de
so entre significado e persuasão, entre cognição e performance, o ãlguma peça alheia, que a memória repetia e ele supunha inventar",
trapo torna visível - mais que isso, põe em movimento - uma tensão �ãsensação claustrofóbica de Ul!l pedij!,ree inalienável, co�
inaugural entre retórica e gramática já formalizada no t1i.uium medie­ poema de Hardy. Essa angústia, no modelo primário apresentado
val, e reconcebida modernamente pelos poetas e teóricos românticos em A Angústia rla, lnflu.ência, vai-se renovar a cada texto, segundo
(especialrnente alemães). O trapo, contudo, não pode ser domestica­ um ciclo que é igualmente o ciclo vila! do poeta-como-poeta. O 1/
do como mero artifício, ou "úgu1c1. de linguagem", porque o trapo, a ciclo proposto se desenrola em seis estágios mais ou menos arbi­
bem dizer, seja como catacrese, prosopopéia, ou paranomásia, se trariamente definidos da relação entre um poeta e seu antecessor,
estravaza por toda linguagem; isto que é uma ameaça em Lockejá é e descritos por Bloom em termos tomados·-'de empréstimo a uma
uma certeza em Nietzsche, e urna trivialidade cinqüenta anos depois variedade de fontes clássicas: clinamen é a desleitura propriamente
de Finnegans. vValw. dita, a descrição mais geral <lo desvio de um poeta em relação à

) �
i:..
'--:> . """
l .6: ', ::,.. u , " �1 r \J CA
v...v<f L-U.--V (..'
.f. , -· '

rf é1 ' I"' lc-�r-:.•


L
,,..
,-{
(e-: \ r /JY'i"l I t1/('o'·, \'-1 V
. ilet� J_.l r
-
., n.�--vU ;::,
l· • l\
.
(L0,tJ..
t (:-� /1.J-', �
(rf-
222 Injl-uência Influência 223


�-L.•
.ie l3loom reen- . Contra a "existência �ntemosaica inasé:edoura dos impronunci�
contra em Lacan, é a. complementação do precursor na obra do veis te1Tores da baleia", o poeta forte é aquele capaz de mentir
poeta novo; kenosis é o esvaziamento do poeta, um mecanismo de , contra o tempo e narrar a si ·mesmo como um início - não como
ruptura semelhante às defesas contra as c_ompulsões de repetição; ,· um Ahab, mas como um Ismael.

·1.
demoniza.ção é um deslocamento na direçào do contra-sublime, ou ;,. Isto tem seu pathos e sua atração, mas é preciso não se deixar
s�ja, de um sublime contrário ao do precursor; a.skesis é o trunca- levar demais pela força figurativa do. esquema edipiano de Bloom.
·
mento ele certas qualidades do poeta mais novo, uma ascese que Se para ele um poema não tem significado imanente, mas é, isto
·
permite ao poeta, afinal, interpretar seu precursor; e apophrades, sim, uma relação com outro poema, a própria idéia de um "poema"
por último, é o retorno dos mortos, a apropriação do poeta mais individual desaparece: e assim como não há poemas, não há poetas
velho, ·o retorno do precursor como se fosse, ele mesmo, obra do e não há leitores, exceto como intérpretes de interpretações
poeta mais novo. 10 ·
prévias. Mas se isto é verdade, então a teoria de Bloom se deixa
Há uma boa dose de i ronia no emprego desse vocabulário ( que entrever como uma teoria da dificuldade, ou mesmo da impossibi-
.
.. .

está entre o esotérico e um manual deJogos de Guerra), e o próprio lidade da leitura. A idéia, que retoma a nível da leitura o mesmo
Bloom jamais se utilizou rigorosamente das seis razões revisioná- sublime tematizado nos textos - daí a vinculação corrente, em
rias. Não seria impossível tràdüzir os seis termos em figuras ·de · -Bloom como em tantos· outros; entre ·teoria -da· literatura; ·teor-ias
linguagem, como aliás o faz Paul de Man: clinam.en/ironia, lesse- do sublime e literatura Romântica · - já está sublinhada na escolha
ra/sinédoque, henosis/metonímia, demonização/hipérbole, a.ske- , do termo "desleitura" (misreading), sobreposto à "leitura" como
sis/metáfora e apophrades/metalepse. 11 EJohn Hollander adota um j uma espécie de negação da negação. Dizer que a literatu . ra "é
vocabulário de forças pal'a a mesma seqüência, transformada por influência" é dizer que ela é intertextual, e toda relação intertextual
j
ele em "busca, queda, giro, progressão, mascaramento e comba- deve nos conduzi1·, necessariamente, a um momento de interpre-
I
te". 12
!1 tação. Este momento é a leitura, e a visão central de A Angústia da
Na verdade, as seis razões podem ser concebidas como variá-
·

lnflu.ência é que a leitura é uma desleitura, ou mais especificamente


veis do processo básico de deslocamento já descrito, em suas linhas uma "desap ropriação ?' (niisprision) .
gerais, no clinamen e cujo objetivo é a metalepse, ou transunção; Na medida em que Bloom está envolvido com questões de
isto é, a inversão da prioridade temporal entre dois textos. O leitura como formuladas retoricament� nos textos, ele se aproxima
próprio Bloom, .ao desenvolver as idéias do livro numa série de , dos seus colegas "desconstrutores" de New Haven. Mas ao contrá-
ensaios, compondo com ele a "tetralogia da influência", 13 não só rio desses, ele rejeita a linguagem em si como "uma forma privile-
nao se ateria às seis razões como chegaria mesmo a propor uma l giada de explicação" e declara a obsessão contemporânea com a
nova sistematização em pares, baseada na tradução _ lingüística de linguagem "um dos exemplos mais cla_ros de tropo defensivo" no
I
Paul de Man, mas coo1·denada pela tríade "limitação/ substitui- 1 período moderno, manifesto na exaltação da linguagem como uma
ção/rcpresentação", extraída da cabala luriânica. As razões revisio- ! perpétua prioridade, ou recom�ço, e não como um meio, "sempre
nárias servem apenas corno instrumento heurístico para analisar ; envelhecido pelas sombras da anterioridade" . 1' A dificuldade da
as relações de intertextualidade a partir de um conceito ionguinia-
1

teoria da dificuldade de Bloom reside justamente na mediação


I•
no da i 1ifluência. O que interessa a Bloom é a constituição do entre essa psychomachia alegórica e a leitura retórica dos textos. A
"poeta forte", o poeta capaz de sobreviver ao conflito edipiano com influência, em Bloom, é por um lado a complementação antitética
!
a tradição, criando para si um lugar ao sol e escapando da sombra (ou tessera) daquele out ro tratado da guerra psíquica, O Ego e seus
do precursor. O poeta forte é aquele capaz, como Wordsworth, de Mecanisrnos de Defesa, de Anna Freud; mas por outro é uma inten-
nomear afinal a Imaginação como um "vapor sem pai" -unfathered sificação e clinamen com relação a seus precursores Northrop Frye
vajJou.r - e acreditar na criptornnésia como uma ficção salvadora. e W.J Bate - parn quem o grande problema da arte moderna é o
'
(J\ ¼, (.), G\.,l�l ·-� tr ç I <.. t r !t.l.,J,./\
r ('- r'"' p_. l C[.') C-uvLG,,_ ._,f\
1
1
224 Influência

"insaciável aprofundamento da autoconsciência, quando confron­


.,,l m
Influência 225

tada com o rico e atemorizador legado do passado" 15 - e, ainda, 1


mais recentemente, uma espécie de contra-sublime ou demonização
de Paul de Man. Na medida de sua insistência sobre o vínculo entre
j A son can neue1� in the fuliesl sense, becorne
a father. Some amounl of amateur effort is
figuras de linguagem e figuras da vontad"e, Bloom pode _ser visto possible. A son may after honest mdeavour
como aliado a ·uma crítica essencialmente humanista, em guerra produce ·what some might call, lechnically,
com o "niilismo sereno" da desconstrução. Mas o humanismo em children. But he remains a son. ln thefullest
Bloom é um humanismo que perdeu toda inocência: centrado sense.
sobre o estudo da força, do poder, da vontade, do romance Donald Barthelme,
familiar, da agressão, da culpa e da angústia, este é um humanismo The Dead Father
em seus últimos limites, aguilhoado pela prome�s_a de desmistifica­
ção, pela tentativa de não cerrar os olhos ao princípio da realidade Mesmo um sumário como esse deve ser o bastante para sugerir
da leitura. as possibilidades de adaptação da teoria de Bloom às mais variadas
_Será bom deixar claro, ainda uma vez, que sua teoria da regiões da crítica literária. E de fato, após um período inicial de
influência não é uma teoria da alusão, a maneira da filologia ataques e polêmicas em torno ao que a teoria não é - não é, por
tradicional de um Auerbach, ou Curtius, ou em escala menor, exemplo, uma "teoria da poesia", a despeito do subtítulo de A
mas igualmente su ntuosa, de um Augusto Meyer ou Otto Maria Angústia da Influência, e não é uma psicologia do au tor ao modo
Carpeaux. O reconhecimento das alusões de um poema a outro de Sainte-Beuve (se é que Sainte-Beuve não escreveu também,
não é, em si,•de interesse para Bloom. Pode-se dizer que, de certa como todos, contre Sainte-Beuve) - a angústia da influência parece
forma, o que lhe interessa é justamente o que um poema conse­ ter migrado para virtualmente todas as áreas mais avançadas de
gu e deixar de fora, no espírito reconstituído da fras-e de Pater, estudo da literatura, como das artes em geral. Assim, é possível h�je
de que "o verdadeiro artista se reconhece pelo tato de suas encontrar feministas como Camille Paglia, ou Barbara Johnson,
omissões". rn escrevendo de u ma perspectiva capaz de adotar sem recalque essas
Não menos cru cial é o reconhecimento da voz como o teorias supostamente androcêntricas. 18 A cdtica literária de incli­
problema central da leitura. Toda obra de Bloom pode ser vista nação freudiana sempre foi receptiva às idéias de Bloom; mas por
como uma meditação sobre o "tom", ou acento.particular de um outro lado é preciso notar a inclemência com que Bloom rejeita a
texto literário, seu elemento mais aparente e mais opaco à "psicanálise dos textos", e salientar sua responsabilidade com a
teorização. Como diz Geoffr ey Hartman "é só quando a escrita dimensão especificamente "literária", ou retórica, mesmo se quali­
desvela um eco, e não uma imagem - de tal forma que a palavra,­ ficada por uma vigorosa insatisfaçã9 com qualquer espécie de
sonora, possa espalhar reverberações, transcendendo a econo­ análise formalista. Figura lendária por sua memória verbal, Bloom
mia da claridade e da forma- que podem surgir as contradições é com efeito u m dos mais virtu osísticos críticos de nossa era, num
17
destruidoras dos 'templos ela ciência e ela sabedoria' ... " A modelo enciclopédico johnsoniano sem precursor imediato, cole­
angústia ela influência é o temor do poeta de que sua voz não ga, ou efebo. E sua relação com Freud deve também ser compreen­
7 seja sua, ·o temor constante da usurpação de seu texto pela voz �ida no contexto geral de uma crítica lite1·ária: para Bloom, Freud
dos outros. Contra esta angústia, a teoria de Bloom oferece a é o nosso Montaigne, o formador de nossa consciência literária não
cura pela escuta, terapia paradoxal quando foi criada há vinre menos que sexual, mas isto por força, acima de tudo, de sua
anos, no ambiente normativo da textualidade, mas que se mostra dimensão como autor, u m au tor que merece ser lido como se lê
hoje profética das preocupações de uma nova geração, e -não Proust ou Kafka (seus rivai_s mais diretos na literatura de nosso
apenas por força de sua influência. · século). Feita essa re.ssalva, não há dúvida de que a teoria da leitura
226 Influência Influência 227

propos·ta por Bloom oferece amplo espaço para glosas analíticas, mais salutares do estudo da obra de Bloom tem sido precisamente
seja freudianas, seja orientadas pelo pensamento do efebo, o a modificação dos padrões normativos de história literária, substi­
"heresiarca gnóstico".Laca!"}. Críticos de tendência sociológica, de . tuindo as grandes noções de período, estilo, ou mesmo de autor
sua pa1·te, assim como os "new historicists" e os estetas da recepção, pelas vicissitudes da vida privada dos textos. "Influência", afinal, é
estão agora obrigados a dar conta das sutilezas tonais reveladas por uma metáfora, que "dramatiza uma estrutura lingüística numa
Bloom, e por oútro lado podem fazer uso muito produtivo da narrativa diacrônica", como bem diz Paul de Man. 19 Disso se segue
noção de influência transposta para ·o domínio extraliterário das que as categorias de desleitura propostas por Bloom podem ser
tradições culturais. concebidas como operando não só entre autores, mas também
No que concerne a uma tradiç.:io eminentemente importadora entre os vários textos de um mesmo autor - como no caso do
como a do Brasil, a questão da influência é particularmente crucial próprio Bloom, hoje o precursor e poeta novo de si mesmo - ou,
para um entendimento das relações entre a nossa literatura e a dentro de um texto, ent1·e suas partes, ou entre capítulos, ou
literatura portu gu esa, ou as literaturas de língua francesa, ou mesmo parágrafos e sentenças, até o nível final da cisão entre os
inglesa, ou espanhola, as três fontes principais, hoje, nesse nosso signifi,cados literal e fi gurativo de uma só palayra. E apenas uma
agon intercultural. A produção literária só é possível a partir do história capaz de dar conta desse movimento poderia outorgar-se,
momento em que o "filho" acredita, iludidamente ou não, numa em boa consciência, o nome de uma história verdadeiramente "da
chance de se livrar da dependência - como o "Homem Célebre" literatura". Entre os vários impulsos ·nessa direção, cabe mencionar

!
de Machado, em· cuja "composição recente e inédita circulava o trabalho recente do próprio Bloom com respeito à tradição
[agora] o san gu e da paternidade e da vocação". Mas a ironia, aqui, judaica e à literatura bíblica.20 Mas essa história da literatura brasi­
é que a "paternidade" está inteiramente sobredeterminada_ e a leira ainda não apareceu, embora esteja viva nas páginas de todos
11 os livros. Dent1·e as muitas questões das quais não demos conta

,t
"vocação" torcida, num padrão de clausura que só é resolvido pelos
mais fortes dos "poetas fortes". E isto diz respeito à literatura·não ainda na leitura de nossos poetas, a influência não é a menor; e .a
lição de Bloom pode aqui ter um papel central.

1
menos do _que à crítica: marcaqa como é pela crítica francesa, a
crítica brasileira, ao tomar contato com a tradição norte-americana

J
vê-se hoje na iminência de uma ruptura epistêmica (como diria
Notas

·1
Foucault), cujos resultados não se pode prever, mas que devem
logicamente incorporar uma reflexão.sobre a influência e as culpas
do débito. À luz de uma teoria da influênci;:i. torna-se possível 1. Henry James, The Criticai Muse: Selected Lite1-a1y Criticism, ed. por
refletir sobre a formação não apenas da literatura brasileira, mas Roger Gard (Harmondsworth: Penguin, 1987), p. 591.
das literaturas (e críticas) estrangeiras como aparecem entre nós. É 2. Ve1· Selected Prose of T. S. Eliot, ed. por Frank Kennode (New York:
Harcourt Brace Jovanovich, 1975 e reed.), pp. 37-44. Trad. Ivan
neste contexto, tão tortuoso, que se poderá também refletir melhor
Junqueira, em: T. S. Eliot, Ensaios (Rio deJaneiro: Art Editora, 1989).
sobre o papel da tradução como clinarnen ou metalepse dos pr<';cur- Ver t.ambérn De Poesia•e Poe!:_as (São Paulo: Brasiliense, 1991).
sores. 3. _"Kafka y Sus Precursores" (1951) faz parte das Otras Inquisiciones.
É para a área da historiografia, contudo, que tendem a conver­ Entre outras edições. ver as Obras Completas de J. L. Borges (Buenos
gir os caminhos todos da influência. Assim como o compositor Aieres: Emecé, 1974 e reed.), pp. 710-12.
interessado em trabalhar o tempo necessariamente se volta para a 4. Ver o p_oema- de Pope, "An Essay on Criticism", em especial 11.
(1 -675-80, concluindo com o renomado juízo sobre Longinus: "[He) Is
polifonia, também o estudioso da influência acaba postado nas
encruzilhadas da história literária. Mas sua posição não .é das mais himself that great Sublime he draws". Ver também sua sátira, "Feri
invejosas, uma vez .que o próprio_ princípio da história - a causali­ Bathous: or, Of the Art of Sinking in Poetry"; ambos em Poetiy and
Prose of Alexander Poj1e, ed. por Aubrey Williams (Boston: Houghton
dade - parece �ubvertido no revÍsionismo poético. Um dos efeitos
. M-ifílin Co., EJGQ e recd.). A tradução de I3oileau do texto de

1
/11jluência 229
228 Influência
son "Les Fleurs du Mal
18. Ver, entre ou tros, o ensaio de Barbara John
Longinu s, se g1.lida das "Réflexion s critiques su r quelques passages du coletânea Lyric Poet1y;
Armé: Some Refle ction s on Intertextu ality" a , n
rhéteur Longin", e stá in cluída em suas Oeum·es Completes, ed. por A. Ch viva H sek e PaLri cia Parker (Ithaca:
BeyondNew C1itici.s111., ed. por a o
Adilm e F. Escal (Paris: Gallimard, 1966). Sobre Boileau, ver o ensaio monume ntal SexualPersonae-A1·t
de Louis Marin, "O n the Sublime, Infinity.Je Ne Sais Quoi", em Dennis · Corn ell University Press, 1985), e o de Camille Paglb (New
Hollier, ed., A New Histo1y of French Lilernturn (Cambridge, Mass.: and DecadenceJrom Nefe1·titi to Emily Dickinson,
Have n: Yale University Pres, 1990) .
Harvard University Press, 1989), pp. 340-45.
5. Como afirma Neil Hertz, e m seu importan te ensaio "A Reading of 19. Paul de Man , Blindness, p. 276.
I Am: The Original and
Longinus", aparecid o origin alme n te em fran cê�. em Poétique, v. 15 20. Ver, entre ou tros, o en sai o "Before Moses Was,
ml Analysis, ed. por
(1973) e h oje inclu íd o em The End of the Line -Essays on Psychoanalysis the Ilelate d Testamen ts", em Notebooks in Cultu
iv rsity Pr ss, 1984); ou o peque­
Norman Cantor (Du rham: Duke Un e e
and the Sublime (New York: Columbia University Prcss, 1985; a sair na of the Cano nical - Kafk a, F1·eud, ana Scholem
n o v ol ume T!te St1·ong Light
Biblioteca Pierre Menard). e w York: City C ollege
6. Thomas Weiskel, The Romantic Sublime - Studies in the Structure and as Reuisionists of jewish Cullttrn and Thought (N
co-au toria com David
Papers n. 20, 1987); e especialmente, em
Psychology oJTmnscendence (Baltimore: Thejohn s_H opkin s Un iversity
Press, 1986).
7. Fra nz Kaíka, LaMetamo1Josis. Trad. e prólogo de j. L. Borges (Buenos
i;

Rosenberg, The Booh of J (Ncw York
breveme nte na Biblioteca Pierr
_... ;•.
e Me
:
n
Gr o
ard).
ve Weid enfe ld, 1990; a sair

Aires: Losada, 1943 e reed.).


) �- Harold Illoom, The Anxiely of Injluence (New York: Oxford University
� Bibliografia _., f
Press, 1973); trad. brasileira: A Angústia da Influência (Rio deJane iro:
Imago, 1991).
The Yale Critics: Decons-
9. Harold Illoom, Yeats (New York: Oxford University Press, 1970), p. 1. ARAC,J.; GODZICH, W.; MARTIN, W., eds.
innesota Press, 1983.
4. . tntction inA111e1ica. Minne apolis: University ofM
rd Univ e rsity Press, 1970.
10. Ne ste po.o"to re pr oduzo (com varian tes) seções de min ha "Apresenta­ 2. BLOOM, Harold.' Yeats. New York: Oxfo
Y rk: Oxfo rd University Press,
ção" à Angústia da Influência (Rio de Janeiro: Imago, 1991). 3. __. The Anxiety of Influence. New o
ur N str vski: A Angr. ístia da Influência.
11. "Review of Harold Bloom's Anxiety of Injluence", publicado original­ 1973. (Trad. brasileira de Arth e o

mente em Comparntive Literature e _incorporado poste riormente à Rio de Janeiro : Imago , 1991.)
University Press, 1975.
segunda edição do livro de Paul de Man , Blindne ss and Insight. Essays 4. __. AMajJ ofMisreading. New York: Oxford
Cont inuum, 1975. (Trad.
in lhe Rhetoric of Contempo1-a1y C1íticism. (Minncapolis: University of 5. __. Ka.bbalah and C1 iticism. New York: 1,
a: Caba la e Crític a. Rio de Janeiro:
Minnesota Pre ss, 1983 ). brnsileira de Moniqu e Balbuen
12. John Hollan der, "Intr odução a Harold Illoom", The Poelics ofInfluence Imago, 1991.)
Un iversity Press, 1976.
(New I-I ave n: Henry Schwab, 1988). 6. __. Poet1y and Repression. New Havcn: Yale
ssão , Rio de Janeiro:
13. Além de A Angústia da Influência, os outros volumes são A Map of (Trad. brasileira de Cillu Maia: Poesia e Repre
Misreading, Kabbalah and Criticism e Poetry and Repression (o segu n do Imago; no prelo .)
and the Belated Te.sta-
já publicado e os demais a sair brevemente na Biblioteca Pierre 7. __. "Before Moses Wos, I Am: the Origin al
Menard). ments". ln: CANTOR, Norman, ed. Notebooks in
Cultu1·al Analysis.
!,
14. Harold Illoom, Cabala e Crítica (Rio deJaneiro: Imago, 1991), p. 95.
15. Ver cm especial, de W. J. Bate, The Bm·den of lhe Past and lhe English
Durham: Duke University Press, 1984.
8. __. Tlte Stro11g Light of the Canonical..:.. Kaflw
, Fnn1d, and Scholem as 11•
'1
· e and Tltou ght. N w Yo rk: City College
Poet (Cambridge, Mass.: Harvard Univcrsity Pre ss, 1970). Re:visioni.sts of Jewish Cullm e

16. W_alter Pater, "Style", um dos ensaios recolhidos em Apprecialions, em Papers n . 20, 1987.
7 Mass.: Harvard University

1
Walter Pote,·: Thrne Major Texts (The Renaissance, App1·eciations, and 9. __._. Ruin. the Sacred Tmths. Cambridge,

'l1
hlÍagi,na,)' Portrnits), e d. por W. Iluckler (New York: New York Uni­ Pre ss, 1989.
versity Press·, 1986), p. 401. 10. __ . & ROSE.MBERG, David. The Book of
J. New York: Cmve Wei-
ena: O Livro de]. Rio
17. Geoffrey Hart'man, Saving lhe Text, (Baltimore: The Johns Hopkin s denfeld, 1990. (Trad. brasileira. de Monique Balbu
University Prcss, 1991), p. XXII. de Janeiro: Imago, a sair.) '

.
'
'

. �:.. 1
...
,---".(I 1
l .i:
230 Influência

11. BATE, W. J. The Burden of the Past and the English Poet. Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1970.
12. BOILEAU. Oeuvres Completes. Ed. Aubrey Williams & F. Escal. Paris: :
Gallimard, 1966.
13. BORGES,Jorgc Luís. Obras Completas. Buenos Aires: Emccé, 1974. Leitor
14. CANTOR, Norman, ed. Notebooks in Cultural Analysis. Durham: Duke
University Press, 1984.
15. DE MAN, Paul. "Review of Harold Blobm's Anxiety oJ lnfluence". ln: Luiza Lobo

t
Blindn.ess and lnsight. Essays in the Rl1etoric of Contemporary Critu:ism.
Minncapolis: University ofMinnesota. Press, 1983..
16. HA,RTMAN, Gcoffrey. C1itu:ism in the Wildemess: The Study oj Litera­
lure Today. New Haven: Yale University Press, 1980. �
17. __·_. Saving the Text. Baltimore: The Johns Hopkins University
.J
Press, 1991.
18. HERTZ, Neil. "A Reading ofLonginus'.'. In: __ . 7'/ie End of the Line_. 1
Essays on Psychoanalysis and ll1e Sublime. New York: Columbia Univer­
sity Prcss, 1985. (Trad. brasileira deJúlio Castanon Guimarães: O Fim.
da Linha, Rio de Janeiro: Imago, a sair.)
19. HOLLANDER,John. "Introduction". ln: BLOOM, Harold. The Poe­ Pressup ostos Gerais
tics of lnjluence. New Haven: Henry Schwab, 1988.
20. JAMES, Henry. The C1itical M_use: Selected Literary Critu:ism. Ed. Roger
Gard. Han;nondsworth: J.>enguin, 1987. · : A leitura constituía-se, da Antiguidade até a Idade Média, em
21. JOHNSON, Barbara. "Les Fleurs du Mal Amié: Some.Refkctions on exercício para um elite erudita. Tal situação modificou-se com a
Intertextuality." In:HOSEK, Chaviva & PARKER, Patricia, cds. Lyric descoberta da imprensa e a difusão do ensino através das escolas,
Poet1y .- Beyond New C1iticism. Ithaca: Çornell University Press, 1985. fatos que marcaram profundamente o Renascimento, possibilitan­
22. KAFKA, Franz. La Metamo,fosis. Trad. e prólogo J. L. Borges. Buenos do o saber para todos, através da capacidade de ler. A grande
·
Aires: Losada, 1943. . reviravolta aconteceu com o início da industrialização, na Europa
23. KERMODE, Frank, ed. Selected Prose of T. S. Eliol. New York: Harcourt do século XVIII, que proporcionou grande aumento das publica­
Bracejovanovich, 1975. ções, entre romances a baixo custo e jornais, contendo inclusiv e
1
24. MARIN, Louis, "On the Sublime, Infinity,Je Ne Sais Quoi." folhetins literários, muitas vezes republi cados como livros.
ln: HOLLIER, Dennis, ed. A New History of French_f.-iterature. Camb i-id­
� Ler deixou de ser uma atividade exclusivamente masculina no
ge; Mass.: Harvard Unive1·sity Press, 1989. da
25. MEISEL. Pen-y. The Myth of lhe Modem - A Study in British Literature �� século XIX, pois as mulheres ganharam acesso ao aprendizado
......_
leitura e à escola, tornando-se leitoras assídua s de folhetin s e
a11d C1iticism After 1850. Ncw Haven: Yale University Press, 1987.
26. PAGLIA, Camillc. Sexual Personae-A1·t an.d Decadence from Nefertiti to ,.. romances. Gustave Flaubert o demonstra, ao ironiza r a ingenu ida­
Em.ilyDiclânson. New Haven: Yale Univcrsity Press, 1990. de de Madame Bovary, que ·presume ser o mundo semelhante à
27. PATER, Waltcc "Style". ln: BUCKLER, W., ed. Walter Paler: Th,·ee 'Ü lite1:atura romântica que passou a juventude a ler. As escritoras
(.
Major Texls. New York: New York Univcrsity Press, 1986. abandonaram, também, o disfarce das cartas literárias, praticado
28. WILLIAMS, Aubrey, ed. Poel1y and Prose of Al exan.der Pope. Boston: pelas autoras eruditas dos séculos anteriores.
Houghton Mifflin Co., 1969. No entanto, a grande transformação, n�lano da !eitura, se
deu a partir do advé.ntõêfãêultura de massa e daindústriãcultural
- fenômenos bem estudados na�adas del930 a1950 pela
escola de Frankfürt, tcn,90_ como_çxpoentes Walter Benjamin,
Theodor Adorno, e Herbert Marcuse.Já então sobressaía o conflito !
lf.
,l ( l / l
\, '·.
'-.;)
' '
e\
)

JJ_,t_1/
' '�Ll. d.-.- •.••( � �j • \-e.. '.'>
,. �
Leitor 233
232 Leitor

e
Na conferência de 1967 acima citada,
entre leitura erudita e tradici onal de obras literárias impressas e os
\
novos meios de comunicação de massa, principalmente o cinema odológica na abordagem
H. R. Jauss propõe uma inversão met

j
recair sobre o leitor ou a
e a televisão, que combinam o ver, o ouvir e o mo vimento da
·..; dos fatos artísticos: sugere que o foco deve r e a produção. Seu
sobr e o auto
imagem, inclusive a cores. � recepção, e não exclusivamente gorias: a de horizonte de
Uma revisão na ab ordagem da literatura foi considerada im­ conceito de leitor baseia-se em duas cate
e da soma de experiências
portante na Eu r opa e no mundo, se a teoria da literatura quisesse expectativa, misto dos códigos vigentes ndida como a finalidade
'd sociais acumuladas; e a de emancipação , ente
realmente resp onde r 'aos fenômenos da propaganda e dos meios i�atário das percep­
u , que libera seu dest
de comunicação de massa que sur giam. Esta resp osta foi tentada ., e efeito alcançado pela arte
dade."
pela corrente da estética da r ecepção, no final da década de 1960, ções usuais e confere-lhe nova visão da reali
e provocou uma revol ução no co ntexto interativo ent re sujeito, a,_a_1:cla�ão..auto r�-P-Úbli-
texto e leitura. O leitor deixo u de ser visto numa p osição passiy.<b A estética da receP-,Qi.o_pú'-lilegi
\ s ela supero u a relaçã
6 o
e sim co mo partej!}_tegrante do ato da íelTura, f!ãO apenas como co , afirma Lucien Daellenbach, poi bi nív cas
tipla s relaçõe s u o
pólo questionador, mas também como elemento de impulso rees ­ · unívoca auto r-leito r a o inco rpo rar múl
text -c ntex to, autor-co ntexto , lei­
tru tu rante na_ e_@1ª_d_Lobr<LP-ela autor. Embora Barthes tenha na relação obra-s ociedade, o o
de as · diversas fase s da
buscado acentu ar o ato da leitura em O prazer do texto, na verdade t o r-so ciedade. Daellen.bm:h assim divi
do su�s qb@§�b a
ele se apr ofund ou numa retórica da fruição do eu-leitor ou na e stétic a da recepção { 1) J31uss� publican
e I se r , preocupado co m
p osição do eu-escritor, afastando-se da relação interativa entre os influência hermenê u tit<de Gadamer,
õefêito estético d o text o so bre o leit�_ (Wi
r rkungsaesthetik), �o
d ois . .Jauss condena sua leitura.2 rece 2,.ç�o_@ezeptionsges­
A estética da re cepção procurou superar a hegemonia exercida c om o mo mento pr\.!1!.o rçlial� história da
e de Ro man Ingardenj
e_eloestrutu 1�h smo - çl�[��i�trauss, !?�rthes, Brem.9nd, Todorov, 'iif7ífêJ, desenvo lvida a partir de H uss erl
Wo lf-Di eter Stempel e
Genette - durante to�la a década de�,�principalmente ao '' !1/'2) Karlheinz Stierlc, Rainer Warning,
fide lidad e não exclu­
�xclu ir a no ão diacr� ic�,1_danis_tória._ô estruturalismo trabalhav'i' Hans Ulrich Gumbrecht, m ostrando uma
a pr agmática� fase co m interes­
bãsicamente com a I eia s mcrônica de estrutura, sistema e modelo, s ivista para com a semiótica e
l o gia da literatur a (Wis senss oziologie)
) I1 emp regava a lógica matemática e uma análise imanente do texto, se preponderante pela so cio
de co mun icaçã o de
) considerando os aspectos sociais tão-somente quando se encontr a.:t, e pela c o municação7 não-literária (mei os

?,.
massa, publicidade).
� articulados nele. eortanto , para o s_
. • · .,., Atualme�te_a estética da recepção se volta,
)
'e_ 1__,U,Cvvtl<,l-D-._ \,Ú.).
V r-.ção social do texto
l '' 1 , 1
l
A
as�fil ideol ógicos que envolvem a rece
� ,<ll . . .µ(, \ \f\.•U. literário e o utras manifestações artísticas e cultu
rais o u�meios.
A Estética da Recepção at1 ;vés do estudo dos
.-
ele comumcaçãodémassa. ·_$eria possível,
de expectativa do
ª
P ode-se co ,s1•· de ai. ª au 1 .maugural de Hans Robe�ntitu- Leerstelle (espaços vazios do texto) e do horizonte
os da comunicação
lada "A l11
. ;
1
; '
J 1 ratur a c�mo provocação da ciência literária", leitor, realizado por \-Volfg;ng Iser, reler aspect
� �; ; � �; r,V"°"
/) o u da arte e mostrar ein que
medida a recepção do texto pelo leitor

1 !:
a 13 de 1 9 na �mvers1dad<:_ de C onstança, no sul
!.__!_ - -da ..., . (re)elabo ração.
-; ou ouvin te contribui para a sua
�:...>
--1�
, . --- ----- . ----�. �-�---
AI eman la, como o marco maugura I da co rrente da estética da

f"'
,8 o F
3 . � No Brasil, país de tradição oral, de escasso público leitor
�c��· Es_te movimen�o respondeu a um anseio estudantil de ,i ' r
1ãc:I e qua e mc o c
ª
u
' du21ndº excessiva critico o u o auto tornam-se leitor 1)nv1leg
o s
refor�ªa°cu rncu arre i • enfase
� nos estudos dás- -..10) --l
e ·
. . j; ""\. um eix_ o sm g eneris de inter t e xtua (íaad
sl·c os e subs t't
1 u1n do uma visa- o _hi·stonc1 · · ta p or o utra mais fen ome- _...,_-_-_-_.,..turn
11tern . Cna-se assim______
_-_-_-......----- _.,__,____,?-,-_,__-,.os,_____ _,.,.., -- \ ,� �
s
ileir prat icam ente
nol' 1
. . . . êntre a oõra e su a leitura pelos auto· res bras
:xi�tencialista ou vivencial. Jauss o reafirmou durante · leito r cm geraI . E• ste e, um dos \
�ª:
um�� 1 g1esso. -�
(;;
se m a mt • e nne c1·1ação do público
_
r · ,> \ _L
L•,.i. J...,,
�\./ •;,e'--'
1 V\
�...-��- -v'\. .J... 1. li..l ' '-' \....� .�. l \..t-:�' , ({ 1 "\
'-- �V\,,-,..� \I �
/r,-1
) � '. ,'J-..� • ·
rJ...r-v< � (ht:--<l-.<-0 t.___ ,.
,,_._,.(lk
,,...., • r-f'
1,""' )r,-
""' ,/,_ -1-i ""-'- l1..:t:ci "�,...l7t--.,.,,...,d t d· 1L
-11
é

VI OtlL�
{, --;-,iJr-''v

1)
231 Leitor .,.----\;;, 1 - 235
Leitor
p roblemas que devem ser encarad os pelos estu dos da recepção
a qui.
com a história geral, mas .ta mbém sincr ônica, na comp aração e na
an álise de texto s . Estas se fazem nu m sentido polivalente e multi­
Jauss acentuou a importância ·do público como o ver dadeiro
tran smissor da continuidade da literatura no tempo (tra clição), mas direcional, numa dimensão plástica e dialética, aberta à Oexibilida­
de e mutabilidade do obj eto literário. Entretan to, a história literária
u m transmisso r dinâmico, não estátic o, agin do não numa cadeia
de recepções passi':' as, em s u cessã o causal, m as num campo de
reações. De um lado, este campo se altera a cada recepção, de outro
1 só se realiza, para Jauss, quando integ ra a experiência cotidiana do
leitor , e, inversamente, qu ando a experiência literária deste modi­
ag e sobre a nova p rodução. O horizonte de expectativa é u m
fica seu comportamento social. 15
"sistema inter subj etivo" ou "sistema de re fe rência" qu e u m indiví­ Assim, J auss conclui que a literatura não pode ser reduzida a
du o hipotético tem com relação ao texto. C abe à estética dá "uma ar te de representação ". Ele deseja resgatar a dimen são social
recepçã o r econ�titu ir esta relação entr e obr a e público.
10 da literatui-a, ao lado das outras ar tes, como agente da der rubada
O movimento de contínua renovação explica a tentativa de de t abus morais e como forma de tra nsfor mação social.
revisão da teoria dos gêneros por J auss e o utros teóricos desta
co rren te. Os gê n eros espelham a tradição literária, no seu aspecto ,-,:-,e:
si'ncrô n ico, mas estâo igúa lmen te em con stante mu tação diacrôni­ , A História e a Ruína do
Passado
ca, pelo contato com o público e as reações psicológicas e históricas
va pr esente desde a cor rente
\,

A crise da historiografia já est a


.\..
do leit or , esteticamente introduzidas pelo horizonte de expectati­ a, de
a no ção de sér ie literári
va. Este desempenha assim um papel "dinâmico e ativo, nada teór ica do fo r malismo russo, com usa d esse
a, de ChkloVski; a c
Tynianov, e de evolução liter ári
a
norm ativ o". 1.1 Portanto, a.teor ia dos gêne_ros literár ios é refor mu­ � di crô nico
lidar com o aspcctq
impasse ser ia a dificuldade de se
a
lada de for ma diacr ônic a e din âmica, somando-se a u m todo ti vid enciado com a neg ação do
constit utiv o sinc r ônico, q ue é o cânone_ objetiv amente im utável e de literatura, cIGo mo já ficara e

permanente de valores po éticos. -i; :'1 estru turalismo.


plo, ao formalismo russo,
A principal crítica de Iser, por exem
'-
Assim,
t ...
<;'.", que se estende igualmente à estilí
teorias desviacionistas apenas enum
stica e à lingüística, é de que tais
eram os elementos des
toantes,
a esmiuçá­
. Hislória· da literatura é um processo de recepção e produção � L'
u nca chegar r ealmente
estética, que se efetiva na· atualizaçã
. o de textos literários realiza�a -� l,
� visando a uma taxonomia, sem n
�,· \!'
\
lui desta cr ítica nem m esmo o
estruturalista
1
�­,.. los.1; Iser não exc
pelo leitor, que os conhece; pelo escritor que se transfoma, )0r sua
-
texto em "narrativa" e cm "litera
vez, cm produtor, e pelo crítico que reflete sobre tudo isso. 1
Michel Riffaterrc; e ste divide o
18
19
gia".
riedade", a partir de uma "tipolo
SegundoJauss, na conferência de 1967, o rompimen to com a
"-t:
Portant o, a escola de C onst a nça parte do for malismo russo e
a em seu
ar te de rep resentaç�o, e sua _subs'tituição p or uma mímese de rxistas, mas inco rpor
da estética e crítica literár ia ma rpr et ção , como
pi-od uçã o significam a abertu rn de u m "campo de investigação ciên cia da inte
pen samento a hermenêutica, o u
a

quase·i:otalmeúte n ovo" para a hislória literár ia. 13 A história liter á­ dade e 11iélodo .
desenvolvida p or Gadamcr em Ver
r ia de veria ser , ao lado de ou�, um p!:Qf..esso de contín u a st ria i ta de repetição mimética e seria
Essa nova história e a sen
esen volvid o
li6eria_ça o, buscando "emancipar o homem_�estrições g�he om o automatismo, d
construída a partir da ruptura c lhan te à idéia
sã o imposlas pela n a�za, a re.ligião_ e a sociedad�'. 14 so, de forma sem
por Tynianov no formalismo rus
e
Crí tic a ou de
-vcrnosesboçar-se, na teoria de Jau ss, uma histór ia literária enj ami n , na Escol
de "ruína", prop osta por Walter B
a

corrio uma verdadeira Literat�ra Compara da, na sua relação di a­ ada pelos estetas da
r cep ção no
Frankfurt. A "ruína" é apr oveit
e

crônica, de história particular e de produção literáda, relacion ada s mortos e de reaprov ap enas
sentido de aba nd onar os valore
eita r

perspectiva do l eito tua l. Mas


os aspectos vivos da histór ia, na
. '"" r-. ,.. r a
'J
) V-f \ [ /.,__"\' }'0 -\
,.,-ç / . \
t(
-,._.---( h - C:_.fJ--.G�c-r - CL{.. d: ,0 ;. O /-t ·
'""
,_._.__, 'v l,aC, \
1
\

236 237
Leitor Leitor
essa sucessão de sistemas
estético -formais não dá conta j
ricidade da literatura e dei
1 forma
da mudança das formas
xa sem respost,i, segundo
da histo­
Jauss, a 1 O Novo Paradi gma da Estética da Recepção

literárias. Karlheinz Stierl 20 Para Robert C. H olub, a mudança de perspectiva trazida pela
reconhece qu e os conceito e
s de his toricidade,
já _h aviam sido -discutidos a lego ria e dialética apropriação do leitor como parte integrante da estética literária
por ·Wa lter Benjamin cm foi desenvolvida por Jauss no s eu ensaio "A muda nça no para­
barroco alemão (1971) e "A O drama
o bra de arte na ép
digma dos estu dos literários". Ele teria ali adotado o modelo
27
dutibilidade técnica" (1978 oca de sua repro­
), evidenciando uma confl u de revolu ção científica expo sto por Thomas S. Kuhn, para
t e au tor em s e u s . tex to ência des­
s . J a u s s nã o pa
s uficientemente o débito rec e rec o n h ece r indicar uma r�volu ção na história do s estúdos literários, e assim
da estética da recepção pa criad o s eu próprio paradigma, i ncorporando -o à s ciências huma­
formalismo russo.21 ra co m o
1 O novo não é, segundoJau nas ,
ss, apenas uma dü
ou histórica. Não se red egoria estética H olub con sidera revol u cionário este novo paradigma da
uz a fatore s de ·in
superação, es tra nhamento, o v ação , surpresa, apreciação do leitor como parte adva na c o nstituição do livro e
aos qu ai� a teoria forma da história literária, que supera os três paradigmas antériores :
atribuído, segun do Jaus s, lis ta teria
ao menos em certo mome 1) o "clássico-humani sta", identificado a uma etapa pré-científi­
exclll;sivo. A anális e diacrônic nt o, va lor
a da literatura pode revelar ca, isto é, des envolvido na Antiguidade clássica; 2) o "histórico­
históricos, que explicam o sig os fatos
nificado virtual de uma obra, p ositivista", surgido dur ante o estabelecimento das nações
s e atua liza, se res
gata, impedindo-se a sua es como
va.22 Cont udo; não se deveri tratificação definiti­ m odernas, no século XVIII, qu e teria a specto mecanicista e
a ignorar o aspecto fenomen limitado, rep re sentado pelas teorias positivis i:âs d a his tória lite­
presente na leitura que, seg ológico
undo Jauss, é result ado de rária de Gervinus, Scherer, De Sanctis e Lanson; 3) o de fundo
cias realizadas, qu e ampli experiên­
am desejos e insin
uações do c ompor­ "formalista estético" qu e, n as palavras de Jauss, buscou contra­
tamento so cial e abrem "o
caminho p ara f1.n ur as experi balançar o caráter positivista-cien tificista do para digma anterior
o br a literária pode ências. A
rnmper o automatismo da
diana. Con stitui uma realid experiência coti­ - como os es tudos estilístico s de Leo Spitzer e a "história do
ade_ n ova, ' opaca',
compreendida, em relação que não po de s er · espírito" ou "história das idéias" do for:malismo russo e da nova
.a sey horizonte de expectativa crítica; 4) fin almente, o q uarto e no vo paradigma proposto por
J tamente, m as apenas atravé " dire-
s ·da·s pergunt as qu
nem uma também renovada e lhe pro porcio­ Jauss : seg ue-se à crítica arquetípica de Northro p Frye, difundida
percepção do mundo e do pr na década de 1950, e ao estrut uralismo que prevaleceu na
humano. A arte na vida so o blema
cial não se red uz apen as à represe
J mas · sim a uma atuação, ntação, década de 1970, e s e volta para novas perspectivas de interpre­
uma vivência sempre em j
> mutaçao. - 23
. ·
o g o e· em t ação e incorporação de efeitos "estéticos e quase-estéticos", até
"O significado virtual de uma ago ra não levados em consideração.
obra pode permanecer ignora Holub a fi rma que as bases metodológicas deste quarto e novo
até �ue ?- evolução literária do
ten ha tingido determinado horizon­
> te."2 A atualização de uma formaama is recente abre o caminho
pa rndigma são: 1) a inediação en tre as análises estética , formal e
para a compreensão de ou histórica/recepcion ai, bem como entre arte, história e realidade
tra mais antiga e desconhecida
J passado literári o só pode ref . "Um social; 2) a ligação dos métodos hermenêuticos (interpretativos), a
lorescer mediante uma nova rec partir da leitura de Verdade e método, de Gadamer - com a arte, a
que o traga ao presente. "25 epção,
Esta mudança de recepção p história e a realidade social; 3) a tentaliva de uma estética do efeico
causada por uma mudança de ode ser
atitude estética, que se apropr (Wirhu.ng), que já não se limitaria à descrição e.lo e_feito nem à
modo novo, do passado, com ia, de
decidida vontade de recuperá-l literatüra erudita, mas englobaria a popular e os fenômenos da
o; o u

·j
por um novo momento da evo
lução literária, ou nova perspe comun icação de massa.
sobre o que apenas
se vislumbrava.26
ctiva

-'

1

}
239
... Leitor
238 Leitor
rem transportar
am belos; se eles que
Não b asta q ue os poemas sej nta dor es . Assim
também devem s er enc a
Outras Vozes, Outras Vezes
consigo o públic.o ouvinte, a queles q e o riem , também
os se voltam par a
u s r
1
c m rostos ri sonh choram. Se
tl.
o o
patia pa rn com aqueles que �uiser
O principal avanço . da teo ria da estética da recepção p ode ser s e demon stra sim s e ent i teç .2
iso que você me smo
r s a
representado pe la iniciativa de el a não mais prender a estética a levar-me às lág rimas , é pr ec
uma análise im anentista do texto literário ; como era pratic a da pela Horácio, na q ual
sobre assunto , em
teoria.da lit e n1tura desde aPóetica, de A ristóteles. O eixo da análise Segue-se outra pass agem a ca da--��rte,
apesa r de reproduzir à ri�c
de uma produção te xtual deix a ria de ser a o bra, mas sim a sua um esculto1: cm b ronze, porqµl' não
al satisfatório de sua obra,
recepção, percebendo -se o impacto da obra na sociedade e de que não obtém um efeito tot a revisãi t · :do
. tod a . Este constitui ·um
maneira tal reação influenciari a na evolução dest a e das ob ras consegue reunir a figur a ), m as en fa iza o efe ito ,
olon (tota lida d e
t
subseqüentes do escritor e na reel abo r ação da literatura como um conceito aristotélico de syn fil sófi ca das
asso ciação agra dável e até
o
todo. A partir deste circuito, a o bra deixad a de·ser vist a como um não apenas a harmonia da
fenôm eno literário iso lado, para ser inserida no ·conte xt o sócio-his­ p artes.30 eito da recepção
é
o a respeito do ef
tórico-p olítico geral. O t erceiro e último trech d " n ina r
tém a co nhecida norma
o e s
Numa das primeiras e poucas vezes em que o le itor é levado o m ais importante , e con
em conta como p a rt e integr a nte do texto, Jauss cita a no ção de deleit ando":
ca tarse expost a pelo so fista Górgias, �nterior mesmo à de Aristó­ , óbtém a
r lucro junto com o prazer
te les. Assemelha-se à postu ra psica nalític a , na medida em que Aquele que �ons eguir- o bte me mo tem p em que o
razer ao leitor ao
s o

Górgias se interess a pela persu asão da sensibilida de do o uvinte aprova<tº geral, po is dá p


1
dia nt e da compaixão, afugentando j1hobos (terror) e eleos (pa ixão ). instrui.
, de Rol and
S eria o pr a zer estético dos afetos, provoc a do pelo discurso ou pela b rar que O prazer do texto
. do sobre q eu.2s
. . a gm
p oesia Seria o caso talvez de lem au l a inaugural de
jau ss,
da ta d 197 3, se ndo p ost erior à
th s· , rát er
. Embora não tenha o ca
Bar e e
Na catarse, a reação do leit or, através da "recupe ração " ou blica da em 1972
d 196 7, pu
"cura", p a ssa a import a r pa ra a teoria literária. Odo Marquard ·que é e
da estétic a da recepç
ão, o texto francês
pr ag áti co
heurísti e em m étodos de ensino
co e m
também cita a p ossibilidade de "cura" pelas (não-ma is) belas-artes.
gr nd ren ov a ção e m retórica ­
nta no entanto, numa linh a
e
represe a
Tra ta-se de uma reação psicológica empírica de purgação ou
d his tór ia. B a rthes se perfila,
e de visão a
o se inclui numa
.fase
purificação através da arte - conceito purificador o u terapêutico ratura , ·quando nã
das "bel as artes " sobre o eu,já presente em Ka nt e co ntido ria idéia gem de semiologia da lite reside mais na r e tór ica d o tex to
sua contribuição
estrutura.lista, e e na p p ta de u ma
o e do _leitor, do qu
os
de Sinnlos Kunst, o u idéia de "arte pela art e". ro

Explica-se este fat o : até a história mo derria, �cria conside r a­ e do inconsciente do crític
teoria da recepção geral. u Escarpit -,
do inconvenient e d a r à vox populi um e st a tuto de verd a de, - de Go ldmann, Lukács o
A sociologia da literatura co num sentido denot a­
atitude que teria sido ro_mpida pela so ciedade de cultura de o, leitor ou públi
toma os conceitos do text os p roblemàs da
massa, onde o p ovo é quem d omina os val o res culturais. A ob ra
todologicamente sobre
de Fr eud e stabe lece u os p a râmetro s para a discus s ão do des ej o tivo , não tc orizancio me não traz uma cont ribuiç
ão
, c o aq ui s e vê, e po rt anto
rec ep çã ola de
ão , como faz a est
o om
inconsciente agindo sob r e_ o co nscient e, e p a rece permear mais a t eo ria da re ce pç
esp e cíf ica . p a ra
os escritos de Iser, c e ntrado s no ro m anc e inglês d o sécul o XVIII,
e sua prop osta de um "lei tor implícit o", compos to d e co nscie nte
Constança . jauss concentra aspectos
fenomeno-
e in co nsciente .· Realmente, a proposta de nçam em termo$ de lite
r a­
his tór ic , psi cológicos, que ava
lóg ic o s, os
junto com a preocu p a çã o
Na Arte poética de Ho rácio _há_uma refe rência e xplícit a à relação an d o-os erri seu corpus
tur a , inc o rp or
de identificação catártica entre texto e leitor:
/1
1,
,:·

240 Leitor

social. Diversas - outras correntes críticas foram utilizadas como


·�1 Leitor

Para entender a noção de leitor proposta por !ser, basta


241

embasamento pela estética da recepção. 32 retomar o aspecto da "est1·utura terna-e-horizonte", por ele desen­
•j volvida a partir da teoria gestáltica de fundo (conteúdo) e forma
(figura), ou das idéias expostas por Gombrich em Arte e ilusão:
, O Leitor Implícito
A est1·utura de tema e horizonte fundamenta a combinação de
Há um insuficiente aprofundamento na idéia de leitor· por parte todas as perspectivas, e possibilita ao texto literário realizar sua função
de Jauss, que toma o conceito de empréstimo a !ser, no sentido comunicativa, isto é, assegurar que a reação do texto ao mundo
- . 35
de leitor virtual, "arquileitor" ou leitor imjJlicito. Este conceito despertara uma resposta no 1 e1tor.

seria u1:1:1a "pura construção teorética", nas palavras de Henry


Schmidt, não possibilitando grande articulação com a prática do Será atdbuído valor às normas sociais e alusões literárias confor­
texto.33 me sua atuação em personagens, enredo, narrador etc. 36 Iser conclui
_ A noção de leitor implícito foi desenvolvida por Wolfgang Iser que: "Assim, o mundo será incorporado ao texto."37 O texto será um
) em O ato da leitura e em O leitor implícito. Ela se torna mais atraente objeto literário (Ingarden) que se refletirá como uma visão transcen­
1 para a crítica e a interpretação literária na medida em que se volta
dental de múltiplas visões, e no qual o mundo estará incorporado; o
para a fenomenologia e a psicologia da leitura, e se afasta de uma leito,· reagirá a este objeto literário de acordo com a estn1tura de tema
sociologia da literatura teórica-como se dá emJauss-ou de uma \1
e horizonte que o texto lhe provoca durante a leitura,38 num verda­
) discussão sobre a história (ou meta-história) - como ocorre em deiro caleidoscópio, e em contínua interação...39
Gumbrecht ejauss. Horizonte é tudo o que pode ser vislumbrado a partir de uma
Iser apresenta, sem dúvida, uma efetiva possibilidade de aná- perspectiva,40 e é composto pelos segmentos das fases.de leitura.
) lise do texto e manipula conceitos mais permeáveis à noção de Esta será condicionada pelo horizonte das leituras passadas com
sujeito e diferença: Afirma, por exemplo,' que o texto é uma relação à idéia de herói, narrador, enredo, etc. O horizonte de
"formação fictícia", e propõe uma oposição cristalizada entre texto leitura é uma estruturação do sistema do texto, e implica determi­
e realidade. Para ele,. a natureza objetiva do texto constitui uma nação das estratégias de leitura. 41
J realidade, e o texto é uma construção. A ficção seria autônoma ou As expectativas do leitor podem, finalmente, ser divididas em
heterônima (a partir do pensamento de Roman In garden, em A dois aspectos: l) o repertório de normas sociais e referências
obra de arte literária.) e obedece a critérios de uma mímese renova­ literárias que servem de fundamento para o leitor, e sobre o qual
) dora, criativa, distanciada do real. •
31 este reconstrói sua leitura; 2) as expectativas relacionadas às con­
A leitura seria um ato de construção, na qual se refariam os venções culturais de um certo público para o qual a obra é dirigida-
espaços·em branco do texto, abertos à interpretação. A ficção não como em obras didáticas e propagandísticas, da Idade Média à
se esgotaria na dimensão denotativa :... e nem mesmo os atos de atualidade.42
isirnples comunicação. Os "espaços vazios" (Leerstelle) preenchidos A leitura se baseia em- estratégias selecionadas a partir de
pela leitura permitiriam a comunicação, quer literária ou não, normas sociais e alusões literárias, postas em ação num contexto
_ explicando-se assim a relação entre o novo e a repetição. É claro referencial, mas sempre numa perspectiva pessoal. 43 Os espaços
'que esta relação não ocorre linearmente, mas sim através de 1-
vazios (Leerstelle), que são preenchidos pelo leitor no ato da leitura,
l'egressões e progressões sucessivas, sem se fechar numa harmonia dependem assim, em grande parte, de cada leitor em particular,
com qualquer tipo de identidade. !ser parte de Ingarden e mesmo de seu horizonte de expectativas e de seu repertório próprios. Iser
'de Cassirer, para explicar que símbolo e metáfora são "visões" que retira de Herbert Malecki sua teoria dos espaços vazios que pro­
não se reduzem ao ato concreto de visar/ler. porcionam a leitura.-14
! '!
:i.,·:J·,
J
-·=-'!!"

242
Leitor ,. Leitor 243

rtório par ece enfeixar


A definição _que !ser nos fornece de repe int erveniência do mágico ou supra-rea l na vida cotid iana das
a r ecepção : pessoas. Em ambos os texto s há o apelo à crença e à profecia de
a idéia geral de estétic a d
uma cartomante, paga para est e fim. N a verdade, contudo , há em
mas que exi�tem fora dele
( ... ) um texto literário se haure de dois siste e das suas normas sociais, Clarice Li sp ector uma ruptura com a noção de mi11iesis reali sta ou
mesmo: o sistema de sua situação histórica rior.45 reduplicadora d o rea l, na medida em que as v ozes do "Autor" -
ante
e o sistema de normas literárias e sociais criador da no vela A hora da estrela-, e da "narradora", o alter-ego
fe minino crítico de Clarice Lispector, se opõem num mes mo
O ponto de encontro e ntre Iser e Jauss estaria na idéia de disc urso textu al, intro duzind o a dúvida, o questionamento , e que­
repertório, co nstituída p elas co nvenções necess ária s para a com­ brando a idé ia de gêne ro literár i o estabelecido. A vida de Macabéa
preen são da obra literária oufundo comum sobre a qu al se co nstrói torna-se, entã o , antienredo, ant inovela, e a he ro ína de desconstrói,
a l eitu.r a. O rep ertório resulta das decisões sele tivas, que integram
enquanto a líric a na n:ativa pa ssa a paródia.
fragmentos de literatu ras anteriore s, normas de ·real idade social e "A Cartomante" tra z um enredo com forte tendência par a o
histórica, etc, a partir de certos critérios. Na relação entre o texto trágico, tingido de tragicômico pela ironia mora list a própria de
e a re a lidade, o texto se refere não à realidade-em-si, mas às Machado. Ele empresta c onot açõ es anti-heróic as a Camilo e a Rita,
modelizações que o le itor se cria a partir da realidade. 46 bem como ao marido traíd o , com seu t om melo d 1·amátic o e seus
O "horizo nte de leitura " de Finnegans Wake, de Joyce, por amplos bigodes. 47 Entretanto, ao publicar sua n ovela, Clarice Lis­
·�.
e·xemplo, se anulou pela aus ência de u m "repertório " de embasa­ pecto r já se beneficia da estrutu ra dramática seguidamente us ada
m ento para u ma leitura norma l, digamos , sem o auxílio de um por Mach ado e po r toda uma gama de novel as e romances típicos
computador. do século XIX- D ick ens , D u mas, Alencar, Flaubert.48 -Pode assim
pro ceder a urna desconstrução deste modelo através de um efeito
i
parodístico , eco nômic o e ef ciente. Cria M acabéajá à luz da caipira,
lntertextos naive, Camila. A carto ma nt e d e Machado ocupa um statu.s cultural
o na litera­ su perio r, se visto lo go centricamente, por ser i taliana, porta nto
lustrativos da re ce pçã
Aprese ntaremos d ois exempl os i ou inte rte xtua­ estrangeira, e espert a pito nisa indiferente ao destino fata l dos dois
o de co ntigüidade
tura nacion al , qu e lembram o eix con t o "A jovens. Ela se relaciona para com o trágic o triângulo amoroso como
obr as n arrativa s:· o
lid a d e · exist e nte entre dua s A i s, e a um deus distante co m relação aos mortais : num plan o superio r,
(1896); de Machado de ss
Cartomante ", de Várias estórias a Cla rice mais uma vez rntificando a distância que separa o mundo denota ­
, pela autora modernist
no vela A hora. ela estrela ·(1977) uele. Foi
tivo das ações reais - da quele mu i:ido mágic o e imaginário dos
a rte prov ocada por aq
Lisp ector, cuja escrita foi em p deuses. Esta distância é medi ada pe la idéia de "paga" econômica,
,d e Assis pelos representantes do
grande a aceitação de Machado · o dinh eiro, qu e permit e à cartomante exercer sua imagem divina,
ntre os quais Mário de Andrade,
modernismo que o sucederam, e ctor. Esta sup erior, de c o me 1: passas requ intadas num pa ís tr opical . A pitoni­
a própria Clarice Lispe
L ima Barreto , Graciliano Ramos e d e sua sa de Mach a do faz parte d e uma estrutura coes a, que se percebe
o ç omo· p ano de fundo
utiliza o conto realista de Machad ni ta q e qui apre­ desde o estilo bem-acabado e e r udito, até o desfecho da estória,
lise rece pci u a
criação ,· mas o descons trói. A aná
o s
co mpa­ qua parece implic itame nte ratificar o julgame nto m ora lista que a
od o lógico de liter atura
se ntaremos tem p erfil ap enas met
•. t '

m m lit eratura
p osiçã o do leito r t eria c om o a dultério de Rita e Cam ilo em relação
s 'pe áence m à a
rad a , uma vez que ambos os a utore
es
ao amigo e marid o ultraj a do - t ema c onstante da p oética macha­
e·à mes ma língua. diana.
· do ou fábula, Clarice Lispec­
Aparentemente, no plano do enre A ótica que a carto mante de Clarice Lispector desperta no
com o mesmo tipo de mythos, ou
to r e·Machado de Assis trabalham leit or substitu i a ironi a m o ral ista pela atitude questi onad ora, am- !,


,.,
r�
,.
�l 244 Leitor
Leitor 215
bígua e dividida das vozes do Autor-narradora. Ao mesmo tempo
t em que incorpora a Jeicurn anterior, conscientiza o leitor de sua personagem junto com a morte do "gênero" novela. Este duplo
efeito é obtido através da catarse efetiva do leitor, que enfim
própria exaustão para com o modelo do Autor tradicional mascu­
lino moralista e distanciado da literatura novecentista. Ao romper desmascara o trio autor/narrador-personagem-leitor.
) com o gênero romanesco, fragmenta-o: Enquanto, em Clarice, o narrador fala post morlem, num típico
traço carnavalizado, o desfecho de "A Cartomante", de Machado,
Sente-se a irreverência de Clarice Lispector desde as primeiras
obedece ao enredo de ação, rápido e sem complicação.
páginas de A hora da.estrela (1977), que anunciam uma novela de
cordel folhetinesca e sensacionalista. Ela submete a narrativa de E a contraposição dos dois tipos de linguagem, interligando-se
criativamente, da ficção de Cladce Lispector e da de Machado de
suspense novecentista de Machado a passar por um processo de
corrosão, na sua estrutura tradicional, e evidencia o choque entre Assis, que constitui o "repertório" comum dos dois autores, e que
)
a forma do cordel, como símbolo da instânc_ia do popular ou da nos permite também t111ir a teoria da inte1·textualidade, desenvol­
) cultura de massa, e a instância erudita da "forma narrativa", do vida por Julia Kristeva a partir de Mikhail Bakhtin, à teoria da
recepção de Wolfgang Iser.
CO!"}tO tradicional. A linearidade e ojogo de expectativas do enredo
) O leitor de A hora da estrela funciona como eixo móvel na
machadiano são quebrados e substituídos pela concepção da di­
dialética da leitura. Constrói e desconstr~ói significados a partir de
mensão simultânea de espaço-tempo da televisão, do cinemà, da
sua interpretação do texto, e não apenas do enredo, como no caso
caótica multimensagem da indústria cultural de massa. Também a '•
de "A Cartomante". Ao mesmo tempo, fica numa posição privile­
voz da pitonisa de Clarice termina em algaravia fatídica, misturan­
do a filosofia de Heidegger com a incapacidade de transmitir algo giada para exercer a paródia e ridicularizar a certeza do Autor,
patriarcal, imóvel, indiviso, existente no entrediscurso de A hora da
) mais conclusivo sobre ó desenlace da "novela" de Macabéa. O calar
estrela e no texto novecentista de Machado. Poderá observai·,
voluntário da cartomante de Machado, irônico e malicioso, que
) '· concomitantemente, no seu "horizonte de leitura" transhistórico,
deixa o público-leitor, como estrutura aberta, a solução do enigma,
não só os dois tipos de_ vozes narrativas autorais, como as diferenças
é aqui reassumido como rasura da voz e perda da capacidade de
das duas cartomantes. A ca1·tomante machadiana, bem estrutura­
explicação do real acontecido.
da, inserida na literaturn erudita, correspondendo ao apogeu das
Como Claric:e assume nesta obra a postura de autora-mulher
letras como veículo pdvilegiado para atingir o leitor letrado, o
e critica a figura do Autor-homem consagrado, ela se identifica com
folhetim ou o livro, e a clariciana correspondendo a uma fase
) a personagem feminina e concede à sua cartomante uma atuação
crítica, em que a literatura já perdera o prestígio, desbancada pela
mais trágica quanto ao destino de Macabéa. Abre-se a vida/ desvio
) cultura de massa, aqui representada pelo cordel. Em Clarice, a
do desvario no que diz respeito ao tempo e ao destino da persona­
cartomante apresenta-se como personagem-testemunha, insegura
gem pobre, e a arnbigüidade sexual do Autor-narradora se estende
de sua vocação de profetisa da morte. O Autor, no distanciamento
) à ambigüidade do discurso da pitonisa-Tiésias que se fragmenta.
buscado com aquele alte1·:�go feminino, propõe um antilivro folhe­
Ao mesmo tempo, evidencia-se ojogo personagem-autor-narrador,

,
) tim, com início sensacionalista e final filosófico - uma verdadeira
com que pactuara o leitor:
ruptura com a noção de "gênero", tão bem estruturada no conlo
de Machado.
- Macabéa me matou.
Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um
instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a rnoça. 49
Conclusão
Moran§,OS, pombos, Brutus e "uma caixinha de música mais
desaCinada" 0 são o réquiem fragmentado para a dissolução da Tal intertextualidade p1·omoverá uma relação bastante íntima en­
tre estética da recepção e literatura comparada, completando o

