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Cultura Documentos
Marina Legroski
(orgs.)
Ponta Grossa
2023
Livro organizado sem fins lucrativos com a colaboração dos autores e do Departa-
mento de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Comissão Editorial
Andre Marques do Nascimento (UFG)
Carmen Rodrigues de Lima (UEM)
Cindy Mery Gavioli-Prestes (UNICENTRO-Guarapuava)
Claudia Daher (UFPR)
Diego Gomes do Valle (UFFS)
Jeniffer Imaregna Alcântara Albuquerque (UTFPR)
Livy Real (CE-PLN SBC)
Luana de Conto (UFPR)
Lucimar Araújo Braga (UEPG)
Márcio Jean Fialho de Sousa (UNIMONTES)
Melissa Andres Freitas (UEPG)
Mônica Veloso Borges (UFG)
Regina Halu (UFPR)
Rosangela Sarteschi (USP)
Tiago Pinheiro (UFSC)
Irene Müllerleily Stock (UNICENTRO)
Capa e diagramação
Giuliano Lellis Ito Santos
Fotos
Pedro Henrique Hara Matoso
1. Publicações acadêmicas.
CDD: 001
___________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Elson Heraldo Ribeiro Junior
CRB-9/1413
Sumário
Apresentação 6
Ensino
Análises linguísticas
Literatura e cinema
Teoria literária
7
Ensino
Glaucia de Fatima da Luz
Charlott Eloize Leviski
1 Introdução
O presente trabalho tem como finalidade apontar os gran-
des desafios encontrados na atualidade referente à educação
especial na perspectiva inclusiva. Primeiramente, traçamos um
panorama do surgimento da Educação Especial no cenário in-
ternacional, e posteriormente a inserção do debate da educa-
ção inclusiva.
A inclusão, desde meados dos anos 1990, vem sendo deba-
tida para melhor se adequar na contemporaneidade na Edu-
cação Básica, e tem como objetivo alcançar todos e quaisquer
alunos inseridos no ensino regular, fazendo com que mais pes-
soas possam ter acesso não somente a educação eficaz e de
qualidade, mas também à valorização das diferenças.
O Art. 58º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
estabelece “a educação especial como modalidade de educa-
ção escolar e precisa ser oferecida preferencialmente na rede
regular de ensino para educandos com necessidades especiais”
(BRASIL, 1996, p. 31).
A educação inclusiva é mais do que somente garantir o aces-
so às escolas para todos, como também eliminar as dificulda-
des que impedem a participação de alunos, sem exceções, no
processo educativo. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia
(IBGE, 2010), quase 24% dos brasileiros (45 milhões de pesso-
as) possuem algum tipo de deficiência e esperam para serem
incluídos, assim como terem seus direitos garantidos.
9
Além das necessidades de informação, muitos pais ainda não
sabem os direitos que eles e seus filhos têm e, por isso, acabam
vivendo em um ambiente negligenciado, justamente por falta
de informações claras vindas da equipe pedagógica e dos go-
vernantes.
Muitos professores recém-formados não possuem experi-
ências com alunos com algum tipo de necessidade especial,
sendo importantes as discussões sobre o processo para alunos
graduandos e da pós-graduação. Um professor especializado
oferece um papel importante, atuando de forma mais colabo-
rativa em sala de aula, criando recursos que favoreçam estraté-
gias de acesso ao aluno na escola comum, interagindo em gru-
po e participando em todos os projetos e atividades no espaço
escolar.
A metodologia para fundamentar esse trabalho constitui-se
através da coleta de dados em que se utilizou o procedimento
de pesquisa bibliográfica e documental.
De acordo com Gil (2002, p. 50-51), “a pesquisa bibliográfica
serve-se de material secundário”, ou seja, é realizada através de
levantamento de bibliografia já publicada em forma de livros,
publicações avulsas, revistas, imprensa escrita, cujo objetivo
é fazer com que o pesquisador entre em contato direto com
aquilo que foi escrito acerca de determinado assunto. Quanto
a pesquisa documental, essa se desenvolve nos mesmos pas-
sos da pesquisa bibliográfica, mas consiste na exploração das
fontes documentais que não receberam tratamento analítico,
como leis, diretrizes e orientações curriculares (GIL, 2002).
Desta forma, segundo este método bibliográfico e docu-
mental, o corpus teórico constitui-se por Carvalho (2000),
Souza (2009), Noquele, Silva e Silva (2014), Souza e Rodrigues
(2009), Freire (1996), a Declaração de Salamanca (1994) e a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, entre outros auto-
10
res que tratam sobre a educação inclusiva, a fim de evidenciar
os direitos que os educandos possuem, entendendo-se que os
dados adquiridos possibilitam uma compreensão sobre a edu-
cação inclusiva assim como o papel da escola, professor e fa-
mília.
11
A partir de 1930, a sociedade civil começa a organizar-se em associa-
ções de pessoas preocupadas com o problema da deficiência: a esfera
governamental prossegue a desencadear algumas ações visando à pe-
culiaridade desse alunado, criando escolas junto a hospitais e ao ensino
regular, outras entidades filantrópicas especializadas continuam sendo
fundadas, há surgimento de formas diferenciadas de atendimento em
clínicas, institutos psicopedagógicos e outros de reabilitação. (JANNUZ-
ZI, 2004, p. 34).
16
Devem ser acolhidos aqueles que até então eram excluídos,
como: alunos provenientes de famílias pobres, povos indíge-
nas, discentes com alguma dificuldade de aprendizagem, mi-
norias étnicas, negros, estudantes de diferentes culturas e lín-
guas, entre outros. A inclusão não se trata somente de incluir
pessoas com deficiência e sim a inclusão de todas aquelas que
se encontram em situações desfavorecidas educacionalmente
e socialmente. Desse modo, é uma educação voltada para uma
cidadania livre de preconceitos e que reconhece as diferenças.
(UNESCO, 1994). A inclusão deve prever a inserção escolar de
forma radical e completa tendo todos os alunos sem exceção
frequentando as salas de aula do ensino regular.
A educação inclusiva está em evidência no Brasil e no mun-
do, e pode ser entendida como uma ação de ensino atual que
busca garantir o direto de educação para todos, pressupondo
que o educando tenha igualdade de oportunidades, reconhe-
cendo as características individuais de cada aluno, sendo o pri-
meiro passo para a criação de um método de ensino que se
aplique a cada estudante em específico.
Assim, percebe-se que existem políticas públicas voltadas
para a inclusão dos alunos com deficiência no ambiente esco-
lar, de maneira a responsabilizar o Estado a permitir que estes
alunos façam parte do contexto escolar.
A educação inclusiva, diferentemente da Educação Tradicio-
nal, em que os alunos necessitam ajustar-se a ela, constitui-se
em uma diretriz onde a escola é que necessita se adaptar às
necessidades e especificidades do aluno.
A educação inclusiva surgiu para resgatar o direito de edu-
cação independente de qual classe ou condição social o aluno
possa ter, atendendo a todos sem diferença ou discriminação,
a escola tem por obrigatoriedade atender todos os estudantes,
com e sem deficiência:
17
o [...] princípio fundamental da escola inclusiva é o de que todas as crian-
ças devem aprender juntas, sempre que possível, independentemente
de quaisquer dificuldades ou diferenças que elas possam ter. Escolas
inclusivas devem reconhecer e responder às necessidades diversas de
seus alunos, acomodando ambos os estilos e ritmos de aprendizagem e
assegurando uma educação de qualidade à todos através de um currícu-
lo apropriado, arranjos organizacionais, estratégias de ensino, uso de re-
cursos e parceria com as comunidades. Na verdade, deveria existir uma
continuidade de serviços e apoio proporcional ao contínuo de neces-
sidades especiais encontradas dentro da escola. (UNESCO, 1994, p. 7).
20
ção voltada ao professor deixa várias lacunas em relação à edu-
cação inclusiva.
Contudo, percorrendo pelos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais (PCNs, 1998), percebemos que um dos objetivos é a adap-
tação curricular, visando a uma educação apropriada aos alunos
que estão incluídos dentro da classe regular. Nos PCNs (1998)
existe uma parte específica especialmente para as adaptações
curriculares, proporcionando aos professores um engajamen-
to maior para adaptar suas aulas garantindo a participação de
todos os alunos. Essas adaptações curriculares são basear na
educação plural, e assim orienta para o trabalhar com diferen-
tes ritmos e abordagens de aprendizagem (BRASIL, 1998).
Nos anos 2000, esse documento foi dividido em oito mó-
dulos relativos ao Programa “Adaptações Curriculares em Ação”,
sendo quatro específicos para altas habilidades/superdotação,
deficiência física neuromotora, deficiência visual e surdez. Nes-
ses módulos, são reforçadas as ações que buscam a reorganiza-
ção dos currículos como condição imprescindível para a inclu-
são do aluno nas salas de aula do ensino regular.
Isso posto, é possível observar que os PCNs (1998) trazem
uma atenção voltada à formação dos professores que não é
contemplada na BNCC (2018).
24
zagem, na sala comum da escola regular, com outros alunos da
mesma idade que ele.
Para Sassaki (2004):
Uma escola comum só se torna inclusiva depois que se reestruturou
para atender à diversidade do novo alunado em termos de necessida-
des especiais (não só as decorrentes de deficiência física, mental, visual,
auditiva ou múltipla, como também aquelas resultantes de outras con-
dições atípicas), em termos de estilos e habilidades de aprendizagem
dos alunos e em todos os outros requisitos do princípio da inclusão,
conforme estabelecido no documento, ‘A declaração de Salamanca e
o Plano de Ação para Educação de Necessidades Especiais’. (SASSAKI,
2004, p. 2).
27
e adolescentes de inclusão frequentam as escolas sem um lau-
do médico. O MEC, através da nota técnica 04/14 informa que:
[...]não se pode considerar imprescindível a apresentação de laudo mé-
dico (diagnóstico clínico) por parte do aluno com deficiência, transtor-
nos globais de desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação,
uma vez que a atendimento educacional especializado - AEE caracteri-
za-se por atendimento pedagógico e não clínico (MEC, 2014, p.3).
28
Os currículos escolares devem ser adequados às necessi-
dades dos seus alunos. Ainda que não existam modelos cur-
riculares prontos para educação inclusiva, é essencial que cada
escola, equipe pedagógica e comunidade escolar busquem co-
nhecer novas estratégias de adaptações que possam contribuir
de forma simples e prática as dificuldades enfrentadas nas ins-
tituições de ensino quando se trata de inclusão.
30
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33
material didático de Língua Inglesa
1 Introdução
Segundo Polidório (2014) no artigo “O ensino de língua in-
glesa no Brasil”, a língua inglesa é a língua oficial em mais de
55 países e organizações como a ONU e OTAN e como segun-
da língua oficial ela é falada em mais de 60 países. O número
de falantes nativos é de aproximadamente 430 milhões e de
não nativos é de aproximadamente 950 milhões. Como Lewis
(1993) retrata, a língua inglesa deixou de ser preservada por fa-
lantes nativos e se tornou essencial no mundo moderno. Por
ser considerada uma língua franca, ela nos permite o acesso e a
comunicação com outros falantes, nativos ou não, em diferen-
tes países e culturas. Com o avanço da globalização, marcada
pelo grande desenvolvimento da tecnologia no século XXI e o
maior acesso a informação, somos influenciados pela língua in-
glesa de diversas maneiras, o que a estabelece como uma das
principais línguas do comércio, da ciência e da tecnologia (FA-
DANELLI; MONZÓN, 2017). O conhecimento de uma segunda
língua, em específico o inglês, abre caminhos para mais opor-
tunidades, tanto na vida pessoal quanto profissional, nas mais
diversas áreas, tendo em vista que muitas palavras da língua
inglesa estão introduzidas no nosso vocabulário diário.
O presente Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) teve como
objetivo de análise a questão lexical abordada no material di-
dático de ensino de língua inglesa de uma escola de idiomas
35
2 Língua Inglesa no Brasil
A introdução da língua inglesa no Brasil aconteceu nos me-
ados de 1809 e se tornou parte obrigatória no currículo esco-
lar objetivando melhoria nas relações comerciais que Portugal
mantinha com a Inglaterra e França. Dom João VI decreta a cria-
ção de duas escolas para o ensino de língua inglesa e francesa
para este fim. O objetivo do decreto era induzir os estudantes
a se comunicarem de forma oral e escrita com outras pessoas,
sendo assim o método de ensino aprendizagem se estabele-
ceu de forma convencional em que professores aplicavam o
“método clássico” ou “gramática-tradução” que era o método
de ensino de línguas estrangeiras conhecido para o momento
(SANTOS, 2011).
Na atualidade o destaque da língua inglesa é notório em nível
mundial com a globalização e as relações internacionais cada
vez mais consolidadas. Conforme Silva (apud RAJAGOPALAN,
2019) essa afirmação se torna clara:
A língua se tornou uma espécie de ‘língua mundi’ ou a que prefiro chamar
de ‘World English’ é uma ‘novi-língua’ em plena acepção desse termo
popularizado por George Orwell. Ela já escapou das mãos dos ingleses,
dos norte-americanos, dos australianos, dos novo-zelandeses, enfim de
todos aqueles que até bem pouco tempo atrás eram tidos como pro-
prietários do idioma. (SILVA apud RAJAGOPALAN, 2019, p. 14)
comunicativa
A Abordagem Lexical tem como base um ensino focado no
léxico da língua, composto pelo ensino da gramática de uso em
sala de aula e abrangendo conceitos fundamentais propostos
pela Abordagem Comunicativa, utilizando da natureza do lé-
xico e da sua contribuição para o trabalho pedagógico como
chave do ensino de língua estrangeira.
37
A Abordagem Lexical convida os leitores a descartar, ou pelo menos ra-
dicalmente enfatizar materiais e procedimentos que violam a natureza
da linguagem ou a natureza da aprendizagem. Tem sugestões positivas
a fazer sobre a natureza e o papel do léxico; diferentes atitudes em rela-
ção ao texto e estratégias para ‘dividir’ a linguagem (dividindo-o em seus
‘bits’ componentes, que não são o vocabulário tradicional e estrutura -
que professores e alunos assumem). (LEWIS, 1993, p. 9)
38
os professores deveriam buscar distintos métodos para apren-
dizagem dos estudantes por meio da gramática de uso.
Na obra de Lewis, The Lexical Approach: state of ELT and a
way forward (1993), o autor nos traz a diferença entre gramática
normativa e gramática de uso. Na gramática normativa, o es-
tudante aprende sobre a língua, não como usá-la naturalmen-
te, os estudantes são ensinados a memorizar regras e termos
técnicos. Já na gramática de uso, o estudante aprende a usar
a gramática de maneira mais natural, por meio da comunica-
ção e interação com outros colegas, dentre outras maneiras. A
abordagem comunicativa segue características que facilitam
a aprendizagem dos estudantes, com objetivo de empregar
traços de oralidade e condições favoráveis para a aquisição da
língua estrangeira, utilizando da gramática de uso para que o
estudante seja motivado e aprenda como se comunicar com
outros falantes fora do ambiente de sala de aula.
A abordagem comunicativa encorajou o uso de tarefas reais em sala de
aula que exigiam comunicação, diminuição da ênfase na correção, au-
mento da autonomia do aluno, aumento da ênfase nas habilidades re-
ceptivas, o uso de dados de linguagem não produzidos especificamente
para fins de ensino de idiomas e uma série de outras ideias. (LEWIS,
1993, p. 2)
40
Polywords são extensões de palavras compostas por mais de uma pa-
lavra, sendo consideradas como vocabulário essencial para os alunos
adquirirem, ex: as soon as; talk about; on the one hand; grow up; and after
all. As collocations se referem a pares de palavras que frequentemente
co-ocorrem entre si, se fundindo em conexões habituais e geralmente
se encontram em uma ordem fixa, ex: ordem fixa: knife and fork, bre-
ad and butter; verbo + substantivo: shake hands, catch a cold; adjetivo +
substantivo: bright red, splendid future. Já as institutionalized utterances
são chunks chamados de unidades inteiras e convencionais na língua,
elas tendem a expressar pragmática ao invés de significado referencial.
Podem ser frases completas sem variação mas com identificação ins-
tantânea, ex: aceitando: I’d be delighted to; oferecendo: can I give you a
hand; supondo: If I were you… Para finalizar, as sentence frames and heads
servem como a construção das estruturas de frases inteiras, ex: The fact
is…, It is suggested that… (ZHAO, 2009, p. 9)
42
3 Uso da abordagem lexical no material didático
Uma vez que na Abordagem Lexical tem-se o léxico como
base de uma língua, o tratamento dado à gramática é sempre
contextualizado. Sendo assim, tendo o léxico como foco prin-
cipal da língua, após ter aprendido alguns chunks, os estudantes
passarão a adquirir a gramática de maneira natural para seu uso.
Com base nesse conceito, a Abordagem Lexical, proposta por
Lewis (1993), pode contribuir com a prática pedagógica no ensi-
no e na aprendizagem da língua estrangeira, especialmente no
que se refere ao léxico. A visão do ensino da gramática nos dias
atuais é que ela não é o aspecto principal, pois não é a partir
dela que se ensina a língua, mas, como propõe Lewis (1993),
ela é aprendida através dos chunks, isto é, as unidades lexicais e
não de maneira isolada, muito embora ainda existam situações
nas quais o vocabulário é ensinado separadamente. Segundo
Lewis, em torno de 80% do vocabulário armazenado em nossa
cabeça está em formato de chunks e somente 20% em forma
de palavras soltas.
Segundo Lewis (1993), muitos estudantes relacionam voca-
bulário com palavras. Diversos bits de linguagem (itens lexicais)
não consistem de palavras únicas (ex: by the way, the day after
tomorrow, I’ll see you later), mas justamente porque a dicotomia
gramática/vocabulário parece tão direta, há uma tendência a
simplificar o que é, de fato, um dos aspectos mais complexos e
reveladores da análise da linguagem.
O ensino de línguas apresentado por Lewis (1993), faz parte
de um complexo mais amplo, onde toda experiência de apren-
dizagem deve contribuir para os indivíduos. Por mais que as
experiências educacionais sejam únicas para cada estudante, o
autor nos traz como maneira eficaz de aumentar a produtivida-
de do aprendizado, o aumento da autoestima do estudante, da
sua auto confiança e admiração. O que resulta em um aumento
43
de concentração, argumentação, tolerância e cooperação. A ca-
racterística mais distintiva do ensino como base a Abordagem
Lexical é a proposta da maneira como o texto deve ser tratado,
reconhecendo sua importância e descontextualizando seu dis-
curso. Seguindo essa análise inicial, o estudante deverá desen-
volver uma série de atividades que sensibilizam e direcionam a
atenção dos estudantes aos chunks de linguagem que compõe
o texto.
De acordo com Lewis (1993), cursos rápidos e intensivos de
ensino de línguas tendem a ter um valor mais alto de rendi-
mento e resultados. O autor afirma e enfatiza os seguintes
pontos que são destacados no ensino baseado na Abordagem
Lexical: todos os cursos de baixo nível ofertarão aos estudantes
um amplo vocabulário, mesmo que inicialmente os estudan-
tes sejam incapazes de decompô-los gramaticalmente; itens
lexicais pragmaticamente úteis, principalmente expressões
institucionalizadas, constituem um significativo componente
de todos os cursos; e um equilíbrio deve ser mantido entre pa-
lavras que carregam significado e padrões com baixo conteúdo
de significado.
4 Metodologia
Para este estudo foi realizada uma pesquisa exploratória e
qualitativa. A pesquisa exploratória “têm como objetivo pro-
porcionar maior familiaridade com o problema” (GIL, 1991, p.
45). Esse tipo de pesquisa tem como foco tornar a pauta ana-
lisada mais explícita ou construir hipóteses, tendo como prin-
cipal objetivo o aprimoramento de ideias ou descobrir novas
ideias. Para Malhotra (2001, p.106), a pesquisa exploratória “é
um tipo de pesquisa que tem como principal objetivo o forne-
cimento de critérios sobre a situação problema enfrentada pelo
pesquisador e sua compreensão”. Por outro lado, a investiga-
44
ção pautada na abordagem qualitativa proporciona a análise de
processos, valores, crenças e validações que não seriam possí-
veis quantificar (SANTOS, 2020).
A pesquisa qualitativa não é pautada na observação e análise
de métodos estatísticos a fim de encontrar respostas e valida-
ção dos resultados. Para tanto, busca-se analisar e compreen-
der determinados fenômenos com a intenção de descrevê-los
e não só mensurá-los ou quantificá-los. Segundo Matias et al
(2019) a abordagem qualitativa com ênfase na pesquisa edu-
cacional consolidou-se no Brasil aproximadamente na década
de 30, em que instituições governamentais tiveram a criação
como fonte de subsídio de dados e repositórios de trabalhos
acadêmicos que foram propulsores para o desenvolvimento e
crescimento da pesquisa qualitativa para a elucidação de pro-
cessos de levantamento e análise de dados.
O uso do método qualitativo gerou diversas contribuições ao avanço
do saber na dinâmica do processo educacional e na sua estrutura como
um todo: reconfigura a compreensão da aprendizagem, das relações
internas e externas nas instâncias institucionais, da compreensão his-
tórico-cultural das exigências de uma educação mais digna para todos
e da compreensão da importância da instituição escolar no processo de
humanização (ZANETTI, 2017, 159).
45
4.1 Material didático
O material selecionado para a análise foi o estabelecido pela
escola de idiomas InFlux para o curso completo da língua ingle-
sa, composto por cinco livros teóricos e cinco livros intitulados
Communication Activities, acompanhados de seus respectivos
Cd’s de áudio para a realização de exercícios para o preparo da
aula em casa. Os níveis dos livros estão identificados como:
Book 1 – Basic Level, Book 2 – Lower Intermediate Level, Book 3
– Intermediate Level, Book 4 – Upper Intermediate Level e Book 5
– Advanced Level. Cada livro teórico tem aproximadamente 130
páginas e os Communication Activities, aproximadamente 100
páginas, permeando o ensino e aprendizagem do nível básico
ao avançado de conhecimento da LI.
O texto introdutório dos livros se repete a cada Book, infor-
mando a utilização das mais modernas abordagens no ensino
da língua inglesa: a Abordagem Comunicativa e a Abordagem
Lexical. São enfatizados na mensagem inicial dos livros a ênfa-
se em ouvir, entender ideias de outras pessoas e falar, utilizan-
do de uma linguagem do cotidiano.
Nesta análise, buscou-se identificar o uso dos aspectos apre-
sentados por Lewis (1993), se concretizando na prática, favore-
cendo o aprendizado e o ensino da língua inglesa para os estu-
dantes através do material didático analisado. Foi analisado em
particular o livro Book 1 – Basic Level, o primeiro livro da coletâ-
nea, onde os estudantes dão início ao curso do aprendizado da
língua inglesa.
No livro são apresentadas explicações breves das atividades
e enunciados sucintos, pois o professor exercerá o papel de ex-
plicar o exercício em sala de aula trocando ideias com todos os
estudantes, mas todas as atividades são compostas de figuras
e imagens para que os estudantes possam visualizar melhor o
contexto do material ali apresentado.
