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Letras em dia, Português, 11.

º ano

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Artigo de opinião
Lê o artigo de opinião que se segue.

Nada do que é humano me é familiar

O momento em que comecei a sentir-me esquisito foi quando li que a escritora portuguesa
Djaimilia Pereira de Almeida, citada por Isabel Lucas, no Público, tinha dito: «A ideia de que
autores negros não devem ser traduzidos por brancos implica uma posição recíproca
inaceitável: a de que, como mulher negra, não me é reconhecida a capacidade (mais ainda, o
5 direito) de traduzir, por exemplo, Rousseau ou Flaubert». E as tonturas pioraram quando ela
acrescentou: «Imaginar que só uma mulher negra pode traduzir o que escrevo sugere que só
uma mulher negra poderá compreender essa tradução e, portanto, que só posso ser entendida
por leitoras negras.» Alguma coisa não estava bem porque eu, um caucasiano do sexo
masculino, concordava com tudo. Como era possível? Era como se seres humanos com
10 diferentes características morfológicas conseguissem entender-se. Como se essas
características tivessem uma importância relativa. Como se, Nosso Senhor me ajude, não
fossem decisivas para os definir. Vieram-me à memória as terríveis palavras daquele
reacionário que sonhava com um mundo grotesco, em que as pessoas eram julgadas pelo seu
carácter, e não pela cor da pele. Felizmente, hoje sabemos que Martin Luther King estava
15 errado.
Desprezamos fantasias em que meninos negros e meninas negras poderão dar as mãos a
meninos brancos e a meninas brancas, como irmãs e irmãos. O que é bonito é dar a mão à
mão da mesma cor, ler o livro escrito por alguém da mesma cor, traduzir as palavras proferidas
por alguém da mesma cor. E quem diz cor diz género, orientação sexual, peso ou altura. Por
20 isso, reeduquei-me e fiz um esforço para aderir ao novo modo de entender as relações entre as
pessoas. E criei alguns anúncios para editoras sensíveis, que queiram produzir trabalhos de
tradução competentes.
Precisa-se:
– tradutor queniano branco zarolho para traduzir a lírica de Camões para suaíli;
25 – tradutor alcoólico para traduzir obras de Edgar Allan Poe, Hemingway, Faulkner e
Bukowski. A editora concede prazos generosos para concluir as traduções;
– tradutor com experiência de gulag1, para traduzir Soljenítsin. A editora fornece, a
tradutores interessados que não tenham estado presos na Sibéria, a possibilidade de passarem
dez anos num campo de trabalhos forçados que vai criar
30 propositadamente para dar formação a profissionais da área;
– tradutor cuja pele seja da cor da referência 7415C do
Pantone. Para traduzir obras de David Hume – que, a fazer fé
no retrato de Allan Ramsay, era rosadinho.
Mas o melhor mesmo talvez seja, à cautela, não traduzir
35 nada. Como se fazia com a Bíblia, antigamente. No sagrado
não se toca.

João Fazenda

PEREIRA, Ricardo Araújo, 2021. «Nada do que é humano me é familiar». Visão.


https://visao.sapo.pt/opiniao/cronicas/2021-03-30-nada-do-que-e-humano-me-e-familiar/ [Consult. 2021-12-11]

1. gulag: campo de concentração na antiga União Soviética.

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Seleciona a opção que, em cada um dos itens, permite obter uma afirmação adequada ao sentido do
texto.

1. Ricardo Araújo Pereira cita Djaimilia Pereira de Almeida


(A) para mostrar a sua concordância de pensamento.
(B) para a refutar.
(C) a fim de exemplificar a ideia apresentada anteriormente.
(D) de modo a fundamentar a sua crítica a Isabel Lucas.

2. Segundo as palavras de Djaimilia Pereira de Almeida,


(A) só uma mulher negra poderá compreender a discriminação de que se sente
alvo.
(B) a capacidade de interpretação literária é independente das cracterísticas físicas
de autores, tradutores e leitores.
(C) o racismo está presente no meio literário desde sempre.
(D) é inaceitável que os autores negros se deixem manipular pelas editoras.

3. A repetição da expressão «como se», entre as linhas nove e onze, concretiza a coesão
(A) lexical.
(B) referencial.
(C) frásica.
(D) interfrásica.

4. O autor do texto propõe alguns anúncios,


(A) elencando as principais competências exigidas pelas editoras enquanto
entidades empregadoras.
(B) procurando divertir o leitor e simultaneamente apresentar sugestões às
editoras.
(C) ridicularizando o pressuposto de que os tradutores devem partilhar
características com os autores que traduzem.
(D) satirizando as exigências feitas tanto por tradutores como por autores
traduzidos.

5. A sequência em que não é usada a ironia é


(A) «A ideia de que autores negros não devem ser traduzidos por brancos implica
uma posição recíproca inaceitável» (ll. 2-3).
(B) «Como era possível? Era como se seres humanos com diferentes
características morfológicas conseguissem entender-se.» (ll. 9-10).
(C) «Felizmente, hoje sabemos que Martin Luther King estava errado.» (l. 14).
(D) «Mas o melhor mesmo talvez seja, à cautela, não traduzir nada.» (l. 33).

6. O objetivo do texto é
(A) narrar acontecimentos.
(B) expor um tema.
(C) fazer uma apreciação crítica.

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(D) defender um ponto de vista.

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Letras em dia, Português, 11.º ano Sugestões de resolução

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1. (A); 2. (B); 3. (D); 4. (C); 5. (A); 6. (D)

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