./
Leitor 247
216 Leitor
5. Zilberman, ibid., p. 49
6. Lucien Daellenbach, Poétique, 39:258-60, 1975.
projeto de Bakhtin, de uma história geral dos gêneros literários
51 7. Ibid., p. 259.
numa perspectiva de união de todas as literaturas. Possibilitará 8. Cf. Antonio Candido, "O Escritor e o Público", em Literatura e
lançar um eixo comum entre Auerbach, Curtius e Lessing, o qual, Sociedade (São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1976), pp. 80-8.
no Laocoonte, buscou a união de todas as.artes. 9. Albe1·to Vàn1aro, apud Olga de Sá, A Escritura de Cla,ice Lispector (São
A principal crítica que se poderia fazer à estética da relação de Paulo: Fata-Lo1·ena; Petrópolis: Vozes, 1979), p. 224.
Jauss, é se não seria uma construção apenas t-eórica e se teria um 10. Holub, f!.eception, p. 59; Zilberman, Estética, p. 113.
aparato adequado à interpretação de texto. Seria uma sociologia 11. Vàrvaro, apud Sá, A &e1itura, p. 224.
12. Jauss, apud Sá, ibid., p. 248.
ou uma teoria da literatura? Esclareceria o texto em si ou os
13. Jauss, "Histoire de la Littérature; un Défi à la Theode de la Liuératu­
probl_emas da sociedade atual? Entre as suas vantagens está o
re", em Pour une &tltétique de la Réception (Paris: Gallimard, 1978), pp.
proceder à revisão da ·sociologia da literatura, t�ntando lançar um 21-80.
elo interdisciplinar entre literatura, cultura de massa é artes em 14. Ibid., pp. 72-3.
geral. 15. Ibid., p. 80.
No que diz respeito à teoria de Iser, mais permeável à noção 16. Vàrvaro, apud Sá, A Ese1itura, p. 223.
de sujeito e de psicanálise, se levantaria a seguinte crítica: Sendo 17. Wolfgang !ser, "Narrative Strategies as a Means ofCommunication",
uma sociologia, a estética da 1·ecepção (ou do efeito, para Iser),
1
·'· em Mario J. Vadés et alii, org., Inte1pretation of Narrative (Toronto:
poderia levar em conta a diferença lacaniana, ou uma idéia de sujeito University ofToronto Press, 1981), p. 103.
18. Ibid., p. 103.
não-cartesiano? Isto é, apresentaria o instrumental suficiente para 19. Michel Riffate1Te. "The Reade1·'s Perception of Narrative", em M.
uma intcrprétação sensível ao texto literário, e não apenas genera­ Valdés, ed. Inte17Jretation ofNarrative (Toronto: University ofToronto
lizações por vezes ultrapassadas? Press, 1981), p. 28..
'..
Tudo parece indicar que, neste momento de descrenças nas .)
20. Karlheinz Stierle, "Que significa a recepção dos textos ficcionais?",
r
vanguardas, tão caótico e f agmentado quanto o texto e a própria em Luiz Costa Lima, A Literatura e o Leitor (Rio deJaneiro: Paz e Terra,
sociedade, somente através de um apelo a diversas teorias se 1979), pp. 174-6.
poderia proceder a uma análise textual, sendo a teoria de !ser mais 21. Sá,.A Ese1·itum, p. 223.
permeável e capaz de uma sensibilização do crítico/leitor para com 22. Jauss, apud Sá, ibid., p. 234.
23. Cf.Jauss, apud Sá, ibid., pp. 234-5.
a literatura em especial e os te�tos de comunicação de massa em
24. Sá, ibid., p. 234.
geral.
25. Sá, ibid., p. 234.
26. Sá, ibid., p. 234.
27. Holub, Reception, pp. 1�5.
Notas 28. Jauss, "O Prazer Estético e as Experiências Fundamentais da Poiesis,
Aisthesis e Katharsis", emLuiz Costa Lima, A Literatura e o Leitor(Rio
1. Cf. Ian Watt, The Rise of t!te Novel (Berkeley: University of Califomia de Janeiro: Paz e Terra, 1979), p. 67.
Press, 1957), pp. 35-59. 29. Horácio, "On the Art of Poetq,", em Classical Litera,y Criticism (Har-
2. Cf. Róbert C. I-Iolub, Reception The01y (London: Methuen, 1984), p.
74. ..,.. . mondsworth: Penguin, 1978), p. 82.
30. Horácio, ibid., p. 80.
3 Cf. Regina Zilberman, Estética da Recepção e Hist6ria Literária (São 31. Horácio, ibid., p. 91. 'I
Paulo: Ática, 1989), pp. 9 e 29; Luiza Lobo, "Estética da Recepção", 32. Cf. Holub, Reception; Zilberrnan, Estética. ,l
em Rogel Samuel, org., Manual de Teoria Literária (Petrópolis: Vozes, 33. Zilbe1-man, ibid., p. 103-4. )

1985), pp. 114-7. fij


34. Iser, "La Ficton en Effet", Poétique, 39, 1975, p. 275. 1
4. Cf. Hans Robertjauss, "Der Leser ais Instanz einer neuen Geschichte 1 ;j
der Literatur", Poetica, 6:325-44; Regina Zilberman, Estética, p. 8. !
,1i

248 Leitor 219


Leitor
35. !ser, "Narrative", em Valdés, org., Inter·pretation, p. 114.
5. __. A Palavra Poética em Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense-Uni­
36.. Iser, ibid., p. 107. versitária, 1976.
37. Iser, ibid., p. 113. 6. BARTHES, Roland. Le Plai.sir du Texte. Paris: Seuil, 1973.
38. Iser, ibid., p. 113.
1 39. · Iser, ibid., p. 114. 7. BENJAMIN, Walter,IlDmmaBarroco Tedesco. To1·ino: Ciuliu Einauui,
1971.
40. Cf. Hans Georg Gadamer, Verdad y Método (Salamanca: Sigueme, 8. __ . "A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica".
1979); Iser, "Narrative", em Valdés, org., Jnte1pretation, p. 112. ln: LIMA, Luiz Costa, org. Lite1·atum e Cultura de Nlassa. Rio de
l 41. Iser, ibid., p. 112. Janeiro, Paz eTel'J'a, 1978, pp. 209-40.
42. Iser, ibid., p. 104.
9. CANDIDO, Antonio. "O Escritor e o Público". ln: __. Literatura e
43. Iser, _ibid., p. 101. Sociedade. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1976, pp. 73-88.
44. Herbert Malecki, apud.Iser, Poétique, 39, p. 283. 10. CHARLES, M. Rliét.01·ique de la Lecturn. Pa1·is: Seuil, 1977.
45. Iser, "Narrative", em Valdés, org., Interpretation, p_._ �00. 11. CULLER, Jonathan, On Deconstmction; Theory and Criticism after
46. lser, Poétique, 14, p. 285.
Structuralism. Ithaca/New York: Cornell University Press, 1984, pp.
, 47. Cf. Mikhail Bakhtin, Esthétique et Théorie du Roman (Paris: Gallimard,
31-83.
1978); Luiza Lobo,."As Metáforas do Humor em Machado de Assis",
12. CURTIUS, Ernst Robe1-t. Literatura Européia e Idade Média Latina. Rio
Letteratum d'America; Revista Trimestrale, Roma, Bulzoni, Anno IV,
de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1979.
..
18:65-81, Estate, 1983.
13. DAELLENBACH, Lucien. "Actualité de la recherche allemande".
48. Cf. Edwin Muir, "O Romance Dramático", em A Estrutura do Romance 1
Poétique, 39:258-60, 1979.
(Porto Alegre: Globo, 1975), pp. 21-35.
14. ESCARPIT, Robert. Sociologie de la Littérature. Paris: Presses Univer­
49. Clarice Lispector, A Hora da Estrela (Rio de Janeiro:J. Olympio, 1979),
sitaires de: France, 1968.
p. 103. 15. FLAUBERT, Gustave, Madame Bovmy, Paris; 1857.
50. Lispector, ibid., p. 103. 16. GADAMER, Hans Geog. Verdad y Método. Salamanca: Sigueme,
51. Ver a noção de intertextualidade, retomada por Julia Kristeva a partir 1979.
de Bakhtin; 'l.'er também: Luiza Lobo, "A Der(rota) na Metáfora da
17. GOLDMAN, Lucien, A Sociologia do Romance. Rio de Janeiro: Paz e
Navegação, de Jorge de Lima a Ana Cristina César", Perspectivas, 3: Terra, 1976.
251-61, Modernidades, Rio de Janeiro, Departamento de Ciência da 18. HAMON, Philippe. "Sur la Lisibilité". Poétique, 16, 1973.
Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ, 1988; Luiza Lobo,
19. HOLUB, Robert C. Rece-ption Theo?)•; A Criticai Introduction. London:
"Estética da Recepção e Literatura Comparada", Letra, 3:340-1, Anais Methuen, 1984.
do I Congresso Internacional' da Faculdade de Letras da UFRJ -
20. HORÁCIO, "On the Art of Poetry", ln: Cla.ssical Litermy Criticism.
Discmso e Ideologia, Rio de Janeiro, UFRJ/Fundação José Bonifácio,
Harmondsworth: Penguin, 1978.
1989.
21. INGARDEN, Roman. A Obra de Arte Literária.. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1979. ·
)
22. ISER, Wolfgang. The Implied Reader; Patterns of Communication in
Prnse Fiction from Buny;:in to Beckett. Baltimore: TheJohns Hopkins
Bibliogra[w. University Press, 1974.
23. __ ."La Fiction en Effet". Poétique, 39, 1975.
-; 1. ARISTÓTELES. "Poetics". ln: Classical Lite1my Critici.sm. Harmonds­ 24. __ . "The Reality of Fiction: A Functionalist Approach to Literatu­
worth: Penguin, 1978. . !-· re". New Lite1my Histo1y, 7: 7-38, 1975-76.
2. ASSIS.Joaquim Maria Machado de. "A Cartomante". ln: __. Obra 25. __. The Act ofReading; A Theory of Aesthetic Response. Baltimore:
Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962. V. 2, pp. 477-83. Thejohns Hopkins University Press, 1980.
3. AUERBACH, Eric. Mimesi.s. São Paulo: Perspectiva, 1979. 26. __. :•Narrative Strategies as a Means of Communication". Jn:
4. BAKI-ITIN, Mikhail. Esthétique et Théo,ie du Roman. Paris: Gallimarcl, VALDES, Maria et alii, org. Inter-pretation of Narra.tive. Toronto:
) 1978. University ofTornnto Press·, 1981, pp. 100-17.
Leitor 251
250 Leitor
46. STIERLE, Karlheinz. "Que significa a recepção dos textos ficcionais?"
27. JAUSS, Hans Robert, "Der Leser als Instanz einer neuen Ceschichte
ln: LIMA, Luiz Costa, org. A Literatura e o Leitor. Rio de janeiro: Paz
e Terra, 1979, pp. 133-81.
der Literatur". Poetica, 6 (3-4): 325-11, 1975.
47. WARNING, Raíne1· . Re:r.e-ptionaesth.etih; Theorie und Praxis. Munich:
28. __."Hisloire de la Littéralure: un Défi à la Théoric de la Littératu­
UTB, 1975, pp. 277-324.
re". ln: __ . Pom· une Esthétique de .la Réception. Prefácio de Jean
48. WATT, Ian. Til.e Ri.se of the Novel; Studies in Defoe, Richardson and
Starobinsky. Paris: Callimard, 1978, pp, 21-80.
Fielding. Berkeley: University of California Press, 1957.
29. __ . "O Prazer Estético e as Experiências Fundamentais da Poiesis,
49. ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e Hi�tóri.a Literá1-ia. São
Aisthesis e Katharsis." ln: LIMA, Luiz Costa, org. A Literatura e o
Paulo: Ática, 1989.
Leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, pp. 63-82.
30. LESSINC, Cotthold Ephrain.Laocoonte; An Essay upon the Limits of
Painting and Poetry. New York: The Noonday Press, 1957.
31. LIMA, Luiz Costa. "O Leitor Demanda (d)a Literatura". ln: __ ,
org.A Literatura e0Leito1·. Rio de Janeiro: Paz <ê.�erra, 1979, pp. 9-39.
32. __, org. A Literatura e o Leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
33. __. _, Mimesis e Modemidade; Formas das Sombras. Rio de Janeiro:
Graal, 1980.
34. __, org. Teoria da Literatura em suas Fontes. 2. ed. Rio de Janeiro:
F. Alves, 1983. V. 2, pp. 305-41.
35. LISPECTOR, Clarice. A Hom da Estrela. Rio de Janeiro: J. Olympio,
1979.
36. LOBO, Luiza. "As Metáforas do Humor ern Machado de Assis".
Letterattfra d'A11terica; Rivista Trimestrale. Roma, Bulzoni, Anno IV,
18: 65-81, Est..'l.te1983.
37. __. "Estética da Recepção". ln: SAMUEL, Rogel, org. Manual de T
TeodaLiterária. Petrópolis: Vozes, 1985, pp. 114-17.
38. __."Estética da Recepção e Literatura Compara<:la"· Letra, 3: 34041,
Anais do I Congresso Internacional da Faculdade de Letras da UFRJ -
Discw-so e Ideologia, Rio de Janeiro, UFRJ/Fundação José Bonifácio, 1989.
39. __ . "A Der(rota) na Met:ifora da Navegação, de Jorge de Lima a
Ana Cristina César." PersfJectivas, 3: -251-61, Modernjdades, Rio de
Janeiro, Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de
Letras da UFRJ, 1988.
40. LUKÁCS, Cyorgy. Teoria do Romance. Lisboa: Presen_ça, s. d.
,n. MUIR, Edwin. A Estrutura do Romance. Porto Alegre: Globo, 1975.
42. POÉTIQUE; Révue de Théorie et d'Analyse Littéraire. Théorie de la
Rfception en Allemagne. Paris: Seuil, 39, sept. 3 trim., 1979.
43. SA, Olga de. A Escritum de Clarice Uspector. São Paulo: Fala-Lorena; -
Petr�polis: Vozes, 1979. J

1'1. SCHMIDT,Henry J. "Texl-adequale Concretizations and Real Rea­ }, )


ders; Reception Theory and its Applications". New Gemum Critique, 6
(2): 157-69, primavera 1979.. )
45. STEMPEL, Wolf-Dieter. "Sobre a Teoria Formalista da Linguagem )
Poética". ln: LIMA, Luiz Costa, org. Teoria daLiteratm·a em suas Fontes.
Rio de Janeiro: F. Alves, 1983. V. 1, pp. 387-435. l
.. --- t•

Literatura

Jorge Wanderley
)

Definir é marcar fins, limites, margens em que um objeto perde


sua individualidade e seu nome. Deixa de ser. Dá lugar a algo que
precisan:iente não é mais aquilo de que até então se tratava. O
conhecimento - sempre hipotético - dessa linha que demarca o
momento· em que um ser perde sua identidade e _surge um segun­
do, dele diverso, é o que possibilitaria definições. No caso da

1 1
1
literatura, além de estarmos, como em qualquer outro, às voltas
com esta questão, estamos também diante de agravantes que
tornam ainda mais difícil qualquer aproximação: é que definir
literatura se confunde com a definição do poético e da beleza. Ou
seja: coloca, de uma penada, em toda a plenitude, a questão estética
no centro da discussão. E esta, sabemos, permanece irresolvida,
impossível que é desvinculá-la da questão do gosto, da regência de
usos e costumes e situações contextuais, da ideologia, de relativiza­
) ções de toda ordem. Como disse Paul Valé ry a propósito do
Romantismo, seria pi:eciso perder toda noção de rigor para tentar
esta definição.
Sendo assim, fica evidente que do ponto de vista teórico jamais
será possível saber em que momento um texto jornalístico, por
:, exemplo, ( e por definição não-literário, não-artístico) passe a apre­
sentar, por méritos de seu autor e/ou de sua feitura, características
tais que: façam dele um texto literário - vale dizer, um texto
artístico. Freqüentemente textos que se queriam artísticos não
passam de narrativas perfeitamente reconhecíveis como jornalísti-.
li 1

251 Lileralum Litemlura . 255

cas,ao mesmo tempo em que outros,jornalísticos ou historiográ­ roteiros bastante aproximados ao conduzir as etapas de sua ques-
ficos ou de registros cm �iários, memórias, etc., decolam de seu 1.ão inicial, que é também a nossa: que é literatura? Em suas
estado inicial para alçar o vôo do literário e da produção artística.
exposições, ambos os textos visitam setores do problema que se
Há casos-limite em que uma coisa é a outra,mas sempre podendo
tornaram mais ou menos clássicos e que, nos demais dicionários
deixar dúvidas em nosso espírito catalogador,de modo que se cria
de termos técnicos,dicionários literários e enciclopédias voltam a
uma "zona neutra",de impossível definição. Da mesma forma se aparecer,com mais ou menos ênfase ora numa nota ora em outra.
coloca a questão do poético. Nota-se (digamos logo),aqui nestas No texto de Eagl�ton,por exemplo,acompanhamos uma seqüên­
palavras,que empreguei expressões como "alçar-se" e todo um tom cia que se inicia pela hipótese de trabalho de que:
de valorização do literário e do artístico em relação aos seus . 1) - Literatura é a escrita "imaginativa", no sentido de fic­
"oposto�". Isto já é um comportamento automático, ideológico, ção". O contra-argumento é o de que muito do que não é escrita
privilegiador de um tipo de texto - ou de postura ante os textos - imaginativa vem a ser literatura,também,como acontece com os
cm detrimento de outros. Tudo o que se disser, no campo das escritos de Francis Bacon, Descartes e Pascal. Não precisamos
definições,está,deve estar· sujeito a tais reparos. No momento em acrescentar também que muita escrita claramente imaginativa fica
que se arbitrar a favor de ir cm frente,numa linha de conceitos a anos-luz da literatura. Voltaremos a isto,procurando uma leitura
dada, em detrimento de outras, é preciso saber o que se está algo mais moderna deste tópico,mas desde já podemos ver que o
fazendo. Não raramente é preciso ser arbitr:ário - às vezes.didati­ critério aqui considerado se mostra insuficiente para a resposta;
camente arbitrário - quando se considera um objeto de estudo, 1\

[
acresce ainda que esta questão da literatura imaginativa sempre
mas é preciso saber o que estamos sendo e fazendo,é preciso ter convoca como contraparte o caso da escrita-registro,a ·escrita do
consciência de que .teremos então abandonado algo de nossa fato,a escrita da história - ou em nível menos solene,a escrita:jor­
consciência crítica,embora tal atitude vise uma finalidade que em nalismo. Não é preciso muito esforço para ver que eni nenhuma
seu contexto justifique a decisão.

***
-�! delas está liminarmente excluída a imaginação ou a inventividade,
tanto quanto nos escritos de imaginação também não ficam barra­
dos os registros ou a proximidade para com a realidade concreta
e o comezinho. Só a questão da história,permeada pelos problemas
A compreensão do que seja literatura em termos de dicionário é da neutralidade (inexistente) do histodadore sua fatal imisção
impossível e o leitor dos nossos dias sabe disso: não há mais naquilo que pretende estudar objetivamente,seria assunto para um
ingenuidade alguma,pelo menos entre aqueles que possam um dia livro inteiro.
manusear este livro,capaz de conceber como possível uma defini­ 2) - Segue�se a idéia de que a literatura se caracteriza por
ção do tipo dicionário do que seja literatura, poesia, ou· o belo. tratar a linguagem de uma maneira.peculiar: nela a linguagem não
Somente o recurso ao discurso-enciclopédia poderá facilitai· um seria apenas instrumental,veículo portador de uma informação,
pouco a questão e creio que as aproximações sucessivas,os avanços como nos textos de previsão meteorológica,mas sim seria um fim
e recuos,as idas e vindas são perfeitamente naturais,aqui. O que em si mesma,de modo que se voltasse para si,cuidasse da maneira
não aborrece a prática de alguma ordem e disciplina. por como diz,além de cuidar do dito. Aqui,o fulcro da questão é
*** 1 a consciência técnica, por parte do autor e mesmo do texto,rigor de
feitura e produção,além de abertura para certas camadas - como
a dos sons - que a linguagem diária negligencia. Eagleton cita aqui
Se percorrermos dois tratados de teoria literária como o de Wellek a fala deJakobson,de que a literatura seria "uma violência organi­
e Warren .e o pequeno mas excelente texto (Teoria da Literatura:
uma introrf..ução)
� .
de Ten-y Eagleton, veremos que os.
dois seguem ri
.,
zada contra a linguagem comum". O contra-argumento seria de
que não raramente a fala comum surpreende o seu usuário ou o


)

)
256 Literatt.ffa

estudioso da matéria, quando, por uma razão qualquer, o falante


r
1
Litemlum

tamente válido perguntar (gosto de fazê-lo) aos alunos:"-Já leu o


257

ou aquele que escreve se vê de súbito considerando ex novo uma seu Hamlet de hoje?"
palavra ou expressão composta, de modo a encará-la como se
nunca a tivesse visto antes e (re-)descobre nela um valor e uma ***
riqueza de criatividade que nunca vira ou da qual se esquecera. Não
é outra coisa o·que lemos emJoyce em seus experimentalismos, ou Por muito tempo a distinção entre o uso ou valor denotativo da
Guimarães Rosa, ·ou em Carroll nos seus livros sobre as aventuras Iinguagém, por oposição ao uso conotativo, serviu ou tentou servir
de Alice. Tudo o que neste tópico se inclui, incluirá sempre a a uma separa ç · ão entre poesia e prosa ou quase que a uma distinção
Iiteraturâ como sendo "desvios da norma", mas uma leitura mais entre texto litc1-ário e texto não-literário, na aceitação de que a
cuidadosa da questão nos revela simplesmente que não há norma, prosa usaria a palavra de tal modo que nela a relação entre signo
nó sentido de que todo o familiar pode por �.il razões e de uma e significado seria de 1: 1, enquanto que na poesia esta relação seria
hora para outra, transformar-se em algo não familiar,' desviante. l:N, valendo N aí por uma pluralidade de significados, variáveis
Este nomadismo, este relativismo de visões termina por ser funda­ com a decodificação - ou atribuição de sentido - operada por cada
mental para esta pergunta ("que é literatura") e se estende, funda­ leitor. Embora a rigidez desses conceitos, que se aproximavam
mental também, para a crítica, para a teoria, para a filosofia, para muito das idéias de Sartre, na década de 50, em sua conceituação
a vida toda. do que ele chamava de "mot-signe" e "mot-chose" tenha levado a
3) · - Considerando, como faz Eagleton, que "alguns textos progressiva perda de prestígio toda a questão, ainda hoje podemos
nascem literários, outros atingem a condição de literários e a outros nos utilizar deles, somando-os à questão da "maneira especial" que
tal condição é imposta", cabe comentar que para um texto vir a ser tem a literatura de usar a linguagem. Nesta, e a poesia aqui é
tomado como literá1-i'o, entram em jogo algumas linhas determi­ necessariamente chamada à cena como exemplo, cada signo verbal
nantes: a intenção, o contexto, o contrato e o uso, dos quais tem o poder alternativo de valer por si só, para além e inde­
falaremos mais adiante. Adiantar, apenas, que textos que obede­ pendentemente do "papel social" - sintático - que represente
cem.a quase todas, senão a todas as cláusulas de intenção, contexto, junto aos demais termos da oração, do período, do texto. Ademais,
)
contrato e uso, podem ainda assim escapar ao âmbito do literário. todos os valores conotativos estão aí em pleno direito, de modo
E que nesta questão é preciso estar sempre "pronto para mudar de que cada leitor naturalmente se enquadra numa utilização especial
) lugar e domicílio", como é próprio dos nomadismos de tribo e de do signo verbal: aquela dentro da qual ele desfruta de todas as
espírito. forças evocativas do signo. Assim, a palavra "gato", que tem um
4) - Vai ficando claro que uma "essência do literário" não valor denotativo mais ou menos comunal e universal, valendo por
existe e qualquer texto pode, conforme a leitura que dele se faça, felino, doméstico, de quatro patas, dotado de bigodes e capaz de
conforme o contexto, contrato e uso que o cerquem, ser transferi­ miar, tem também, e a pleno, o poder de acenar para o meu gato
do de um lugar exterior para o lugar de honra do literário - e em particular, o especial gc:1.to do vizinho de um ano atrás, o rabo
vice-versa. do gato, o gato de Mallarmé, e o gato-a-quatro, que desde logo me
5) - Eagleton segue adiante e discute itens que são de seu t1·ás à cena o diabo-a-quatro etc., de modo que a cadeia é ampla,
interesse mais imediato, como a questão da ideologia (ele é um quase infinita, imprevisível, pessoal, e única em cada deflagração.
crítico de formação marxista), mas aqui deveremos, por falta de Nenhum leitor lê duas vezes o mesmo texto, devia ter dito Herá­
espaço e tempo ficar em apenas mais uma consideração: a de que clito. E é assim porque esta solicitação se aplica a engramas, que são
a entrada do leitor no circuito da relevância teórica faz com que os formações afetivo-racionais de que dispõem nossos "arquivos"
textos - uma vez que as leituras nunca são a mesma leitura - se mentais, e sua mobilidade, seu nomadismo, sua capacidade de
i
transformem, se renovem, se modifiquem: de modo que é perfei- glissagem (faço a palavra a partir do francês, glsser, para deslizar),
\ . :1

i
\
l
258 Literatura Literatura 259

são quase infinitas. O termo "engr ama" é de um neurologist a inglês Do que vimos, fic a evidente que haverá sempre uma literatura
(Russell Brain), notável por seus estudos sobre as a fasias. Sua para c ad a tempo; ou, por outras palavras, de cada solo epistêmico,
conceituação e a idéi a de convoc ação que eu diria quase autônoma ergue-se um objeto específico e sua variação a ocorrer de solo a
desses valores sígnicos afetivo-r acionais ajudam muito a que enten­ solo, toca mesmo a su a essência, de modo que a liter a tur a de cada
d amos algumas d as manci1-as por como o poeta pode jog ar (até um desses momentos cheg a a ser diversa de todas as demais. M as
meio às ceg as) com vapores e éter ao lid ar com os concretos signos ao mesmo tempo é forçoso reconhecer que há nuclearid ades
verbais. essenciais que resistem, em si mesmas, em cad a um desses momen­
tos - e que .a idéia de literatur a , reconhecendo, embora o noma­
*** dismo em que se pode ver, preservará o seu nome, conquanto
habite tantos lug ares. Para o teórico, o crítico e o professor dos
Se dissermos que liter atura é a melhor expressão do melhor nossos dias, mesmo considerando todos que a questão tem o seu
pensamento através da escrita, qualquer leito'r de nossos dias logo muito de ociosidade, é literário o texto que obedeça a algumas
perguntará onde ficam os sentimentos nessa conceituação; e acres­ exigências: a uma intenção artística (literária), a urna norma consensual
centará que um tratado de matemática ou de biologia não foge a de recepção, a uma relação contextual.
ela. No que concerne a primeira parte dessas objeções, vemos que O primeiro item significa que o texto que se quer literário sabe
já se levanta aí a questão do clássico por oposição ao romântico, disto e assim existe; em plena consciência de seu program a, suas
aquele relacion ado a o pens a mento e ao privilégio da r azão, e este técnicas, sua história, seu objetivo (ainda que negá-lo faça parte de
ligado ao reino d as sensações e d a emoção. Efetivamente, uma su a proposta).
vertente clássica na visão d a literatura realça o prim ado d a razão, O segundo refere-se a que o texto literário, tal como visto hoje,
o rigor, a precisão, a obediência à norm a cult a, o horror ao desvio; não discrepará de seus pares, e será recebido, por seu usuário, o
do mesmo modo, uma vertente romântica privilegia a emoção, a leitor, como sendo literário e não qualquer outra coisa:
expressão livre dos est ados afetivos e algum desvio da norma culta O terceiro, expansãq do seg undo, liga o texto a su a realidade,
em favor dos sentimentos e sua liberdade. Para esta visão român­ a su as relações e ao intertexto, fixando suas relações com todos os
tica, a literatur a ap arece como algo que se relaciona com as idéias demais textos, de qualquer espaço e tempo.
(bem típicas do romantismo) de gênio e de inspiração. Elas se
casam bem com as idéias de inefabilidade e de beletrismo que
***
car acteriz am a literatura em muito do rom a.ntismo e que fora m o
objeto principal da reação modernist a. A dess acraliz ação do inefá­ A distinção entre texto literário - v ale dizer artístico - e texto
vel e repu ls a ao beletdsmo eram al gu mas d as marc as principais do não-literário se fez, num a visada romântica da questão, com base
modernismo e com ele a visão do literário - ou da literatura - se em argumentações que sempre esbarravam na questão insolúvel
modifica de novo, deslocando seus pontos de atenção e assinalan­ da definição do belo, tal como nos pede a estética, e por muito
do bem sua propost a nova e sua recus a ao p ass ado. Depois do tempo se fez sem reconhecer as próprias tautologias, ci1·cularidades
modernismo, num pós-moderno que já vivemos há mais tempo do e redundâncias. Assim, dizer que é literário o texto artístico ou o

1l
que nos damos conta, muito desse passado retorna à cena, não mais texto dotado das car acterísticas do Belo, não é senão transferir p ara
par a ser parodiado e destruído, como no modernismo, mas sim a definição d a arte e par a a definição do Belo a questão que se
p ar a ser retr abalhado, resgatado e novamente expresso - a gora coloc ava em relação à. literatura. O mesmo se passa qu ando se
com uma visão atualizad a que inclui o moderno, tudo resultando coloca o poético como equivalente ao literário. As questões conti­
numa cit ação de convívio, diferente da citação destruidora que o nuam obrigadas a se volt ar p ara uma definição de beleza da q ual
modernismo fazia de seus antecessores. a modernid a de aprendeu a desvi ar o olh ar. Embora não desvie a .
-r�-
1

260 Literatura Literatura 261

atenção. Se fosse possível dizer co m precisão o que torna l iterário concreto ao identificar o l iterário com os "desvios da norma",
um texto, por oposição às deficiências de outro, por isso mesmo a queles momentos da escrita em que o horizo nte de expectativas
não-l iterário, a vida dos professores de l iteratura seria um pequeno do l eitor é arrebentado e surpreendido por u ma solução verbal
paraíso com um a porta de entrada por o nde chegariam os a luno s inusitada ou que quebra a lgo do contrato de leitura e/ou lingua­
e uma de saída, por onde passariam todos agora transformados em gem em que se passava a tensão leitor/texto/ leitura. São exemplos
poetas e ficcionistas. famosos o "a grief ago" e o "once below a time", de Dy l an Thomas.
A circulai·idade da questão estética não foi vista por muito Dizemos "mes es atrás", e não "rnágoas atrás"; dizemos "certa vez",
tempo entre os ansiosos especul adores dest a áre a do saber. Não pa ra "once upon a time" e não, ao iniciar u rna na rrativa, "numa
data de muito a no ção relativizante de que o que é arte par a um incerta vez" ("once below a time"), que é como eu traduziria este
não é para out1·em, ou o fato de que um determin a do objeto, tido "desvio da norma". Vemos então como certos "erros" de gr amática
como arte em certa época, pode ser considerado puro lixo no podem se constituir em verda deiros sucessos na poética. Como
momento seguinte. Re lativizações de contexto ;' de espaço, de tem­ certos pa ragramatismos podem ser enriquecedores para o texto.
po, a noção de que o comportamento ideo lógico permeia todas as Mas o fato é que nem todo desvio da no rma é necessariamente a
afirmações referentes à questão do gosto, tudo isto é novo na explicação para um momento bem-sucedido, artisticamente, no
história desse problema. O que é belo, é belo para quem? O que é interio r de um texto. Apesar de ser este um importa nte passo à
artístico, é artístico para quem? O que é poético, ou literário, é frente, a identificação dos desvios da norma como um elemento
assim para quem? E quando? E onde? E co m que bases ou princí­ caracterizador do literário, continua mos muito longe de uma
pios? A quem interessa que assim sejam aceitos ( ou rejeitados)? Em resposta ampla e efetiva para a questão. Ezra Pound disse, em ABC
que contex�o? Tudo isso gera respostas plurais e gera incertezas, da Literatura, que "literatura é l inguagem carreg ada de signific ado"
mas contin uamos capazes, na maioria das vezes, de reconhecer um e que a "grande l iteratura é l inguagem carregada de significa do em
texto literário, qua ndo nos confrontamos com um. O instrumental . seu grau máximo". Embora continuemos sem definição rea l , esta
sensíve l e o raciona l, nosso aparato de reconhecimento tornou-se, "boutade", serve para pôr em foco a questão da consciência de
é verdade, bem mais comp lexo do que era antes, e o leitor de hoje graus de significação - vale dizer graus de artisticidade - que o texto
toma o texto nas mãos contando em seu arsenal (saiba ou não disso) pode conter. Porque, se por um la do o poeta no romantismo se
com tod a a evo lução da crítica, da teoria, e mais os subsídios de nutria de uma força que lhe vinha de fora (a inspiratio), o po eta
Marx, Freud e Saussure, que estão na base da cultura e da inteli­ moderno, seu antípoda, trabal ha com suas pr6prias mãos e sua
gênci.a do homem moderno. própria consciência técnica. Não mais guiado por mãos divinas, ele
A qualidade literária de um texto foi vista como presente o pera seu texto como um cirurgião, dando discip l ina e rec urso s
divino ou das musas, no romantismo que nos falou do gênio e da técnico s objetivos ao seu métier. Esta consciência técnica, definido­
inspiração. Mas daí se desgarrou , nos meios mais especializados, ra , em muito, do poeta moderno, se estende até uma visão mais
para obedecer a exigências mais fortes, no caminho que a teoria moderna do que venha a ser o literário, em si.
vem percorrendo rumo ao progressivo e sempre mais próximo
cerco da idéia do Be l o. Algumas redundâncias continuaram a ***
ocorrer, _como no caso da definição do literário a partir de uma
qualidade específica, a literalidade, a "l iteraturnost" dos formalistas S abendo embora que não se pode ir muito longe no mundo das
eslavos. Para eles, esta qualidade intrínseca faria toda a diferença definições, uma leitura mais recente, já cl ássica, de H a ns Ro be1·t
entre o texto l iterário e o não -l iteririo, mas a tautologia aí é tão Jauss, procura del imitar a matéria, opondo o textoficcional ao texto
clara qua nto a que praticou nosso José Veríssimo, ao dizer que pragmático. O termo ficcional, aqui, não se refere aos textos de
"literatura é arte literária". Conseguiu o formalismo um passo mais narrativas da imaginação (embora, é claro, não os exclua), mas sim
262 Literatura
Literatura 263
a qualquer estrutura mental onde a imaginação criadora se
expresse. O que inclui, por força, os recursos técnicos de· que se ***
valem os escritores enquanto artistas, estejam eles escrevendo um
poema·, um texto de história, um ensaio. Este lado ficcional, que A separação, implícita no período acima, entre razão e emoção é
pode estar presente até onde menos o esperemos, tem como seu também,· em última instância, didática e não fornece ao interessado
oposto o text9 pragmático, que um tratado de botânica ou uma elementos úteis à identificação da natureza do literário. Todos os
informação jornalística objetiva exemplificam perfeitamente. É recursos técnicos de que o artista lance mão, friamente e em nível
fácil de ver que, num certo sentido, tudo o que fazemos tem a puramente programado não lhe garantem sucesso; não garantem
ver com alguma forma de "produção" ficcional - mesmo as que ele venha a produzir um texto reconhecível como sendo
nossas frases, desde que sejam um pouco mais elaboradas do que literatura. Do mesmo modo, a efusão afetiva, a passagem, contro­
os simples automatismos do dia-a-dia. Da mesma forma, nenhu­ lada ou não, de sentimentos para esta produção chamada texto,
ma definição do literário ou do belo escapa às extensões de suas n�o representa,. por si, _ garantia alguma de que o resultado será
próprias exigências. Fica também mais ou menos evidente que, literatura. ·O leitor, por seu lado, reconhecerá (admitamos) o texto
se alguma coisa pode ajudar nesta identificação do literário, nela como literário sem poder basear-se em elementos finais advindos
se incluirá, com certeza, a série de recursos técnicos de que o dessa separação entre o plano da razão e o plano dos sentimentos.
escritor, qua artista, lança mão, na procura da desfamiliarização Porque uma coisa é a outra. "Tudo o que em mim sente, está
do familiar e dos efeitos de estrnnhamento (ostranenie) de que pensando", dizia Fernando Pessoa. Poderia ter dito também que
nos falaram os formalistas russos e que já mencionamos como tudo o que nele pensava, estava sentindo. Mas igualados os termos
desvios da norma. na primeira sentença,_ a questão já ficara bem resolvida.
*** ***

Podemos também lembra que o texto literário se assinala ainda por Em tempos mais recentes, uma visão semiológica dos estudos
estar em relação com as três categorias fundamentais do prazer literários nos ensinou a ver a literatura como um complexo e
estético, a poiesis, a a:isthesis e a catharsis, respectivamente a expe­ extenso sistema de signos, parte de sistemas sempre maiores e
riência estética produtiva, experiência estética receptiva e a expe­ desdobráveis. Legível como um código, o literário nem assim teve
riência estêtica comunicativa. Desses três termos, que o ocidente identificados seus marcadores individualizantes e específicos. Cada
herda de Aristóteles, se ergue um perfil do texto literário: na sua elenco de marcas que se ergue na intenção de servir a esta finali­
intenção de artísticidade, no fato de ser recebido como objeto dade - uma definição do literário - serve, em algum de seus
artístico e no fato de que seu uso induz a uma alteração da componentes, a caracterizar igualmente bem - ou igualmente mal
efetividade. No primeiro segmento está a consciência técnica e, - categorias vizinha:; ou remotas, tais como a arte, a poesia, o
implicitamente, um louvor do predomínio do racional sobre a poético, o belo, ou o jo1'nalismo, a história, a narrativa oral, o
explosão dos sentimentos, na feitura da peça artística. No segundo, fenômeno das comunicações e um "happening" nas praças. A
o foco incide sobre o contexto em que esta é recebida, bem como própria semiologia "sabe" que como todo código cultural, o código
sobre sua aceitação enquanto tal. E no terceiro, estão chamadas à literário é um ser-em-relação-a-muitos-outros, de modo que algo
cena todas as tentativas de explicar o processo íntimo afetivo-racio­ que é tido como literatura aqui e agora pode muito bem ter sido
nal, por que passa o leitor durante a leitura, o processo pelo qual considerado um fracasso e uma nulidade em outro tempo e lugar.
sua afetividade se modifica de um estado inicial para outro, através Uma operação semiótica produtora de sentido - uma semiose -
de uma forma de prazer. dada, pode muito bem inserir entre os textos literários aqueles que·
aparentemente não pertencem à série literária. Os elementos ou
J
1
\17"

Litemtum 265
261 Literatura
paraliteratura, e formas outras de comunicação/expressão pela
signos componentes do código determinarão os resultados, e tudo
palavra que podem perfeitamente fazei· parte do universo do·
aqui corre ao sabor de eleições e produções de modelos (uma
verbete "Literatura". Voltamo-nos essencialmente para a idéia do
prática semiótica essencial) dotadas de tanta arbitrariedade quan­
"texto". Qualquer outra visão do universo em pauta, porém, pode­
to a de que dispõem, em si mesmo, e por definição, os signos. Esta
rá pertencer a outros departamentos, sejam as comunicações, aseja
relativização, notavelmente evidenciada pela semiologia, se soma
uma sociologia de formas expressivas, etc. O de que aqui se flou,
à relativização que ap1·endemos a ver também com a grande
servisse isto de argumento, esteve mais próximo das tendências,
objeção que a ideologia levanta à estética e ao gosto(: "é belo para
preferências e visão daquele que escreveu. Em literatura, é sempre
quem, e quando e a quem interessa que assim seja?"). É muito por
assim.
esses caminhos que o homem moderno sabe que é ocioso tentar
cons·eguir uma de(inição do que seja literatura.

*** Bibliografia

1. ABRAMS, M. H. Glossa,y ofLiterary Terms. New York: Holt, Rinehart

l
Nada disto, no entanto, impediu ou virá a impedir que espíritos and Wiston, 1971.
diversos, dos poetas aos críticos, dos teóricos aos filósofos e cien­ 2. DEUTSCH, B. Poet1y Handboolc. London:Jonathan Cape, 1970.
tistas experimentem as armas nas tentativas de aproximação ao 1
3. F.AGLETON, T. Teoria da Literatura; uma Introdução. São Paulo:
literário. Embora os mais modernos glossários, enciclopédias e Martins Fontes, 1983.
1 4. FOKKEMA, D. & IBSCH, E. Theories of Litemtm·e in the Twentieth
dicionário� de termos literários tratem com adequação o assunto,
evitando a ingenuidade da definição e da fücidez, não se eximem 1
Centtt1)'· London: C. Hurst & Co.; New York: St. Martin's Pn::ss, 1978.
de registrar quase-definições que terminam por aparecer em ver­ 5. FOWLER, R., ecl. A Dictiona:iy ofModem C1itical Terms:London/Hen­
betes equivalentes, como o referente à "arte", o referente à "poesia" ley/Iloston: Routledge and Kegan Paul, 1973.
6. HOLUB, R. C. Recej1tion Theo1)•; a Cdtical Introduction: London/New
e nas questões de demarcação entre literatura e história, literatura York: Methuen, 1984.
e registros de qualquer ordem, entre "literatura escrita" e "litera­ 7. LIBERivlAN, M. M. & FOSTER, E. E. A Modem Lexicon of Litermy
tura oral". Desde Wordsworth, que definiu poesia como "emotion Terms. Clenview/Illinois: Scott, Foresman and Co., 1968.
recollected in tranquility", até o bem mais complexo esforço de 8. WELLEK, R. & WARREN, A. Temia da Literatura. Lisboa: Europa-
Gerard ManleyHopkins: "speech framed ... to be heard for its own América, 1971.
sake and interest even over and above its interest of meaning"
(Linguagem destinada a ser ouvida por si só e só por seu interesse
intrínseco, para além mesmo de seu valor de significação). Ainda
dentro dessas que poderíamos chamar de definições que procuram
as águas do efeito, Dylan Thomas escreveu que poesia é o "rhythmic,
inevitably narrative, movement from an overclothed blindness to a
naked ".ision..." (movimento rítmico, inevitavelmente narrativo que
vai desde uma cegueira muito paramentada à visão - despida... ).

***

Para finalizar, chamar apenas a atenção para o fato de que se aqui


não nos ocupamos de manifestações como a literatura oral, a
ff
1
!

Literatura Negra

Zila Bernd

1. Tentativa de Definição

O fato dejustapor um adjetivo à palavra literatura não deixa de


provocar, no mínimo, um certo mal-estar na medida em que
corresponde à necessidade de delimitar o conceito, circunscreven­
do sua amplitude. Quando se trata de um adjetivo pátrio, esta
delimitação é geralmente aceita pela tradição literária ocidental.
Assim, os rótulos literat1:1ra "brasileira", "francesa", "latino-ameri­
cana" têm livre trânsito entre nós, apesar de, como toda a classifi­
cação, não resolverem todos os casos. Damos apenas um exemplo,
pois não é nosso objetivo, no âmbito deste artigo, resolver esta
complexa questão: classific;:im-se, por exemplo, como "literatura
francesa", autores comoJJ. Rousseau (suíço) e G. Simenon (belga)
o que nos permite concluir que na classificação "nacional", múitas
vezes, é a língua do escritor que determina sua inclusão em uma
determinada literatura.
Esta classificação revela-se inoperante para algu mas culturas,
onde o fato de pertencer a uma determinada etnia é, por vezes,
mais significativo do que pertencer a uma nação. É o caso de alguns
estados africanos que emergem como nação somente a partir dos
anos 60 de nosso século.
Poré 111 esta problemática realmente se agudiza quando a clas­
sificação pretende dar conta do sexo (literatura feminina ou femi-
1
l
268 Literatura Negra ,l.
Literatura Negra 269

nista) ou da raça (literatura negra, judaica, etc.) dos autores. Em Colocadas estas 1·estrições, em que medida seria legítima a
outros textos 1 , argumentei contrariamente à construção de uma utilização da expressão literatura negra? Em que consistiria a espe­
definição de literatura negra associada à raça, ou simplesmente à ., cificidade que sustentaria esta denominação?
cor da pele de seu autor. Esta classificação de base racial ou No que concerne a determinadas regiões - como o Caribe e
epidérmica se constituiria, a meu ver, a partir de bases cientificamen­ a África -, onde o Movimento da Negritude e a conseqüente
te falsas e ideologicamente perigosas. tomada de consciência de ser negro e do violento processo de
Em Race et histoire, Levi-Strauss já havia sublinhado o fato de assimilação _que ameaçava a cultura negra, determinaram uma
que a diversidade cultural não tem relação direta com as raças, pois literatura fortemente engajada na afirmação de uma nova identi­
• 1
há muito mais culturas do que raças. 1
dade negra, observa-se uma tendência a abandonar os rótulos.
1 Assim, sistematicamente, autores caribenhos e africanos protestam
Assim, quando falamos das conlribuições das raças humanas à civili­ contra os asfixiantes prefixos: literatura "negro-africana", "negro­
zação, não queremos dizer que os aportes culturais da Ásia ou da americana", "afro-americana", ''afro-cubana", reivindicando, na
Europa, da Ãfrica ou da América, tirem sua originalidade do fato maior parte dos casos, a denominação nacional, como é o caso dos
destes continentes serem, o grosso modo, povoados por habitantes escritores angolanos, haitianos e antilhanos que insistem em ter
de prncedências raciais diferentes. Se esta originalidade existe, ela se classificados suas obras como "literatura angolana", "haitiana",
origina de circunstâncias geográficas, históricas e sociológicas, não "antilhana", etc.
de atitudes distintas ligadas à constituiç.ão anatomica ou psicológica
dos negros, dos amarelos ou dos brancos.2 No caso específico do Brasil, a apelação "litcraturn negra"
corresponde, ao contrário, a uma reivindicação de alguns escrito­
res que concebem a prática da escritura literária como o espaço
Parto, portanto, do pdncípio de que é cientificamente propício à enunciação do esforço de recuperação de uma identi­
inviável qualquer vinculação entre raça e produção de bens dade negra em crise após vários séculos de sistema cscravagista.
.culturais, não havendo, pois, correlações increntes entre as Contudo, se de acordo com o que afirmamos acima, o conceito de
características psicofísicas do negro e a cultura por ele produ­ literatura negra não deve atrelar-se nem à cor da pele do autor,
zida. Deste ponto de vista, fica excluída a hipótese de se nem à temática utilizada, qual seria o elemento que lhe conferiria
conceituar literatura negra pelo critério da cor da pele do especificidade?
autor, por não haver critérios científicos que sustentem a

l1
1 Para mim, o único critério possível seria dado pelas caracterís-
relação entre o fato de se pertencer a uma determinada etnia ticas discursivas da obra: a emergência de um eu enunciador que se
e a estruturação da sensibilidade. quer negro parece ser o elemento chave que singulariza a literatura

1
Excluído o critério da cor da pele, a segunda possibilidade seria negra. A emergência deste eu enunciador que assume sua condição
eleger a temática como categoria para estabelecer o conceito de de negro no discurso, cor1stitui-se no divisor de águas entre um
literatura negra. Este critério seria igu almente enganoso na medida discurso sobre o negro, que-sempre existiu no interior da Literatura
cm que a figura do negro, como escravo ou como liberto, assim 1 Brasileira, e o discurso do negro que corresponderia ao desejo de

--l
como os temas associados à história e à cultura negras, afloram na
literatura brasileira desde os seus primórdios até as produções mais
recentes, ficando, assim, o critério temático, completamente esva­
l
1
renovar a representação convencional e, às vezes preconceituosa,
constituída ao longo do tempo.
Todavia, se este critério se revelou operacional em análise da
ziado de qualque1· funcionalidade. Não podemos esquecer que os produção poética negrn brasileira contemporânea,3 no que se
aportes das diversas culturas africanas estão de tal forma sincreti­ refere a textos em prosa, onde a questão do narrador é infinita­
zados com a cultura brasileira que toda tentativa de decantação mente mais complexa, talvez outros elementos discursivos devam
seria totalmente supérflua. ser considerados, como por exemplo: (1) o grau de contaminação
Literatura Negra 271
270 Literatura Negra
O surgimento do eu-nós é de grande importância na caracteri­
do narrador ao discurso dos personagens; (2) sua implicação na
zação da poesia negra por assinalar a ruptura com um discurso
trama narrativa como narrador intradiegético; (3) a capacidade do
i. anterior que sistematicamente o negava.
autor de evitar descrições folclorizantes e de narrar as peculiarida­
des da comunidade de dentro para fora.
b) Construção de urna cosmogonia
A reapropriação da origem e a estruturação do universo negro na
América desde a viagem nos navios negreiros,a saga da escravidão,
2. Principais Constantes Discursivas da Poesia Negra
' os quilombos é a situação pós-Abolição constituem elementos
basilares do discurso poético negro. Na verdade,esta reconstrução
Embora cada texto seja portador de estratégias específicas, da começa antes mesmo dos navios negreiros e remonta à África e aos
análisé da prndução poética negra, desde o Movimento da Negri­ povos que foram traficados para a América. Assim, o referente
tude, por volta dos anos 30 de nosso século, até. a atuàlidade, é histórico inaugural - o estabelecimento do elo com a África - é
possível estabelecer certas dom_inâncias, certas constant,es observá­ recuperado, destacando-se as relações de parentesco com povos
veis no nível do discurso as quais passarei a enumerar a seguir: africanos possuidores de uma história e de uma cultura com o
objetivo de desfazer o estereótipo do negro como povo sem
a) Emergência do eu enunciador
A história da conquista das Américas e a do sistema colonialista ll' origem,ou de origem espúria.
, Sucessivamente o texto poético construirá imagens ora de uma
que aí se estruturou,mantendo�se por quase trezentos e cinqüenta
Africa-mãe, espaço mítico onde se encontram as raízes,ora de uma
anos,caracterizou-se pela prática da assimilação do outro e,conse­ África violada pelo branco. Mais rece�temente,contudo,a poesia
qüentemente da anulaçãÓ de sua alteridade. Para o colonizador,o vem refletindo a imagem de uma Africa revolucionária, cujos
seu mundo é o mundo, pois ele concebe o outro como objeto e não heróis são evocados e 1·everenciados.
como sujeito. Assim, embora coabitando no mesmo espaço social, Além desta referência às origens, são também evocados os
os índios e depois os negros viveram a experiência do exílio no
acontecimentos marcantes ligados à ação heróica dos negros em
interior de uma sociedade que não os convocou ao diálogo por
sua constante luta pela liberdade. As diversas formas de resistência,
negar-lhes o reconhecimento enquanto sujeitos portadores de uma desde o banzo até a fuga e a organização dos quilombos, são
cultura. relembradas e postas como modelo a ser seguido. O quilombo é
Neste contexto, o processo de construção de UJna literatura freqüentemente metáfora de liberdade, de organização social
negra pode ser lido como um meio de os negros pleitearem seu ideal, de harmonia,justiça e beleza.
reconhecimento como sujeitos para poderem impor sua efetiva Para suprir os vazios que po_ntuam a presença do negro na
participação num dicilogo de culturas "onde ninguém tenha a América, a poesia se torna.o espaço gerador de mitos compensa­
última palavra, onde nenhuma elas vozes reduza a outra ao estado
4 tórios. Os feitos de Ganga Zumba,de seu filho Zumbi do Palmares
de um mero objeto". De onde a importância para o negro, do e de outros chefes quilombolas são mitificados e cantados em
exercício da produção literária que representa, no limite, a busca poemas épicos onde, de escravos rebeldes e fora da lei, transfor­
da própria existência, que é reafirmada no ato de enunciação
mam-se nos heróis de que o povo negro necessita para ter um
poética. Logo, é através do texto literário que se realiza a sua
modelo de identificação.
transmutação de objeto para sujeito. Na medida em que o poeta A identificação com estes heróis e sua luta pela libertação é o
está interessado neste ressurgimento,não _apenas para si próprio, primeirn passo para a construção da identidade. Como argumenta
mas para o grupo ao qual se sente ligado e do qual se torna o
Mucchielli,
porta-voz privilegiado, a distância entre o eu (sujeito enunciador)
e o tu (sujeito destinatário) se reduz,recriando a unidade do nós.
272 Literatura Negra Literaturn Negra 273

"a transmissão e a rememoração do passado colcúvo, das dificulda­ mento à conscientização Outro elemento que se transforma em
des, dos sucessos e dos fracassos do grupo, das condutas exemplares símbolo é o ébano, madeira negra de grande resistência e típica <le
de seus heróis ... participam do processo de identificação cultural. A -, certas 1·egiões da África, que aparece, na maioria dos poetas,
lembrança da história através de narrativas, de obras de arte, de simbolizando o orgulho da cor e da resistência do povo negro.
cerimônias e rituais, assim como através da educação das jovens
gerações, contribui para modelar a identidade de um grupo social" .5 Obedecendo igualmente ao princípio da revcrs,'io, o ébano, que na
simbólica tradicional representa, assim como a cor negra, os infer­
É igualmente 1·eabilitado, pelo fazer poético, o panteão dos nos e a passagem pelas trevas, associa-se, na poesia negra, à
orixás que compõem o candomblé brasileiro e cujos rituais foram, resistência ·e ao orgulho de ser negro.
durante certo tempo, proibidos ou tidos como bárbaros e primiti­ Da mesma forma, a simbologia das cores é alterada, sendo
vos. Desta forma, os vocábulos que remetem aos orixás e às práticas interessante apontar pai-a o que poderia ser considerado como um
rituais não são introduzidos apenas pelos efeitos sonoros que verdadeiro trabalho de ressemantização do esquema cromático. Se
produzem nos poemas, mas, prioritariamente, pelo que significam é verdade que alguns poetas reproduzem o estereótipo da cor
em termos de reapropriação de elementos qu·e irão compor o negra associada ao caos, ao luto, às trevas e ao mal, a maioria
imaginário coletivo, garantia da coesão do grupo. procura inverter este simbolismo, que passa então a ligar-se ao belo,
ao harmônico, ;10 virtual, uma vez que o preto pode representar
c) Ordenação de uma nova ordem simbólica não só a ausência como a soma das cores, não só a sua negação
1
O resgate operado no nível dos referentes históricos efetua-se como a sua síntese. Assim, o negro é representado por elementos como o
paralelamente no nível da representação simbólica. O princípio ca,vão, potencialmente ativo por conter em si a brasa, enquanto o
ordenador é o mesmo: a reversão, sendo a palavra de ordem pôr branco irá caracterizar o silêncio, o vazio, o nada.
o mundo às avessas. Daí a prática usual dos procedimentos da Além do preto e do branco, a cor que adquire significação
paródia e da carnavalização. maior é o vermelho, que também é representado pelo sangue,
Os elementos ligados ao período escravocrata, como senzala, símbolo da energia vital e do renascimento da raça. No candomblé,
chibata, grilhões·, feitor, ferro em brasa, que se alinham entre os que o vermelho é a cor de Iansã, deusa dos ventos, dos raios e das
provocam sofrimento e vergonha no negro, são transformados pelo tempestades. O vermelho remete, pois, à agressividade revolucio­
texto poético em símbolos positivos que dão assentamento ao novo nária do poeta, numa simbologia cuja significação está muito
discurso. Estas novas unidades culturais passam a representar o próxima da simbologia do vulcão, prestes a explodir e a derramar
reencontro com as origens, caracterizando-se como os símbolos de a lava incandescente (vermelha) represada durante séculos.
uma ordem social i1'tiústa e revestindo-se, portanto, de um caráter
positivo de alerta contra os atuais métodos de discriminação racial d) Reuersri.o dos valores e avaliação do oulrn. ·
que reproduzem, em certo sentido, o modelo escravocrata. A lei maior da Negritude; que consistiu em tornar positivo o que
A consagrada dialética casa-grande/senzala é abandonada, até ent<"io era considerado negativo, continua sendo o fio principal
criando-se um novo pólo antitético: casa-grande/quilombo. Efeti­ com que se tece a poesia negra. Tanto no nível das características
vamentt;, não é mais a casa-grande e o senhor que se opõem à físicas (pixaim, cor da pele, formato do nariz) quanto no dos
senzala e aos escravos, mas o quilombo e os quilombolas que se referentes históricos e culturais, tudo o que estava esquecido ou
inscrevem como os novos símbolos de libertação e de esperança. era motivo de vergonha recebe uma conotação positiva, tornando­
Também o tantã e outros instrumentos musicais de origem se objeto de exalt;i.ção. A inversão essencial é a que se dá quanto
africana, de "inst1·umentos de escravos" tornam-se símbolos não só ao ponto de vista: o negro, de obsernadn, transita para a esfera de
do sentimento de pertença à cultura ancestral como da memória obsernarlor. A poesia torna-se o palco onde se encena um jogo de
coletiva. O ressoar do tantã simboliza, em poesia negra, o chama- olhares recíprocos, através dos quais o poeta tenta desconstrui!·
.

�:--·
274 Literatura Negra {
l Literatura Negra 275
uma imagem estereotipada fabricada sobre o negro, a qual se 1
cristaliza como verdadeira e na qu.il a sua alteiidade era radical­ ! Configu rando-se como o discurso que viola uma ordem esta­
belecida- a que determina que o negro fique no "seu lugar", desde

r
mente negada.
\
Configurando-se, portanto, como discurso da destruição e da t que este luga1· seja inferior ao do branco-, a poesia negra revela-se
afirmação de uma diferença, a poesia negra irá também produzir sempre, em qualquer latitude, de forma apaixonada, ou seja, como
uma imagem do branco que, ocupando a terceira pessoa do a manifestação de um sentimento muito intenso que se sobrepõe,
discurso, se torna, por sua vez, o outro. Resta saber se, nesta troca às vezes, à própria lucidez.
de olhares, o outro vai aparecer como objeto, confundido com o A literatura negra caracteriza-se, fundamentalmente, pelo de­
mundo que o cerca, ou como sujeito. Ou ainda se, à semelhança sejo de construir uma imagem positiva do negro e esçe elemento
do do111inador, a imagem elaborada será igu almente estereotipada. constitui-se no conector privilegiado que relaciona os textos em
Os fatores apontados como caracterizadores de um discurso uma dimensão supranacional e supralingüística. O engendramen­
poético negro podem ser enfeixados em torno de uma idéia-força to de uma identidade, dá à literatura negra, produzida nos quatro
principal: a literatura é o lugar de convocação à resistência e à cantos do mundo, seu fator principal de a1·ticulação.
re-existência do negro. De literatura de resistência, a literatura negra
passa a ser literatura de re-existência segu ndo os versos de Oui Inae
Kibuko: Notas

Seguir em frente 1. Cf. Zila Bernd, Introdução à Literatura Negra (São Paulo: Brasiliense,
Em frente seguir 1988) .
Sem receio ou temor 2. Claude Levi-Strauss, Race et Histoire (Paris: Gonthicr, 1961), p. 11.
.REXISTIR, REXISTIR, REXISTIRI 11 3. Cf. Bcrnd, Literatura e Negritude na América Latina (Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1992).
Um dia vai dar 4. Tzvetan Todorov, A Conquista da América (São Paulo: Martins Fontes,
Vai ter que dar 1983), p. 246.
. Não importa quando 5. A. Mucchielli, L 'Identité (Paris: Presses Universitaires de France,
Nem o p1·eço que vai custar ... 1968), p. 42.
6. Oui Inae Kibuko, Cadernos Negros, São Paulo, 5, 1982.