46
Na primeira lição temos de início uma atividade com o tema
“Primeiro dia de aula”, nessa atividade já temos uma relação
com o estudo do Lewis (1993), em que ele aponta que o mate-
rial didático utilizado deve conter situações da vida real.
Figura 2: Dialog
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.
49
Figura 4: Helping You
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.
50
Figura 5: Consolidation Exercises
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.
51
Figura 6: Nationalities
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.
52
Figura 8: Verbs
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.
Figura 9: Professions/Jobs
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.
53
Figura 10: American English (AmE) x British English (BrE)
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.
54
Figura 11: Vocabulary Expansion & Key Phrases and Expressions List
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.
55
Figura 12: Translation of the dialogs
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.
57
3º passo (depois da aula):
• Fazer os exercícios de consolidação referentes a aula e re-
alizados após o estudo da teoria em sala de aula.
60
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62
português em escolas bilíngues de surdos
Introdução
Vivemos em uma era tecnológica, diferentemente dos sécu-
los passados, nos quais a tecnologia não era tão avançada como
nos dias atuais. De fato, a vida cotidiana se tornou mais fácil.
Hoje, podemos ter acesso, de maneira mais rápida, a qualquer
informação de qualquer lugar do mundo. Assim como em nos-
sas vidas cotidianas, a era tecnológica chegou às instituições de
ensino, e, hoje, muitas escolas optam por utilizar diferentes fer-
ramentas, como celulares, tablets, computadores, softwares es-
pecíficos para o ensino, além de muitos apps que podem servir
como materiais de apoio. Igualmente com o uso das mídias
sociais, como, por exemplo, o Facebook ou o Instagram, redes
sociais em que se é possível criar grupos de estudos ou até pá-
ginas que tenham como objetivo de ensinar um determinado
assunto.
De acordo com Joly (2002), a tecnologia é um recurso estra-
tégico voltadopara a ação pedagógica. A autora aponta para as
mudanças ocorridas e efetivadas pelos computadores no pro-
cesso de aprendizagem, durante essas duas últimas décadas,
questionando sobre a validade desses recursos tecnológicos,
visto que são importantes frente às necessidades básicas da
educação. O desafio das escolas em relação à inclusão dessas
novas tecnologias, o abandono do monopólio do conhecimen-
to e a aceitação de mudanças para as ações educativas.
63
A partir do trabalho de todos os profissionais, tornam, nesse
contexto, os computadores mediadores de relações e de co-
municações que trazem para a aprendizagem a informação e o
conhecimento que já estão disponíveis.
A utilização dessas ferramentas não está restrita somente às
escolas monolíngues, mas também se estende para as escolas
bilíngues, ou seja, espaços educacionais onde se ensina mais de
uma língua. Nesse grupo de instituições, também podemos in-
cluir as escolas bilíngues de sujeitos surdos, em que aprendem
a sua primeira língua (L1), a Língua Brasileira de Sinais (doravan-
te Libras), e o Português como segunda língua (L2), na modali-
dade escrita.
De acordo com Saito e Pivetta (2019), as tecnologias contri-
buem de forma significativa para a inclusão, trazendo possibi-
lidades de fortalecimento e conexões entre os surdos. O sur-
gimento dessas tecnologias tem gerado boas perspectivas no
que diz respeito às necessidades individuais das pessoas surdas.
Entretanto, mesmo com melhorias na infraestrutura de acesso
à internet e com bons computadores, o caminho para se atin-
gir eficientemente a acessibilidade metodológica é longo, pois,
ainda que haja leis que assegurem, não são todos os lugares
que possuem esse tipo de acessibilidade.
A escola bilíngues para surdos é fundamental para
a formação e educação, pois é nela que eles se sentem
incluídos. Em conformidade com os dados do Instituto Na-
cional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP),
de 2020, há aproximadamente 64 escolas bilíngues no Bra-
sil, com cerca de 63.106 alunos, entreeles surdos, surdoce-
As TICs educacionais
As tecnologias modificaram a vida das pessoas, além de se-
rem antigas tanto quanto o próprio homem. Na pré-história,
nossos ancestrais usavam os recursos naturais como a pedra
lascada, metais e outros materiais. Um outro exemplo clássico
e igualmente importante é a invenção da roda, há 4.000 a.C.,
tornando-se umas das tecnologias mais famosas e úteis do
mundo. Com o passar dos tempos, surgiram outros inventos,
cada vez mais sofisticados, como exemplo: a locomotiva a va-
por, o rádio, avião, televisão, radar, cinema,computador, energia
nuclear e outros (COSTA, 2011).
O homem sente a necessidade de quantificar as coisas e pro-
cessar melhor asinformações para controlar suas ações sobre
o meio. Dessa maneira, a tecnologiapermite ao usuário execu-
72
tar muitas funções de forma prática e cômoda, promovendo a
agilidade e a versatilidade. Devido a todo esse progresso, os
professores compreendem que as tecnologias oferecem no-
vas possibilidades também no processo de ensino e aprendi-
zagem. Procurar meios que beneficiem o ensino eminimizem
as necessidades educacionais dos alunos, de maneira articu-
lada com o currículo e a proposta pedagógica da escola, deve
ser uma das ações dos docentes.Para Kenski (2007), as TICs
são denominadas como Tecnologias de Informação e de
Comunicação. Os avanços tecnológicos das últimas décadas
garantiram novas formas de seus usos, na produção e na pro-
pagação de informações, na interação e na comunicação em
tempo real. Além disso, as novas TICs não são apenas suportes
tecnológicos, elas possuem suas próprias lógicas, suas lingua-
gens e também maneiras específicas de se comunicarem com
as capacidades emocionais, cognitivas e comunicativas.
As TICs evoluem com muita rapidez, e a todo instante apa-
recem processos e produtos diferenciados e sofisticados. Esses
produtos não são acessíveis a todas aspessoas, por seus altos
preços e conhecimentos específicos para seu uso. Para queto-
dos possam ter acesso a essas novas tecnologias, é preciso que
haja um grande esforço educacional geral (KENSKI, 2007).
Não há dúvidas de que as TICs trouxeram mudanças conside-
ráveis e positivaspara a educação, mas para que as mudanças no
processo educativo sejam efetivas, elasprecisam ser compreen-
didas e incorporadas pedagogicamente. O desafio é inventar e
descobrir usos que sejam criativos para a tecnologia educa-
cional instiguem nos alunos o gosto por aprender. Ademais, as
TICs são utilizadas em atividades deensino de uma forma bem
diferente da comum, uma vez que as tecnologias ampliam as
possibilidades de aprendizagem, bem como as possibilidades
de interação entre professores, alunos, objetos e informações
73
que estejam neste processo de ensino e de aprendizagem, de
forma a criar vínculos (KENSKI, 2007).
As TICs são métodos utilizados como meio de disseminação
do conhecimento,de maneira ordenada, ferramentas de intera-
ção entre educadores e educandos,cada vez mais comuns nos
ambientes escolares. São nesses momentos em que as TICs
apresentam uma grande importância para o desenvolvimento
das práxisdos educadores. O entendimento sobre elas está em
questionamento por esses, a fim de entender quais as melhores
maneiras de aplicar e adequar essas ferramentas às atividades
didáticas, assim como garantir que o processo de aprendiza-
gem seja benéfico por meio desses recursos (PINHEIRO; SILVA,
2021).
Martines et al (2018) ressaltam que é essencial conhecer as
metodologias que as tecnologias podem oferecer, a fim de se
trabalhar o conteúdo de forma criativa. Apontam, também,
que o uso desses recursos tecnológicos enriquece a aula, po-
rém não podem ser colocados à frente do conteúdo. Muitas
vezes, os professores acabam abusando dessas tecnologias,
na tentativa de encobrir a falta de preparo. Porém nenhuma
ferramenta pode substituir a informação dos professores. Os
benefícios das TICs, em sala, consistem em apresentar ativida-
des que funcionem como elementos facilitadores no processo
de ensino e aprendizagem, e a observação da importância da
atuação de profissionais capacitados.
As evoluções das TICs transformaram, consideravelmente,
as relações sociais. Cada vez mais usamos dispositivos eletrô-
nicos na interação com o mundo ecom outras pessoas. Embora
haja interesse dos alunos por essas novas tecnologias,e esforços
Estatais em promover a informática educativa, ainda existem
dificuldades em introduzir as TICs nas práticas pedagógicas. O
modelo tradicional, em que professor é o possuidor do conhe-
74
cimento, não é mais aplicado na era digital,porém ainda se faz
necessária a presença do professor para que a aprendizagem
aconteça. Enquanto o aluno está sozinho, ele está em um ‘mar’
de informações que, muitas vezes, pode não ser construtivo
para o aluno (PASSERO; ENGSTER; DAZZI,2016).
Santo e André (2013) discutem que no âmbito educacional,
nos dias de hoje, há um universo de possibilidades de utiliza-
ção das novas tecnologias, e uma delas é o melhor aproveita-
mento pedagógico, no qual o professor pode ser capaz de re-
forçar o ensino e a aprendizagem. O professor é essencial, neste
contexto, desde que tenha consciência da necessidade de sua
adequação frente a essa nova realidade. Dessa forma, é pre-
ciso buscar maneiras que possibilitem a utilização desses
recursos eferramentas em benefício da aprendizagem. O perfil
dos estudantes mudou. Hoje, os alunos fazem várias atividades
ao mesmo tempo: assistem TV; navegam na internet; fazem a
tarefa; relacionam-se com os colegas e amigos por comuni-
cadores instantâneos; e desenvolvem novas habilidades a cada
recurso tecnológico utilizado.Por esse motivo, é preciso buscar
atividades que atraiam a atenção dos alunos. Este é o grande
desafio, porém, é preciso ser otimista e aproveitar o contato
que o jovem vive, atualmente, com o mundo tecnológico como
parte do processo de ensino e aprendizagem. Para isso, o pro-
fessor precisa ser criativo e dedicado. Os alunos possuem as
ferramentas principais para essa mudança e chegam conecta-
dos aos aparelhos mais tecnologicamente modernos (SANTO;
ANDRÉ, 2013).
Costa (2011) escreve que as pessoas, público-alvo da educa-
ção especial, utilizam todos os recursos que estão disponíveis
para facilitar sua aprendizagem, e os surdos vêm acompanhan-
do, de maneira gradual, as experiências tecnológicas, recursos
que são promissores para desenvolver o potencial cognitivo
75
dos seres humanos. Podemos perceber, então, que a tecno-
logia contribuí de forma benéfica dentro dos ambientes edu-
cacionais, e é através dela que podemos construir ambientes
diferenciados para os alunos, tornando o ensino mais eficiente.
Procedimentos metodológicos
Antes de serem apresentadas as etapas desenvolvidas para a
geração dos dados, é necessário tratarmos sobre a classificação
desta pesquisa. Conforme Prodanov e Freitas (2013), quanto
à natureza é básica, o objetivo é “gerar conhecimento novos
úteis para o avanço da ciência sem aplicação prática prevista,
envolvendo verdades e interesses universais” (p. 51); quanto à
abordagem do problema, é de caráter qualitativa, uma vez que
se “considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real
e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo obje-
tivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em
números” (p. 70). Já, em relação aos objetivos, o teor é descriti-
vo, por considerar que “o pesquisador apenas registra e descre-
ve os fatos observados, sem interferir neles” (p. 52). E, quanto
aos procedimentos, é uma pesquisa documental, por “tratar de
materiais que ainda não receberam um tratamento analítico ou
que podem ser reelaborados” (p. 72) de acordo com os objetivos
da pesquisa.
O delineamento da pesquisa foi organizado por meio de uma
revisão de artigos publicados em periódicos nacionais e inter-
nacionais, que tratam da temática da pesquisa, com o recorte
temporal dos últimos 10 anos (2012 - 2022). A geração dosda-
dos ocorreu por meio da busca avançada com palavras-cha-
ve, na plataforma do Portal de Periódicos da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). As
palavras-chave utilizadas foram: (i) Português; (ii) Surdos; e (iii)
Tecnologia.
76
Geração dos dados
Para a primeira etapa da geração dos dados, foram encon-
trados 42 artigos, que abordam a temática prevista pelas pala-
vras-chave. Na segunda etapa, foramrealizadas as leituras dos
títulos e dos resumos, para que fosse possível verificar quais
artigos tratavam sobre o ensino de Português para surdos com
o uso de tecnologias, apartir do relatório gerado pelo portal. Dos
42 artigos iniciais, foram selecionados para a análise 14 artigos,
apresentados no quadro a seguir.
QUADRO 1 – DADOS INICIAIS DOS ARTIGOS
SELECIONADOS
77
2016 Livia Maria Ninci Tecnologia e educação de surdos: possi-
Martins; Heloisa An- bilidades deintervenção
dreia de Matos Lins
2017 Aryane Nogueira; Ja- Considerações sobre educação de sur-
naina Cabello dos e tecnologias a partir da análise das
estratégias de um professor surdo
78
2021 Aline Cássia Silva Revisão sistemática de Literatura sobre
Araujo; Francisco tecnologia deinformação e comunicação
Kelsen de Oliveira de tradução do par linguístico português
Libras
Fonte: As autoras
79
Transinforma- Características de reposi- Pontifícia Uni- Sudeste
ção tórios educacional aberto versidade Cató-
para usuários de Língua lica – Campinas
Brasileira de Sinais (P U C- C a m p i -
nas)
Design & Tec- Livro Digital para crian- Un i ve r s i d a d e Sul
nologia ças surdas: uma análise na Federal do Rio
perspectiva dodesign visu- Grande do Sul
al de interface em tela (UFRGS)
Jorsen - Journal Português para surdos e Nasen Inglater-
of research in tecnologias digitais ra
special educa-
tional needs
80
Holos A proposta bilíngue na Instituto Federal Nordes-
educação de surdos: prá- do Rio Grande te
ticas pedagógicas no pro- do Norte (IFRN)
cesso de alfabetização no
município de Colorado
Oeste/Rondônia
Trama Educação a distância e os U n i v e r s i d a - Sul
desafios para a elaboração de Estadual do
de material didático de lín- Oeste do Para-
gua portuguesa como L2 ná (UNIOESTE)
para graduandos surdos
Revista Brasilei- A relação do usuário surdo Un i ve r s i d a d e Sul
ra de Design da com a tipografia em mo- Federal doPara-
Informação vimentos nos materiais ná (UFPR)
educacionais em Libras:
um estudo por meio do
rastreamento ocular
Diacrítica Práticas translingues na Un i ve r s i d a d e Braga -
educação linguística de do Minho Portugal
surdos mediados por tec-
nologias digitais.
Ideação O uso dos recursos tecno- Un i ve r s i d a d e Sul
lógicos no ensino bilingue do Oestedo Pa-
para acadêmicos surdos raná (UNIOES-
TE).
Revista Semiá- Revisão sistemática de Li- Instituto Fede- Nordes-
ridode Visu teratura sobre tecnologia ral do Sertão te
de informação e comuni- do Pernambuco
cação de tradução do par (IFSertão PE).
linguístico português-Li-
bras
Fonte: As autoras
81
QUADRO 3 – 2º CRITÉRIO: OBJETIVO GERAL
APRESENTADO NO ARTIGO
82
Português como L2: o ensino da Relatar a experiência vivida no ensi-
disciplina no curso de Letras Li- no da disciplina “A Língua Portuguesa
bras da UFGD como segunda Língua para surdos”
ministrado no ano de 2017, no curso
de Licenciatura de Letras, para uma
turma de alunos surdos e ouvintes.
Da janelinha para o Janelão: a re- *** sem objetivo geral claro ***
levância de conteúdos qualifica-
dos para a educação permanente
pelos surdos e sua inclusãotrans-
formadora
A proposta bilíngue na educação Mostrar a eficácia da proposta bilín-
de surdos: práticas pedagógicas gue no processo de alfabetização dos
no processo de alfabetização no surdos e proporcionar mais oportuni-
município de Colorado Oeste/ dades e qualidade no processo educa-
Rondônia cional.
Educação a distância e os desa- Trazer uma reflexão acerca dos desa-
fios para a elaboração de mate- fios e possibilidades da elaboração de
rial didático de língua portuguesa material didático de Língua Portugue-
como L2 para graduandos surdos sa escrita para alunos surdos de um
curso a distância de Licenciatura em
pedagogia.
A relação do usuário surdo com Verificar os principais pontos de aten-
a tipografia em movimentos nos ção do usuário surdo, tendo em vista
materiais educacionais em Libras: a tipografia de movimentos em mate-
um estudo por meio do rastrea- riais bilíngues.
mento ocular
Práticas translingues na educação *** sem objetivo geral claro ***
linguística de surdos mediados
por tecnologias digitais.
83
Revisão sistemática de Literatura Identificar e classificar os softwares de
sobre tecnologia de informação e tradução Português-Libras que pode-
comunicação de tradução do par rão auxiliar os surdos na aprendiza-
linguístico português libras gem de conteúdos que são ministra-
dos em sala de aula.
Fonte: As autoras
84
Considerações sobre educação Metodologia quantitativa de pesqui-
de surdos e tecnologias a partir da sa, com observação de situação de
análise das estratégias deum pro- sala de aula; diário decampo; e entre-
fessor surdo. vista com professor
Português como L2: o ensino da Relato de experiência vivenciada
disciplina nocurso de Letras Libras pelo autor.
da UFGD.
Da janelinha para o Janelão: a rele- Recorte de pesquisa sobre o primei-
vância de conteúdos qualificados ro canal de WEB TV INES, no país,
para a educação permanente pe- protagonizado por surdos. Aplicação
los surdos e sua inclusão transfor- de questionários e realização de en-
madora. trevistas com 12 surdos com idade
entre 18 emais de 55 anos
A proposta bilíngue na educação Pesquisa-ação com uma aluna sur-
de surdos: práticas pedagógicas da,organizada em cinco etapas.
no processo de alfabetização no
município de Colorado Oeste/
Rondônia.
Educação a distância e os desafios Elaboração de unidades temáti-
para a elaboração de material di- cas da disciplina de Português para
dático de língua portuguesa como alunos ouvintes e surdos do curso
L2 para graduandos surdos. de Pedagogia do INES, modalidade
EaD.
A relação do usuário surdo com Pesquisa experimental, com realiza-
a tipografia em movimentos nos ção de teste, utilizando o instrumen-
materiais educacionais em Libras: to de coleta de dados Eye tracking.
um estudo por meio do rastrea-
mentoocular.
Práticas translingues na educação Pesquisa qualitativa de cunho et-
linguística desurdos mediados por nográfico, com participação de 20
tecnologias digitais. alunos, com faixa etária entre 16 a 35
anos, em curso de extensão univer-
sitária, de ensino de português para
surdos na modalidadeescrita
85
O uso dos recursos tecnológicos Investigação de cunho exploratória,
no ensino bilingue para acadêmi- com abordagem descritiva explicati-
cos surdos. va, com a participação de oito aca-
dêmicos surdos. Uso de entrevista
semiestruturada, com cinco ques-
tões norteadoras sobreo uso das
TICs no ensino superior
Revisão sistemática de Literatura Revisão Sistemática de literatura so-
sobre tecnologia de informação e bre tecnologia assistiva, software de
comunicação de tradução do par tradução e Libras
linguístico português libras.
Fonte: As autoras
86
Considerações sobre educação de surdos Livro digital.
e tecnologias a partir da análise das estra-
tégias deum professor surdo.
87
QUADRO 6 – 5º CRITÉRIO: RESULTADOS DE CADA
PESQUISA
88
Tecnologia e educação Nos mostra que os alunos surdos foram realo-
de surdos: Possibilida- cados para uma turma só. A forma como foram
des de intervenção acompanhados, todos juntos, e os professores
das disciplinas tendo uma rasa compreensão de
Libras, fez com que houvesse pouco contato
e atenção específica voltada a aprendizagem
desses sujeitos durante as aulas, de modo que
a intérprete acabava por assumir o papel de pro-
fessora do grupo.
89
A proposta bilíngue na Nessa pesquisa, a ação foi realizar um levan-
educação de surdos: tamento dos 523 alunos matriculados na es-
práticas pedagógicas no cola E.E.F. Manuel Bandeira, em 2016. Desses,
processo de alfabetiza- 14 alunos necessitam de atendimento do AEE.
ção nomunicípio de Co- Uma das alunas tinha deficiência auditiva, e um
loradoOeste/Rondônia tinha deficiência intelectual. O trabalho ocorreu
na sala do AEE, com esses alunos, sempre no
período oposto em que estudavam.
Educação a distância e O resultado revelou que o artigo buscou mos-
os desafios para a ela- trar como é oprocesso de elaboração do mate-
boração de material rial online do curso de Pedagogia Bilíngue, com
didático de língua por- foco nas disciplinas de Língua Portuguesa,
tuguesa como L2 para apresentando, assim, recursos disponíveis, os
graduandos surdos desafios da modalidade EaD e o trabalho com a
leitura e escritacom aprendizes surdos.
A relação do usuário O resultado nos informa que o sujeito fixa o
surdo com a tipografia olhar mais vezes na informação apresentada
em movimentos nos pelo intérprete (22 fixações). Notamos também
materiais educacionais que é possível identificar que o olhar transita por
em Libras: um estudo toda aextensão do vídeo, mas se fixa princi-
por meio do rastrea- palmente no intérprete.
mento ocular Além disso, percebe-se um equilíbrio maior na
fixação do olhar entre o intérprete, o texto e a
imagem.
Práticas translíngues na Mostrou, por sua vez, que a educação linguísti-
educação linguística de ca de surdos, mediada por tecnologias digitais,
surdos mediados por em lugar de promover umtrabalho com línguas
tecnologias digitais compartimentalizadas, permite o reconheci-
mento e a integração de diferentes recursos
linguísticos e semióticos, em diferentes moda-
lidades. Com isso, pode haver uma abertura dos
alunos para pluralidade e a diversidade linguís-
tica.
90
O uso dos recursos Os resultados verificaram a disponibilidade de
tecnológicos no ensino recursos tecnológicos no ensino superior com a
bilíngue para acadêmi- plataforma Moodle, que oferece uma nova de-
cos surdos manda aos professores.
Revisão sistemática de O resultado foi de que existem muitas tecno-
Literatura sobre tecno- logias que podem contribuir para o ensino e
logia de informação e aprendizagem de pessoas surdas no ambiente
comunicação de tradu- escolar. Porém, ainda são poucas divulgadas e
ção do par linguístico conhecidas pelas comunidades acadêmicas e,
Português-Libras por isso, sugere o aprofundamento do estudo
das ferramentas que realizam a tradução de
Português-Libras, de forma a mostrar as várias
possibilidades de uso dentro do espaço escolar.
Fonte: As autoras
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96
Análises Linguísticas
Análise sociolinguística da monotongação de
1 Introdução
As variações linguísticas são ramificações naturais de uma
língua que culminam em diferentes variedades linguísticas e,
no cotidiano, encontram-se diversas dessas variações, pois a
sociedade é constituída por múltiplas comunidades de fala,
compostas por pessoas com vivências diferentes. Desse modo,
é possível identificar distintos modos de falar e se comunicar; e
até mesmo indivíduos pertencentes a uma mesma comunida-
de de fala apresentam diferenças linguísticas entre si. As dife-
rentes variedades linguísticas englobam fatores como regiona-
lidade, idade, classe social, escolaridade, situação comunicativa
e postura adotada pelo falante diante da variedade (LABOV,
2008 [1972]).