3. Voltando ao Princípio
Bibliografia
Foi nosso objetivo demonstrar, pois, que não é preciso ser negro
a
para fzer poesia negra. É preciso, entretanto, situar-se como negro 1. BERND, Zila, Introdução à Literatura Negra. São Paulo: Brasiliense,
para que a poesia possa exprimir-se com uma dicção pr6pria, 1988.
reveladora de uma intenção negra. 2. __. Litemtura e Negritude na América Latina. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1992.
A poesia negra viabiliza o trânsito de uma condição de aliena­ 3. CADERNOS Negros, São Paulo, 5, 1982.
ção, caracterizada po1· uma situação em que "as bases do mundo e 4: LEVI-STRAUSS, Claude. Race et Histoire. Paris: Gonthier, 1961.
do ser se desvanecem", para uma condição em que a consciência 5. MUCCHIELLI, A. L'Identité. Paris: Presses Universitaires de France,
se reconstrói e na qual o .poeta se institui pela linguagem. Pela 1986.
poesi� o poeta desvenda sua auto-imagem, buscando transcendê-la 6. TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América; a Questão do Outro. São
através da reconquista de sua fala. ., Paulo: Martins Fontes, 1983.
·r
i.,
j
i
1
1
Nacionalismo Literário

) Célia Pedrosa

1
1

�\i-
..,: \} \\ \ �
?
Ao longo dos dois últimos séculos, a nacionalidade tornou-se o
mais poderoso critério de definição dos grupos em que a huma­
nidade vem sempre se dividindo. Para tanto, foi necessária uma 6)
gradativa ampliação de seu s�gnificado primitivo - lugar de J
nascimento de um indivíduo. A partir do século XVII, essa 1·efe­
rcnc1a permanece mas se liga à de origem e descendência comuns C\
a vários indivíduos. Apontando, desse modo, para a identidads;_ lê)
étnica, ela pôde então ser associada à idéia de�Mais tarde,
l'2'\ com a Revolução Francesa, transforma-se em atri uto de todo
� povo sobe· ue · ndente de unidade étnica, se organi­
zasse em torno de um Estado e tivess�osse de determina o
terntono.
Já no século XIX, a superposição desses u·ês significados,
) na verdade bem distintos e até conflitantes, possibilitou que
}
ela funcionasse como importante fator político e cultural.
Mobilizou a consciê11cia histórica e favoreceu a coesão de cada
grupo social, fortalecendo sua auto-identidade e seu empenho
autonomista. Tornou-se fonte de inspiração, tema e finalidade
da produção artística, inclusive a literária, que passa a seguir
uma di,·etiriz eclética. Friedrich Schlegel, crítico e [i)ósofo
alemão, considerado um dos principais teorizadores do Ro­
mantismo, a define como resultado de uma reílexão em que se
articulam universalismo e particularização, continuidade e
transformação:
r
'j
Nacionali.smo Literário 279
278 Nacionalismo Literário
'
vista como expressão de um princípio ordenador e gera\ de que a
O universalismo é a variação, à saciedade, de todas as formas e humanidade faria parte e poderia apreender raciona\mcmte. E
substâncias. ( ... ] A vida do Espírito Universal é uma cadeia ininter­ ,
adquire concretude e plasticidade, torna-se misteriosa e plural -
rupta de revoluções interiores; nela vivem todos os indivíduos - isto
é, lodos os originais e eternos. É um politeísta ingênuo que traz ..... totalidade viva e dinâmica cm que coexistem elementos os mais
-'
dentro de si todo o Olimpo. W díspares. Segundo Victor Hugo, no famos- - ·-" -'

Uma definição da poesia só pode determinar o que ela deveria ser,


não o que ela realmente é; caso contrário, a mais breve formulação
L. Cromwell, oõlhar romântico, mais elevad
que "tudo na cnaçao não é humanamente oew, que: u tc10 existe ao
la:;i_ -•- ,_.....,_ ...... _,: ... r.-..... --·•·- -1- -......... :__ --··--- --- ··-·-�·�- -

seria: a poesia é tudo o que a qualquer momento e em qualquer lugar do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz".
for chamado como tal. Analogamente, o homem se conscientiza de sua identidade
própria, cm que a subjetividade individual interage com contingên­
Em face desses pressupostos, a filosofia romântica vai rejeitar cias sócio-históricas específicas. Conflituosa e diversificada, essa
a enraizada crença no·caráter transcendente e imutável dos valores consciência rompe com a idéia de ordem transcendente, natural e
morais, estéticos e políticos que regem a vida humana. E enfatizar universal que antes dava sentido e estabilidade à existência.�
a inevitável e fecunda diversidade com que esta se apresenta e recu erá-los, faz-se necessádo o conhecimento rofundo da reali­
desenvolve em espaços e momentos distintos. A herança clássica dade subjetiva on e es ana ocu ta a ver a ell'a natureza de___ç
greco-romana, antes tida como origem e essência únicas e, por isso, :.!lOlV1auo e do espínto humano, em suas inúmeras manifestações.
como modelo ideal, passa a ser considerada apenas uma entre Tal b�sca se apóia e se desdobra num movimento de apreensão
muitas contribuições ao processo de evolução da humanidade. Essa particularizada e afetiva da realidade física. Ela passa a representar
concepção eclética e histórica não só permite mas principalmente a terra natal onde se enraizam a origem e a essência da identidade
exige o interesse pelo novo e pelo que até então fora esquecido ou individual e os fortes e harmoniosos laços que lhe dão uma inserção
marginalizado: o excêntrico, o primitivo, o bárbaro, o impuro. familiar, coletiva, nacional.
Movidos por esse interesse, os escritores associam a liberdade Dessa nova forma de interação resulta uma linguagem mais
criadora ao sentido de missão. E fazem da literatura uma experiên: expressiva e rica de imagens, estruturada de modo mais flexível.
eia de renovação estética e mobilização coletiva, empenhada em Libertada da definição abstrata e racional, a natureza alimenta a
compreender e valorizar as especificidades e potencialidades de poesia de novos temas, 1·itmos, cores e sonoridades, extraídos
cada cultura. Os efeitos desse empenho representaram, conforme também das diferentes tradições populares, orais e esci-itas, a que
postulava Schlcgel, um incremento das manifestações individuais ela passa a sei· associada. Além de ter intensificada sua produtivi­
e nacionais e simultaneamente um enriquecimento do "espírito dade propriamente estética, o gênero lírico radicaliza e torna
universal". É o que ocorre, por exemplo, com a criação de uma explícitas a problemática do desejo e da imaginação, a relação de
nova forma narrativa, o romance histórico. Integrando a elabora­ complementariedade e co11flito entre emoção e razão, subjetivo e
ção ficcional à representação das origens de cada povo, ele ainda objetivo, individual e social, particular e universal. Evidencia assim
confere à literatura uma função cognitiva e social inédita. Confun­ a complexidade contraditória do discurso literário e de toda pro­
dindo as fronteiras entre o estético, o filosófico e o histórico, entre dução cultural, inerente à própria faculdade humana da lingua­
o empírico e o imaginário, entre o subjetivo e o objetivo, desafia a gem, que aus poucos começará a ser enfrentada, discutida e
rigidez classificatória. E aponta para a necessidade de uma reflexão fundamentará, inclusive, a criação da Psicanálise.
que articule diferentes áreas de conhecimento - até hoje funda­ Todo esse processo de renova ão se manifesta do mesmo
mental para as ciências humanas. i:nodo nos estu os literanos, atribuindo-lhes o sentido crítico e
O mesmo se dá com a poesia lírica, vitalizada pelo redimensio­ 1íistódco que dominará seus desdobramentos posteriores. Até
namento da relação entre o homem e a natureza. Esta deixa de ser
280 Nacionalismo Literário
r Nacionalismo Literário 281
então, eles tinham um caráter eminentemente normativo, concre­
hábito profundamente enraizado e que dificilmente abandonare­
tizado em dois procedimentos básicos. De um lado, a pesquisa
mos". Mas não pode ser considerado prccondição do e[eito dra­
filológica dedicava-se ao estabelecimento de textos cláss\cos e à
mático nem ser exigido de escritores .cujo talento se alimenta de
exegese de seu significado original e exemplar, obscurecido pela
outra tradição, como o dramaturgo inglês.5 Mme. de Stael, por seu
gradativa e "nefasta" diversificação de padrões lingüísticos e cultu­
turno, também o defende contra o dogmatismo uniformizador,
\ rais. De outrn lado, a Poética deles depreendia normas pelas quais
alegando que sua personalidade literária é condicionada e estimu­
toda obra litenfria deveria se pautar. Uma e outra legitimavam um
lada pelo cli,ma do Norte, em tudo oposto ao da Europa meridional,
acervo de obras cuja mera enumeração cronológica constituía a
e pelo temperamento nacional inglês:
história da literatura universal.
Doravante, tornou-se necessária a avaliação particularizada de
O clima é certamente uma das principais razões das diferenças que
cada obra, tendo em vista sua originalidade e sua inserção em existem entre as imagens que agradam no norte e as que amamos
determinado contexto. A normatividade dá lugar à sensibilidade e relembrnr no sul. Os sonhos dos poetas podem conceber objetivos
ao interesse sociológico. A crítica se assume como manifestação de extraordinários; mas as imp1·essões de hábitos apa1·ecem necessaria­
um gosto particular, condicionado por valores próprios a cada mente em tudo que se compõe. Evitar a lembrança dessas impres:5ões
tradição e momento, privilegiando "a arte de apresentar aos povos seria perder a maior das vantagens, a de pintar o que a própria pessoa
as obras literárias que no estado atual de seus hábitos e crenças são experimentou.[ ...]
suscetíveis de lhes dar o máximo prazer possível", como coloca o O talento do poeta dramático aumenta quando ele vive em meio a
romancista e ensaísta francês Stendhal.� Dedica-se ao resgaste de uma nação que não se presta muito à credulidade. Deve então
procurar no coração humano as fontes da emoção, e buscar, numa
obras que teriam contribuído para a formação_ das diversas litera­ expressão eloqüente, no sentimento da alma e no remorso solitário,
turas nacionais, analisando suas relações com todos os aspectos da os fantasmas apavorantes que irão impressionar a imaginação.[... ) E
vida social e sua influência na produção contemporânea. as eumênides que perseguiam Orestes eram menos terríveis do que
Uma · eiras sistematizações dessa postura foi empreen- o sono de Lady Macbeth.6
dida por me. de Stael, que introduziu na França os princípios
filosóficos e cn 1cos o romarítismo alemão, a partir daí amplameO- ,...Embora só se tenha consolidado em rincípios do século XIX
···
leirradiados: sob a· ég1 e a v1sao e muneo romantica, o nac1ona ismo 1terário,
assim como o olítico, tem suas condi ões de ossibilidade esbo­
Eu me propus a examinar que influência a religião, as leis e os çadas a artir do século XVII. • aí ue se ndo Michel Foucault,

i'
costumes exercem sobre a literatura, e qual a influência da literatura se a a passagem da Renascença pa1·a a Idade Clássica, marcada
sobre a religião, os costumes e as leis. [ ...) Observando as diferenças por uma radical mudança na 1·elação do homem com a linguagem.
características que encontramos entre as obras dos italianos, ingleses, Até então, esta era vista como existência maciça e enigmáLica, que
alemães e franceses, pensei poder demonstrar que as instituições
políticas e religiosas tinham a maior influência sobre essas constantes ocultava um texto primitivo, fixado por Deus para todo o sempre.
diversidades.·• Essa 01·igem o sacralizava e garantia o inquestionável vínculo de
semelhança entre suas palavras e as coisas por elas designadas.
Ent1·e outras inestimáveis contribuições, a perspectiva nacio­ Diante dessa existência, cabia ao homem a enas fazer uso de
nal possibilitou o resgate da obra de Shakespeare do esquecimento ..Jv' l uma segunde e paras1tana mguagem, e modo a produzir um
a que fora relegada pelo classicismo normatizante. No famoso <f saber ue só podia assumir a forma de cmnenláno. �través dei�
ensaio "Racine e Shakespeare", por exemplo, Stendhal afirma que 1 tenlava-se reconstitui,· e esc acece, os sogm ocados verdadeirns e
o 1·espeito às unidades de tempo e lugar, erigido em princípio pela definitivos inscritos no texto fundador e na realidade que ele
Lragédia grega e endossado pelo primeiro, "é um hábito francês, nomeava. Ao long o do scculo XVII, essa existência vai sendo aos
Nacionalismo Literário 283
282 Nacionali,smo Literário .'
formulação de hipóteses abstratas. E em defini-la como prática
poucos elidida: a linguagem deixa de ser e passa afuncionar, .como discursiva cuja finalidade é representar e explicar a realidade
t
l
instrumento de representação corri que o homem organiza discur­ humana, de que se torna assim parte integrante. Enquanto ta.!, ela
sos e produz o conhecimento. Nas pala_vras de Foucault, pode e deve ser objeto de constante avaliação crítica, o que lhe
imprime dinamismo e a orienta por uma dupla finalidade. Além
A partir da Idade Clássica, a linguagem desenvolve-se no interior da
de _compreender a lógica que preside o processo universal de
representação e nesse desdobramento de si mesma que a escava. Daí
por diante, o piimitivo apaga - se e, com ele, todo o fundo inexaurível evolução do conhecimento, ela também se propõe a atuar efetiva­
das palavras cujo ser mudo estava inscrito nas coisas; apenas subsiste mente para que este se realize de modo pleno e contínuo. Para
a representação desenrolando-se nos signos verbais que a manifestam tanto, tem que ser capaz de situar-se face a cada momento desse
e deste modo se convertem em discurso.7 processo e aos diversos campos de ação que ele vai abrindo.
Este é o fundamento da atitude iluminista que vai dar ao século
Em vez. qa 1·epetição e do comentário, elà ·passa a suscitar a . XV1II sua feição característica. Se gundo I. Kant, um de seus
crítica: o saber que a analisa e investiga seu modo de funcionamento representantes, ela indica a maioridade do homem, isto é, sua
e finalidade, sua relação com a verdade, o erro e a opinião. A ca ac1dade de fazer um uso autonomo da mteh encia, livre de toda
referência à origem dá lugar ao enfrentamento da própria concre­ tutela. Para o filósofo, tal atitu e so o e se manifestar plenamente
tude discursiva e de seu caráter vário e mutável. Nesse contexto, a na medida em quealiberdade particular de reflexão seJa motiva a
filosofia começa a abandonar a clave idealista derivada do pen!ia­ e direcionada por um interesse público:
mento platônico para.definir-se como filosofia da linguagem e da
história. Propõe-se a esclarecer o vínculo entre linguagem e pensa­ Esclarecimento["Au.fklanmg"] é a saída do homem de sua menoridade,
mento enquanto afributo essencial da humanidade e condição de da qual ele próplio é o culpado. A meno1idade é a incapacidade de fazer
sua contínua evolução. E reconhece a necessidade de investigá-lo uso de seu entendimento sem direção de outro indivíduo. [...]
na dive1·sidade de sua concretização por grupos humanos distintos. Para este esclarecimento porém nada mais se exige senão LIBERDA­
DE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar
"A linguagem é um Proteu sobre a superfície curva do plane­
liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas
ta" ,9 constata J. Herder (1744-1803), que propõe para a filosofia. as questões.[...] Entendo contudo sob o nome de uso público de sua
uma perspectiva antropológica, esboçando os pressupostos que p1·ópria razão aquele que qualquer homem, en'\uanto SÁBIO, faz
orientarão a reflexão oitocentista: dela diante do grande público do m�ndo letrado. 0

Pois, se os homens tivessem recebido de Deus juntamente com a Desse modo, o empenho intelectual serve à afirmação do
linguage111 as sementes de todos os conhecimentos, que coisa restaria homem enquanto indivíduo e cidadão, definindo-se em função das
como produto da alma humana? [...] Como se alegraria se, com este
ensaio, ficasse afastada urna hipótese que, depois de observada por todos necessidades de seu próprio tempo e meio. O esclarecimento que
os lados, revela ser para o espíiito humano não mais que névoa e desonra, tem por meta implica na tj_ivulgação de idéias e na instauração do
tendo-o sido já por tempo demasiado! [...] De que serve uma hipótese debate, a fim de desestabilizar dogmas e preconceitos e dinamizar
se apenas consegue ombreai· ou comparar-se com outra? [... ] O autor a coletividade. Assim fazendo, ele a conduz a pensar sua identida­
preferiu aplicar-se en1juntar dados seguros sobre a alma humana, sobre de, compreender seus problemas e especular sobre seu destino,

11
a organização humana, sobre a estrutura de línguas antigas ou selvagens demonstrando sua. aptidão para o progresso - idéia básica do
e sobre a distiibuição geral do gênero humano, e em comprovar sua tese movimento iluminista. A vontade de verdade se apresenta ao
tanto quanto o possa ser a mais segura das verdades filosóficas.9 mesmo temeo, eortantÓ, como vontade de tran,fo cmaçãá sociaL
motivada pelo desejo de afirmar o.direito de cada povo a definir
Rejeitar a crença na origem divina da linguagem implica
sua própria constituição política, moral e cultura_L
necessariamente em questionar a concepção de filosofia como
281 Nacionalis1no Literário Nacionalismo Literário 285

Essa dupla vontade vai se manifestar também na Revolução tações do entusiasmo progressista. Despertado pelo processo que
Francesa. Nela se encontram intrinsecamente vinculados a luta contra culmina com a fundação do Estado-Nação francês, tornou-se desde
o obscurantismo e contra o absolutismo, o empenho progressista e o então, e até nossos dias, um poderoso fator de mobilização da vida
democratizante. Deles resulta a primeira forma de organização social social. Em função dele não cessam de se organizar propostas e análises
moderna - a nação constituída por um: povo soberano, capaz de as mais diversas, que se propõem a 1·etomar, relativizai· ou mesmo
formular suas próprias leis, consciente de sua especificidade e inde­ contradizer as idéias e atitudes que lhe servi1-am de motivação inicial.
pendência, disposto a preservá-las e fortaleçê-las. Seus artíGces a viam Sempre em nome da necessidade de reafirmar a identidade e a
autonomia de cada grupo social, ele tem funcionado como ideologia

1
como condição tanto para a realização individual quanto para o
desenvolvimento da humanidade. Pois ela estabeleceria padrões ra­ ufanista ou realista, conservadora ou revolucionária, provocando e
cionais, produtivos e hannoniosos para a integração dos membros de direcionando a ação e a reflexão individuais e coletivas.
cada sociedade e para as relações cosmopolitas. .. Quando se baseia na compreensão da nacionalidade como
Para Kant, no entanto, o valor histórico da Revolução e do unidade política e territorial passível de ser construída, o naciona­
Iluminismo não reside neles mesmos enquanto acontecimentos lismo estimula guerras de conquista e justifica a militarização qas
concretos e datados. Não deve ser procurado nem no processo que sociedades. Assim ocorreu na França pós-revolucionária, como
os deflagrou nem em seus resultados imediatos, no sucesso ou atestam o poder e o prestígio de Napoleão e o apoio do povo
fracasso de suas propostas. Pois o que importa, segundo ele, é o francês a seu projeto de dominação e anexação de toda a Europa.
entusiasmo que esses acontecimentos são capazes de provocar 1!-U r$!ação a esse projeto revela uma outra forma de convicç�
mesmo em quem não os viveu diretamente; naqueles que, em sua nacionalista, ue enfatizava a unidade étnica decorren
época, os contemplarnm à distância e naqueles que até hoje os tiva e so I a interação de aspectos físicos, biológicos e culturais.
recordam. Nesse sentido é que não cessariam de se manifestar NCla se baseou o nacionalismo alemão, tributário da filosofia
como signos da disposição humana para o progresso, comprovada herderiana e responsável pelas principais diretrizes da produção
pelo constante e renovado interesse na conjunção de vontade de cultural oitocentista.
verdade e vontade de revolução que representaram pioneiramente. 11 De todo- modo, a necessidade de fundamentar o· empenho
Adotando a visão kantiana, podemos perceber que esse entu­ nacionalista, por meio de um discurso lógico e persuasivo que
siasmo e esse interesse se desdobram ao longo do século XIX, promovesse a mobilização e a coesão sociais, obrigou ao levanta­
conduzindo tanto à radicalização quanto ao questionamento dos mento de dados cuja sistematização contribuiu para o desenvolvi­
discursos e práticas setecentistas. Entre seus efeitos se alinham, de mento das ciências humanas. O interesse em estabelecer afinidades
um lado, o incremento da produção científica e o aprofundam�nto e diferenças de ordem climáti€ racial, hngiiíst1cae cornportãmen­
da perspectiva histórica; a consolidação da sociedade burguesa, a tal estimulou os estudos geog1-aficos, antropológicos, psicológicos
irradiação do pensamento liberal e a proliferação de movimentos e arque0log1cos, ãrr'lphando assun tambem o alcance da pesquisa
por autonomia nacional. De outro lado, a eles podem ser atribuídas füstórica. Essa mesma nec�ssidade provocou ainda o redimensi_o­
também a crítica aos excessos racionalistas do Iluminismo e a namento da produção artística, prestigiada como uma das mais
valorização da emoti v:idade e da imaginação; a denúnica dos des­ altas formas de expressão da nacionalidade. Imbuída dessa caráter,
vios do processo revolucionário francês, a desconfiança dos ideais ela se propõe ao resgate da tradição em que identifica sua origem,
burgueses de progresso e a vontade de resgatar no passado valores transformando-a em tema prioritário e em fonte inesgotável de
em nome deles esquecidos; a problematização da ideologia liberal recursos formais e expressivos.
e a formulação de propostas utópicas e científicas de socialismo. Tal proposta vai se concretizar de várias maneiras, segundo a
Nesse contexto de intensa fermentação intelectual e política, idéia que cada povo faz de sua identidade e a tendência estética e
o nacionalismo aparece como uma das mais importantes manifes- ideológica de cada artista. A essas variantes se somam as decorren-

;
,1

·1

286 Nacionalismo Literário


. Nacionalismo Literá1io 287
tes do dinamismo intrínseco a toda vida social, compondo o
complexo quadro de práticas e valores que o nacionalismo gera no cionou como lastro histórico e cultural para a aspiração à inde­
campo da arte, como no da ciência, da filosofia e da política. Em pendência política e para a fé num futuro promissor. O mesmo
face de tal complexidade, e tendo em vista os limites deste ensaio, significado será atribuído mais adiante ao sertanejo e ao caboclo,
devemos nos contentar com a apresentação_ de alguns dados inevi­ frutos de uma mestiçagem que vai ser compreendida como atuali­
tavelmente su_mários e simplistas, que devem ser encarados como zação da herança indígena original. Desta viria a força que a
indicações a uma análise mais ampla e acurada. tornaria capaz de assimilar apenas o melhor da civilização euro­
Na literatura alemã, o resgate das origens genuinamente na­ péia, equipar-se.a ela e garantir um lugar e uma função específicos
cionais teve como principal marca a valorização da vitalidade no processo ·mundial de modernização. A caracterização ufanista
espontânea própria à _tradição folclól"ica; contraposta ao dogmatis­ dessa genealogia dará por muito tempo o tom dominante de nossa
mo u'niversalista do racionalismo clássico. Entre seus efeitos mais literatura, estabelecendo afinidades entre o historicismo românti­
p·1·odutivos, pode-se ressaltar a redesco_berta dos_contos de fadas co e o realismo. sociológico postulad9 desde meados do século XIX
empreendida pelos irmãos Grimm e motivada pela crença no valor até os anos 30 deste século. No entanto, já a partir de 1922 o
cognitivo da linguagem imaginária e onírica. Ou ·o aproveitamento movimento moden1ista proporá a revisão dessa mitologia e a
dos "lieds" populares como modelo orientador da renovação da compreensão crítica da história nacional.
poesia lírica, que se torna ao mesmo tempo mais expressiva e Embora sumários, esses dados evidenciam tanto a persistência
musical, mais simples e flexível. Já na literatura francesa, foi deter­ do nacionalismo quanto a pluralidade de seus efeitos na prática
minante a vontade de retomar a herança revolucionária do racio­ literária. A complexidade desse quadro aumenta ainda mais quan­
nalismo setecentista, que direcionou-a para o radicalismo político. do nos damos conta que, na condição de princípio de produção
O interesse pelo popular.adquire uma conotação social e utópica - discursiva, o nacionalismo tem sempre um estatuto ambíguo.
bem distinta da folclórica alemã - exemplarmente representada Como toda forma de linguagem, ao mesmo tempo permite e
na obra de Victor Hugo. obriga a dizei·, cria possibilidades e estabelece códigos, institucio­
Na Inglaterra, o nacionalismo literário foi fundamental para a nalizando mecanismos de organização e exclusão. Segundo Fou­
legitimação de uma nova forma de narrativa, o romance histórico. cault, estes servem à sublimação das vontades arbitrárias que
Tal como de início formulado por Walter Scott, ele representou motivam qualquer discurso e ao controle das transformações a que
uma manifestação conservadora e elitista de vínculo com a tradi­ ele se abre e podem lhe alterar a forma, o sentido e as condições
ção, voltada para a idealização da sociedade senhorial inglesa da de uso e circulação. 12
Idade Média. Nos Estados Unidos, o romance histórico s�rviu a De fato, a legitimação de formas e valores nacionais repre­
desígnios bem diversos.James Cooper instituiu-o como instrumen­ sentou um desafio ao etnocentrismo subjacente à convenção uni­
to de representação da identidade nacional americana, compreen­ versalista e rompeu com a uniformidade e o imobilismo em nome
dida como produto da integrnção harmoniosa e profícua de índios dela justificados. Conduziu ·a uma fecunda interação da herança
e pioneiros - irmanados na condição de signos de valores ideais e clássica com as mais diversas tradições culturais, contribuiu para a
antagônicos aos de toda civilização moderna e urbana. Seu "india­ superação de barreiras entre o erudito e o popular e impôs ao
nismo" é portanto totalmente distinto daquele que será mais tarde racionalismo o convívio com formas intuitivas e. mágicas de repre­
uma das principais diretrizes do romance histórico definido em sentação da realidade. No limite, referendou a importância atribuí­
função do empenho nacionalista de.escritores latino-americanos, da pelo romantismo à imaginação subjetiva, que passa a ser
como os brasileiros. compreendida como instrumentos de combate à uniformização
Estes transformaram o indígena em signo de uma genealogia racionalista e como veículo de expressão espontânea e autêntica
autóctone, autôno �a e oposta à européia colonizadora, que fun- de cada nacionalidade. Desse modo, estimula a renovação formal
ao mesmo tempo em que reafirma a função coletiva da literatura,
288 Nacionalismo Literá1·io 289
· Nacionalismo Literá1io

cuja produção e recepção passam a ser orientadas por uma pers­ de. Nfas essa sistematização vai obedecer a uma lógica causal e
pectiva histórica. Escritores e leitores nela vêem um importante. determinista que privilegia dados de ordem climática e étnica, em
agente de recuperação e atualização dàs diferentes tradições cultu­ detrimento dos especificamente literários. Estes só são levados em
rais, dotado de dinamismo intrinsecamente estético e capaz de conta na medida em que corroboram os primeiros e contribuem
contribuir para a mobilização da vida social. para consolidar uma representação unívoca e estável de cada
No entanto, o mesmo empenho responsável pela legitimação tradição cultural. São excluídas ou têm minimizado seu valor todas
de novos procedimentos vai manifestar-se também como crença as obras que não seguem à risca os padrões considerados -
enrijecida e autoritária e os transforma em parâmetros normativos legítimos e naturais marcas de filiação.
e excludentes. A exigência de vínculo com uma realidade nacional De tal lógica decorre ainda·a fragmentação dos estudos literá­
apr_ioristicamente col)stituída implica na retomada da velha con­ rios em áreas estanques, correspondentes a cada nacionalidade,
. cepção mimética e condiciona a escolha de formas e temas literá- como se observa ainda hoje em nossas universidades. O determi­
rios. A rejeição do universalismo clássico· justifica o culto ao nismo positivista se alia à tendência à especialização - elementos­
espontaneísmo sentimentalista e ao primitivismo folclórico. O chaves para a constituição da ideologia cientificista - de modo a
interesse pelas origens generaliza-se como evocação nostálgica do institucionalizar uma concepção idealizada e imobilista de identi­
passado, representação épica de situações e personagens, descrição dade nacional. Privilegiando o ·contexto físico e social de sua
exótica ou bucólica da terra natal, idealização estereotipada da produção, predetermina-se então o "verdadeiro" significado dos
cultura popular. A essa circunscrição da linguagem vai correspon­ discursos literários, circunscreve-se o movimento de sua circulação
der a cristalização de uma imagem da nacionalidade que sublima e recepção, desqualificam-se as possibilidades de articulação inter­
diferenças e conflitos. internos, estigmatiza relações externas e textual e intercultural.
alimenta o maniqueísmo e a xenofobia. A pluralidade e a ambigüidade dos efeitos do nacionalismo
Em princípio altamente fecunda, a relação entre literatura e podem ser facilment� constatadas mediante a observação do pro­
história acaba tornando a ambas prisioneiras de um discurso que cesso de formação da literatura brasileira, em que desempenhou
exorciza a dinâmica histórica, na medida em que se propõe a um papel fundamental. Foi em torno de sua bandeira que se
representar uma essência e uma origem nacionais infensas a qual­ organizou o movimento romântico, responsável pela consolidação
quer perigo de contaminação ou ruptura e aptas a garantir uma de nossa atividade literária, seja no âmbito da criação, seja no da
evolução inexoravelmente contínua e harmoniosa. A produtivida­ crítica e da historiografia. Compreendida então como importante
de literária é ameaçada pelo atrelamento a uma "natureza" histó­ agente na luta por autonomia política e cultural, ela se direcionou
rica que ela expressa e formaliza, contribui para legitimar e, em para a definição e a valorização de uma realidade especificamene
troca, lhe coibe a autonomia e a renovação estéticas. Reciproca­ brasileira, empenhando-se na construção de uma linguagem distin­
mente, o processo histórico é esvaziado por uma forma de repre­ ta da européia na sonoridade, no ritmo, na seleção vocabular e
sentação estetizante que nele se fundamenta e, em troca, anula seu temática. A necessidade de fundamentar esse empenho estimulou
potencial crítico e transformador. o interesse pelo passado e o resgate de autores que passarnm a ser
Os efeitos negativos dessa relação podem ser observados ao considerados fundadores de nossa tradição literária. Assim ocor­
longo do processo pelo qual a literatura é transformada em objeto reu, por exemplo, com Gregório de Matos e Basílio da Gama, cujas
de uma disciplina científica, a Hislóri.a da Literalum.Já vimos que, obras, em detrimento de diferenças significativas, adquiriram o
de início, a perspectiva nacionalista conduz à substituição da mera estatuto comum de manifestações exemplares do sentimento nati­
enumeração cronológica de obras-primas de valor exemplar e vista que anunciaPia a consciência da nacionalidade.
atemporal pela sistematização de práticas e valores literários dife­ A partir dessas diretrizes foram lançadas as bases de nossa
renciados, próprios às várias etapas de formação de cada socieda- produção romancesca, desde então predominantemente voltada
Nacionalismo Literário 291
290 Nacionalismo Literário
e comportament o atribu ída aos "an tepassa _ dos" ind ígenas , nem
para a representação de uma genealogi a, caráter e natureza brasi­ com a concepção de ide ntidade naci o n a l co mo res ultado da ev o­
leiros. De início con figurada através do romance indianista deJos lução con tínua e harmon iosa dessa or ig e m.
é l-
de Ale ncar, essa orientação será continuamente retomada nas Na ver dade, tal co ncepção rep resenta uma tenta tiva de reca
t d s me a i m s da
car a força com que se impu seram
o os c n s o
diferentes form as de region al ismo que tendem a dominar nossa o
s e
ficção narrativa pe lo menos até os anos 40 deste século. Do mesmo empresa colonizadora e evitar o enfrentamento dos inevitávei
a t ntativa se rev l m lo­
constantes conflito s d aí decorrentes. Es s e e a a
modo, a produção lírica se bene ficiou da proposta r o mân tica , que
i t ment , c m s mp ,
lhe . atribuiu a função de representar os vínculos entre in�livíduo e grada , pois o recalcado retorna inconsc en e e o o e re

através do ·própri o d iscurso que pre t end e n e gá-l o , t o rnand o - o


n aciona lid ade. Es tes gan haram a forma de ev
ocação no stálgica da a­
terra natal meton imicamen te associada à infânci a individual e ao in trinsecamente contraditório. De fato, nossa literatura "autentic
mente" nacional e nacionalista se alimenta d e um id e ári o filo sófic o
pas.sado coletivo - espaço e tempo em que se estabeleciam em su
ngu p rtug e d
e p olítico alemão e francê s, se serve da lí
a a o uesa e
. plenitude laços simultaneamente afetivos e cultura is,. fundindo as
c m m c
formas cunhadas pelo romantism o eur op eu,
e
idé ias de família e de pátria. ·· · · o o o ro an
ir , m ld - v l ­
histórico. Na construção da genealo gia brasile a o a se a a o
Essa íntima conexão entre literatura e nacion alis mo foi, p or
propõe a r g t i·. A vid
res estranhos à cultura autócto ne que se
es a a a
um lado, bas ta n te produtiva. O desafio de represen tar uma reali­
dade natural e cultural quase totalme nte desconhecida estimulou social do i ndíg ena é repre s en ta d a c omo um a organiza ção hierar­
quizante submetida ao co ntrole aristocrático de reis, príncipes
e
a imaginaçã o e ao m esmo tempo levo u-a a a tuar co
m o sucedâneo ização, a célul famil r
sábios sacerdotes. Na b ase dess a organ
a ia
e complemento do conhecimen to científico, aqui ainda incipien­
longo da evoluç ã d
assume a mes ma imp ortâ ncia adquirida ao
o a
_te.13 A preocupação em coletar e interpretar dados relativ os à
cid tal, paut d - p p incípi os como os da mo­
língua e aos costumes, à geografia, fauna e flora brasileir os não só civiliz ação o en an o se or r

enriquece u e renovo u a lingu agem, como t ambém


possibilitou sua nogamia, fidelidade, virgindade e recato femininos. S�o convenien­
serem
identificação com a rusticidade característica de nossa vida social. temen te "esquecidas" todas as práticas impossíveis de
mplo, a
Assim, o escritor se i nseria melhor em seu meio, as obras circula­ compreendidas pela mentalidade civilizada, como, por exe
vam mais amplamente, co nsolidava-se um público consci ente do antrop ofagia.
s ignificado da prática contínua de escritura e de lei tura. Aquelas que escapam ao crivo da censura recebem um trata-
o de
Mas a ca da um desses aspectos positivos vai corresponder um mento estético que lhes res salta o car áter exótico, a nálogo a
c t dit i m nt , a ex ltação ufanis ­
outro que lhe é oposto , na medida em que o na cionali smo vai natureza tropical. De novo on ra or a e e a

ta vai corresponder à s expecta tivas que o etn o c e nt r i s m o imp unha


perdendo o caráter combativo e inovador para cristalizar-se em
das
ideo logia estética e po lítica. 14 O esforço de identificar e valorizar ao ol har europeu. Este er a incapaz de perceber a alteridade
id ntifica prátic e val res
sociedadas ditas primitivas e de nelas
e r as o
n ossas raízes e especificidades transforma-se em pretexto para a
qüênc ia, con si­
institucionalização de um discurso idealizante e ufanista que sublima tão lógicos e produtivos quanto·os seus. Em conse
çã de uma­
derava-as apenas enquanto signo de ausência ou neg a o h
diferenças e problemas, desestimulando todo movimento crítico e
u er p arâmetro raci onal,
criativo. C onfund ü1 d<? autenticidade com exotismo, espontaneida­ nidade - diferença irred utível a qualq
mpenho
de com sentim entalis mo a literatura vai se pautar pela ênfase digna somen te de despertar curiosidade ou suscitar o e
vai ser
plá stica e expressiva n a descrição de paisagens e costumes conside­ civilizado r. Como por iro nia, é essa mesma imagem que
r toma-
veiculada pelo nacion alismo romântico, freqüentement e e
rad os típicos. Desse modo se configuram o cenário e o figurino
perfeitamen te adequados a uma representação genealógica em do até os dias de hoj e . 15
rária
· q ue a entr onização do
índ io correspondia ao recalque da herança No entanto, me sm o em pleno século XIX, a atividade lite
t f cun-
vai poder se beneficiar, embora em momentos raramen
e e
genética e cultural dos negros africanos. E isso porque a escravidão
a que foram relegados não co ndizia nem com a nobreza de estirpe
293
292 Nacionalismo Literário Nacionalis1110 Literá1io
e ag ressiva na
sce Moa­
imu lta ame n te a moro sá
dos, da t e matiz ação do c on flito e ela i n tegração de realidad es D essa relação s ne
ou t ro a contin
uidade
um lad a m or te da mãe, d e
cir , qu e acarret a de cristãos, recebe "o
o
culturai s diversas. É o que ocorre com a o bra íiccion ::tl e crítica de ndo os rituais
B tiza d gu .w
ela estirpe pate rna. rei, a quem ia servir''
o se
José de Al e ncar, durante muito t empo i ndevi da m ente apropriada a
d i a e o do
cujo era q
dndo a ele pela mãe,
o
pela crítica de e xtração ro mântica como modelo do nacio nalismo nome do santo e ue
ome de início
simplis t a a que nos 1·efe dmos. A lei turn d e Iracema, por exemp lo, Sintomaticamente, o n s frim en to", tra ns
21 for ma-s e a pe nas cm
d meu
predestinação de uma
o
com certeza sua criação mais famosa e popul ar, revela umá visão signi Gcava "nas
cido o
rige m civil za da. "Hav ia aí a
de o cearense e b1-asilei­
i
bem proble matizante da cultura bra sileira, alegorizada atra vé s d e um aposto aos d or. P rimeiro
insi nu arra ti­
raça?" ,<n pergunta
n
o de u ma mes
a o
a pa rentemen te ingênua históri a de amor entre uma índ i a e u m
e
sa id ntida de cultural, frut
resc n t.'\ n e
p rod utiva . Nela
r o, M oacir rep
os
hom em branco. Já na "Carta ao D r. Jagua ribe ", anexada com o
e lhe ca be contin uar
, con solidar e tornar s e européia ,
posfácio à na rra tiva, Alenc a r a de fine como um ensaio e m qu e çage m q u
as hernnças indíg ena
em �1a m onia e con flito
r ea liza suas id éias sobre a litera t ura n aciona l, enumerando argu­ conv iv em r
ização.
o apelo da civil
mentos re la tivos a gênero e e sti lo, oscilando en tre as diver sas a saúdade da floresta e colocado por Alencar
cm seus
hibr i i m é explici tamente era
vanta gens oferecidas pel a prosa e pela poesi a clás sicas, ao lado da s Es se d s o
"Carcas sobre a Con fe d ção dos
rn crít c s, c m o a s famosas es d Maga­
deco rrentes do con he cime n to da lín gua indígena . textos ema de G onçalv
i o o e
2
esc it a propósito do po alha com
Paradoxalmente, portanto, é apen as mediante um complexo Ta mo io s" , � r as
or como aquele
q ue trab
P ra c m çar, define o escrit deve est á-la
proces so de reflexão e ela boração que o escritor consegue forjar sua _ \hães. a o e
al e por isso
ud
c mpri r uma a lta misssão soci c m a
"lenda do Cea rá", ilustração da terra natal "na rude toada de seus a
a pa lavr .e.1 ara u
o, critica o d
es cas o o
Em Maga lhã es, ao conu-ári s mp
antigos filhos" - conforme é a presentada Iracema n o "Prológo da a fund o:· te de uma vis ão i lista
tural e estil ística, decorren
primeira edição ". 17 Ainda n o mes mo prólogo, Alen car aponta para organ ização estru oduç de pa lav ras e costumes
io - mera repr
ão
os efeitos que essa forma de ela boração p ode provocar n o momento de nacio lism lite rár simultanea mente
o, o poeta só akançatia
na o

indígenas. Em sua opiniã


25
da recepção da obra. Pois se a vontade de identificação com a terra a, c1iando
esentação da saga india ist
n
natal e com a rude simplicidade de seus ha bitantes o faz su por possível b l za e tét ica e a perfeita repr fendesse
a e e s
teratura:nacional, se nã o o
o estabelecimento da "intimidade e aconchego da família" com os um v rd ad eiro exemplo de li
as m a eortuguesa, e se seguiss
si e e o
futuros leitor es, a con sciência de haver escrito na corte, distanc iado e d çu ra de r,ossa língua",
"a eu fon ia o
ica (grifo nosso).26
física e espiritua lmente do "hálito vital" da pátria, o leva a temer que modelo da epopéia-cláss pi ração n acionali sta, d e
s-
o livro seja be m recebid o, mas como "estra n geiro e hóspede".
18
ca tar a im p ortância da i ns
· Sem d es r
i leira , e da b usca
m
de u a
Embora escrito "pa ra ser lido lá, na varanda da casa rústica ou c nta to c m a na tur eza bras
pertada pe l o o o
e lha liter atur a
de um
gin al, "n un ca sonh ada p ela v
n a fresca sombra do po ma r, a o doce emba lo d a re de ", p or e xalar harmonia or i
27
nc ar r e ssal ta o ca ráte
r exemp lar da p oe sia d e
o mes mo aroma silvest re da vár zea, provocado p e la i n spiração vel ho mu nd o" , Al e
:
pa triótica , 19 el e ao mesmo tempo question a a concepção id q ica de Cha teubriand e H omer o
Milton, Ca mõe s, Ossian,
nacion alidade, tematizando a violência do conflito en tre c ol oni za­ galhães ,
como Chateubri:md, o Sr. Mar de sua
dos e colonizadore s. Re presen ta n do a pur eza, beleza e fecun di da­ Como Milton, como Os sian, brigado a for ma
a
de d a natureza tropical e da gen ealogia in dígen a, Ir .cerna n ã o por escr evendo um
poem a n acional, estava o a par des sas im ::1gens
e pudes e figura r
heroína uma mulher quconserva, de sde a Vênus de Milo e a He lena
s
r
a ca s o é mu l her , f ági l e i n defesa. Suas qua lidad es seduz em o
estran g eiro, despertando-lhe tanto a admiração quanto o desejo de preciosas que a literatura a de Ra fael e a Armida do Tasso. [ ...}
p osse. Já' Martim, re pres entando o con qui stador português é ho­ dos Grego s, até a Fornarin s não teve pretensões de fazer u ma Ilíada
mem., forte, g uerreiro. Sua capacidade de se d ução, bem opo sta à Be m sei que o Sr. Magalhãeas que m não é Homero deve ao m eno s
ou Odisséia ame
ricana; m ,
d e Iracema, nel a desperta a von tade de s ubmiss ão, a corag em de r os s tres; quem não
é capaz de criar u m poema
procurar im it a me
ema algu ma coisa .
28
aba nd on ar teri-a, família e co stume s. deve ao m eno s cria i· no po

"

294 NacionaUsmo Literário
Nacionalismo Literário 295
O que falla em Magalhães, Alencar vai encontrar jus tamente
o séc ulo XIX, radicaliz
ou a crítica
cm Alvarenga Peixo to e Basílio da Gama que, apesar de te rem Romero que, ainda em meados d iz positivis­
�ciado pelas diretr es
vivido no te mpo da s musas e do!i s átiros, so b a orientação u niver­ ao dogmatismo romântico. Infl ue ória da
-se a escrever sua Hist
salis ta n eocláss ica, tinham, segundo ele, mais vigor, e xpres sividade tas do pensamento33 europeu , propôs m g ito de
a de pr otesto, "u r
e compreensã o da vida selvagem.29 Essa avaliaçã o, que aponta para literatura brasileira como uma form d dizer
o pelo "imperioso dever
e
a superação da dicotomia entre tradição e o dgi nalidade, clas sicis­ alarma de são brasilei,·ismo", pautad
is e m sua opin ião o Roman smo ti
m o e roman_tismo, universalidade e particularidade, racionali smo toda a verdade a nosso pov o ":" P o e nossas
obsc u recer o es tudo d
e expre ss ividade, vai ser retomada e desenvolvida por Machad o de tivera "o p�·estíg io de falsificar e de nos sa
Assis. Gra n de mestre da fic ção roma nesc a, refe rência ce nti;al de origens , e acu m u lar tre
vas sobre os três primeiros séculos
se procu­
o caráter nacional não
existência". C onsiderand o que "
35
noss a hi stória literária, ele também questio nou a radicalizaçã o
sce esp ontaneamente,
bebe-se
maniq ueísta n o tratamento da q uestão nacio nal. ra, n ão se inventa, não se escolhe; na 6
ite, como
o ar da pátria" ,s adm
Em seu cláss ico "Instint o de nacionalidade ",'° Maçhad o iden­ com o l eite da vida, respira-se n eras
nifestar-se através d e inúm
tiCica este traço caracte rí stico da literat ura brasile ira contemporâ­ Machado , que ele p ode e deve ma
as particulares e universais.
nea, co nsideran do-o "sinto ma de vitalidade e abon o de futuro ".31 formas e estilos, no en foque de tem
ficialismo de uma genea­
Mas também d enuncia os equívoc os a que tal in stinto pode se Tal convicção· leva-o a recusai· o arti
lizada, a ela contrapondo a
prestar: o exc lusivis mo da temática indianista, a discriminaçã o de lo gia in dígena arbitrariamente idea
iam presidido nossa formação
poetas neoclássi cos c omo To más Antoni o Go nzaga, o excessivo complexidade dos fatores que ter erária
da na p ersonalidade lit
apego à descrição da naturza e dos costumes brasileiros, e m cultural, exemplarme nte r epresenta ileira
o , sua mel ho r e mais bras
detrime nto da análise psico lógi ca e social. Para ele, assim como a de Gonçalves Dias. Segundo o crític
livre da coerção do indianismo,
vida in díge.na é u m lcgaçlo tão brasileir o quant o universal, a fonte poesia seriaj us tamente aquela que,
ção da expansibilidade herdada com
o
de inspiraçã o de nos sos escritores deve ser buscada tanto nela se constituiria pela il)tera d
ancolia devia a s ang u e in d íg e na; o
sangu e africano; da mel
o
quanto em hábit os civilizados , sem polarizações simplistas. O sen­
ima gina ç e co r ren­
ener gia ão d
bom-se nso, clareza, religiosidade ,
e
timento nacionalista, asseve ra ele, não deve j ustificar o estabeleci­
ue a. A esses dado s de o rigem gen
ética,
mento de doutrinas absolutas que empobreçam nossa literatura. tes da ascendên ci a p ortug s
nientes da vivência do p oe ta: a s imp ress ões
�into ma da falta de refl exão crítica sobre ··questõe s estéticas e se a s sociariam os prove
p ela natureza tr pica l; as c e nas
de l uz, cor e movimento forne cidas
o
históricas, es se absolutismo deve dar lugar à vivência concreta -
r za a vi da
Portu gal; a natu e e
afetiva e intelectual - da complexa re alidade dó país marítimas da primeira viagem a m d rn ,
provin ciana da metrópole ; a leitu ra de poemas latinos e o e os
37
ol oniais.
O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimen­ o estudo das c rônicas c
se r essente do excessiv
o
to íntimo, que o torne home111 de seu tempo e do seu país, ainda que Essa perspectiva crítica sem dúvida t rmi ­
ctet'ização de cada raça e do caráte r de e
não trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Um notável
esque matis mo na cara s
tida a
cdtico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson, a - r esultantes da adesão irrefle
o
nis ta atri bu ído à gen étic
um
com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão oca. 38 A isso se acr esce
sem falar de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra padrõe s cientifici stas vigentes na ép m
evidente racismo, também
afim c om teo r-i"as científicas então e
do cardo, e explicava o dilo· acrescentando que havia nele um perioridade da etnia ariana e
scottiâsm.o inlcrior, diverso e melhor do que se fora apenas superfi­ \'oga, que leva Sílvio a defender a su moramento da
o fundamental ao apri
cial.32 a considerar sua co ntr ibuiçã or­
nte, foi de extrema imp
raça e da cultura nacionais. Não obstaa
59

flácia da pureza étnic a do


D epois de Alencar e Machado , a outra grande contribu ição tância para o d es mascaramen to da africa­
o do peso da influência
para o redime nsi onamento do nacion alismo literário foi a de Sílvio dis c urso i ndianista, a conscientizaçã de n ssa cultura,
cará ter mest iço o
na e, finalmente, a compreensão do (•
296
Nacionali.smo Literário
Nacionalismo Literário 297
no fruto da r elação co
nflitante mas produti
o civiliz<1;do, o
popular e o erudito, o va entre o primitivo e
colonizado e o col oniz conceito de literatu,ra brasileira supõe necessariamene um valor
Essa importância pode ador. 40
ser melhor aferida se n sociopolítico que não pode nem deve ser ignorado. Daí se dedica r
da contínua validad os da mos conta
e at,-ibuída à concep à anál ise d o processo ao longo d o qual esse valo r foi e continua
retomada para reafirm ção romântica, até ho
ai· um nacionalismo id je sendo definido e redefinido. O rientado pela convicção de que todo
Ela se rve de base, po ealista e conservador.
r exemplo, à tes
e defendida em pleno _ discur so é ideológico·15 e de que "a contradição é o nervo da vida" ,46
60 deste século por Afr s anos
ânio Coutinho, um de Candido vai rejeitar a concepção naturalizante e homogenizadora
tes professores e histo nossos mais influen­
riadores. Segundo ele de nacionalidade. E considerar que nossa lite ratura só pôde se
autonomia da liter:atur , a especificidade e a
a brasileira afirmar-se constituir à medida em que foram se constituindo também uma
de �atos até nossos dia -ia m, desde Gregório
s, como uma tradição afo vontade e uma consciência de identidade nacional que mob iliza­
conflitos e .rupturas, rtunada, 41 imune a
co ns olidada pela inten ram escritor es e públicos em torno de uma atividade literária
gradativas de um. me sifi cação e evolução
smo e unívo co "espíri brasileira.'17 Dissociada da mera inserção geográfica de autores e
sua vez, manifestar to ·nacional". Este, po
-se-ia espontaneament r obras ou de sua su bmissão a temas predefinidos como genuina­
indíviduo qu_e vivesse e em todo e qualque
�rri contato com nossa r mente nacionais, essa atividade seria tributária de todo um movi­
diferença geográfica e natural e indiscu tível
climática. Assim, desd mento esboça do apenas a panir do século XVIII e consolidado com
to em que aqui se ins e o primeiro momen­
talou, o col onizador o empenho autonomista do R omantismo.
u in processo
de obnubilação, isto é, p ortuguês teria
s o frido
de total esquecimento C omp1·eendida assim c omo produto de uma atividade sistemá­
valores e práticas de de seus
origem.'12 Transformou tica, a literatura brasileira deixa de incluir a produção de épocas
. sem nenhuma dificu -se então de imediato
ldade ou trauma, em , anteriores, como a de Gregório de Matos. Candido a define como
a uma nova situ ação brasileiro, dando início
. histórica, da qu al simples manifestação literária, não originada de uma consciência
cultura. brotou J ogo uma n ova
nacional, independente de uma prática contínua de escritura e
· Tais idéias, q ue o A
utor pretende ise
ntar de conotação soci leitura e, por isso , incapaz de influir na formação de uma tradição
lógica deformante, e o­
p or isso fiéis à realida 1.1terana
' . 18. E'm contrapart1'd a, resgata o pape1 exerci'd.o nessa 1.orma-
e
verdade, pressupostos de brasileira,13 têm, na
e implicações bastante ção pela produção neoclássica, c9nvencionalmente tida como
ção mer amente geogT discutíveis. A defini­
áfica de nacionalidade mera r�produção alienada de formas e valores culturais eur opeus.
nat uralizá-la e h omo trai a necessidade de
geneizá-la, mediante Lembrando a função aglutinadorn das academias e sociedades
óbvias determin ações a sublimação de suas
sociais e p olíticas, de literária s entã o fundadas e a intensa atuação pedagógica e política
m_ultiplicidade de mod sua historicidade, da
os p or q ue se
apre sent de seu s escrito1·es, Candido vai também identificar na imagem do
temente redutora, tem a. Tal opçã o, eviden­
a duvidosa vantagem pastor arcádico uma importante precur sora do índio romântic o.49
crítico a ide ntificação de possjbilitar ao
c om expectativas ins Atento para o valor contraditório de toda prática cultural,
comum. Com ela torn titucionais e do senso
am-se in-pertinentes a considern que a poesia pastoril, j ustamente por representai· um
) significado de liter p roblematização do
atura b rasileira - que esforço de atu alização d9 racionalismo clássico, co ntribuiu para a
a literatu ra produzida pass a a ser simplesmente
no Brasil4� -, e das adequação da ling uagem literária à realidade rústica do Brasil
contraditórias formas diversas e às• vezes
de nacionalismo literári col onial. A preocu paçã o com a simplicidade e a clareza, segundo
frentamento do espinh o, bem com o o
oso problema da depe en­ ele, vai den otar a p1·esença de um "sentimento d o interlocutor" 50
A vertente polêmica·e de nd ência cultural.
smistificadora aberta pe e ainda frear de antemão os excessos sentimentais e exotizantes do
Sílvio Romero só vai ser la reflexão de
aprofu ndada a partir d Romantismo,51 ab1·inclo o caminho que permitiria à nossa literatura
e historiográfico de An o tr abalh o c r ític
tonio Candido. Contem o integrar-se ao quadro ela cu l.tura ocidental. Essa dialética e ntre o
Cou tinho, ele pane no por âneo de Afrânio
entanto de uma p1·emiss universal e o p:1rticula1·, o racional e o expressivo , o clássico e o
a antagônica: o
1·omântico - ressaltacfa já na célebre autodefinição de Mário de
298 Nacuma.lismo Literário
Nacionalismo Literário 299
Andrade, "um tupi tangendo um a laúde" - se associa, na.persp ec­
tiva de Candido, àquela que pr eside as re lações de troca e d epen- uma inserção social conservado ra ou progressi sta. Tal tentativa,
dência cultural. por sua vez, é orientada pela necessidade de definir uma metodo­
Rej eitando tant o a cre11ça ideali s ta em uma identidade nacio­ lo gia que procur e "apreend er o fenômen o literário
da maneira
na l abso lutamente autônoma quanto sua inversão simétrica, que mai s significativa e completa possível, não só averiguando o sentido
afirma a inevitabilidade e a c onveniência de nossa submi ssão ao s de um contexto cultural, mas procurando estudar cada autor na
desígnios colonizado 1·es. Candido vai nestes identificar uma função sua integr idade estética".
53

ao mesmo tempo 1·epre ssiva e produtiva. E enfatizar o <f,uplo gume Demonstrando, desse m odo, consciência dos desvio s a que foi
que m obi liza e dire ci ona o processo de nossa formação literária e levada a crítica literária cm função da polariz ação dogmática entre
cultur al, semelhante a o de todas as outras nações americanas : formalismo e hi sto rici smo,!><! o Autor vai inv estigar as relações entre
litc1·atura e i dentidade nacional de m o do a ressaltar ao mesmo
Para o histori ador, o aspec to mais in ter essant e.d a lit eratura no s países tempo a especificidade estética de cada obr a ou co rtjunto de obras
da Améric a é a adapt ação do s padrões estéúc o s e int electuais da e seu vínculo co m a realidade histórica :
Europa às condições físicas e sociais do N ovo Mundo, por intermédio
do processo co l o nizad o r, de que é um episódio.
N o s nossos dias, pa1·ece transpo sto o perigo de submissão ao estudo
A ess e respeito co mecemos por dizer que cm sua formação as nossas do s fato res básicos, sociais e psíquico s. (...] H oje, o perigo vem do
literaturas são essencialmente ew·opéias, na medida em que c onti­ lado o posto ; das pretensões excessivas do formalismo , que importam,
nuam a pe squisa da alma e da sociedade definida na tradição das no s casos extremos, em reduzir a o bra a problemas de linguagem,
metrópo les. seja no sentido amplo da comunicação simbólica, seja n o estrito
[ ... ] sentido da língua.[...] A crítica dos séculos XIX e XX constitui uma
Mas, de o u tro lado , este tipo de liter atura ve io atuar em regiões grande aventura do espídto, e isto foi possível graças à intervenção
d esconhecidas, habi tadas por povo s de cor e tradição difere nt e s (n o da filo sofia e da história, que a libertaram do s gramático s e retores.
caso do Brasil, primitivos), ao s quais se juntaram outros povos S e esta operação de salvamento t eve aspectos excessivos e acabou por
trazido s da Áf ric a , aume ntando a complexidade do panorama. [ ... ] lhe compr ometer a autonomia, foi ela que a erigiu em disciplina viva.
Deste m odo , deu-se no sei o da cultura européia uma e spécie de O impe rialismo formalista significaria, em persp�ctiva ampla, perigo
experimentação, cujo resultado foram às literaturas nacionais da de regresso, acorrent.u1do-a a preo cupações superadas, que a t orna­
América Latina n o que têm de prolongamento e novidade, cópia e riam e specialidade re strita, desligada do s interesses fundamentais do
invençã o, auto ma tismo e espontaneidade: E elas foram se tornando h omern. 55
variantes de t al m odo diferenciadas das literaturas matriz e s ue, já
n os último s cem a nos, chegarnm nalguns caso s a influir nelas.'l2 E jus tamente por ter feito de seus estudo s sobre a formação
da literatura bra sileira UJ'!l desafio às convenções nacionalistas e
O empe nho em sistematizar e discutir essas contradições faz antinacionalistas, um convite à aventura do espírito, Candido tornou­
de Antoni o Candido o mai s importante nome de noss á crítica e se referência básica de no ssa melhor crítica contemporânea - p or
e le instigada a ter como um de seus principais móveis o interesse
h,i sto1:iogr�fia literá1ias. Em sua refl exão, o reconhecimento da
inextl'icáv el relaçã o entre o conceit o de literatura brasileira e a idéi� p ela questão da nacionalidade literária e cultura l. É esse o caso, por
de nacionalidade se a ssocia à acuidade COJTl que discute o s efeit os exemplo, de Roberto Schwarz, c o m o se compr(?va na reavaliação
positivos e n egativos do nacionali smo . Recus ando-se tanto a louvá­ de Machado d e Assis por ele e111p1·eendida em seus três últimos
livros.56 Trndicionalmente, a o bra desse escr itor foi objeto de
lo quanto a des qual ific�-l o em t ermos ab so l u tos, tenta dem onstrar
em que medida e le contrib ui u, de um lado, para estimular ou coi�ir l eitu ras qu e, embora diver sificadas, sempre enfatizavam seu cará­
a imaginação criadora; de outro, para atribuir à atividade literária ter universalista, caracterizad o pelo refinamento estilístico e pelas
análises psico lógicas e filo sóficas. ia! ênfase, por sua vez, era
300
Nacionalismo Literário

p rnporcional à convicção Nacionalismo Literário 301


do desinteresse ou da insens
Machado em relação às par ibilidade de
tic ularidades da realidade universalizant e por questões intrinsecame�te literárias. Atualizan­
leira. 57 social brasi-
·
Já Schwarz considera que, po
. do a proposta antropofágica dos modernistas de 22, ele defende
r exerçitar o direito que a cultura brasileira, assim como a latino-americana em geral,
da elaboração ficcional e à autonomia
recusa r-se a subm
s uperficial e ·exotizante de e tê-la à concepçã
o tem trazido como principal contribuição para a cultura ocidental
realismo postulada pelos a destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza. 60
Machado conseg ue apreen românticos,
der e representar nossa real Da vontade de unificação que mobilizou a ação colonizadora
lhor qu e qualquer outro. idade me ­
Retomando a seu mo do a no início dos t empos mode rnos, se originou o processo de mesti­
dialética proposta por Ca pe rspectiva
ndido, vai nos mostrar com çagem que vai garantir o dinamismo da tradição universalista, bem
machadiana articula a sofi o a nar rativa
sticação e a inventividade como das diferentes culturas nacionais a partir dela constituídas.
fina compreensão dos me fOJ·mais a uma
canismos que regiam a vid Desde então, universal e nacional se apresentam intrínseca e
leira em meados do século a social brasi­
XIX, dividida entre o conse dialetie:amente articulados, tornando obsoleta e improdutiva toda
p1·ovinciano e o "modern rvadorismo
ismo" da Cone fluminense 1·eflexão ou prática c ultural e política pautada pe las idéias de
esse modernismo se constit . Seg undo ele,
uiria a partir da importação originalidade e identidade unívoca e autônoma. À luz dessa perspec­
filosóficas e políticas europ de idéias
éias, de cunho liberal, inc tiva, cabe ao artista e ao crítico, segundo Silviano, denunciar a
com a prática oligárquica ompatíveis
e escravagista aqui domina este rilidade de todo idealismo utópico, encarar a evidência produ­
Essas idéiasfora do lugar, ao me nte .
de dependência em face das smo tempo em que seriam sig tiva da contradição e do conflito e contribuir para afirmar a
no
metrópoles colonizadoras diferença de cada cultura e nacionalidade como entre-lugar em
listas, adquiriam aqui uma e impi;ria­
nova funcionalidade, que constante deslizamento, "entre o sacrifício e o jogo, ent re a prisão
i à tona seus limites e con inclusive traz
tradições de origem. Ao con e a t1.insgre ssão, entre a submissão ao código e a ag ressão, ent re a
movimento, Machado não figurar seu
só consegue criar uma forma obediência e a r ebelião, entre a assimilação e a expressão...". 61
de narrativa, mas através inovadora
dela também representa o Sintomaticamente, ele escolhe como epígrafe para essas suas
ral58 que caracte rizaria no torcicolo cultu­
ssas elites econômicas e análises uma.passagem de autoria de Paulo Emílio Salles Gomes,
desde os tempos do Impé intelectuais
rio até ltoje. Segundo Sch intelectual consagrado pela intensa atuação na pesquisa e valoriza­
trad uziria o "sentimento ínt warz, assim se
imo de seu tempo e país" q ção do cinema brasile iro, aliada ao ânimo de participação progres­
reiviridica para .os escrito ue o Autor
res nacionalistas - reflexã sista na vida política nacional . Companheiro de Antonio Candido,
irônica sobre a constante e o crítica e
díspar conjunção de dados irite grante como ele da geração responsáv el pelo· resgate e pela
e cosmopolitas, locais e un pro vin cianos
iversais. 59 Nela vê o inequ sistematização do pensamento mais crítico e prod utivo sobre nossa
)
de uma identidade tiacional ívoco sintoma
n1al resolvida, em constante nacionalidade,· desde Alencar e Machado de Assis a Mário de
ent1·e a vontade de afirma oscilação
r a diferença e de repetir o Andrade e Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Emílio62 vai nos
Silviano Santiago, igualment mesmo.
e preocupado com o proble legar, através de Silviano, esse instigante tema de reflexão:
dependência cult ural e com ma da
a necessidade de compre
complexos mecanismos de ender os
constituição de nossa identi Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de
ciona�os de modo bastante dade, egua­
diverso. Sua r eflexão tem cultui-a original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A .penosa
fortnulaJ' uma alternativa ao o ·mérito de
nacionalismo ingen uament construção de nós mesmos se desenvolve na dialética entre o não ser
de e 'xtração romântica; ao e otimista
ceticismo que leva Schwarz e o ser outro.
a·penas os discursos que te a privilegiar
matizem as seqüelas da dep
com o ele Machado; e,· fina endência,
l mente, ao idealism
o teórico que des­ Nos limites desse breve e necessariamente incompleto ensaio,
qLiàl ificà a reflexão sobre a tentamos mostrar que a relação entre literatura e nacionalidade
nacionalidade, cm nome do
interesse
deve ser compreendida como acontecimento que não cessa ele se
303
Nacicnalismo Literário

302 Nacicnalismo Literário do Sublime (São Paulo: Persp


ectiva, 1988),
2. Victor Hugo, Do Grotesco e
p. 25.
ns io "R a cin e e Shakespeare
", publicado por Stendhal
manifestar diferenciadamente. No momento de sua irrupçã_o, sig­ 3. Tre cho do e a

nificou uma fecunda articulação de vontade de verdade e de e ntr e 1823 e 1825, cm


Lobo, Teorias, p. 144. licado por
in ar" ao livro Da Literatura , pub
revolução, de afirmação da diversidade e empenho autonomista. 4. Trecho do "Discu rso Prelim Lobo, ibitl., p. 99.
Com o tempo, foi transformada em dogma e serviu à organização Mme. De Stacl e m 1818, em
de discursos nacionalistas política e artisticamente cónservadores. 5. Stael, ibid., p. 140.
Isso não impediu, no entanto, que voltasse a funcionar de módo 6. Stael, ibid., PP· 101 _e 105. s e as Coiss a (Lisboa: Portug-'.llia, s. d.), p. 112.
7. Michel Foucàult, As Palam-a gem da Linguagem (Lisboa: An
tígona,
crítico, mobilizando uma constante revisão da história literária e 8. J. G. Herder, Ensaio sobre a Ori
cultural, como comprovam diversas tendências de pensamento e 1987), p. 150.
de a�·te a partir de fins do século XIX. 9. Herder, ibid., PP· 169-70. o?", em
à Pergunta: que é Esclare ciment
_ Essa perspectiva deve nortear a atividade crítica contemporâ­ 10. Immanuel Kant, "Resposta zes, 1974), PP· 101-'.'1,.
nea, tornando-a sensível ao perigo que represên.tam duas posturas Textos Seletcs (Petrópolis: Vo ntada por Kant em
e revolução será apo
em pi:incípio opostas, mas igualmente marcadas pelo idealismo e 1 l. A associação entre rnzãoPhi losoph ie ave c la Faculté de Droit",
em Le
o maniqueísmo: o endosso acrítico de uma imagem transcendente "Conílit de la Faculté de e P ilos op que J.
tions (Paris: Librair
i h hi
Conjlit des Facultés en t rnis Sec e d sen vol vê-l a "Un Co urs
da nacionalidade ou a total desqualificação da reflexão sobre esta. discuti-la
Vrin, 1935). Michel Foucault vai(Paris: maio de 1984).
e
Com a ajuda do instrumental fornecido pela filosofia e pela ciência, Inédit", em Magazine Littérafre cours (Paris: Gallimard, 1971).
ela deve dedicar-se, como fazem os ensaístas comentados, a com­ 12. Michel Foucault, L 'Ordre du
Dis
Nacional,
preender a questão da nacionalidade de forma dialética, atenta a An ton io C nd do, Lit era tura e Sociedade (São Paulo: (São
13. Cf. a i
mes", em A Educação pela Noite
seu:, diversos significados, seus efeitos positivos e negativos - 1980) e "L iteratura de dois Gu
mantendo semp1·e renovada a pergunta sobre os motivos de sua Paulo: Ática, 1987). ·cultura e
nte" e "Crítica e Ideolog ia", em
constante mobilização como fator político e cultural. 14. Cf. "O Discurso Compete na, 1981).
Democracia. (São Paulo: Moder acio­
Desse modo, poderá perceber como o pressuposto e a finalidade
Sér gio Bu arq ue de Ho l anda , Visão do Pamíso (São Paulo: N ira
básicos do discurso nacionalista - marcar fronteiras e identificar 15. Cf. do, Fornw.ção da Literatum Bra sile
particularidades - acabam se manifestando como uma faca de dois naJ/USP, 1969); Antonio Candi an Todorov, A Conq uista da Améric a
et
(São Paulo: Martins, 1957); Tzv 8).
gumes. A fronteirn é um entre-lugar: propo1'1do-se a definir os limites (São Paulo: Martins Fonte s, 198 ulo: Saraiva, 1967), pp. 124-55.
o Pa
de determinada natureza física e cultural, ao mesmo tempo explicita 16. José de Alencar, Iracema (Sã
seu caráter discusivo, imposto através de critérios, conceitos e práticas 17. Ale ncar, ibid., p. 8.
analíticas arbitrárias. Pensar a fronteira é pensar a relação entre Eu e 18. Ale ncar, ibid.
Outro, cujas dificuldades e perigos ela se propõe a evitar e, por isso 19. Alenca1·, ibid., PP· 7-_ 8.
mesmo, acaba evidenciando. Essa a orientação a ser seguida hoje 20. Alencar, ibid., p. 105. .
pelos estudos literários, na esteira da reflexão de há muito instaurada 21. Alencar, ibid., "notas",. .p. 122
22. Alencar, ibid ., p. 104 . Pensamento
pela moderna antropologia, reivindicando para si mesmos a condição o Coutinho, org. Caminhos do
de eutre-lugar onde a inteligência crítica possa alimentar-se da recusa 23. José de Alencar, em Afrânimpanhia Ed itora Americana, 1974), v. 1,
C,itico (R io de Jane i ro: Co
a qualquer predefinição fundadora.
PP· 68-72.
24. Alencar, i bid., PP· 86-7.
25. Alencar, ibicl., pp. 83-4.
Notas 26. Alencar, i bid., PP· 70-3.
27. Alencar, ibid., p. 69.
1. Reprnduzimos aí dois dos Jrag,nentos de F. Schlcge l, publicados em
1798, cm Luiz.a Lobo, Teorias Poéticas do Romantismo (Porto Ale gre :
Me1·cado Aberto, 1987), pp. 55 e 72.
Nacionalismo Literá1·io 305
301 1Vacio11alismo Lilerário

ns-form-ação (São Paulo: FFCL de


28. Alcncar,.ibid., p. 77. 45. Cf. "Entrevista", em REVISTA Tra
29. Alencar, ibid., pp. 74-6. Assis, 1, 1974), p. 17.
ão" a Fonnação da Literatura Brasilei-
30. AJenc:u·, ibid., pp. 343-51. 46. Cf. "Pressupostos", cm "1 ntroduç
31. AJencar, ibid., p. 343. ra, p. 31. Can-
e "Uma Literatura Empenhada".
32. Alencar, ibid., p. 315. 47 Cf. "Literatura como Sistema"
.
33. Publicada inicialmente cm 1888, pela editora Garnier, esta obra, em dido, ibid., pp. 23-9.
cinco volumes, teve uma segunda edição revista pelo autor e poste­ 48. Candido, ibid., pp. 24-5.
3ª parte do "Capítulo I - Razão,
riormente mais três, organizadas por Nélson Romero, p;u-� a editora 49. Cf. "Natu1·cza e Rusticidade",
., pp. 52-3.
José Olympio, que acrescentam ao texto original alguns esc,·itos Natureza·, Verdade". Candido, ibid
- Raz ão e Imit ação ". Can dido, ibid., pp. 52-3.
publicados por. Sílvio cm épocas e lugares divc,·sos. 50. Cf. "Cap. Il
dido ibid., p. 17.
,
31. Citação extraída da primeira parte da História da LiteraturaBrasileira, 51. Cf. "Prefácio da 2ª edição". Can
es", em A Educação pela Noite (São Paulo:
publicada em separado, em 1882, pela Tipografia Nacional, sob o 52. Cf. "Literatura de Dois Gum
título de lntmdução à Literatura Brasileim. A dificuldade de acesso, Ática, 1987), pp. 164-5.
, Formação, p. 30.
para grande parte dos leitores, às edições des-;a e de outras ob ra s de 53. Cf. "Pressupostos'', cm Candido
opção teórica na l ª parte do seu
Sílvio nos levou a optar pela utilização da excelente antologia de 54. Antonio Candido discute essa l, 1980).
textos selecionados e apresentados por Antonio Candido, Sílvio Literatura e Sociedade (São Paulo: Naciona
ude s Crít icas ", em Fonnação, p. 33.
Romero: Te01ia, C1itica e História Literá1ia (São Paulo: LTC/EDUSP, 55. CC. "O Terreno e as Atit
Pe,iferia do Capitalismo (São Paulo:
1978). No caso da presente citação, cf. p. 15. 56. Cf. Roberto Schwarz, Um Mest1·e na
tas (São Paulo: Duas Cidades,
35. Extraído de A Litera.tu1·a Bra.sileim e a Critica Modema, publicada cm Duas Cidades, 1990); Ao VencedorasBata
� o de Assi s" e "Complexo, Moderno,
1880, pela Imprensa Industrial de João Ferreira Dias. Cf. Candido, 1977); "Duas Notas sobre Machad
Nacional e Negativo", em Que horas
são? (São Paulo: Companhia das
Sílvio Romero, p. 5:
36. Extraído do segundo volume da História da Literatum Brasilefra. Cf. Letras, 1987). o
iação da fortuna c1ílica de Machad
Candido, ibid., p. 29. 57. Antonio Candido faz uma aval itos (São
de Assis", em Vários Escr
37. Extraído do terceiro volume, op. cit. Cf. Candido, ibidem, pp. 62-3. � de Assis em "Esquema de Machado
38. Cf. a cilada Introdução de Candido, pp. XVIII-XXJI. Paulo: Duas Cidades, 1970 ).
os.
as pelo autor nos textos acima citad
39. Seguindo a diretriz de Cobineau, Sílvio aponta a superioridade da 58. As expressões grifadas são usad , Que horas são?
em Sdn varz
raça branca sobre a negra e a indígena. Romero, ibid., pp. 27:.S. 59. Cf. "Nacional por Subtrnção",
"O Entr e-lug ar ela Litc nitu ra Latino-Americana", em Uma Litera­
40. A iniportância. da mestiçagem cm nossa formação cult.urnl é discutida 60. Cf. 1978), pp. 11-28.
) a propósito de Gonçalves Dias� na passagem acima mencionada, e de tura nos Trópicos (São Paulo: Perspectiva,
pectiva é desenvolvida pelo autor
Gregório de Matos. Romern, ibid., pp. 53.fi. 61. Santiago, ibid., p. 28. A mesma pers
versal", em Vale Quanto Pesa (São
41. Essa expressão serve de título a um dos principais livros ele Af�·ânio em "Apesar de Dependente, Uni
Coutinho, 11 Trndição i\forlttnada (Rio de Janeiro, José Olym­ Paulo: Paz e Terra, 1982). a
lo'Emílio Sallcs Gomes, acompanhad
pio/EDUSP, 1968). 62. Uma coletânea de textos de Pau ais, foi orga niza da por
intelectu
42. Essa tese é apresentada por Coutinho no texto "Formação da Litera­ de comentários críticos de diversos
usto Cali l e·M aria . Tere sa Machado, Paulo Emílio: 11m
tura Ilrasilcira", cm que discute suas di\'.crgências em relação à obra Carlos Aug
(São Paul o: Brasiliense/Embrafilme,
de Antonio Candido assim intitulada, cm Conceito de LiteraturaBrnsi­ intelectual 11a linha de J,-ente.
leim (Rio de Janeiro: Palbs/MEC, 1959). 1086).
13. No artigo acima citado, Coutinho acusa Candido de analisar o
nacionalismo ,Jitel'á1·io sob uma perspectiva histórico-sociológica e
não puramente estética, como seda correto em seu entender. Bibliografia
44. A esse respeito é sintom:Ílico o título escolhido pelo autor para sua
obra mais :1mbiciosa, a I-Iistória da Literatura no B _ rasil, em cinco e Consciência Nacional. São Paulo:
1. ANDERSON, Benedict. Nação
volumes, publicada pela Editorial Sul-Americana. Ática, 1989.
...

306 Nacionalismo Literário

2. ANDRADE, Mádo de. O Empalhador de Passarinho. São Paulo: Mar­


tins/MEC, 1972.
3. ___ Aspectos da, Literatura Brasileira. São Paulo, Martins, 1974.
1. IlARRENTO, João, org. História Literária: Problemas e Perspectivas.
Lisboa: A Páginas Tantas, 1981. Popular
5. CANDIDO, Antonio. Formação da Liiératura Brasileira. São Paulo:
Martins, 1957. 2 v.
6. __ , org. Sílvio Romero: Teoria, Crítica e Histó1·ia Literária. São Paulo: Cláudia Neiva de Matos
LTC/EDUSP, 1978.
7. COUTINHO, Afrânio. A Tradição Afortunada; O Espírito de Naciona­
lidade na Crítica Brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio/ EDUSP,
1978.
8. __, org. Caminhos do Pensamento C1itico. Rl o. de Janeiro: Cia. Ed.
Americana, 1974.
9. FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Lisboa: Portugália, s. d.
10. __ . L'Ordre du Discow-s. Paris:·Gallimard, 197.1.
11. HERDER,J. G. Ensaio sobre a Origem da Linguagem. Lisboa: Antígona,
1987.
i
12. HOilSBAWN, Eric, Nações e Nacional smos desde 1870. São Paulo: Paz Diversas instâncias do pensamento filosófico, antro -0-- --
e Terra, 1991.
13. HOLANDA, Sérgio Bua1·que de. Visão do Paraíso. São Paulo: Nacio-
m literá1·io - notadamente no Romantismo e no ff" odernismo -J
assinalaram a existência de uma íntima conexão entre espírito
naljUSP, 1969.
popu ar e mgu;gem poética. Revestindo tonalidades ·metafísicas
0

14. JARDIM, Eduai·do. 11 Bmsilidade Modernista. São Paulo: G raal, 1978.


15. KANT, Immanuel. Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1974. ou historicistas, configu rando essências ou circunstâncias, privile­
16. LOilO, Luiza, org. Teoruis Poéticas do Romantismo. Porto. Alegre: giando a exis ou a praxis, tal conexão costuma enlaçar as noções do
Mercado Aberto/UFRJ, 1987. Povo e Poesia sob certa respeitabilidade ancestral, projetando
17. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasilefra. São Paulo: . so_bre elas uma aura de idealização ue parece torná-las resistentes
Ática, 1977. aos esforços de descrição teórica. Por outro a o,. o desenvolvimen­
18. ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Ideologia Nacionalista. São Paulo: to da escrita literária e de suà consciência, manifestada na criação
Ilrasiliense, s: d. e organizada histórica e teoricamente pela crítica, confinou o papel
19. SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos. São Paulo: Pers­ do popula1· na literatura às "origens", a uma infância e inocência
pectiva, 1988. idealmente eternizadas, cuja pureza-se t.-ata de preservar, ao mesmo
20. __ . Vale Quanto Pesa. São Paulo: Paz e Terra, 1982.
21. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão; Tensões Sociais e Cria- tempo que se entroniza, em·território apartado, a nobreza artística
ção Cultural na Pdmeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983. da literatura culta. Isso ajudaria talvez a explicar por que o discurso
22. SCHWARZ, Robe1·to. Que horas são? São Paulo: Cia das Letras, 1987. da ciência lite1·ária ainda hoje manifesta relutância e dificuldade
23. --· Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977. em construir perspectivas que acolham a criação popular nos
24. SUSSEK.IND, Flora. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: Cia. das domínios de sua competência; e por que a. presença do tópico
Letrns, 1990. 4 "popular" numa coletânea de ensaios sobre Teoria da Literatura é
capaz de provocar estranheza.
O que fazem juntos o popular e o literário? A dificuldade de
combiná-los num título de ensaio revela, logo de saída, o caráter
... problemático de sua abordagem analítica ou teórica. Um sintagma
que reunisse os dois termos da questão, distribuindo entre eles as
,
�� cU �

,, 308 Pu/mlar Po/ml.a.r 309

funções adjetiva e substantiva, já tenderia a consagrar uma pers­

l
popular". Principiamos pelos mapeamentos já esboçados, disponí­
pectiva que ainda não atingiu definição, obstruída pelo preconcei­
to e pelo medo do preconceito, pela carência de tradição analítica
e pela consciência das lacunas. Objetos ditos "rústicos" são freqüen­
1: veis no universo do livro. O percurso crítico passa basicamente por
textos (literários, filosóficos, históricos etc.) onde a idéia do popu­
lar aparece conectada à idéia de literatura, ou é dela separada. A
temente os mais suscetíveis de confundir as abordagens ditas história dessa relação, feita de rejeição e fascínio, re0ete a história
"1·efinadas". das relações entre intelectuais e massas iletradas, cuja problemática
O dilema de construir a pe1·spectiva e o sintagma decorre tanto tende a se explicitar na medida em que se explicitam o estatuto do
da insuficiência e imprecisão teóricas a respeito da expressão homem de letras e a inserção social da literatura. A maioria dos
popular, quanto do constrangimento ético provocado por uma textos a que me refiro foram produzidos nos séculos XIX e XX. A
renitente e indisfarçável hierarquia sociocultural. Neste quadro, o ordenação de sua abordagem foi di�a<la: mais pela vontade de
analista tem lug·ar cativo: ele habita o mundo''da "literatura", e não perseguir uma sintaxe ampla de idéias que pelo respeito à crono­
o .mundo "popular". Tem a· sensação de pertencer ao primeiro logia de autores e obras.
termo da relação, e sobretudo tem a sensação de que o primeiro
termo lhe pe_rtence, enquanto o segundo lhe escapa. Por conse­
guinte, seu ponto de vise,� não pode ser objetivo ou abstrato, mas
est;í. de saída condicionado: o popular é o outro da literatura, o outro 1 Literatura e Popular

cio analista. f
!1
O que é a literatura popular? Como explicitar o conceito, ou pelo
Prudentemente, o. analista pode optar pelo paradigma, pela menos delimitar o corpus discu1·sivo por ele designado?
coordenação; diplomaticamente, pode oferecer a primazia ao "po­ Costuma-se utilizar esta locução ara referir um va ·tó-

1
pular", inclusive por ser este o elemento estranho., o eventual 'i i-io de textos, cuy eneidade se man de
convidado no território do livro, domicílio onde desde muitos e ex ressões su s ou conexas cm na-
séculos instalarn.rn-se a literatura e sua cdtica. Além disso, parece­ lo: literatura ora , oesia iletrada literatura de massas oesia
lhe aconselhável refrear certo desejo urgente de rigor, que exigiria tradic1ona , poesia ingênua, literatura folclórica etc. Apontando
l
escla1·ecirnento prévio sobre os termos da discussão ainda mal 1 nuanças muito diversas no território que p1·ocuram demarcar,
entabulada. Literatura e opular: de toda maneira, sua articula - enfatizando alternativamente os processos de produção, comuni­
obrigará a lidar com valores 1etero êneos numa elaboração com­ cação e/ ou recepção, tais variantes ap1·esentam todavia em comum
P exa de que certamente ambos os termos sairão modificados. Mais o fato de evocarem fenômenos que não são considerados plena ou
de um pesquisador assinalou este impasse, este divórcio entre propriamente "literários".
pressupostos conceituais: "o que se convencionara chamar de Atentando para a negatividade do critério,(iiernard Mouralis)
J;ojmlar, e uma realiclacle móvel que convidava a rompei· com os reuniu sob n,denominação._cle "contraliteraturas" duas espécies de
quadros tradicionais da história literáda" .1 repe1·tórios<;.:por Ul.F)lado, toda sorte de textos produzidos e trans­
Onde um crítico literário deve ou pode procurar a presença mitidos ornlmentefpor outro, "o coniunto das obras impressas cuja
do popular no universo literário, e/ou do literário no universo �-odução e consumo se situam fora das estruturas da cultura
popular? A região onde se cruzam tais universos não é uma exígua .! letrada",2 obras alheias ou anta gônicas aos modelos lite1·ários ins­
frontei1-a. Seria antes um território mal conhecido e mal nomeado, titucionalizados. Isso forma um universo muito amplo, que abran­
cujos sertões, veredas e esguinas são inúme1·os e enormes. É preciso ge ·canügas de roda e dicionários, literatura de cordel e graffili,
limita1· as pretensões, na incursão sujeita a roteiros indecisos e romançe policial e pregões de comerciante etc. etc.. O (mico
cruzamentos imp1·c,·istos. Num primeiro mom�nto, não travare­ denominado1· comum desses enunciados é a ne tividade de sua
mos contato direto com algo que se possa chamar "_literatura conceituação, que o..,s_i; ga a pen ena dos domínios literáriosL
.-e.
,�-� 'tv:e- � � j � � ... ,� --,
��� (���j·
�� ,p��)
� 311
Popul,ar
310 Popular
l
tância, qualitativa e quantitativa, desta forma de expressão textua
estes sim delimitados de modo positivo, aparentemente sem pro­ - além de musical - no quadro da cultura contem porâne a. Nas
blemas, por uma espécie de consenso: apesar da dificuldade em se Américas essa importância é notoriamente acrescida pelo prestígio
produzir uma definição teórica da literatura, esta seria identificada e destaque de que gozam, para consumo interno e difusão no
e vivenciada como imagem e valor essenciais, facilmente reconhe� exterior, as inúmeras e vigorosas modalidades de uma música
cíveis em seus limites mesmo pelas classes que dela n·ão têm uma popular cuja riqueza está diretamente relacionada com a formação
experiência prática, isto é, que não lêem "literatura". polirracial das populações, destacando-se a contribuição do ele­
Configurando-se simultaneamente enquanto instituição, cor­ mento negro: De toda manefra, a canção popular gravada em disco
pus e sistema, constituída em patrimônio e herança cultural, a constitui um tipo novo de inscrição e fixação discursiva, ocupando
imagem da literatura tende a impor-se de cima para baixo e do posição singular entn� os dois grupos de textos discriminados por
centro para a perifeda do corpo social, a() mesmo tempo que Mouralis segundo o caráter, oral ou escrito, de sua veiculação.
contdbui para mapeá-lo e administrar suas divi.sões internas: "En­ Tudo isso faz dela uma importante modalidade contemporânea de
quanto signo, a cultura literáda permite distinguir aqueles que ''.contraliteratura" e/ ou de "literatura popular".
pertencem às classes dominantes e aqueles que dela estão excluí­ É bem verdade que o autor se propõe a falar de "contralitera­
dos. "2 Na construção e preservação dessa ordem hierárqui.ca, avul­ turas", e não de "literatura popular". Optando por uma categoria
ta, desde o início do século XIX, o papel desempenhado na difusão opositiva, socorre-se de mapeamentos já assentados, ainda que
dos modelos culturais pela escola secundária, em cujo currículo o sujeitos à retificação.Já a expressão "literatura popular", apesar de
ensino de literatura, particularmente da literatura nacional, ocupa sua aparente positividade, constitui uma categoria mais ampla e ao
lugar privilegiado. mesmo tempo mais precária em sua ambígua significação. Insistin­
sa
�s asserções de N!ouralis, ainda que justas, earecem lacunares do em designar assim o objeto de nosso interesse, obrigamo-no
profun ­
e insatisfatórias. Os critérios que presidem à constituição e repar­ lidar com algo mais vago e volátil, explorar território mais
se interp õe
tição do universo das contraliteraturas ni,_o levam em conta o tipo do.e impalpável, enredar-nos na espécie de tensão que
de
ele efeito que os textos produzem. ou pretendem produzir nos entre o substantivo e seu atributo: remetendo para uma entida
­
receptores, perm1tmdo Justapor indiscriminadamente enunciações anterior à própria literatura, o popular rconstitui qualidade proble
ro
de caráter informativo, comercial, pedagógico, artístico etc .. A mática, cuja imprecisão temos de conf ontar para circunscreve
alcance e elucidar os termo s de nossa própr ia questã o.
circunscrição dos territórios literário e c · ' io roposta
pelo autor faz economia e abstração d função estética a qual, _.,,,..-:) O que é o fJof;ular?
embora variando em suas concepções, tem sido desde Aristóteles Assim como as contraliteraturas, esta noção complexa e forte­
­
mente ideológica parece constituir-se por via de exclusão e negati

'1
um elemento fundamental na identifica�ção da literariedade de um
f
: "No âmago da design ação
texto. Mouralis não trabalha a hipótese de o questionamento do vidade, como apontaJacques LeGof
de uma
conceito de literatura conduzir à sua transformação, franqueando- de uma obra, de um objeto_,_ de uma literatura, de uma arte,
º à incorporação de dicções estéticas recalcadas. Tampouco cogita religião ou ele uma cultura como 'popular',
que
há em
não
verdad
é (erudi
e uma
to -
de mobilizai· os cl"itél"ios e pe1·spectivas sobre os quais está assen_ta- rejeição: o 'popula1·' é sobretudo aquilo
o pode assum ir
científico, racional -, nobre, etc.).""' Essa rejeiçã
do esse conceito para trabalhar as "formas anômicas"3 que sua
tradição rejeitou. P01· conseguinte, o universo dito literário perma­ J tonalidades f ancamente depreciativas; porém
r mais f r
eqüen te­
gia e
nece intocado, sem possibilidade de conexão com o contraliterário. mente, ela se compõe com manifestações de simpatia, nostal
ou selvag em,
Out1·0 problema 1·efere-se a uma lacuna flagrante no corpus fascínio: a cultura popular, tal como_ a primitiva
te per­
de·contraliteraturas construído por Mouralis: estranhamente, en­ aparece aureolada de uma pureza e plenitude supostamen
ambos os
ti·e os numerosos itens gue o constituem, em nenhum momento didas ou malbaratadas pela civilização moderna. Em
se menciona a canção gravada em disco, apesar da evidente impor-
,l
312 Popular
Popul.a,· 313
casos, é no interior das classes dominantes e ilustradas que se européias, que ajuda a situar no estrangeiro a noção de alteridade.
constrói a imagem do popular, a serviço da auto-representação, A vinculação entre nacional e popular servirá também ao processo
auto-estima ou autocrítica destas mesmas classes. de construção de urna identidade política alemã, que tem· no
movimento pré-romântico do Sturm und .Drang(Tormenta e Ímpe­
O Nacional-Popular
to) uma de suas mais importantes referências iniciais. Na década
de 1770, um grupo de jovens intelectuais germânicos insurge-se
contra os padrões hegemônicos do racionalismo e do gosto assen­
Na república romana, "populus" designa o conjunto de cidadãos, tados no prestígio da língua e da cultura francesas. Voltando-se
isto é, o patriciado detentor do poder; opõe-se a "plebs", que é o para dentro de si e para o próprio passado, o Stitrm und .Drang
populacho com direito à representação mas não às funções gover­ busca as origens da nacionalidade num percurso que assinala e
namentais. Essa dicotomia é reatualizada nas diversas tentativas de valoriza o papel da língua, religiosidade e criação poética tradicio­
estabelecer um regime republicano que se··vÚificam a partir do nais e populares. Recolhe na entidade povo um conteúdo humano
Renascimento: em Florença,· o "populo" é constituído pelos- "cida­ coletivo e singular, ettiO rosto divinizado emerge das profundezas
dãos economicamente ativos", opondo-se ao "populo minuto"; na da sociedade ancestral.
Holanda, o povo abrange os "homens honestos, trabalhadores e·

r
O estado teológico-político alemão apóia-se ideologicamente
responsáveis", enquanto a plebe reúne a "ralé, vagabundos, desor­ nesse espírito incorporado, esse Volllsgeist onde se harmonizam
deiros e ·in-esponsáveis".5 Cultura e Natureza, para identificar a comunidade orgânica da
Cabendo ao "povo" funcionar como sustent.·ículo da vida Nação. Já o estado político francês, embora também· cultive o
. política, compreende-se que nos-regimes de !TIOnarquia absoluta, 1 conceito de povo como origem geradora do Estado-Nação, elimi­
onde a política é ideologicamente recalcada pelo direito divino, 1 na-lhe o suporte transcendente. As ideologias nacionalistas desen­
verifique-se geralmente •a degrndàção do conceito. Ele passa a \ volvidas no século XIX responderão a esta dupla linhagem: as
referir a parte mais. volumos!i da população, confinada à periferia
elaborações pré-românticas do Sturm und .Drang e a conceituação
social e discernida somente como amontoado informe de massa revolucionária de jJdlria. Apesar de a concepção germânica ter sido
demográfica. No final do século XVII, "povo" define-se, por exem­ gerada num impulso de rebeldia contra a dominância da cultura.
plo, como "tudo o que existe de pessoas que não são qualificadas
francesa, ambas ser harmonizarão no desenrolar do Romantismo.
nem como burguesas nem como o que se chama de honestas". E Em ambos os feitios, como observa Marilena Chauí, "Nação e Povo
ainda em 1798·, pode designar a "escória das últimas classes reuni­ são suportes de imagens unificadoras quer no plano do discurso
das em multidão, pessoas que num país (em qualquer país) não político e ideológico quer no das experiências e práticas sociais".7
gozam de nenhuma �utoridade, de nenhuma consideração".6 A parti !' dos mead<;:>s do século XIX, os avanços do capitalismo
A partir do final do século :>...'VIII, o termo adquire novas industrial e urbano, correlatos à formação e aglutinação da classe
feições, associadas ao processo de afirmação e transformação dos proletária, geram dissonâncias e seqüelas sociais que se explicitam
Estados nacionais, desencadeado no período pré-romântico e re­ nos movimentos grevistas e rebeliões populares. A exacerbação dos
volucionário. Na Revolução Francesa, a representação da unidade conflitos torna as classes trabalhadoras potencialmente perigosas
social deixa de ser o Rei e passa a ser a Nação-Pátria, que o termo i aos olhos das classes dominantes, que se vêem obrigadas a confron­
"Povo" servirá doravante com seu teor de coletividade corpulenta, \.
tar um duplo e antagônico sentido do popular: resíduo tradicional
disponível para·a mobilização no trabalho e na guerra. Para servir da nação e ameaça contínua pai·a a sociedade burguesa. É nessa
ao processo revolucionário, esta força deve apresentar-se unificada encruzilhada da história política ocidental, em torno da revolução
e exaltada: internamente, pela vitoriosa insurreição contra o Anti­ e contra-revolução de 1848, que Tournier vai buscar exemplos da
go Regime; externa'ri1ente, pelo conflito contra as monarquias ambivalência instalada no termo "povo": '"Povo' se presta sernjJre a
Popul.ar 315
311 P�Jm.lar
A natureza precede a nação - e funda-a. Efusão direta da alma,
dois papéis inversos. Para Lama1"line ele seme para universaliza,· a depositária de um saber intuitivo, a poesia da natureza (Naturpoesie)
entidade nacional e resgata a burguesia misturando-a à massa operária; celebrada po 1· Herder refletiria o espírito do povo em sua totalida­
parn Blanqui, Barbes e os montanheses ["montagnards"1 se,ve J;ara de, a juvenilidade incorrupta, a integração sem fronteiras da hu­
universalizar a d.asse operária, separando-a dos burgueses [grifo do manidade primitiva. Na poesia de· arte (Kunstpoesie), em
'
A.]".8 contrapartida, a intuição transcendente e coletiva daria lugar à
A acepção de Lamartine expressa a perspectiva do nacionalis­ reflexão individualizada. Entre uma e outra, no ápice da verdade
mo burguês, que projeta a noção de povo como essência e abstra­ e da beleza, Herder entroniza os grandes espíritos criadores,
ção, tentando absorver sua heterogeneidade na pauta unificadora demiurgos cuja alma acolhe; express.a e eterniza os influxos comu­
do Estado nacional. Para que o "espírito do povo" possa continuar nitários. Homero, Dante, Shakespeare: em sua palavra inspirada
a responder pelo "caráter nacional", sem estar associado a qualquer ecoaria o gênio de povos que neles se incorporam e identificam.
possível ameaça à ordem econômica e à consolidação ideológica Também para o dramaturgo, poeta e pensador Frieddch
do Estado burguês, é preciso exorcizar o potencial antagônico Schiller, a natureza é a referência fundamental a partir da qual se
inco1·porado pela noção. Â ideologia nacio"nal tem de repor a constroem, em p1·ocesso dialético de fratura e reconexão, a cultura
alteridade intestina do popular, operando uma fratura no conceito e a arte das idéias: o poeta "ou é natureza ou a buscará. No primeiro
ele povo: parte dele desloca-se para baixo, apontando para as caso, constitui-se o poeta ingênuo; no segundo, o poeta sentimen­
camadas economicamente subalternas e socialmente marginaliza­ tal".11
das: o "povinho", o "populacho"; a "populaça", que o Larousse de À diferença de Herder e seus companheiros do Stunn und
1874 apresenta como a escória do povo, "a parte da sociedade mais Drang, Schiller não concede toda a primazia à impulsão emocional
desprezível por causa do aviltamento em que mergulhou".9 e instintiva; exalta também o elemento reflexivo que atua na
criação literária moderna (romântica), apontando simultaneamen­
te o parentesco, o divórcio e o constante esforço de reintegração
O Natural-Popular entre as duas modalidades poéticas da relação subjetiva com o
mu11do. Na sua opinião, não é pela sua essência divina nem pela
O processo de triagem e exclusão a que se costuma submeter a beleza de suas formas que a natureza nos fascina, mas pelo que ela
condição popular já estava previsto na obra de Herder, principal evoca dentrn de nós. O ingênuo associa-se a ela não como caracterís­
figura do Stu.rm und Drang. No seu elogio da criação poética tica imanente, mas mediado pelo olhar (não ingênuo) que pousa­
iletrada, ele não descura de contrapor o povo enquanço base do mos sobre ela. Para revelar sua força obscura, o natural precisa ser
espírito nacional à canalha ou ralé: "a canção do povo não tem que potenciado pela ação de um espírito cultivado na luz e no arbítrio:
vir da ralé e sei· cantada por ela; povo não significa a ralé nas ruas, "Fomos natureza[ ...], e nossa cultura deve nos reconduzir à natu­
que nunca canta ou cria canções mas grita e mutila as verdadeiras reza pelo caminho da razão ·e da liberdade."12 Na ótica de Schiller,
canções populares". 10 razà? e liberdade constituem e assinalam o sujeito moral, o pensa­
Para avalizar a "verdade" das canções e do povo, é preciso dor que trata de capturar, não um ser cm presença, mas uma idéia.
assegurar-lhes uma compleição sadia: alijar do corpo bem consti­ A poesia sentimental, produzia pelo artista culto e moderno
tuído ·as impurezas, os resíduos doentios, os dejetos periféricos. (romântico), elabora artisticamente uma inquietação moral sem­
Justificando a necessidade da triagem, Hcrder recorre (tal como J. pre renovada. Voltado para o futuro e recusando-se à imobilidade
Platão) à idealização ·de um princípio de vitalidade universal e nostálgica, Schille1· reserva maiores homenagens a este infinito
atemporal: a natureza. Em sua concepção de poesia, o que se aperfeiçoamento que à perfeição finita da dicção ingênua 13 reali­
associa ao popular é sobretudo o natural da criação: o natural-po­ zada pela poesia antiga e subsistindo na linguagem das crianças,
pular.
f
l. 316 Popular
1

das populações campesinas e primitivas. A pura harmonia dos seres


naturais "não é mérito seu, porque não é obra de sua escolha".14
Apesar de sua capacidade de sedução, ela não atesta superioridade
1 Popular

dos poemas de Verlaine, que não desejam ser meramente "litera­


tura".
17

No Romantismo gera-se não só a mais b e m -sucedida imagem


317

individual nem distingue trabalho ou missão de verdadeiro poet.a.


15
moderna da "poesia popula1·", como toda uma linha de interpreta­
Embora Schiller não se referia nesse ensaio a uma "poesia ção da história liter,fria. Com ou sem rigor científico, projetando
popular", a idéia da criação ingênua por ele explorada é uma das talvez o desejo misturado à percepção, abre-se aí uma perspecLiva
·mais constantes referências que se associaram à concepção dessa inovadora, franqueada às nuanças imprevistas, ao trânsito das
poesia. Aí se configuram uma perspectiva e um juízo ambivalentes, idéias e das obras, das palavras e das personalidades, ent1·e inculto
como observa Genevieve Bollerne: "A literatura popular é quase e culto, oralidade e escritura, coletivo e individual. A fertilidáde do
sempre, na história literária, qualificada de ingênua. Mas essa Romantismo resida em boa parte nessa abe1·tura à diferença e ao
ingenuidade é corno o signo do que lhe é reprovado, ou do que se contraste. Na outra face de seu apaixonado compromisso consigo
gostaria de tornar-lhe de empréstimo. Essa apreciação da ingenui­ mesmo e com o mundo, com o Outro em todos os seus feitios e
dade e a própria ingenuidade cristalizam ao mesmo teinpo o desejo máscaras, agita-se a consciência (um tanto culpada) de uma irrepa­
e a rejeição de uma inocência e de uma ignorância invejadas rável ruptura.
porque parecem ser uma garantia de autenticidadc/' 16 Onde se deu tal ruptura? Em que momento a poesia popular
foi, de um só lance, reconhecida e perdida pela literatura?
Já se atribuíram a Montaigne a· cunhagem do termo e a
Poesia Popular instituição do conceito. O elogio da "poesia popular" que se
encontra cm "Das vãs sutilezas" está conectado com o questiona­
Os sentimentos idealizados do Nacional e do Natural constituem mento da civilização que impregna boa parte dos Ensaios,' concebi­
para os escritores da primeira metade do século XIX o canal de dos sob a impressão desalentadora das guerras de r'eligião na
ingresso do popular e sua poesia no discurso literário. Ficç,i.o e
1 França. Na perspectiva de Monc.aigne, a poesia popular caracteri­
lirismo recorrem a esta reserva temática e estilística, como a um za-se pela espont.aneidade natural de sua criação, sendo portadora
íluxo de águas ancestrais onde artist.as insatisfeitos buscam alívio dos valores que distinguem e elevam, aos olhos do autor, o homem
para sua sede de totalidade e harmonia, num vigor de anseios e primitivo e o homem rústico: "A poesia popular e purnmente
demandas proporcional à sensação amarga de ruptura: artistas natural tem ingenuidades e graças pelas quais se compara à prin­
conturbados pela explosão dos tempos históricos, possuídos tanto cipal beleza da poesia perfeita, segundo a arte; lal qual se vê nos
pela nostalgia de um idílio entre homem e cosmos, quanto pelo vilancetes da Gasconha, e nas canções trazidas das nações que não
frêmito do presente e a incerteza sôfrega de futuro. A poesia parece têm conhecimento de nenhuma ciência, nem mesmo de escritura. "18
expressar mais radicalmente a ambivalência de relações que simul­ Apesar de atribuir à criação popul:ir um potencial estético
t.aneamente amalgamam e aparc.arn, no espírito da época, desejo e comparável ao da criação culta, Montaigne rejeita a hipótese de
realidade, passado e presente, natureza e civilização, o Eu e o continuidade e/ou associação entre elas, desautorizando as produ­
Mundo. É precisamente nesse momento de explosão do livro, de ções híbridas: "A poesia medíocre, que se detém entre uma e outrn,
.
seu público e de seu estudo, que se acentua o interesse pelas formas , 1 , sem 1101wa e sem preço. " 19 Ass1m, a "poesia
e' desden11ave · popu lar"

t
orais e ·incultas da criação poética. Ávida de ser canção, a poesia é simult.aneamente nomeada e segregada pelo autor: reconhecê-la
romântica se põe a deslocai· ritmos, subvertendo os metros cano­ é reconhecer a inarredável fronteira entre inspiração inocente e
nizados pelo Classicismo, incorporando nuanças musicais, culti­ consciência artística.
1r É justamente no século de Montaigne que o historiador italia­
vando signifiçados e sonoridades cada vez mais fluidos, num
processo que con�uzirâ ao Simbolismo, à simplicidade refinada l no Cario Ginzburg situa o termo de "uma época caracterizada pela

---
318 Popular
Popul.ar 319
pr·esença de fecundas_ trocas sub terrâneas, em ambas as direções,
en tre a alta cultui-a e a cultura popular".20 Na.Antiguidade, na Idade subtraído ao movimento histórico, nostalgia de uma plenitude
Média e no primeiro Renascimen to, as concepções de poesia e perpetuamente apaziguada, sem mácula, sem questões, sem pro­
cultura cobrem um vas to território, onde são imprecisas as frontei­ messa ou risco de futuros sentidos. O discurso ilustrado lança de
ras entre discursos do povo e da elite, universos·público e privado. passagem um olhar 1·cverente à discreta beleza da coisa inculta; mas
A interação entre visões de mundo e formas de expressão eruditas no mesmo gesto com que nomeia e distingu e, segrega-a de sua
e iletradas ainda pode ser percebida cm obrns como as de Rabelais própria história; remete-a ao torpor de suas raízes. No amplo
e Brucgel, algumas décadas antes de Montaigne. Mas já na segunda edifício dos Ensaios, só lhe cabe este nicho, onde se aquieta seu
metade do século XVI, o vigoroso apetite humanista, disposto a mistério tênue, como um ícone subalterno e um tanto crônico.
sorver conhecimento e prazer da dinâmica da vida coletiva e No ocaso cio século das descobertas, o novo mundo desloca-se
incjividual, dá lugar ao ceticismo solitário que monologa nos En­ para a periferia da curiosidade européia. Paris é que vale todas as
saios: então o mundo se deixa contemplar à distância p.or um sujeito missas. O espírito da língua e da cultura não tardará a recolher-se
recluso em sua al ta biblioteca. ··. ·
às academias, que tratarão de zelar por ele. A arte da palavra se
O divórcio consumado no século XVI decorre cm boa parte afirma1-á como fatura: saber e poder; como nobre artifício, luxo da
da expansão da escrita, leitura e impressão de livros, firmando civilização, ofício e disciplina do poeta ilustrado que, "antes[... de
crivos distintivos das classes sociais que a elas têm acesso ou nelas escrever, [deve aprender] a pensar".22 O cânon acadêmico, fundan­
têm assento. Produção, comunicação e recepção dos textos poéti­ d o s- e na emulação e pra ticando um discurso de palco e salão,
cos faziam-se até então basicafl)ente por via áudio-oral - seja na desconsidera e/ ou rejeita as inflexões e temáticas incultas e rústi­
épica, lírica e di-amaturgia gregas, seja nas canções de gesta medie­ cas, a não ser quando travestidas pela convenção bucólica, que
vais que a partir do fim do século XI se fazem ouvir, pela voz de cultiva os adereços de uma pretensa antiguidade rural. A procura
trovadores e jograis, tanto em castelos quanto em praças e feiras. de tonalidades poé ticas "na turais" avança sobre os trilhos da con­
Temática, ao discurso e à relação entre o escri tor e seu público. A venção e do decoro ilustrados, evoluindo num círculo seleto de
pai·tir do século XII, a lenta passagem do oral ao escrito é proccs­ receptores e deixando de fora e para trás a indisciplina dos cami­
sida por formas emergentes como o romance e a poesia provençal, nhos povoados de velhas canções. Tais caminhos tornam-se invisí­
aos quais se associa o adje tivo "cortês". No mesmo período, orga­ veis nos teJTitórios da criação literária car tografados e sinalizados
niza-se nas universidades uma classe culta já não inteiramente por artes poéticas como a de Boileu. Tudo passa a residir na nitidez
subordinada à instituição eclesiástica. Assim se constitui a presti­ das páginas escritas, nas palavras polidas e repolidas à luz da razão,
giosa linhagem cujos integrantes se chamarão· sucessivamente que lhes confere "seu lustro e seu preço".23
deres, humanistas, filósofos etc. Ao lado dos criadores literários, Como observa Cario Ginzburg, "uma culturn quase exclusiva­
eles formarão o mundo dos "homens de le tras". Fechando-se o mente oral corno a das classes subalternas na Europa pré-industrial
âmbito da poesia e da cultura acolhidas em bibliotecas e constituí­ tende a não deixar pistas, ou então deixar pistas distorcidas".2•1 A
das em literntura, ab1·e-se à sua margem o território inconsútil onde partir do século XVI, o fortalecimento dos padrões clássicos e
murmura e ressoa a voz remota, furtiva e fugidia da "poesia neoclássicos tende a escamotear a contribuição iletrada ao pensa­
popular". mento e à arte ocidentais, obliterando por rriuito tempo aos olhos
Ainda ocoJTc a Montaigne prestar ouvidos aos ecos dessa voz, dos estudiosos "as raízes populares de grande parte da alta cultura
que lhe chegam de longe, suscitando-lhe atenção e simpatia como européia, medieval e pós-medieval". 25 Ressalvando-se as percepções
os canibais ame1·icanos recebidos na corte de Rouen. Mas o que � originais de uns poucos autores, como o napolitano Ciambattista
seduz o intelectual nessas figuras e linguagens humanas já é, de
certo modo, a "beauté du mort":21 inefável resíduo do que foi í Vico, o desin teresse da reflexão estética e histórica pelas manifes­
tações de grupos subalternos e ile trados perdura a.té a segunda .
' metade do século XVIII.


f
ti
320 Popular Pop1.1.lar 321

Rompendo o Cerco das Letras :\ [rat-urã irreversivelmente instalada entre a linguagem do historia­
dor� a·do povo: "sua língua me era inacessível. Não consegui fazê-la
Tormenta, ímpeto, revolução: no final do século XVIII, as trans­ falar."31 Reconhece também os limites impostos pelas contingên­
formações da conjuntura econômica e tecnológica, aliadas aos cias socioeconômicas: "Não se fazem livros populares, bem o sei. "32
prncessos de rebeldia e renovação sociocultural, começam a bule­ Todavia, mesmo no declínio da vida, não deixará de acalentar os
versar os antigos regimes políticos e estéticos da civilização ociden­ velhos anseios: "Se abrirem meu coração após a minha morte, lerão
tal. A dupla paixão nutrida pelo Romantismo - poesia e história­ nele a idéia que me acompanhou: como virão os livros popula­
coajuga-se à vocação literária do movimento na tentativa de recu­ res?"33
perar aquilo que foi esquecido ou silenciado pela cultura d ·na - As idéias de Michelet são fiéis companheiras do coração: o
te e livresca. Tal é o propósito de escritores com Jules Michelet, coração as acolhe. Daí lhes vem boa parte da tenacidade que as
que a partir da década de 1830, transforma e revigora om1mo, encorpa, fazendo-as gerar projetos amplos e ambiciosos, compro­
espírito e linguagem dos estudos históricos,·dispondo-se a seguir metendo o pesquisador com tarefas que se desdobram dõ passado
"o caminho real", e precisando: "para nós esta palavra quer dizer ao futuro, construindo a vida humana e sua história como quem
popular".26 edifica uma catedral. A fé nas epifanias impele para o alto o
. Michelet considera que a palavra escrita fixou ao redor da cena trabalho levantado do chão. É a matéria humana do chão que
histórica um círculo de exclusão, condicionando e restringindo sustenta o trabalho paciente e miúdo de lavrar garimpes e fincar
· fontes de referência, seleção de agentes e manifestações, emissores áliccrces profundos. É o cuidadoso empenho de "procurar os fatos
e destinatários do discurso. A seu ver, a dinâmica da história só foi·a dos livros impressos, nas fontes primitivas, a maioria ainda
pode ser apreendida e representada por quem se dispõem a entrar inéditas, nos manuscritos de nossas bibliotecas, nos documentos
em contato com ela, expondo-se, comprometendo-se pessoalmen­ de nossos arquivos. ... Para reencontrar a vida histórica, seria
te: "É preciso transpor o círculo".27 Consciente e angustiado de preciso, segui-la pacie�temente em todos� s seus caminhos, todas
estar "ausente das realidades, há tanto tempo.exilado num mundo as suas formas, todos os seus elementos". 3
de papel"28, distanciado do objeto de seu interesse e apartado da Mas uma catedral não será meramente pedra sobre pedra.
(sua) própria história; o autor intenla libertar e expi-imir, coajun­ Erg·ue-se como costu,:a de símbolos, tecido de linguagem visual e
) tamente, a si mesmo e aos que ficaram relegados à periferia narrativa. Não basta colecionar e justapor os objetos do mundo:
ignorada pela tradição escrita: "Então, fechei todos os livros e voltei '.'�cria preciso c.ambé1n, com paixão maior ainda, refazer e restabe­
a habitar entre o ovo tanto uanto me era oss1ve ... E assim lecer o jogo de tudo isso, a ação recíproca dessas forças diversas
passei a consultar os homens, a ouvi- os a ar de sua ró ria sorte. num possante movimento que voltaria a ser a própria vida."35
reco hcndo da sua boca agu1 o que nem sempre se encontra nos R:ec�perar na historiografia o efeito da vida histórica, transportar
211 para. a página lisa e muda os ·relevos e harmonias neutralizados na
escritores bi-ilhantes, as palavras de bom senso."
Fazer o povo ingressar no mundo do livro significa, por um objetivação cronológica dos Jatos, demanda, além de ampla docu­
)
lado, reconhecê-lo como parceiro ativo, ator e autor da própria mentação, um esforço de interpretação e recriação de fatos e
história. Por outro lado, demanda que se amplie o círculo de símbolos. O historiador deve assumir um ponto de vista, uma
leitores. Ainda bem jovem, esse filho de um um impressor parisien­ perspectiva pessoal, uma linguagem investida de tonalidades sub­
se falido, que trabalhara criança no atelier do pai, escreveu em seu jefh:as e estéticas, capaz de promover a "ressurreição da vida inte­
diário: "Se tivesse talento, gostaria de escrever para o povo livros gi·al", não em suas superfícies, mas em seus organismos interiores
que se venderiam a baixo preço."30 c-profundos. 36 Michelet busca uma sintaxe interior, uma feição
Vinte anos mais ta1·de, Michelet se vê obrigado a moderar psicológica da história francesa, que pretende ter sido o primeiro
expectativas e reavaliar a viabilidade de seus própositos. Reconhece a perceber "como uma alma e uma pessoa".'1 Alma e pessoa da
f.
322 Pojml.a1·
Popul.a,· 323
nacionalidade encarnam-se no personagem a que chama "povo", e
Uma das hipóteses difundidas então é a de que as grandes
de que fará protagonista e título de um de seus livros mais célebres
canções de gesta derivariam de curtos poemas primitivos, espon­
(Le PeufJle, 18t16). Mas também animam o indíviduo que escreve a
tâneos e populares, "cantilenas" que os poetas épicos teriam em­
História da França e declara: "Minha vida esteve neste livro."38 Nessa
preendido reunir, fundir e harmonizar. Posteriormente, essa teoria
história, o escritor encontra-se consigo mesmo, a ponto de pergun•
de fundo romântico sofre várias contestações, motivadas e susten­
tar-se: "Esta identidade do livro e do autor não será.um perigo? A
tadas tanto pela ausência de documentação das supostas "cantile­
obra não estará colorida com os sentimentos, o tempo daquele que
nas", quan�o por uma ótica que vincula a excelência estética a um
a fez?"39 A par de rigor e labor, imaginação e simpatia recuperam
artesanato consciente, nutrido de discurso escrito e nele desenvol­
a vivacidade da relação entre os objetos históricos, assim como a
vida. A lenda de Carlos Magno, por exemplo, teria origem num
integração perdida entre o historiador e tais objetos: "Eu nasci
"puro trabalho de letrados"; a Chanson de Roland seria o resultado
povo, tinha o povo no coração."40 Empenhada em reatar os laços
de longa elaboração artística, empreendida individualmente por
com esse íntimo passado, a palavra históric'à.permite-se amalgamar
um artista conhecedor da Bíblia e dos poetas épicos latinos.""2
a vida da nação, do povo e do escritor que reconhece: "Meu livro
O século XX continuará a perseguir o problema, notadamente
me criou, eu é que fui feito por ele."'11
a respeito dos poemas homéricos. Jacqueline de Romilly, em
Entre coletivo e individual, popular e erudito, oralidade e
Perspectives actuelles sur l 'épopée homérique, afirma que Homero
escritura, o principal cuidado de Michelet não é demarcar fr on­
misturou usos lingüísticos de várias épocas, situando-se na embo­
teiras, mas desentenar velhas conexões e abrir caminho para
cadura de um passado longo e diversificado. Tendo escolhido sua
novas. Ap1·oxima-se assim de romancistas e poetas de seu tenipo, inspi ração numa série de narrativas anteriores, a poesia homérica
que, atraídos pelas tradições orais e anônimas, convidaram-nas poderia colocar-nos na pista de tradições perdidas, que seu autor
a freqüentar a ficção e o lirismo escritos. No século XIX, esses conheceu e modificou. Mas Romilly reage contra a tendência a
interesses e preocupações ajudam a libertar o pensamento lite­ enxergar nessa obra qualquer espécie de primitivismo. Ao contrá­
rário das compartimentações e normas genológicas, fundando rio, sua grande originalidade seria propriamente literária. Desen­
uma visão histórica da literatura. A poesia romântica vai ao
volvendo uma arte da composição consciente e refinada, a épica
encontro de sua história, como a história vai ao encontro de sua de Homero consumaria o divórcio da tradição 01·al que a precede:
poesia. "a escrita deve ter sido utilizada para facilitar a composição dessa
obra, ou em todo caso( ...] a obra foijulgada, imediatamente ou
A Pré-História da Poesia quase, digna de ser, por suas qualidades e perfeição, fixada pela
escrita, para todos e para sempre. Após a série das tradições
isoladas e variáveis, é, graças à escrita, o início de uma literatura".'13
A partir do enfoque romântico, a literatura ou a poesia popular
A argumentação de Romilly é de base estilística e textual. Mas
aparecem aos olhos de muitos pesquisadores do século XIX como
as hipóteses romârúicas-sobre a origem das epopéias também são
uma pré-história da literatura culta, uma origem natural que se
constestadas por analistas que tentam enxergar os fatos literários
evoca com simpatia, ainda que sua conexões com a literatura
em suas conexões e implicações contextuais e socioeconômicas. É
históriaz pareçam difíceis de estabelecer com nitidez. A questão se
o caso do ma1·xista Arnold Hauser, que em sua I-Iistória social da
coloca nas muitas discussões e teorias produzidas no período sobre
literatura e da arte estende a negação de qualidade popular aos
a gênese dos poemas épicos, freqüentemente associados à forma­
predecesso1·es de Homero e à totalidade da épica antiga: "A épica
ção da consciência histórica e poética das nações, aos momentos
popular da história romântica da literatura não tinha primitiva­
i11:111gurnis ou reinaugurais em que esta consçiência atinge expres­
mente relação alguma com o povo. As canções encomiásticas .e
são· m,011umental e nela se identifica.. heróicas, de que provém a epopéia, foram a mais pura poesia de
1'
!17

Popular 325
321 Popular

a que, mesmo concedendo


c lasse que uma casta de senhores j am ais produziu. Não er am nem mente an ulado por uma perspectiv nte a
ovo, r ejeita categoricame
compostas pelo povo nem por ele cant adas ou difundidas, como qualidade estética às c riações do p d , a n çã o de
tampouco es tavam dedicadas ao povo e orientadas se�ndo o p r esença e /ou exist ência do artista
popular. No fun o o
nsci ênc ia do
que não tem co
modo de pensa r popular."
popular opõe-se à noção de arte: é o
44 -··

possui a idéia de ar t e . Esta só


Hauser refere-se aqui à civilização creto-micênica, anterior à trabalho ar tístico, não cultiva e não , so
e cult a da linguag em b a
chamada Idade Média grega (1.100 a 700 a.C.), que p roduziu as se pode est ab elecer na legitimidad
numa civilização con st ituíd a
epopéia s homéricas.Já então a poesia manifesta "tendência cole ti­ guarda da elite e de suas instituições,
vista",,;5 mas isto não sign ifica que t enha adquirido caráter popular; em Est.-ido .
tica de que 'natural' e
deve-se antes à for mação de "uma co muni dade laboral, isto é, um Hauser também rejeita "a idéia ro mân
grupo de a r tistas ligados por uma tr adição co mum e por métodos s in tercambiávei s,[... ] em
realidade são antes
'popular' são conceito
comuns d� t rabalho". 46 ifes taçõ s de poesia popular
conceitos opostos". Para ele as man
52 e

Os critérios que justifi_catn aos olhos de· Hause1' a r ecusa de e explicadas m edia nte uma per spectiva
só po dem ser identificadas
a mui rem ota, de criação
c aráter po pular à épica ant iga são ta mbém aplicados à produção político-social. Seria o caso de uma poesi
to
s ritu is elig iosos e nos
artística da I dade Média européia. A feição rústica da art e mero ­
e alcance co munitários , praticada no
a r
antes da i e heróica da
víngia, destinada a um público maciço e homogêneo, não decorre -trabalhos em grupo, como a que se faz
dad
germânic nte io r às inva­
�e um modo de produção fopular. Caracteriza simplesment e um civilização creto -micênica, ou a poesia
a a r

"fenômeno de regressão'',4 motivado pelo t ransladamento da vida a era medieval. Esta pr o duç ão estaria
sões bárba ras que iniciam
os se m definiç ã histórica,
social da cidade para o campo: com a nob reza franca "completa­ confüiada à desordem dos moment
o

mente desp reocupada .das questões culturais "48 e as inst ituições edem os gran de períodos
indiferenciado s e inominados, que antec
s

da sociedade humana, já
eclesiásticas lançadas na incú ria, não se encontra "nem cidade, nem onde se apreend e um direcionament o
Na soci eda de de classes, o
corte, nem monastério onde pudess e desenvolver -se uma produ­ devidamente constit uída em classes.
ção artística regular". 51 A heran ça literária deste período ser á ixo e na oposição: "uma ar t53 e
popu lar designaria o que ficou emba ."
a uma 'ar t e senho rial'
menosprezada pel a elite do r enascimento caro língio, quando o popular só tem sentido como o posição
pela s massas, que a freq üenta
círculo letrado da cor te de Car los Magno recupera formas da Mas esta n ão costuma ser produzida
pela perspectiva e lingua-
Antigüidade em poemas d e feição clássica e erudita. "Expulsa da apenas como c onteúdo mo ral, veiculado
co rte e da s mo ra das dos senhor es",5-0 a velha poesia épica mantém­ gem cul tas .
eratur a do século XIX.
se apenas entre as classes in fer iores. "Po rém t ampouco neste A discussão é retomada a respeito da lit
ticamente p rogressistas na
tempo s e converteu no que se chama 'poesia popular' no verdadei-. Em bora r econheça aiguns e feitos poli
ro sentido da palavra; pelo co ntr ár io, perman eceu nas mãos de uns d ifusão de gênero s popula
res após a Revolução, Hau ser vê c om
ensão romântica de p romo­
poet as profissionais que, apesar de seu ca r áter popular, na da descon fiança e certa má vontade a pret
ssão cultas e incultas. A
tinham em comum com o povo que faz poesia de modo espontâneo ver o c onsórcio entre formas de expre
51
literatura oitocentista pare­
e impes soal. "
assimilação de in íluxos populares pela
O conceito de poesia po pular permanece impr eciso no texto cada, que resulta em abastar­
ce-lhe uma operação espúria e equivo se
de Haus er: quando referido, é quase sempre na clave da negação, o gosto geral. O p rocesso
damento da produção e degradação d cujo p úbli se
o s n ovos gêneros teatrais,
r ejeição, minimização. Algun s t ópicos entret anto parecem c on s­ co
evidencia ria no âmbito d o a
tantes: o atributo "popular " pr essupõe criação c oletiva, e não melo dr. ama "não é outra c oisa s enã
e xpan d e e populariza. O 5
4 ana1og -
. ada, ou, se qrnsermos, c orrompi'da" ;
a
admi te a pr ofissionalização do poeta e/ou cantor . Aplica-se a
tr age'd'ia popu1 anz ida e grossei ra
objeto s constituído s como que à revelia do sujeito c r iador , in defi­
mente, "o vau55 deville surge como uma for ma corromp
nidamente pluralizado, convert ido em �úmero abstrato , e final- diagnóstico, Hauser p reten
de demolir as
da comé d ia". Com esse

�-�✓, <»-A�-�
1,
l
11
Popula1· ·327 \1
326 Popular

ilusões românticas: quando burguesia e classes iletradas o identifique, \hc conceda documentação e \he outorgue, à falta de
(as platéias
comportariam então 1/3 de analfabetos) consomem plena cidadania, umjazigo decente à margem da cultura civilizada.
m ercado.ria cultural e misturam-se nos aplausos que
a mesma
lhe dirigem,
A poesia popular reserva-se esse lugar discreto, quase vacant e. Por
só uma coisa mostrnriam ter em �omum: a "falta mais que corra na boca do povo, ela costuma aparecer aos eruditos
de exigência
estética e carência de cultura nas classes que e n envolta em vaga paraÜsia. Sua disponível estranh eza, sua aparente
ch em os teatros de
Paris".56 inaptidão para o me rcado da arte e da autoria, fazem dela um
Envolvendo na mesma rejeição a asce ndência popu objeto desprovido de preço e apreço, ainda que suscite atenção
lar e a compassiva· e atuação competente por parte de qu em, dominando
descendência popularizada da literatura culta,
os pontos de vista
de Hauser projetam um pressuposto implícito: a incom as artes da escrita, se disponha a documentar os espécimens
unicabili­
dade entre poesia popular e letrada. Em oposição esparsos da linguagem analfabeta.
às idéias de
simbiose fo1jadas pela "hiperestesia"57 româ. ntica, o autor A idéia de coletar manifestações culturais populares começa a
pretende
oferecer uma explicação historicamente objetiva . tornar corpo no século XVI, paralelamente ao processo de extre­
da poesia, atre­
lando os processos de sua produção a mecanismos mada mptura e hierarquização que põe distância e distinção entre
socioeconômi­
cos, políticos, institucionais, instâncias geradoras e cultura da elite e do povo. Notadamente na Inglaterra, antiquários
legitimadoras
da arte literária. Mas o critério fundamental que a todo encarregam-se de juntar e registrai· os "little ones"59 que despertam,
momento
se deixa perceber em suas análises, embora o auto em função da própria insignificância que parece revesti-los, a
r não o reconhe­
ça ou discuta como pressuposto crítico-teórico, é o do simpatia indulge nte dos homens educados. Desprovidas de sentido
gosto, em sua
feição educada e socialmente privilegiada, a ditar as histqrico vivo, as "antigüidades populares" apresentariam interesse
regras dojogo
e selecionar pa rceiros. corno documentos do periférico, primitivo e/ou exótico. Os ama­
Em tais condições, qualquer coisa que se adm dores de classe média que empreendem a coleta- mantêm em
ita chamar de
"poesia popular" fica fora do jogo, da Jiteratura e da relação a seus objetos uma atitude depreciadora., que participa da
· história. Aos
olhos de Hauser, todo o interesse da criação poéti repressão exercida sobre a cultura popular nos séculos XVII e
ca popular
parece reduzir-se à representação de resíduos do
passado, destina­
XVIII. A partir do século XVIII, os a.ficcionados agrupam-se em
dos a juntar poeira no museu da cultura e da civili clubes, publicando livros e empr eendendo pesquisas mais especia­
zação. Esta já
teria sido, no seu entender, a preocupação ou intuiçã lizadas. O ramo floresce no início do século XlX, quando se
o de Carlos
Magno, quando mandou, segundo conta Eginhard, · multiplicam as publicações que versam sobre baladas, canções,·
coligir e escre­
ver velhos poemas que tratavam dos heróis e comb costumes, fala etc. do -povo. Sob a influência das idéias de Herdú,
ates da época
das invasões bárbaras. Como tal poesia não correspon a atividade ganha nova feição, incorporando se ntido nacionalista
dia ao gosto
da elite carolíngia, afeito a poemas clássicos e eiuditos, Haus e fornecendo subsídios para a pesquisa e construção da história,
er conclui
que "o próprio rei deve ter tido um interesse pura língua e literatura nacionais.
mente histórico
pelos antigos cantos épicos, e o fato que mandou escre Este projeto recebe i_!Tlpulsão e direcionamento decisivos com
vê-los apenas
confirma que estavam ameaçados· de desaparecimen a obra dos alemães Jacob e Wilhelm Grimm, que nas primeiras
to".58
décadas do século XIX coligem e publicam cantos, mitos e narra­
tivas orais. S eu t1·abalho de transcrição pretende-se rigoroso e fi el,
O Folclore em consonância com sua atividade de dicionaristas, gramáticos e
historiadores da língua. Colecionadores de formas de linguagem ,
Por mais antigo que seja, o popular par ece e star sempre a um passo os Grimm relegam a segundo plano o sentido dos textos. Dão
de desaparecei". Todo popular é precário. Todo popular jaz no seguimento às propostas nacionalistas de Herder, mas ao contrário
anonimato e na orfandade, à espera de uma autoridade maior que dele, postulam a condição obrigatoriam ente anônima deNatmpoe-
329
328 Popular Popular

sie, desvincul ando-a da expressão literária culta e consagr ada. Para n tra liza r a face negativ
a do popular, a s pesquisas
urb no . Pa ra
joio do trig o, restringin­
do a eu
o s Grimm, o natural-/10/mlar não é o espírito que energiza os s fo cló ric s tr atam de separa r o
e reíle xõ e l a
teor econô­
ceito p ela sonegação de seu
poem as de personalidades como Homero, Dante e Shakespeare; do e reacomodando o con tra diç ão imemorial,
ele não tem c ontinuidade efetiva na poesia escrita, uma vez que espiritualidade de
mico, transGgura ndo-o cm t it l no Raffaelle
lida de. O folcloris
a a ia
sua existência só pode ser atestàda pel a inexistência de qualquer raiz e rel icário da naciona p , com o exc lusivo
derar como princi al
patente do cumentad a, qu alquer. fi rma reconhecida . O domínio Corso escreve: ''Querer consi c me nt c rreto.
se pobre, n ão é cientifi a e o
f1úblico do texto se caracteriza como imaculada negatividade: nada do campo do folclore a cla s ânc ia e
re de sub s
uz ao grupo pob
t
de autor, nada de registro, nenhuma escrit a que v alha, à exceção A no va discipl ina não se red rús tico , aos
beu, e particularmente a o
daquela outorgada pe lo coletor.
cultura, mas ao núcleo ple s monte s, no s v a les,
cidade s rem otas, no
O sistema de document ação direta nas fontes, postulado pel os c amponeses, que vivem nas 61
elhos consensos ."
irniãos G rimm, fundamenta a tentativa de sistematizar as tarefas tenazes conse rvadores do s v tenta
[idelidadc da transcrição sus
· de coleta e transcrição do material. Ao longo do século, amplia-se Por outro lado, o preceito da int enc io­
folcloristas, das elaborações
e org aniza-se o traba lho de campo, preocupado com o documento a rejeição, pela ma ioria do s Canti e ,·acon ti del
inl cole tado. Nos
e·sua classificação, coteja ndo e agrupando espédmens. Al imentan­ n ahnente artí sticas do mater sor es Co mp aretti e d'An­
m os profes
d o s- e na contluência de interesses e re sultados das Ciências huma- jJopolo itolim10, ( 1870), adverte e ntífico.
áter geral seja seriamente ci
. nas recém-constituíd as (filologi a, estudo da religião, etnografia, co i1a: "Que re mos que seu car smo
tos refeitos literariamente o u me m a
antropologia etc.), a atividade persegue formalização me to dológi­ Portanto não aceitare mos tex sua for
conserv am estrita e intacta
ca, inserção ac adêmica e nomenclatura assentada. Um passo im­ ,·etocodos, mas apenas os que o t d s a ilustmçõcs
bém excluirem s o a s
portante para alcançar_ esse est atuto disciplinar é a nomeação do originária popular. Assim tam nd o som ent e a s histó­
ent a is, aceit a
objeto e da sua pesquisa. O termo aparece pela primeira vez nu m pu ramente estética s ou sentim 62 pr p de análise
cas." Mesmo as o ost as
artigo de W illia m John Thoms (me mbro da Sociedade dos Anti­
ricas, c omparativa s ou Cilol6gi de con fi nça: a
to tornam-se alvo de s a
quários, depois fundador da Folklore Society) public ado em 1846 e te orização sobre o a ssun d trim nt o da
e col eta se faz em
e e
numa revista especializ ada: "suas páginas têm freqüentemente . priorizaçã o do tr abalho d l, de su as
e se ntido da p oesia or a ou
mostrado o i nteresse pelo que na Inglaterra chamamos Antigüida­ reflexão sobre constituição ç p pu­
, cortando o acesso d a cri a ão o
des Populares ou Literatura Popular (embora seja mais um saber relações com a poe sia cult a [rontc ira já a ssi na-
do q.ue um a literatura, e seria mais apropriados descr evê-los �or l ar ao est atu to l ite
rário e reforça ndo a vel ha
uma boa combinação- saxô nica, Folk-lore - o saber do povo)." lada por Montaigne. clara-
ncona constitui o modelo de
Confundindo ambiguamente sob a mesma denominação o A obra de Compare tti e d'A a poesia po pular
objeto de pesquisa e a discipl ina que dele se ocupa, o batismo do da prim eira i n
vestigação de fôlego sobre 1880
Ro me ro, que na década de
terminológico indicia o sistema de ambivalências que caracteriza­ brasileira. Devemo-la a Sílvio
Contos pojmlares do Bmsil, seg uid as
rão os estudos folclól'icos. Longe de represe nt ar um reconheci­ pu blica as c oletâneas Cantos e a po p r
ricos dos Estudos sobre a poesi
ula
mento a fetivo e. i !1equ ívoco do "saber do povo", a denominação d os comentários crítico-teó inte n­
clo ristas estão mareid as pela
su gere qu e e ste é"inca p az de ide ntid ade autônoma: para alcançar
do Brasil. Sua s propostas de fol rom ânt ica , e r eq 11 :-icio•
a s e práticas s e
alguma_legitimidacle cu ltural, nece ssita da mediação de um discu r­ ção explícita de reagi r às idéi pul ar n;-i
e a irnportfrncia da poesia po
11
so erudito e cientiGcam ente instituído. O que é do povo é de todos na r cientificamente o car áte r
ncipal de seu s ata q u e s é José de
e não é de ninguém: essa disponibilidade barata que se atribui ao cultura brasileira. O alvo pri sso can cio neiro",
ie de artigos "N o
popular abre caminhq_ para to da sorte de manipulações, p articu­ 1
Alencar, qu e em 1875, na sér Cead., .
1 s romances de vaq uei ros do
larmente as que se dedicarão a exorciza r as conotações ant agônica s come ntou estilisticamente o é ert ane j:-i. Na
1 todo especial de p ica s
geradas na eclosão dos movimentos re ivindica tórios do prolêt aria- aponta ndo-os como u in tipo
Popular 331
330 Popular
r es manifesta-se na inte
gração de
pelas formas de expressão popula
à poesia e à n arrativa de autore
s
perspectiva do es critor cearense, o realce dos elemen tos estéticos linguagem e temática incultas io de
l Bande ira, Raul Bopp, Má r
na poesia oral está ligado ao· intento de elaboração culta da como Oswald de Andrade, Manue do acervo
a reelabo ração artística
temática e linguagem populares e regionais, no sentido de enrique­ Andrade. Na obra deste últi mo, pes quisa
admirável empenho de
cer e personalizar a litera turn brasileira. cultural popular conjuga-se a um sib lida de, Mário
rmação e sen i
Embora aplaudindo os propósit�s nacionalistas .de Alencar, e reflexão. Com altas doses de info sua s rel çõe s com
Sílvio deplora que, "em vez da análise etnológic a e social", ele repensa a con stituição
do folclore brasileiro, a

icações na cri ção esté t ic a nacio­


nossa formação étnica e suas impl
ofereça uma "análise infantil, mic roscópica de p alavras , de ima­ a

leta, análi se e teo ri z a ção con­


nal. Entretanto, seus esforços de co
63
gen s , de figuras" : "o célebre polígrafo voltou-s e para as observa­
al br sile ir não
musical; a literatura o r a a
ções estéticas e os entusiasmos retóricos, s em lembrar-se que tudo centram-se no domínio
mát ico. De tod a
ele objeto de estudo siste
61
isso vinha bem fora do es cólio tratando-s e de poesia popular". No chega a constituir para
indicações e con trib ui p rati ­
seu entender, o papel único d a lenda popuiar "é repetir somente maneira, Mário fornece importantes qui , ajud ndo
o e sistematização dessa pes
65 sa a
a verdade do meio histórico"; no Brasil, a maneira adequada de
ca mente para a expansã
s e estimulando o trab
alho de
abordar esse material é o " critério etnográfico", que relaciona
a provê-la de bases instc itucionai
fo1·ma ção racial, miscigenação e cultura, com base no evolucionis­ folcloristas como Cfünai \ C ascudo.
es e críticos l iterários têm-
mo spenceriano. O co.nhecimento de nossa literatura oral deve ser Ainda no século XX, pesquisador
popular; e quando o fazem,
objetiv ado, a fim de subsidiar a compreensão da identidade n acio­ se ocup ado muito pouco da poesia a , so­
nal; m anipul ações artísticas e subjetivas são consideradas ociosas c ostumam assumir per s
pe ctivas p r óximas às da etnografi
ou relutân cia em · a bor d ar a
ou suspeit as. Envolvendo-a num olhar totalizante e simplificador, ciologia, antropologia. A re c usa
manifesta-se inclus ive em
Sílvio acomoda a poesià popular do Brasil na categoria suavemente l iteratura oral como objeto estético
se imanente da obra , p rocu­
subalterna dos objetos naturais, que demandam classificação m as estudiosos que, p rivilegi ando a análi
ais da criação popul ar. Uma
dispensam interpretação. ram evidenciar a s propriedades textu
as tentativas é a de Vladimir
Apesar de algum as propostas inovadoras, notadamente a que das primeirns e m ais notáveis dess
t a, que no início do século
sublinha a contribuição cultural do elemento negro em detrimento Propp, precursor da crítica formal is
ansformações dos contos
da indígena, Sílvio não escapa aos clichês ideológicos que marcam XX analisa sistematicamente as "Tr
pre missas são semelhantes
os estudos folclóricos na segunda metade do século: a poesia fantásticos" r ussos. Entretanto, su
as
s e, a vári os títulos, c om
pa ­
popul ar é toda feit a de primitivismo e inocência, e seu habitat são às da etnografia evolucionist a: "Pode- n n tu ez . O
as orgân cas a r a
ra r o estudo dos contos ao das form
i a
as regiões rurais provincianas. O popular urbano, com suas impli­
pa -se de fenô men os dive r­
cações potencialmente políticas e antagônicas, é enc arado com folclorist a, tal como o natu r alista, ocu "66
C mbi n ndo
idênticos. o a
desconfiança, como um fenômeno de degcne1:ação. A rejeição dos sos que, em sua essência,__s ão todavia
produtos imjmros estende-s e às fo rmas híbridas e criações hetero­ l ngü ístic s, as tipologias c onstruídas
inspirações biológicas e i a
discursivo dos textos, sua
doxas onde se mistu1·am o culto e o inculto. E como de hábito, o por Propp secundariza111 o estatuto ca
conceito de poesia popula1· constró i-se a p artir de critérios de
cap acidade de significar. O que está em jogo é "a uni ão mecân i
os contos não diss esse m
exclusão:· ausência de autoria individualizada, de doc umentação, das p artes constitut i vas" - como se
67

exercitar as poss ibili dad e s


de lavor artístico, ele s entido histórico ativo. propriamente nada, limitando-se a .
uma língua n arrativ a
Os empreendimentos de Sílvio Romero folclorista encontram paradigmátic as e s intagmátic as de
poucos continuadores em sua épo ca. Será necessá.-io esperar os
anos 20 para que se produzam novos trabalhos de peso sobre
poesia popular bra sileira. Alimentado pela vontade de renovação
estética e pelo nacionalismo cdtico do Modernismo, o inte1·esse
\
332 Popular 333
Populm·