O presente estudo tem o objetivo de analisar o processo
fonético-fonológico variável denominado monotongação do
ditongo decrescente [ow] na variedade do Português Brasilei-
ro (daqui em diante, PB) da região noroeste do estado de São
Paulo, mais precisamente na região de São José do Rio Preto.
Especificamente, este trabalho objetiva descrever e caracteri-
zar os fatores linguísticos e sociais envolvidos na aplicação va-
riável do fenômeno, além de comparar a variedade estudada
com outras variedades do PB, a partir de pesquisas já realizadas
sobre o tema.
A escolha da variedade de São José do Rio Preto em detri-
mento da região de Ponta Grossa, onde se desenvolve este
98
trabalho, é justificada pela ausência de um banco de dados já
constituído para a região. Além do mais, o banco de dados da
região investigada já foi submetido e aprovado por Comitê de
Ética no período de sua elaboração, dessa forma não tendo
sido necessária a submissão deste projeto ao Comitê de Ética
em Pesquisa da UEPG. Outro fator considerado foi o preenchi-
mento da lacuna do estudo da monotongação em [ow] na va-
riedade investigada. Desse modo, destaca-se o ineditismo do
presente trabalho.
No PB, os ditongos orais decrescentes são formados por uma
vogal seguida por um glide que pode ser apagado em alguns
casos, processo denominado monotongação. Em relação ao di-
tongo [ow], este pode sofrer a variação do apagamento do glide
velar [w], como em outro ~ otro e pegou ~ pegô, ou seja, o diton-
go passa a ser produzido oralmente como um monotongo, isto
é, uma única vogal (CRISTÓFARO SILVA, 2011).
No que diz respeito a resultados de outras pesquisas (AMA-
RAL, 2005; FREITAS, 2017; MACHADO, 2020; CARMO; MA-
CHADO, 2023; OLIVEIRA, 2021; SILVEIRA, 2019; TOLEDO,
2011) acerca de ditongos orais decrescentes em outras varie-
dades do PB, atesta-se que o fenômeno é bastante investiga-
do e apresenta indícios de ser consolidado, principalmente em
[ow], devido ao grande número de ocorrências. Tais resultados
levam à hipótese inicial de que a monotongação de [ow] não
seja muito influenciada por fatores sociais, visto que se espera
que ocorra similarmente em diferentes estratificações sociais.
Em relação aos fatores linguísticos, pesquisas anteriores sobre
outras variedades do PB demonstram serem mais significativos
para a aplicação do apagamento do glide.
Esta pesquisa é embasada teórico-metodologicamente nos
pressupostos labovianos da Teoria da Variação e Mudança Lin-
guística (LABOV, 2008 [1972]), na qual o autor define que o
99
estudo da língua, pela sociolinguística, deve ser realizado sem
a exclusão do contexto social dos falantes (LABOV, 2008
[1972]). Labov (2008 [1972]) defende que a língua precisa ser
compreendida como heterogênea e dinâmica; dessa forma,
a sociolinguística leva em conta a relação dos fatores linguís-
ticos e extralinguísticos para a análise da variação. Os proces-
sos variáveis não ocorrem de maneira aleatória nas línguas, na
realidade, são definidos por um conjunto de normas que são
compartilhadas por uma comunidade de fala e que são condi-
cionadas não somente por fatores linguísticos, como também
por fatores sociais.
O trabalho tem, como córpus de pesquisa, doze inquéri-
tos retirados do banco de dados Iboruna, resultado do projeto
Amostra Linguística do Interior Paulista (ALIP). O banco apre-
senta 152 entrevistas coletadas entre 2003 e 2007 (GONÇAL-
VES, 2019) e segue os preceitos metodológicos da sociolinguís-
tica de Labov (2008 [1972]). As entrevistas são categorizadas
por variáveis sociais diversificadas, como sexo/gênero, escola-
ridade e faixa etária e apresentam diferentes gêneros textuais
(GONÇALVES, 2019).
Os doze inquéritos utilizados são divididos em seis com fa-
lantes do sexo/gênero masculino e seis do feminino. Outra vari-
ável utilizada para a pesquisa é faixa etária, sendo consideradas
as seguintes: 7 a 15 anos; 26 a 35 anos; e superior a 55 anos.
Como variável extralinguística, também é considerada a escola-
ridade, mais especificamente o 1º ciclo do Ensino Fundamental
e o Ensino Médio. Como variáveis linguísticas, são considera-
dos: (i) contexto seguinte (tepe, fricativa, africada, vogal, nasal,
oclusiva, lateral e pausa); (ii) tonicidade da sílaba (tônica, pretô-
nica, postônica medial e postônica final); (iii) classe de palavras
(verbos e não-verbos); e (iv) localização morfológica (radical e
sufixo).
100
O trabalho se apresenta com a seguinte organização: na se-
ção 2, é discutida a fundamentação teórica, mencionando a Te-
oria da Variação e Mudança Linguísticas (LABOV, 2008 [1972])
e o processo variável investigado. No item 3, são apresentados
os passos metodológicos utilizados na pesquisa, descrevendo
também a variável dependente e as variáveis independentes
linguísticas e extralinguísticas investigadas. Em 4, está organi-
zada a discussão dos resultados obtidos. Por fim, na seção 5,
têm-se as considerações finais, seguidas pelas referências bi-
bliográficas.
2 Fundamentação teórica
Nesta seção, é discutido o embasamento teórico do trabalho,
sendo dividida em: descrição da Teoria da Variação de Mudan-
ça Linguística (seção 2.1); fundamentação e caracterização do
ditongo decrescente [ow] (seção 2.2); e descrição da variação
estudada em outras variedades do PB (seção 2.3).
2.1 Teoria da Variação e Mudança Linguística
A Sociolinguística é um ramo da Linguística que busca orga-
nizar cientificamente variantes linguísticas existentes dentro de
um sistema linguístico compartilhado por uma comunidade de
fala. Segundo Labov (2008 [1972]), um dos nomes mais im-
portantes dos estudos na área, o objetivo da Sociolinguística é
estudar as mudanças linguísticas interseccionando com aspec-
tos sociais dentro de uma comunidade de pessoas que perma-
necem em interação e compartilham um conjunto de normas,
pois “não se pode entender o desenvolvimento de uma mu-
dança linguística sem levar em conta a vida social da comuni-
dade em que ela ocorre” (LABOV, 2008 [1972], p. 21).
101
Tarallo (2003, p. 19) define língua falada como “o veículo lin-
guístico de comunicação usado em situações naturais de inte-
ração social, do tipo comunicação face a face”. Dessa forma, o
objetivo da sociolinguística é analisar o vernáculo do informan-
te, isto é, a língua falada em contextos em que o falante não
está preocupado em atender às convenções gramaticais, pois o
seu foco não é a forma como está comunicando.
A Teoria da Variação e Mudança Linguística, ou Sociolinguís-
tica Quantitativa, compreende a língua como heterogênea.
Labov (2008 [1972], p. 16) define que “[...] o domínio de um
falante nativo de estruturas heterogêneas não tem a ver com
multidialetalismo nem com o “mero” desempenho, mas é par-
te da competência linguística monolíngue”. Isso quer dizer que
as variações linguísticas não são aleatórias ou arbitrárias, pois
elas são uma característica inerente na evolução de uma língua
e competem a motivações sociais e não individuais e isoladas
de um falante. A existência de variações linguísticas não anula
a existência de uma estrutura nem impossibilita que ela seja
sistematizada. A heterogeneidade permite que todas as reali-
zações dos falantes que são consideradas “desvios” ou “aciden-
tes” sejam utilizadas como argumento de que as línguas estão
em constante processo de mudança. Ainda sobre essas moti-
vações, Labov (2008 [1972], p. 19) diz que:
Essas variações podem ser induzidas pelos processos de assimilação ou
dissimilação, por analogia, empréstimo, fusão, contaminação, variação
aleatória ou quaisquer outros processos em que o sistema linguístico
interaja com as características fisiológicas ou psicológicas do indivíduo.
103
mais às convenções normativas do que os homens da mesma
classe socioeconômica a que pertencem.
A partir dos pressupostos da Sociolinguística, esta pesquisa
busca investigar os aspectos sociais e linguísticos que influen-
ciam as escolhas linguísticas e motivam a ocorrência do proces-
so fonológico variável da monotongação, processo recorrente
no PB conforme pesquisas que, como o próprio fenômeno va-
riável investigado, serão descritas a seguir.
2.2 Processo variável investigado
Antes de partir para a caracterização da monotongação, é
necessário fazer algumas considerações sobre a estrutura silá-
bica e os ditongos no PB.
Câmara Jr. (2015 [1970]) propõe que as definições de sílaba
de diferentes linhas de pesquisa convergem em um aspecto ao
afirmarem que as sílabas partem de um movimento crescente
que culmina no núcleo silábico. O autor (2015 [1970], p. 53)
ainda define que as vogais, de um modo geral, ocupam a posi-
ção de núcleo, pois é “o som vocal mais sonoro, de maior força
expiratória, de articulação mais aberta e de mais firme tensão
muscular”. Para Câmara Jr. (2015 [1970]), a sílaba possui uma
estrutura de aclive seguido por um ápice (núcleo) e depois por
um declive, tais posições são preenchidas, respectivamente,
por uma ou duas consoantes; por uma vogal; e pelas consoan-
tes /S/, /r/, /l/ ou pelas semivogais [j] e [w].
Além da posição de núcleo, Bisol (2014 [1996]) afirma que
a sílaba é constituída por um ataque (A) e uma rima (R), sendo
que a última é composta justamente pelo núcleo (Nu) e pela
Coda (Co). A autora também ressalta que, em português, todas
as posições que não são o Nu podem estar vazias, como na
representação a seguir:
104
Figura 1 – Estrutura silábica
105
Fonte: Bisol (2014 [1996], p. 115).
106
apresenta características articulatórias de uma vogal, mas que
não pode ocupar a posição de núcleo de uma sílaba”.
Câmara Jr. (2015 [1970]) enumera 11 ditongos decrescentes
([aj]: pai; [aw]: mau; [ej]: lei; [èj]: papéis; [èw]: véu; [iw]: riu; [òj]:
mói; [oj]: moita; [ow]: sou; [uj]: fui e [òw]: sol), alguns formados
pela vocalização da lateral /l/ na estrutura do português. Tanto
para o autor (2015 [1970]) quanto para Bisol (2014 [1996]), não
há, no PB, ditongos crescentes, pois, como define Bisol (2014
[1996], p. 119), “a sequência VV (glide-vogal) é o resultado da
ressilabação pós-lexical, ou seja, os ditongos crescentes não fa-
zem parte do inventário fonológico do português e surgem da
fusão de rimas de duas sílabas diferentes”.
As origens dos ditongos no PB ocorrem, conforme atesta
Abaurre (2019, p. 82), no latim vulgar, momento em que exis-
tiam apenas quatro ditongos que posteriormente passaram por
processos fonológicos que originaram outros ditongos ou mo-
notongos. Os quatro ditongos citados por Abaurre (2019, p. 82)
são:
• ae: caecu> cego;
• oe: poena> pena
• au: thesauro> tesouro
• eu: leuca/leuga>légua
A partir do século II a.C., esses ditongos já eram modifica-
dos pelo processo de monotongação, como no exemplo citado
pela autora quaestus>questus. Comparando o português atual
com o latim, observa-se que o português apresenta um núme-
ro maior de ditongos, pois vários deles foram criados em de-
corrência de processos fonológicos ocorridos na passagem do
latim vulgar para o português, a exemplo: a síncope de fonema
medial como em malu>mau (ABAURRE, 2019, p. 82-83).
Com relação à monotongação, processo fonológico bastante
consolidado principalmente nos ditongos [aj] (c[aj]xa ~ c[a]xa),
107
[ej] (d[ej]xa ~ d[e]xa) e [ow] (r[ow]pa ~ r[o]pa) no PB, ocorre, con-
forme Cristófaro Silva (2011, p. 153), quando um “ditongo passa
a ser produzido como uma única vogal” a partir do apagamento
de um glide.
Amaral (2020 [1920]), em relação aos ditongos [ow] e [oj] no
português europeu e nas variedades mais prestigiadas no PB,
afirmava existir um sincretismo em seu uso que não era visto
no dialeto dito caipira do PB, pois este utilizaria categoricamen-
te a mesma pronúncia para a realização desses ditongos. Por
exemplo, a palavra lavoura sendo pronunciada como lav[o]ra e
nunca lav[oj]ra, e noite nunca pronunciada como n[ow]te.
Para compreender a formação de um monotongo, é neces-
sário analisar a estrutura dos chamados ditongos leves e diton-
gos pesados. Bisol (2014 [1996]) afirma que os ditongos que
possibilitam a variação para um monotongo são denominados
ditongos leves (ditongo falso), pois, na estrutura, ligam-se a um
único elemento vocálico, já os ditongos pesados (ditongo verda-
deiro) se ligam na estrutura a dois elementos vocálicos, como
no exemplo a seguir:
108
Os ditongos leves (falsos) permitem a ocorrência da mono-
tongação, pois, por serem classificados como fonéticos, a su-
pressão ou apagamento do glide não provoca uma mudança
lexical. Já os ditongos pesados (verdadeiros), classificados tam-
bém como fonológicos, tendem a não produzir o contexto ne-
cessário para a aplicação da monotongação por causarem al-
ternância de sentido na palavra (p[aw]ta - p[a]ta) (BISOL, 2014
[1996]). Cristófaro Silva (2011, p. 94) ainda define que os diton-
gos leves são um “ditongo associado a uma única posição es-
queletal [...] e apresenta comportamento análogo ao de uma
vogal simples, ou monotongo” e que, por sua vez, os ditongos
pesados são um “ditongo associado a duas posições esquele-
tais [...] e apresenta um comportamento análogo ao de uma
vogal longa”.
2.3 Processo variável investigado em outras
variedades do PB
A monotongação é um processo bastante mencionado e es-
tudado em diversas pesquisas e variedades do PB. Algumas
dessas pesquisas serão elencadas a seguir.
Amaral (2005), em sua pesquisa Ditongos Variáveis do Sul do
Brasil, apresenta um estudo acerca da variação dos ditongos
orais decrescentes. Para tanto, a autora, seguindo a metodo-
logia laboviana, analisou amostras de fala de 42 informantes
retiradas do banco de dados do projeto VARSUL. As localidades
representadas por esse banco e analisadas pela autora são: Flo-
res da Cunha, Panambi e São Borja. Como variável dependente,
a pesquisa definiu a realização do ditongo [ej] e o apagamento
da semivogal [j]. As variáveis independentes analisadas foram
(i) classe de palavras; (ii) contexto seguinte; (iii) posição do di-
tongo; (iv) tonicidade; (v) faixa etária; e (vi) grupo geográfico. Os
resultados da pesquisa demonstraram que os condicionadores
109
linguísticos são mais influentes para a aplicação da regra do que
os condicionadores sociais. Contexto fonológico seguinte - sen-
do os fatores tepe (palm[ej]ra) e fricativa palato-alveolar (b[ej]jo)
– tonicidade, sendo o fator sílaba postônica (vôl[ej]), classe de
palavra, sendo o fator não-verbos (cruz[ej]ro ~ cruz[e]ro) e faixa
etária - 23 a 46 anos - foram as variáveis mais notáveis para a
aplicação da monotongação de [ej].
Em seu trabalho Estudo da Monotongação de Ditongos Orais
Decrescentes na Fala Uberabense, Freitas (2017) estudou a mo-
notongação dos ditongos [aj], [ej] e [ow] em amostra de fala de
24 informantes moradores da cidade de Uberaba-MG. A cons-
trução do córpus de pesquisa foi feita pela pesquisadora levan-
do em consideração diferentes estratificações sociais. As vari-
áveis investigadas foram: (i) contexto fonológico seguinte; (ii)
tonicidade; (iii) extensão da palavra; (iv) escolaridade; (v) sexo/
gênero; e (vi) faixa etária. Os resultados demonstraram que exis-
te uma maior frequência no uso da forma monotongada pelos
falantes e que os fatores sociais não influem na ocorrência da
monotongação no falar de Uberaba. O grupo de fatores linguís-
tico contexto fonológico seguinte influencia a monotongação de
[aj] e [ej], destacando-se os fatores fricativas (b[aj]xa e d[ej]xa) e
tepe (brazil[ej]ra), já extensão da palavra afeta a monotongação
de [aj], que ocorre em maior quantidade em polissílabas (a.p[aj].
xo.na.da). Por fim, em relação à tonicidade da palavra, os resul-
tados apontam para uma maior frequência do apagamento em
sílabas tônicas.
A partir do banco de dados Iboruna, o mesmo utilizado nesta
pesquisa, e sob os preceitos da Teoria da Variação e Mudança,
Carmo e Machado (2023), retomando a pesquisa de Machado
(2020), consideraram a variável dependente apagamento do [j]
no ditongo [ej] para análise. Como córpus, utilizaram 12 entre-
vistas. Como fatores, foram considerados: (i) classe de palavras;
110
(ii) contexto precedente; (iii) contexto seguinte; (iv) posição do
ditongo; (v) tonicidade; (vi) sexo/gênero; (vii) faixa etária; e (viii)
escolaridade. Como resultados, foram levantados 1.057 dados
de ditongo [ej], dos quais 376 (35,6%) obtiveram monotonga-
ção. Os fatores mais influentes para a aplicação do apagamento
de [j] foram tepe (dinh[ej]ro) e fricativa (d[ej]xa) em contexto se-
guinte, plosiva (mad[ej]ra) em contexto precedente, nomes (serin-
gu[ej]ra) em classe gramatical e Ensino Médio em escolaridade, o
que indica que os mais escolarizados aplicam mais o processo
em relação aos menos escolarizados na dada variedade do PB.
Sobre o falar manauara, Oliveira (2021) analisou a monoton-
gação dos ditongos orais decrescentes [aj], [ej], e [ow]. A pesqui-
sa sociolinguística investigou os falares de 16 informantes com
amostras de diferentes tipos de coleta (entrevista, questionário,
leitura) extraídos da zona urbana de Manaus para a composição
do córpus de análise, e considerou as seguintes variáveis lin-
guísticas e extralinguísticas: (i) contexto seguinte; (ii) tonicidade;
(iii) posição na palavra; (iv) classe gramatical; (v) sexo; (vi) faixa
etária; (vii) escolaridade; (viii) localização de moradia; e (ix) tipo de
coleta. Como resultados, foram obtidas 3.898 ocorrências, sen-
do 552 do ditongo [aj], 1.597 do ditongo [ej] e 1.749 do ditongo
[ow]. Os resultados também indicaram que 18,3% dos dados
de [aj] foram monotongados, assim como 50,5% para a mo-
notongação de [ej] e 65,4% para a monotongação de [ow]. Para
[aj], as variáveis que influenciam o apagamento do [j], segun-
do os resultados da pesquisa, foram: contexto seguinte (fricativa
palato-alveolar: b[aj]xo), tipo de coleta (entrevista), posição na
palavra (posição medial: emb[aj]xo) e escolaridade (8 a 12 anos
de escolaridade). Para [ej], os condicionadores para o apaga-
mento foram: contexto seguinte (tepe: fever[ej]ro; e fricativa pa-
lato-alveolar: qu[ej]jo), tipo de coleta (entrevista), escolaridade (8
a 12 anos de escolaridade), sexo (masculino), faixa etária (18 a 33
111
anos), classe gramatical (substantivos: brincad[ej]ra) e posição na
palavra (posição medial). Para o ditongo [ow], os resultados de
Oliveira (2021) mostraram que a monotongação é favorecida
pelos seguintes grupos de fatores: tipo de coleta (entrevista),
tonicidade (sílaba tônica: p[ow]co), escolaridade (8 a 12 anos de
escolaridade), contexto seguinte (vogais: ou então), localização de
moradia (bairros periféricos), sexo (masculino), classe gramatical
(verbos: r[ow]bar) e faixa etária (18 a 33 anos).
Silveira (2019), em sua pesquisa Monotongação em Uso no
Português do Sul do Brasil, analisa a monotongação dos diton-
gos decrescentes [ej], [oj], [ow] nas cidades de Porto Alegre –
RS, Florianópolis – SC, Pato Branco – RS, Flores da Cunha – RS,
Chapecó – SC, e Curitiba – PR, a partir do banco de dados Va-
riação Linguística da Região Sul do Brasil (VARSUL). As variáveis
investigadas foram: (i) contexto seguinte; (ii) tonicidade da sílaba;
(iii) classe de palavras; (iv) localização morfológica; (v) extensão
do vocábulo; (vi) localização do ditongo na palavra; (vii) item lexi-
cal; (viii) sexo; (ix) escolaridade; (x) localidade; (xi) informante. Os
resultados mostraram comportamentos distintos para as três
variáveis dependentes consideradas. A monotongação de [ej]
na variedade em questão é condicionada por localização mor-
fológica (sufixo nominal: pedr[ej]ro) do ditongo na palavra, ex-
tensão do vocábulo e contexto fonológico seguinte ao ditongo
(palavras não monossilábicas (perf[ej]tamente) e obteve uma
porcentagem de ocorrência de 35,5%. A monotongação de [oj]
é influenciada por uma motivação predominantemente lexical
(pois; dois) e obteve uma ocorrência correspondente a 2,8%.
Já a monotongação de [ow], além da motivação lexical, tam-
bém é determinada por localização morfológica (sufixo verbal:
encontr[ow]) do ditongo na palavra, correspondendo à variável
dependente com a maior porcentagem de ocorrência (86,9%).
112
Ainda sobre o sul brasileiro, Toledo (2011) analisa a alternân-
cia [ej] ~ [e] na variedade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
O córpus de pesquisa foi composto por 14 inquéritos retirados
do banco de dados do Projeto de Estudo da Norma Linguística
Urbana Culta (NURC), banco posteriormente recontactado pelo
Projeto VARSUL, totalizando 28 entrevistas utilizadas na pes-
quisa. As variáveis determinadas para o andamento do estudo
foram: (i) contexto seguinte; (ii) tonicidade; (iii) natureza morfológi-
ca; (iv) classe de palavras; (v) faixa etária; e (vi) sexo. Os resultados
demonstraram pouca influência das variáveis extralinguísticas,
sendo de fato relevantes as variáveis linguísticas: contexto se-
guinte (tepe: brasil[ej]ro); natureza morfológica (radical: f[ej]ra); e
classe de palavras (não-verbos: man[ej]ra).
Os resultados obtidos por essas pesquisas convergem ao de-
monstrar pouca tendência de as variáveis sociais influenciarem
os processos de monotongação. A variação, em várias localida-
des do país, parece estar mais condicionada a fatores linguísti-
cos, principalmente em relação ao contexto fonológico seguinte
(tepe e fricativas) e à tonicidade (tônicas).
Assim como os estudos mencionados, esta pesquisa toma
como base a Teoria da Variação e Mudança Linguística (LABOV,
2008 [1972]) e analisa o apagamento do glide [w] no ditongo
oral decrescente [ow] conforme os passos metodológicos des-
critos a seguir.