Conclusões e Propostas ue as p rodu­


pr ocedimentos adequados à sua investigação, aCirm a q
dem s ente ndidas
ções da arte primitiva ou rústica "não p o
er
Muitos e qu ívocos e l imitações problematiz [o estudio-
a m o c ont at o e ntre a q
mediante a aplicação pu ra e simples dos métodos
ue
discu rsos e sujeitos tão difere ntes: escritu relativa
ra e oralidade, folclorista b a
so de literatu ra] está. habituado , e que supõem na o r uma
e folclore, crítica er u dita e
p oesia iletrada , teoria da literatura e sã , d eci­
au ton omia, p ois, mesmo quando t ranscritos , nã o o textos
prática literária popular. Tinha razão Araripcj t, o
10
". A
ú nior, ao considerar frávei s diretamente. Não podem ser desligadas do contex
a poesia popula r "tão d ifícil na verdadeir
a inte1·p retação [embo ra) ombinação de
tão fácil na apar ência".68 Sua abo rda gem p e co mp reensão da poe·sia p opu lar demandaria a "c
lo p ensame nto acadê­ ogia e análise
mico é um caminh o cheio de percalços e arma pelo menos três disciplinas , ciência do folclore, sociol 71
dilhas que é preciso ção justa" .
reconhecer e evitar: o viés
do exotismo , as reduçõe s de f
literária que , isoladamente, não permitem interpreta
o -a da e scritura
determinista, as manipulações co rrupt oras de
eição
Mas a prevalência de sua função social, distinguind
a s erudita s
lógico, o co modismo dos quadros ge no lógi
cu nho político-ideo­ artística, imporia u ma prioridade : "No limite, as form
cos e tipo lógicos insti­ s de m odo
d e l iteratura dispensam o po nto de vist a sociológico , m
a
tuídos.
rais dispensa­
A "estranha língua do povo", o "difícil s aber alg um a anális e estética; e nquanto as su as formas o
de vista
encontram na criação pop u
fácil" que se riam a análise estética , mas de m od.Q algum o p onto
lar parece m provocar nos estudiosos • 1 , • n'1'>-
apreciações co ntraditórias: ora se atribu i à SOCIO o g1co.
poesia oral uma na tu­ Até certo ponto, não se pode negar razão às ponderaçõ
es de
reza vis ceralmente indefinível e incapturáv nanim en­
e l, ora se pre te nde l r é um d
equ acionar toda a sua signific Candido·. O se ntido social da poesia pop u a da o u
ação a partir de co nd icioname C be p rém bs var q
ntos te rec onhecido e pr atica mente inegáve l. a o o er ue
c ontextuais. Imprecisão m eta física e rigide també
z de term inista conju­ a vinculação com exp eriências e expect
ativas c o muni tádas m
gam-se nas perspectivas dos estudos folclóric n tável
o s. A ênfase no traba­ si analis c m
integra a produção literária cu lta, e tem do ada o o
lho de coleta, co m se us preceitos de do
cumentação rig orosa , Candido.
convive com manifestações de frustração argúcia e rara sutileza pela obra crítica do próprio
e ceticismo q ua nt o à c nstitu ição dos fat ores
possibilidade de prese1-var na escritura as qualidades Parece-me que o pressu posto de qu e a re o
da enunciação d p si il trada que
�ontextuais é mais necessária à compree nsã o a oe a e
viva, freqüentemente acompanhada de ele men na p imeir
t os musicais e/ou à da escrit a deriva me nos da exigüidade de teo r esté t ic o r a
dramáticos. O c aráter mutante e polifacetado l , a it açã
da expressão poética que do fato de o analis ta ocupar, em rela çã o a e a um s u o
01'al·ajuda a dese ncorajar a abordagem literá
ria e a re str ingir as
d ifere ncial. Por su a origem social e forma
çãq acadêmica, o analist a
pretensões de pesquisa. Rogando qu e a lgum b u anto que a
m úsic a v enha co mpl ementar
om conhecedor d e
participa da cultu1·a que gera a literatura erudita, enq
seu esforço de docu mentação folcló­ ao qual é às
rica, Sílvio Romer o chega a desculpar-se pera nte cultura iletrada é um mundo do qual está ausente e
maçõ es
limitações d o reg·istro: "D epostas aqui no p
o s leit ore s pelas·
vez es completamente. estranho. Assim, o aparat o de infor
ar seu aces­
canções não têm graça ne nhu ma; em seu me
ape l, a s letra s dessas
históricas, sociológicas, antropológicas etc. pode facilit
não impede
dançadas, const1t .
ue m_ e ncantadores d'1ve rt1me
io natu ral, ca ntadas e so a· essa linguagem desconhecida; mas não dispensa,
. n tos popu1 are s. n69 e não desautoriza a intúpretação estética.
A carência de formação musical é também u
m dos motivos Quanto ao "silenciame nto" do texto na página esc1·itã, é certo
que levam Ant o nio Candid o a re nunciar ao p1·
ojct o de analisa r qu e coloca p1·oble m:\s su plementares ao trabalho analítico-inter­
esteticámente o cancioneir
o popu lar e m Paneiros do Rio Bonit pretativo de base literária. Mas isso não impede o es peciali sta de
Abandonando as considerações literárias e m o.
prol dos aspect os explorar, nest e obj et o co mplexo, os do mínios que lhe são ace ss í­
socioecon ômico s que e nv olve m
a p rodução de poesia oral, Candi­ veis. Afinal, as canções p opulares não s ão o único caso de text os
do faz u ma opção que mais tarde formaliz ar
á e m Literatura e poéticos participando ele manifestações multimídia . Os manuais de
sociedade. Discutindo a especificidade da lite ratura
popular e os h istória literária dâssiw estão cheios deles. Muit os p oemas antigos
335
Pof1ula1·
334 Popula1·'
re­
ha 1·m o nia da s coisas
natu rais. O bel o da rep
e medie vais, originalm ente entoa dos ao som de acompanhamento na inofensiva é habitado p elo
prio p oçl er, seu perigo:
musical, são acolhidos pela consideração d a c r ític a literá ria, que sent ação p o ssui seu pró p gonista tanto da
espí rito humano,
rot a
nsf o ad o r do
tr tal obje to, o intelectual
não se acanha de debruça r-se sobre eles no si lêncio do escr it ório. germe a rm
n da r e vol ução . Ao lidar com
O fato que text os drnmático s des tinam-se fundamentalment e à evoluçã o q ua to
a ver dadeirame nt
e histórica.
a o suj e itar -s e à sua companhi
e ncenação não o s s ubtrai ao exame dos. especialist as em l iteratura . é obrig d a
a si mesmo como parte
nd o u nã o , a rri s ca -se a de s co brir
Então o que justifica a idéia que o poema folclórico ou pop ular, E, que r e o
a em sujeito: po deroso,
ente s e t ransfor m
desp ido de so m e imagem, se tra nsforma forço samente cm "letra desse objeto q ue subitam
.
morta"? formoso, teimoso sujeito rada é querer
Sonegar nt id o e o efeito artísticos da criação ilet
Final mente , a tendência a ent ronizar a poesia popular na o se
s que en tre temos com
t6ricos e subjetivo
esfera imacu lada da palavra vo látil pode r epresentar um m ecanis­ ignorar ou anular os laços his s r mapeada,
natureza morta, geografi a a e
mo suti l de exclusã o: co nceituar um obje to de maneira a r evesti-lo ela. É reduzi-la ao estado de lista q nã o pisa esse
nteiras nítidas, por um ana
ue
de uma aum inefável, de uma natureza inapreensível,. equivale em ordenada com fro . A ab ordagem
do-o sempre de l
onge e de cima
certa medida a confiná-lo longe de nossos olho� e de nossas mãos, terreno, enxergan contat o d i r et �. 1; sco de
e olhar próximo ,
g uardá-lo intacto e frágil na redoma do pas sado, interditar-lhe t oda estética, ao contrário, exig elemento ma is e sc a m o t ea d o nos
epõe em cena o
possibilidade d e conexão com o presente vivo e ativo. contam inação. R : p oet a em
tratam de poesia pop ula r o
Pa ra evitar tais disto rções, co nviria franquear ao concei to de discursos "científicos" que ta. R nst aUl-a
em e para quem fala o p oe ei
poesia popular as portas de uma his toricidade que l he tem sido pessoa, e as pessoas de qu orai s. Ob rig a a l ida r
repetidamente recusada, mediante dive rsas est ratégias de (não) um jo go atravessa
do por emoções e v alores m a p ró p rio
ade: a da poesia po
pular e do
int erpretação. No quadro contemporâ neo, iss o inclui, entre outros com uma dupla individualid im p das c m
s diferenciadas e todavia
llca
cuidados , ieva1· e m conta as modific ações das formas de re gistro analista, como identidade os.
convívio e parente
sco profundamente human
do texto popula r, que já não se limitam àquelas outro ra mon op o­ enfo qu e soc i o lógico, assim como a
liza da s pelo col etor de folclore. Refiro-m e particularme nte à tec­ A pr iorização extrema do ecem a lei tur a
da poesia· popul ar, favor
nologia do regist ro fon ográfico e suas derivações, que no século si mpl ificação mit ológica seus aspectos sing ula­
a minimiza ção de
XX abriram n ova via de expressão aos produ tores de poesia grosse ira, co nivente com zante s e su sc it am
a fe ição
r is m a exp licações generali
o ri undos das classes economic a mente s ubalternas. r es , q ue es te
ação humana, se
ja el indivi­
a
tiv e me nt e p e ssoal de t oda cri
Na medida em q ue a problemática da co leta recua para segun­ irr du l i stérios,
e nciação e seus m
e
let iva . Ti ran do de cena a difer da,
do pl ano, em relação à prioridade que lhe e ra atribuída ainda nas dual ou c o
nd a necessidade de
interpr etação particulariza
p1·imeiras décadas do século XX e às dificuldades técnicas que sec nd ar iz a o ,a bj et i­
el o ol har e sté tico
u o
da pe o o lh a r s ubjetivo co mo p er
suscit ava, torna-se mais evidente que outras são as principais tarefas im p l ica l
ia de poder: permite-s e faz
l an te pr atica u_ma est ratég
a c umprir; outro é o verda deiro ce ntro nervoso da relação ent re va ção tot a iz
da, para mel hor
sub e­ m
ia da div e rs i da d e da cultura iletra
intelectua is_ e cult ura popular. No caso específico da poesia oral, a eco nom pontar-l he o seu lu,gar
t ê-la ao controle
do saber institucional e a
que stão prio ri tária nã o é mais dar-lhe es cri ta; é dar-lhe lei tura, qu ieta a multiplicidade
le itura l iterári a. aquele c anto afa
stad o onde se aperta e a
ubr.
A relutância em tratar a poesia popular como um artefato dinâmica da literaturn. po p
estétic o ·p:u·ece - me sintomática de um probl ema que extrapol a as ***
fronteiras da crítica li terária, manifestando -se cm todos o s saberes
e di°sc u1·sos qu e fizeram da c ultura ile trada objeto de s ua conside­ o algumas
rmo sem haver r esol vid
ração erudita. R�c o nhec e r o cará ter estético d e um objet o implica Este percu rso chega ao te a efin ição do
início. Não atingimos um
d
e m ver ne le u ma espécie de be leza diferente daquela q ue r epous a questões que coloc;1va no
'' 336 Popular Popula,·
3)7

popular nem identificamos o perfil de sua literalura. Mas no estágio a poesia popular, poesia de um outro que se deseja e procura. Ele
incipiente em qu e se en contra a discussão, o que me parece se encontra logo ali. Onde é p o ssível ouvi-lo - ainda q ue seja nos
indispensável não é decidir s obre o corpus ou a essência da livros. E falar-lhe - mesmo que só p or escrito.
literatura popu lar, e ~sim assegurar a permanência, senão a institui­
ção, de um diálogo enriqu ecedor entre cultura leLrada e iletrada.
Para ser efetiv o, para ser h onesto, esse diálogo tem de começar Notas
pelo questionamento da hierarqu ia lítero-cultural que, instalada ,
escrito (Sã o Paul o: Martin s fontes
entre criação erudita e popular, reduplica velhos mecanismos 1. Cencvicve Bolleme, O Povo po1·
ide ológico s.das hierarquias socioeconômicas. Disp or-se ao diálogo 1988), p. l.
é abdr espaço para u ma verdadeira parceria, onde se compartilhe 2. Bol leme, ibid., p. 34
3. Cf. Bolleme, ibid., p. 39.
o direito à voz e ao sentido. Rec onhecer o efeito estétic o da poesia Bolleme, O Povo, p. VII.
4. Jacques Le Coff, "Prefácio", em
p opular, expor-se à sua seduçã o, é um passo fundamental desse ::i Ch::iuí, Se111inrfrios - O Naciona l e o Pojmla1·
5. Vrnncken, apud Marile n
siliense, 1983), p. 6.
propósito. E os estudiosos de literatura estão certamente entre os n a Cult1:m Bmsileim (São Paulo: Bra
mais apto s a empreender esse passo. 6. Observe-se que n o século XVI
I, o sentido de "honnête" não remete
nto legal de um indivíduo; designa
Empreendei· uma relação estética com a poesia popular, con­ prioritariamente para o procedime
stigiosa e honorável, conhecedora
siderando-a integralmente como um discurso literário, nã o é cer­ antes a pessoa digna de apreço, pre
padrões da "boa sociedade". Neste
tamente coisa simples. Exige l ongo aprendizado, empenho e praticante das convenit:nci,ts e
tlefinição, registrad;1 n o Diction-
sentido deve-se entender a primeira
intelec tual e afetivo, consciência salutar d o própri o desamparo les Choses ... etc., edição de 1697. A
11aire Fm,nçois Conte-,_iant les Mots et
teórico e metodológico. Mas os obstácul os recuam quando se e de l'Académie Française Dédié a11.
vislumbram ou imaginam as dimensões d o h oriz onte ofer ecido a segunda definição é do Dictiomwii"
e, O Povo.
tal empenho: enrique cer o universo estético rec onhecidamente Roi , ediç ão de 1798. Apud Bollem
7. Cha11í, Sem iná1 ios, p. 21. ent
p ovoado pela linguagem humana; relacionar-se mais intimamente 1818: Désignan l Social ou ln strum
8. Tournier, "Le Mot 'Peuple' en
o, p. 38.
com a alteridade, iluminand o a sua e a nossa própria condição; Polilique?". apud Ilollcmc, O Pov p.
oire de l . L 11gu e Fwmçaise, apud l\ollcme, O Povo,
fortalecer a disposição para a interação p olítico-s ocial, implodindo 9. Nouvcau Dictionn a a

as dicotomias ordeiras que põem cada sujeito no seu lugar, repen­ 22. icos e
ato Ortiz, Cullum PoJmlar: Ro111á.nt
sando a ética da democracia, transfor mando a história; conquistar 10. Jolrnnn C. T·Ierder, apud Ren
1985), p. 15.
Fol.cloristos (Sã o Paulo, PUC/SP,
um inestimável mana,�cial de sinais a interpretar, oferecend o novas
Poes i Jngê mia e Sentimenta l (São Pau lo: Iluminuras,
alternativas à hist o1-iograíia das mentalidades; aprofundar e sutili­ 11. Friedrich Schiller, a

zar questões ainda mal resolvidas da literatura es crita, como as 1991), p. 60.
12. Schiller, ibid., p. 41.
rela ções entre tradição e modernidade. ç;"io", em Schiller, Poesia, p. 15.
13. Cf. Márcio Suzuki, "Apresenta
Apesar de aplicar-se a investigar e denunciar a grande omissão 14. Schiller, ibid., p. '11.
leva Friedrich Schlegel, na mesma
d o pensamento acadêmico sobre a literatura popular, que é dar-lhe 15. É uma pcrspecliva como esta que
poesia homérica a uma combinaç
ão
leit ura, este trabalh o nã o escap ou a tal omissã o. Falou de muita época, a atribuir a excelência da ser cred itad a à
que esta i'.1ltima dev
de "instinto" e "intenção", ainda
a
coisa escrita e publicada sobre a poesia oral, e não deu a ouvir leg , Atlumii u.m­
". Friedrich Sch cl
sequer um verso de qualquer cançã o. Ficam o s por assim dizer na "verdadeira ;,.utora dela, a natu rez;,. resentação", em Schiller, Poesia,
d Má rcio Suz uki, "Ap
Te oria. Mas a Teoria não é só o saber presente, é também a vontade Jragmente, apu
do saber futuro (e passad o). Este ensaio pretende e espera que su a P· 21.
16. Bolleme, O Povo, p. 187. laine.
lacuna, sua margem de silênci o, lhe faça as vezes de principal célebre "Art cêtique" de Paul Vcr
17. Refiro-me à í1llima estrofe do cs s11btilités", cm Essa is (Paris: Ilibliol1 1t:-
mensagem e convite: que os estud os literários acolham plenamente
18. Michcl de Mont;,.ignc, "0cs vain
338 Popula1· Popular 339

que Charpcnlier/Fasquelle, s.d.), p. 61. Charles De Louandre comen­ 48. Hauser, ibid., v. 1, p. 202.
ta cm nota ao pé de página: "Cc mot de poésie populafre cst ici, suivant 19. Hausc1·, ibid., v. l, p. 201.
!ajuste rcma1·que de M. Ampere, employé pour la p1·cmicre fois dans 50. Hauscr, ibid., v. 1, p. 210.
notre tangue. Montaigne a fait lc mot et indiqué Je gcnrc." 51. Hauser, ibid., v. 1, p. 211.
19. Montaignc, ibid., p. 61. 52. Hauser, ibid., v. 1, p. 197.
20. Cario Ciuzburg, O Queijo e os Vennes (São Paulo, Cia. das Letras, 1987), 53. Hauscr, ibid., v. 1, p. 88.
p. 230. 51. Hauscr, ibid., v. 2, p. 392.
21. "La Beauté du Mo1·t" é o título de um ensaio de Michcl de Ccrtcau, 55. Hauser, ibid., v._2, p. 394
escrito em colaboração com D.Julia eJ. Rcvel, cm Michcl de Certcau, 56. Hauscr, ibid., v. 2, p. 389.
La Cullun: au Plwiel (Paiis: UCE, 1984. Col. "10/18"). 57. Hauscr, ibid., v. 2, p. 392.
22. Nicolas Boilcau, ArtPoélique, cm A. Chassang &Ch. Scnningcr, Recu.eil 58. Hauscr, ibid., v. 1, p. 210.
de Textes LiUéraires Français (Paris: Hachette, ·s.d.), p. 361. 59. O termo é utilizado por John Brand na apresentação de seu livro
23. Boilcau, Art poélique, cm Chassang & Scnninger; ibid., p. 358. Observaliom on PojJula1· Antiquities (Londres, 1777). Apud Ortiz, Cul­
24. Ginzburg, O Quei_jo,.p. 230. turn, p. 6.
25. Ginzburg, ibid., p. 230. 60. William]. Thoms, apud Ortiz, ibid., p. 5.
26. Jules Michelct, Histoire de la Révolution Française, apud Bollcmc, O 61. Raffacllc Corso, Folhlo1·e: Estoria, Obbielto, Metodo, Bibliografia, apud
Povo, p. 70. Ortiz, ibid., p. 15.
27. Michelet, L'Etudiant, apud Bollcme, ibid., p. 75. 62. D. Comparctú &A. D'Ancona, CantieRaconlid.elPopololtalian-0, apud
28. Michelet,Journa/, apud Bolleme, ibid., p. 75. Sílvio Romero, Estudos sobre a Poesia Popular do Bmsil (Petrópolis:
29. Michclct, Le Peuple, apud Bolleme, ibid., p. 77. Vozes/Governo cio Estado de Sergipe, 1977), p. 101.
30. Michclct,Journa/, apud Bolleme, ibid., p. 72. 63.. Romero, ibid., p. 130.
31. Michclct, Nos Fils, apud Bollcme, ibid., p. 72. 64. Romero, ibid., p. 104.
32. Michelet, L'Etudiant, apud Bollemc, ibid., p. 72. 65. Romero, ibid., p. 71.
33. Michclet, Nos Fils, apud Bollemc, ibid., p. 72. 66. Vladimir Propp, "Les Transformations du Conte Fantastique", em
34. Michelet, "Préfacc" à l'Histofre de Fmnce, cm Michclct, lnl1-odu.ction à Tzvetan Todorov, org., Théorie de laLilléralure (Paris: Scuil, 1965), p.
l'Histofre Unive1'Selle / Ta.bleau de la Fran.ce /Préface à l'Hisloire de France 234.
(Paris: Librnirie Armand Colin, 1962), pp. 165-6 . 67. Propp, ibid., p. 237.
35. Michelet, ibid., p. 166. 68. Trist.ão de Alencar Araripcjúnior, "Juvenal Galena", cm Obra C1-ítica
36. Michclct, ibid., p. 166. (Rio de Janeiro: MÉC/Casa de Rui 13arbosa, 1963), v. 1, p. 49.
37. Michelet, ibid., p. 165. 69. Romero, "Novas Contribuições para o Estudo do Folclore 13rasilciro",
38. Michelet, ibid., p. 169. cm Histó1·ia daLitemtura Brasileira (Rio de Janeiro:]. Olympio, 1943),
39. Michelet, ibid., p. 169. v. 1, p. 163.
40. Michelet, Nos Fils, apud Bollemc, O Povo, p. 72. 70. Antonio Candido, "O Escrit�r e seu.Público", cm Literatura e Sociedade
41. Michelet, "Préface", p. 170. (São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1985), p. 48.
42. Cf. André Lagardc & Laurent Michard, Les Crands Auteurs Français 71. Candido, ibid., p. 14.
duProgmwme (Paris: 13ordas, 1966), v. 1, p.1. 72. Candido, ibid., p. 51.
43. Jacquclinc Romill}', PersjJectives Acluelles sw· l'Épopée Homérique (Paris:
P.U.F., 1983), p. 15.
1.1. Arnold Hauscr, Hi.sto1·ia Social de la Literatura y el Arte (Madrid:
Guadarrnma, 1969), v. 1, p. 211.
15. Hauser, ibid., v. 1, p. 92.
46. Hauser, ibid., v. 1, pp. 92-3.
47. Hauser, ibid., v. 1, p. 192.
; ' 310 Popular
Pofnd.a.1· 311

de Janeiro: J.
Bibliografia 20. __. Hist61-ia da Literatura Brasileira. 3. ed. aum. Rio
Olympio, 1943, 5 v.
ée h.omériq uc.
21. ROMlLLY, Jacqueline. Perspectives Actuelles sur l'Épop
l. ALENCAR.José Martiniano de. "O Nosso Cancioneiro". ln: __. Paris: P.U.F., 1983.
Obm Completa, Rio de Janeiro: Aguilar, 1960, 4 v. Trad., apres. e
22. SCHILLER, Friedrich, Poesia Ingênua e Sentimental
2. ARARIPEJÚNIOR, Tristão de Alencar. Obm C1itica. Rio de Janeiro: notas de Márcio Suzuki. São Paulo : Ilumin uras, 1991.
MEC/Cas::1 de Rui Barbosa, 1963, 5 v.
3. IlOLLEME, Cenevievc. O Povo por Esc,ito. São Paulo: Martins Fontes,
1988.
1. CANDIDO, Antonio. "O Escritor e seu Público". ln: __. Literatum
e Sociedade. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1985.
5.. CI-IASSANC, A. & SENNINGER, Ch. Recu.eil de Textes Liuéraires
Fmnça.is; XVIIe siecle. Paris: Hachetle, s.d.
6. CI-IAUÍ, Marilena. Se,_niná,ios - O Nacional' e o Popula,· na Cultura
Brasileim. São Paulo: Brnsiliense, 1983.
7. CINZBURG, Cario. O Queijo e os Vennes; o Cotidiano e as Idéias de
um Molefro Perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
8. HAUSER, Arnold. Histmia Social de la Literatum y el Arte. Madrid:
Cuadarrnma, 1969, 3 v.
9. LAGARDE, André & MICHARD, Laurent. Les Graruls Aute1m Fmn•
çais du Progrn111me. Paris: Bordas, 1966, v. I (Moyen Age).
10. MATOS, Cláudia N_eiva de. Ace1·tei no milita,�- Samba e Malandragem
no Tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
11. --· "Singular e/ou plural: o estudo das literaturas menores e sua
possível contribuição para uma nova historiografia." Revista34 letras,
Rio de Janeiro, 4: 1 2 2 3- 3,jun. 1989.
12. __. A Poesia Popula,· na República das Letms: Sílvio Romero Folclorista.
Rio de Janeiro: PUC-�. 1991. Tese de Doutoramento.
13. MENÉNDEZ PIDAL, R. "Poesía Popular y Poesía Tradicional". ln:
__ . Romancero Hispánico (Hispano-Portugués, A111ericano y Sefardí).
Madrid: Espasa-Calpe, 1953. Tomo l .
11. MICHELET, Jules. Intrnduction à l'Histoire Universelle / Tableau d e la
France / Préfa.ce à l'J-listofre de France. Paris: Librairie Armand Colin,
1962.
15. MONTAI CNE, Michel de. "Des Cannib::iles" / "Des vaines subtilités."
ln: __. Essais. Pi11·is: Bibliotheque Charpentier/ /Fasquelle, s/d.
16. MOURALIS, Ilernarcl. As Contraliterntm·as. Coimbra, Almedina, 1982.
17. OR.TIZ, Renato. Cultttm Pofmlar: Românticos e Folcl01-istas; Programa
de· Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais, texto 3. São Paulo:
PUC-SP, 1985.
18. PROPP, Vladimi.-. "Les Transfonnations du Conte Fantastique". ln:
TODOROV, Tzvetnn, org. Théo,ie de la Littérature. Paris: Seuil, 1965.
19. ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a Poesia Popular do Brasil. Petrópolis:
Vozes/Governo cio Estado de Sergipe, 1977.
�t·
,1,

;i�-

,.t
Tempo
1

Benedito Nunes

Preliminares

A introdução das categorias do espaço e do tempo no estudo da


Literatura e das Artes em ge1·al data do período de ascensão da
Estética no séc. XVIII, enquanto disciplina da experiência sensível
e do Ilelo (Baumgarten, Asthetik, 1750). Na Antiguidade grega, a
Poética de Aristóteles silencia a respeito do espaço, e apenas uma
vez, para reforçar a qistinção entre epopéia e tragédia, refere-se
expressamente ao tempo. A epopéia, lemos aí, tem duração ilimi­
tada, enquanto a tragédia limita-se, tanto q�anto possível, ao
período de um dia - a uma única revolução solar - porém,
conforme acrescentou um intérprete da Poética, no curso de um
_espetáculo, "que não deve passar de três até quatro horas" . 1 Uma
das bases da chamada rngrn das três unidades (lugar, tempo e ação)
adotada pelo Classicismo, essa distinção entre o tempo do espetá­
culo e o tempo da ação "imitada", objeto de mímesis, muito apro­
xima Aristóteles do nosso atual interesse téorico pela determinação
do tempo na Literatura.
No séc. XVIII, Goethe e Schiller reinterpretaram os anteriores
preceitos aristotélicos. Visando a diferençar aqueles dois gêneros,
relacionaram a duração ilimitada da epopéia com a mobilidade do
poeta, que pode atrasai·, adiantar ou deter a narração dentro do
foco do passado sob o qual ela recai, o poeta dramático permane-
Tempo Tempo 345
\1
!
lo imóvel diante da ação, que nos é apresentada sob o foco do da Estética do Belo, afirmando-se que as mesmas condições, o
ente. Lessing, contemporâneo dos dois, acentuaria em seu espaço e o tempo, dos dados sensíveis que nos afetam, também
oonte, que o desenvolvimento de uma ação, comum ao dramá­ impõem sua forma às representações artísticas . A proeza de Les­
e ao épico, impõe a esses gêneros um vínculo material com o sing não terá consistido exclusivamente em delinear a dicotomia,
)O, que lhes condiciona os meios (sons articulados), possibili­ ratificada por Max Dessoir no princípio do século (Asthetik und
o-lhes uma ordem própria de representações de todo diferen­ Allgemein Kunstwissenschaft, 1906), entre artes espaciais e tempo­
a alcançada na Pintura, ainda quando entre essa última e rais - estas últimasjuntando, como os antigos gregos, a Poesia lato
:Ies pudesse haver intersecção temática, garantida pelo princí­ sensu à Música - · não completamente separadas, conforme 1·eco­
le semelhança - ut pictura poesis - tomado a um verso da A1:s nheceria o autor do Laocoonte. Para M. M. Bakhtin, 2 o feito maior
cà de Horácio. de Lessing terá sido a antecipação do princípio da cronotopicidade
A intersecção temática discutida por Lessing naquele escrito isto é, do caráter temporal de imagem literária. No entanto, a
por base não uma obra pictórica, mas o grupo escultórico do Teoria dos Gêneros, proveniente da Poética de Aristóteles, sempre
a.A, 1·éplica da descrição da morte do sacerdote troiano tendeu a reconhecer esse caráter na Épica e no Drama, em ambos
:oonte, juntamente com os filhos, enlaçados por gigantesca uma decorrência do nexo que entretêm com os acontecimentos,
ente, no canto II da Eneida. Se o escultor traduziu a dor física posto serem duas· modalidades de mímesis da ação, a primeira
�sforço das vítimas no relevo dos músculos e na tensão das narra11do-a simplesmente, como sejá transcorrida fosse, e a segun­
.as e dos braços - a figura central do sacerdote tem a boca da apresentando-a em decurso conflitante - por meio de agentes,
nente aberta - omitindo, no entanto, na expressão facial dele, ac1·escentaria Aristóteles. A Lfrica teria um regime temporal inde­
nais dos "clamores horrendos" que profere, segundo verso ciso ou excepcional. Sendo expressão vivencial, atribui-se-lhe a
>so de Virgilio, não o terá feito por eventual infidelidade ao imediatidade de que resultaria a preponderância do presente, mas
elo ou por incapacidade para transpô-lo. Culminância de uma não de "uma atualidade que se processa e distende atrnvés do
progressiva descl"ita no poema de Virgilio, a ênfase do grito tempo (como na Dramática), mas de um momento eterno". 3 Po.rém,
ida foi na escultura, que só pôde .figurar um momento (mico na interpretação de Emil Staiger, a Lírica, posta, consoante a
lesma cena pela proporção dos corpos e pelo seu equilíbrio Filosofia de Martin Heidegger (Ser e Tempo, 1927), que o autor
métrico. A transposição do motivo comum de uma a outra arte adota, sob a dependê.ncia do Stirnmung (estado de ânimo), será a
!-se às condições que lhes delimitam os meios: o tempo para instância da Recordação (um nome para o recolhimento não
ms articulados na Poesia e o espaço para as cores e volumes distanciado da experiência), sem que, por isso, se vincule exclusi­
intura e na Escultura. Assim o tempo possibilitou na Poesia a vamente ao passado. "Fatos presentes, passados e até futuros
podem ser recordados na criação lírica." Na verdade, porém, o
·ação que o espaço vedou na Escultura.
Publicada depois do Laocoonte (1776), a Crítica da Razão Pura que tem sido teoricamente mais adentrado é o estudo do tempo
1), de Kant, consignou, em sua primeira parte - Estética como forma de articulação dos.eventos na obra literária, particu­
1scendental - a função do espaço e do tempo enquanto larmente nas de feição narrativa, em que esse papel é mais saliente.
lições a priori da sensibilidade, que possibilitam, como intuições Como, então, o tempo, que é uma categoria: da realidade,
s, a Órganização da experiência cognoscitiva, mas com ascen­ articula os eventos na obra literária? Ou, formulando-se a mesma
:ia do segundo sobre o primeiro, uma vez que o tempo questão de outra maneira: como é que a obra assimila, em sua
niza numa 01·dem interna, sucessiva, pe1·cepções quaisquer, transação com o real, essa categoria? Por outro lado, o tempo em
no as já estruturadas pelo espaço numa ordem exterior e literatura, de modo particular na narrativa, está em conexão com
tensiva. Dado o extensivo alcance da Estética Transcendental, o espaço. "Chamamos de cronotopo (literalmente, 'tempo espa­
ável à sensibilidade em geral, pode-se extrapolá-lo ao domínio ço'), diz Bakhtin, a intrínseca conexão das relações espaciais e
3'1(5 TemjJo
Temj;o 317
temporais que são artistic�mente expressadas na literatura."5 No
entanto, muito emborn a unidade temporo-espaci a l da Teoria da Essa dupla e xperiência, contar com o tempo quando agimos
Relatividade , que Bakhtin tomou por modelo, se espe lhe nesse e medi-lo em proveito de nossos quefazeres, não só precede, como
termo, o te mpo é, no cronotojJo, t al como na Estética Transcenden­ gui a a sua conceptualização. Filosoficamente, os primeiros concei­
tal de Kant, a categori a dominante, sob a dependência da qual o tos de tempo pi·ovieram da consideração astronômica do apareci­
espaço se concretiza. A cronotopicidade, ou sej a, a ócorrência de mento recorrente dos corpos celestes. Assim Platão nos dirá no
diferentes e spécies ou figuras de conexão dos eventos, marca o dialógo Timeu que o tempo nasceu com o Céu. Depois disso,
caráter temporal da na1Tativa. Aristótel es pode ria escrever na sua Física, generalizando esse nexo,
Assim podemos admitir, repe tindo a afirmação mais geral do que o tempo é a medida, o número do movimento como rel ação
n�rrador de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, que o tempo entre o anterior e o poste rior. No séc. XVII, o físico Newton
"é o ele me nto da narrativa, assim como é o elemento da vid a; e stá considerou parcial e sse conceito: Aristótel es definira o tempo
inseparavelmente ligado a ela como aos·· corpos no espaço; é relativo, " aparente e vulga r", que p1·e ssupõe um tempo verdadeiro,
também o el eme nto da música ... ". Aproximando a narrativa da uniforme e infinito, comparável a um rel ógio universal único. Mas
vida, o tempo também a li ga i-ia à Música. Vere mos que não é tanto para Aristóteles quanto para Newton, o tempo é um a cate­
descabido esse ne xo analógico, depois de uma rápida reflexão goria, ou seja, uma determinação do real, independente da cons­
,obre o te mpo. ciência do sujeito. De passagem, mencionamos a nteriormente a
concepção de Ka nt. Embora diferisse de Newton, porque enquan­
to condição a priori da sensibilidade o tempo está vinculado à
Do Tempo estrutura do sujeito de conhecimento, Kant, no entanto, preenche
o conceito respectivo.com o mesmo contéudo que lhe emprestou
=:omo o espaço, o tempo é uma noção difusa, mas de tal modo o físico inglês: a sucessão uniforme .
:ntranhado à nossa atividade, que todo mundo parece sabei· em Mas, indepe ndente mente das diferenças que as separam, as
1ue consiste antes de tentar conceituá-lo. "Que é, por conseguin­ concepções de Aristótel es, Ne wton e Kant concordam quando, na
e , o te mpo?" pergunta Sto. Agostinho no Livro XI de suas base da idéia de .sucessão uniforme, tomam o tempo como um
;or':[tssões. "Se ningúem me pe rguntar, eu o sei; se eu qu iser processo natural, objetivo, regul ar, irreversível e quantitativo, ex­
:xplicá-l o, a quem me fizer essa pergunta.já não saberei dizê-l o." presso mediante grandez as, que se divide em internalos cada qual
:ssa decla ra ção paradoxal equivale à admissão de que se tem corre sponde ndo, segundo dizia De scarte s cm seus Princípios, à
cerca do tempo· um · sa b er espontâneo, não re,flexivo, mas prá­ duração de cada coisa. Os Intervalos variam e a duração de uma coisa
ico, que se torna extrema mente difícil traduzir em conceitos. difere da de outra quanto à grandeza ou à quantidade. Desse ponto
1edimos o tempo e pelo tempo regul amos nossas ta refas coti­ de vista, cabe rnzão a Kant, quando afirma que tempos diferente s
ianas. Sabemos del e para agirmos e enquanto agimos, como são partes do me smo. tempo, esquecendo-se, porém, de considerar
�ste munham as frase s comuns da linguagem de todos os dias: a simulta.neidade, em que espaço e tempo interdependem. Essa inter­
re ciso de mais tempo a manhã, hoje não me sobra mais tempo dependência nos acontecimentos simultâneos, entre os quais não _I
ara -ler; agora é te mpo d e se mear, amanhã será tempo de existe uma relação espacial absoluta ou um relação temporal absol uta,
::ilhe r, _e tc. Preocupamo-nos com ele, consultando relógios, que estampa-se na Teoria da Relatividade de Einstein, do séc. XX.
io os vários instrnm e ntos - ampulhetas, clepisidras, relógios Passa mos a uma outra ordem de idéias, saltando do quantita­
e sol, 1·elógios mecânicos - usados para medi-lo, tomando tivo ao qualitativo, quando tentamos descrever, t al como o fez Sto.
)
:mpre por base um movimento periódico, repe titivo, de inter­ Agostinho no me smo XI Livrn de suas ConftSsões, a experiência
dos iguais ( cronome tria). vivida do tempo, que se de sdobra em presente, passado e futuro.·
Este ainda não existe, o se gundo já deixou de e xistir e o primeiro
Tempo 319
Tempo
presente, com base numa tradição, e também de um "horizonte de
:e tornando-se passado. O Santo Doutor, à busca de algo expectativa" em relação ao futuro. Muito embora não possamos
nanente que pudesse dissipar essa ilusão de três distinos tem­ ter do tempo um conceito único, e por mais que o tempo seja
encontrou na atividade da alma, criada por Deus, ser eterno conceitualmente múltiplice, suas modalidades - físico ou natural,
emporal, o movimento que os une num tríplice presente: o do psicológico, cronológico, histórico - que acabamos de distinguir,
ado, através da Memória, o do futuro, através da expectativa, admitem noções comuns: ordem (sucessão, simultaneidade), dura­
lo presente, por meio da atenção. Mas sob essa união, que ele ção e direção.
)minou de distensio animi, alteram-se os anteriores parâmetros.
que se me refiro à Memória, o passado é recordado, se me
o à atenção, o presente é o atual estado do sujeito, e se me
Temp o e.Narrativa
o·à expectativa, o futuro é antecipado. Em vez do mensurável
1_rso de uma sucessão, temos agora, em cada caso, urria vivência O que possibilita discernirmos a inseparável ligação do tempo
!mpo ou o tempo como estado vivido. Em "ez da duração de com a narrativa não é o estudo desta do ponto de vista de suas
coisa exterior, apresenta-se-nos a duração interior: o fl'uxo da estruturas, que nos deu os motivos ou constantes de Vladimir
ciência, no qual, diria{!ergso}"l) muitos séculos depois, os Propp (Mo,plwlogi.e du Conte, 1970) ou as funcres indiciais focaliza­
ios vividos não se adicionam simplesmente, mas se interpenc- das por Roland Barthes ("Introduction à I Analyse structurale des
1.
Recits," 1966), mas a sua fenomenologia: a descrição dos traços
Não se precisará· insistir, como primeiro traço desse tempo essenciais que lhe constituem a identidade própria e sem os quais
o ou p.sicológico, n_a sua descoincidência ·com as medidas ela não seria concebível. Assim, um primeiro traço é a disposição
)orais objetivas. Qualitativo, ele é também subjetivo. E embora dos acontecimentos entre um começo e um fim (Christian Metz,
>ém irreversível, separa-se do anterior, natural, como tempo "Remarques pour une Phénomenologie du Narratif', 1966). Mes­
mo, do qual é uma das expressões eminentes. Mas o tempo mo as narrativas inacabadas ou interrompidas se desenvolvem
ina• nte, socialmente falando, o tempo com o qual contamos, criando a expectativa de um fim, numa seqüência temporal. Implí­
�rando aquele saber espontâneo, referido linhas atrás, não é cito à disposição entre_ começo e fim está o ato de narrar, e portanto
o psicológico nem o natural; é, sim, o cronológico,6 que acres- - segundo traço - um discurso seguido, que articula os aconteci­
i à repetitiva uniformidade do segundo a diferenciação quali- mentos que nos são apresentados.
1 das datas, firmadas num acontecimento que lhe serve de eixo Mas o discurso, oral ou escrito, é uma seqüência de frases e de
·encial (nascimento de Cristo, Égira, etc.), anterior ou poste­ palavras, que tomam o tempo quer do narrador quer do ouvinte
nente ao qual outros acontecimentos se situam. Trata-se de ou do leitor. Novamente encontramos nessa seqüência de palavras
empo socializado ou "público": seqüência sem lacuna, contí­ e frases encadeadas uma escala temporal. Aqui, porém, o narrador
:'! infinita, tanto na direção do futuro quanto na do passado, à
contando e o ouvinte escutando, se a narrativa for oral, o escdtor
se engrena o temfJo histó1-ico. escrevendo e o leitor lendo, se a narrativa for escrita, dispendem
Duas ace ões cruzam-se no tem o histórico:· a restrita, de um tempo que pode ser avaliado pelos ponteiros do relógio.
ção çurta dos acontecimentos singulares (guerras, revo uç&s, Esse tempo real do discurso já difere do tempo dos aconteci­
mentas religiosos ou sucessos políticos) ou da duração longa mentos - da dimensão episódica da narrativa ou de sua história.
1·ocessos (formação da Cidade grega ou advento do capitalis­ Dado que provoca a defecção do agora e do aqui, do nunc e do hic, 7
por exemplo), e a larga, aplicável nos limites de urna cultura, mesmo quando verídica, a narrativa nunca é um registro puro do
!:._P-ressur-oe tanto a continui0ade quanto a mudança de imediato; ela introduz, a partir do tempo do discurso em que se
ões de conduta, atitudes valorativas e formas de gensamm . apóia e que toca à realidade, um outro tempo, imaginário, não
.1ltura Ocidental,. é inseparável da persistência do passado no
350 Tempo Tempo 351

mensurável pelos ponteiros do relógio. E se o que narramos é No entanto, o ter'npo da narrativa, como obra ficcional, varia
mímesis praxeos, uma "imit ação" ou apresentação ficcion al da ação conforme a relação entre os dois tempos - o efetivo do discurso e
human a , o discurso entra, por meio d o enredo ou intriga, que o imaginário da história, ou, conforme a terminologia de Günther
reconfigura os acontecimentos, n a "unidade de uma totalidade Müller, em sua M01fologia Poética, 10 do narrai· (Erzãhlzeit) e do
temporal",8 n a órbit a d o tempo fictício da obra literária, c apaz de narrado (erzãhlte Zeit), respectivamente. Exercendo função estru­
durar Mil"e Um a Noites. turante, essas variações, como modalidades de relacionamento e
O tem/10 imaginário da ficção, condicionado pela lingu agem, de ajuste entre 9s aco ntecimentos na escala da ordem e da duração
liga momentos que o tempo real separa, inverte a sua ordem, do discurso é da história, são de dois tipos: anacronias e anisocronias.
pertu1·b a a distinção entre eles, comprime-os, dilata-os, retarda-os Estabelecidas por um confronto entre a ordem dos acontecimentos
e-acelera-os. Deve-se essa "infinita docilidade" do tempo da n arra­ no discurso e a ordem dos mesmos acontecimentos na história, as
tiva ficcional como obrn literári a à sua dup_licidade, pois que ele se p1·imeiras, que alteram a sucessão, chamam-se assim - anacronias
articula nos dois planos, nem sempre paralelos, da história e do - em razão do pressuposto ideal de "um estado de perfeita
discurso. Dizendo-se de outra m aneira: a dupla articulação desse coincidência temporal entre discu1·so e história". 11
tempo decorre do desdobramento da na1Tativa ficcional nos dois É uma anacronia o começo in media res, um dos freqüentes
planos: o do discurso - por meio do qual a narrativa se configura recursos da epopéia clássica (começo num momento avançado da
como um todo significativo - e o da históri a, que impõe aos ação principal, como nos poemas homéricos), que se prolongo u
acontecimentos, tradutíveis num resumo, um a inteligibilidade cro­ na técni.c a do romance (O Guarani, de José de Alencar, começa
nológica (sucessão) e lógica (relação de causa e efeito). "O tempo narrando eventos anteriores de um ano à data da ação principal).
do discurso é, num certo sentido, um tempo linear, enquanto o Comumente, esta é interrompida numa exposição separada, seja
tempo d a história é pluridimensional. Na história muitos eventos que recue a momentos anteriores, sej a que avance pela antecipação
podem desenrolar-se ao mesmo tempo. M as o discurso deve obri­ de posteriores: evocação ou retrospecção (analepse) e prospecção
gatoriamente colocá-los um em seguida a outro; uma figura com­ (Prolef1se), respectivamente, as qu ais podem diferir, em cada caso
plexa se encontra projetada sobre uma linha reta."9 concreto, quanto ao alcance (interval o que ocupam) e à amplitude
A história permite ret rocessos e antecipações. O discurso, que (duração do evento introduzido). A narrativa mo derna abandona
não pode ordenar senão sucessivamente as representações, mesmo a exposição separada: ora intercala seqüências retrospectivas ou
simultâneas, põe o tempo na dependência do ato de leitura através prospectivas, sem quebra de continuidade do discurso, corno em
do qual se realiza. Mas é nesse plano, atravessado pelo leitor, e onde Os Sinos da Agonia., de Autran Do urado, ou em Cem Anos de Solidão,
o tempo é unidirecional e rígido, sucessivo, que se concentram os de Gabriel Garcia Marquez; ora, desenvolvendo-se em ordem
procedimentos de técnica narrativa que possibilitam o seu ajuste inversa à cronológica, completa seqüências deixadas em aberto,
:om o tempo pluridimensional da história. No entanto, segundo o por um movimento para trás, tal como em Nostromo, de Joseph
11a1Tador de A Montanha Mágica, antes citado, é esse tempo do Conrad. AnalejJses e Prolepses podem chegar a uma escala miuos­
:liscurso que é o próprio da narrativa - "o tempo efetivo, igual ao cópica, as primeiras envolvendo as segundas: é o que se dá, em
:la música, o tempo que lhe dete1·mina o curso e a existência... " co1Telação com o seu foco narrativo em primeira pessoa, criando
\Tele· inscrever-se-ia, como por sobre a pauta de uma durnção a u.biqüidaclete-mfJoml dessa obra, no Em busca do Tempo Perdido, de
nusical, de um andamento, a que é análogo, o tempo do contéudo Marcel Pro ust.
1a narrativa , que é ap1·esentado sob uma determinada perspectiva, Na escala da duração, as variações entre o tempo dos aconte­
: isso de forma tão variável, que o tempo imaginário da narração cimentos e o tempo clispendido para narrá-los são diferenças de
anto pode coincidi,· inteiramente com o seu tempo musical quanto velocidade - também consideradas desvios - anisocronias - relati­
!ele diferir infinitamente". vamente ao parâmet1·0 abstrato de uma narrativa em que a duração·
'�
h
1:
353
Tempo
2 Tempo
dirige, num momento anterior a ela. É o leitor que at ualiza essa
história e o comprime nto do discurso se equivalessem. É voz como um quase-passado. Tal crença entra no pacto da ficção
'ícil, po1·ém, imaginar um texto narrativo sem tal sorte de estabe lecido entre o autor e o le itor.
·iações: um tempo imaginário bre ve pode combina1·-sc com Entretanto, pode ocorrer que o pacto, neutralizando seme­
1 discurso longo, graças à rapidez deste, e um tempo imaginá- lhante crença, silenciada a voz ou abstraída pelo narrador a dife­
longo com um discurso bre ve, desde que lento na seleção rença entre presente e passado, dê-nos a narrativa ficcional
; acontecimentos nanados. A celeridade ou a lentidão, impri- acrônica, a qu al abole a mobilidade do tempo imaginário. Acrônica
1do distintos andamentos ao discurso, levam-nos de volta ao é a narrativa de Kafka, de andamento vagaroso, com raras seqüên­
·alelo com a Música. Assim, as cluas primeiras figuras da cias retrospectivas e carece ndo de especificações cronológicas. Os
·ação, o sumário e o alongamento, seriam como o allegrn e o romances de Alain Robbe-Grillet, a exemplo de A Espreita e No
'.ante da forma sonata: pelo primeiro, recurso comum do Labirinto distinguem-se pelas anacroniasfortes: apresentam seqüên­
1ance tradicional, romântico ou realista, qu e abre via os acon­
cias sem índices retrospectivos, embaralhando a distinção e ntre
mentos num tempo menor do que o de suà supos·ta duração
presente e passado no tempo da história.
história, a narrativa ganhá em rapidez; 12 pelo seg undo, em
ai à c usta de digressões, os acontecimentos s e desenrolam em
iara lenta. 13 A cena, te rceira figura, coloca-se entre as duas: o
Do Tempo no Romance
:urso segue o ritmo dos acontecimentos. Porém as duas
14

mas variações, que escapam à analogia musical, consistem ou A questão do tempo é sempre colossal e está sempre presente para
bloqueio do tempo da história - enqu anto o do discurso o romancista, como escreveu Henry James (Roderick Hudson), não
ssegue (pausa) - ou -no bloqueio do discurso - enquanto o só por causa dos problemas de andamento e de ordem, bem mais
1istória prossegue (elipse).
15
amplos do que no conto ou na novela, mas antes de t u do porque
Registre-se, ainda, num plano distinto da ordem e da duração, o romance é u rna forma originariame nte comp1·ometida com o
aspecto essencial da temporalidade da narrativa, afreqüência, tempo. Independe ntemente das variações dos dois tempos, que lhe
·espondente à repetição, e nquanto dado da expe riência co­ proporcionam, como _a toda narrativa, o lastro formal de recursos
n do tempo, e que relacionada está com o emprego das formas poéticos e retóricos avalizadores da ficção e de seus e feitos estéti­
,ais durativas, aptas a traduzir o iterativo da ação humana, como cos, no romance - conclui Lukács - "o tempo se encontra ligado
1perfeito do indicativo na cena de abertura de Em busca do à forma" . 20 Antes mesmo que fosse a "épica moderna da burgue­
po Perdido, 16 marcando o prolongamento de um estado. Tam­ 21
sia", ou seja, a epopéia tornada prosaica, e como tal, a trajetória
. divisamos aí, por int ermédio do pretérito, utilizado quando de um herói problemático em COJlílito com o mundo e sob a
amos, uma ação transcorrida, e portanto, passada. De acordo compressão do tempo desconhecida dos heróis trágico e épico
o nexo gramatical estabelecido entre os tempos verbais e as (Nestor é sempre velho, HeLe na é sempre bela, Ulisses é sempre
; do próprio tempo, o pretérito seria a marca do recuo ao astucioso, obse rva o mesmo Lukács), a forma do romance, desde
ado de toda narrativa. Essa tese to1·no u-se problemática. Con- a sua pré-história na Antiguidade grega e latina, acha-se, conforme
.
l mterpretaçao
. - grnmat1ca1 arguem , ..1.amburgue r 17 - o
Kate JJ nos mostra Bakhtin, em estre ita conexão com o tempo, através de,
érito·indica não o passado e sim o desligamento da ficção com pelo menos, três cronotopos: I - o tempo da aventura do romance
18
ai - e Harald Weinrich - o pretérito, com o qual podem de provação (II a VI século d.C.), a exemplo do Daphne e Cloé, ele
�ver-se ficções sobre o futuro, indica uma situação de locução Longus; 2- o tempo misto do romance de ave ntura da vida diária,
. Se, no entanto, como assina
ativa. . Ia Ricoeur,1 9 a etorma grama- antecedente do romance picaresco, como O Asno de Ouro, de
se mantém, mat1i:endo o privilégio do passado, isso se deve à Ap uleio, e o Satirico:n., de Pet1·ô1:iio; 3 - o temp o e xteri<?r, público,
arrativa, que situa os acontecime ntos, para o leitor a quem se
1 Tempo
Tempo 355

, diálogo platônico e no encomium (discurso cívico fúnebre), séc. XIX predominaria, em consonância com o surgimento da
quanto formas germinais da narrativa biográfica ou autol?iográ­ História moderna, e com o início da "relogificação" da vida social,
a. a temporalidade cronológica que os textos de Balzac ilustram. Mas,
Nos lrês casos, o cronotopo, configuração do tempo em corre- em virtude de sua cronomo1fia, de sua vocação temporal, o romance,
ão com o espaço, responde pela forma da narrativa e pela visão que se entroncou à narrativa histórica, e cuja ascensão coincidirá
inundo e do homem inerente à obra. Para o tipo de história com a relevância tomada pelo tempo humano na Filosofia, abrange­
-..espondentc a 1 - a separação por obstáculos de toda sorte, rá, no séc. XX, a simultaneidade além da sucessão. Campo de
'.r� raptos, fugas, proibições, viagens cm tGrras diferentes, de confronto das diversas espécies de tempo, sua desenvoltura, como
is jovens amantes apaixonados� até final união - o �empo, sem forma híbrida e "onicompreensiva", corre a par de sua versatilida­
.tu!�ção, que não afeta a idade dos heróis e nem lhes dá de temporal, atestada, a partir do final do séc. XVIII, pela linha
ntidade histórica, é segmentado por várias sequências e diversos mais fecunda da produção romanesca, mediante os aspectos real­
·cui·sos, os a�ontccimentos sujeitos a uma lógica da con�ingência çados a seguir:
aso) de acordo com os reiterados motivos dq encontro/desen-
1tro, busca/descoberta, perda/aquisição. Nesse t�,n;ipo, que se A mistura lúdica - Encontraremo-la no autobiográfico Vida e
1 mecanicamente ao espaço, dividido em porçõ�s· equivalentes,
.Opiniões de Trislam Shandy, de Laurence Sterne. Zombando "das
undo se alternam distância e proximidade, liberdade e cativ�iro, convenções de enredo, com as suas exigências especiais e arbitrá­
,iar-se-á o esquema do romance de aventura e de viagens. O rias do começo, meio fim; da seqüência cronológica da ação que ·
wtopo 2, que aparece numa história de conversão espiritual, º º
co1b,a a c-6 ' · etn conJunto
l' rmu 1a art1st1ca · ... ", 22 esse romance, que
l)O O Asno de Ouro, cujo enredo, comportando um processo de integrou à criação ficcional os atos de sua escrita e leitura, responde
tamorfose (passagem a uma _condição ·extra-humana por culpa com humor ao próprio desafio do tempo, que atinge a históda
herói) e o desenrolar de uma viagem, toma corpo através de narrada, o narrador que a escreve e o leitor. Escrevendo-a, o
mentos extraordinários da vida humana. Mesmo assim, ao narrador, que retarda o episódio de seu nascimento, ainda não
.trifrio do anterior, o tempo deixa a sua marca no herói culposo; completado no vol. IV da obra, já está mais velho desde que
imido afinal depois da punição. Esse tempo, circuito isolado da começou a escrevê-lo; e assim, " como neste passo, viverei mais
,poralidade histórica, articula-se espacialmente pela estrada, que depressa do que escrevo... quanto mais vossas senhorias lerem,
:cedeu o caminho da vida no Romance de Cavalaria. Muito mais vossas i;enhorias terão de ler". Fugidio como o tempo crono­
:rente é o tempo de 3: o cronotopo da vida exterior, pública, em lógico da história, que dá saltos, sem preenchimentos dos períodos
: da qual, tanto no diálogo platônico quanto no encomium, toma vazios, é o tempo vivido, que contrasta com o tempo do ato de
na, na superfície do discurso, quando homem interior ainda escrita, este contrastando com o presente da narração, o qual vai
havià, a narrativa biog1:áfica ou autobiográfica, impregnada de de encontro à temporalidade do leitor. De tudo resulta o efeito
ntos histó1·icos. humorístico da trama tempo[al de uma narrativa "digressiva e
Uma forma específica de experiência do tempo, polarizada progressiva", que, sem ter propriamente um enredo, enreda, con­
eventos da vida coletiva, tenso em relação ao futuro, e que juntamente, narrador e leitor com as fintas de seu discurso divaga­ _,
�nche, por oposição ao tempo estático do conceito medieval de tório. Como Sterne, Machado de Assis não só ousou fintar a
:óda, o cronolo/10 d9 Gargantua e Pantagruel, de Rabelais (tempo fugacidade do tempo, driblando-o em mais extensivos lances, a
lórico), precede e prepara, sem que se possa estabelecer elos exemplo daquele de Memórias Póstumas de Brás Cubas - onde se
ransição, a absorção, no romance propriamente dito, impen- conta uma história a partir do fim, isto é, da morte do narrador J
1 fora do primado do homem interior e da vida individual, d<? para trás - e do movimento de vaivém que leva a sobressaltada
:orno temporal
. . ,. . �
e histórico
. . hu!11ana. No..romance do
da ação
' memória do nar.-ador em Dom Casmurro a recompor o passado;
)

}
56 Tempo Tempo 357

·ansformóu-o, também, nessas e em outras passagens de stia obra, ao enconçro do tratamento privileg;ado que essa categoria recebe
um tema de reflexão. das filosofias mais próximas da Literatura, como as de Bergson e
ronotopo do fluxo - A centralização da mímesis na consciência Heidegger. Ao contrário do tempo bergsoniano, que é psíquico, e
,dividual, no ciclo das mudanças que o romance experimentou do tempo newtoniano, físico, de Kant, o de Heidegger, expressa­
·
as duas primeiras décadas do séc. XX, . aliviando o enredo da mente _formulado como temporalidade, limite conceptual da com­
ueição ao princípio da causalidade, vigente na tradição do realis- preensão do homem enquanto s e r n - om
- undo e fundamento
10 naturalista, levou a um novo cronotopo, articulador da experiên­ ontológico das estruturas que o constituem em sua existência, não
a interna. E11cadeada esta no curso d� uma introspecção, através é nem subjetivo.nem objetivo. Nesse sentido, o ser humano não
1 qual as· situações externas e 9bjetivas sé. ordenam, o enredo está no tempo. Ele é temporal e sua existência um movímento de
1bsiste na trama de sensações e emoções .e, portanto, na trama de temjJoralização, comportando, por isso, uma perpétua concordância
oínentos imprecisos dofluxo da consci�cia. � the stream f!Íconscious­ discordante entre presente, passado e futuro, nos planos individual
iss, na expressão de William James..:... que· , expand�dos na direção e histórico da vida humana. Nessa. dialética da temporálização incide,
) passado ou pi'ojetados na. direção do futuro, à custa de sim,Joso mediante diversos recursos, a tematização do tempo, principal­
scurso, constituem o curso temporal da duração interior(ladurée), mente nas obras romancescas de Marcel Proust, Virgínia Woolf e
I como Henri Bergson o d�screveu em Os Dados Imediatos da James Joyce.
msciência (Lês bonnées Immédiai:es de )a Conscience).23 Suces­ Assumindo a posição do Eu que se deixa vivei·, o narrador de
o, pura, interior, ·comparável à unidade multíplice de uma melo­ Em busca do Tempo Perdido, levado de recordação a recordação, da
a, o cronotopo do fluxo diversifica-se rias obras romancescas de cena de seu despertar ao "paraíso perdido" de sua infância, reen­
arcel Pr1:::mst e Virgínia Woolf. · · contrará o tempo quando descobre a lembrança espontânea, de­
.
ronotopo da simultaneidade - De alcance extraliterário porque sencadeada por uma sensação viva, trazendo-lhe de volta, como se
:tensivo ao dinamismo tempoto-espacial do cubismo e ao movi­ o presentificasse, com o espaço que o co11tornava: um trecho de
ento da imagem cinematográfica, esse cronotopo desponta nas seu passado. Essa revivescência interrompe o fluxo da durée, deten­
cnicas de suspense da narrativa, com a passagem de um a outro do-se no presente, momento de êxtase, sem passado e sem futuro.
,isódio entrelaçando diversas linhas de ação. Uma das conexões "Nada mais do que um momento do passado? Muito mais do que
> romance com a pintura cubista e com o cinema, seja através da isso, talvez; alguma coisa que, comum ao passado e ao presente, é
1rração do tipo estereoscópico, harmonizando. diferentes versões de mais essencial que eles. "24 Tem-se razão em dizer que a partir daí
n mesmo evento, segundo a visão de cada personagem, como em "o momento toma no romanesco uma importância psicológica,
mtraponto, de Aldou·s Huxley, ou, ainda, de acordo com as filosófica e estética fu"ndamental". 25 Através de um foco narrativo
riações de foco e modos de apresentação, como em Os Moedeiras diferente do de Proust, nas novelas de Virgínia Woolf, principal­
:lsos de André Gide, seja pelo "camera eye", de John dos Passos mente Mrs. Dalloway e Viagem ao Farol, alternam-se, numa forma
r1 Paralelo 42, utilizando processo análogo ao da montagem de "representação pluripessoai' da consciência",26 as vivências re­
1ematográfica para construir um painel social, ou, ainda, pela cônditas de vários personagens, que escapam do conflito entre o
1.cronização que daí derivou, no A Morte na Alma, de Jean-Paul tempo cronológico e o tempo vivido pela fresta do presente imóvel,
rtre,. a ilusão da simultaneidade, com ;is técnicas que possibili­ intemporal.
m, pressupõe a maleabilidade da estrutura romancesca, aberta O monólogo interi.01; que sintoniza a palavra com o pensamento
·lo tempo vivido ao qual o anterior cronotopo se vincula. fluente, espontâneo, reflexivamente encadeado, do personagem,
!matização do tempo - Culminância da versatilidade temporal, ou de maneira intelectual e lógica, ou de maneira afetiva e ilógica,
ntegração r_eílexiva do tempo à matéria do romance, principal­ também serviu de conduto à rematização do tempo desde o pio­
:::nte através do cronotopo do fluxo, mas numa linha temática, vai neiro Os Loureiros estão cortados, de Edouard Dujardin. Nesse texto,
>8 Tempo
Tem/10 359
Je apontou o caminho a Joyce, o monólogo interio_1· une a história
o discurso numa só pauta textual, de andamento invariável em sinfônica, de articulação, ao enredo de Ulisses. Musical também é,
lação ao conteúdo, a consciência do personagem-narrador ajus­ pela estrutura ritmada, poética, de seu discurso, o· romance de
da à consci�ncia do leitor. Depois que James Joyce empregou, Hermann Broch. A Morte de Virgílio, que narra as dezoito últimas
riando a forma do monólogo interior, o encadeamento afetivo horas da vida do poeta mantuano na forma de um monólogo lírico.
sico, por associação de idéias em ritmo contínuo,na úl_tima parte Por fim, a tematização do tempo adquire na ficção contempo­
, Ulisses (a fala de Molly), Willian Faulkner utilizou-o cm Som e rânea uma propensão nitidamente lúdica.
.ria para aguçar a absorção do presente pelo passado emJason e A propensão lúdica· -:-:- Como que retomando o lúdico empenho
1entin. Mas é por meio do monólogo,tal como se pode constatar de Sterne, a ficção contemporânea não só reúne as várias espécies
novelística de Clarice Lispector, que a narrativa pode chegar a de tempo num jogo de oposições e contrastes, como também altera
1 de seus extremos limites, quando trata com o tempo. a ordem temporal ou convel"te-a na oposta figuração da eternidade.
Em Perto do Coração Selvagem, Clarice I,..\spector utilizaria, Jo1·gc Luis Borges refuta o tempo cm sua Historia de la Eternidad.
rcimoniosamente, o monólogo interior, combinado com o estilo Em Tadeo Isidoro da Cruz, resume o sentido de uma vida num
·eto livre. Poré,m em A Paixão segundo G. I-I., essa escritora levou momento instantâneo. Em El Aleph converte a sucessão em simul­
extremo a polarização subjetiva do romance: aí a narrativa,toda taneidade.28 Alejo Carpentier recorta temporalidades cíclicas den­
mologal, tende a "fundir o tempo da história ou da ficção com tro do. tempo histórico retilíneo em Semelhante à Noite e Concerto
empo da escrita ou da narração, e se não fosse impossível,com Ba17'oco ou contraria a irreversibilidade do tempo natural, acompa­
empo da leitura".27 Concentrado na súbita iluminação de uma nhando o seu herói,já velho, do leito de morte ao ventre mate.rno,
fania, o tempo se contrai na instantaneidade de uma experiên­ em Volta à Semente. Nos dois casos, a lúdica manipulação alcança o
que inválida. o ato de narrar, problematizando a escrita narra- tempo fictício da obra, com alterações de duração em Borges e de
i.
ordem em Alejo Carpentie1· (anacronias). Mas o jogo visará igual­
Outro limite.temporal da arte de narrar no romance é akan­ mente a relação dos dois tempos - o da história e do discurso -
lo, quando, como sucede emjosé e seus Irmãos, de Thomas Mann, como tema principal da nan-ativa: veja-se O Emprego do Tempo, de
::> Ulisses, deJoyce, o enredo alcança o plano do mito,ou quando, Michel Butor, com caráter de diário íntimo.
no em A Morte de Virgílio, de Hermann Broch, entretém inten- Duas obras igualmente complexas, O Doutor Fausto, de Thomas
11al vinculação com a Música. O mito,história sagrada do cosmo Mann, e Granrle Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, entrosam
:> homem, abole a sucessão temporal. Assim,aprofundando as tempos diferentes: a primeira, que narra, na época da Segunda
centes bíblicas do povo hebreu, a tetralogia do romancista Guerra Mundial, a vida do compositor Adrian Leverkuhn, morto
não sai da órbita da História para a do mito, encontrando as em 1941, efetua "um cruzamento de époc3:s muito singular, desti­
.as arque.típicas, ancestrais, que estendem o passado individual nado [ ... ] a recortar-se com um terceiro período, quando o leitor
fosé ao insondável, "poço dos tempos", à memória da alma quiser colher o meu relato, que se liga, por isso, a um registro em
:tiva. Assim, também o Ulisses, de Joyce, romance exemplar de três tempos: o seu própl'io, o do cronista e o tempo histórico"; a
l época, narrando a aventura do cotidiano, enquadra os feitos segunda, que tem pern1anentemente em vista o seu leitor futuro -
;tephan Dedalus, Leopold Bloom e Molly, enxertados no tempo o senho1; a quem se dirige a narrativa do jagunço Riobaldo - liga
do, n'uma moldur� mítica: os dezoito episódios que compõem o· tempo vivido, numa espécie de busca proustiana, ao tempo do
inerário desses heróis urbanos, historicamente situados em mito - o Diabo - com quem o protagonista teria feito um pacto,
,Iin, repetem as etapas da viagem do Ulisses homérico. tal como o de Fausto, 1·etomado no romance de Thomas Mann -
O emp1·ego, como leitmotive, de temas homéricos ao longo do e que encontra na perigosa travessia do Sertão· o seu correspon­
:rário dublinense dos personagens, confere uma linha musical, dente espacial. Ambas apontam-nos para a dimensão cornplçmçn­
tar do nosso assunto:,a temporaliqaçie do leitor, que é ex;tratex:tual, )
--f�
-
.