3 Materiais e métodos
Nesta seção, parte-se para a descrição da metodologia em-
pregada para o desenvolvimento da pesquisa. Dessa forma,
está organizada de acordo com a seguinte estrutura: em 3.1,
está a descrição da comunidade de fala da variedade investi-
gada; em 3.2, constam informações sobre o banco de dados
Iboruna e as entrevistas analisadas; em 3.3, são detalhadas as
113
variáveis investigadas, tanto a dependente como as indepen-
dentes; por fim, em 3.4, parte-se para a descrição da metodo-
logia laboviana (LABOV, 2008 [1972]).
1 Dados retirados do portal da Câmara Municipal de São José do Rio Preto, disponí-
vel em: http://www.riopreto.sp.leg.br/a-cidade#:~:text=O%20seu%20%C3%8D-
ndice%20de%20Desenvolvimento,Jaboticabal%20na%20d%C3%A9cada%20
de%201890. Acesso em: 26 mar. 2023.
2 Dados do Censo do IBGE de 2021. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cida-
des-e-estados/sp/saojose-do-rio-preto.html. Acesso em: 26 mar. 2023.
114
Figura 4 – Região de São José do Rio Preto
117
Quadro 1 – Entrevistas analisadas
Sexo/gênero
Faixa etária Escolaridade
Masculino Feminino
1º Ciclo do EF AC-007 AC-008
7 a 15 anos
Ensino Médio AC-023 AC-024
1º Ciclo do EF AC-063 AC-064
26 a 35 anos
Ensino Médio AC-079 AC-080
Superior a 55 1º Ciclo do EF AC-127 AC-128
anos
Ensino Médio AC-143 AC-144
Fonte: Elaboração própria, com base em Gonçalves (2019, p. 286)
118
3.3.1 Variável dependente
A variável dependente sobre a qual a pesquisa se desenvol-
ve é a monotongação variável do ditongo [ow].4 Esse fenôme-
no consiste na realização do ditongo decrescente como uma
vogal, resultado do apagamento do glide na sílaba, como, por
exemplo, r[o]pa.
3.3.2 Variáveis independentes
As variáveis independentes extralinguísticas investigadas fo-
ram (i) sexo/gênero; (ii) escolaridade; e (iii) faixa etária. Quanto
às variáveis independentes linguísticas, têm-se: (iv) contexto se-
guinte; (v) tonicidade da sílaba; (vi) classe de palavras; e (vii) loca-
lização morfológica.
Ocorrências Porcentagens
Aplicação 1.164 97,2%
Não aplicação 34 2,8%
Total 1.198 100%
Fonte: Elaboração própria.
122
Fonte: Elaboração própria
Consoantes+pau-
sa 892 925 96,4%
Ocorrências O c o r - Peso
com aplicação rências Porcentagens relati-
gerais vo
Sufixo 834 839 99,4% 0.689
Radical 330 359 91,9% 0.135
Total 1.164 1.198 97,2% -
Input: 0,989 Significância:0,006
Fonte: Elaboração própria
Ocorrências O c o r - Peso
com aplicação rências Porcentagens relati-
gerais vo
7 a 15 anos 307 317 96,8% 0.456
26 a 35 531 537 98,9% 0.658
anos
Mais de 55 326 344 94,8% 0.297
anos
Total 1.164 1.198 97,2% -
Input: 0,989 Significância: 0,006
-
ta estar estabilizada justamente por conta da faixa etária
intermediária se
da monotongação, pois, conforme Dallemole, Osório e Pa-
129
-
guístico de um falante é referente ao período em que este
de aquisição da linguagem e tende a
-
-
notongação, por se referir ao que era anteriormente a faixa
etária intermediária.
Ao todo, foi possível identificar que o fenômeno em geral
tem alta porcentagem de ocorrência, assim em conformidade
com pesquisas em outras variedades do PB, indicando que a
monotongação de [ow] é um processo recorrente e consolida-
do no PB. Apenas a variável linguística localização morfológica
indicou influenciar nos dados de monotongação. Quanto às
variáveis extralinguísticas, a faixa etária obteve maior relevân-
cia, dando indícios de se tratar de um caso de variação estável.
Tanto a variável sexo/gênero quanto a escolaridade indicaram
que o fenômeno não apresenta indícios de estigma social, pois
o comportamento dos falantes em relação a tais variáveis com
a monotongação mostra-se relativamente semelhante no que
tange à sua realização.
132
ABAURRE, Maria Bernadete. Monotongações e Ditongações. In: CAS-
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Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Letras, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
135
A estrutura de posse nos sintagmas nominais em
Kaingang: uma descrição analítica em relação
ao português brasileiro
1 Introdução
Este trabalho busca investigar, a sintaxe do Kaingang, quanto
às estratégias de indicação de posse nos sintagmas nominais
(NP), seja por meio de itens como pronomes possessivos ou
por meio da justaposição ou anteposição em estruturas NP-NP
(ou DP-DP). Apesar de já haver alguns trabalhos que investi-
gam a sintaxe dessa língua, o diferencial se encontra no quadro
teórico, baseado na Gramática Gerativo - Transformacional de
Noam Chomsky, conforme Chomsky (1965, 1986, 1995, entre
outros).
Para isso foi necessário primeiramente revisar os pressupos-
tos teóricos e metodológicos da Gramática Gerativa, com o
objetivo de apresentar resumidamente o quadro teórico deste
trabalho; revisar também os estudos linguísticos sobre as lín-
guas indígenas no Brasil; compreender e revisar as descrições
sobre o sintagma nominal (NP) ou sobre o sintagma deter-
minante (DP). Coletar dados de uso linguísticos em Kaingang
presentes na literatura sobre a língua, que envolvam NP posse;
e, por fim, a partir desses dados coletados, classificar, glosar e
analisar, com vista a construir generalizações hipóteses sobre o
funcionamento da gramática da língua em estudo.
Como já mencionado o quadro teórico será baseado na Gra-
mática Gerativo-Transformacional de Noam Chomsky, confor-
me Chomsky (1965, 1986, 1995, entre outros), que compreen-
136
de que a linguagem é uma competência linguística, que tem
nesse sentido uma realidade mental e que se trata, ao menos
em parte, de uma propriedade biológica da espécie humana.
A metodologia de pesquisa é fortemente implicada por essa
visão de linguagem, de modo que a coleta de dados deve levar
em conta esse quadro.
A coleta de dados foi feita a partir de trabalhos bibliográficos,
que apresentassem exemplos da língua Kaingang que envol-
vam NP posse, de diferentes abordagens teóricas da gramáti-
ca, como Abreu (2009), Domingues (2013) e Navarro (2012). A
partir disso, organizamos esses dados e os analisamos de modo
a compreender o funcionamento do aspecto gramatical objeto
deste trabalho. Assim, trata-se de uma pesquisa de coleta de
dados, mas que é essencialmente bibliográfica.
A partir da nossa pesquisa, criamos um banco de dados com
mais de 100 exemplos da língua (parte deles reproduzido no
corpo deste trabalho), fizemos um recorte de acordo com os
objetivos elencados, separamos esses SN que continham es-
trutura de posse em duas seções: em posição de sujeito e em
posição de objeto nas orações (as glosas apresentadas foram
retiradas dos autores consultados). Para uma aproximação
maior e uma forma de comparação para a análise sintática, usa-
mos exemplos do português brasileiro.
Esses dados podem constituir contribuição importante para
a compreensão da língua Kaingang, na medida em que bus-
camos construir generalizações e embasar hipóteses sobre o
funcionamento da gramática dessa língua. Além da contribui-
ção que pode também trazer as comunidades, da valorização e
preservação da língua.
O artigo se organiza da seguinte maneira. Primeiramente,
apresentamos uma contextualização breve sobre a língua Kain-
gang e seu povo. Depois, evidenciamos o quadro teórico que
137
esse trabalho está inserido, a importância de investigações em
Gramática Gerativa e questões em torno do DP e sua estrutura.
Na sequência, abordamos o conceito de posse, seus diferentes
tipos, e a estrutura de posse no Português Brasileiro. Por fim,
será realizada a análise dos dados que envolvam NP posse em
Kaingang, tendo em vista também a estrutura de posse do PB.
1
<<
138
inclusive no português), essas diferenças podem ser encontra-
das somente na pronúncia ou também em algumas palavras.
Nem todos os membros das diferentes comunidades são fa-
lantes de Kaingang, mas ainda de acordo com o Instituto So-
cioambiental2, há um crescimento na valorização de sua língua
materna:
Mesmo com essas variações percebe-se que os Kaingang, em geral,
passaram a valorizar o uso da língua materna como um elemento im-
portante, politicamente, para afirmar a legitimidade de suas lutas pela
terra. (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2021).
2 -
ambiental.org
139
O autor argumenta que o verbo ‘carregar’ (ou a ideia de car-
regar), em Kaingang, precisa escolher entre vários verbos di-
ferentes, dependendo do tipo de coisa ou objeto a que vai se
referir.
gerativista
142
4 Conceito/tipos de posse e a estrutura de posse
no PB
Segundo Freitas e Facundes (2018, p. 21) se pode entender
como posse “De modo geral, [...] como uma ‘relação’ envol-
vendo, necessariamente, um possuidor a quem pertenceria
um dado item possuído”. Porém, há diversos tipos de posses,
maneiras que essa relação entre o possuidor e o item possuído
ocorre. Entre elas estão a posse alienável e a posse inalienável.
A posse alienável ocorre quando a relação entre o possuidor
e o possuído não é inseparável, não é algo intrínseco. Segundo
Freitas e Facundes (2018) “Embora essa relação de posse seja
vista como relativamente estável temporalmente, esta, proto-
tipicamente, continua a existir apenas enquanto o possuidor
escolhe mantê-la, tendo, portanto, controle sobre a relação”,
como exemplo temos a sentença Paulo tem um carro. Neste
caso, o carro é uma parte independente do sujeito, não faz par-
te dele.
Já a posse inalienável segundo Guerón (1985):
É uma interpretação associada a certas estruturas contendo dois cons-
tituintes nominais, um dos quais denota uma parte do corpo enquanto
o outro denota um ser humano interpretado como o possuidor da parte
do corpo (o POSS DP). Proporemos que a mesma configuração sintá-
tica está subjacente tanto à posse “inalienável” quanto à “alienável”. A
diferença entre os dois reduz-se ao valor de um único traço formal das
determinações do nominal “possuído” (TRADUÇÃO NOSSA).
144
1° p.poss.sg: inh
145
inh é usado para plural3 Neste trabalho não nos atemos
Por sua vez, nos exemplos em (8), (9) e (10), a mesma forma ã
aparece em posição pré-nominal, como um possessivo:
Posição de sujeito
Posição de sujeito
3 Neste trabalho não nos atemos às explicações mais aprofundadas sobre o meca-
nismo de marcação de plural no Kaingang.
146
Posição de objeto
147
Posição de objeto
Posição de sujeito
1° p.poss.pl.: g
Em (18) e (19), g aparece como pronome pessoal nós.
Pronome em posição de sujeito
148
Pronome posição de objeto
Posição de sujeito
Posição de objeto
149
Posição de Objeto
Posição de Objeto
150
No exemplo (30) fica evidente que ag pode atuar como mar-
cador de plural, aparecendo após as palavras sua e rede, in-
dicando assim o plural, o mesmo ocorre no exemplo (31), ag
acompanha posteriormente as palavras caçador e onça, trans-
formando em caçador(es) e onça(s).
A partir dos dados analisados, é possível perceber que ocorre
distinção de gênero somente terceiras pessoas. Na 3ª pessoa
do singular, ti e fi: ti é usado para masculino e fi para feminino; e
na 3ª pessoa do plural, ag e fag: ag é masculino e fag feminino.
As outras formas pronominais são usadas tanto em sentenças
que contém masculinos ou femininos, singular ou plural, indis-
tintamente.
151
suído. O mesmo ocorre no dado (33), o possuidor “Kaingang”
antecede o objeto possuído “casa”.
Posses não pronominais: oracional
Temos ainda outro tipo de estrutura de posse observada, que
é externa ao DP ao sintagma nominal, e se dá no nível oracio-
nal, como no exemplo abaixo:
152
Nos dados observados acima, no PB, poderíamos encontrar
sentenças como “Eu fui pra casa da mãe”, “o pai chegou ontem”,
que envolvem posse sem que haja necessariamente possessi-
vos, sentenças que não foram encontradas em Kaingang nos
trabalhos a que tivemos acesso. Então acreditamos, por hipó-
tese, que o Kaingang expressa a posse inalienável também por
meio da marcação do pronome possessivo pré-nominal, como
nos casos que vimos acima. Assim, parece não estar disponível
o recurso de expressar posse sem o pronome possessivo nes-
tes casos.
Desse modo o Kaingang se difere de outras línguas in-
dígenas da família Jê, no que diz respeito à marcação de posse,
pois uma das principais características dessa família é o uso de
marcação de pronominal. Como contraste, por exemplo temos
a língua indígena Pykobjê, que, conforme Domingues (2013)
realiza a posse por meio de uma prefixo relacional (portanto,
no nível da morfologia), conforme exemplo abaixo:
153
Possuído masculi- Possuído feminino
no
Pronome
Singular Plural Singular Plural
Referente pessoal
1° pessoa sin- Eu Inh Inh Inh
gular (meu) (meus) (minha) (minhas)
2° pessoa sin- Tu à à à Ã
gular (seu) (seus) (sua) (suas)
3° pessoa sin- Ele/ela Ti Fi
gular (dele) (dela)
1° pessoa plural Nós
(nosso) (nossos) (nossa) (nossas)
2° pessoa plural Vocês Ãjag Ãjag Ãjag Ãjag
(de vo- (de vo- (de vocês) (de vo-
cês) cês) cês)
3° pessoa plural Eles/elas Ag Fag
(deles) (delas)
Fonte: Adaptado de ABREU, 2009.
156
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158
O verbo jantar: entendendo a construção
polissêmica
Introdução
A utilização de palavras específicas em contextos e estrutu-
ras que não são usuais não é algo particular do verbo jantar. Na
realidade, trata-se de um número extenso de verbos que per-
mitem tal aplicação. Neste trabalho, utilizamos a teoria cunha-
da por Lakoff & Johnson (1980) que postula que a forma que
os seres humanos pensam e se expressam verbalmente são
naturalmente metafóricas. Ou seja, buscaríamos explicar uma
coisa nos utilizando de propriedades que são de outra. Enten-
deremos melhor a relação desse pensamento com nossa abor-
dagem adiante porque pensamos ser necessário, a princípio,
descrever como esse fenômeno é visto em um verbo especí-
fico, podendo, assim, identificar um padrão individual. Portan-
to, objetivamos entender a estrutura que o verbo jantar utiliza,
comparando a estrutura emergente (com seu significado não
usual) à estrutura comum, dicionarizada, bem como a relação
dessa estrutura com a distribuição de papéis temáticos ao lon-
go da sentença, identificando se, de alguma forma, essa relação
teria algo a nos dizer sobre sua construção.
Tivemos a ideia e o interesse em pesquisar tais ocorrências
a partir da visualização que muitos verbos que são utilizados, a
depender da monitoração ou não da fala, deslocam-se de seus
significados usuais, dicionarizados, a ponto de trazer ao ouvinte
e, porquê não, ao próprio falante, uma estética e perspectiva
nova de entendimento da ação e sua descrição. Dessa forma,
159
começamos a realizar as buscas de forma intuitiva a fim de ex-
plorarmos quais poderiam ser as possibilidades de pesquisa
nesse campo do significado e da sintaxe, visto que ambas pro-
priedades eram alteradas. Nesse momento, pensávamos em
ocorrências como queimar-se, jantar, cair, ver, etc. para um pos-
sível trabalho de investigação. Após o estreitamento das pes-
quisas e a busca por diferentes referências, nos saltou aos olhos
a investigação feita por De Matos (2006), na qual ela constrói
uma ligação entre a abordagem temática trabalhada por Can-
çado (2005) e o entendimento da construção da comunicação
ao redor de metáforas proposta por Lakoff & Johnson (1980).
Dessa forma, esses se tornaram trabalhos basilares no desen-
volvimento de nossa pesquisa.
Como De Matos (2006) já havia trabalhado com grande par-
te dos verbos que encontramos mediante pesquisas na inter-
net e redes sociais, buscando os usos dos falantes, resolvemos
adotar o trabalho de análise dos caminhos que levam o verbo
jantar a sua possibilidade de entendimento polissêmica. Ob-
viamente, sabemos que os verbos trabalhados por esta autora,
em sua maioria, possuem mais do que 3 entradas para signifi-
cado, sendo muito produtivos, diferente do que ocorre com o
verbo jantar, para o qual se encontra somente 1 ocorrência que
vai além da dicionarizada. O motivo da escolha de tal verbo foi
seu uso recorrente e fácil de ser identificado nas redes sociais,
o que nos dá a impressão de que se trata de um vocabulário de
utilização de um determinado grupo. Dessa forma, entender
como se estrutura e quais são os parâmetros e perspectivas lin-
guísticas que fazem com que os usos possam ser modificados
e emergirem de tal forma sempre é válido, podendo desvelar
situações que não haviam sido pensadas anteriormente.
Assim, primeiramente, entenderemos melhor cada um dos
trabalhos desenvolvidos e quais são os atos que podem nos au-
160
xiliar nessa descrição para que possamos verificar e nos dedicar
à explicação do verbo em destaque: jantar.
162
Para Cançado (2005), segundo De Matos (2006, p. 31), exis-
tem quatro propriedades semânticas utilizadas para o estabe-
lecimento das Regras de Projeção da semântica na sintaxe: 1)
ser desencadeador ou não do processo/ação, 2) ser afetado pela
ação/processo, 3) ser ou estar em determinado estado; 4) ter o
controle sobre o desencadeamento, sobre o processo ou sobre o
estado. Dessa forma, temos as propriedades: desencadeador,
afetado, estativo e controle. Para a autora, o desencadeador es-
taria relacionado às ações/causações; o afetado relacionado ao
processo; enquanto o estativo aos estados. O controle coexiste
com as três citadas, mas nunca ocorre em isolamento, sempre
associado a animacidade, conforme nos fala a autora em rela-
ção à abordagem cunhada por Cançado (2005).
O objetivo desta nova forma de verificar a relação dentro das
proposições seria não necessitar da utilização de várias entradas
lexicais para cada sentido novo utilizado para o mesmo item -
nesse caso, a autora nos apresenta aos diversos usos possíveis
do verbo “quebrar” (quebrar o vaso/quebrar a empresa/que-
brar a cabeça/etc.), bem como a não necessidade de utilização
de duplo papel temático para um mesmo argumento, visto que
seriam atribuídas duas propriedades para esses casos.
Sendo assim, tendo representado as ideias gerais para esse
tratamento com os verbos polissêmicos, seguimos para outro
ponto interessante no trabalho com verbos polissêmicos: a
possível explicação para sua existência.
165
Dessa forma, podemos entender que encontramos maior
produtividade polissêmica em verbos que produzem e descre-
vem ações que remetem a experiências físicas. Concluímos, a
partir disso, segundo De Matos (2006) sobre a construção cog-
nitivista, baseados em um esquema modelo que propõe uma
visão primeira do evento, que temos a produção/criação de no-
vos sentidos que acompanham uma linha de raciocínio lógico,
apoiado em um sistema conceitual coerente. Portanto, como
pontuam Lakoff & Johnson (1980, p. 121) em um refinamento
do entendimento exposto no começo desta seção:
First, we have suggested that there is directionality in metaphor, that is,
that we understand one concept in terms of another. Specifically, we
tend to structure the less concrete and inherently vaguer concepts (like
those for the emotions) in terms of more concrete concepts, which are
more clearly delineated in our experience.
166
Apresentando o verbo: jantar
Para nosso trabalho com as ocorrências do verbo jantar, bus-
camos coletar sentenças variadas onde pudéssemos explorar a
maior diversidade estrutural possível, que se fizesse relevante.
Assim, após verificarmos as realizações do verbo em algumas
redes sociais (Facebook, Twitter, etc.) e também no campo de
pesquisas do Google entre postagens em blogs, matérias e ou-
tras formas textuais disponíveis, compreendemos que a me-
lhor saída para focar nas construções realizadas por falantes
do PB seria a escolha pelas ocorrências encontradas no Twitter.
Tratando-se de uma rede social, ainda que não em sua totali-
dade, de linguagem escrita, poderíamos ser beneficiados por
uma análise que se ativesse à sentença, sem dar margem ao
contexto das proposições, mesmo que isso seja, em alguns ca-
sos, como iremos comentar mais a frente, fator importante na
compreensão global do que objetivava ser dito. Ainda que pre-
zemos pelo trabalho somente com sentenças realmente escri-
tas por usuários, algumas das ocorrências utilizadas não foram
possíveis de encontrar correspondência no mundo real, ou seja,
na rede social Twitter. Ainda que não tenham sido utilizadas, as
ocorrências em questão, a partir da nossa intuição de falante
nativo, não foram identificadas como agramaticais. Dessa for-
ma, quando necessário, trazemos à discussão esses casos.
Delineando as sentenças a serem utilizadas, pesquisamos
especificamente as construções nas quais julgamos mais clara
a utilização não canônica do verbo jantar, tais como:
(1) a. Você foi jantado, irmão.
b. Emicida jantando a Pugliesi não foi uma jantada fitness, não.
c. Jantei minha mãe agora.
d. O dia que a Shivani jantou uma mulher que tem 41M.
e. Jantaram a mente da menina mesmo.
167
Aqui, demonstramos de forma ilustrativa qual foi o pa-
drão utilizado para a coleta de sentenças que pretendemos.
Em (1a), temos a ocorrência do verbo estudado na voz passi-
va. Em (1b), possuímos a ocorrência em uma estrutura única,
tendo a sentença com o evento jantar com dois argumentos,
bem como a utilização de “jantada” como substantivo derivado
do verbo jantar. Iremos comentar sobre essa realização mais à
frente. Em (1c), (1d) e (1e), verificamos as ocorrências mais bási-
cas do verbo; respectivamente, temos uma realização na pri-
meira pessoa do singular, na segunda pessoa do singular e na
terceira pessoa do plural.
Notamos, durante nossa coleta, que não seria necessária uma
descrição minuciosa da ocorrência do verbo jantar em todas as
pessoas por dois motivos bem claros: primeiro, a falta de tem-
po hábil para uma pesquisa dessa natureza; segundo, por uma
escassez de utilizações reais e autênticas dessas estruturas.
Portanto, decidimos por seguir com as ocorrências com maior
uso por quem utiliza a língua cotidianamente, sem extrapolar
tais realizações, ainda que elas fossem, em certo ponto, possí-
veis e possam, de algum modo, tornarem-se objeto de estudo
para futuros trabalhos. A partir daqui, faremos uma subdivisão
daquilo estudado: abordaremos primeiramente a construção
feita a partir da análise proposta por uma linha de abordagem
dos papéis temáticos mais robusta e que é utilizada em larga
escala; após isso, continuaremos com a abordagem proposta
por De Matos (2006) para análise de verbos polissêmicos em-
basada nas considerações e na abordagem cunhada por Can-
çado (2005) para que possamos entender ambas análises.
168
O verbo jantar e os papéis temáticos
Consultando as leituras de Ilari e Basso, 2014; Mioto Silva e
Vasconcellos, 2007 e Negrão, Scher, 2003, buscamos anali-
sar as ocorrências encontradas no processo de coleta de dados
descrito, objetivando entender como se estruturam e como a
estrutura emergente do verbo se diferencia da utilização co-
mum do verbo jantar. Sendo assim, buscamos um paralelo
que apresenta um princípio de análise que pode ser entendida
como uma base para posteriores investidas científicas.
A partir de Ilari e Basso (2014), buscamos vislumbrar uma
maneira de compreender a organização das sentenças enca-
beçadas pelos verbos e como estes se relacionariam com seus
argumentos em casos específicos. Nossa proposta, como já
apontado, consiste em, basicamente, trabalhar com as possi-
bilidades de significado do verbo jantar. Além de ser um verbo
de uso cotidiano (fato que pensamos ajudar na sua diversidade
de modos de estruturação), é um verbo comumente utilizado e
passível de grande ocorrência nas redes sociais em seu sentido
emergente. A partir disso, tentamos explicar, com base na teo-
ria temática, tal realização e alteração de significados.
O verbo jantar possui, a princípio, dois significados que nos
saltam aos olhos: o primeiro, seu significado canônico, “alimen-
tar-se à noite”; o segundo, seu significado não usual, em ques-
tão neste trabalho, o de “refutar e/ou humilhar alguém”. Pon-
tuando isso, podemos ver como as estruturas se apresentam:
(2) a. Jantou a homofóbica.
b. Jantei risoto ontem e ia comer o que sobrou, mas minha mãe deu
o resto para a vizinha.
179
vo). Seguimos com outras sentenças que nos auxiliarão nessa
análise:
(10) a. Haddad decidiu não mais jantar o bolsonarista Tarcísio nesse 1º
bloco #DebateNaBandsp.
b. Tarcísio decidiu não mais ser jantado por Haddad nesse 1º bloco.
c. Haddad decidiu não mais jantar sopa.
d. *A sopa decidiu não mais ser jantada por Haddad.
183
d. “Eu sou átila, biólogo e pesquisador e jantei na porrada quem dá
opinião sem base pra política de saúde pública.”
e. “Tá vendo essa cicatriz aqui na minha mão? Foi de quando eu
jantei o presidente no soco.”
185
b. Meu problema é a janta, fico compulsiva à noite e quero comer
de tudo.
c. Isso daqui foi uma JANTADA.
d. Uma belíssima jantada…
188
NEGRÃO, E. V.; SCHER, A. P.; VIOTTI, E. C. Sintaxe: explorando a es-
trutura da sentença. In: FIORIN, J. L. Introdução à Linguística: vol. II
Princípios de Análise. São Paulo: Contexto, 2003. p. 81 – 109.
189
A
pragmático
1 Introdução
Para iniciarmos o estudo se faz necessário conceituarmos o
que é “sociedade”:
Émile Durkheim entende a sociedade como superior ao indivíduo e
existe independente deste. Para ele, o indivíduo é apenas receptor de
regras e modo de viver da sociedade da qual faz parte. As regras foram
chamadas, pelo sociólogo, de fatos sociais. [...]
Para Karl Marx, a sociedade é heterogênea e formada por classes sociais
que se mantêm por meio de ideologias das elites.1
192
série de ataques de político para político na intenção de deixar
o público muitas vezes confuso com as informações e optar por
uma escolha que não condiz com suas ideologias ou que leva a
um alto índice de desinformação e rejeição ao voto.
Durante o debate em questão, ocorreram várias situações
que podem ser estudadas sob a ótica da (im)polidez, porém
optamos por selecionar quatro momentos, a saber:
• Diálogo entre a candidata Simone Tebet (MDB) e a candi-
data Soraya Thronicke (União Brasil), no qual Tebet cha-
ma Soraya pelo nome de outro candidato por engano e
logo pede perdão por isso.
• Diálogo entre a candidata Soraya e padre Kelmon (PTB),
onde a candidata chama o padre de “Padre de festa juni-
na”.
• Diálogo entre Tebet e Felipe d’Avila (Novo), que ocorre
respeito ao máximo entre ambos
• Diálogo entre Padre Kelmon e o candidato Luíz Inácio
Lula (PT), em que o padre faz o uso de vários insultos a
Lula.
-
do nos ambientes que frequenta. Empregar corretamente
-
sas com seu grupo social ou desconhecidos.
193
A noção de “face” adotada por Brown e Levinson (1987),
apresenta a distinção entre face positiva e face negativa. Veja-
mos o que Dias (2010) apresenta em suma sobre tal assunto:
A partir do pressuposto de que todo ser humano tem uma auto-ima-
gem pública que pretende preservar e de que a melhor forma de conse-
guir isso é respeitando a imagem do outro, Brown e Levinson formulam
sua teoria da imagem [...] Essa imagem ou face, nos termos de Brown e
Levinson (p. 62), apresenta dois lados: a imagem negativa — vista como
o desejo de qualquer pessoa de que suas ações não sejam impedidas
e de não sofrer imposições, ou seja, de ter o território respeitado pelos
outros — e a imagem positiva — que, por outro lado, refere-se ao desejo
que todo ser humano tem de ser aprovado pelos demais interlocutores,
de ter seus desejos compartilhados por pelo menos algumas pessoas
(DIAS, 2010, p. 37-38).
196
Sendo cooperativo, a conversa tende a fluir, porém não po-
demos deixar com que se torne algo em exagero, pois como
dizia Grice (1989) ser cooperativo significava não dar mais infor-
mações que o requerido, ou seja, ser cooperativo em excesso
nem sempre pode ser uma boa escolha de comunicação. Se
sempre pecarmos pelo excesso pode ocorrer que nossa auto
imagem se torne depreciativa e negativa. Dar mais informações
além das solicitadas tende a ferir nossa face pública se conside-
rarmos que as pessoas teriam baixa confiança em nossa ima-
gem e teriam extrema cautela em fornecer informações com
certo receio de até onde essas informações estariam “protegi-
das” em uma comunicação futura entre nós e outros falantes/
ouvintes.
Levando em consideração o exposto acima, considera-
mos que não existe uma face sem a outra, e que não há julga-
mento de valor entre os termos “positivo” e “negativo”.
198
Neste trabalho analisaremos momentos de debates jor-
nalístico midiático, que ocorreram na Rede Globo, no dia
29/09/2022, e contou com a participação dos candidatos
Ciro Gomes (PDT), Jair Bolsonaro (PL), Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), Luiz Felipe D’Ávila (NOVO), Simone Tebet (MDB), Soraya
Thronicke (União Brasil) e Padre Kelmon (PTB). O debate com
os candidatos à presidência contou com quatro blocos, obtinha
regras e foi mediado pelo jornalista William Bonner.
Soraya: Eu acho que o Senhor vai se dar mal com seu candidato, você
vai arrumar confusão aí perder o cargo de cabo eleitoral, mas vamos lá.
Quero aproveitar esse momento para mostrar que não tem propostas
só tem xingamento, e dizer [padre a interrompe e William Bonner cha-
ma atenção de Kelmon, Soraya então retorna]. Eu quero então aprovei-
tar esse momento pra dizer que eu não mandei o senhor para o inferno,
tá?! Mas eu perguntei se o senhor não teria medo de ir para o infer-
no porque o senhor não disse se que se deu nenhuma extrema unção
na pandemia, o senhor, a pergunta, o senhor não respondeu. Sobre o
imposto único eu vi que o senhor não estudou, o senhor tá parecendo
mais o seu candidato que é “nem-nem” nem estuda e nem trabalha,
200
o senhor não estudou. E dizer mais, não deu extrema unção porque o
senhor é um padre de festa junina.
204
O exemplo III entre Tebet e Soraya, houve um equívoco (ou
uma estratégia) por parte de Tebet, que chamou Soraya pelo
nome de outro candidato, Bolsonaro. Logo se retratou a fim
de manter sua imagem positiva e manter a de sua colega de
debate também, usando assim da estratégia de comunicação
com atenuação positiva. Visto que Tebet diz que “Jamais a des-
respeitaria” quando a chama pelo nome do outro candidato,
podemos inferir que Tebet não tem nenhuma afinidade com
Bolsonaro e acha desrespeitoso chamar outra pessoa por esse
nome. No entanto, quando profere essa sentença faz o uso de
uma estratégia para com o público e não diretamente com So-
raya, pois demonstra que ela não se importa com a imagem
construída pelo candidato Bolsonaro ao público e aos demais
participantes do debate. Com isso, Tebet realça a imagem ne-
gativa que ela tem construída sobre o candidato Bolsonaro e
não se importa em como sua imagem será representada pelo
mesmo, sugerindo assim um embate recíproco.
Houve comentários que Tebet e Soraya já se conheciam an-
tes, inclusive que Tebet foi professora de Soraya. Podemos pen-
sar que talvez por isso Tebet se referiu a Soraya proferindo “cê
sabe que eu sou mãe e professora”, pois sugere a proximidade
entre ambas além da estratégia de reforço das faces positivas.
O exemplo IV traz um momento onde se tenta demons-
trar uma maturidade entre Tebet e D´Ávila após uma série de
ameaças entre os candidatos envolvidos anteriormente, assim
estabelecendo a preservação das faces que estão em direito
de palavra no púlpito naquele instante, ou seja, um FTA com
atenuação e polidez. O proferimento “Senadora, chamei a se-
nhora para restabelecermos a civilidade. Discutir o Brasil. Chega
desse baixo nível que nós estamos assistindo hoje à noite que é
deprimente ver alguém que queira ocupar a presidência da re-
pública num bate-boca de botequim” deixa em evidência isso.
205
Por sua vez, quando Tebet vai dar sua réplica profere “Bom, é,
nós realmente divergimos, mas divergimos em alguns pontos
apenas” e explica onde ocorrem suas divergências e porquê.
O respeito em IV não demonstra somente a polidez entre
candidatos que estão cumprindo as regras, mas sim respeito
com o público que está em casa. Em contrapartida fere as faces
positivas dos seus oponentes fazendo assim um FTA com ate-
nuação negativa aos demais contendentes, visto que funcio-
na como uma “chamada de atenção” à falta de educação dos
demais neste momento de debate, o qual exige maturidade e
seriedade perante os demais presentes e ao público.
Tal situação preserva a face positiva tanto de Tebet quanto de
d’Ávila perante o público e fere a face de seus oponentes con-
tendentes. Além disso, demonstra o respeito construído entre
candidatos que observam os diálogos alheios quando seu opo-
nente está em debate e não é à toa que d’Avila chama Tebet.
Queremos afirmar que o fato de chamar a Tebet é porque o
candidato observou sua postura, analisou sua imagem e levou
em consideração todo interesse político, onde o reconheci-
mento que ela o proporcionaria seria propicio para as estraté-
gias futuras que favoreceriam o candidato. O jogo de interesses
não é somente manter a elevação de ambas faces, mas sim
aproveitar o momento positivo e negativo de outros candida-
tos para se reerguer e fazer com que seu nome se equivalha ao
de outro e principalmente, chamar atenção para com o público.
Ora, se o público pode estar gostando de atitude de X e se
está em Y, busca-se a aprovação social que X tem através dos
meios que X constrói sua imagem para os demais, assim deixa-
-se de estar em Y e passa-se para X.
Vale ressaltar que:
As estratégias de polidez positiva (2), por sua vez, incluem algum tipo
de ação reparadora e destinam-se a preservar a imagem positiva do in-
206
terlocutor. Tais estratégias giram em torno de três objetivos: ressaltar o
conhecimento compartilhado, a cooperação entre o falante e o inter-
locutor e mostrar simpatia pelos desejos do outro (DIAS, 2010, p. 41).
209
Línguas e literaturas
indígenas
A invasão da Língua Portuguesa em Abya Yala
na perspectiva Takariju
Introdução
Vivemos em uma sociedade que sempre esteve envolvida
em preconceitos, tanto racial quanto linguístico. Em outros ter-
mos, o prejulgamento é formulado antecipadamente, sem que
se conheça tradição, cultura, língua, características físicas das
pessoas que são vítimas dessa violência. Já a violência é expres-
sa a partir das ações ou atitudes discriminatórias contra outra
pessoa ou grupos sociais. No Brasil, o preconceito racial, ou
melhor, o racismo, está enraizado desde a chegada dos bran-
cos, ou seja, do início da colonização, em que foi imposta uma
cultura e língua totalmente diferente das línguas e culturas que
havia neste território, segundo Baniwa,
Historicamente os índios têm sido objeto de múltiplas imagens e con-
ceituações por parte dos não-índios e, em consequência, dos próprios
índios, marcadas profundamente por preconceitos e ignorância. Desde
a chegada dos portugueses e outros europeus que por aqui se instala-
ram, os habitantes nativos foram alvos de diferentes percepções e jul-
gamentos quanto às características, aos comportamentos, às capacida-
des e à natureza biológica e espiritual que lhes são próprias. (BANIWA,
2006, p. 34).
212
localizada na cidade de Ponta Grossa, no estado do Paraná,
Brasil.
O Departamento de Estudos da Linguagem (DEEL) da Uni-
versidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) é uma unidade
acadêmica responsável pelo ensino, pesquisa e extensão re-
lacionados à área da linguagem. O DEEL oferece cursos de
graduação, pós-graduação e desenvolve projetos de pesquisa
e extensão nas diversas áreas que compreendem os estudos
linguísticos.
Dentro do Departamento de Estudos da Linguagem, são
abordadas diferentes disciplinas e campos de estudo, tais como
linguística, letras, literatura, tradução, ensino de línguas, entre
outros. Essas áreas são desenvolvidas por meio de cursos de
graduação, como Letras Português/Espanhol e Letras Portu-
guês/Inglês, bem como por programas de pós-graduação, in-
cluindo mestrado e doutorado em Estudos da Linguagem. Vale
ressaltar que este programa oferece bolsas de estudos e cotas
para alunos.
Neste TCC, pretendo fazer uma exposição de como se deu a
invasão e implantação da língua portuguesa no território brasi-
leiro, a partir de uma perspectiva reflexiva da questão indígena
que luta contra essa colonização, a qual tive acesso por meio
das aulas que Felipe ministrou, e que versaram sobre todas es-
sas invasões linguísticas e territoriais. É um trabalho que tam-
bém se coloca a favor da permanência das línguas indígenas,
para que estas continuem vivas, ou seja, é uma luta contra o
estado que ainda quer destruir os povos originários mantendo
o processo do colonizador. Exporemos os percalços ocorridos
desde a colonização até os dias de hoje e as lutas pela liberta-
ção e reconhecimento do uso das línguas indígenas como parte
do patrimônio cultural e necessidade para a sobrevivência dos
povos nativos.
213
Sabemos que ainda existem estereótipos preconceituosos
desde a época dos colonizadores, que foram passados de ge-
ração a geração na sociedade brasileira, como o racismo, into-
lerância religiosa, preconceito de ideologia, intolerância cultu-
ral, com o reforço do preconceito linguístico, em um país onde
existem as mais variadas expressões orais. Ressaltamos tam-
bém a criação da falácia de que a língua considerada materna
das pessoas que vivem nesse território é a “portuguesa”, mes-
mo que o país possua uma configuração multilíngue por conta
das línguas indígenas.
Takariju (2021) entende a configuração brasileira como múl-
tipla em línguas orais, em que a língua materna do falante é
aquela que ele aprendeu desde criança em seu convívio social,
ou seja, a nativa coloquial, já a língua nacional e a língua oficial
do país, que é a língua comercial pregada e oficializada pelo
governo é considerada uma linguagem mais culta e tradicional.
Com isso, minhas perguntas nesta pesquisa são as seguintes:
por que se defende que a língua materna dos brasileiros é o
português? Quais as consequências da colonização para os po-
vos indígenas em relação às suas línguas?
Dessa forma, o objetivo geral deste trabalho é analisar os fa-
tos e contextos ocorridos na colonização, que mostram que o
português não é língua materna deste território, mas língua in-
vasora.
Já os objetivos específicos são verificar as consequências da
colonização em território indígena e as consequências que es-
tes colonizadores causaram nos povos originários, principal-
mente em suas línguas maternas.
A base teórica deste trabalho são as aulas do pós-graduan-
do Felipe Coelho Iaru Yê Takariju que, como já afirmei, foram
ministradas na disciplina de Prática I, da Universidade Estadual
de Ponta Grossa (UEPG), as quais receberam o seguinte título:
214
“Invasão da língua portuguesa”. Em suas aulas, Felipe se baseou
em autores indígenas, como Gersem dos Santos Luciano Ba-
niwa (2006) e Altaci Corrêa Rubim (2016) e nos seguintes au-
tores não-indígenas: Célia Collet; Mariana Paladino; Kelly Russo
(2017), Olimpia Maluf Souza; Wellington Marques da Silveira;
Ana Cláudia de Moraes Salles (2019). Por fim, foram utilizados
também o Referencial Curricular Nacional para as Escolas In-
dígenas (RCNEI) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Esta pesquisa justifica-se pela necessidade de se quebrarem
paradigmas em relação a um ensino colonial, no qual sempre
se ensinou e ainda se ensina para os alunos que o Brasil foi des-
coberto. Entretanto, sabemos que isso é uma farsa. O Brasil não
foi descoberto por Cabral e, sim, invadido por ele. Na obra “500
anos de angústia” (1999), o escritor Guarani Olívio Jekupé retrata,
através da poesia, esta violência que os europeus causaram nos
povos originários em 1500, pois já havia vidas neste território
antes da invasão, vidas que lutaram contra essa invasão e aca-
baram morrendo, sendo escravizados ou tendo que se adequar
a isso, sendo que no último caso passaram a ser nomeados
pejorativamente de “indígena bom” ou “mal”. Por isso, a base
teórica deste trabalho se dá pelo olhar indígena. Ainda segundo
Jekupé (1999), este país foi roubado pela coroa portuguesa no
tratado de Tordesilhas, em 1492, e posteriormente em 1500,
pela invasão portuguesa, sendo que até os dias atuais os povos
originários continuam sendo desrespeitados por muitos da so-
ciedade.
Vivemos em um país multilíngue que mantêm pensamentos
coloniais, um país com diversificadas línguas. Segundo Bruna
Franchetto, “não há apenas uma língua indígena. E elas não são
idiomas, são línguas no sentido pleno do termo, como qualquer
outra língua falada no mundo” (2010, p. 10). Melhor dizendo,
não existe apenas uma língua indígena no Brasil, mas, sim, vá-
215
rias línguas de diversos povos indígenas espalhados neste ter-
ritório, as quais carregam as regras e valores das suas comuni-
dades linguísticas. Por isso, as línguas indígenas são diferentes
umas das outras e ainda há, dentro das próprias línguas, dife-
renças dialetais. Nessa caso, este trabalho é de alta relevância
para auxiliar uma sociedade que luta por reais direitos humanos
linguisticamente.
A justificativa de por que escolher esta temática para o meu
trabalho de conclusão de curso se dá pela minha trajetória aca-
dêmica. Inicialmente, no primeiro ano de Letras Espanhol da
Universidade Estadual de Ponta Grossa, cursei a disciplina de
Prática I, em que tive um primeiro contato com o RCNEI e com
as normativas relacionadas à temática indígena. No segundo
ano da graduação, em algumas aulas de diacronia abordamos a
questão das apropriações culturais. Além disso, tive a oportuni-
dade de participar de projetos de extensão na universidade que
também tratavam desse assunto.
O primeiro projeto era justamente sobre temática indígena,
em que fiquei responsável pela digitação de materiais didáti-
cos de professores indígenas. Com isso, comecei a querer me
aprofundar mais sobre isso. Ao terminar este projeto, iniciei
outro em que seguia no mesmo ramo da temática indígena, a
diferença é que fazíamos atividades em escolas e formação de
professores, levando nosso conhecimento sobre tais temáticas
indígenas e afro-brasileiras.
Inicialmente, eu pensava em levar meu TCC para a área da
literatura, mas repensei e vi que minha área seria esta, a da de-
fesa dos direitos indígenas, o direito da sociedade de saber a
realidade a partir do relato de quem sofreu danos por séculos,
daqueles que até hoje têm marcas desta colonização. Com isso,
fiz minha proposta sobre o tema que queria trabalhar, que era a
implantação da língua portuguesa no Brasil. Então, a professora
216
Letícia me mandou os vídeos das aulas ministradas por Felipe
Coelho e perguntou se era aquele assunto que queria discutir
e era justamente aquilo que queria fazer. Fiz a transcrição, da
oralidade para a escrita, das três aulas em que Felipe abordava
este assunto.
Creio que este trabalho é de suma importância, principal-
mente por permitir que possamos acessar um material único,
que descreve a violência sofrida pelos indígenas neste país a
partir da sua perspectiva, de pessoas cujos ancestrais foram di-
zimados, maltratados, machucados e mortos, além de terem
suas línguas apagadas, mas jamais esquecidas, pois esses povos
lutam até hoje pelos seus direitos nesta sociedade que ainda
mantém costumes coloniais. Por isso tive a certeza que aqui
era meu lugar, um lugar da real história que ainda é ocultada
dos livros e da sociedade. Tive a certeza que estava no lugar
certo depois de participar do ENEI2 e sentir de perto a realidade
indígena que, muitas vezes, nós brancos, julgamos sem conhe-
cer o outro, sem saber a realidade de quem ainda sofre ataques
diários.
A metodologia de pesquisa utilizada para este trabalho se
baseia no estudo qualitativo feito a partir da transcrição e análi-
se do conteúdo das aulas do pós-graduando Felipe Coelho Iaru
Yê Takariju, em que explica como a invasão foi prejudicial aos
indígenas da época e aos seus descendentes e questiona o uso
da expressão “língua mãe” aplicada ao português, pois o territó-
rio já era multilíngue.
Com isso, a problemática deste trabalho diz respeito ao con-
junto que será apresentado das transcrições das aulas, com a
área da linguagem
Quando pensamos na colonização portuguesa, ocorrida en-
tre os séculos XVI e XIX, qual é a primeira coisa que vem à cabe-
ça? Normalmente, é o pensamento do colonizador, aquele que
temos impregnado em nossas mentes desde a nossa infância.
As escolas “tradicionais” contam que o Brasil foi “descoberto
em 1500 pelos Europeus de Portugal”. Nas palavras de Takariju:
Somos ensinados na escola pela educação “oficial”, desde cedo, que o
Brasil foi “descoberto e desbravado por corajosos e aventureiros euro-
peus”. Quem aí não conhece uma cidade do sudeste do país que tenha
o nome de um bandeirante ou coronel ou de qualquer outro ‘assassino’.
Sempre tem aqui um colégio com o nome do Castelo Branco que é um
dos primeiros coronéis da ditadura militar. O cara matou, torturou, fez
o que quis e ainda ganhou uma homenagem com seu nome em um
colégio (TAKARIJU, 2021).
220
Quando se trata desta afirmação “de base catequética, do
que conversora”, na frase já há uma controvérsia, pois “base ca-
tequética” já quer dizer conservadora, de uma cultura que se
deve seguir. Gersem dos Santos Luciano Baniwa (2006) ratifica
a afirmação de Takariju (2021):
A educação indígena no Brasil Colônia foi promovida por missionários,
principalmente jesuítas, por delegação explícita da Coroa Portuguesa,
e instituída por instrumentos oficiais, como as Cartas Régias e os Regi-
mentos. Assim, em todo aquele período, compreendido entre os sécu-
los XVI e XVIII, é praticamente impossível separar a atividade escolar do
projeto de catequese missionária (BANIWA, 2006, p. 150).