Tempo 361
360 Tempo
A mesma dinâmica vige, em princípio, para a recepção do
:�
já dependente de circunstâncias contextuais, e, portanto, conecta­ poema lírico, que não é temporalmente neutro. Inseparavelmente
das ao tempo histórico real que condiciona a transmissão e a ligado à narrativa pela "fluidez da corrente de ação", tanto no
recepção da obra literária. É, porém, através do ato de leitura, que dramático quanto no épico, o tempo se entranha à lírica através
a narrativa se atualiza, e é também por seu intermédio que o tempo do discurso, mesmo quando a lírica, eventualmente, alie o raconto
do texto - o tempo ficcional - como um todo, incorpora-se à de uma história à sua dominante tônica expressiva. No discurso, o
temporalidade própria do leitor. ritmo e o timbre das palavras.juntamente com a inovação semân­
tica (imagem), integram a enunciação, que confere sentido à tônica
expressiva. Posto isto, distinguiríamos um primeiro tempo, o da
Leitor e Espectador tonalidade afetiva ou disjJosição de ânimo (Stimmung), com o qual se
entrosam as imagens; e um segundo, o da cad.ência rítmica e do meios
Assim, portanto, o tempo da narrativa entiama-se, mediante o·ato que naquele se funda.'Enquanto este dá a base cantante do poema
de leitura -:-- que é uma travessia espaço-temporal do texto - ao - condição original da lírica do Ocidente - o primeiro introduz o
tempo, próprio, subjetivo, do leitor. Este não é simples receptor nexo entre o poeta e o mundo (temporalidade), que tanto pode
passivo, mas um atualizador do mundo imaginário que a ficção lhe deter-se no presente quanto relroceder ao passado e projetar-se no
proporciona. É de uma outra posição que o espectador atualiza o futuro.
drama cenarizado que presencia. Aristóteles terá percebido, na É através de sua temporalidade própria, extratextual, que o
passagem de seu Poética citada no início, que o tempo do drama leitor vai ao encontro do poema, por ela ajustando, no curso da
propriamente dito - o resültado, como texto, da mímesis praxeos - leitura solitária a que se entrega, os dois referidos tempos, mantido
situa-se em distinto nível daquele do espetáculo. Diz Mukarovsky po1·ém, sem que se unifiquem num tempo fictício, o movimento
que a "ação da obra dramática tem lugar no tempo presente do de um no outro. Ao tematizar o tempo - invocando-o ou evocan­
espectador, mesmo quando o tempo da obra se localiza no passado do-o - o poeta torna explícito esse movimento que sustenta o
(caso do drnma histórico)".29 Realizada cenicamente, a ação dramá­ discurso poético.
tica tem duração equivalente à do espetáculo. A duração deste fica
no mesmo nível do tempo dispendido pelo espectador para acom­
panhá-lo. Mas, apesar de condicionado à percepção física, o espe­ Notas
táculo abre "um espaço imaginádo, fictício".30 Pois também fictício
é o tempo da encenação, que corre paralelamente ao tempo do 1. Pedro José da Fonseca, Elementos da Poética (Lisboa: Tipografia Rol­
espectador. landiana, 1791), p. 68.
Esse parnlelismo não se aplica ao texto lido, seja dramático ou 2. M. 13akhtin, "Forms of Time and Chronotope in the Novel,
narrativo, cujos tempos são isolados do tempo real de quem lê. É, 1937/1938", em The Dialogiclmagination (Austin: UniversityofTexas
Press, 1981).
no entanto, esse isolamento que possibilita a interferência do
leitor, a quem cabe suprir as lacunas temporais da ação e preencher 3. Anato\ Rosenfelcl, O Tealro-ÊfJico (São Paulo: DESA, 1965), p. 10.
4. Emil St.'liger, Conceitos Fundamentais da Poética (Rio deJaneiro: Tempo
as variações retrospectivas e prospectivas das anacronias. Acrescen­ Ilrnsileiro, 1969) pp. 59-60.
te-se que é por meio desse dinamismo, graças ao qual, também, 5. 13akhtin, "Forms ofTime", p. 84.
· preenchidos os dêiticos e locuções do tempo verbal propriamente 6. Émile Ilem·eniste, Problémes de Linguistique Générale (Paris: Gallimard,
lingüístico, a leitura se concretiza, que o tempo vivido, extratextual 1974), p. 46.
do leitor, com a suma de sua experiência cultural e social, se entrosa 7. Christian Metz, "Rémarques pour une Phénoménologie du Narratir',
ao mundo da obra que reconfigura o real, ajustando num só-tempo em Révue d'Esthétique, 3-4, 1966.
fictício, o texto, os tempos do discurso e da história.
362 Tempo
1empo 363
'
8. Paul Ricoeur, Temps et Récit (Paris: Seuil; 1983-5), 1.
9. Tzvctan Todorov, "Lcs Catégodcs du Récit Littérni1·e", cm Commuui• Cinema", cm Esc,·i/,os sobre Estética e
cations, Paris: Seuil, 8, 1966, p. 139. 29. Jau Mukarovsky, "O Tempo no
), p. 211.
. O. Cf. Ricocur, TemjJs, II, pp. 113 e seguinte s. Semiótica da Arte (Lisboa: Ed. Nova , 1984
1. Cera1·d Cencuc, "Discours du Récit", cm Figu,-es III (Pari s: Se uil, 30. Hamburger, A Lógica, p. 111.
1972), p. 78.
2. Como na p:ffte final de Eugénie Gmndet, de Balzac: "Como
anos se IJibliografia
passaram se m que surgisse uma novidade n a existência monóton a de
Eugênia e seu pai. Sempre os mes mos atos conscientemente realiza­
., inlr., com. e apêndices Eudoro
dos com a singulari dade c ronométrica dos movimentos da velha 1. ARISTÓTELES, Poética. Trad., prcf
de Sousa. Parlo Alegre : Globo, 1966.
R. D. Roe & J. Lallot. Paris: Scuil,
pêndula."
1. A s passagens cm câmara lenta contrastam com as acelera
das cm 2. _. La Poétiqtte. Trad. e notas
'cmnde Sertão: Ve,-edas. 1980.
lidad en La Cultura Ocidental.
Leia-se o início do conto de Machado de Assf�," "A Causa Secreta". 3. AUERBACH, Erich . Miuiesis; la Rea 1956.
A pausa corresponde á desc rição. Em· A Ma1·quesa d'O, de Kleist, a México: Fondo de Cultura Económica,
and Chronotope i n the Novel,
eli são de parte de um episódi o é a chave do enredo. 4. BAKHTIN, M. "Forms of Time
gi11ation; Four Essays. Au sLin:
"Durante muito tempo costumava deitar-me cedo. Às vezes mal 1937/1938." ln:_. The Dialogi.c f111a
apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depress a que cu nem University ofTexas Press, 1981.
ces du Récit. Pari s: Klincksicck,
tin ha tempo de pensar: adormeço." (No Caminho de Swa,m. Em Busca 5. BAL Miekc. Naimtologic; lcs Instan
1977.
do Tem/10 Perdido, p. 2). Trad. Come s da Silveira. Ed. Paulo
A l6gica da criaçcio Lile-rá1'ia (São Paulo: Perspectiva, 1975), p. 59. 6. BALZAC, H. de. Eugênia G1·a11det.
1989.
Tempus,. Estmctw-a y Función d.e los Tiem/Jos cn cl Lcnguajc (Madrid: R6nai. Rio de Janciro, Nova Fronteira, ela Actual.
ERO CO YAN ES, M ariano. Estnutums de la Nov
Credos, .1974). 7. BARQU
Rico.eur, Tem/JS, II, p. 11.7; III, p. 276. Barcelona: Plane ta, 1970.
alysc Structurale des Récits."
Ceorg Luk,ícs, Tltéo 1·ic da Romau (Paris: Conthicr, 1963), p. 121. 8. BARTHE.S, Roland. "Introduction à l'An
Hegel, Estética (Lisboa: Guimarães, s. d.), v. 7, p. 254. Co11111nmicotio11s, Paris: Scuil, 8, 1966.
Im111édiates de la Conscicncc. Paris:
A. A. Me ndilow, O Tempo e o Romance (Porto Alegre: Globo, 1972), p. 9. BERGSON, Henri. Lcs Donnécs
8.
189. Presses Universit..,ircs de Francc, 195
Lan gage t l'E.x périencc Humaine." ln:_.
10. BENVENISTE, E. "Le
e
"A durnção completamente pura é a forma que a sucessão dos nossos s: Ca\limard, 1974. V. 2.
es tados de con sciência toma quando o nosso Eu se deixa viver, Proble111es de Linguistiquc Génémle. Pari
h." ln: _.Obras Completas. Buenos
quando ele se abstém de estabele ce r uma separação e ntre o estado 11. BORGES.Jorge Luis, "EI Alep
presente e os estados anteriores." (Les Donnécs lmmédiates de la Cons· Aires: Emccé, 1971.
Te1nps P1·cscnt." ln:-· Création
=ieuce. Paris: Pres ses Universitai1·es de France, 1958, pp. 71-5.) 12. BROCH, Hen11an11. "Joyce et lc
rd, 1966.
?roust, Le Tem/JS Retrouvé, p. 14. (Trncl. do autor.) LiUéraire ct Comiaissance. Paris: Callima
rie Art. Trad. Stcphen Emery.
of
vlichel Zeraffa, L(l, Révoltttion du Romancsquc (Ecl. 10/18, 1972), p. 13. DÉSSOIR, lv1;n:. Acsthetics mul Theo
Ohio: \Vaync State Universily Pre s s, 1970.
!39. i qu.c Cén .érale . Paris: Larou sse, 1970.
14. DUBOIS,J. e t alii. Rhét ol'
(rich Aucrbach, Mimcsis (México: Fondo de Cultura Económica, iomiafre Encyclopédique des Scicnccs
956), p. 514. 15. DUCROT, O. & TODOROV, T. Dict
)lga de Sá, /1 Escritum de Cla1ice Lispcctor (Petrópolis: Vozes, 1979), di, La11gage. Paris: Seuil, 1972.
ica, Tfrados de Aristóteles,
16. FON SECA, Pedro José da. Elementos da Poét
. 96. oa: Tipog rafia Rollandiana,
'.) que meus olhos viram foi simultâneo; o que transcrevo, sucessi vo, ele Horácio e dos 111ai.s Cékbres Modcmos. Lisb
orquc a linguagem o é." (Obras Completas. Buenos Aires; Emccé, 1791.
ce. Porto Alegre: Globo, 1969.
17. FORSTER, E. M. 1\sj,cctos do Ro111a11.
)71), p. 625. du Réc it; Essai s de Méthodc." ln: _.
18. CENETTE, C. "Discours
Fig,ircs 11!. Paris: Sc11il, H)72.
365
Tempo

l
Tempo
Seui\, 1983-5.3. v.
TemfJs et Récit. Paris: iano. Rio de

:l
43. RICOEUR, Paul.Corte s. O Tempo no Romance Machad
GOETHE,].W. Ecrit s sur l'Art. Aprcs. T. Todorov. Paris: KJincksieck, 44. RlEDEL, Dirce 1959.
1983. Janeir o: São José, dans 1c Récit D'Au-
GOOD!VIAN, Th eo dore .The Writing ofFiction; an Analysis ofCreative LLE.T, Alain. "Ternps et Description Gallimard, 1963.
45. ROBBE-GRI n. Par is:
Pou1·un Nouveau Roma .
Writing.New York: C ollier Book, 1961. jou rd'hui." ln:-· Épico. São Paul o: DESA, 1965
HAMJ3URGER, Kate. A Lógica da Criação Literária. São Paulo: Pers­ FELD, Ana to!. O Teatro rno." ln: - · Tex-
16. ROSEN obre o Rom ance Mode
pectiva, 1975. 47. _. "Reflexões Paulo: Perspectiva, 1969.
s
... , 1979.
HEIDEGGER, M.Se,· e Tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petró­ to/Contexto. São P etrópolis: Vozes ,
polis: Voze s, 1988-9.2 v. de. A Esc,itur a de Cla,ice Lispector. 1948.
48. SA, Olga orto: Port o,
HEGEL, F. Estética. Li sboa: Guimarães, s. d. v.7 (Poesia). TINHO.Conf?.Ssões. P s Passps ." ln:
-· Situa-
49. SANTO AGOS Pr pos deJoh n do
l. "A
50. SART RE.Jean-Pau ard, 1947.
o
INGARDEN, Roman. A Obra de Arte Literária. Lis boa: Fundação
Calo uste Gulbenkian, 1973. tio11s I. Pari s: Gallim Situati ons l. Paris:
Temp ra\ité chez Faulkn er." ln:_.
JAMES, Hem,1. Roderick Hudson. Pref. do Autor·. New York: The 51. _. "La
o
Chiltem Librn1,1, 1947. Ga\\imard, 1947. Tempo. São Paulo:
Persp ectiva, 1986. 1.
o
KANT, E.Crítica da Razão Pum. Trad. Valério Ro hden & Ugo Baldur 52. SEGRE, Cesare . As Estmtu 1· a s e
iv e Structure in
, Seym our. Sto1y and Discourse; Narrat 1'
Moosburger. São Paulo: N ova Cultural, 1987. 53. SHAT MAN Pr ess, 1978.
haca: Cornell University Poética. Rio de Janeiro:
l

l
1
LESSING, G. E. Laocoonte ou os Limites da Pintum e da Poesia. Buenos F iction and Fihn.l t mentais da
Conceito s Funda
'\ires: Argos, 1946. 54. STAlGER, Emil. 1969.
:..IMA, Luís Costa, sei., introd. e re v. técnica.Teoria da Lileratum em Tempo Bi--a sile , r de Janeiro: Nova
de T1istam Shandy. Rio
i o
:uas Fontes. Rio de janeiro: F.Alves, 1983. 2 v. A Vida e Opiniõ es
55. STERNE, L.

f
�UKÁCS, Georg.Théorie du Roman. Paris: Go nthier, 1963. Frontei ra, 1984. tmications,
Catégor ies du Récit Littéraire ." Comm 1

1l
"Les
'1ACNY; Claucl e -Edmónde . L 'Age du Roman Americain. Pari s: Seuil, 56. TODOROV.T.
'.918. Paris: Seuil, 8, 1966. en Cien Ailos
dei. "E.stru cturn Narrativa e Temporal
,!AJ'-IN, Thomas. Le Docleu1· Fatisttis; la Vie du Composile ur Allemand 57. TORO, Afonso 128/129.
Ibero-Americana, v. 1,

·13
el
\.drian Leverkhun, rnco nté par un ami. Paris: Albin Michel, 1950. de Soledad ." Revista Funció n de los Tiempos en
--· A Nfontanha Mágica. Trad.He rbert Caro. Rio deJaneiro: Nova ICI-I, Haral d. TemfJtts, Est,uctm·a y
58. WE.INR s, 1974.
'ronteira, 1980. Le11guaje. Madrid: Credo 10/18, 1972.
La Révolu tion Romanesque. Par is: Ed.
IENDILOW, A. A. O Tempo e o Romance. P orto Alegre: Globo, 1972. 59. ZERA FFA, Michel.
t�TZ, C. "Remarques pour uns Phénoménologie du Narratif. " Révue
'Esthétip,e, 3-4, 1966.
IUKAROVSKY,Jan. "O Tempo no Cinema." In: __. Escritos sobre
stética e Semiótica da Ili-te. Lisboa: Ed. Nova, 1981.
O�HAN, K. L'Ordre du TemjJs. Paris: G allimard, 1981.
'.)UILLON,Jean. O Tempo no Romance. São Paulo: Cultrix, 1971.
'.)ULET, G e orge s, Etudes sw· le Temps Hmnain. Paris: Roche r, 1952-8.
v.
:lOPP, Vladimir. Mo1yJhologie du Conte. Paris: Seuil, 1970.
lOUST, Ma1·cel. E111 Bttsca do tempo Pe,·dido; no Caminho de Swann.
>rto Alegre: Globo, 1918.
_. A la Reche1â1e du Temps Pcrdu: Lc Temps Rétrou\'é. Paris: �
illimard, 1915.
CARDOU, Jean. "Divers Asp e cts du Temps dans le Rornan Con­
mporain." ln: POIRIER, René ct Jeanne. Entretiens sur le Tem/JS. !!
.,
ris: M outon, 1967.
Teoria da Literatura

Roberto Acízelo de Souza

Sabe-se que a palavra literatura, no sentido de certa produção


discursiva dotada de fisionomia própria; é uma aquisição léxica
recente, só se tendo incorporado ao vocabulário das línguas oci­
dentais por volta da segunda metade do século XVIII. Antes disso,
a palavra designava tão-somente a habilidade de escrever e de ler
e, por extensão, a cultura do indivíduo alfabetizado, ou ainda a
instrução adquirida por via da leitura. Essa questão à primeira vista
de natureza lexicográfica pode apresentar, no entanto, especial inte­
resse para o historiador e para o teórico da literatura, já que a
propósito dela é possível formular as seguintes hipóteses, cuja inves­
tigação se reveste do maior relevo no âmbito de suas especialidades:
o novo conteúdo semântico que a palavra literatura assume no século

1
XVIII corresponde à necessidade de articular um· nome para uma
nova modalidade de discurso então emergente, ou se trata apenas de
nomear com um termo geral uma antiga produção discursiva até
então conhecidà pelas.designações específicas de poesia e prosa?
-J
)

l
J Não tendo o propósito de discutir aqui essas hipóteses, que, a

1
nosso ver, ainda esperam desenvolvimento mais adequado e con­
clusivo, digamos apenas que parece haver evidências tanto a favor
l de uma quanto da outra.
1 Abonando a última possibilidade mencionada - o novo signi­
1
l ficado assumido pelo termo litemtu\·a no século XVIII apenas cobre
Teoria da Lileratum
Tem-ia da Literatura 369
1azio léxico, não correspondendo portanto à necessidade de
exclusivas, vamos admitir, por comodidade de exposição, que o
ear um novo discurso então surgido-, temos por exemplo a
inte passagem de Aristóteles, em que o filósofo assinala uma discurso a que hoje chamamos lite1·atura preexistiu a essa designa­
1cia terminológica de sua época, carência que persiste até a ção, pela qual se tornou conhecido a partir do século XVlII. Nesse
ão setecentista em referência: caso, por literatura. estaremos entendendo um vastíssimo co1pus,
integrado por aquela parcela da produção escrita em que o imagi­
a arte que apenas recorre ao simples nário se sobrepõe ao conceituai. Essa produção, no Ocidente,
verbo, quer metrificado quer
ão, e, quando metrificado, misturando mel engend r a uma cadeia histórica cujo elo mais remoto se situa nos
:rvindo-se de uma só espécie métrica ros entre si diversos ou
, - eis uma arte que, até hoje, séculos VII e VI a.C., constituído pelos poemas de Hesíodo, as
!rmaneceu inominada. Efetivamente versões escritas dos poemas homéricos e as primeiras manifestações
, não temos denominador co­
um que designe os mimos de Sófron
e de Xenarco, os diálogos do que mais tarde se chamará poesia lírica.
,ci·áticos e quaisquer outras compos
ições imitativas, executadas Admitida essa simplificação inicial, digamos agora que tal
edia nte trimetrosjâmbicos ou versos eleg
' 1
IS.
iacos ou outros versos que produção escrita, cuja história assim se teria inaugurado com a
própria história da civilização ocidental, muito cedo se tornou
matéria de estudo e ensino. Desse modo, ela se transforma num
m defesa da primeira posição - o novo sentido do termo campo de observação3 que dá margem à constituição de dive1·sas
tra é correlativo à instituição de nova modalidade discursiva

:/J
disciplinas, que se distinguem entre si por seus interesses espe­
tão inexistente -, diversos argumentos se podem alinhar, cíficos, determinados pela conjuntura histórica em que cada
1·esumíveis numa idéia central: no século XVIII se consumam uma delas se estabeleceu. Constitui, portanto, exigência de rigor
�s transformações na ordem social, que potenciam, no cam­ conceituai resguardar as diferenças entre 1·etórica, poética, hisló1-ia
:!lectua( pelo acirramento da divisão social do trabalho, o da litera.turn., crítica literária e te01·ia da literatura, disciplinas
ndamento da fissura entre razão e imaginação, atribuindo-se histórica e epistemologicamente distintas, não obstante a c i r ­
to a discursos específicos estabelecer a confi guração verbal cunstância d e todas se interessarem pelo mesmo campo de
a e de outrn experiência. Emergem, assim, dois ramos observação. Poderíamos, ainda, acrescentar a essa lista os termos
ivos que se que1·em bem distintos, um dominado pela razão ciência da lile1·atura. e temia. crítica, os quais oponunamente
:curso da filosofia e das ciências - e outro pelo complexo procuraremos caracterizar, desde já adiantando que eles, ao que
ação/sensibilidade/percepção - o discurso da literatura. nos parece, não são apropriados para assinalar distinções entre
specialização dos discursos operada no século XVIII, de que disciplinas.
a constituição de famílias discursivas instaladas em espaços Estamos advertidos, no entanto, para o fato de que nem
los, é bem típico o seguinte pronunciamento, o qual, publi­ sempre se considera importante levar em conta o caráter específico
n 1735, ainda não emprega, no entanto, a expressão litera- dessas disciplinas. Aliás, essà é a solução dos grandes panoramas
historiográficos do que em inglês se chama simplesmente criticism
ou criticai the01y, nos quais, à semelhança do emprego prepóstero
'ilosofia e a poesia dificilmente poderão conviver alguma vez da palavra !itera.tum, por nós já situado, se atribui a essas expressões
.1esma morada, aquela acompanhando singularmente a distin­
conccitual, distinção que, entretanto, a poesia não procura a capacidade de nomear produções anteriores à sua vigência. Estão
! nesse caso as seguintes obras muito conhecidas, em que o panora­
ma se apresenta sob a forma de paráfrase interpretativa ou como
:erando que nos faltam elementos para decidir por uma ou antologia de textos fundamentais: A hist01y ojmodem criticism, de
a hipótese, as quais, inclusive, podem não ser mutuamente René Wellek (1955); Litermy criticism: a short history, de William
K. Wimsatt,J1·. e Cieanth l3rnoks (1957); Critical theorysincePlato,
? Teoria. da Literatura Teoria da Literatura 371

Hazard Adams (1971); Ancient literay crilicism, de D. A; Russell a elaboração artística da linguagem verbal-, se manterão relativa­
'1. Winterbottom (1972). mente distintas. É indício dessa distinção, entre outros, o fato de
Contrai-iamente à continuidade pressuposta pelos referidos Aristóteles ter dedicado a cada uma delas um respecLivo tratado
.ndcs panoramas, para os quais os conceitos de crítica e de específico (Arte retórica e Arte poética).
1·atura - situados ambos numa instância por assim dizer fora A retórica se ocupa com a embalagem verbal do raciocínio,
história - desde sempre se correlacionaram como uma disci­ apresentando-se originalmente como a arte de falar em público de
rn e seu objeto, procuraremos a seguir, de modo ultra-sinté­ modo a persuadi•· os ouvintes. Consiste portanto numa codificação
,, situar as várias disciplinas que, no curso da histói-ia, vêm de técnicas oratórias, cujo âmbito comporta, além dos problemas
!ndo da literatura o seu campo de observação. Desse modo, ligados à pedcia na manipulação das palavras, também aqueles
cr�mos realçar nesse processo diferenças ocultas sob a apa­ relacionados a aspectos extraverbais do desempenho dos oradores.
cia de um fluxo contínuo, estabelecendo pa·r a os iniciantes Daí que a sistematização retórica abrangesse as seguintes partes -
<lições de uso rigoroso de uma terminologia especializada, coincidentes com as etapas de constiução e execução de discursos-,
se contraponhá ao comodismo de diluir conceitos na geléia que apresentamos com suas designações tradicionais em grego e
li da falsa sinonímia. em latim: eresis ou inventio (invenção; achar o que dizer); taxis ou
disposilio (disposição; pôr em certa ordem o que se tem a dizer);
lexis ou eloculio (elocução; ornamentar o discurso com figuras);
·2 hyj1ocrisis ou pronuntiatio (pronunciação; proferir o discurso, cui­
dando da dicção e da gesticulação adequadas); mneme ou memoria
Discorrer sobre a prndução literária, elaborar discursos-co- (memória; confiar o discurso à memória).
1tários a seu respeito, de natureza crítica e/ou teórica, constitui A poética, po1· seu turno, cingiu-se a um campo exclusivamente
prática inicialmet'lte desenvolvida pela própria literatura. literário- pnra usar o anacronismo que nos permitimos empregar-,
m, nos textos mais arcaicos - como a Ilíada, a Odisséia, a ocupando-se inicial!nente com a tragédia, a epopéia e um pouco
vnia, alguns poemas IÍl'Ícos, a comédia As rãs -, já se encon- com a comédia e com o que mais tarde viria a chamar-se poesia
1, inscritas nesses próprios textos, considerações sob're a natu- lírica.
da literatura.-· Trata-·se, porém, de ·passagens· que, vindo a Na medida, porém, em que a retórica se foi desinteressando
,ósito do desenvolvimento narrativo, lírico ou drnmático des­ pelas operações não estritamente lingüísticas (invenlio, dispositio,
omposições, não têm nenhum compromisso com a sistema.ti- memoria), bem como pela execução oral do discurso (pronunliatio),
) de conceitos. · concentrando -se apenas na operação verbal da elocutio, o seu
Essas primeiras oco... -ências assistemáticas de reflexão sobre a âmbito se reduz à arte de escrevei·, c.-i'ando-se assim as condições
ttura . t ransconeraín num lapso de tempo situado entre os parn uma confluê.ncia entre retórica. e poética. Se quisermos a
os VII e V a.C., não sendo muito posterior o surgimento dos cronologia desse processo de distinção relativa e de interpenetra­
!nhos inaugurais de disciplinar essa reflexão, cujo ponto de ção dessas disciplinas,. podemos dizer que a distinção se resguarda
:la se encontrn no século V a.C. Desse modo, derivaram da do surgimento de ambas (século V/IV a.C.) até o século I d.C.,
,(ia- ent.-'io entendida como o saber total, ainda não compar- quando a fusão passa a v_igorar, daí se prolongando pela antiguida­
1t._ido em especialidades- duas disciplinas dedicadas ao estu­ de e idade média. No final do século XV, com a redescoberta da
t palavra em suas dimensões artísticas: a retórica e a poética. Poética. de Aristóteles, liv1·0 que permaneceu praticamente desco­
nicialmente essas disciplinas, embora aproximadas por sua nhecido no períodq medieval, o intenso interesse despertado por
11 comum na filosofia- eram ambas praticadas por filósofos-,
:omo por suas naturnis inte1·seções - ambas se ocupam com
aquela obra, então traduzida e comentada, implicou um renasci­
mento da poética, que recob1·a autonomia em relação à 1·etórica.
'
1
Teoria da Literatura 373
Teoria da Literatura·

� entc-'io a separação entre essas disciplinas se sustentou, até o retórica, passa a dominar também no campo da poética, subme­
1io de ambas, que tem lugar no século XVIII.4 tendo a literatura a padrões de composição predefinidos segundo
.sclarecida essa questão da alternância histórica entre afasta­ modelos de uma tradição - a greco-latina - cuja autoridade se
:, e aproximação que marcou as relações da retórica com a
reconhecia.
:a, é interessante obse1var alguns traços de contraste e de Essa conjugação da retórica e da poética com o classicismo -
idência entre elas. aqui entendido como o cortjunto de convenções literárias greco-la­
. 1·etórica apresenta quase exclusivamente um cunho pragmá­ tinas (ou, mais rigoi·osamente, convenções atribuídas à antiguidade
. é uma técnica para utilização por oradores e escritores em greco-latina) e sua subseqüente canonização no curso da idade
,fícios -, sendo portanto escasso o seu potencial especulativo, média, do renascimento, do barroco e do neoclassicismo - permite
v·ocação para refletir independente de interesses práticos, a compreensão mais· imediata da já aludida superação dessas
ão que é dominante na poética. disciplinas iniciada no século XVIII e consumada no XIX. Como
or força dessa natureza intrumental, a retórica sempre esteve se sabe, essa época se caracteriza, no que concerne às ideologias
nente vinculada a diversos processos históricos de educação literárias, pela emergência e consolidaçãÓ do romantismo, trazen­
1I. Na verdade, ela já surgiu como matéria de ensino, pois seus do consigo, conseqüentemente, uma ampla reconcepção da litera­
·es na· antiguidade g1·eco-latina eram mestres que ensinavam turn. No centro dessa reconcepção, situa-se a idéia de que a obra
de bem falar e escrever; depois, na idade média, a retórica
literária resulta sobretudo da criatividade individual, o que se
·a o cu1Tículo da educação escolástica, sendo uma das disci­ contrapõe ao princípio de que a composição deve ·conformar-se a
do chamado .septenniurn (dividido em frivittm - onde figuram regras e permanecei· atenta a modelos, princípio comum à retórica
í.tica, dialética e retórica - e quadrivium - constituído por e à poética. Rompe-se desse modo a congruência até então obser­
a, aritmética, geomeria e astronomia); por fim, ela terá lugar vada entre a literatura (clássica) e os discursos que a tomavam como
staque na mtio-.slurliorn.m, modelo de ensino estabelecido objeto (retórica e poética) à medida que tais discursos se revelavam
jesuítas no século XVI e predominantemente até meados do desaparelhados para a comp1·eensão teórico-crítica da nova litern­
> XVIII. Em contrapartida, a poética encontra o seu espaço tura, de índole romântica.
específico fora do circuito escola1·; enquanto a retórica se Se o romantismo constitui, no âmbito das ideologias literárias,
u sobretudo matéria de interesse de professores e alunos, a a senha para a superação da retórica e da poética, nos campos da
:a será cultivada por filósofos e escritores, o que coincide, especulação filosófica e da pesquisa cientíílca o mesmo pode ser
nente, com sua já assinalada propensão a pensar a literatura dito respectivamente da estética e da história.
chave mais especulativa e liberada de compromissos de A estética, que define sua especificidade no século XVIII, abre
1 pnítica ou pedagógica. caminho para uma reflexão sobre a literatura fora dos parâmetros
:!rn embargo desses contrastes, retórica e poética coincidem retóricos-poéticos, ao conceber o discurso literário não como
o ao sell comprometimento com a maioria dos gêneros resultante de operações de linguagem rigidamente codificadas,
'ios produzidos num extensíssimo período da história ociden- mas como apreensão de "representações sensíveis", que se opõem
1e s� prolonga no século V a.C. ao século XVIII. No curso às "rep1·esentações distintas", conteúdo de discursos não literários.5
, vinte e três séculos, cujos marcos historiográficos são o No entanto, o domínio da estética não se restringiu à literatu1·a,
:ismo grego e o neoclassicismo europeu, cristaliza-se um envolvendo antes, mais do que as artes em geral, as experiências
.ório de recu1·sos temáticos e expressionais avalizados pelas de conhecimento pela sensibilidade, percepção e imaginação. As­
linas em questão, as quais se transformam em verdadeiro sim, seu projeto transborda o círculo da literatura, tornando-se um
) orientador da produção dos escritores e da avaliação crítica dos ramos da gnosiologia, disciplina filosófica interessada em
,s obrns. A imposrnção normativa, em princípio apanágio da investigar a natureza do conhecimento.
Te01ia da Literatura 375
Teo1ia da Literatura
sidade de figurar o calor da emoção e da verdade. É nesse sentido
Quanto à história, sabe-se que ela se torna a estrela de primeira que a palavra se ap1·esenta, por exemplo, no seguinte trecho da
deza na constelação do saber oitocentista, como consumação estimada novela de Manuel Antônio de Almeida:
1m processo complexo em que se enlaçam as motivações
ico-social (a ascensão da burguesia e .a necessidade de com­ Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de move­
nsão inclusive histórica de um tecido social cada vez mais diça. e leve: um soprozinho, por brando que fosse, a fazia voar, outro
Jlexo), filosófica (a constrnção de filosofias da história no de igual natureza a fazia revoar, e voava e revoava na direção de
o XVIII e início do XIX), literária (a concepção romântica de quantos sopros por ela passassem; isto quer dizer, em linguagem chã
e despida dos trejeitos da retórica, que ela e,·a uma formid:ivel
ido como origem do presente .- donde o gosto por sua
namoradeira, como·hoje se diz, para não dizer lambeta, como se dizia
1stituição; oscilante entre o sentimentalismo e a objetividade naquele tempo.6
fratária à idéia clássica de passado como primitivismo selva­
ou como perfeição estabilizada fora do fluxo do tempo) e Poética, ao contrário, conse1vou acepções muito próximas à
ífica (a postulação positivista de uma ciência da sociedade, na odginal. Por um lado, a palavra designa o modo de conceber e
se rese1varia ao modelo historicista papel análogo ao rcpre­ praticar a poesia, e mes111L> a literatura em prosa, próprio de um
do pelo modelo físico-matemático na ciência da natureza. .
escritor ou época deter111i11ados, ·o que pe rmite a construção de
destaque concedido à história disseminou o modelo histori­ sintagmas como "poética de Castro Alves", "poética do modernis­
pelas mais diversas áreas de estudo, inclusive a da literatura, mo", etc. Essa acepção pode restringir-se mais ainda, designando
retórica e poética se retraíram ante a definicão de uma nova 1
poemas que expõem a visão particular de poesia postulada po1·
>lina, a que. se chamo\,! história da literatura. certo poeta, apresentando tais composições títulos va1:iados ou a 1
Jão se imagine, contudo, que a superação da retórica e da denominação explícita de "poética" ou "arte poética" (vejam-se, �
:a pela história da literatura implicou na extinção absoluta entre tantos, alguns exemplos brasileiros: "Profissão de fé", de
!las disciplinas. Na verdade, no setor das ciências humanas, Olavo. Bilac; "Poética", de Manuel Bandeira; "Arte poética", de ,1
i
'
1delos explicativos que se sucedem não chegam a invalidar os Odilo Costa, filho). Por outro lado, o termo concorre com teoria
iores, nisso residindo uma das distinções básicas entre estas
as naturnis. Observe, por exemplo, que o heliocentrismo da
da literatura, para designar a discipliná contemporânea que tem
como objeto a literalura (discipliná que, como pretendemos escla­
t
Jlogia ptolomaica se transforma em mera relíquia científica recer adiante, distingue-se da poética clássica), sendo utilizado
s que se afirma o geocentrismo da cosmologia copernicana, nesse sentido, pêx exemplo, na obra de Romanjakobson. Convém,
J
1
;so que os conceitos aristotélicos sobre a poesia permanecem por fim, reconhecer um último emprego, segundo o qual a poética
ntes, não obstante a sucessão, por séculos afora, de novas 1,
designa um tipo de investigação da literatura em que o interesse
::ctivas na área dos estudos. literários. Compreendido esse pelo elemento literário conduz ao tema filosófico da existência,
7
r
, será conveniente conceder alguma atenção às sobrevivên­ utilização encontrada, por exemplo, na teorização de Emil Staiger.
Ss-clássicas da retórica e da poética: Comecemos por analisar

:l
Mas a· retórica e a poética não sobreviv_ernm apenas como
nce semântico de que se investiram tais palavras depois da termos técnicos com significações mais ou menos refeitas. A pri­
ênci,l das disciplinas que nomeavam. meira se prolon� pelo menos sob duas formas. No cin;uilo
�lórica se transformou num termo pejorativo, utilizado com escolar, ela permanece presente como item dos compêndios gra­
ido. de forma de expressão �o afetada e artificiosa quanto maticais que define as chamadasfiguras (inicialmente, de retórica;

3
>Vida de qualquer compromisso com a realidade e com a ação depois, de linguagem ou de estilo), listagem de elegâncias verbais
t. Trata-se de um significado posto em voga com o romantis­ mecanicamente caracterizadas, em que sobressaem metáfora, me­
.1e, na sua atitude anticlássica, via nas regrns retóricas uma tonímia, paradoxo, silepse, etc. (o ensino gramatical conservou '
:: de congelamento da linguagem, incompatível com a neces- .

ti
'1
Teoria da Literatura
Teoria da Literatura 377
pequena parte de uma pródiga nomenclatura retórica
.da a definir, com minúcia e sutileza, um vasto rol de figuras). no lógica é possível verificar a emergência de duas novas disciplinas
ível mais elevado, as categorias fotjadas por essas disciplinas empenhadas em recortar os respectivos novos objetos no campo
róprias figuras, e mais os conceitos de mírnesis, catarse, de observação rep1·esentado pela literatura: a história e a crítica
milhança- estimularão a problematização de questões nu-
não só em teoria da literatura, mas também em filosofia, i1 literárias.
A primeira já foi objeto de breve referência anterior. Vimos
ílise, liligüística e teoria da comunicação, como as questões
.tas da natureza da representação e da natureza do conheci­
,1 então que o desenvolvimento da história da literatura derivou da
extensão do modelo historicista, tão apreciado no século XIX, ao
configurado nos diversos discursos. campo específico que nos interessa. Assim, a um estudo da litera­
tura centrado em técnicas consagradas de construção verbal (retó­
rica), ou voltado para a indagação de índole filosófica acerca da
3 especial racionalidade da poesia (poética), segue-se uma perspecti­
va de investigação sobre as origens e os processos de transformação
antecipamos que a retórica e a poética clássicas, depois de do fato literário. Por outro lado, essa investigação se pretendia
ensíssimo período de domínio absoluto que perfaz em torno científica - no que contrastava com a pertinência humanística da
mil e trezentos anos (século V/IV a.C- século XVIII), serão retórica e da poética-, acolhendo portanto princípios da filosofia
las, no século XIX, pela· história da literatura, e também - positivista, que, como se sabe, formulou certa concepção de ciência
:ntamos agora- pela crítica literária. Entenda-se, no entan­ entendida como estágio supremo do conhecimento. Procurando
: o surgimento· desses novos discursos incidentes sobre a assim assumir padrões de cientificidade, a história da literatura
ira não implica a extinção plena daqueles que os antecede­ concebe o fato literário como efeito de causas que lhe são exterio­
abe a propósito disso reiterar as observações já feitas, de que res - a subjetividade dos autores e/ou os processos sociais -,
ncias humanas a elaboração de novos sistemas de hipóteses cabendo-lhe, por conseguinte, em suas análises, transcender os
mina completamente o vigor conceituai dos sistemas ante­ textos a fim de identificar-lhes as motivações primeiras, das quais
e de que, no caso concreto que nos ocupa, a retórica e a eles seriam reflexos secundários. Estruturam-se desse modo dois
\ sobreviveram sob ·diversos aspectos nos séculos XIX e XX, modelos de história da lite1·atura, freqüentemente associados em
á tivemos _oportu1iidade de assinalar. proporções variadas nos estudos oitocentistas: o modelo psicolo­
<ado esse ponto, com a relativação que ele representa no-. gista e o sociologista. Ainda nessa linha de inscrever os estudos
1ge ao p1·ocesso de sucessão de disciplinas, vamos acompa­ literários na órbita da ciência, define-se um terceiro modelo de
modo por que se delineiam as perspectivas oitocentistas de história da literatura, que tem como objetivos explicar as obras por
o à literatura. suas fontes e iníluências, !Jem como, especialmente no caso de
icialmente, destaquem . os um fato facilmente constatável textos arcaicos, reconstituir-lhes a legibilidade material com base
:1te consulta a r"epertórios bibliográficos. A partir de princí­ em presumíveis intenções· autorais e esclarecer passagens cujo
) século XVIII, os livros sobre literatura começam a ostentar sentido literal se tenha tornado obscuro. Esse terceiro modelo,
1s títulos as palavras crítica, história e literatura, que acabam para usar um feio neologismo formado por analogia aos qualifica­
>ondo durante o século XIX, em detrimento dos termos tivos empregados quanto aos dois primeiros, pode ser chamado
', jJoética, orn.lória e eloqüência, típicos da produção clássica. modelo filologista. Concluindo - e retomando um ponto já refe­
essa alteração não constitui simples reforma de terminolo­ rido-, pode-se afirmar que o anelo de cientificidade experimen­
�s uma profunda reconcepção da literatura e dos discursos tado pelos estudos literários oitocentistas implicou o deslocamento
:los com sua inteligibilidade, através dessa evidência termi- desses estudos de sua -órbita clássica- as humanidades, em cujo.
âmbito retórica e poética se punham cm contato com gramátiGa e
Teoria da Lite1·atura 379
Teoria da Literatura
interesse também e sobretudo a atualidade,o movimento literário
a. A pretensão cientificista situa assim a investigação da contemporâneo. Outro constraste é a inserção da história no
ra num.outro cfrculo de disciplinas então emergentes- as circuito do ensino, com o que se coadunam os fatos de ser
> humanas -, requisitando apoios teóricos na história, na produzida por especialistas e de ser veiculada por livros; a crítica,
gia,na sociologia e na filologia. por seu turno, sem sei· completamente alheia ao ensino e servin­
sses mesmos apoios beneficiou-se a outra disciplina dedica­ do-se também do livro como veículo, é com freqüência feita por
estudos literários consolidada no século XIX, a crítica não-especialistas e destinada a não-especialistas, donde sua presen­
.,cujos limites com a história da _literatura, por isso mesmo, ça em jornais ele ampla circulação, voltados para um público
ante incertos. Apesar disto,julga�os necessário reconhe­ heterogêneo. Essa feição da crítica - caráter não especializado e,
inções entre esses .domínios, donde a conveniência de por conseguinte, amadorístico, diletante, do que deriva uma lin­
'iza,ção específica da crítica literária. guagem em que os conceitos se esgarçam ou desaparecem, substi­
necemos por um registro lexicográfico sobrç � história das tuídos por impressões pessoais de leitura, linguagem aliás
crítico e e1itica, que nos trará alguns elementos para essa perfeitamente afinada com o tom ligeiro do jornalismo-, quando
ização. Na antiguidade, os gregos utilizavam como sinôni­ tornada programática, defin� uma orientação conhecida como
ermos kritikós e gramatikós; tendo com o tempo caído em impressionismo crítico ou crítica impressionista, orientação, como
) primeiro termo na língu a grega ; a mesma -sinonímia já se terá percebido, refratária ao cientificismo próprio da história
m latim, com o detalhe de que o termo criticus se usava da literatura e de outras vertentes da própria crítica literária.
te, sendo preterido em favor da palavra gramaticus. No Levantadas as diferenças,é necessário lembrar, retomando de
1ento,a pala_vra e1iticus se incorpora aos idiomas modernos resto o que já ficou dito, que tais diferenças não são de Órdem tal
do-se,_ nat�rnlmente, à f(?nologia e à motfologia de cada que impeçam a freqüente interpenetração dos domínio_ s da histó­
s), primeiro,- como na antiguidade, com o sentido de ria da literatura e da crítica literária, uma vez que, além da circuns­
•s,e depois designando aquele que se dedica ao trabalho tância evidente de essas disciplinas compartilharem o mesmo.
!Stabclecer e restaurar textos antigos quanto de comparar, campo de observação, favorece a aproximação entre elas o fato de
· ej_ulgar a produção li�e1-ária. Por fim, a partir da segunda que ambas, em seus desenvolvimentos oitocentistas, se apóiam
o século XVII o termo e1-ítica, em uso que se consolidaria conceitualmente nas mesmas ciências humanas então emergentes
XIX, ganha a acepção-base .que lhe é atualmente atribuí- :-- história, psicologia, sociologia e filologia. Assim, por exemplo, é
sistema do saber sobre a literatura.8 Pode-se acrescentar, muito usual encontrarmos, entre os enunciados factuais de um
:luir esse compacto sobre os acidentes semânticos da historiador, outros que encerram juízos de valor (enunciados
ue na atualidade concorrem com essa acepção-base,ou críticos, portanto, e até mesmo impressionistas).
1
am, dois outros sentidos, potenciados, ao que.parece, Mas história e crítica lite_rárias, · a exemplo do que se passou 1
1
nstância de que a expressão temia da literatura (surgida com retórica e poética, tiveram suas proposições ultrapassadas por
XX, como adia_nte se verá) absorveu a noção de "sistema novo ângu lo de investigar a literatura, delineado no século XX e, 11l
ob1·e a literatura". Trata-se dos seguintes sentidos, com embora às vezes designado pelos termos já tradicionais poética e
l mutuamente inclusivos: 1 12 - análise de textos literários
crítica, nomeado pela expressão teoria da literatura, também origi­

"
>; 212 .,_ emissão de juízos de valor sobre obras literárias. nária deste século. Ainda a exemplo das disciplinas clássicas refe­
:guindo com a caracterização da crítica, vamos assinalar ridas, essas ciências oitocentistas não desapáreceram de todo ao se
ectos que a ext1·emam da história da literatura, complc­ superarem suas proposições. A história da literatura, mesmo não

:1)
sendo hoje mais praticada com a veleidade de contribuição origi­
ass�m a definição <;la especificidade de cada uma dessas
. A história de um modo geral se interessa pela �radição, nal, permanece atuante e se consubstanciando em publicações de A

; do:p�ssado,enquanto a crítica inclui no seu campo de
•• 1 - -

Teo1-ia da Litemlura Teo,ia da Litera.tum 381

rincipalmence didáticos, uma vez que o ensino de literatura estudos literários é problemática por duas razões: seu uso se
e não poder prescindir da cronologia e de informações de circunscreve a idiomas específicos e sua entrada cm circulação não
eza factual ace1·ca de autores, obras e períodos. Por outro parece corresponder a nenhuma disciplina distinta daquelas que
1s investigações históricasjá não se dedicam, como no século já caracterizamos.
ao traçado de vastos panoramas das literaturas nacion·ais, Literalmwissenschaft, apesar da existência de expressões equi­
1screvendo seu interesse à problematização da própria histo­ valentes em outras línguas - ciência da literatura, ciencia de la
:le da litefatura ou ao estudo de questões pontuais (por lileratu,ra, science de la. liltéralure, science of literalure -, parece só se
)lo: um deter.minado gênero ou espécie literária; um certo ter integrado plenamente ao léxico do alemão, uma vez que o
·ecorrente em literatura; as diversas interpretações a que se emprego dos termos equivalentes nas demais línguas referidas é
·estado certo autor;,_certo texto, certo período etc). Em ambos .
bastante esporádico. Isso talvez s<:ja decorrência do fato de que a
)s·essas pesquisas se conduzem muito mais sób a forma de raiz germânica de Wissenchaft significa "saber" num sentido amplo,
.o teórica do que com o- intuito de exibir .fatos e rdatá-los a o passo que a raiz latina de scientia, nos idiomas em que vigora,
lo sua seqüência na linha do tempo, o que talvez signifique estreitou sua acepção, confundindo-se com a idéia de ciência da
tção mais à teoria do que à história da literatui-a. Com relação natureza (física, química, biologia). Se a hipótese for correta,
a literária, podemos chegar às formas de sua atualidade vcrifi­ estaria explicada a circunstância de que em alemão soá natural a
os significados atribuídos hoje à expressão, que são os seguin­ . existência de uma Wissenchafl (um saber) sobre a literatura, en­
- sistema do saber s�bre a literatura, significado coincidente quanto nas demais línguas é pelo menos estranhável a noção de
termo teoria da literatura; 22 - estudo analítico de composições uma ciência não da natureza, mas de um fato cultural· como a
� específicas, norteado por conceitos e métodos da teoria da literatura.9 Acresente-se, por fim, que o termo Lileratu,wissenschaft
ra (ou dá crítica literá1ia, tomando-se essa expressão no sentido se reveste de uma sigi1ificação de largo espectro, não sendo por­
rmente referido); 32 - apreciação pessoal de composições tanto aprnpriado para designar uma disciplina específica. Seu
lS específicas, sem preocupação analítica e de modo alheio a surgimento na língua alemã remonta pelos menos a 1842, 10 perma­
er sistema de conceitos reconhecíveis. necendo desde então utilizado corri muita freqüência, até a atuali­
dade, aparecendo inclusive no título de obras importantes,
passíveis, conforme cada caso, de inserção nos quadros da história,
4 da crítica ou da teoria da literatu(a.
A expressão critica.l theory, por sua vez, parece circunscrever-se
! aqui, tivemos oportunidade de caracterizar quatro disci­ à língua inglesa, em que é empregada por oposição a praclical
ledicadas ao estudo da literatura, cada uma delas conhecida criticism. Assim, a terminologia corrente nesse idioma estabelece ·
termo de utilização geral pelo menos no âmbito das línguas uma distinção no âmbito do criticism (termo de sólida presença em
ais. Poi· outro lado, todos esses termos - retórica, poética, inglês, pelo menos desde a publicação de An essay on criticism, de
da literatura e c,ilica lite,·ária- recobrem conceitos conside­ Alexander Pope, em 1711), entre a teoria da crítica - discussão e
:nte distintos, uma vez que, não obstante as inúmeras delineamento de métodos e conceitos gerais - e a prática da crítica
:s em que aparecem combinados os tipos básicos de discur­ - análise de textos literários específicos. Deve-se ainda assinalar
·e a literatura por eles nomeados, a entrada em circulação que a exp1·essão alemã Kri.tisch Theorie, designação geral para os
termo correspondeu ao estabelecimento de um desses trabalhos da chamada Escola de Frankfurt, muito provavelmente
sicos mencionados. não tem senão uma relação de homonímia com a expressão inglesa
:1esmo não pode ser dito com relação aos termos Literatur­ em apreço. Essa suposição se baseia no fato de que o termo alemão
iaft e criticai lhe01y, cuja inserção na nomenclatura dos surgiu e circula num outro âmbito de questões das ciências huma-
Te01ia da Literatura Teo1ia da Literatura 383

em que avulta certa concepção de sociologia e de filosofia embargo de suas diferenças, tinham em comum a rejeição tanto
pria dos pensadores frankfurtianos (Horkheimer, Adorno, de uma história da literatura factualista quanto da idéia de que as
·cuse, Benjamin, Habermas), ao passo que o termo inglês se composições literárias, não se prestando a estudo analítico, são
re em particular ao campo dos estudos literários. passíveis apenas de fruição e julgamento subjetivo.
Dissemos que o manual de Wellek e Warren sistematiza diver­
sas contribuições, o que significa, portanto, que a disciplina que
5 veio a chamar-se teoria da literatura não se apresenta como cons­
trução conceituai homogênea. Ao contrário, são muitas as suas
Resta-nos agora delinear os contornos da teoria da literatura, subdivisões internas, as suas correntes, cujo inventário deve iniciar­
plina que, no século XX, vem ocupando posição preeminente se justamente por aquelas que se situam na .base do esforço de
'!nário dos estudos literários. Pode-se objetar que, num texto síntese empreendido pdo livro citado, e que se definiram nas três
título define interesse único e explícito nessa disciplina, o primeiras décadas do século XX: o formalismo russo (ou, para
;o a ela reservado acabou restringindo-se·ao último segmento, incluir desdobramentos seus, eslavo) e o new criticism anglo-ameri­
) os demais se dedicado à caracterização de outras modalida­ cano. Ainda dessa época, deve-se mencionar a estilística (desenvol­
e investi gação da literatura. No entanto, em defesa do tipq de vida sobretudo na Alemanha e na Espanha, a escola morfológica
,ição adotado, devemos dizer que nossa intenção· foi visualizar alemã, a fenomenologia dos estratos (de origem polonesa). E,
ria da literatura num panorama histórico composto por como a lista de correntes não se esgota nessas referidas, pois
nuidades e rupturas relativas, em que disciplinas distintas se diversas outras se foram definindo nas décadas subseqüentes -
:::m correlativamçnte ao discernimento de objetos distintos no crítica marxista, crítica existencialísta, crítica sociológica, estrutu­
10 campo de observação. Assim procedendo,julgamos estar ralismo, poética gerativa, estética da recepção, etc.- , sem falar nas
ibuindo para minimizar as possibilidades de um entendimen­ muitas orientações distintas internas de cada corrente, esbarramos
:eoria da literatura em termos absolutos, distorção freqüente aqui num problema de exposição. Não sendo possível, pela ampli­
>ma a disciplina como primeira e última palavra em matéria· tude e complexida�e da tarefa, detalhar no espaço deste capítulo
.idos lite�rios, favorecendo assim ecletismos e anacronismos sequer uma parcela dessas múltiplas orientações da teoria da
ssentidos. literatura, será necessário tentar um esforço de síntese, caracteri­
!ita essa ressalva, comecemos por uma observação acerca da zando tão-somente uma espécie de núcleo básico, formado por um
1 do termo, que, 1·epresentando mais do que simples mudan- sumário denominador comum ou ponto de interseção das várias
1ome, col'l'espondeu a uma reorientação dos estudos literá­ correntes.
lativamente aos seus rumos oitocentistas. A primazia de sua De certo modo, já definimos esse _núcleo básico da teoria da
;ão deve sei· creditada a dois autores russos - · Alexander literatura: a disciplin� postula uma compreensão do seu objeto
nia e Boris Tomachevski-, que publicaram respectivamente distinta das perspectivas do s_�culo XIX, consubstanciadas nos
'Ja,·a uma teoria da literatura (1905) e Teoria da literatura recortes do campo literário operados pela história da literatura e
No entanto, a consolidação definitiva do emprego do termo pela crítica literária oitocentistas. Assim, sobretudo numa primeira
: à ampla penetração universitária de um livro que o tomou etapa do· seu desenvolvimento, a teoria da literatura acentuará a
110, publicado em 1949 por René Wellek e Austin Warren. natureza verbal, lingüística da literatura, concentrando seus esfor­ )
>mpêndio constitui um marco importante na história da ços na análise imanente dos textos. Desse modo, o texto literário
na não propriamente por ter lançado suas bases conceituais é concebido como arranjo especial de linguagem, cujo processo de
elecido seu programa de desenvolvimento, mas por ter construção e artesanato interessa, se não exclusivamente, pelo
tizado e harmonizado uma série de contribuições que, sem menos:muito mais do que sua �ransparência referencial em-relação.
Teoria da Lileralum Teoria da Literatm-a 385

ores como as experiências vividas pelo autor, os condiciona­ ções - Português-Literaturas, Português-Francês, Português-In­
tos sociais, etc. glês, Português-Latim, etc. 12 O currículo mínimo enlão instituído,
[ntegra ainda esse núcleo básico, como componente de resto ainda hoje em vigor, compunha-se de cinco matérias obrigatórias
ária ao reconhecimento ·do peso atribuído à linguagem na - língua portuguesa, literatura portuguesa, literatura brasileira,
iguração do seu objeto, a vocação problematizante da teoria língua latina e lingüística-, e de mais três a serem escolhidas entre
e
. ratura. Quer isso dizer que a disciplina, longe de pressupor as seguintes, quando da organização do currículo pleno por cada
ntendimento por assim dizer naturalizado de literatura, pelo instituição: línguas estrangeiras modernas ou línguas clássicas, suas
esta não é senão uma evidência destinada à compreensão respectivas literaturas· e mais cultura brasileira, teoria da literatura,
iata, parte do princípio de que a linguagem .literária não tem literatura latina e filologia românica.
. tid . o primeiro que aparenta, ou ·que, não obstante a aparente Esse currículo mínimo, no que tem de essencial, permanece
de sentido, possui um significado cuja coerência pode ser até hoje aceitável, cabendo somente um reparo, tão pertinente na
)nstrada. Tanto num caso quanto noutro; porém, o sentido atualidade quanto na época do seu estabelecimento: se a área de
teratura é visto não como um dado simplesmente a ser Letras se define pela confluência de língua e litcralUra, por que
:atado, mas como construção conceituai a que só se chega pela apenas a matéria teórica correspondente à primeira subárea -
a análise. É importante assinalar que esse traço da teoria da lingüística - integrou a lista das obrigatórias, ficando a outra
tura foi potenciado pelas experiências literárias da moderni­ subárea com a sua teoria no rol elas matérias facultativas? A
• que, contrariando expectativas do senso comum- quer pelo resposta nos é dada pelo próprio legislador em seu parecer, qtJe
•o do hermetismo, quer pela adoção de recursos cuja gritante considera desaconselhável atribuir caráter obrigatório a teoria da
!idade os afasta elo que se considera convencionalmente "lite­ literatura (e a cullura brasileira), porque " ... constam pela primeira
a" -, acabam por exigir uma espécie de intervencionismo vez no currículo oficial, de sorte que lançá-las desde logo como
:ico, sem o qual a literatura permanece inacessível à com- obrigatórias implicaria admitir improvisações que da autenticidade
13
1são e não terá lugar reconhecível na trama dos discursos. levaria fatalmente ao descrédito" .
fa suposição de termos tocado nos pontos definidores do No entanto, apesar de sua entrada no currículo oficial com a
·o básico que buscávamos, abstraindo assim a fragmentação restrição apontada, pelo menos já a partir de fins dos anos 60,
>rrentes, tratemos agora, para concluir, de outra questão que teoi-ia da literatura tornou-se.presença constante no ensino univer­
arece importante. Referimo-nos à institucionalização da teo- sitário de todo o país, a ponto de não conhecermos nenhum curso
1 literatura como matéria do ensino universitário. Vamos de Letrns que não a inclua entre suas disciplinas obrigatórias. Além
ngir nossa atenção exclusivamente ao caso brasileiro, pois o disso, durante a década de 70 se criaram cursos de mestrado e de
nento desse tema em escala mais ampla exigiria tempo e doutorado em teoria da literatura, o que aparentemente acabou
sos indisponíveis. No entanto, a julgar por uma série de com as improvisações e o descrédito que temia o legislador.
.mentas sobre o assunto, envolvendo especialistas re�re­ Essa rápida conquista de status a despeito do caráter facultativo
tivos do mundo acadêmico norte-americano e europeu, 1 o atribuído à disciplina pela legislação, poderia ser motivo de con­
:le cidadania universitária da teoria da literatura entre nós é tentamento para os especialistas em teoria da liter· atura, caso não
tmente semelhante àquele de que ela desfruta nos países fosse apenas apa1·ente a superação do improviso e a prevenção do
1isados. descrédito. Na verdade, seu ensino permanece, de um modo geral,
ro Ilrnsil, a disciplina foi introduzida no currículo oficial por submetido a concepções que lhe comprometem profundamente a
io da reforma do curso de Letras aprovada em 1962, que qualidade. Sem querer empreender aqui uma análise ampla do
tuiu suas antigas modalidades -Letras Clássicas, Letras Neo­ problema - que não poderia deixar de reportar-se ao lastimável
s, Letras Ang-Jo-Germânicas - pelo atual sistema-de habilita- estado da educação no Brasil, à falta de estímulo e de condições
386 Teo,-ia da Literatura Teoria da Literatura 387

mínimas para a profissionalização no magistério, à inadequação do segundo o qual a produção literária só pode ser objeto de comen­
currículo de Letras considerndo cm_ seu conjunto-, vamo-nos ater tários pessoais e julgamento subjetivo.
a um ponto bem específico: como é usualmente percebido o papel Enfim, as observações feitas nos conduzem à conclusão de que,
da teoria da literatura num programa de estudos universitários em ao se tomar a literatura como objeto de estudo, de um modo ou
Letras? de outro haverá uma teorização implicada. Assim, é insustentável
Cremos que é muito comum .se imaginar que a disciplina supor que a teoria da literatura seja uma instância de abstrações
constitui uma espécie de propedêutica, cujo objetivo consiste em destinadas a aplicações práticas; em vez disso, é necessário começar
instrumentalizar os alunos para o verdadeiro estudo da literatura, por entender que essa disciplina, compondo-se de idéias-diretrizes,
proporcionado por outras disciplinas do currículo, as literaturas generalizações, conceitos, nem por isso é alienável do concreto,
nacio�ais - brasileira, portuguesa, espanhola, etc. - e as clássicas que, nada tendo a ver com a prática, se faz presente nos currículos
- g1·ega e latina. Assim, a teoria não passa de �m estágio prepara­ · universitários com o nome das diversas literaturas nacionais e
tório, que só se justifica se habiliJ.ar para uma- prática. Ora, essa clássicas. Só quando esse princípio tão simples for amplamente
concepção, com freqüência partilhada por profe!?sores de literatu­ assimilado, será possível dizer que a teoria da literatura enfim
ras específicas e de teoria da literatura, situa o problema no nível encontrou o seu lugar nos programas de estudos universitários de
rasteiro do senso comum, pressupondo assim o caráter sucessivo Letras.
e apartado da teoria em relação à prática. Em outros termos, essa
concepção confunde um dispositivo de economia curricular - a
separação entre teoria da literatura, literatura brasileira, literatura Notas
portuguesa, .e tc. - com u_ m pseudoprincípio epistemológico, que
fundamenta(!) a ingênua expectativa de se estudar, por exemplo, 1. Aristótcles,·Poética (Porto Alegre: Globo, 1966), p. 69.
uma literatura nacional sem a implicação (ou, talvez melhor, a 2. Alexander Golllieb Baumgarten, Reflexiones Filosóficas acerca de la
implicância) da teoria: da: literatura. Poesía (Buenos Aires: Aguilar, 1964 [1735]), p. 37.
Ainda que nos seja difícil conceber esse estudo alheio à teoria, 3. Essa expressão é usada por Roland Barthes ("A Retórica Antiga", em
façamos um esforço de vislumbrar suas possíveis encarnações. Jean Cohen et alii, Pesquisas de Retórica [Petrópolis: Vozes, 1975], p.
Pode-se imaginar, inicialmente, que se trata de uma investigação 148), que, no entanto, não explicita a distinção entre campo de
obseruação e objeto. Entendendo-se o segundo como um recorte teórico
de caráter historiográfico, interessada em fatos constatáveis. Nesse
operado no primeiro, de acordo com algum interesse específico de
caso, haverá realmente um alheamento em relação à disciplina investigação, a distinção se reveste de utilidade para nossos argumen­
chamada teoria da literatura, o que não significa, porém, que se tos. Assim, por exemplo, retódca e teoria da literatura, conforme seus
tenha adentrado o reino da pura prática; a investigação ainda não respectivos interesses próprios, rec<?rtarão objetos distintos no cam­
se livra de teoria, pois, embora não se mova no espaço da teoria da po de observação constituído pela literatura.
literatura, participa de um outro sistema de hipóteses sobre a 1. Cf. Barthes, ibid., pp. 161-2, 168, 174-5 e 176-8.
literatura - vale dizer, de outra teoria -, a história da literatura. 5. Baumgarten, Reflexiones, pp. 31 e 36.
Pode-se imaginar também um tipo de tratamento que faça da 6. Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias (São
consideração da literatura não propriamente um estudo, mas Paulo: Ática, 1971 (1852-3]), p. llO.
simples· exibição de impressões pessoais e sentimentos despertados 7. Cf. Luiz Costa Lima, "O Labirinto e a Esfinge", em Teoria da Literatura
em suas Fontes (Rio de Janeiro: F. Alves, 1975), pp. 19-20.
por.leituras. Nesse caso, ou se trata de uma atividade a se descon­
8. Cf. René Wellek, "Termo e Conceito de Crítica Literária", cm Concei­
siderar, por absolutamente impertinente num circuito de ensino e tos de Ciitica (São Paulo: Cultrix, s. d.), pp. 29-41.
aprendizagem, ou se trata de uma atitude programática, que 9. Cf. Wellek, ibid., pp. 3 8 -9.
propõe um sistema de compreensão da lit�ratura_
-_uma teoria-; 10. Cf. Wellck, ibid., 38.
Teo1-ia da Literatura 389
388 Teo,-ia da Literatura
, M., ed. A.ncient Litermy C1iti­
11. "Literat")' Theory in the University: a Survey", em New Literary Histo1y, 15. RUSSEL, D. A. & WINTERilOTTOM
cism. Oxford: Clarendon, 1978.
Charlottesville [USA], 2 (v. XlV): 411-51, winter 1983. Study ofLitcraturc in the
16. WELLEK, René & WARREN, Austin. "The
12. Legislação de 1966 (Portaria Ministerial n2 155, de 17/05/66) apenas of Litem ture. [1." ed.) New York:
Graduate School." In:__. Themy
acrescenta a possibilidade de habilitações em língua estrangeira e , 1949 , pp. 285-9 8.
Harcourt, Brace and Company a, 1962.
respectiva literatura, como, por exemplo, Inglês-Literaturas. Liter atura . Lisb oa: Euro pa-A méric
17. __. Temia da . São Paulo: Herder,
13. Parecer n2 283/62, cm DOCUMENTA Nº 10/62 (Rio de Janeiro: Mod erna
18. WELLEK, René. História da C1itica
Ministério da Educação e Cultura/Conselho Federal de Educação, 1967-72, 4 V.
1962), pp. 81-2. ária." ln: __. Conceitos de
19. __. "Termo e Conceito de Crítica Liter
C1itica. São Paulo: Cultrix, s. d., pp. 29-41.
, Cleanth. Cn'tica Literária.
20. WIMSATT, JR., William K. & IlROOKS
Bibliografia Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkia n, 1980 .