Toda esta ação jesuítica não foi nem um pouco educadora aos
indígenas, mas, sim, “uma ação etnocida, invasora, destruidora,
escravizadora, torturadora, racista e perseguidora” (TAKARIJU,
2021), pois eles não vieram só para implantar o sistema linguís-
tico, mas para também implantar seu sistema espiritual no Bra-
sil. Fizeram isso com o argumento de que estariam salvando
as almas dos povos originários, utilizando todas as artimanhas
para a civilização do que eles tratavam como “selvagens”.
Assim essa visão romântica que a autora Houaiss (1992) traz sobre o
texto dos jesuítas segue uma ideologia mentirosa dos invasores na for-
mação do Brasil então “a ação jesuíta não foi educadora, foi uma ação
etnocida, invasora, destruidora, escravizadora, torturadora preconceitu-
osa e perseguidora” porque quê eu digo tudo isso e porque os jesuítas
eles para implantar não só o sistema linguístico, mas também o sistema
espiritual no Brasil, que eles o chamavam assim, e para eles salvarem as
almas dos indígenas eles se utilizavam de todas essas formas e artima-
nhas, para que eles civilizaram as almas dos selvagens (TAKARIJU, 2021).
228
Então a alma do selvagem que estava em processo de civilização ele
sempre precisava de uma punição, então se você não rezasse na hora
que era pra rezar você apanhava se não trabalhasse na hora que tinha
que trabalhar você apanhava se não utilizasse as roupas que eram pra
usar você apanhava se não falasse na língua que era pra falar você apa-
nhava se não vivesse de acordo com as relações sociais que ele manda-
va você apanhava, por exemplo, as famílias como hoje nós conhecemos
com esse núcleo de pai, mãe e filhos, em uma casa é um modo que foi
trazido da Europa para cá.
Portanto, essa mentira colonial que vem sendo cada vez mais
aprofundada, sendo perpetuada no cotidiano, criando uma
cristalização de norma e naturalidade, fazendo com que ache-
mos que o Brasil e a língua portuguesa sempre existiram, isto
é uma farsa da colonização, ambas foram uma invasão, pois o
Brasil é uma invenção colonial, dos portugueses, de um estado
231
mercado, em que a língua portuguesa equivale à língua oficial
desta nação para sustentar a ideia de nacionalidade brasileira.
Quando a gente fala sobre a língua, não pode deixar escapar as outras
questões que atravessam esta questão linguística, porque a língua é di-
ferente do que muitos pensadores e cientistas que pensam, pois a lín-
gua não fica em um laboratório, bolha, num estado ideal vai estudar e
utilizar dela, a língua é dinâmica, cotidiana e da vida dos acontecimentos
em que ela atravessa a história, economia, sociologia, filosofia, ou seja,
tudo que atravessa a língua. Pensar na língua como um compartimento
e muito de um pensamento conceitual e trazido na forma de educar no
mundo moderno, é justamente essa forma de educar compartilhalizado
em que existem cursos em que são totalmente diferentes um dos ou-
tros e tem um compartimento como, por exemplo, o curso de humanas
não estão próximos dos cursos de exatas, com isso acham que não exis-
tem filosofia na física, matemática (TAKARIJU. 2021).
234
Figura 2- Mapa do Brasil
238
Portanto, por que um país gigantesco ainda tem traços tão
marcantes do colonialismo? Por que aqui nestas terras só uma
língua é oficial? O racismo é algo recorrente na sociedade atual,
a marca da dor em quem foi marcado jamais será apagada, no
Brasil há marcas de sangue de milhares de indígenas em sua
história, nada que possa ser feito pode apagar esta marca de
dor na raiz deste país, entretanto manter uma só língua como
materna, em um país de múltiplas línguas antes desta implan-
tação é algo errado. Este movimento pode ser comparado a
uma guerra entre mundos, como afirma Takariju (2021):
O movimento que a autora Houaiss (1992) faz deixa bem claro e evi-
dente que eu chamo de guerra de mundos porque é uma guerra de
mundos? Tira os ET e coloca os colonizadores e tira o tom e coloca os
indígenas, e foi isso que aconteceu aqui e ainda está acontecendo 521
anos de luta e guerra então são essas guerras de mundo cada povo e um
mundo. No mundo eu falo num sentido de algo fechado, mas ha aber-
tos, mas neste sentido podemos criar mundos em que cada povo e um
mundo, então essa guerra de mundos e os mundos europeus, portu-
gueses, franceses, alemães, ingleses, que invadiram mundos indígenas
que estão em guerras até hoje.
240
a língua portuguesa tratada como ‘’oficial’ que foi feita a partir do decreto
do diretório dos índios do marquês de pombal.
Com este decreto, por séculos esses povos não tiveram seus
direitos estabelecidos, foram vítimas de racismo linguístico, que
os obrigou a deixar de lado a sua real história. Sofrem desde a
invasão até a atualidade por suas demarcações territoriais, pre-
conceitos explícitos tanto pela sociedade quanto por governos,
que ainda creem que estamos em 1500, pois como sabemos
esta terra de fato é dos indígenas, pois já existiam vários grupos,
povos, aldeias vivendo aqui há mais de 20 mil anos (TAKARIJU,
2021) e os índios desta terra somos nós, os brancos.
Como se sabe, atualmente as escritas de autores indígenas
vêm ganhando cada vez mais espaço na sociedade contem-
porânea, principalmente por causa das teorias do pós-colonia-
lismo, pela visão daquele que sofreu e ainda sofre as consequ-
ências causadas por aqueles que invadiram um território onde
havia milhares de povos e línguas indígenas, estes que foram
dizimados por aqueles que são considerados os salvadores da
pátria brasileira, ou seja, os europeus portugueses, estes que
citam que descobriram um país, o Brasil. Entretanto, nestas
histórias contadas por estes, há uma grande lacuna que não se
encaixa com a realidade. Ou seja, as histórias que faltam nestas
lacunas é a verdadeira história deste país, são as histórias de
um povo realmente originário desta terra, uma terra em que há
ainda várias línguas, que luta por sua sobrevivência.
Inclusive, podemos tirar uma grande reflexão a partir da co-
lonização pelo olhar originário, pois paramos para pensar que
se realmente podemos dizer que a língua deste país é o portu-
guês. Nem para nós, falantes nativos desta língua, muitas vezes
ela é original, pois sabemos que dentro da mesma há variações
e ninguém a fala 100% a todo o momento. Nem todo mundo
é culto igual à lei garante que seja, a língua só é considerada
241
formal quando está sendo comercializada e nem assim é usa-
da, pois é introduzida outra língua, o inglês, ou seja, outra língua
que se torna mais importante para o comércio, conforme Taka-
riju (2021):
O avanço da língua dos colonizadores e do inglês é principalmente para
nós, Indígenas, o avanço da morte e do conflito com nossas singulari-
dades enquanto povo. O nordeste brasileiro teve as línguas de seus po-
vos nativos quase todas extintas por políticas linguísticas bilíngues. Não
queremos que isso se amplie aos outros povos irmãos e parentes que
ainda possuem essa ligação ancestral e esperamos que nossos parceiros
se juntem a nós nessa luta.
245
“A invasão da língua portuguesa”. Produção de Universidade Estadu-
al de Ponta Grossa. Realização de Takariju, Felipe Coelho Iaru Yê. Co-
ordenação de Leticia Fraga. 2021. (200 min.), Meet, color. Disponível
em: https://doc-14-2o-docs.googleusercontent.com/docs/secures-
c/9c3rjlmt8hu1f57u4rhgtrh3r8id432t/04icfq8rkl9fk7o2l0gfsno1ka7
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BANIWA, Luciano, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você
precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabe-
tização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
COLLET, Célia; PALADINO, Mariana; RUSSO, Kelly. Quebrando pre-
conceitos: Subsídios para o ensino das culturas e histórias dos po-
vos indígenas. Contra Capa, 2017.
COELHO TAKARIJU, Felipe Iaru Yê. Alienindi: Os portais do mundo.
Ponta Grossa: UEPG-PROEX, 2021.
MUNDURUKU, Daniel. Minha vó foi pega a laço, 2020. Disponível
em: https://www.geledes.org.br/minha-vo-foi-pega-a-laco/. Aces-
so em: 28 jun. 2023.
246
ANEXOS
249
A conversão dos povos indígenas a partir da catequese e uma
das tecnologias de invasão, destruição dos nossos povos, aí
continua “A ação jesuítica se definia pela compreensão de que
era a língua geral o caminho a seguir” que língua geral era essa?
O português? Não, ainda não essa língua geral foi uma que foi
criada pelos jesuítas a partir de uma unção do tupi com o por-
tuguês que é a língua nheengatu que não está sendo citada no
texto. Nheengatu foi uma língua geral que passou séculos junto
ao português como uma língua oficial no país.
Mas por que eles estavam querendo a língua geral nesse cami-
nho? Porque era o caminho que seguia a língua geral? Aqui no
Brasil hoje existem cerca de 1 milhões de povos indígenas no
país, naquela época no seara existia mais de 6 milhões de indí-
genas e destes eram várias nações e povos que tinham suas lín-
guas diferentes, o tupi era apenas um tronco linguístico, existe
o aruaque, yge, aruri, caribe, e todos esses troncos linguísticos
existem línguas a partir desses troncos, e essas línguas formam
povos, e esses povos formam clãs que formam famílias, todas
essas gigantescas constelações, galáxias, de povos indígenas.
Por que a língua geral era o caminho para seguir? Porque você
destruindo essas formas de diferentes formas linguísticas você
vai eliminando a comunicação, um exemplo que eles faziam
era que os jesuítas traziam não somente essa educação cate-
quética, mas também o aldeamento de demissão indígena, que
a autora não comenta em seu trabalho, porque dá a impressão
que só os jesuítas chegaram às aldeias indígenas e tentavam
ensinar os índios, porém não, pois eles criavam aldeamentos
de missões indígenas que eram um pedaço de terra que eles
pegaram e ocuparam, invadiam que ali eles montavam um al-
deamento de missão jesuítica, e esse aldeamento eles captura-
vam vários povos de diferentes etnias, e jogavam todos dentro
250
de uma única casa para eles se entenderem, e muitas vezes
eles eram inimigos/rivais uns dos outros.
Como é que esse povo iria se entender? Os jesuítas iam lá e
ensinavam a tal da língua geral, e com esse ensino que muitas
vezes não era o tupi e tinha que ensinar o nheengatu.
E se eu não aprendesse? Você não tinha a opção de não querer
aprender, pois se não você seria açoitado, torturado, assassi-
nado, então aqueles que não aceitavam eles fugiam, resistia,
guerreavam, e eram trazidos e tratados pelos jesuítas como ín-
dios selvagens, e aqueles que por outro motivo ficavam nessas
aldeias/aldeamentos que tinham uma simpatia maior pelos
portugueses esses eram chamados de índios mansos.
Então a história do Brasil e principalmente da língua portuguesa
ela só conta a partir desses indígenas que se “sujeitaram” a isso,
os outros não.
E porque ainda existem tantas outras línguas indígenas? E por-
que esses indígenas se rebelaram, e mesmo aqueles que se re-
belaram que não quiseram aprender essa língua geral também
sofreram consequências por uma questão e outra, e também
perderam a sua língua mãe, materna caso de umas línguas
como a daqui do povo do Ceará.
E por que isso? Porque o nordeste foi o primeiro na invasão,
porque eles chegaram lá na Bahia e se espalharam por Pernam-
buco, Ceará, maranhão, depois que eles foram descendo para
o resto do brasil.
Então se hoje o inhauma-me ainda fala a língua dele e muito
por consequência da nossa luta, nós barramos essa entrada o
quanto antes, para o interior.
E hoje eles estão fazendo isso, destruindo a Amazônia, e toda
aquela região que já fizeram no nordeste.
Às vezes fico pensando: será que nosso sertão era sertão
mesmo? Ou passou por um processo de dissertação e destruição
251
destes invasores, será que aquilo ali sempre foi assim? Eu me
pergunto sobre isso.
A educação como foi implantada aqui ela é um instrumento de
invasão e colonização, às vezes fico pensando “ai a educação
muda tudo” calma, ela realmente muda tudo, hoje a gente so-
mente fala o português aqui, o ensino se deve muito a educa-
ção ou a falta dela.
Eu tenho certas críticas ao sistema educacional do Brasil, pois
é um sistema que não é plural e sim binário homogêneo, e não
podemos romantizar isso dessa forma. “somos ensinados na
escola pela educação “oficial”, desde cedo que o Brasil foi des-
coberto e desbravado por corajosos e aventureiros europeus”
quem aí não conhece uma cidade do sudeste do país que tenha
o nome de um bandeirante ou coronel ou de qualquer outro
“assassino” sempre tem aqui tem um colégio com o nome do
castelo branco que é um dos primeiros coronel da ditadura mi-
litar, em que o cara matou, torturou fez o que quis e ainda ga-
nhou uma homenagem com seu nome em um colégio.
Lá no coleirinho na entrada há uma estátua do governador ge-
ral do Brasil o cara que mais assassinou indígena e tem uma
estátua do cara lá.
E isso não é só uma questão histórica, hoje também acontece
isso, existem várias figuras que num passado recente fizeram
coisas absurdas em relação a o nosso povo que hoje são cele-
brados por inclusive povos nossos.
Então essa é a primeira mentira que funde o Brasil a menti-
ra do descobrimento, a mentira que essas pessoas chegaram
aqui trazer essa “luz”, o “progresso”, a civilização, e essa mentira
que ainda continua alimentando essa história essa ideia de que
alguém vai chegar e vai tomar a presidência e a nossa vida irá
mudar.
252
A história do fulano livre que irá se libertar e todos os demais
também, que sempre haverá um salvador da pátria, tendo
sempre um herói.
Esse mito de fundição é muito comum, se pegar as tradições
europeias é comum que tenha essa figura de um homem sen-
tado em um cavalo gritando “independência ou morte” e o ou-
tro Deodoro da Fonseca da área pública, Getúlio Vargas, sem-
pre tem um melhor presidente do Brasil, sempre tem alguém
que é o “cara”.
Assim essa visão romântica que a autora traz sobre o texto dos
jesuítas segue uma ideologia mentirosa dos invasores na for-
mação do Brasil então “a ação jesuíta não foi educadora, foi uma
ação etnocida, invasora, destruidora, escravizadora, torturadora
preconceituosa e perseguidora” porque quê eu digo tudo isso
e porque os jesuítas eles para implantar não só o sistema lin-
guístico, mas também o sistema espiritual no Brasil, que eles o
chamavam assim, e para eles salvarem as almas dos indígenas
eles se utilizavam de todas essas formas e artimanhas, para que
eles civilização as almas dos selvagens.
Então a alma do selvagem que estava em processo de civiliza-
ção ele sempre precisava de uma punição, então se você não
rezasse na hora que era pra rezar você apanhava se não traba-
lhasse na hora que tinha que trabalhar você apanhava se não
utilizasse as roupas que eram pra usar você apanhava se não
falasse na língua que era pra falar você apanhava se não vivesse
de acordo com as relações sociais que ele mandava você apa-
nhava, por exemplo, as famílias como hoje nós conhecemos
com esse núcleo de pai, mãe e filhos, que eu vivo em uma casa
e você em outra isso é um modo que foi trazido da Europa para
cá.
Mas não no modo de produção, pensamento indígena porque
os povos viviam dentro de uma casa com seis famílias essas fa-
253
mílias todos eram parentes por isso que a gente se trata como
parentes, porque a forma da gente pensar nas relações nosso
psicológico é totalmente diferente, e até isso os jesuítas chega-
ram torturando, invadindo, destruindo juntamente com a lín-
gua.
A língua era esse vetor atravessado então à base catequética
conservadora na prática e na ideologia jesuítica da coroa por-
tuguesa foi e ainda é um sistema implantado à custa das vidas
indígenas, e até hoje isso é implantado, ele vai se atualizando,
porque a ideia deles é a ideia desse estado moderno e transfor-
mar todo mundo em uma forma de consumir e ser consumidos
pelo consumo.
Para nós indígenas os jesuítas não são heróis, eles são invaso-
res e assassinos e destruidores do mundo e esses que foram
citados no texto, Manuel da Nóbrega e José de Anchieta são os
piores e eles são citados em São Paulo como um dos fundado-
res da cidade.
A primeira pancada que temos que entender quando se trata
não só de sobre língua porque o negócio não é só língua portu-
guesa, pois não está apartada do mundo, ela está conectada a
todas as coisas que falei.
Quando se trata de povos indígenas do Brasil, essa questão
histórica não tem como contornar isso, na verdade até tem se
você tiver uma ideologia colonizadora por trás, aí você contor-
na a história direitinha por trás com isso se cria uma história
de heróis e não dá ouvido a narrativas, perspectivas, dos povos
que estavam aqui antes destes tais heróis chegarem.
Outra citação do texto “Durante três séculos, foram os jesuí-
tas os educadores no brasil.” aí pensamos que 300 anos des-
se negócio, aí imagina se que muitas línguas indígenas foram
assassinadas e destruídas, e muitos povos sumiram também
em trezentos anos com esse contato com o mundo ociden-
254
tal/moderno, mas em vinte mil anos entre os povos indígenas
não aconteceram isso, mas em trezentos anos com esse povo
que veio a essa outra parte do mundo aconteceu isso. “a autora
insiste na perspectiva dos invasores, onde ela os vê como edu-
cadores”. Essa
Perspectiva de ver a história e contá-la é uma perspectiva que
nada contribui com as lutas
Indígenas, pelo contrário, ajudam a colocar as perspectivas lin-
guísticas indígenas como inferiores, porque como inferiores, se
os jesuítas estavam chegando aqui para educar os indígenas e
que os indígenas estariam fazendo as coisas erradas.
Então a gente não tinha um “saber” e ai eles vem trazer esse
saber para gente, que é a história que a ideia que o pensamento
dualista, binário, trazendo as caravelas para cá, ou é homem,
mulher, e branco ou preto, certo ou errado, menino ou menina,
azul e rosa como diz aquela criatura lá, e a gente vai se condi-
cionando então foram 3 séculos de ou e um ou de outro, essa
questão é também estrutural, mas na questão fixa maleável,
que se adapta a um vírus e uma nova cetra pra ir recolonizado,
devemos prestar atenção em tudo que ouve e escuta e lê de
forma crítica, principalmente quando estamos neste local de
privilégio uma universidade pública.
Esse movimento que a autora faz deixa bem claro e evidente
que eu chamo de guerra de mundos porque é uma guerra de
mundos? Tira os ET e coloca os colonizadores e tira o tom e
coloca os indígenas, e foi isso que aconteceu aqui e ainda está
acontecendo 521 anos de luta e guerra então são essas guerras
de mundo cada povo e um mundo.
Mundo eu falo num sentido de algo fechado, mas ha abertos,
mas neste sentido podemos criar mundos em que cada povo e
um mundo, então essa guerra de mundos e os mundos euro-
255
peus, portugueses, franceses, alemães, ingleses, que invadiram
mundos indígenas que estão em guerras até hoje.
Umas parcelas destes mundos querem que os outros mundos
se tornem iguais a eles e esses outros mundos não querem que
todos sejam indiferentes como eles são.
A questão linguística da língua é uma questão de guerra de
mundos porque quando essa língua foi implantada deixando
de falar a língua materna e começo a falar uma língua portu-
guesa que é uma língua invasora de certa forma perde a co-
nexão com o ancestral, mas não totalmente por isso existe o
processo de retomada.
Mas a língua é instrumento de conexão consagrada com um
ancestral, natureza, a nossa língua não é só algo que seja o sig-
no de um significante que seja só para falar e comunicar, as
nossas línguas são chaves para abrir portais, curas, etc…
A língua para nossos povos ela tem outras perspectivas, Mas
também a para a comunicação, já para os portugueses eu não
sei se existe essa conexão com a linguagem, língua, ao não ser
essa da comunicação.
Continuação do vídeo parte 2
“Então como eu estava falando na última aula sobre essas
mentiras coloniais que a língua portuguesa e a nossa “língua
materna” então eu digo aqui” A língua portuguesa é uma lín-
gua invasora, ela foi transplantada e implantada, assim como
uma cirurgia, uma mutação, um vírus que corrói todas as outras
línguas indígenas tomando-se oficial, pela maquinaria burocrá-
tica-conceitual colonial, ganha força de destruição das outras
línguas indígenas. ’’ ou seja e quando se destrói uma língua in-
dígena não se destrói somente a língua mas também todo um
modo de vida que é baseado nesta língua.
256
Assim como existe todo um modo de vida que são baseadas na
língua portuguesa, nas expressões viver e se expressar, existe
também essas formas na língua indígenas.
E essas línguas indígenas e as que foram destruídas assassina-
das hoje não existem mais, então essas formas e mundos fo-
ram perdidos.
A partir do pensamento reducionista e binário dos invasores
portugueses os conceitos de certo e errado traduzidos no con-
ceito de ‘’oficial’’ transformaram as línguas indígenas em línguas
inferiores ‘’selvagens’’. E a língua portuguesa tratada como “ofi-
cial” que foi feita a partir do decreto do diretório dos índios do
marquês de pombal foi tornada oficial, “O que não era ‘‘oficial’’
era ‘‘errado’’ e sem prestígio”. Então se você não falasse o portu-
guês estaria errado e sem prestigio que era como um status, ‘’ O
racismo é típico do pensamento Colonial ocidental e o racismo
linguístico também. ’’ porque você falar outra língua que não
era oficial iria sofrer alguns preconceitos tanto como linguísti-
cos quanto os de toda ordem. os povos indígenas eram vistos
como selvagens, sem civilização.
A implantação e o transplante da língua portuguesa não efeti-
vou só uma mudança de uma língua, modo de vida, mas tam-
bém demarcava e ampliava a colonização. “““ “““ Missão da lín-
gua portuguesa definitiva com a vinda de famílias de imigrantes
portugueses, mas, principalmente como diretório dos índios” e
aquilo que eu havia citado sobre o marquês de pombal,” im-
plantando após a expulsão dos Jesuítas, em 3 de Maio de 1757,
pelo Governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado com
o aval do Marquês de Pombal é aplicado a princípio no Pará e
no Maranhão e no ano seguinte em todo o Brasil.” tratando em
termos históricos isso foi uns dias desses, não faz muito tem-
po em que a língua portuguesa e tratada como oficial, no en-
tanto muitos professores e pesquisadores do português ainda
257
afirmam que ela é uma língua materna, pois eles creem que
nascemos já introduzidos na língua portuguesa, mas isso não é
uma verdade absoluta já que existem mais de 270 línguas indí-
genas, então a língua portuguesa como língua materna é uma
invenção, mentira colonial.
E essa mentira colonial sendo perpetuada no cotidiano ela cria
essa cristalização de norma e naturalidade, fazendo achar um
Brasil e a língua portuguesa sempre existiram, mesmo elas sen-
do uma invasão, pois o Brasil é uma invenção, estado marcado,
estado nação, e a língua portuguesa e a língua oficial deste es-
tado nação.