1. ADAMS, Hazard, ed. C1-itical The01y since Plato. San Diego: Harcourt
BraceJovanovich, 1971.
2. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de u m Sargento de Miltcias.
São Paulo: Ática, 1971.
3. ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966.
4. BARTI-IES, Roland. "A Retórica Antiga." ln: COHEN, Jean et afü_
Pesquisas de Retórica. Petrópolis: Vozes, 1975, pp. 147-255.
5. BAUMGARTEN, Alcxander Gottlieb. Reflexiones Filosóficas acerca de
la Poesia. Buenos Aires: Aguillar, 1964.
6. CULLER,Jonathan. "Literary Theory in the Graduate Program." ln:
--· The Pursuit ofSigns. lthaca: Cornell University Press, 19_81, pp.
210-26.
7. JOBIM.José Luis. "O Ensino da Teoria da Literatura na Graduação
em Letras." Cadernos de Letras da UFF, Niterói, 1: 39-46, 1990.
t LIMA, Luiz Costa. "O Labirinto e a Esfinge." ln: __, sei., introd. e
rev. técnica. Te01-ia da Literatura em suas Fontes. Rio de Janeiro: F.
Alves, 1975, pp. 11-41.
1 __• "Quem tem medo.da teoria?" ln: __ . Dispersa Demanda. Rio
de Janeiro: F. Alves, 1981, pp. 193-8.
__. "Questionamento da Crítica Literária." ln: --· Dispersa
Demanda. Rio deJaneiro: F. Alves, 1981, pp. 199-207.
__. "A Te01ia e o Crítico Sensível." Humanidades, Brasília, 22:
106-10, 1989.
LITERARY Theory in the University: a Survey. New Literary History,
Charlottesville [USA], 2 (v. XIV): 411-51, winter 1983.
MILLER, J. Hillis. "The Function of Lilerary Theory at the Present
Time." ln: __. Theo1y Now and Then. New York: I-Iarvester Wheats­
heaf, 1991, pp. 385-93.
PARECER nº 283/62. In: DOCUMENTA nº 10/62. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura/Conselho Federal de Educação,
1962, pp. 81-2.
Texto

Lucia Santaella

A palavra texto é moeda tão corrente no dia-a-dia do mundo


acadêmico quanto são correntes as palavras paula, máléria ou
repo,·t,a,ge-m no cotidiano de uma redação de jornal. De. fato, em
nenhum momento, no diálogo entre professores e alunos, parece
pairar qualquer dúvida sobre o significado e entendimento do
termo texto. No ambiente universitário, especialmente, seu uso é·
inequívoco. Funciona como uma espécie de curinga para substituir
quaisquer palavras de tipo monografia, trabalho, redação, parágrafo,
etc.
Se intuitivamente sua compreensão é imediata e seu uso não
está sujeito a solavancos, o mesmo não se pode dizer quando se
trata de definir, quando se busca expressar, afinal, o que é um
texto. As coisas se complicam,. por exemplo, quando começamos l,
a nos dar conta de que o limite, a delimitação daquilo que é !•
chamado de texto é tão variável a ponto de abraçar desde uma
l
simples e breve exclamação, ou mesmo um grito, até uma inteira
peça de teatro. Além disso, o texto pode ser falado ou escrito, em
prosa ou verso, diálogo ou monólogo. Só isto já bastaria para il
colocar qualquer tentativa de definição em apuros. O que dizer,
então, quando se leva em consideração a surpreendente e pertur­ �
badora quantidade e diversidade de fenômenos que podem e são lB
chamados de textos, tais ·como pinturas, peças ou fragmentos
a
musicais, sinais de tráfego, cidades, vestimentas, etc.?
li
li
'I Texto 393
392 Texto
como referência e dentro da qual um conceito é construído, haver:i
Instigados e capturados por essas dificuldades, não faltaram e variação no ponto de vista e na conugu ração do fenômeno desco­

1
continuam não faltando estudiosos para levar a cabo a tarefa de berto e recoberto pelo conceito. Um dado fenômeno será tanto
compor teoricamente o conceito de texto. Se, de um lado, o senso mais prismático quanto mais famílias teóricas se dispuserem a
comum é suficiente para dar conta do caráter rotineiro e utilitário tirá-lo da orfandade. O conceito será tanto mais verdadeiro quanto
das palavras, de outro lado, no momento em que elas desafiam a mais economicamente conseguir abrigar os feixes da diversidade

!
compreensão, somos conduzidos quase que inevitavelmente pelos e mutabilidade do fenômeno.
caminhos da reflexão. Tais caminhos implicam necessariamente na i
Assim se passa com o par fenômeno-conceito chamado texto.
curiosidade em relação àquilo que outros já pensaram ou estão

'
E para flagrar esse jogo entre o uno e o diverso nem é preciso ir
pensando sobre o objeto de nossa busca. Vem daí que toda reflexão 1 muito longe. Basta tomar-se como ponto de partida um recuo de
é sempre uma ação compartilhada. Nenhuma reflexão pode se dar
1
mais ou menos cinqüenta anos. Um balanço das últimas cinco

1
no ermo do pensameto solitário. Refletir pressu12õe a espessura do décadas nos indica que teorias do texto se caracterizam, antes de
iálogo que, aliás, quanto menos idílico e mais combativo for, mais
'1 tudo, como inter e transdisciplinares. Não apenas incluem os
:anhará em fe1·tilidade . A verdade nasce da discussãõe'nãodã vadados campos dos estudos de lingu agem "estrito senso" (poética,
simpatia, disseBachelard. j
narratologia, retóric::t, estilística, lingüística geral, semântica, lin­
1
7:5c fato, as palavras só parecem transparentes quando seus güística pragmática, teoria dos atos de fala, semiótica), mas esten­
limites não desbordam as finalidades de um uso imediato e instru­ d e m s- e também para �s diversas áreas das humanidades (filosofia,
mental, pois, no instante em que se instalam na perspectiva da em suas várias especializações, psicologia, psicanálise, sociologia,
reflexão, sã? inoculadas pela capacidade e densidade do tempo. A etnometodologia), nlém de recobrir outros campos de pesquisa
construção do conceito engravida a palavra de tempo. Por isso nitidamente interdisciplinares, tais como teorias da tradução, inte­
mesmo as palavras são entes históricos, capazes de atuações tão ou ligências artificiais, teoria da informação. 2 Evidentemente, não
mais desafiadoras do que as de quaisquer sistemas vivos. Seus tenho nem a intenção, nem condições de abraçar toda essa exten­
significados crescem e se multiplicam. Não é com impunidade que são teórica neste artigo. Limito-me a destacar alguns dos paradig­
se pode fazer uso leviano de um conceito. O que significava, por mas mais notórios e influentes.'
exemplo, a palvra texto há um século? O que ela significa hoje,
jepois da explosão e desdobramentos dos estudos da linguagem?
Quanto, no correr desse tempo, seu teor conotativo ganhou em No Interior das Várias Lingüísticas
1densamento e, em amplitude e dilatação, seu poder denotativo,
1plicmivo? Sobre isso, Dinda Corlée nos diz: Na América do Norte, antes das lingüísticas chomskianas e pós (pró
ou anti) chomskianas - nitidamente . confinadas nos limites da
Hoje qualquer seqüência de palavras -Guerra e Par., um haiku, a letra sentença - atingirem o nível de celebridade que alcançaram, Z.
de umá canção dos Beatles, o Diá110 de Annc Frank, uma lista de
Harris (de quem Chomsky foi discípulo) construiu, em 1952, uma
supermercado, urna entrevista de rádio, uma receita médica - pode
se qualificar como um texto e conseqüentemente ser filtrada pela teoria concentrada em unidades lingüísticas transfrásicas. Sua
mesma malha processadora de textos. O mesmo cabe aos fenômenos análise do discurso é um método para encontrar, em qualquer
não-verbais e parcialmente verbais, tais como uma história em qua­ material lingüístico, que contém mais de uma sentença elementar,
drinhos, uma representação teatral, a paisagem urbana, ou uma alguma estrutura global caracterizadora do discurso como um
roupa.1 todo. Para isso, Harris propôs uma análise distributiva de equiva­
lências entre sentenças sucessivas. Tais equivalências são perceptí­
Além da complexidade interna do fenômeno sob exame, veis através da ocorrência e distribuição de repetições e
cima focalizada, dependendo da família teórica que é tomada
394 Texto Texto 395

paralelismos, assim como de suas combim,tções a nível estr itamente "coesão" e "coerência". A "coesão" refere-se à interdependência e
morfo-s intático.4 rência" é aquilo que
interc onect ividade dos elem entos. A "coe
Barris deliberadamente evi tou os problemas de conteúdo, permite ao texto "fa.?;er senti do" para um intérp rete.
6

vi sto que estes produzi ri am i nevit<-íveis conturbações n a operaci o­ Ainda dentro do campo da l ingüística textual, mas inspirada
nal idade do conceito de transformação por el e i ntrod uzid o. na generatividade e bases formais da li ngüística cho mskiana e
Diferente de Haffi s, pm· conceb er que a análise lingúística não semânti ca gerativa, encontra-se a gramática textual eur opéia,
pode dispensar a semântica, mas semelh ante a ele n a importânci a desenvolvida por autores co mo van Dijk, Rieser e espec ialmente
dispensada ao nível supra-sentenci ai ou textual do discurso fal ado Petõfi c om sua Textst1-uktm·-Weltstruktur Theorie na qual são ela­
o u escr ito, Pike, um outro lingüista norte-ameri cano, desenvolveu
b orndo s processo s pragmáti cos s- emânticos de interpretação de
em 1954, uma teori a seg undo a qual a sentença é um pont o de
te_xtos. Para Petõfi, as descrições textuais têm do is componentes:
part id·a ou de chegada totalmente inadequado. As sentenças não o co-textual e o con-textual. O prime iro diz respe ito a proprie­
podem ser an ali sadas sem referên cias a relações·de nível superi or dades i nternas dos texto s, o seg undo refere-se a todas as relações
na "pirâmi de hi erárq ui ca" que vai d o morfema à palavra, desta à t extuais externas, ta is como semântica extens ional, al ém da
frase, seguidas da cláusula, senten ça, parágrafo e di scurso. Sua prod ução, recepção e interpretação de texto s. Com isso, os
teoria oferece matrizes para a descri ção estrutural daquil o que el e estudos da gramática textual adotam uma perspectiv a mais glo­
chamava de "h iperen unci ados". Val e notar que os enunciad os, bal q ue busca ir além das descr ições lin güísticas est ritamente
para Pike, n ão são interrompidos no nível do di scurso, mas estã o formais.
inseridos n o acontecimen to total da lí ngua q ue, por s ua vez,
Mais frontalmente antagônicas às descrições exclusivamente
insere-se no conj unto total da cultura.5 formais, encontram-se as correntes de lin güística pragmática con­
Distintos de B arris e Pike, tanto quanto das raízes chomskia­ centradas nos aspectos perfor máticos da linguagem: Baseadas
nas, os estudos de lingüística do texto começaram a emergir a parti r tanto na tradição do conceito de "j ogos de linguagem" de Wittgcns­
dos ·anos 60. Os nonies sob os quais esses estudos apareceram te in, quanto nos "atos de fa la" de Searle, a pragmática também
difáiram ligeiramente desde a origi ná ria lingüísti ca textual alemã: in c orporou elementos da semi ótica de Charle
s Morris, especial­
gramática textual, gramáti ca do discurso, teori a do texto, pragmá­ mente sua divi são dos signos em três níveis: sintát ico, semântico e
tica do texto, semâ ntica textual, semiótica d o texto e semi ologi a pragmático. Com isso, os estudos lingüísticos do texto vi eram criar,
são algumas das varian tes. Sem serem idênticas, dadas algumas por vias indiretas, um vín culo de ligação com os estudos do signo.
diferenças nas fundações teóricas e metodol ogi as empregadas, A menção às "vias indiretas" refere-se aí ao fato de que, embora de
�odas essas investigações têm e m comum a utilização d e métod os maneira inconfcssada, não resta dúvida de que a teoria morrisiana
�stritamente lingüíst i cos apl icados sobre textos quase sempre ex­ dos signos nasceu diret amente de uma forte inspiração que a
:lus iva1riente verbais, orais ou escritos, l iterários ou n ã o l- iterár ios. doutr ina dos signos, criada por Charles Sanders Peirce, fez brotar
::::umpre notar que, no caso da semiologia, emb ora o concei to de em Morris. Cump re notar, todavia, que a constatação dessa inspi­
exto seja expandido para abranger fenômenos não-verbais, a base ração não pode nos levar a ignorar as p rofundas diferenças nos
eór ica utiliz ada é sempre de extr ação l ingüística.
fundamentos filosóficos e epistemológicos que separam radical-
Em termos gerais, pod e-se dizer que o objetivo da lingüísti ca mente Morris de Peirce.
extual é estudar o fenômeno de construçã o das seqüências verb ais Não obstante os fios de entrecruzamento, nem sempre expli­
upra,scntenciais, consistindo de unidad es hi erarqui camente ord e­ c itados, da pragmática textual com a semiótica, é só nos trnbalhos
adas. Assim sendo, "um texto, funci onand o como um� unidad e
mais recentes de Pctõfi, batizados de "textologia semiótica", qu e o
:gnificante singular, deve tú uma unidade interna, sua textura". casamento entre � pragmática e a semiótica fica mais claramente
) que distingue um texto de um não-texto é a combinação de ev idenciado.
396 Texto 397
Texto

Entre a Lingüística e a Literatura que, especial mente na tradição norte-americana, eram mantidas
asceticamente separadas.
8
Há, no entanto, uma outrn vertente de ligação entre texto e No seu famosíssimo ensaio s obre "Lingüí stica e Poética",
;erniótica que ai nda se caracteriza dentro de uma tradição que não Jakóbson expressou sua firme convicção sobre a urgência da
)Ode deixar de ser cons iderada lingüística. T rata-se dos. estudos associação entre os es�udos lingüísticos e literários. Sua resposta à
:struturalistas-semiológicos de extração saussuriana que enorme questão "O que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte?",
nfluênci a exerceram, na Europa dos anos 60-70, sobre uma série gerada na elegante exp lanação das funções de lingu agem, com
Ie campos extra-li ngüí sti cos. ênfase na função poética, é tão suficientemente conhecida pelos
Todos os rebentos gerados direta ou indiretamente a partir de quatro cantos do globo que me dispensa de qualquer comentário.
:aussure (entre os quais os representantes mai s célebres estão Também célebre é a sua afirmação, sem reservas, no referido
ocalizados na A n.lroj1ologia estrutural de Lévi-Strauss e nos Elementos ensaio, de que "um lingüista surdo à função poética da linguagem,
'.e Se-miologia de Barthes) constituem contribuições importantes assim como um estudioso da literatura indiferente aos problemas
>ara a compreensão teóri ca e aplicativa do texto. A rigor, aliá s, está lingüísticos e desfamiliarizado com os métodos lingüísticos são
mplicitamente ligada à s questões da natureza, descri ção e tipolo­ ambos anacronismos igu almente flagrantes".
:ia dos textos li terários ou não toda a chamada escola estruturalis­ Além dis so, a operacionalidade das funções da linguagem para
:t, originada da mi s cigenação e das descobertas saus surianas (e uma aplicação a campos culturais extra-verbai s, tai s como folclore,
uas repercuss ões) com as investigações estruturais e formalistas cinema, publicidade, pi ntura, etc. fez da teoriajakobsoniana, con­
ngüísticas e literári as soviéticas. No campo da poética e da narra­ forme foi expresso por Ilarthes no Le Monde, em 1971, um "mag­
)logia, por exemplo, o estruturalismo e formalis mo trouxeram nífico presente" para a comunidade acadêmica mundial, nas
randes contri buições para o entendimento da poesia como texto human idades e c iênc ias sociais. Não surpreendentemente foi no
1últiengendrado e da narrativa como forma e construção.7 campo da semiótica literária que mais frutificaram os estudos
Não obstante a pertinência de todos esses estudos como textuais com base na indissolubilidade, proposta porJakobson, de
:mtributo às pesquisas sobre texto, não pretendo dedicar a eles lingüística e literatura. 9
ada além de uma simples menção. As interconexões do texto com
:rmos, questões e problemas afins e sucedâneos são inumeráveis.
e não for adotado aqui um critério muito nítido quanto aos Texto e Sign o
>picos a serem trabal hados, pôr um fim a este artigo tornar-se-á ·
ma necessidade muito mais devida à fadiga do que à coerência. Embora radicalmente distintas nos pressppostos e propósitos,
orno busca de garantia dessa coerência, optei por abordar apenas há pelo menos duas teorias bastante conl�ecidas rn1s quais os
; teorias que explicitamente nomeiam-se como teorias do texto. conceitos de texto e signo ·se entrecruzam. De um lado, está o
l ingüista dinamarquês L. Hjelmslev; de outro, o lógico e filósofo
11.tre elas, conformejá foi menci onado, foram escolhidas as mais
1tluences. norte-americano C. S. Peirce.
Embora a obediênci a a essa delimitação se constitua, de fato, Segundo nos informa J. Dines Johansen, 10 Hjelmslev define
.1rna tarefa ela qual buscarei não me afas tar, não se pode deixar texto como um processo lingüístico, a cadeia de signos combinada
� abrir uma exceção, neste tópico dedicado aos interstícios lin­ numa sintagma, em contraposição à linguagem concebida como
iístiéos e literári os. Trata-se da vultosa obra de Romanjakobson um sistema. A diferença entre texto e signo não está no fato de que
1e, mesmo sem ter se detido de modo explícito nos estudos o signo é uma parte elo sistema da língua enquanto o texto é uma
)meadamente textuais, mui to contri buiu para promover inter­ parte da li nguagem como processo, uma vez que o signo é, a um
mbios fr utíferos entre as investigações lingüís ticas e literárias só tempo, uma unidade de manifestação e um elemento da lingua-
Texto
399
398 Texto
en­
g�m como prncesso. O signo é, assim, definido funcional mente outra espéc i e de intertextual
idad e, ou seja, intertextualidadc refer a
ade p de ser definida com o
cial. Esta espécie de intertextualid
o
como uma unid ade mínima de significação. Isso quer dizer que, universo c omum de discurso,

1
erên cia de text os individuais ao
em m uitos ca sos, sig no e texto pod em coincidir. É por isso que a c o-ref físic o, ideal, etc. 3) Intertextua­
quer seja ele sócio-histórico, ficcional,
disti nção entre a mbos só pode ser funcional. De mo do geral, n o va. As relações intertextuais entre
e nt anto, o texto lingüístico é uma cadeia d e s ignos com suas regras
lid ade comunic ativ3: ou intersubjeti por códigos compartilhados ou
textos individuais não são esgotadas é produ­
combinatória s. Assim se ndo, de um lado, temos o signo concebido de discurso; el a também
referências a um universo c omum lica d entro d e uma re de
como o elemen t o lexical e morfológico, de outro, o texto como a zida com o uma ação dialógica e simbó
:ombinação de signos em cadeias mais longas ou mais bre ves. textual.11
Entretanto , a delimitação de tais cadeias não pode n unca ser
parece flagrante em Hjelms­
xedeterminad a teoricamente, visto que q ualq uer delimitação vai Se a distinção entre texto e signo
da semiótic a de Peirce. As razões
:empre· depender de s ituações comunicativas ad lwc. É por isso que, lev, o me smo n ão ocorre no ca so
r, no fato, que pre cisa ser bem
>ara Hjelmslev, em.contraposição ao senso comum, a cadeia do disso residem, em primeiro l uga
signo peirceana em nada se
exto, dentro de uma língua v iva, é considerada como um processo compreendido , de que a noção de
do signo adv indas do privilé­
. o ntín uo e expansivo. Isso está d e acordo com os propó s itos d a assemelha a quaisqu er outras teorias
s do que isso: nessas t eorias,
ingüísti ca, que busca estabe le cer princípios capazes de q.;u co nta gio di spensado à lingua gem verbal. Mai
do e o meio através do qual
ião apenas de t extos individuais, efetiva mente produzidos mas, a l i nguagem verbal é o objeto de estu
Peirce, qu ando se utilizam
ntes de tudo , de to dos os textos que podem s er corre tamente se pensa o obj eto. De acordo com
entas do pensamento, os
reduzidos de acordo com o sistema d a língua em questão. D esse ape nas recursos elo verba l como fe rram o
1odo, a prodµção e interr.r etação de um texto individ ual d evem resul t ad os concei tuais não
podem deix ar de ser dicotômicos, vist
das
�r concebidas, s eg u ndoJohansen, como segmen tos que são r ecor­ própria estru tura lóg ica
que as dicotomias es tão enraizad as na
a maneira ·de superar essa
Ldos e ins u lados de um processo de significação permanentemen­ línguas indo-européias. Não há outr
de mecanismos lógicos de
: em curso, Nesse sentido, todo texto atualizado é sempre um limit ação senão através d a utiliz ação
verbal. É por isso que, na
agmento, o que eslá perfeitame nt e d e a cordo com a afirma ção pensament o mais a mplos do que o
o é definido dentro de um
)rgiana de que a idéia d e um texlo definitiv o só pode pertencer semió tica fil osófica de Peirce, o sign
religião o u à fadiga . e spe ctro lógico e epistemol
ógico suficientemente geral para não
de partid a, nem corno ponto
A postulação ele um processo de significação sem limites tom ar o lingüístico nem como po nto
do signo e suas tipologias
:finiclos, em relação ao qual qualquer texto realizado é sempre de chegada, i sto é, a d�finição in abstrato i-
r
n f agmento, remete à noção de inte rte xtualid acle. Eviclcntemen­ encontra no verbal ape nas
uma de suas formas possíveis de man
, evitarei aqui p enetrar no labirin to das teorias do tão usado e fes tação e exemp lificação.
do quanto ao grau de
usado conceito de intertextualidade, pois isso me levaria a Se não se estiv er devidamente adver li foi
em Peirce, conforme já
sv ios de rota elos quais não t Úia co ndições de retorna r. Vale a generalid ade l ógica da noção d e signo 12 13
a c m­
h e V. Colapietro, o
na mencionar, contudo, por seu poder ele sínt ese , os lrês dife­ muito bem enfatiz ado por M.H. Fisc rcsl ará
de sua semiótica
,tes aspe ctos d a inteJ'Lext ualid ade, e labor ados porjo hansen: preensão de todo e q ualqu er aspecto �
fu çã d sso, não é surpreendente
seriamente comprometid a. Em n o i
o crucial nas teorias do verb
al, ;� l.
1) A intertextualidade formal existe entre dois textos individ uais que a difere nça entre signo e texto , tã
quando eles m anifestam os mesmos có digos semióticos (ou as mes­ não com pareça como prob
lema na obra de Peirce.
A noção e d
• l
mas regrns de inferência). De acordo com e ste po nto de vista, dois
s igno, aliás , é para el e tão amp
la que alcança e até mesmo ultrapas­ :li
textos lingüísticos , que pertencem à mesma língua, estão relacionados ar de texto . Para se ter um
a
intertextua lmente. 2) A i déia peirceana do pensamento-vida de um s a o que a lingüística co stuma cham tam ente sig ,[l
que diz resp eito stri :10 no j
i déia d ess a amplitud e, no
e
indivíduo ou grupo social como um signo (ou texto) aponta para uma •
; ...
100 Texl-0 Texto 101

1erbal, por exemplo, Peirce diz: "Por signo verbal compreendo ser chamado de cópula ou pronomes relativos, etc., de acordo com
d' ,,,1
1ma palavra, sentença, livro, biblioteca, literatura, ·1íngua, ou qual­ Lam1íl',a de enunci. a do com que se compara o 1scurso.
a e:
[Uer outra coisa composta de palavras." 14 A explicação que Fisch Ao fim e ao cabo, portanto, o conceito de signo como compl e­
!á para essa afirmação de Peirce é bastante instrutiva: '� xidade sem limites predeterminados e definidos pode coincidir
com a idéia de um argumento sem fim, continuamente cm expan­
Não é preciso dizer que as palavras são signos; assim como não é são, que recebe também o nome de scmiose ou ação ininterrupta
preciso dizer que frases, cláusulas, sentenças, falas e conversações do signo. Assim sendo, embora haja algo que, no engendramento
extensivas são signos. Também são signos os poemas, ensaios, contos, lógico do discurso, se assemelhe à noção de unidade elementar dos
romances, orações, peças de teatro, óperas, artigos dejornais, relató­ ] lingüistas, a ênfase peirceana se desloca nitidamente do elemento
rios científicos e demonstrações matemáticas. Assim sendo, um signo
pode ser uma parte constituinte de um signo mais complexo, e todas para o conlinuwn:
as partes constituintes de um signo complexo são signos.1s
Hi uma ciência da semiótica cujos resultados dão tão pouca margem
às diferenças de opinião quanto aqueles da matemática. E um de seus
O signo tanto pode ser uma unidade constitutiva quanto uma
teoremas aumenta a pertinência dessa comparação. É o teorema de
mplexidade mais vasta, sem limites definidos. Para funcionar que os sigrios estão conectados, não importa como, mas de modo que
mo signo, o que importa é a estrutura lógica de um dado o sistema resultant� é um signo; de uma tal maneira que, a maioria
1ômeno capaz de preencher determinadas condições. A finali­ .; das conexões sendo resultantes de pares sucessivos, um signo fre­
de da definição de signo, aliás, é explicitar essas condições. Uma qüentemente interpreta um segundo na medida em que este se "casa"
i preenchidas qualquer que seja a natureza do fenômeno, ele se com um terceiro. Assim, a conclusão de um silogismo é a interpreta­
quadra dentro da classe dos signos. É por isso que os exemplos ção de qualquer uma das premissas como estando casada com a outra.
signos são infindáveis: "Signos em geral são uma classe que Desta mesma esp�cie são todos os principais processos de tradução
do pensamento. A luz do teorema acima, podemos ver que o pensa­
:lui pinturas, sintomas, palavras, sentenças, livros, bibliotecas, -� mento-vida i11tefro de uma pessoa é um sign o; e uma parte considerável
ais, ordens de comando, microscópios, representantes legais,
de sua intei-pretação resultará de casamentos com o pensamento de
1certos mus1ca1s e suas interpretaçoes ...16
• • •
outras pessoas. Assim sendo, o pemamento-vida de um gmpo social é um
... u

Não obstante a enorme generalidade e continuidade ininter- signo; e o co1-po inteiro de todos os pensamentos é um signo, quando
1ta do signo, Peirce cria mecanismos lógicos para a discrimina­ se supõe que todos os pensamentos estão mais ou menos conecta­
dos níveis de complexidade e dos graus de funcionamento do dos.18
10· sobre os quais- não vem aqui ao caso discorrer. Mas se
:;ermos estabelecer comparações em busca de analogias entre
ilo que podemos encontrar em Peirce e a noção de texto Texto e Obra
üístico como um sintagma em expansão constituído d e unida­
sígnicas, essa busca, sob certos aspectos, não será totalmente Mais proximamente relacionada a questões da literatura em parti­
trada. Se a unidade, para os lingüistas, está no signo (ou cular, a teoria do texto desenvovida por R.. Barthes tornou-se
hor, no morfema, unidade mínima de significado, ou mesmo mundialmente conhecida nos anos 70. Transformando e sub,•er­
onema,· unidade combinatória elementar), para Peirce, como tendo suas próprias posições, defendidas dentro do cenário estrn­
:o e não estritamente lingüista, a unidade mínima do discurso turalista, assim como sua breve aventura semiológica, Barthcs foi,
t a ·função proposicional, que ele chama de Rerna, seguida de cada vez mais, absorvendo para o âmbito do literário e traduzindo
1osição, argumento e discurso: "o discurso consiste de argu­ de modo criador e personalíssimo o saber psicanalítico dcJ. Lacan.
tos, compostos de proposições, e estas de termos gerais, A bem da verdade, a psicanálise deu a Ilarthes os meios par:,
ivos e não relativos, de nomes singulares e de algo que pode uma formulação mais radicnl de sua noção de cscrit�11-a,já esboçada
�''�- 1 ·
.
:-.�
402 Texto Texto 403
1�.

desde o Degré Zéro (1953). Sua teoria do texto (início dos anos 70) siapa do texto, não chegava a atingir o nível de radicalidade desta.
colocou-se, assim, numa linha de continuidade em relação à sua Se a significância de Kristeva (1969) contradizia a significação bar­
concepção de escritura, acrescentando a _esta a experiência do
inconsciente no texto: Neste ponto, a teoria barthesiana apresenta l thesiana dos Elementos de Semiologia (1964), com o Prazer do texto

'tl
(1973), Barthes fez a Semanálise de Kristeva soar como mero
semelhanças, mas ganha em 1:adicalidade quando comparada à preâmbulo ainda tímido e hesitante.
teoria formulada porJulia Kristeva (1969), do texto como produ­ Foi num artigo publicado na Revue d'Esthétique em 1971, "Da

l
tividade. obra ao texto", que Barthes sintetizou as idéias que estariam
TantoJacques Derrida quanto Kristeva, cada qual a seu modo, detalhadamente desenvolvidas no Prazer do texto. O que é funda­
elaboraram teorias que, sem deixarem de ser herdeiras diretàs de mental no artigo é a oposição entre a noção de obra e de texto.
.1
Saussui-e, criticaram as idéias do mestre até o limite da transgres­
são. É assim que o conceito de disseminação em :O_errida apresenta l "Diante da obra - noção trndicional, concebida durante muito
tempo, e ainda hoje, de maneira por assim dizer newtoniana-,
analogias com o conceito de si/5":ificância de Kristeva. Sigi1ificância produz-se a exigência de um objeto novo, obtido por deslizamento
é a . contrapartida crítica de significação. Enquan'to esta é o fruto ou inversão das categorias anteriores. Esse objeto é o Texto."21
da relação indissolúvel entre significante e significado;a significân­ Em sete itens interconectados, Barthes contrapôs as diferenças
cia, pelo contrário, é "abertura para o infinito dos sentidos", o que separam a obra d_o texto:
sentido como produtividade infinita. Daí advém a noção de texto

como produtividade, de que a ciência lingüística ou a semiologia 1) O lexto não deve ser entendido como um objeto computável.
de origem saussuriana são incapazes de dar conta. Seria vão tentar separar materialmente as obras dos textos. Em
particular, não se deve ser levado a dizer: a obra é clássica, o texto
A produtividade textual opera nu1:1 espaço lingüístico irredutível às é de vanguarda; não se trata de estabelecer, em nome·da moder­
normas gramaticais(lógicas).(...) E na linguagem poética entendida
como uma infinidade potencial, que a noção de verossímil é posta
J)' nidade, um quadro de honra grosseiro e declarar certas produções
in e outras out em razão de sua situação cronológica: pode haver
entre parênteses: ela é válida no domínio finito do discurso obediente "Texto" numa obra antiga, e muitos produtos da literatura con­
aos·esquemas de uma estrutura discursiva finita e, por conseguinte, temporânea não são cm nada textos. A diferença é a seguinte: a
ela reaparece obrigatoriamente quando recupera a infinidade da obra é um fragmento de substância, ocupa alguma porção do
produtividade textual. Mas ela não tem curso nessa·infinidade, ela espaço dos livros (por exemplo, numa biblioteca).Já o Texto é um
própria, na qual nenhuma verificação (conformidade a uma.verdade campo metodológico.(... ) a obra se vê (nas livrarias, nos fichários,
semântica ou derivàbilidade sintática) é possível. 19 nos programas de exame), o texto se demonstra, se fala segundo
certas regras (ou contra certas regras); a obra segura-se na mão, o
Através dessa noção subvertora de texto, Kristeva fez a crítica texto mantém-se na linguagem...
2) (...) o texto não pára na (boa) literatura; não pode ser abrangido
ao sujeito, à sociedade, às ideologias: 1
numa hierarquia, nem mesmo numa simples divisão de gêneros. O
1 que o constitui é, ao confi·ário (ou precisamente}, a sua força de
"O texto não é o discurso de um sujeito imutável e pleno, prévio ou subversão com relação às antigas classificações.(...) O Texto é o que
1
1
posterior ao discufso. O texto é o lugar onde o sujeito se produz com se coloca nos limites das regras da enunciação(racionalidade, l_egibi­
dsco, onde' o sujeito é posto cm processo e, com ele, toda a �ociedade,
, . • »20
sua Iog1ca, sua n1ora1, sua economia. •·/ lidade, ctc.).Essa idéia não é retórica, não se recorre a ela para ser
"heróico": o texto tenta colocar-se exatamente atrás do limite da doxa
A posição de Kristeva, em sintonia com o grupo Tel Quel, era
1 (a opinião corrente, constitutiva das nossas sociedades democráticas,
poderosamente auxiliada pelas comunidades de massa, acaso não se
materialista-dialética. Embora já prenunciasse algu ns dos abalos define por seus limites, sua energia de exclusão, sua censura?}; toman­
que a experiência d� inconsciente viria produzir na teoria barthe- do-se a palavra ao pé da lelra, poder-se-ia dizer que o Texto é semp1·e
paradoxal.
404 Texto Texto 105

3) O Texto aborda-se, prova-se com relação ao signo. A obra se fecha quia. A Expressão qu<';,r dizer que o texto é fixo numa cadeia de
sobre o significado.(...) O Texto pratica o recuo infinito do significa­ signos em contraposição às estruturas extratextuais. Nesse sentido,
do, o texto é dilatório; o seu campo é o campo do significante(...) o
infinito do signific�nte não remete a alguma idéia de inefável (de o texto é uma materialização de sistemas. A Delimitação supõe duas
significado inominável), mas à dejogo... 4) O texto é plural. Isso não demarcações: de um lado, uma fronteira entre os signos que
significa apenas que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio pertencem ao texto e todos os outros signos; e, de outro, o texto
plural do sentido: um plural irredutível (e não apenas aceitável). O em oposição a todas as estruturas que não possuem limites, tais
Texto não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia; não como aparecem ·na concepção de texto como um sintagma em
pode, pois, depender de urna interpretação, ainda que liberal, mas expansão(Hjelmslev e Peirce). Para Lotman, o texto é uma unidade
de uma explosão, de uma disseminação. O plural do Texto prende-se, mínima e irredutível de uma função cultural (um romance, um
efétivamcnte, não à ambigüidadc de seus conteúdos, mas ao que se documento, uma oração, etc.), que possui uma unidade de signifi­
podei-ia chamar de pluralidade este1iográfica dos _significados que o
tecem (etimologicamente, o texto é um tecido)... 5) A obra é tomada cação devida à sua totalidade delimitada. O texto não se limita
num processo de filiação.( ...) Quanto ao Texto, lê-se sem a inscrição apenas em relação aos objetos externos a ele, mas é caraterizado
do Pai. (...) O Texto tem a metáfora da rede, se o texto se estende é internamente por uma série de delimitações. Pressuposta por essas
sob efeito de uma combinatória (...) O Texto pode ser lido sem a delimitações está a noção de Hierarquia; isto é, a organização
1
garantia de seu pai; a restituição do intertexto vem abolir paradoxal­ hierárquica do texto, uma vez que um dado segmentofode ser um
mente a herança ... 6) A obra é geralmente objeto de consumo(...) O ,1 elemento dentro de estruturas de ordens diferentes.2
Texto (mesmo que fosse apenas por sua freqüente "ilegibilidade"),
decanta a obra (se ela permitir) do seu consumo e a recolhe como
·Í Associado à Delimitação, o caráter Estrutural, por sua vez, não
é dado "pel _:1 simples sucessão de signos no intervalo de dois limites
jogo, trabalho, produção, prática... 7)( ...) O texto está ligado ao gozo, externos. E própria do texto uma organização interna que o
isto é, ao prazer sem separação. Ordem do significante, o Texto
transforma, ao nível sintagmático, num todo estrutural". 25 Assim
participa a seu modo de uma utopia social...22
visto, o texto é um sistema de relações entre elementos de diferen­
Embora mantenha fidelidade a todos os sete itens, acima tes níveis (fonológico, gramatical, narratológico, etc.) e a relação
1

.J
xplicitados, é no último deles, o texto como gozo, que o Prazer do· entre diferentes cortjuntos de relações. Em síntese, portanto, texto,
·xto coloca sua ênfase, acentuando as conseqüências subversivas e para Lotman, é, em p1·imeir,\ instância, um conjunto de estruturas
isseminantes dessa ênfase até o ponto em que uma teoria do texto inter-relacionadas compondo um todo fechado e autônomo.
)rna-se "uma contradição de termos", visto que "toda tentativa de Há, porém, dois modificadores que revelam que a contradição 1�
:orizar o texto é suspeita de �uerer recuperá-lo num discurso de entre a noção de texto para Lotman e Ilarthes não é tão ant.'lgônica 1

j
1piência, numa fala endoxal". 'Não por acaso, daí para a frente, quanto pode parecer. Lotman trabalha com a complexa noção de
dominante, tão cara à tradição soviética, de modo que os textos
1

percurso de Ilarthes caracterizou-se como um caminho sem "'.:


j.

:torno. O não-retorno ao conceito na prática da escritura. sempre contêm elementos que são alheios às suas estrnturas domi­
nantes. Aliás, um texto que ·i1ão contenha tensões entre elementos
pertencentes ao seu sistema interno e externo teria pouco valor
exto e Cultura informativo. Em segundo luga1·, as relações inextricáveis entre um
• i- texto individual e os textos e códigos culturais que o circundam é que
À primeira vista, exatamente aquilo que Banhes chamou de 1
lhe dão significação. "Em outras palavras, o que pode estar toi.almente
1
1
m., também outro renomado teórico do texto, o semioticista ausente do texto considerado como expressão pode ser uma pane
,viético Iuri Lotman, chamou de texto. No seu livro, A estrutura do importante da sua significação, pois sua ausência é marcada quando
cto artistico( 1978), Lotman discute as quatro características cons­ comparada a outros textos pertencentes ao mesmo tipo de discurso
uintes do texto: expressão, delimitação, estruturação e hierar- ou em contraste com outros tipos de dircursos."26
,106 Texto Texto 407

As conceituações de Lotman são aplicáveis a quaisquer tipos Notas


:lc texto, do folclore à literatura de vanguarda. As distinções entre
:extos de diferentes tipos são sempre feitas de acordo com as 1. Dinda Godée, Reading the Signs ( em preparição, inédito), p. 1.
relações internas e co·m o contexto, visto que, quando os códigos 2. Cf. Gorlée, ibid., p·. 2. De que tenhamos notícia, o mais completo
:ulturais se modificam, a significação do texto também pode se levantarnento crítico das teorias do texto encontra-se nesta obra, em
preparação, à qual afortunadam�nte tivemos acesso, e com a qual
nodificar mais ·ou menos radicalmente. Nessa medida, longe de este artigo tem muitos débitos.
;er rígida e estática, sua noção de texto é dinâmica, móvel, exigindo 3. O conceito de texto muitas vezes fica superposto ao conceito de
fo analista uma forte habilidade heurística para a construção e discurso, sem que nenhuma distinção se faça entre ambos. Outras
·econstrução das funções e significações do texto concebido como vezes, no entanto, os dois conceitos tomam rumos teóricos diver­
midade mínima da cultura. sos. Uma vez que essa segunda tendência é a que vem se afirmando
· Partindo dessa mesma acepção de códigos ·culturais que têm com bastante vigor nesta última década, optamos po1· excluir
10 texto a sua unidade mínima, q tcheco Ivan Bystrina postula que qualquer discussão sobre discurso, visto que só o estudo das
'os códigos culturais têm como pressupostos os códigos lingüísti­ superposições e oposições entre texto e discurso seria por si só um
:os que possibilitam a comunicação social". Se o texto é a unidade out1·0 ensaio.
nínima da cultura, o signo é a unidade dos códigos lingüísticos. 4. Z. I-Ian-is, apud Gorlée, Reading, p. 10.
�stcs, porém, "não acontecem sem que um outro tipo de código ) 5. Cf. Gorlée, ibid., pp. 11-2.
6. Cf. Gorlée, ibid., pp. 20-2.
!steja operando: são os códigos hipolingüísticos que regem os 7. No auge do boom estruturalista, a palavra texto chegou mesmo a ser
)rocessos de.transmissão de informação a nível biológico", cuja tomada como sinônimo de estrutura narrativa. Prova disto está na
midade mínima é a informação. "Demonstrando que a semiose entrada para a palavra texto no Dictionnaire Encyclopédique des Sciences
)COITe muito antes da consciência humana, Bystrina propõe duLangage, de Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov (Paris: Seuil, 1972).
:orno protomodelos para os textos produzidos pela cultura: 1) Pelos menos dois terços do verbete são destinados a explanação de
t atividade onírica, 2) a atividade lúdica, 3) os estados alterados questões relativas à narrativa. Também fortemente ligadas à narrato­
ia consciênçia, o êxtase, o transe, o delírio, a fantasia e, final­ logia desenvolveram-se as teorias de A.J. Greimas, na França. Se no
seu primeiro �raba!ho de acentuada repercussão, Sémantique Estmtu­
ncntc, 4) as variantes psicopatológicas...".27 Com isso, Bystrina rale (Pads: Larousse, 1966), sob nítida influência ltjelmsleviana, tal
)enetra num patamar mais profundo do complexo sistema ligação em· ainéla incipiente, em Du Sens (Paris: Seuil, 1970), os
:omunicativo chamado cultura, encontrando, na espessa cama­ ingredientes da teoi'ia narrativa, que lhe deu fama,já estavam desen­
:la da semiose aquém da consciência, forças também propulso­ volvidos. Daí para a frente, a narratologia greimasiana expandiu-se
·as da produção cultural. para uma semiótica discursiva. Assim sendo, sua teoria enquadra-se
Com is_so, penso que estamos em tempo de encerrar a muito mais no paradigma das teodas do discurso do que nas teorias
tmostragem dos paradigmas teóricos do texto cujo leque tive do texto estritamente, embora algumas vezes, no contexto da semió­
)Or pretensão aqui abrir ao leitor. Evidentemente não se trata tica greimasiana, an-ibos os termos sejam tomados como vizinhos,
como é ,o caso, por exemplo, do livro Teoria Semiótica do Texto (São

�,
fe uma amostragem com qualquer veleidade de completude. As
Paulo: Atica, 1990), de autoria da brasileira ·Diana Luz Pessoa de
.eorias do texto continuam em curso, dia a dia, hora a hora. De
Ba1Tos.
:inqüenta anos para cá, o novelo reflexivo da palavra texto 8. Roman Jakobson, lingüística e Comunicação (São Paulo: Cullrix,
tvolu_mou-se de tal forma que, por muito tempo ainda, ele 1972).·
1averá de crescer em peso e volume. É só no cotidiano do senso 9. No Brasil, por exemplo,.bastante original e personalíssimo, no trnta­
:omum, portanto, .que ainda se pode fazer o texto circular na mento do texto poético, mas apresentando vínculos evidentes com a ;í

r
nocêricia de sua leveza e ligeireza. proposta dejakobson, Haroldo de Campos publicou A Operação do
1 Texto (São Paulo: Pe1·spectiva, 1976).

.:
108 Texto Texto 409

O.· J. Dines Johanscn, "What is a text?" Semiosis and Text11alily: a 7. CAMPOS, Harolc.lo de. A Operação do Texto. São Paulo: Perspectiva,
Peircean Perspective", em Livstegn, 5/1: 7 -32, 1988. 1976.
1. Johansen, ibid., p. 6. 8. COLAPIETRO, Vicent. Peirce's Aproach to lhe Self; a Serniotic Perspec­
2. Marx H. Fisch, "Peii-ce's General Theory ofSigns", em T. A. Sebeok, tive on Human Subjectivity. New York: State University ofNew Yorl·.
ed., Sight, Sound, and Sense (Bloomington: Indiana Unive1·sity Press, Press, 1989.
1978), pp. 31-70. 9. DUCROT, Oswald & TODOROV, Tzvelan. Dictionnaire Encyclopédi­
3. Vinccnt Colapietro, Pefrce's Approach to the Self (New York: State que des Sciences du Langage. Paris: Seuil, 1972.
Unive1·sity ofNew York, l 989). 10. FISCH, Max H. "Peirce's General Theo1-y of Signs." ln: SEBEOK, T.
4. C. S. Pcircc (M. S.), Manuscritos ainda não publicados, p. 31. As A., ed. Sight, Sound and, Sense. Bloornington: Indiana University Press,
referf:ncias seguiram a paginação estabelecida pelo Institute for 1978, pp. 31-70.
Studics in Pragmaticism (Lubbock, Texas). 11. __ . ':Just how General is Peirce's General Theory o[Signs." Ameri-
S. Fisch, "Peirce's General Theory", pp. 56-7. canjoumal ofSemiotics, 1 (1/2): 55-60, 1983.
i Peirce (M. S. ), Manuscritos, p. 634:18. 12. GREIMAS, A.J. Sémantique Estmturale. Paris: Larousse, 1966.
7. Peirce, ibid., p. 939:27. 13. __ . Du Sens; Essais Sémiotiques. Paris: Seuil, 1970.
t Peircc, ibid., p. 1476:38. 14. GORLÉE, Dine.la L. Reading the Signs; a Peircc-Based Text Semiotics.
). Julia Kristcva, apud Lcila Perrone-Moisés, Texto, Crítica, Escritura (São Em preparação, inédito.
Paulo: Ática, 1978), p. 50.
l. Kristeva, apud Perrone-Moisés, ibid., p. 49. j 15. JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix,
1972.

j
.. Roland Banhes, "Da Obra ao Texto", em O Rumor da Língua (São 16. JOHANSEN, J. Dines. "What is a text?" Semiosis and Textuality: a
Paulo: Brnsilicnse, 1988), p. 72. Peircean Perspective." Livstegn, 5/1: 7-32, 1988.
' Barthes, ib.id., pp. 72-8. ·
17. KR.ISTEVA,Julia. Recherc!ies pour1me Sémanalyse. Paris: Seuil, 1969.
i. Perrone-Moisés, Texto, p. 51. -18. LOTMAN, Iuri. A Estmtura do Texto A1·tístico. Lisboa: Estampa, 1978.
Cf.Johansen, "What is a Text?", p. 13. 19. PEIRCE, C. S. (�S). Manuscritos ainda não publicados.
, luri Lotman, A Estmtum do Texto A1·tístico (Lisboa: Estampa, 1978), p. 20. PERRONE-MOISES, L. Texto, Crítica, Esc,-itum. São Paulo, Atica,
106. 1978.
• . Johansen, "What is a text?", p. 14.
Cf. Norval Baitello Jr., Fantasmas Positivos e Fantasmas Negativos - os
Distú1·bios da Imagem Corporal e a Semiótica da Cultura (em preparação,
inédito), p. 3.
ij
&liografia

BAITELLOJR., Norval. Fantasmas Positivos e Fantasmas Negativos


- os Distú1·bios da. Imagem C01-pornl e a Semiótica da Cultum. Texto
inédito.
BARROS, Diana L. Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo:
Ática, 1990. ·J:
BARTHES, Roland. Le Degré Zéro de l'Ecriture. Paris: Seuil, 1953.
__. Elements de Sémiologie. Paris: Seuil, 1964.
__. Le Plaisi,· du Texte. Paris: Seuil: 1973.
__. "Da Obra ao Texto." ln: __. O Rumo,·daLíngua. Trad. Mário
Laranjeira. São Paulo: Ihasiliense, 1988.
1t;.

Tradução

Rosemary Arrojo

Em seu prefácio a Os problemas teóricos da tradução, de George


Mounin, Dominique Aury escreve sobre o lugar reservado ao
'tradutor em nossa tradição cultural:

Nas hostes dos escritores, nós tradutores formamos a infantaria; entre


o pessoal da edição representamos o duplo intercambiável, o traba­
lhador anônimo. Com a ressalva de algumas honrosas exceções na
França e na Inglaterra, embora a capa de um livro traduzido ostente
o nome do autor e do editor, é preciso ir procurar na página do título
interior, e ainda mais, em face desta página, bem lá cm cima ou bem
l á embaixo, impresso com os menores tipos possíveis, o mais dissi­
mulado possível, o mísero nome do tradutor. A operação através da
qual um texto escrito numa língua se torna suscetível de ser lido em
outra constitui, sem dúvida, um ato vagamente indecente, pois o bom
tom exige que ele passe despercebido. Quanto a isto, todo mundo
está de acordo, e não só os críticos como também os leitores.1

Essas declarações, que prefaciam uma das primeiras tentativas da


lingüística de, nas palavras de Aury, "dar aos tradutores a honra de
levar a sério sua atividade", ilustrnm a marginalidade que temos
imposto à tradução e ao tradutor. A esse dono de um "mísero �
nome", responsável por um "ato vagamente indecente" e que,
portanto, deve passar 1'despercebido", somente pode-s e reservar o
anonimato e o desprezo. Ainda mais que, como acrescenta. Aury
em outro trecho, o tradutor realiza um trabalho "inútil": "e por


iJ


2 Tradução Tradução 413

e motivo tantos cultores admiráve is da língua i nglesa terão e,obv iamente,a fala da escrita, o texto do metatexto, o original da
iti lmente traduzido Shakespeare durante estes últi mos cinqüen­ tradução.
anos, inutilmente sim,já que é preciso recomeçar?"2 Enquanto Entrelaçado a essa pretensão, encontramos um dos preconcei­
��r se mostra, é--!::_vE�ciado como criador e o�a lugar de: tos mais antigos do pensamento ocidental e que se exp1·essa através
,tague nas capas de livros e nas bi bliografias, o tradutor se da convicção de que há uma relaç ão mais direta entre a voz de
:onde, se desvaloriza e parece estar permanentemente se descul-- quem fala e a suposta "essência" do que esse algu ém quer "real­
ndo pela inadequação que a tradição e ele erô_e_i-io �socj�m a mente" dizer do que entre essa "essência" e o que se escreve.
iofício. Da mesma forma,as escr ituras ditas "or iginais",celebra­ Segu ndo a cláss ica formulação de Ari stóteles, "os sons emit idos
iCÕrno frutos das i ntenções conscientes de seus autores,supos­ pela voz são os símbolos dos estados da alma e as palavras escr itas
nente .não envelhecem e podem manter i ntactos os significados os símbolos das palavras emitidas pela voz".'1 Como sugere Derrida,
a "conti dos", enquanto que as traduções,além de serem consi­ há "um liame or i ginário e essencial" entre o logos e a phoné, a voz,
·adas apenas deri vações canhestras e mal-sucedidas, sempre _que estaria "imediatamente próxi ma daquilo que, no 'pensamento'
dam sua idade,sua i nferioridade e acabam se tornando obso­ ·como logos, tem relação com o sentido daquilo que o produz, que
ts. o recebe, que o diz,. que o reúne". 5 Conseqüentemente, se se
Esse destino que a tradição tem permitido à tradução e aos considera que a fala se aproxima mais da essência,da verdade, da
dutores não é, entretanto, desvinculado do que reserva aos coisa-em-si, todo significante e,pri ncipalmente,todo signi ficante
·i gi nais" e a seus autores. Ambos são conseqüência das concep­ escrito, será necessar iamente derivado, sempre "técnico e rep­
:s de significado,de "verdade" e de realidade que têm embasado resentativo" em sua posição de i nvólucro do significado. Essa
noção de uma prox i midade possível entre a voz e o ser,a voz e �
nele parte das teor ias, das filosofias e das visões de mundo da
o senti do do ser, que caracteriza o fonocentr ismo,se confunde,
li
ri
.li zação ocidental desde, pelo menos,Aristóteles e Platão. O que
as concepções têm em comum é a crença na possibili dade de para Derr i da, t
ljl

um nível de conhecimento em estado puro - i ndependente de


tlquer perspecüva ou contexto - que se pudesse i nstalar nas com a determinação historial do sentido do ser em geral como
presença, com todas as subdeterminações que dependem desta forma
avras, na fala ou na escrita,e que,por não se fundir às palavras,
geral e que nela organizam seu sistema e seu encadeamento historial
textos nem às suas circunstâncias, pudesse ser deles reti rado e (presença da coisa ao olhar como eidos, presença como substância/es­
:quadamente resgatado. A essa crença,a esse "culto" ao logos - sência/existência (ousia), presença temporal como ponta (stigmé) do
zão,à lógica, à verdade como "palavra di vi na", livre de qualquer agora ou do instante (nun), presença a si do cogito, consciência,
jeti vidade - que Jacques Derrida chama de "logocentrismo"3 subjetividade, co-presença do outro e de si, intersubjetividade como
emos, por exemplo, a formulação da velha oposição entre fenômeno intencional do ego, etc.).�
1teúdo e forma que sobrevive, inclusi ve, nas reflexões que a
�ística, a teoria literár ia, a semióti ca e a filosofia - todas de É essa "metafísica da presença" que se ins inua por trás de
ação logocêntrica - ainda tecem em torno da distinção de nossas noções de sujeito e de objeto e das relações que pensamos
ssure entre si gnificante e significado. AQJ.Qgocentrismo deve� poder estabelecer entre eles. Assim, o sujeito da consciênc ia, mu ito
s também a crença n�_poss i bi lidade, não apenas de se separa..:
:orm'ãõOjet1va os dois lados de Q!!ªl.quer dicotol_!lia mas,tam-
bem expresso pelo mito cartesiano do cogito ("penso, logo existo"),
se i magina presente a si mesmo,pretende saber o que diz, o que (i1
1,d�_p!i.Yikgiar �rri deles como primord ial, es�encial �� não di z e o que quer dizer com o que diz; pretende,enfim,ser a
·. Assim, pretendemos separar o signi ficado da forma,a alma origem de seu signifiéado e ter controle sobre ele. Conseqüente­
:orpo,o literal do figurado, o literári o do não-literár io, o sério mente, através do "conduto" da li nguag<:;m e, pr i ncipalmente, da
11ão-sério,o transcedental do empíri co,a or i gem da derivação fala, crê poder transferir esses significados, como mercadoria
f11 Tradução
1 Tradu{ão 115

>ortátil e não-perecível, para outros sujeitos, estes também supos­ E é entre essas duas "interpretações da palavra tradução" que Paulo
amente dotados do poder e não simplesmente retirar do invólucro Rónai, como tantos outros teóricos, abriga os modos possíveis de
la linguagem os significados nela acondicionados, como também se traduzir:
la habilidade de separá-los de qualquer interferência externa:
.faturalmente, a essa noção de suje-ito corresponde uma noção de Confon11e adotemos uma ou outra dessas maneiras de ver, a tradução
•bjeto semelhante.Já que o sujeito se pensa presente a si mesmo, deverá corresponder a exigências diversas. Conduzir uma obra es­
►ensa também o significado como pleni) e presente nos objetos trangeira para outro ambiente lingüístico significa querer adaptá-la
ao máximo aos costumes do novo meio, retirar-lhe as características
om que lida. Assim, os objetos-'-- as coisas, os artefatos, a "nature­
exóticas, fazer esquecer que 1-ellete uma realidade longínqua, essen­
a" e até mesmo os sujeitos na posição de objeto - devem "co·nter" cialmente diversa. Conduzir o leitor para o país da obra que lê,
ignificados independentes e à espera de serem descobertos e significa, ao contrário, manter cuidadosamente o que essa tem de
orretamente extraídos. estranho, de genuíno e acentuar a cada instante a sua origem aliení-
É precisamente a partir dessa perspectiva que· a tradu.ção tellj gena.8
ido encarada desde que a maldição de Babel se abateu sobre os
1umanos. Se, depois de séculos de convivência com a imprensa e Podemos entrever nas variantes a que se refere Rónai uma
multiplicação de textos escritos, a tradição ocidental de certa espécie de acomodação ao ideal impossível que seria a realização
orma "se acostumou" a desconfiar menos da esci-itura, da ausência do transporte total, sem perdas e .sem desvios. Como a transferên­
:a voz de quem fala e da sua representação no significante escrito, cia total de significados de um texto para outro, de uma língua para
ceitando o texto como um receptáculo possível e legítimo da outra e de uma cultura e de uma época para outras, não parece
,resença e dos significados de seu autor, ainda reserva à tradução factível aos mais sensatos, alguns se contentam com um transporte
papel de bode expiatório do desencontro inevitável entre signi­ "parcial", uma espécie de remendo, de mal necessário. Mas, mesmo )
.cante e significado. Afinal, se para a perspectiva ·1ogocêntrica, parcial, como qualquer Lransporte que envolva distâncias e desalo­
)do significante é por definição o elemento que separa o signifi­ jamentos prolongados, toda tradução é potencialmente perigosa
ado de sua origem, o que pode pretender qualquer tradução a para a integridade dos significados que carrega. Nesse sentido, é
ão ser separar esse significado de sua matriz de forma ainda mais exemplar a comparação das palavras de uma sentença a uma fileira
:i.dical do que a chamada escritura "original"? Conseqüentemente, de vagões de carga formulada por Eugene Nida.9 Segundo sua
orno os significados supostamente se encontram acondicionados descrição, a carga pode ser distribuída entre os diferentes vagões >'
o texto por iniciativa da consciência de seu a_utor, sua tradução
ara uma outra língua, outra cultura e outro contexto é necessa­
de forma irregular. Assim, algu ns vagões poderão conter muita
carga, enquanto outros poderão carregar menos; cm outras situa­ /.
iamente representada pela imagem de um transporte ou uma ções, uma carga muito grande terá que ser dividida entre vários
·ansferência. Como lembra Paulo Rónai, essa imagem do trans­ vagões. De forma semelhante, algumas palavras "carregam" vários
orte se justifica até mesmo pela etimologia: em latim, traducere é conceitos enquanto outras t<:!·ão que se juntar para conter apenas
levar alguém pela mão para o outro lado, para outro lugar", e pode um. Da mesma maneira que o que importa no transporte de carga
ssumir outros desenvolvimentos pertinentes: não é quais vagões carregam quais cargas, nem a seqüência em que
os vagões estão dispostos, mas, sim, que todos os volumes alcancem
o sujeito deste verbo é o tradutor, o objeto direto, o autor do original seu destino, o fundamental no proce�c:o de tradução é, para Nida,
a quem o tradutor introduz num ambiente novo ... mas a imagem que todos os componentes significativos do original alcancem a
pode ser entendida também de outra maneira, considerando-se que língua-alvo, de tal forma que possam se,· usados pelos receptores.
10

é ao leitor que o tradutor �ega pela mão para levá-lo para outro meio Nesse traumático processo de translado de carga tão preciosa
lingüístico que não o seu. e cscoffegadia, os perigos e ;is perdas de toda a sorte são inevitáveis,

.....
416 Tradução
1 Tradução 417
1
espccialmenLc quando os textos em questão carregam a fragilidade i tradutórios de nosso tempo - a primeira tradução francesa das
1

e a preciosidade do literário e do poético. O horror da separação i Obras Completas, de Freud - pretende


1.
e o distanciamento que a tradução promove entre o significado e 1
sua suposta origem, transferindo-o para um contexto estrangeiro traduzir Freud como se fosse o próprio Freud, empregando não um
e hostil, devem ser apagados ou, no mínimo, disfarçados. Para francês germânico mas um "francês freudiano", utilizando todos os
Aury, como vimos, traduzir não é apenas uma tarefa predestinada recursos do francês da mesma forma em que Freud uliliza os do
alemfio.14
ao fracasso, é, também, um ato "vagamente indecente", talvez por
ser "artificial'' e "contrário à natureza", como afirma Peter New­
Se levarmos às últimas conseqüências a concepção logocêntrica da
mark.11 Esse desvio da norma e da natureza, que sonha com a
tradução como transporte de significados estáveis e determinados
possibilidade de um transporte sem perdas e sem danos, somente
de uma língua para outra, de uma cultura para outra e de um tempo
poderá ser aceitável e, quem sabe, até mesmo bem-sucedido se
e lugar para outros, qualquer tradução deverá ser capaz não apenas
puder ser também invisível ou imperceptível, ·se puder ser, de
de encontrar significantes em que caibam perfeitamente os signi­
;ilguma forma, "mágico" ou "milagroso". Como ·escreveu Alexan­
ficados transportados sem danos e sem perdas mas, sobretudo,
:le1· Tytler cm 1790,
deverá ser capaz do milagre de transformar a diferença não sim­
uma boa tradução é aquela em que os mérilos do lexto original são plesmente em semelhança, mas em igualdade, para que esteja
Lão completamenle transfundidos numa outra língua a ponto de acima de qualquer suspeita, de qualquer crítica e de qualquer
serem- claramenle compreendidos e semidos por um nalivo do país desgaste. Em suma, para que o "desajeitado" transporte de signifi­
ao qual pertence essa língua, da mesma forma em que o foram por cados promovido pelo processo tradutório seja polidamente im­
aqueles que falam a língua do original.12 perceptível, toda tradução terá que ser capaz de um milagre e, mais
precisamente, de alguma versão do milagre da metempsicose, para
Jm século antes, em seu Pi·ejace to Ovid's epistles, translated by severa[ que pudesse ocorrer, como pretende Aury, "algo talvez indizível
'wnds, John Dryden apresenta alguns princípios e pré-requisitos entre o trabalho e o resultado do trabalho". George Steiner empre­
nrn se realizar uma "boa tradução" de textos poéticos, ponto ga a metáfora dessa "transmutação de almas" ao comentar o
1evrálgico de toda te�ria de tradução vinculada ao logocentrismo: trabalho "solitário, prodigioso e não remunerado" de Stephen

,i
Mackenna que, entre 1917 e 1930, traduziu o Enneades, de Pio tino, 1
1) Nenhuma homem é capaz de traduzir poesia a menos que, além de e que definia seu trabalho como "milagre": "o que fiz com Platino
ser um gênio nessa arte, seja um mestre lanto da língua de seu autor é um milagre, o milagre de persistentemente recuperar uma mente
como de sua própria. que afunda e se agita e desaparece como uma rolha nas ondas."... 15 11 1
2) Não devemos apenas poder compreender a linguagem do poeta, mas Talvez ninguém tenha percebido melhor do que Jorge Luís
também os movimentos peculiares de seus pensamentos e de sua
Borges a busca ilusória dessa "metempsicose", dessa transmutação
expressão, que o caracterizam e o distinguem e o tornam diferenle
de todos os outros escritores. de "essências" e o recalque da diferença inerentes à concepção de
tradução como transporte de significados estáveis e plenos. Em
3) O mesmo cuidado devemos ter em relação aos ornamentos mais
externos, as palavras. "Pierre Menard, autor do Quixote", somos informados de que
4) De forma geral, os significados de um autor são sagrados e inviolá­
veis.13
Menard, "simbolista de N1mes, devoto essencialmente de Poe",
consumiu sua vida na tentativa de realizar uma obra "invisível",
(1
!,
1