Quando a gente fala sobre a língua, não pode deixar escapar as
outras questões que atravessam esta questão linguística, por-
que a língua é diferente do que muitos pensadores e cientistas
que pensam, pois a língua não fica em um laboratório, bolha,
num estado ideal vai estudar e utilizar dela, a língua é dinâmica,
cotidiana e da vida dos acontecimentos em que ela atravessa a
história, economia, sociologia, filosofia, ou seja, tudo que atra-
vessa a língua.
Pensar na língua como um compartimento e muito de um pen-
samento conceitual e trazido na forma de educar no mundo
moderno, é justamente essa forma de educar compartilha liza-
do em que existem cursos em que são totalmente diferentes
um dos outros e tem um compartimento como, por exemplo,
o curso de humanas não estão próximos dos cursos de exatas,
com isso acham que não existem filosofia na física, matemáti-
ca.
‘’ O Marquês de Pombal sentindo a língua portuguesa ainda re-
alizada pela língua geral, uma mistura da língua indígena com
o português, tornou obrigatório por um por um instrumento
legal, o ensino de português no Brasil- Um fato já Consumado
apenas sancionado então por ele. A finalidade era abolir essa
258
língua geral e impor a chamada ‘’língua do Príncipe’’, ou seja, o
português de Portugal. ’ ’
“Então, assim como é colocado no texto à língua portuguesa
não é a língua Mãe, é uma instituição invasora e seu modo é de
implantação e racista” Racista por quê? Quando você implanta
algo que é oficial, aquilo que não é oficial é visto como errado, e
terá punição, que recai nos falantes de outra língua fora a oficial,
naquela época os povos que não eram falantes eram a maioria
os indígenas.
Então os povos indígenas foram caçados a partir desta implan-
tação racista da língua portuguesa, então a língua do príncipe
como era referida a língua portuguesa marquês de pombal, e
elevada a uma língua única e oficial, e virou lei e com isso há
uma punição para quem não cumpre a risca, ou seja, a lei e a
língua trabalham no mesmo universo, apesar de serem dife-
rentes, mas atravessam.
A língua cria essa ideia de oficial, e se oficializa através das leis.
Então os povos indígenas e suas línguas maternas são alvos
destas leis, em que elas transformaram o português uma língua
oficial, que foi mais um instrumento e tecnologia de invasão e
destruição dos povos indígenas.
A colonização vai avançando e destruindo cotidianamente
dando a impressão de movimento natural da colonização.
Esse movimento de colonização por ele ser esse movimento
de processo cotidiano ele está acontecendo neste momento
em Brasília que querem aprovar a pé 490 do marco temporal
é um processo colonizador, ou seja, a colonização não acabou
não é um marco histórico, data que começou em 1500 e ter-
minou quando o Brasil “apareceu” com a proclamação da re-
pública do Brasil, a colonização está ocorrendo até hoje, é um
dos mitos em relação a isso é justamente tratar ela como se es-
tivesse acabado, pois ela está em processo, por isso os indíge-
259
nas lutam por essa colonização e suas demarcações territoriais,
também para que suas línguas continuem vivas, então esta luta
contra o estado ainda quer destruir e um processo colonizador.
Um trecho de como o marquês de pombal e seu povo tratava
os povos indígenas, “Sempre foi máxima inalteravelmente em”
todas as missões que praticaram novos domínios em introdu-
zir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma por ser
indispensável eram uma máxima dos colonizadores introduzir
nos povos conquistados o seu próprio idioma, porque se estiver
um idioma único é muito mais fácil de unificar os pensamentos.
Não é nem um povo, porque todo o território brasileiro falante
de português, não se torna homogêneo, então a ideia de um
idioma único no país e para trazer essa ideia de unidade e sobe-
rania, que é a principal ideia central do estado nação, em que o
mesmo é soberano linguisticamente, nas fronteiras e com isso
notamos que o Brasil é dividido em fronteiras, e soberano em
sua economia.
Então a língua é utilizada de maneira legítima da soberania des-
se povo que quer dominar outros povos, por isso ele cita que é
indispensável que este é um dos meios mais eficazes para des-
terrar os povos rústicos a barbaridades dos seus antigos costu-
mes então esse é dos meios mais eficazes para transformar os
povos que ele chama de rústicos e bárbaros destruindo seus
antigos costumes, ou seja, não se destrói apenas uma língua,
mas também um modo de vida.
“Ao mesmo passo centro dois neles o uso da língua do Príncipe,
que os conquistou” aqui traz aquela ideia de colonização finali-
zada, colocando que a invasão como algo conquistado, mesmo
que isso não se reflita na realidade, mas na cabeça deles fomos
conquistados.
Isso faz a diferença, pois vai ser perpetuado na educação, em
que falam que o Brasil foi descoberto, que dom Pedro declarou
260
a independência, e todas as mentiras declaradas a este criando
um herói acerca disto, do estado nacional.
“Esse relato do Marquês de Pombal explicita o colonialismo
na linguagem e a língua portuguesa como um instrumento de
colonialismo linguístico é indispensável como arma de invasão
e colonização” assim como também outros países da Améri-
ca como a língua espanhola foi esta língua de colonização, e
é recendo não é algo natural e sim inventado implantado vio-
lentado, quando se pensar em estado nação devemos pensar
que estado e este, como a angola que foi colonizada pelos por-
tugueses, em que eles têm um histórico de violência praticado
pelos portugueses.
Para os indígenas é indispensável que quebrem essas mentiras
coloniais, e que o português não é uma língua materna e sim
uma língua invasora, assim como muitas plantas no Brasil que
são invasoras que são de outro canto.
O processo de colonização acontece no início da trajetória es-
colar, como o dia do índio, em que a criança é pintada e já vai
induzir que o indígena fosse uma caricatura, fantoche, em que
ele não existe mais e foi um período histórico do nosso país, um
primitivo que hoje em dia não existe mais.
Se não conectar o indígena com o do passado ele é conside-
rado um falso indígena, em que o mesmo não possa usar as
tecnologias e mantenha primitivo, enfim são vários mitos que
são reforçados pela educação.
A educação pode servir a muitos senhores, mas muitas pessoas
nunca tiveram professores indígenas, principalmente por um
país ser majoritariamente indígena e nem muito menos uma
referência a eles.
“Os diferentes instrumentos e Tecnologia de invasão utiliza-
da pelos invasores para destruir os modos de vida indígena é
implantar o modo de produção Colonial atravessou tudo que
261
compõem a vida, assim outras plantas da língua invasora e o
status de língua oficial cria pelo valor simbólico que se efetiva
no cotidiano” existe essa norma de falar o português e quem
fala fora dela e visto de forma sem valor, não domina a língua,
pessoa com menor cognitiva, como se ela fosse inferior, porém
existem várias formas de pensar na inteligência, “Essas tecno-
logias ainda são utilizadas a partir de suas atualizações junto ao
mercado capitalista” se a língua portuguesa foi tratada como
uma língua invasora e foi tratada como oficial, hoje as atualiza-
ções linguísticas de mercado capitalista como o mercado trata,
hoje recai sobre outras línguas como inglês, espanhol, francês
etc..
Atualmente, se for a um mercado de trabalho e for um traba-
lhador que não sabe falar uma segunda língua, é visto como
uma pessoa inferior ao mercado de trabalho, então deve sem-
pre ficar atualizando e isso gira sempre em torno do mercado
de trabalho.
As atualizações linguísticas nesse sentido, como um doutorado,
só podem ser feitas somente se você souber inglês, pois o mer-
cado acadêmico gira em torno deste tipo de mercado.
Problematizando o porquê essa língua é obrigatória, ela não é
obrigada de graça, nem naturalmente porque é a melhor lín-
gua, será que e porque os estados unidos e a maior potência
destruidora do planeta, ou, porque o mercado fala inglês, talvez
uma norma? Mundial, são perguntas para se pensar Eu penso
muito no conceito de diferença e identidade no sentido de va-
riação, ou seja, a variedade e diferente que a diferença, a varie-
dade e uma variedade do mesmo, como a variedade da língua
portuguesa que vem do português europeu, têm uma matriz,
norma, sempre se aproximando porque isso é através de uma
variedade, já a diferença e diferente não existe uma semelhan-
ça, analogia, e isso eu penso através das diferenças das identi-
262
dades, do ser humano, em que ele é essa identidade e existem
as variedades do humano que estão sempre tentando se apro-
ximar, e aquele que não tenta aproximar que é pra diferente
ele é taxado como alguma patologia mostra bárbaro, selvagens
etc. Ou seja, não é uma coisa do humano e esse conceito de
diferença e variação e um conceito, em que ele pensava sobre
tudo, e ele queria justamente trazer essa variação do absoluto.
Sempre é colocada a diferença como algo ruim, como falar que
uma pessoa é ruim, irá ficar com medo porque não encontra
uma semelhança.
A ideia de semelhança que ele traz vem desde Aristóteles, se
for pegar o fio da meada de como se criou este estado nação,
esta forma da língua, que é uma relação com a vida, à linguís-
tica no curso de letras não fica somente presa à língua, pois ela
pode ser debatida em outro viés. A língua é um emaranhado em
que se vai tirando os fios e observa que estão conectados, mas
não são únicos, são coisas diferentes que estão conectados em
redes, é esse e o pensamento indígena são coisas diferentes,
mundos, que estão conectados em redes e dialogam entre eles
e não tem medo de ser diferentes, já na língua portuguesa ao
ser diferente da língua indígena quis ser à única, e atualmente
ainda tenta ser, de várias formas.
Continuação parte 3
Colonialismo Linguístico língua portuguesa como arma de
invasão’ ’Para desterrar esse preciosíssimo abuso, será um dos
principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respec-
tivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo
por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que perten-
cerem às Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes
de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas
Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa,
263
na forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas
ordens, que até agora se não observaram com total ruína Es-
piritual, e Temporal do Estado’’. As majestades da época eram
intelectualmente pobres, eram pessoas que estavam ali sem
nenhuma contribuição intelectual, “entretanto não foi apenas
um decreto que tomou possível o restabelecimento da língua
portuguesa como padrão este se deve a fatores de unificação
como a língua escrita culta e ainda a língua falada pelas elites
e o ensino preconizadas nas escolas” Quando se institui a lín-
gua portuguesa como oficial de certa forma se institui uma di-
ferença entre oralidade e escrita, não só uma diferença do que
já é, mas também no status, prestígio, porque até determinada
época no Brasil quem sabia ler e escrever havia outro tipo de
status, até hoje se falam em acabar com o analfabetismo, ou
seja, a escrita para muitos povos indígenas não é um instru-
mento de ensino, passagem de visões e narrativas de mundo
ela é uma língua oral, então para alguns povos indígenas não é
interessante aprender escrever.
Até que ponto escrever não é um grafismo, pode ser uma
letra ou um desenho, até que certo ponto os povos indígenas
não sabem escrever? Atualmente vemos que a escrita está ga-
nhando porque a oralidade não tem muito prestígio, quando
fala que você ouviu e aprendeu na oralidade não há certo regis-
tro daquilo, pois podem falar que é uma invenção, porém quem
escreve não é uma invenção?
Mais uma vez os conceitos eram implantados e realizados
no cotidiano que vai influenciando a modo de vida e relação
das pessoas normatizando tudo normal diferente de natural,
mas eles tentam normalizar a norma em algo natural, hoje se
diz naturalmente que a língua portuguesa e a língua materna e
isso foi condicionado como norma, mas ela não é naturalmente
uma língua materna.
264
Continuação parte 3
Colonialismo linguístico: língua portuguesa como arma de in-
vasão, aqui são as partes que eu trouxe do texto, que eu já havia
terminado, então eu só vou recapitular para saber onde parei,
’’Para desterrar este preciosíssimo abuso, será um dos principais
cuidados dos Diretores”, gerais transformar a língua como algo
oficial, e o porque, que a língua transformada como oficial eles
não queriam ensinar a maioria dos povos indígenas? É porque
esta língua era que eles utilizavam para poder fazer seus arqui-
vos oficiais, portanto como é que eu vou fazer estes arquivos
oficiais e ensina a língua oficial dos arquivos a pessoas que eu
estou querendo controlar, então não faria sentido, para alguns
indígenas eles ensinavam, mas estes a quem eles ensinavam,
eram indígenas com quem eles poderiam contar.
Eu estava lendo um livro descolonizando metodologias:
pesquisa e povos indígenas da Linda, em que ela retrata muito
isto, tem uma parte dele entre o capítulo 3 e 4. A autora não
trata somente das metodologias, mas sim também a questão
da história, espaço, tempo, questões conceituais de como isto
foi criado para montar este mundo moderno, também fala em
como a linguagem é essencial para a criação deste mundo mo-
derno a linguagem como única, como um único centro de pen-
samento de uma estada nação, no caso dela e o inglês, mas
para nós e o português.
Ela cita que só existe uma forma de pensar a pesquisa que
tenha a haver com este pensamento colonizador, e que temos
que superar isso, e pensar em outras formas, e respeitar a nossa
história e de nossa família, os conhecimentos que aprendemos
com a família e as pessoas ao nosso redor.
Quando ela fala de como foi criada esta “psique” o mundo
moderno através de Freud, e em como ela pensa que a partir
desta criação, se cria as relações, e quando se quer criar quase
265
todos os índios ou de descendência Índia, é outro mito vamos
parar de usar esta palavra “índia”, pois é uma palavra pejorati-
va para os indígenas. Os falares gerais, porém, foram pouco a
pouco empurrados para os Sertões. “Nas cidades litorâneas, só
se falava a língua dos colonizadores que representava fator de
status”. E aqueles indígenas que se destacavam eram levados
para a Europa, os povos indígenas não eram seres desconhe-
cidos na maioria europeus, na Europa tem muitos registros dos
povos indígenas.
“E para além dessas informações trazidas pela autora, exis-
tem outras histórias que não são “oficiais”, mas são verdadeiras
e aconteceram” como histórias familiares, que não são oficiais,
mas elas aconteceram e são verdadeiras, pois estamos aqui
para conta-las e provar, “
Essas histórias são passadas pela oralidade dos povos indíge-
nas’’ Está oralidade pode ser utilizada de várias formas, “E em
vários desses relatos é possível perceber e verificar que os in-
dígenas e que não falavam português eram presos, Torturados,
sofriam preconceito e isso fez com que muitos indígenas para
não serem perseguidos sós por serem indígenas e falar em sua
língua ensinassem o português as outras gerações.” Minha bi-
savó relatou muito isso que ela foi ensinada assim, que tinha
que parar de falar a sua língua porque a família era perseguida,
“ Aprender a falar português para alguns povos indígenas foi
uma tática de sobrevivência e, principalmente no nordeste, lo-
cal por onde as invasões começaram.” Então aqui não tem nada
de uma língua materna, pois nós não aprendemos a língua ma-
terna por opção mas sim uma imposição para não morrer.
A língua portuguesa não só ganhou poder de “oficial”, mas
também ganhou um valor simbólico referente ao modo de
produção capitalista que os invasores implantaram aqui como
modo de vida único e “oficial”.
266
Esse valor simbólico era/ é expressa pelo domínio da Norma
culta de se falar a língua de forma “correta”. “Quem tinha este
domínio era considerada a pessoa “superior”, alto falante da lín-
gua geral e aos falantes de outras línguas indígenas.”.
“Esse valor simbólico não se exerce apenas na língua invaso-
ra, mas também na sua cor de pele e, nas suas tradições e nar-
rativas em tudo que vem da Europa”, ou seja, a língua neste caso
no aspecto superior de quem sabia falar e quem domina essa
língua está relacionada à questão de raça, visto que esta ques-
tão não tem nada haver com questão biológica, questão de
raça são questões historicamente construídas. Então se histo-
ricamente a língua portuguesa foi construída como uma língua
“SUPERIOR” então ela foi construída estruturada no racismo.
Um racismo linguístico, “Assim”, o racismo linguístico é uma das
práticas de racismo que os ocidentais europeus implantaram
aqui no como sistema de produção vertical e hierárquico, assim
como, por exemplo, o racismo outra forma de pensar, ou seja,
descolonizar estar metodologias, não se pode continuar repro-
duzindo a forma de pensar que foi criado a partir deste mundo
moderno, ou seja, não dá para criar um anti Édipo pensando
através do mesmo, e ela traz o fanon para desenvolver seu tra-
balho.
Como eu coloco no slide 12 “Além disso”, o português era a
língua do Comércio utilizada nos pontos, nas cidades e vilas e
até mesmo no seio da família, “Mas ainda aí aparecia o” Tupi
falado pelos fâmulos que ficavam em torno destas famílias, co-
mércios, vilas e cidades, acadêmico, que vemos, outro exemplo
é quando se faz um curso de filosofia, que existe algumas lin-
guagens, que só se for filósofo que irá entender.
“Vem de longe os problemas relativos ao ensino de língua
materna no “Brasil”“. Essa é uma das maiores mentiras coloniais
sobre o Brasil e a língua portuguesa, o ensino de língua mater-
267
na no Brasil e vem de longe os problemas relativos a isto, eu
vejo um problema do ensino de língua portuguesa/ materna
no Brasil para os povos indígenas, então este problema relativo
ao ensino de língua materna e justamente para os povos indí-
genas, como hoje os deputados dizem que os problemas do
Brasil são os indígenas porque eles querem muitas terras para
poucos indígenas, o problema no PIB no Brasil são os indígenas
que não querem deixar o agro crescer.
Então se sempre o problema foram os indígenas, será que o
Brasil não é um dos maiores inimigos dos povos indígenas? Le-
vando para outros continentes será que os indígenas também
são este problema?
“Paralelamente, a língua literária que se desenvolvia ganhou
no século xlx com José de Alencar uma modalidade própria
aproveitando-se da cor local. Editar a formação de uma língua
brasileira quando na verdade estávamos diante de um abraço
estilo brasileiros, ou variedade brasileira numa concepção mais
atual traço, que iria desenvolver-se até o século xx quando se
afirma com o movimento modernista”. Aqui já se percebe que
a língua do príncipe já sofre alterações, e começa a se falar a
língua que hoje se fala no Brasil, mas estas alterações/modi-
ficações têm muito do atravessamento dos povos indígenas,
pois aqui no Brasil eram mais ou menos 6 milhões de indíge-
nas antes da invasão, imagina o atravessamento de cada língua
destes povos na língua portuguesa, eu penso muito por sota-
que, pois muitos que temos no Brasil há esse atravessamento
indígena em contato com outras línguas invasoras, como o ita-
liano, francês, português, espanhol, entre outras. Então esta lín-
gua portuguesa nunca será uma língua pura, então não se pode
falar que fulano está falando certo ou errado, e nem que ela é
uma língua mãe, ela pode ser reivindicada por algumas pesso-
as, falando que nasceu no território brasileiro e para ela ser uma
268
língua mãe, a partir desta perspectiva você pode falar que ela é
uma língua mãe, porém tem que entender que ela não é uma
língua daqui, ou seja, é invasora, mas a partir outro conceito de
territorialidade pode se dizer que ela e sim uma língua materna,
porém eu vejo que este discurso reforça mais ainda esse alicia-
mento indígena, por isso não utilizo e digo que a língua materna
chamada de português aqui no Brasil é uma mentira colonial, é
uma questão política.
Esses escritores crias desse Brasil, que nasce das mentiras co-
loniais. As escritas sobre os povos indígenas foram feitas pelos
invasores. Assim, nossa história foi inventada a partir do olhar
racista dos invasores criando várias mentiras sobre os nossos
povos. José de Alencar foi um dos maiores responsáveis por
criar essas mentiras coloniais acerca dos nossos povos, con-
tribuindo para o apagamento dos indígenas no Ceará e para a
criação de estereótipos racistas sobre os nossos povos e assim
criando um Imaginário a partir da literatura “oficial”. Mais uma
vez os conceitos implantados e realizados no cotidiano mol-
dam a forma de se relacionar e viver.
“O caráter homogêneo e de padronização é uma caracterís-
tica fundamental dos Mundos invasores e que se pretendem
como únicos e verdadeiros” E não só do mundo dos invasores,
mas hoje em dia essa forma de mundo moderno, buscando
uma homogeneidade padrão para classificar o que é e o que
não e humano. “Assim a língua portuguesa como língua invaso-
ra é arma de implantação de um mundo ocidental tem base no
Renascimento europeu, no Iluminismo e na consolidação das
unidades nacionais” Quando se pensa em língua nacional tem
que remontar estes aspectos iluministas, revolução francesa
porque foi ela que criou esse tal de “cidadão” e no Brasil na-
quela época quem falava o português, era considerado cidadão,
superior, portanto o cidadão/humano e a língua estão conecta-
269
dos, porque os indígenas não eram considerados humanos. “A
língua portuguesa é um símbolo de unidade Nacional, de uma
estada nação, de um mercado” Que mercado foi esse? Foi o
mercado de ligamento entre Brasil, África e Europa, “de uma
ideia de mundo de uma relação com a terra, de uma relação
uns com os outros”.
“Nas primeiras décadas do Século xx, a concepção de língua
que orienta o ensino de língua materna era de sistema único o
que significava a não aceitação das variedades. Ensinar portu-
guês representava levar os alunos ao reconhecimento do siste-
ma linguístico, com a aprendizagem das regras prescritas pela
gramática normativa. Era função da escola transmitir e fixar a
variedade culta da língua e, garantindo a continuidade, para,
dessa forma, atender aos interesses dos grupos dominantes.”
O “trabalho de fixação” de uma variedade da língua acaba
por levar a um compromisso com uma visão estática da língua
e a consequentes assunções de crenças que ligam a mudança
linguística a conceitos negativos avaliados pela escola.” E esta
fixação da variação da língua ela também pode ser estendida
para a fixação de variação de relações, porque qual é a fixação
que temos hoje em dia? A nossa família ou a tradicional família
brasileira, é uma forma de fixação e não pode ter uma varie-
dade de uma família brasileira, ou seja, um padrão de certo e
errado.
“Português como língua “oficial” foi cada vez mais cristaliza-
da sua força invasora e a educação foi uma das armas para que
se a propagar a educação foi instrumento de oficialização da
língua invasora como língua única. É com o único intuito de dar
vantagens para os grupos aristocracia dominantes pontos a lín-
gua é utilizada como um instrumento de guerra para que esses
grupos continuem no domínio e no poder”.
270
“E os professores que ainda” não descobriram que o texto
é o grande instrumento de ensino da língua’’ Eu não acho que
o texto seja um grande instrumento de ensino da língua, até
porque nós indígenas sempre fomos ensinados nossas línguas
oralmente, o texto pode ser grande instrumento no caso do
português ou alguma outra língua, mas na língua indígena e
mais a oralidade que é este grande instrumento de ensino da
língua.