Encont1-aremos concepções semelhantes em declarações de


"interminavelmente heróica e ímpar": a reprodução dos capítulos
IX e XXXVIII da primeira parte do Dom Qy.ixole, de Cervantes, e r
radutores de qualquer língua ou de qualquer época.Jean Laplan­ parte do capítulo XXII. Ao invés de tentar "transportar" os signifi-
:he, po1· exemplo, que coordena um dos mais ambiciosos projetos
118 Tradução
l
{
Tradução 419
cados de Cervantes para seu tempo e lugar, Pierre Menard assume
mo necessariamente espera de toda tradução uma eficiência sobre­
a tarefa de se transformar na própria origem desses significados.
humana, capaz de interromper o fluxo do tempo e de neutralizar
A primeira estratégia que lhe ocorre pa1·a alcançar sua meta é,
quaisquer diferenças.2° Como esse "milagre" nunca ocorre, como
literalmente, transforma r s- e em Cervantes, ou seja, "conhecei· bem
a metempsicose permanece uma fantasia, por mais que se esforcem
o espanhol, recuperai· a fé católica, gu errear contra os mouros ou
os tradutores comprometidos com a fidelidade total ao "original",
contra os turcos, esquecer a história da Europa entre os anos de
toda tradução estará sempre, em al gum nível e para algum crítico,
1602 e de 1918, ser Miguel de Cervantes". 16 Abandona, entretanto,
associada à frustração e ao insucesso; toda tradução será sempre
tal método por ser pouco estimulante e passa, então, a tentar
"menor", seínp1·e "insatisfatória" sempre apenas uma derivação
realizar aquilo com que sonha todo tradutor formado na tradição
desajeitada de um original idealizado e inatingível. Esse destino de
logod�ntrica. Como nos explica o narrador, "ser, de alguma manei­
fracasso e de impossibilidade faz do tradutor um Quixote empo­
ra, Cervantes e chegar ao Quixote pareceu-lhe menos árduo - por
brecido, um cavaleiro de triste figura, dono de um mísero nome
conseguinte, menos interessante - que continuar sendo Pierre
que merece ser apagado, escondido, da mesma forma que seu
Menard e chegar ao. Quixote através das experiências de Pierre
trabalho, "vagamente indecente", tem que passar despercebido,
Menard". 17 Impõe-se, assim, o "misterioso dever de reconstituir
18 tem que ser invisível. Aliás, não é por acaso que essa "invisibilidade"
literalmente a obra espontânea de Cervantes".
O quixotesco impasse de Pierre Menard não é apenas o e essa marginalidade têm sido, historicamente, também associadas
à mulher e às suas atribuições na sociedade. A tradução é, até hoje,
impasse de todo tradutor em sua busca - de antemão fadada ao
uma atividade exercitada, em grande parte, por mulheres que
fracasso - da magia que lhe permita o máximo de fidelidade ao
podem trabalhar em casa, nos intervalos de seus afazeres domésti­
que seu texto/autor, qualquer que seja sua importância de dimen­
cos, e que se conformam com a desvalorização e a má· remuneração
são, "realmente" ·tenha querido dizer, na esperança de produzir
de seu trabalho.John Floria, destacado tradutor inglês ·de Montaig­
uma tradução absolutamente correta e que permaneça através dos
ne, desculpava-se por suas incursões nessa atividade "degradada",
tempos, sem o estigma da rejeição iminente e sem precisar ser
já que todas as traduções são sempre "defeituosas" e, portanto,
substituída por outra menos "obsoleta". É, também, o impasse 21
aparentadas com o "sexo feminino".
teói-ico em que se enredam os estudos dedicados a seus mecanis­
,)

A marginalização a que a "metafísica da presença" condena a )


mos e a seus supostos "fracassos" desde, pelo menos, Cícero e
atividade do tradutor reflete-se, também, na forma pela qual a
Horácio, na tentativa de achar caminhos que tornem a tradução )
sociedade lida com sua profissionalização. Como lembra Paul de
menos frustrante e menos "inútil". Como lembra George-Steiner,
pode- se dizer que
Man, todo tradutor é "por definição mal pago, é por definição
sobrecarregado com trabalho, é por definição aquele que a história
J1

não fixará realmente como um igual a não ser que por acaso seja )
todas as teorias de tradução - formais, pragmáticas,-cronológicas -
são apenas variações de uma única pergunta inevitável. De que forma também poeta".22 Ao lhe atribuir o papel de mero transportador .)
pode•se ou deve-se atingir a fidelidade? Qual é a correlação ideal entre "invisível" de significados, que deve ignorar-se e a seu tempo e lugar )
_ o texto A na língua de partida e o texto B na língua de chegada? Essa ao realizar sempre "desajeitadamente" as operações desse trans­
questão é o centro de um debate que dura mais de dois mil anos. 19 porte de risco, a sociedade humilha e aliena o tradutor e seu ofício. )
Ao aceitar esse papel, o tradutor não se reconhece como intérprete
Essa herança Iogocêntrica, que aprisiona o tradutor e seu do texto que traduz e não assume a resp<msabilidade autoral que !�

1
ofício na busca do impossível e do milagroso, traz conseqüências lhe cabe. Ao abdicar de suas responsabilidades autorais, aceitando,
sérias. Ao idealizar o chamado "original", pressupondo-o capaz de
se manter o mesmo apesar das diferenças inevitáveis, da passagem
do tempo, das mudanças ideológicas e contextuais, o logocentris-
muitas vezes, o papel de mero filtro passivo de textos que desco­
nhece e com os quais não se familiariza, deve abdicar de quaisquer
direitos de autor, aceitando as políticas trabalhistas que têm rebai-
·�
w Tm.dução

.do sua atividade: a remuneração indigna, o desconhecimento de


u nome e, sobretudo, a não-profissionalização de seu trabalho.
r
!
1
Tradução

dos pressupostos e das expectativas que a tradição logocêntrica


projeta para o processo de tradução.
121

Da mesma forma, como sua atividade "vagamente indecente" A crítica radical a esse culto ao logos parte do pressuposto de
·ve passar "despercebida", o tradutor que supõe simplesmente \ que todo sujeito mantém com qualquer objeto uma relação neces­
rregar significados prontos de uma língua para outra e de um
cto para outro implicitamente não necessita de uma formação
! sariamente determinada pelas circunstâncias em que ocorre. Ins­
pi rada na "desconstrução" empreendida porJacques Derrida (que
)ecífica, além do conhecimento das línguas envolvidas. Com propõe a "desconstrução", a "de-sedimentação" de "todas as signi­
ceção de poucas universidades, que já se preocupam em formar ficações que brotam da significação de logos",2') essa crítica tem
:>fissionais da área, a grande maioria ainda não considera a como alvo redimensionar as concepções de significado e de texto
dução um objeto de estudo que deva ocupar seus departamen­ e, conseqüentemente, as relações que se podem estabelecer entre
:. Dentro dos estudos literários, por exemplo, não há lugar para original e tradução, entre tradutor e autor. A partir dessa crítica,
1a atividade que tão "insatisfatoriamente" trata a suposta "fragi­ as questões teóricas da tradução que, como vimos, Lêm literalmente
ade" do texto poético e que, por definição, deturpa a "essência" girado em torno de uma obsessão milenar com a preservação da
literário. À margem da profissionalização e da institucionaliza­ origem e de uma rejeição virulenta a toda e qualquer diferença
) acadêmica, a tradução se marginaliza também enquanto objeto deixam de ser marginais, deixam de ser recalcadas pelos estudos
reflexão e pesquisa dentro dos estudos da linguagem. Por não da linguagem e passam a ser paradigmáticas dos mecanismo e dos •1
seu lugar demarcado entre as disciplinas institucionalizadas, a intercâmbios lingüísticos que ocbrrem dentro de uma mesma
dução depende do interesse esporádico das áreas que têm língua, de um mesmo "original". A desestabilização da crença na
,aço garantido na academia. Portanto, pouco se reflete e pouco possibilidade de uma origem simples, clara e demarcável para os
ttua sobre os costumes e as políticas que determinam os espaços significados, geralmente atribuída às intenções suposta·mente pre­
·mitidos a tradutores, traduções, críticos e pesquisadores da sentes, conscientes e recuperáveis de um suj eito encontra em
a, garantindo-se, assim, a marginalidade e o descaso. Nietzsche e em Freud dois poderosos aliados.2
As reflexões de Nietzsche sobre a natureza e o poder da

II
linguagem desmistificam qualquer pretensão de descoberta de
"verdades" ou conhecimentos que transcendam a perspectiva e o
contexto em que ocorre. A busca de conhecimentos e de "verda­
A rede de preconceitos, insatisfação e impaciência que se arma des" que motiva a filosofia e a ciência é, para Nietzsche, apenas um
torno da tradução faz parte do anedotário popular. Expressa-se, sintoma do "impulso à formação de metáforas", que distingue os
· exemplo, no sempre citado trocadilho ital_iano "tmduttore-tra- humanos das outras espécies animais. O que chamamos de "conhe­
1·e", que se aproveita das semelhanças sonoras entre os dois
cimento" apenas é possível através de uma linguagem que, ao invés
ábulos para associar a tradução à traição. Outro exemplo de mero invólucro de significados estáveis, passa a ser reconhecida
riqueiro é o chiste depreciativo e machista segundo o qual as como o instrumento através do qual se fabricam "verdades". Não
luções são como as mulheres: quando fiéis, não podem ser há, na origem de qualquer manifestação lingüística, um significado
1itas, e quando bonitas, não podem ser fiéis. Dessa atitude "presente" à espera de que o veículo significante o transporte para
ativa em relação à tradução não escapam nem mesmo os um emissário adequado; não há, em outras palavras, um "original",
lutores, como deixou claro Dominique Aury em seu prefácio um nível de conhecimento que possa ser anterior à linguagem e
ivro de Mounin. Este quadro melancólico em que teóricos e que simplesmente se deixe �nvolver ou macular por ela. No início
tutores inserem a tradução não é, como tenho argumentado, o de tudo, como escreveu Nietzsche, há apenas a formação de uma
:ino inescapável do ofício do tradutor, mas, sim, conseqüência métafora: "um estímulo nervoso que se transforma em percepção"
122 Tradução
..
Tradução 423

Essa percepção, então, acoplada a um som. Quando falamos de metamorfose sugestiva, uma tradução claudicante para uma língua
á1-v01·es, cores, neves e flores, acreditamos saber algo a respeito das completamente estrangeira.28
.coisas em si, mas somente possuímos metáforas d.essas coisas, e essas
metáforas não correspondem de maneira alguma à essência do No espaço de uma mesma língua, de uma mesma cultura, de um
original. Da mesma forma que o som se manifesta como máscara
mesmo tempo e lugar e até de um mesmo significado, inscreve-se,
efêmera, o enigmático X da coisa-em-si tem sua origem num estímulo
nervoso, depois se manifesta como percepção e, finalmente, como portanto, a tradução imperfeita, "claudicante" - ou alguma versão
som.25 de seu movimento e resultado: a transferência pautada pela dife­
rença, a metamorfose, a metáfora - como o paradigma de qual­
�orno lembra Alan D. Schrift, "metáfora", no texto nietzschiano, quer processo de significação, divorciado de uma origem que não
e refere à instância de se tratar o difer. ente como idêntico e de se seja também uma representação humana, resultado de uma pers­
.pagar
· as "translormaçoes
e � " ou "metamol'loses"
e 1s1�0 para o
•,.,..., do f'" pectiva e de um interesse.
:spiritual, do literal para o fi �rado, do audível para o visual- que Embora a arbitrariedade da linguagem seja um dos alicerces
>correm com o significado.2 Aliás, é precisamente a esse mecanis­ fundamentais para a constru.ção da reflexão de Nietzsche acerca
no de "apagamento" superficial das diferenças que devemos a do sujeito e de suas relações com o real, o grande teórico do signo
>ossibilidade da linguagem e, como conseqüência, a possibilidade arbitrário, particularmente para os estudiosos da linguagem, con­
le construirmos nossos conhecimentos e nossa bagagem cultural. tinua sendo Ferdinand de Saussure, que nos interessa, no espaço
:orno explica Nietzsche, deste trabalho, principalmente como "precursor" de Jacques Der­
rida. Para Saussure, como para Nietzsche, as bases da·linguagem
Certamente nenhuma folha é exatamente igual a qualquer outra. são resultado de um acordo social, que deve ser assumido por todos
Assim, a idéia "folh�" se formou através da omissão arbitrária dessas aqueles que constituem o grupo de seus usuários. Sem essa con­
diferenças individuais, através de um esquecimento das qualidades vencionalidade, que parte do arbitrário - ou seja, da falta de uma
diferenciais, e tal idéia sugere a noção de que na natureza existe, além relação direta e "motivada" entre coisa e signo - não pode haver
das folhas, algo chamado a "folha", talvez uma forma original de linguagem. Segundo Saussure,
acordo com a qual todas as folhas foram tecidas, desenhadas, preci­
samente medidas, coloridas, enrugad�s. pintadas, mas por mãos O laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então,
inábeis, de tal modo que nenhuma cópia tenha saído correta e fiel à visto que entendemos por signo o total resultante da associação de
1orma ongma
r · · .
127 . um significante com um significado, podemos dizer mais simples­
mente: O signo lingüístuo é arbitrário. Assim a idéia de "mar" não está
Ao questionar a crença na possibilidade de uma origem, de ligada por relação alguma interior à seqüência de sons m-a-r que lhe
1ma "forma original", transcendental e pré-lingüística, e ao sugerir serve de significante; poderia ser representada igu almente bem por
1ue o processo de significação se constitui de uma série de meta­ outra seqüência, nãc:i importa qual; como prova, temos as diferenças
norfoses apagadas de uma esfera para outra- do estímulo nervoso entre as língu as e a própria existência de línguas diferentcs . . .29(pp.
>ara a percepção, desta para o sonoro, do sonoro para o literal, do 81-82, grifos do autor).
iterai para o figurado e assim por diante - Nietzsche elimina
1ualquer tentativa de se estabelecer uma relação "própria" ou uma Como não há nada de intrínseco na base de qualquer signo, todo
radução "literal" entre quaisquer esferas: elemento do sistema lingüístico é definido não por sua essência,

l
nem por aquilo que lhe seja constitutivo ou inerente, mas por
entre duas esferas absolutamente diferentes, como entre sujeito e aquilo que o distingue e o diferencia dos outros elementos que
objeto, não há nenhuma causalidade, nenhuma cot1·eção, nenhuma participam do sistema. Como conclui Saussure, "na língua só existem
expressão, mas, no máximo, uma relação estética - ou seja, uma diferenças".

.�
-� l
Tradução Tradução 425

E mais ainda: uma diferença supõe em geral termos positivos entre mente na ilusão de presença do cogi,to cartesiano. O sujeito dotado
os quais ela se estabelece; mas na língua há apenas diferenças sem de um inconsciente é, e m primeiro lugar, constituído por diferen­
termos positivos. Quer se ·considere o significado, quer o significante, ças. Dividido entre a consciência, a libido do id e as pressões do
a língua não comporta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema superego, esse sujeiw tem que renunciar à ilusão de uma suprema­
lingüístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas cia racional e conviver com o desconhecimento que determina suas
resultantes deste sistema. O que haja de idéia ou de matéria· fônica
escolhas e esboça seu destino. Como observa Paul-Laurcnt Assoun,
num signo importa menos que o que existe ao redor dele nos outros
signos. A prova disso é que o valor de um termo pode modificar-se o inconsciente representa:
sem que se lhe toque quer no sentido quer nos sons, unicamente pelo
fato de um termo vizinho ter sofrido uma modificação.30 o regime crônico do agir humano, a cisão incessantemente realivada
entre o querer e o agir, o verdadeiro e o falso, o dilo e o calado.
A partir da definição saussuriana do signo arbitrário, . Derrida Designa sempre a ilusão, mas apreendida doravante na imanência do
comportamento moral. Que o homem faça incessantemente uma
>põe a renúncia inevitável a qualquer pretensão de presença ou
coisa diferente do que crê fazei·, eis o que institui o desconhecimento
plenitude em qualquer manifestação lingüística:· no cerne da realidade humana e universaliza o inconsciente como
linguagem deste desconhecimento crônico.33
Essejogo de diferenças supõe, na verdade, sínteses e referências que
proíbem em qualquer dado momento, ou em qualquer sentido, que A concepção do inconsciente não apenas subverte a "metafísica da
um simples elemento esteja presente nele próprio, e que se refira
presença" cultivada pelo sujeito cartesiano mas a própria relação
apenas a si mesmo. Quer na ordem do discurso oral ou escrito,
nenhum elemento pode funcionar como um signo sem se referir a que geralmente se estabelece entre origem e derivação. Se quiser­
'1
um outro e1emento, este tamb,em nao- s1mp
. 1esmente presente.31 mos buscar uma origem que possa explicar a condição humana,
certamente não a encontraremos na esfern da consciência. Como
mo todo signo se entrelaça a outros, numa relação de interde- observa Assoun, a noção do inconsciente nega à consciência "sua
1dência e suplementação, qualquer texto somente pode ser pretensão ao título de princípio", e "supõe inverter a relação
1stituído por esse '.'entrelaçamento", essa urdidura, essa inter­ consciente/inconsciente constitutiva do desconhecimento; o que
tualidade, produzido a partir da transformação de outros textos se dá originalmente com o primeiro não é senão o mais superficial,
-remediavelmente aparentado a outros, num processo de adia­ que mascara o verdadeiro princípio".34 Como 1·esume um aforismo
de A Gaia Ciência, de Nietzsche, "a consciência é o último e mais -ri
· nto infinito clã origem do significado. Como conclui Derrida,
tda, nem entre os elementos, nem dentro do sistema, se encon­ tardio desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, também
35
simplesmente presente ou ausente. Há apenas, em todo o lugar, o que há de menos acabado e menos forte".
erenças e 1·astros de rastros".32 Qualquer "presença", como A psicanálise nos ensina que uma das formas de manifestação
alquer "origem", será sempre "reconstituída", ou seja, produto do inconsciente é o fenômeno da transferência, observada, inicial­
esultado de um processo de interpretação, que implica a trans­ mente, na relação qu·e todo analisando deve estabelecer com seu
·mação, a produção e não, simplesmente, o resgate de significa­ analista para que "a cura pela palavra" possa ser acionada. A
s plenos· e alojados no interior do significante ou do texto. transferência, entretanto, não é simplesmente um sintoma de
A reflexão psicanalítica sobre o sujeito e suas relações com os quem se submete à psicanálise, transcendendo o divã e a situação
jetos constitui uma outra via que pode nos conduzir a conclusões analítica. Como argumenta Shoshana Felman, segundo a releitura
nelhantes. A . concepção do inconsciente, abordada filosofica­ que Lacan empreende do texto freudiano, o inconsciente "não é
:nte p·oi'Schelling, Schppenha�á; e Nietzsche,_ entre outros, e apenas aq uilo que precisa ser lido, mas também, e principalmente,
,envolvida a partir de Freud' como umá das "rnais importantes "aquilo que lê". A descoberta do inconsciente realizada por Freud
xlusões da psicanálise, também pode desferir um golpe incle- é "o resultado de sua leitura do discurso histérico de suas pacientes,
?6 Tradução Tradução 427

to é, de sua capacidade de ler, nesse discurso histérico, seu próprio e irnpessoal de significados. Ou seja, antes de se deixar as fronteiras
scurso". Conseqüentemente, a descoberta do inconsciente é "a de uma língua em busca de outra,já se traduz.
:scoberta de Freud, dentro do discurso do outro, daquilo que, As reflexões desconstrutivistas de Nietzsche, a semiologia de
:ntro dele mesmo, lia ativamente; em outras palavras, sua desco­ Saussure, revista e revisitada por Derrida, assim como a psicanálise
Tta, ou sua leitura, daquilo que lia - no que esta\la sendo lido". de Freud e Lacan apontam para a inevitabilidade da tradução, da
.sim, a "essência" da descoberta freudiana consiste "não simples­ diferença, da metáfora (no sentido nietzchiano), do desencontro
�tne na revelação de um significado novo - o inconsciente - mas entre significante e significado no cerne de qualquer intercâmbio
36
d.escoberta de um novo modo de ler". Nas palavras de Lacan, ou projeto humano. O que supostamente se "perde", se transfor­
ma, ou se aliena de sua "origem", quando traduzimos um texto de
O principal interesse de Freud era a histeria ... Ele passou muito uma língua para outra, potencialmente também se perde, se trans­
tempo escutando ·e, enquanto ouvia, ocorreu algo paradoxal ...
ou forma ou se aliena em qualquer processo de leitura, em qualquer
seja, uma leitura. Foi enquanto escutava suas pacientes histéricas que
ele leu que havia um inconsciente. Ou seja, algo que ele pod i a apenas operação lingüística dentro dos limites de uma mesma língua. A
construir e no qual ele mesmo se achava implicado; ele estava maldição de Babel, que nos obriga a enfrentar nossos próprios
implicado no que ouvi a no sentido de que, para seu gr-andc espanto limites, não se destina apenas às traduções e aos tradutores mas é
,
percebeu que não podia deixar de participar do que a histérica lhe indissociável de todo -e qualquer empreendimento humano. A
. e -
contava e que se sentia a.:etado por isso.37 plenitude, a presença, a origem clara e distinguível, a imutabilidade
e o logos são atribuições divinas, tão distantes de nós e de nossa
A partir da perspectiva psicanalítica, sujeito e objeto estão condição como o paraíso e a imortalidade. ti
:mediavelme'nte comprometidos numa relação transferencial
que um se mistura e se entrelaça ao outro. Como determinar,
11
ão, a origem do significado ou as "verdadeiras" intenções de III
autor? Como separar o leitor do autor, o l�itor do tradutor, a i.
A partir da desconstrução do mito logocêntrico que entrevê a
lução do oi-iginal? Como separar, em suma, o texto do que não u
pertence? A relação leitor/texto, como qualquer relação que possibilidade de se limitarem os contornos de um original e de
separá-lo de suas supostas derivações, a tradução deixa de ser um )1;
sujeito estabelece com um objeto, será sempre, e inevitavelmen­
determinada pela qualidade e pela extensão dos afetos. que estorvo às teorias lingüísticas e passa a ocupar o centro das refle­ •i
rem essa transferência.38 Como sugere Peter Brooks, qualquer xões sobre a linguagem, a filosofia e a literatura, em seu sentido
mais amplo. O embargo divino à construção da Torre de Babel,
1
1ra produz uma "intervenção" no texto "através do nosso desejo
1ti-a)tmnsferencial ele dominá-lo e também através do destjo de que condena a humanidade à multiplicidade de línguas e, portanto, jA

dominado por ele". Como o que se estabelece entre leitor e como lembra Derrida, "à necessária e impossível tarefa da tradu­

,,
H
o é uma relação, não é apenas o leitor quem atua; o texto, como ção", é também o fim da iJusão humana de ascender à esfera da
:xo implicado na transferência,também se transforma a partir transcendência, reino das origens plenas e imutáveis. E é também
desejos e fantasias do leitor. Conseqüentemente, como conclui uma metáfora eficiente da própria noção de desconstrução: "uma �
oks, "transferência e interpretação são na verdade interdepen- construção por terminar, cujas estruturas apenas pela metade nos
.
tes e nao- podemos pnonzar
. . uma sobre a outra"39. portanto, penn1tem ent1·ever os anda1mes. ' deIas se escondem" .40
que atras - i;:j
tro dos limites de uma mesma língua, qualquer ato de leitura Essa relação íntima entre a problemática da tradução e uma das
,.
(�

:iplica uma transformação, um agir sobre o texto que nunca mais importantes vertentes do pensamento contempor·ânco tam­
� ser meramente invisível ou inocente. Dentro dos limites de bém é apontada por Christopher Norris, para quem a tradução "é
mesma língua, também é impossível qualquer resgate neutro um outro nome para aquela crítica aos sistemas, conceitos e �

"
------------------- -
T. ---

Tradução J.
í Tmdução 429
tlidades prematuros que tam
bém se conhece por desconstr
". 41 Como sinônimo u­ nas coisas em si" e, o que é ainda pior, "romper as canalizações"
..
de desconstrução, a tradução
1 desafio radical às noções que representa ' através das quais esse con)1ecimento é "distribuído para o uso
herdamos sobre linguagem,
ca e verdade",42 atingindo de público".H Locke defende, assim, a separação su mária da verdade
frente a filosofia, cujo projeto
�ia exatamente na ci-ença de qu se e do conhecimento daqu ilo que os torna "nebulosos" e que os
e seus conceitos e categorias não
endem de qu estões lingüística contamina: os "artifícios" perniciosos e sedutores da retórica e da
s. Como explica Norris.
linguagem figurada. "Se quisermos falar das coisas como elas são",
Este pressuposto tem raízes pro argu menta Locke,
fundas, já que toca não apenas
1uestão de se traduzir entre língu as diferentes mas, a
:ntre pensamento e lin uagem também, a relação
em geral. Os filósofos sempre temos que concordar que toda a arte da retórica, ... todas as aplicações
nclinaram a crer que a gqu estão se artificiais e figu radas de palavras que a eloqüência inventou têm como
de se colocar os pensamentos em
)alavras é uma operação decididame único objetivo insinuar idéias erradas, estimular as paixões e, conse­
nento lhes dá acesso a uma esfera nte secundária··.:.e-que o pensa­
de idéias claras e distintas, exigind qüentemente, manipular o arbítrio e são, na verdade, um perfeito
1penas que se evite que a lin u age o engano.,15
g m tome obscuras essas idéias pur
: sem ambigüidades.43 as
As perigosas artimanhas da retórica podem ter seu lugar em
:ro das fronteiras da filosofia, pro discursos públicos mas, "em todos os textos que têm como meta
ssegue Norris, os problemas
ionados à tradução em geral têm informar ou instruir", devem ser "completamente evitadas". Onde
sido tratados como "obstá­
; relativamente menores", que quer que "a verdade e o conhecimento" estejam em jogo, esses
"nada têm a ver com o essen-
com aqu ilo que seria o "filosó recursos somente podem ser considerados "uma grande falha da
fico prop riamente dito". Aliás,
n base nesse tipo de pressupos linguagem ou daquele que os u tiliza". N u m outro t1·echo lemos:
to que a filosofia crê poder
ir sua especificidade e disting
uir-se de disciplinas próximas,
> a retórica e a crítica literár É evidente o quanto os homens gostam de enganar e de ser engana­ ,·,
ia.
dos.já q ue a retórica, esse poderoso instrumento do erro e do engano,
) que a reflexão desconstrutivi conta com mestres estabelecidos, é ensinada publicamente e sempre
sta tem demonstrado é preci­ ',
nte a impossibilidade dessa cisã
pretendida pela filosofia, imp
o entre pensamento e lingua­ gozou de boa reputação ... A eloqüência, como o belo sexo, apresenta
muitos atrativos convincentes para que possamos ser contra ela. E é 1,;
li
ossibilidade essa também inútil apontar defeitos nessas artes do enganojá que os homens têm tf
•nstrada a todo o momento e em

11·,•i
qualquer lugar em que se prazer em ser enganados.�6
realizar a tradução de um texto,

m
por mais simples e banal que
-lesse sentido, a filosofia, como
qu alqu er out ra disciplina ou Segundo o comentário de De Man, a retórica, com·o as mulheres,
do conhecimento, não deixa de ;I
ser u ma forma de escritura, com as q uais "se pa rece", é, para o filósofo, uma "coisa boa" desde
orma de tradu ção. Num ensaio já
clássico, "The epistemology que se mantenha em seu lugar e não se intrometa em assuncos
taphor", Paul de Man demonstra,
com raro b rilho, a vincu la­ sérios que não lhe dizem respeito. Locke não se dá conta, entre­
evitável entre filosofia e escritu
ra e a impossibilidade de u m tanto, de que sua inflamada defesa da necessidade e, implicitamen­
Ju ro de· pensamento, anterior
à linguagem e imu ne a seus te, da possibilidade. de se separar a verdade, o "filosófico
::ios". De Man aborda, entre ou
tros textos, o Essay conceming propriamente dito" ela retórica e dos "adornos", gue devem se
t uiuierstanding, do filósofo inglês
John Locke, cuja preocu­ restringir aos usos "não-sérios" da linguagem, se autodesconstrói.
centi-al é, apropriadamente, a nec
essidade de se separar as É inescapavelmente através da eloqüência e da retórica ciue Locke
e o pensamento do "conduto"
inadequado da linguagem tenta condenar a eloqüência e a retórica. Como conseqüência, se
,ode corromper as fontes de conhec
imento que se encontra desconstroem também quaisquer pretensões da filosofia de clistin-
'30
Tmdução ).
Tradução 131
uir clara e objetivamente a verdade da não-ve1·dade e, principal-
Se a filosoCia tem se construído a partir do pressuposto de que
1ente, a filosofia da retórica ou da literatura. As relações entre
teratura e filosofia não podem ser pensadas, como conclui De conta com algo que possa ser o "filosófico propriamente dito",
':· também a teoria d a literatura tem como objetivo definir a especi­
[an, "cm termos de uma disLinção entre categorias esLéticas e
ficidade desse "modesto mistério" e dessa "reserva de sombra" que
Jistcmológicas": "toda filosofia está cond�nada, na medida em
embalam os chamados textos literários e poéticos. Em termos
1e depende do figu rado, a ser literária e, como depositária deste
gerais, podc.-íamos dizer que aquilo que a filosofia rejeita é preci­
·oblerna, toda literalura é, de certa forma, filosófica."47
samente o que a literatura pretende cercar como sendo de sua
A partir do momento em que se reconhece que a filosofia se
competência. Ao literário e ao poético se reservam, assim, as
1contra irremediavelmente enredada à ling uagem, incapaz de se
conotações, as ambigüidades, os sentimentos, a subjetividade, en­
rar do "embaraço" da metáfora e da retórica, incapaz de separar
quanto que ao filosófico e ao científico, por exemplo, se reservam
estilo do pensamento, a verdade do artifício, a sinceridade do
as precisões, as denotações e a transparência entre coisa e signo.
gano, a prnblemática da tradução, que também tem buscado
Para René Wellek e Austin ,iVarren, num dos textos mais influentes
1·mas adequadas de se separar o significado (a verdade, o conhe­ i
nento, o conteúdo) do significante (da língua, da linguagem, do sobre teoria da literatu ra deste século, a linguagem científica, "em

1)
1ólucro), passa a ser não apenas um problema filosófico mas,
termos ideais", deve ser "puramente denotativa" e ter como "alvo"
Jretudo, a problemática central da filosofia. A filosofia, como a uma "correspondência total entre signo e referente", "sem chamar
dução, não escapa à maldição da Torre inacabada, da multipli­ atenção para o signo para que nos detenhamos, sem equívocos, no
.ade lingüística, do significado escorregadio, da origem sempre seu conteúdo". A linguagem literária, por ou tro lado,
ada.
Da mesma 'forma que pode subverter o grande pressuposto
é rica em ambigüidades; é, como qualquer oulra linguagem histórica,
cheia de .homônimos, de categorias arbitrárias ou irracionais ... é
:u
que aposta a filosofia para encontrar a especificidade de seu permeada de acidentes históricos, memódas e associações. Numa !\i
�eto, a tradução de gualquer poema, ou de qualquer texto literário,
:essariamente terá que rever e reavaliar não apenas a problemática
palavra, é altamente conotativa. Além disso, a linguagem lilerári:i. é
muito mais do que l��·ramenlc referencial. Ela tem seu lado expres­
UI
tradução mas também e, principalmente, a qu estão central que sivo, ela transmite o tom e a atitude do falante ou do escritor. E ela 111
ifica os eslUdos literários: o que é, exatamente, o "poético" ou o
:rário" e onde se alojam esses significados "especiais"? Como
não se limita a declarar e expressar o que diz; também pretende
influenciar a atitude do leitor, persuadi-lo e mudá-lo.49
�1
;iu Borges, em "Las versioncs homéricas", não há /;+'
nenhum problema tão consubstancial com as letras
A argumentação de Wellek e Warren não por acaso nos lembra a
distinção entre retórica e filosofia sugerida por Lockc no texto ,,,
mistério como o que propõe uma tradução. Um esque
e seu modesto
cimento esti­ comentado anteriormente. Encontraremos alguma versão dessa ill·
mulado pela vaidade, o temor de confessar proce distinção em qualquer projeto logocêntrico que pretenda demar­
ssos mentais que
adivinhamos perigosamente comuns, a tentativa de �j
central uma reserva incalculável de sombra velam as
::liretas. A tradução, por outro lado, parece desti
manter intacta e
tais escrituras
car as frontei ras das disciplinas institucionalizadas. Por lrás desse
tipo de classificação e de distinção entre o literário e o não-lilcrário, I J ,,
::1• - , • 48 nada a ilustrar a paira, novamente, a il�são de que se possa separar, de forma cbra
1scussao <;stellca.
e objetiva, a idéia do estilo, o conteúdo da forma. Os conlornos
dessa ilusão se destacam especialmente nas tentativas ele dd111iç,io
antes de nos determos na problemática da tradução dos
do q ue constitui o" poético propriamente dito", quase un;111imc­
iados textos literá.-ios, vamos examinar rapidamente alguns
mente considerado como a mais intensa concentrc1ção do poLcncial
;upostos elas teorias qu e têm nesses textos seu principal objeto
artístico da linguagem. Com freqüência, algumas dessas lcnlalivas
te1·esse.
já antecipam as difíceis relações que em geral se estabelecem entre


Tradução Tradução ,133

sia e tradução. Como lembraJosé Paulo Paes, "sendo a poesia, concerne à "imprevisibilidade, à surpresa, à improbabilidade da
'eliz conceituação de Ezra Pound, a forma mais condensada de ordenação de signos".5'1
uagem, não é difícil entender por que configura ela o ponto ·"i
co ou paroxístico da problemática da tradução".50 O poeta Conseqüentemente, enquanto que a "informação documentária"
:e-americano Robert Frost, por exemplo, definia poesia como e a "informação semântica" "admitem diversas codificações"
lo aquilo que sç perde em tradução". Para o poeta inglês W. H. (como, por exemplo, "A aranha faz a teia", "A teia é elaborada pela
en, a diferença essencial entre prosa e poesia "reside no fato aranha" ou "A teia é uma secreção da aranha"), a "informação
prosa poder ser traduzida em outra língua, mas a poesia não".51 estética" "não pode ser codificada senão pela forma em que foi
. RomanJakobson, como a poesia "é governada pela parano­ transmitida pelo artista". O exemplo de Campos para ilustrar a
ia" - ou seja, pela exploração de relações entre os níveis "máxima" fragilidade da "informação estética" é um poema deJoão
>ros e·semânticos; como a que se encontra, por exemplo, em Cabral de Melo Neto ('"A aranha passa a vida/tecendo cortinados/
s de palavras -ela é, "por definição, intraduzível". Apenas a com o fio que fia/ de seu cuspe privado", de "Serial", "Formas do
1sposição criativa" é possível: de uma forma poética para outra Nu", em Terceirn Feim), que não poderia suportar "qualquer alte­
1esma língua, de uma línwa para outra, ou entre meios e ração" em sua "seqüência de signos verbais" "por pequena que
55
gos expressivos diferentes.� fosse".
Tais definições apontam não apenas para uma suposta "fragi­ Assim, para Haroldo de Campos, enquanto que a tradução
le" da poesia mas, sobretudo, para sua "intocabilidade". No }
(como transporte de significados estáveis) é perfeitamente possível
lógico "Da tradução como criação e como crítica", Haroldo de para as informações semânticas e documentárias - nas quais,
pos chega a.conclusões semelhantes às dejakobson. Campos implicitamente, se autoriza a separação entre conteúdo e forma -
entre outrns, Albrecht Fabri, para quem "a essência da arte é a tradução da informação estética, que depende de uma relação
tologia" já que as obras artísticas "não significam, mas são". próxima entre significante e significado, é, "cm princípio, impos­
o explica Campos, ao deter-se especificamente sobre a lingua­ sível": "em outra língua será uma outra informação estética, ainda
literária, Fabri sustenta que "o próprio desta é a sentença que seja igual semanticamente". O dilema dessa intraduzibilidade
uta, aquela que não tem outro conteúdo senão sua estrutura, é resolvido através da proposta de uma "recriação":
1ão é outra coisa senão o seu próprio instrumento". Conse­
temente, segundo Fabri, essa "sentença absoluta" ou "perfei­ Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre 1·ee1iação,
io pode ser traduzi<la, pois "a tradução supõe a possibilidade ou criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado
separar sentido e palavra".53 Essa argumentação é esmiuçada de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto
�s da distinção que Max Bense estabelece entre "informação possibilidade aberta de criação. Numa tradução dessa natureza, não
se traduz apenas o significado, traduz-se o próp,io signo, ou seja, sua
mentária", "informação semântica" e "informação estética". fisicalidade, sua materialidade mesma ... O significado, o p;irâmeu·o
,alavras de Campos. semântico, será 11penas e tão:somente a baliza demarcató1·ia do lugar
da empresa recriadora.54
informação documentária representa algo observável, é uma sen­
nça empírica, un1a sentença-registro. Por exemplo ... : "A aranha Os pressupostos e os argumentos defendidos por Ha:-olclo de
ce a teia." A "informação semântica" já transcende a "document á - Campos parn justificai· tanto a traduzibilidade das i11forn1açõcs
1", po1· isso que vai além do horizonte do observado, acrescentando
"semântica" e "documentária" como a intracluzibilidacle da infor­
5o que em si mesmo não é observável, um elemento novo, como, mação "estética" são exemplares do que tenho charna<lo aq11i -via
>r exemplo,. o conceito de falso ou verdadeiro. "A aranha tece a teia
uma proposiç,io verdadeira", eis uma informação semântica. A Derrida - a "metafísica da presença". A distinç:ir, 9uc propõe
1formação estética", por sua vez, transcende a semântica no que (at.-avés de Ma.x Bense) entre o scmânLico, o docurnc11L;írio e o
14 Tradução Tradw;ão 435

,tético não passa de mais· uma das muitas versões da velha e Haroldo de Campos, como Pierre Menard e toda a tradição
:corrente distinção ent1·e conteúdo· e forma. Assim, Campos logocêntrica, se e squece de que qualquer texto
se realiza apenas
�cessariamente localiza no texto a presença plena da informação, através de uma leitura, que necessariamente o coloca diante de um
1alquer que seja sua "tipologia". Ou seja, o poema deJoão Cabral Outro, dotado de um inconsciente e localizado no centro de uma
io apenas contém "informação estética", mas é essa "informação", perspectiva. Assim, a "obra invisível" de Menard, por ele conside­
mclusão essa qi:.te se transforma numa "evidência" tão clara a rada como a milag1·osa "reprodução total" do texto de Cervantes,
rnto de dispensar qualquer explicitação. A partir dessa perspec- é, parn o narrador de Borges, "diferente", irremediavelmen
te
1a, já que o "estético" é "evidente" em si mesmo, sua suposta "outra", apesa1: de verbalmente idêntica à de Cervantes. Da mesma
>resença" transcende, portanto, a história, a cultura e a interfe­ forma, o que Campos vê como a própria presença do estétic
o no
·ncia dos sujeitos que ojulgam como tal. poema de João Cabra) é, apenas e irremediavelmente, sua leitura
Essa ilusão de que o estético - ou qualquer outra categoria - desse texto, uma leitura que, por suas circunstâncias, atribui a ess
e
)ssa efetivamente ser aprisionado pelo texto nas malhas dàs letras ! .
texto - e não a outros - um locus privilegiado do poético. O que
1contra no já mencionado "Pierre Menard", de Borges, sua Campos vê como indiscutivelmente "estético", como o que existe
agistral desconstrução. Naquele que é o ponto alto do conto e, plenamente, independentemente de qualquer perspectiva, não
·ovavelmente, um dos grandes momentos da obra de Borges� da pode deixar de ser o resultado de uma relação transferencia
l que
eratura de todos os tempos, somos convidados a comparar um se estabelece entre o que o constitui como um sujeito inserid
t> o num
agmento do Quixote ree scrito por Pierre Menard ao "mesmo" determinado conte xto histórico-social e o objeto com o
qual se
agmento esc1:ito originaln�ente por Miguel de Cervantes: enreda , e se identifica. Se essa relação e as circunstâncias ,j
em que
ocorre pudessem ser apagadas, se o estético realmente
pudesse
É uma 1·evelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Ce1van­ habitar o poema deJoão Cabral como sua característica
intrínseca 1:
tes. Este, por exemplo, escreveu: e evidente, não teria que ser imediatamente reconhecid
o e identi­
a ve rdade, cuja mãe·é a história, êmulo do tempo, depósito das ações, ficado como tal por qualquer conhecedor da língua, m li
testemunha cio passado, exemplo e aviso do presente, advertência do · e qualquer
tempo e lugar?
porvir. h
Paradoxalmente, se se pudesse levar às últimas conseqüênc
Redigida no século dezessete, redigida pelo "engenho leigo" Cervan­ ias JI.
essa argumentação acerca da presença do "estético" no
tes, essa enumeração é um mero elogio retórico da história. Menard, poema, ou
seja, se o poético pudesse estar realmente no poema e se li
por outro lado, escreve: r evidente
a verdade, ctua mãe é a história, êmulo do tempo, depósito das ações, em si mesmo, dispensando qualquer relação com um leitor,
não li
testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do estaria também morto e encerrado? Congelado numa leitura
única
po1vir. e definitiva, enterrado nos signos intocáveis do poema, li
de que nos
A história, "mãe" da verdade; a idéia é assombrosa. Menard, contem­
po1·âneo de \,VilliamJames, não define a história como uma indagação
serviria o estético ou o poéticô? O texto poético, como
qualquer u�'
outro, vive pre cisamente quando é transformado, posto
da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, em circu­ lt'
lação através de uma leitura ou uma tradução. A recusa
n ..
não é o que aconteceu; é o que julgamos que tenha acontecido. As à tradução
é, pois, como l embra Eugene Vance, "a recusa à vida", à conLin
sentenças finais. - "exemplo e aviso do presente, advertência do ua­
ção da vida, à sobrevivência, à disseminação do signifi
po1vir" - são descaradamente pragmáticas. Também é vívido o ,. nos ca1·acteriza e nos define, seres inventores de metáf
cado, que I!
contraste entre os estilos. O estilo arcaizante de Menard - no fundo oras que
estrangeiro - padece de alguma afetação. O mesmo não acontece somos.58 Ili
com o do precursor, 9uc maneja com naturalidade o espanhol A partir dessa desconstrução das noções de intoca
,
de fragilidade do estético, podemos redefinir não apenas
bilidade e '-'l
corrente de sua epoca.57 a questão

j
;-. da intraduzibilidacle mas, também, a própr ia questão do literár 59
io.


í
Tradtl{ão Tradtl{ão 437

bora este não seja o espaço para a redefinição do que possa ser perta na filosofia contemporânea, fornecendo-lhe, como sugere
,pecificidade da literatura e do poético, podemos propor que Andrew Benjamim - em 1989 - o "conceito" em termos do qual
se busque essa suposta especificidade em nenhuma versão da se discutem "a possibilidade e até mesmo a própria prática da
sica distinção entre conteúdo e forma. Qt,tanto à tradução, será filosofia".61 De "responsável" pela morte - total ou parcial - de
1pre urna empresa impossível - qualquer que seja o texto a ser inúmeros textos, a tradução pa:..-;a a ser paradigmática de todos os
luzido - se a imaginarmos como um transporte de significados intercâmbios lingüísticos e, o que é a mesma coisa, de todos os
,veis e plenos de uma língua para outra. Paralelamente, será intercâmbios humanos, associada à vida e à resistência à morte.
1pre possível, como sempre possível será a leitura, qualquer que Ao abrirmos mão da crença na possibilidade de um significado
. o tex�o envolvido, desde que a aceitemos como transformação imune às interferências do tempo e das circunstâncias da leitura,
1m texto em outro, de uma língua em outra, de uma cultura em necessariamente abrimos mão também do preconceito milenar
ra, desde que aceitemos, portanto, a diferença.e a impossibili­ que cultivamos em relação à tradução e a todas as manifestações
le do retorno ao "mesmo", ao "mesmo" livro, ao "mesmo" que trazem o estigma da derivação e do afastamento da "origem".
:ma. Num mundo constituído a partir de diferenças, o retorno Nesse processo de "psicanálise" da cultura, em que a filosofia e a
'mesmo" "original" não é factível, como tentei argumentar, pela teoria passam a se conscientizar de seus próprios limites e desejos
pies razão de que não há essa "origem", nem esse "mesmo", i
humanos, passa-se a aceitar a tradução como aquilo de que necessita
1uanto formas imutáveis, para os quais se possa voltar. Nas >- o "original" para poder viver e se expandir. Como argumenta
élvras de Derrida, transformadas depois de, no mínimo, duas Derrida, a tradução passa a ser a "Jei", "uma forma de escritura
Juções: "repetida, a me_ sma linha não é mais exatamente a produtiva exigida pelo original", sem a qual este não se dissemina
6
sma, o círculo não tem exatamente o mesmo centro, a origem nem se reproduz.
1çou". 60 Assim, o que Haroldo de Campos tem proposto como O reconhecimento desse poder ignorado durante tanto tempo
.tica possível para a sobrevivência, em outra língua, de textos
. '' abre perspectivas excitantes para a pesquisa, que pode finalmente
itados" de informação estética - a "recriação" ou a "transcria­ se libertar de seu velho complexo de inferioridade e de sua
," - prática essa, aliás, que exerce com um sucesso e um compulsão a pedir desculpas e, conseqüentemente, deixar de lado
lhantismo incomparáveis, é, portanto, a única forma de tradu­ as indefectíveis comparações entre a "grandeza" de textos "origi­
> que _ efetivamente se pratica, mesmo por aqueles que, como nais" e as "infidelidades" cometidas por suas traduções. Ao renun­
:rre Menard, insistem em chegar à "origem" do texto para que ciar à sua posição de "remendo", a tradução perde também sua
ssam lhe "extrair" os significados que pretendem "transportar", inocência e pode começar a prestar atenção, por exemplo, nas
n perdas e danos, para outro lugar. motivações que sublinham o tipo de intervenção que realiza nos
textos que escolhe transformar e disseminar. Traduzir deixa, p o r ­
tanto, d e ser uma atividade "in.útil" o u "invisível", que deve passar
IV "despercebida", e se assume como uma inevitável forma de con­
quista ou de tomada de poder, que necessariamente reescreve o
Os caminhos que nos levaram do logocentrismo à desconstru­ passado e se apropria de outras culturas e linguagens. Como ensina
) não por acaso nos levaram também da marginalidade milenar Nietzsche, "o grau do sentido histó1·ico de qualquer época pode
posta à problemática da tradução para o centro das reflexões ser avaliado a partir da forma pela qual essa época traduz e tenta
bre a linguagem e a própria condição humana. De questão absorver épocas e livros anteriores" (em A Gaia Ciência, citado em
Srica menor, à qual a lingüística de Georges Mounin finalmente, Schrift, p. 178).
eu a honra de levar a sério" num livro originalmente publicado O que também é particularmente excitante em relação a essa
:1 1963, chegamos ao verdadeiro ·"fascínio" que a tradução des- "nova" consciência que envolve o ofício do tradutor é o fato de
1
f

1
38 Tradução Tradução 439

uc, praticamente, tudo está por fazer. Depois desse longo "cochi­ 16. Jorge Luís Borges. "Pierre Menard, Autor dei Quijote", em Ficciones
>" em que o Iogocentrismo embalou a tradução e lhe ensinou a se • (Madrid: Alianza 1981), pp. 52-3.

1
esvalorizar, talvez a primeira- árdua - providência a ser tomada 1 17. Borges, ibid., p. 52.
18. Borges, ibid., p. 52. Para uma discussão mais detalhada sobre esse
ja a promoção de uma conscientização dos tradutores acerca da conto e suas implicações para uma teoria da tradução, ver nosso texto
nportância concreta da atividade que realizam para que possamos "Pieffc Menard, Autor dei Quijote: Esboço de uma Poética da Tradu­
)meçar efetivamente a mudar o enredo infeliz que ainda conta a ção via Ilorges", em Tradução e Comunicação, 5: 75-90, dez. 1984, e
ist6ria da tradução, de sua prática e de seus estudos nas universi­ também nosso livro Oj"icina de Tradução, pp. 12-24.
ades, nos jornais, nas agências e· nas editoras do país. 19. Steiner, Aft.er Babel, pp. 261-2. Analisamos mais detidamente as
implicações dessa pergunta formulada por Steiner em "A Descons­
trução do Logocentrismo e as Questões Teóricas da Tradução:
Algumas Reflexões", texto que se encontra em D.E.L. T.A., 6: 41-53,
'otas 1990.
20. Reproduzimos aqui parte da argumentação que desenvolvemos em
l . Dominique Aury, "Prefácio", em George Mounin, Os Problemas
Teó­
7. "Teorias e Políticas da Tradução" (O Est.ado de São Paulo. Suplemento
ricos ela Tradução (São Paulo: Cultrix, 1975), p. Cultural, p. 3. 22jun, 1991).
2. Aury, ibid., p. 8. 21. John Florio, apud Margarct P. Hannay, ed., Silent but. for the Word
pp.
3. Jacques Derrida, Gramatologia (São Paulo: Perspectiva, 1973), i
(Kent: The Kent State University Press, 1985), p. 9.
,)-.
13-5. 1
1 22. Paul de Man, Resistência à Teoria (Lisboa: Edições 70, 1989), p. 109. ,;
1. Aristóteles, apud Derrida, ibid.; p. 13. 23. Derrida, Gramatologia, p. 13.
5. Derrida, ibid., p. 13: 21. Parte das reflexões que se seguem foram desenvolvidas inicialmente
3. Derrida, ibid., p. 15. em "A Noção do Inconsciente e a Dcsconstrnção do Sujeito Cartesia­
7. Paulo Rónai, A Tmdução Viva (Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1981), no", em Estudos Li11güísticos; XIX Anais de Seminários do GEL (Bauru:
p. 20. 1990), pp. 66-73. li
3. Rónai, ibid., p. 20. 25. Friedrich Nietzsche, "On the Trnth and Falsity in thcir Ultramoral
como Ir
). .Para uma discussão mais ampla sobre a concepção de tradução Sense", em Eady Greek Philosophy & Other Essays (London: T. W.
transporte de signific ados, ver nosso livro Oj"icina de Trad ão (São

Foulis, 1911), p. 178. I\
Paulo: Ática, 1986), pp. 12-24. 26. Alan D. Schrift, Nietzsche and the Question of Jnte1pretation (New
rd
). Eugene Nida, Langua.geStmcture and Translation (California: Stanfo Yo1·1/London: Routlcdge, 1990), p. 125.
1
Universil}' Prcss, 1975), p. 190. li
Hall, 27. Nietzsche, "On the Truth", p. 179.
l. Peter Newmark, AjJproaches to_ Translation (NewYork: Prentice 28. Nietzsche, ibid., 184. Ver Schrift, Nietzsche, p. 126.
1988) , p. 97. li
29. Fcrdinand de Saussure, Curso de Lingüística Geral (São Paulo: Cultrix,
!. Alexander Tytler, apud Mary Snell-Hornby, Translation Studies s. d.), pp. 81-2 (grifos do autor). /1
(Filadelfia: John Ilenjamins, 1988), p. 13. Esta e todas as outras 30. Saussu1·e, ibid., p. 139.(grifos do autor).
traduções de refe1·ências em inglês, francês e espanhol são de nossa 31. Den-ida, Positions (London: Athlome, 1987), p. 26 (grifo do D•
autoria. autor). �,-.,.1
1. John Dryden, apud Snell-Hornby, Translation, p. 12.
32. Derrida, ibid., p. 26.
,�1
,.
l. Jean Lal>lanche,- Traduire Freud (Paris: Presses Universitaires de Fran­
ce, 1989), p. 14 (grifos do autor). Para uma análise específica dos 33. Paul-Laurent Assoun, Freud &Nietzsche (São Paulo: Brasiliense, 1989),

�-­
objetivos e princípios da primeira versão francesa das Obras Completas p. 189 (grifos do autor).
34. Assoun ibid., p. 189.
de Freud, ver nosso artigo "Laplanche translatcs the falher of Psy­
35. Nietzsche, apud Assoun, ibid., p. 189.
choanalysis" (a sair cm Ilha do Desterro).
36. Shoshana Felman, Writing and lvladness (Ithaca: Cornell University ti•
,. George Steiner, After Babel (London/Oxford/New York: Oxford
UnivCl'sity Prcss, 1975), p. 269. Prcss, 1985), p. 164 (grifos da autora).
t•
,.
í
'O Tradw;ão
Tradução 141
·. Jacques Lacan, apud Felman, ibid., p. 164 (grifos da autora). Trata-se
de transcrição de palestra de Lacan proferida em Yale, em 24/11/75.
Bibliografia
Para uma discussão mais ampla acerca da transferência como deter­
minante do processo de leitura e tradução, ver nosso ensaio "Laplan­ I. ARROJO, Rosemary, "'Pierre Menard, Autor dei Quijote': Esboço de
che translates the father of Psychoanalysis" (a sair em Ilha doDesten-o). uma Poética da Tradução via Borges." Tradw;ão e Comunicação; Revis­
Peter Brooks,• "The Idea of Psychoanalitical Literary Criticism." ln: ta Brasileira de Tradutores, 5: 75-90, dez. 1984.
SCHLOMITH, R., org. Discourse in Psychoanalysis and Literat1l1'e. Lon­ 2. __ . Ofici.na de Tradução; a Teoria na Prática. São Paulo: Ática,
don, Methuen, 1987, p. 13. 1986.
Derrida, The Ear of the Other (New York: Schocken, 1985), p. 98. 3. __ . "Literariness anel the Desire for Untranslability: Some Reílec­
Christopher Norris, "Difference in Translation; Review Essay", em tions on Grande Sertão: Veredas." TextContext, Heidelberg, 2 (v. 5):
Comparative Literat1Íre, 40, p. 54. 75-83, 1990.
Norris, ibid., p. 56. 4. __. "A Noção do Inconsciente e a Desconstrução do Sujeito
Norris, ibid., p. 52. Cartesiano." ln: Estudos Lingüísticos; XIX Anais de Seminários do
. John Locke, apud de Man, "The Epistemology of Metaphor", p. 14. GEL. Bauru: 1990, pp. 66-73.
Locke, apud de Man, ibid., p. 13. 5. __. "As Questões Teóricas da Tradução e a Desconstrução do
Locke, apud de Man, ibid., p. 13. Logocentrismo: Algumas Reflexões." D.E.L. 1:A., 6: 41-53, 1990.
De Man, ibid., p. 28. 6. __ . "Teorias e Políticas de Tradução." O Estado de São Pau.lo.
Borges, "Las Versiones Homéricas", em Obras Completas (Buenos Suplemento Cultural, p. 3. 22 jun. 1991.
Aires: Emecé, 1974), p. 239. ·r 7. __ . "Laplanche Translates the Father of Psychoanalysis." Ilha do
René Well_ek & Austin Warren, The01y of Literature (New York: DesleiTD. No prelo.
Harcourt Ilrace &World; 1956), p. 11. 8. ASSOUN, Paul-Laurent. Freud & Nietzsche; Semelhanças e Desseme­
. José Paulo Paes, "Sobre a Tradução de Poesia: Alguns Lugares-Co­ lhanças. Trad. Mal'ia Lúcia Pereira. São Paulo: Brasiliense, 1989.
muns e Outros nem tanto", em Tradução: a Ponte Necessária (São 9. BENJAMIN, Andrew. Tmnslation and lhe Natu.re ofPhilosophy; a New
Theo1-y ofWords. London/New York: Routledge, 1989.
;

Paulo: Ática, 1990), p. 34.


v

W. H. Auden, apud Paes, ibid., p. 35. 10. IlORGES, Jorge Luis. "Las Versones Homéricas." ln: __ . Obras
Roman Jakobson, apud Steiner, After Babel, p. 261. Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, pp. 239-43.
Haroldo de Campos, "Da Tradução como Criação e como Crítica", 11. __ . "Pierre Menarcl, Autor dei Quijote." In: __ . Ficci.ones. Ma­
em Metalinguagem (Petrópolis: Vozes, 1970), p. 21. drid: Alianza, 1981, pp. 47-59.
Campos, ibid., p. 22. 12. BROOKS, Peter. "The ldea of a Psychoanalitic Literary Criticism."
Campos, ibid., p. 22. ln: SCHLOMITH, R., org. Discourse in fsychoanalysis ond Literature.
Campos, ibid., p. 24. London, Methuen, 1987, p. 1-18.
Borges, "Pie1Te Menard", p. 57. 13. CAMPOS, Haroldo de. "Da Tradução como Criação e como Crítica."
Derrida, T!te Ear, p. 137. ln: __. Meta.ling1wgem. Petrópolis: Vozes, 1970, pp. 2 1 3- 8.
1 Para uma discussão especificamente focalizada na relação entre o 14. DE MAN, Paul. "The Epistemology of Metaphor." ln: SACI<S,
literário e a (im)possibilidade da tradução, ver nosso ensaio "Lite­ Sheldon, ed. On metaphor. Chicago, University of Chicago Press,
rariness anel the D'esire for Untranslability: Some Reflections on 1979.
Grande Sertão: Veredas", em TextContext, Heidelberg, 2 (v. 5): 75-83, 15. __.Resistênci.a à Teoria. Trad. Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições
1990. 70, 1989.
Dcrrida, "Ellipsis", em WiitingandDi.fference (Chicago: The University 16. DERRIDA, Jacques, Gramatologia. Trad. Miriam Schnaidennan &
of Chicago Press, 1978), p. 296. Renatojanini Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973.
Andrew Benjamin, Translation and the Natm·e of Philosophy (Lon­ 17. __ . "Ellipsis." In: _ ._W1·iting and Diffei·ence. Trad. Alan Bass.
don/New York: Routledge, 1989), p. 9. Chicago: The University of Chicago Press, 1978, pp. 2 9 4 -300.
Derrida, The Ear, p. 153. 18. __ . The Earofthe Other; Otobiography, Transference, Translation.
Trad. Peggy Kamuf. New York: Schocken, 1985.
12 Tradução

). __. Posítíons. Trad. AJan Bass. London: Athlone, 1987.


). FELMAN, Shoshana. WritingandMadness-Literaturn/Philosophy/Phy­
choanalysis. Ilhaca: Cornell University Press, 1985. Notas Sobre Os Autores
l. HANNAY, Margaret. P., ed. Silent but for the Word - Tudor Women as
Patrons, Translators, and Writen of Religious Works. Kent: The Kent
State University Press, 1985.
LAPLANCHE, J. L.; BOURGUIGNON, Cotet e Robert. Traduire
Freud. Pa1·is: P1·esses Universitaires de France, 1989.
MOUNIN, George. Os Problemas Teóricos da Tradução. Trad. Hcloysa
de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1975.
NEWMARK, Pete1·. Approaches to Translation. New York: Prentice
Hall, 1988.
NIDA, Eugene. Language Stru.cture and Translation:' California: Stan­
Autor de
ford University Press, 1975. João Adolfo Hansen é professor na Universidade de São Paulo.
NIETZSCHE, Frieddch, "On Truth and Falsity in their Ultramoral A Sátira e o Enge11ho - Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII (São
Sense." ln: __. Early Greelt Philosophy & Otlzer Essays. Trad. Maxi­ Paulo: Companhia das Letras, 1989).
milian A. Mugge. London: T. W. Foulis, 1911, pp. 173-92. Norma Telles é professora na Pontifícia Universidade Católic
a de São
NORRIS, Chdstopher, "Difference in Translation; Review Essay." Paulo. Autora de Encant ações, Escritor as e Imagina ção Literár ia no Brasi�

Comparative Litemtm·e, 40: 52-8, winter 88. Século XIX (São Paulo: PUC/SP, 1987).
PAES,José Paulo. "Sobre a Tradução de Poesia: Alguns Lugares-Co­ Roberto Reis é professor na University of Minnesota. Autor
de The Pearl
muns e Outros nem tanto." ln: __. Tradução: a Ponte Necessária. Nechlace - Toward an Archaeo gy lo o/ Braz.ilia n Transit ion Discourse
São Paulo: Ática, 1990, pp. 33-48. nivers ity ofFlor ida Cente r for Latin Ameri can Studies,
(Tallahassee: U
RÓNAI, Paulo. A Tradução Viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, r 1991).
Fede­
1981. .. (
Luís Fernando Medeiros de Carvalho é professor na Universid�ê.!e
SACKS, Sheldon, ed. On Metaphor. Chicago/London: The University pela PUC/R J e autor de vários
ral Fluminense. Doutor em Letras 1:
of Chicago Press, 1979. artigos e ensaios sobre literatura.
do Estado 1j
SAUSSURE, Ferdinand de. Cm:so de Lingüística Geral. Trad. Antônio Maria Consuelo Cunha Campos é professora na Universidade
do Rio de Janeiro. Doutora em Letras pela PUC/RJ e autora de vários
,�
Chelini,José Paulo Paes & Izidoro Blikstcin. São Paulo: Cultrix, s. d. 1::
SCHLOMJTH, Rimmon-Kenan, ed. Diswurse in Psychoanalysis and artigos e ensaios sobre liternturn.

'"
Litemtu1·e. London/New York: Methuen, 1987. José LuisJobim é professor na Universiade Federal Flumin
ense. Doutor
SCHRIFT, AJan D. Nietzsdie and the-Question of Interpretation. Ncw e autor de Pers/1e ctivas da Históri a Literár ia (Rio

,.
cm Letras pela UFRJ
s sobre literatu ra.
York/London: Routledgc, 1990. de Janeiro: MEC/CPII, 1991), artigos e ensaio
SNELL-HORNBY, Mary. Translation Studies -An Integrated Approach. Pedrn Lyra é professor na Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Autor
Arte (Petrópolis:

�·
Filadclfia:John Be1tjamins, 1988. de Lilemtura e Ideolog ia -:: Ensaio s de Sociolog ia da
STEINER, George. .Afie,· Babel - Aspects of Language and Trnnslation. 1)
Vozes, 1979).
London/Oxford/Ncw Ymk: Oxford University Press, 1975. Kathrin Holzermay1· Rosenfield é psicanalista e profes
sora da Universi­ �
WELLEK, René & WARREN, Austin. The01y of Literature. New York; dade Federal do Rio Grande do Sul. Autora de Os (Des)caminhos do
Harcourt"Brace & Wodd, 1956. Demo -Tradiçã,o e Ruj1tu ra no Grande Sertão: Vereda s (São Paulo:
,,. .
EDUSP, 1992). lil
Arthur Nestrovski é professor da Pontifícia Universidade Católic
a de São


James Joyce (Rio de Ili
Paulo. Organizador de rivenun - Ensaio s sobre
, A ilngú.s tia da


Janeiro: Imago, 1992) e tradut or de Harold Bloom
Injl:uência (Rio de Janeiro ; Imago, 1991. ).
. ..:,

i •
14 Notas Sobre Os Autores

liza Lobo é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


traduziu Teo1-ias Poéticas do Romantismo (Porto Alegre: Mercado Aber­
to, 1987). Biblioteca Pierre Menard
rge Wanderley é professor da Universidade do Estado do Rio de Dirigida por Arthur Nestrovski
Janeiro. Doutor em Letras pela PUC/RJ e autor de vários artigos ç
ensaios sobre literntura, além de tradutor de Dante, Shakespeare e
Valéry para o Português. Harold Bloom
a Bernd é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A Angústia da 1níluência
Autora de Literatura e Neg,·it11de na América Latina (Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1992).
Arthur Nestrovski (org.)
lia Pedrosa é professora na Universidade Federal Fluminense. Doutora
em Letras pela PUC/RJ e autora de vários artigos e ensaios sobre riverrun
literatura. Ensaios sobre James Joyce
, údia Neiva de Matos é professora na Universidade Federal Fluminen­
se. Autora de Acertei no Mill1a1· - Samba e Malandragem no Tempo de Harold Bloom
Getúlio (Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1982). Cabala e Crítica
1edito Nunes é professor na Universidade Federal do Pará. Autor de
O Tempo na Na,·rativa (São Paulo: Ática, 1988). ,l EdwardSaid
>erto Acízelo de Sousa é professor na Universidade Federal Fluminen­ Elaborações Musicais
se. Autor de Formm;ão da Teoria da Literatura (Rio deJane�ro: Ao Livro
Técnico, 1987) e Teo1-ia da Literatura (4. ed. São Paulo: Atica, 1992).
'Ía Santaella é profe�sora da Pontifícia Universidade Católica de São José LuisJobim (org.)
Paulo. Autora de A assinatura das Coisas - Peirce e a Literatura (Rio de Palavras da Crítica
Janeiro: Imago, a sair).
emary Arrojo é professora da Universidade Estadual de CamP,inas. Georges Poulet
Autora de Oficina de Tradução - Teoria na Prática (São Paulo: ALica, O Espaço Proustiano
1986).

No prelo:

Frederick R. Karl
Moderno e Modernismo (2il ed.)

. .,

Você também pode gostar