Essa afirmação da autora no texto é uma grande afirmação
coloca a escrita e o texto como abraço grande instrumento
de ensino da língua o texto coloca a escrita e a oralidade em
uma encruzilhada, “Assim, inconscientemente ela desqualifica
todas as tradições indígenas que trabalham com a oralidade
e não trabalham com o texto, a inferiorização da oralidade é
uma estratégia de invasão dos ocidentais, para colocar como
inferiores a forma e modos de vida indígena.” como eu disse
“quem foi que te falou?” “foi minha avó” e como tu prova isto?”é
tem que provar”? eu tenho aqui um texto que prova, e quem
é que garante que este texto é verdadeiro? não tem garantia,
não existe isso de verdadeiro e falso, quando é colocado isso
de valor, a questão começa a piorar, pois se olhar as questões
como diferentes a partir de horizontes, perceber que a visão
de mundo é diferente para cada um, e pode ser certo naquela
visão, querendo saber como ele funciona e deixando de lado se
é certo e errado. Não importa se é verdadeiro ou falso, e sim em
como este mundo funciona, como as pessoas vivem, em como
manter um diálogo não impondo língua, modo de vida, não se
relacionar a partir do certo e errado.
Porque quando se diz que o texto é o central mais impor-
tante, estamos dizendo que nada disto vale, pessoas sem o
conhecimento necessário que moram mais afastados sem a
escolarização, indígenas, nada das histórias passadas em gera-
271
ções familiares, ou seja, o que era transmitido pela oralidade
não tinha valor.
“Povos originários no Brasil, em suas diferentes cosmologias
apresentam complexidades de modo de ser.” Para muitos po-
vos o texto não é um instrumento de ensino, ele pode vir a ser
um dos instrumentos.
Suas histórias, suas línguas, suas memórias, seus ritos, seus
modos de caminhar pela terra, tudo é experiência coletiva an-
cestral. Esta experiência coletiva não está somente no texto,
mas sim na vivência cotidiana, oralidade, no sentir (a natureza,
o ar etc..).
E a língua ancestral é para os povos que ainda tem uma for-
ma de ligação a mais com seus encantadas e antigos, então os
povos que ainda continuam suas línguas nativas/mãe/mater-
nas, e mais uma conexão com os encantados com a memória
ancestral de um passado que é um presente, a língua tem esta
força de trazer esse passado pro presente, porque quando você
fala esta língua fala junto há um ancestral, então não é só uma
língua, símbolo, não é só uma coisa que se aprende para gerar
um ganho, ela não é só funcional, ela tem um sentido energé-
tico, espiritual, de vida.
‘’O apagamento a destruição e a negligência com as línguas
nativas, tornando-as invisíveis, foi e é um dos diferentes cami-
nhos impostos pela destruição da colonização que formou o
estado Brasil e que ainda está em prática hoje em dia, pois ainda
hoje as mais de 250 línguas nativas indígenas são invisíveis nas
escolas de educação básica e nas universidades, o que contribui
para que o índio e sua língua nativa seja artigo de um passado
primitivo.” Muitos acham que as línguas indígenas são apenas
línguas para serem estudadas e não faladas no cotidiano, como
a língua do nheengatu, estas línguas não estão mortas mas são
silenciadas como mortas.
272
Quando a Amazônia é devastada por madeireiros, isso atinge
a terra, que atinge um povo.
Se esse povo morrer, sua língua morrerá com eles. O avanço
da língua dos colonizadores e do inglês é principalmente para
nós, Indígenas, o avanço da morte e do conflito com nossas
singularidades enquanto povo. O nordeste brasileiro teve as
línguas de seus povos nativos quase todas extintas por políticas
linguísticas bilíngues. Não queremos que isso se amplie aos ou-
tros povos irmãos e parentes que ainda possuem essa ligação
ancestral e esperamos que nossos parceiros se juntem a nós
nessa luta.
Essa tática destrutiva visa apagar a singularidade multilinguís-
tica dos povos Indígenas em detrimento de uma normalização,
padronização da língua, uma língua dura, morta, que só tem um
sentido: lucrar. Que é a língua do mercado que é o inglês, quan-
do a gente pensa que uma única língua e a do mercado e ela é
uma língua monolíngue, e os povos indígenas são plurais, todas
estas formas de pensar a pluralização sejam impostas aos indí-
genas se confundem, pois eles não têm fidelidade ao mercado.
273
A literatura dos Guaranis no Paraná
Introdução
Sou estudante da Universidade Estadual de Ponta Grossa,
atualmente estou finalizando o 4° ano do curso de Licenciatura
em Letras Português/Espanhol. O presente trabalho pauta-se
nas obras e escritores indígenas paranaenses da etnia guarani.
Meu interesse por esse tema surgiu mediante a proximidade
que tive com a língua Guarani. Morei por alguns anos no Para-
guai onde tive contato com a língua.
Com minha vinda para o Brasil e meu ingresso na faculda-
de, tive a oportunidade de conhecer alguns indígenas quando
entrei para o grupo de estudos do CEAI (Coletivo de Estudos e
Ações Indígenas), um grupo vinculado à Universidade Estadual
de Ponta Grossa (UEPG) e que está composto por indígenas e
não indígenas. Com isso, o desejo de não deixar a língua Guara-
ni morrer e mostrar a importância dela e de seu povo, me mo-
tivou a trabalhar uma perspectiva diferente. Foi então que, com
o projeto iniciação científica, eu vi a oportunidade perfeita para
trabalhar com esse tema, sendo já um dos assuntos que minha
orientadora, Professora Lígia, estava familiarizada.
Para discutir a literatura produzida pelos guaranis no Paraná,
busquei fundamentação primeiramente no conceito da Deco-
lonialidade, que segundo Matos, é um meio para a valorização
e acesso à literatura de diversas identidades, e sendo assim,
podemos dizer que a identidade indígena está presente nesta
discussão.
brasileiro
Não é difícil ainda nos dias de hoje encontrar pessoas que
desconhecem ou têm pensamento muito equivocado sobre a
temática indígena. Sendo que, o que se sabe, muitas vezes, é
aquilo que se aprendeu na escola com os livros didáticos, os
quais fazem esses povos culpados por coisas que os próprios
colonizadores foram os causadores. Santos (2018), em sua pes-
quisa, faz uma análise sobre como a cultura e história indígena
são tratadas no livro didático e Munduruku (2018) também cita
a questão de o indígena ainda ser visto de forma estereotipada.
Assim, quando se fala em indígenas, a visão que muitas pes-
soas têm é de o índio nu e vivendo na floresta. Isso mostra a
dificuldade de aceitar que o indígena evoluiu junto com toda a
história.
Santos (2018) faz sua análise sobre os livros didáticos do en-
sino médio de autoria de Gilberto Cotrin, onde é possível ver
uma pequena diferença entre as edições de antes e depois da
Lei 11.645/2008. O autor passa a trazer algumas informações
relevantes sobre os povos indígenas, por exemplo, traz a ques-
tão do tronco linguístico, das nações, mas fica tudo muito su-
perficial. E até mesmo quando trata do artesanato, ele não diz
qual povo confecciona o que, se entende de uma forma ge-
neralizada que todos os povos indígenas fazem exatamente a
281
Art. 78 - O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências
federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá
programas integrados de ensino e pesquisas, para oferta de Educação
escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas.
282
dual de Londrina, um grupo de estudantes da etnia Guarani e
Kaingang contribuiu com suas escritas sobre vivências, lutas,
desafios e conquistas. A obra apresenta texto em português,
guarani e kaingang. Entre os autores da etnia guarani estão: Ale-
xandro da Silva Nhandeva, Ana Lucia Ortiz M. Kunha Yvoty, Fe-
lipe Zamboni, Rodrigo Luís Tupã, Uerique Gabriel Matias, Valéria
Lourenço Jacinto. E da etnia Kaingang, Débora Silva de Manoel
Ribas, Jaqueline de Paula Sabino, Tiago Pyn Tánh de Almeida e
Yago Junio dos S. Queiroz.
Também a obra “Ler, Escrever e Ser Indígena no Paraná”
(2012), da Secretaria de Educação do Estado do Paraná. “Varai
Para’I Regua. O Balaio Enfeitado” (2001) da autora Lídia Krexu
Rete Veríssimo, da Aldeia de Rio das Cobras.
Embora tenha seguido o mesmo padrão de busca várias ve-
zes, não encontrei, além das obras mencionadas aqui, outros/
as escritores/as indígenas da etnia guarani no Paraná. Sendo
assim, vamos à apresentação da vida dos autores indígenas no
contexto paranaense da etnia guarani que têm obras publica-
das. E, juntamente com suas vidas, apresentaremos uma breve
sinopse das obras.
Olívio Jekupé, escritor e poeta, estudou na Universidade Ca-
tólica do Paraná, natural de Novo Itacolomy, porém atualmente
reside em Curitiba. Ele já participou em diversas palestras so-
bre a cultura e defesa dos indígenas, já escreveu diversas obras,
sendo que uma delas escreveu junto com a sua família. Sua es-
posa e seus três filhos, já escritores, participaram da obra “Lite-
ratura Nativa em família”.
Sobre as obras de Olívio, as separei em três grupos:
1. Obras que tive acesso e pude fazer a leitura;
2. Obras que não consegui acesso, então as sinopses foram
retiradas da internet;
283
3. As obras que não consegui localizar a sinopse na internet
e, por isso, são apresentadas somente com o título.
Grupo 1
284
Como bem diz o título, o livro traz uma coleção de histórias
contadas pela família Jekupé, depois que Olívio Publicou seus
livros, sua esposa Maria Kerexu, contadora de casos, histórias e
lendas, à procura de preservar a cultura guarani, à qual pertence
toda essa família, passou a relatar suas histórias para seus filhos,
que as escreveram para que possam perdurar e que outras pes-
soas possam continuar desfrutando dessas histórias e conhe-
cendo a tradição indígena.
A Invasão (2020)
Fala um pouco sobre a chegada dos colonizadores em 1500,
traz a perspectiva do indígena sobre esse tema, de que foi uma
invasão e não um descobrimento, também aponta temas como
por exemplo que os indígenas não são ÍNDIOS, e que esse foi
um apelido dado a eles.
285
do assim, ao final de cada sinopse, inseri o site de onde o texto
foi retirado.
500 anos de Angústia, Editora: Scortecci (2019)
Segundo o próprio o autor, a obra poética não tinha nome
até o momento que chegou à gráfica, e devido à situação do
momento decidiu nomeá-la de 500 anos de angústia para
mostrar o descontentamento do povo indígena, que enquanto
a sociedade comemorava os 500 anos de descobrimento, os
povos indígenas viviam os 500 anos de sofrimento. Disponível
em: <https://amz.onl/h9Z4Zay>. Acesso em: 21 out 2022.
O Saci verdadeiro, Editora: Panda Books (2021)
Karaí aprendeu com sua mãe várias histórias sobre o seu
povo. Sua favorita era a de Jaxy Jaterê, o protetor das florestas e
das pessoas. Quando começou a frequentar a escola, ele des-
cobriu que havia um livro sobre Saci-Pererê, nome dado pelos
não índios ao mesmo personagem. Aquilo deixou o curumim
confuso, afinal, qual era o Saci verdadeiro?
Books(2017)
Conta a história de uma jovem indígena, Kerexu, que ao fi-
car muito curiosa depois de ouvir várias histórias sobre o pro-
tetor da floresta, que era poderoso e realizava desejos a quem
o pedisse, porém ela não sabia como fazer isso, foi aí que sua
prim1a, como sabia do segredo, deu uma ajudinha para que
ela pudesse chamá-lo. Disponível em: <https://www.amazon.
com.br/presente-Jaxy-Jater%C3%AA-Ol%C3%ADvio-Jekupe/
dp/8578883616/ref=mp_s_a_1_1>. Acesso em: 21 out 2022.
Grupo 3
N
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299
A literatura indígena e a perspectiva de uma
proposta curricular decolonial
Valéria Mariano1
1 Introdução
O interesse pela pesquisa teve início durante a graduação
em Letras Espanhol por ocasião da participação no Projeto de
Iniciação Científica “O ensino de línguas a partir de gêneros li-
terários: Interculturalidade e descolonização do conhecimento
– A literatura dos Kaingangs no Paraná”. O referido projeto teve
como objetivo geral problematizar a relação da literatura indí-
gena brasileira com a perspectiva de um currículo decolonial.
Além do interesse acadêmico, também despertou o interes-
se pessoal pelo tema, pois me identifico como indígena porque
meus avós, tanto maternos quanto paternos, eram indígenas.
Como tantas outras histórias silenciadas de mulheres indíge-
nas, sei pouco a respeito da vida de minha avó materna, ela
vivia onde hoje é a cidade de Tacuru-MS que significa cupim
em guarani, região que faz divisa com o Paraguai e que tem o
guarani como língua oficial. Esta região era habitada por erva-
teiros paraguaios e indígenas Kaiuwás. Nesse contexto, sabe-
-se que minha avó doou duas meninas, uma de 4 e outra de
2 anos, para um senhor fazendeiro branco e de posses, que as
trouxe para o Paraná. Uma delas era minha mãe Ramona Ga-
marra, nome típico paraguaio. Após aproximadamente 22 anos
de busca, encontramos minha avó residindo em Dourados-MS,
ela falava guarani mas não queria ensinar e nem recordar a vida
passada, ou seja, queria apagar sua triste sina.
Por outro lado, segundo noticiado no jornal Diário dos Cam-
pos da cidade de Ponta Grossa-Pr, edição do dia 9 de fevereiro
1 Trabalho orientado por Ligia Paula Couto.
300
de 1975, Gabriel Mariano, meu avô paterno, era “índio puro da
tribu Caingangue” que “desmentiu as teorias dos racistas exal-
tados e de certos brasileiros broncos que dizem que o índio é
incapaz de assimilar as criações dos chamados brancos”, pois,
“era agrimensor de mão cheia e falava até árabe”. Não o conhe-
ci, ele faleceu quando meu pai tinha dois meses de idade.
O tema da pesquisa relaciona-se diretamente com a propos-
ta de decolonizar os currículos trazida por Matos (2020). Pes-
quisar, ler e trazer a literatura indígena para o debate e possi-
bilitar que este conhecimento chegue até o maior número de
pessoas é uma maneira de colocar em prática o que a legislação
brasileira prevê. Para Matos (2020, p. 94), é “urgente a criação
de propostas curriculares que estabeleçam estratégias para a
construção de saberes transdisciplinares, a partir de perspec-
tivas decoloniais, de modo que os professores proponham e
estejam atentos às narrativas e discursos não hegemônicos”.
Desse modo, o objetivo geral deste artigo é problematizar
a relação da literatura indígena brasileira com a perspectiva de
um currículo decolonial. Como objetivos específicos, será de-
batida a questão do encontro entre indígenas e não indígenas,
o conceito de literatura indígena brasileira, a Lei 11.645/2008 e
a perspectiva decolonial para o currículo.
A presente pesquisa faz parte de uma agenda decolonial, de
uma postura e de uma atitude contínua de enfrentamento da
colonialidade na literatura. Ainda, a presente pesquisa preten-
de dar passagem às vozes dos indígenas e também, de algum
modo, resgatar a minha ancestralidade.
por cada um. Por isso, esta pesquisadora enfatiza que se considera indígena, é
302
“índio”. A exemplo da Constituição Federal de 1988, o Estatuto
do Índio e a própria Fundação Nacional do Índio.
Anote-se como se expressou a poeta indígena Márcia Kam-
beba a esse respeito:
Índio eu não sou
Não me chame de índio
Poque esse nome
nunca me pertenceu
Nem como apelido eu quero levar
O erro que Colombo cometeu
Por um erro de rota
Colombo em meu solo desembarcou
E com desejo de nas
Índias chegar
Com nome de índio me apelidou
Esse nome me traz muita dor
Uma bala em meu peito transpassou
Meu grito na mata ecoou
Meu sangue na terra jorrou.
Chegou tarde eu já estava aqui
Caravela aportou bem ali
Eu vi homem branco subir
Na minha uka me escondi
Ele veio sem ter permissão
Com a cruz e a espada na mão
Nos seus olhos uma missão
Dizimar em nome da civilização.
Índio eu não sou
Sou Kambeba, Tembé, Suruí,
Sateré, Mura, Guarani, Apinaé
Tikuna, Kokama, Pankararu, Truká,
Tuxá, Fulni-ô, Guajajara
E existi com garra e com muita fé.
Mas índio eu não sou. (GONZAGA, 2021, p. 5)
304
de yãkoana! Teosi vai fazê-los morrer! Vai quebra-los com suas próprias
mãos, porque é muito poderoso! (KOPENAWA, 2015, p. 256)
308
A partir das considerações feitas anteriormente, faz-se ne-
cessário refletir sobre a educação escolar brasileira. Nesse sen-
tido, é fundamental que, no currículo escolar brasileiro, seja
compreendido o ensino da cultura, história, religião e língua dos
povos nativos, de modo que o conhecimento, experiências a
serem transmitidas e trocadas sejam decoloniais, que sejam
abordados os fatos históricos, sociais e culturais não apenas
pelo viés do colonizador como se este fosse o dono da verdade
real.
Em entrevista concedida ao Portal Namu em 20194, o autor
indígena Munduruku falou a respeito da importância da cultura
e da literatura indígena nas escolas do Brasil:
A cultura e os conhecimentos tradicionais indígenas são fundamentais
para a identidade brasileira. Os cantos, os ritos de passagem, o jeito tra-
dicional de transmissão de conhecimento devem ser mantidos nas co-
munidades, e ao mesmo tempo, precisam ser valorizados nas escolas
convencionais para que as crianças entendam que há diferentes manei-
ras de ensinar e de educar. O padrão de escola que temos não é único,
ele é apenas mais uma das formas de transmissão de conhecimento.
Dar oportunidade para as crianças da cidade refletirem sobre os conhe-
cimentos tradicionais indígenas vai criar nelas também um sentimento
de pertencimento. (MUNDURUKU, 2019)
6 -
res
310
frentar as discussões decolonias com seus alunos e enfrentar,
com coragem, o discurso hegemônico.
Enquanto acadêmica do curso de letras de universidade pú-
blica vejo, com pesar, que o currículo atual não contempla disci-
plinas necessárias e específicas para a formação de professores
em literatura indígena, por exemplo. Pior do que isso, observo
que justamente pelo desconhecimento dos professores, existe
pouco estímulo para pesquisa nesta área.
Neste contexto, torna-se, de fato, difícil que se cumpra a le-
gislação que determinada a inclusão do estudo da história e da
cultura indígena nos estabelecimentos de ensino.
Para além disso, não se trata apenas de uma imposição legal,
mas sim da necessidade de um outro olhar para a ancestralida-
de, ou seja, o Brasil é um país de negros, índios, brancos, amare-
los, etc. De modo que, ao resgatarmos a verdadeira história do
nosso passado, vivificamos o nosso presente.
Assim, concordo com Montysuma (2019, p. 47), para quem a
“memória torna o passado vivificado no presente, para que as
pessoas não esqueçam o que são, de onde vem e o que podem
fazer a partir daí”. As discussões sobre a memória e esqueci-
mento fazem parte e servem como constructo político e social.
Se houver o esquecimento de uma língua, de uma cultura, da
história de um povo, dos cultos e da religião dos ancestrais de
um povo, este povo desaparece e então o esquecimento vence
sobre a memória. Se isso ocorrer, perde-se a capacidade de se
discutir questões e experiências subjetivas de uma nação den-
tro de um plano social.
Daí a necessidade e a responsabilidade dos professores e de
gestores educacionais posicionarem-se diante das intenções
de apagamentos, de esquecimentos e silenciamentos da ver-
dadeira história dos povos originários constituintes da popula-
ção brasileira.
311
Os autores e autoras indígenas têm plena consciência de que,
hoje em dia, a maneira de lutar pela preservação e pela cultu-
ra indígena depende do conhecimento e este conhecimento
pode e dever ser transmitido através da literatura. Para Jekupé
(2021, p. 17 e 29), “a literatura será nossa grande arma para de-
fender nosso povo. Nós seremos a mudança e a sociedade sa-
berá de nós, através de nossa escrita”. “Se antes as armas contra
os invasores e destruidores de nossa Terras eram arcos, flechas
e lanças, hoje a nossa forma de lutar é no papel e na caneta”.
Os indígenas sabem que é através do conhecimento que po-
derão formar líderes preparados para lutar pela preservação de
sua história e de sua cultura. No entender de Jekupé (2021), o
conhecimento é uma arma que não precisa de guerra; só de
conversa, discurso.
Na perspectiva de que o conhecimento é fundamental na
contemporaneidade para resolver problemas, recorremos às
perspectivas fundamentadas na decolonialidade. E sobre este
conceito, Matos explica:
Proponho que a decolonialidade seja um caminho para a promoção da
educação linguística e literária que visibilize e estimule o protagonismo
das diversas identidades não hegemônicas ... novas epistemologias,
preocupadas com discursos invisibilizados, marginalizados e subalter-
nizados por modelos tradicionais de ciência, e, consequentemente de
educação. (MATOS, 2020, p. 95)
318
essa nova literatura que começa a surgir da parte dos indígenas é uma
tentativa de escrever a própria história conforme a perspectiva dos pró-
prios indígenas. O que vem acontecendo, secularmente, é que nós, os
povos indígenas, sempre fomos, escritos e conhecidos na perspectiva
dos outros. E quando somos vistos sob a lente de outras pessoas que
não são indígenas, nós, os povos indígenas, quando lemos ou toma-
mos conhecimento do que foi escrito, o que acontece muitas vezes, é
que nós não nos reconhecemos naquela ou nessa literatura. (TAUKANE
apud JEKUPÉ, 2021, p. 83)
320
objeto de estudo. Trata-se de falar com os povos originários e
não sobre os povos originários.
Outra necessidade que emerge e é urgente e imperiosa é a
formação de professores que estejam preparados para mane-
jar a produção do conhecimento, a partir da literatura indígena,
de modo que tenham uma postura decolonial, ou seja, que te-
nham internalizado o fato que trabalhar com cultura e história
dos povos originários é um posicionamento de resistência con-
trário à colonização de corpos, mentes e saberes que, até en-
tão, todos nós estamos submetidos. Por óbvio que não é uma
missão fácil nem tão pouco algo que possa ser solucionado em
tempo estreito, porém, é possível dar o primeiro passo.
Entendo que este passo, sem dúvida, deve ser dado pelos
alunos das instituições acadêmicas a partir de pesquisas deco-
lonizadoras, ou seja, dentro deste campo epistêmico decoloni-
zador.
321
CÁRDENAS, Linda Osíris González. Resenha de Descolonizando me-
todologias: pesquisa e povos indígenas. Revista Campos, v. 20, n. 2,
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322
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323
Línguas e literaturas
clássicas
Histórias verdadeiras, de Luciano de Samósata
326
tros, eu próprio confessando que não digo nada verdadeiro. (LUCIANO,
2009, p. 9).
329
Esse vai e vem na lógica narrativa – ora o narrador detalha os
personagens, ora assume textualmente que são invenções fan-
tasiosas e, portanto, não cabem em escritos de histórias verda-
deiras – constrói com o leitor uma espécie de narrador confesso
de sua técnica narrativa, uma espécie de desnudamento da arte
– que sabemos simulado para atingir o leitor em cheio e incen-
tivar-lhe a leitura crítica do processo de construção ficcional
(mesmo em textos que se arvoram transposição de discursos
verdadeiros).
A narrativa das aventuras espaciais continua: “Durante os
dias em que eu estive na lua, observei coisas novas e estranhas”
(LUCIANO, 2009, p. 19). Assim Luciano (2009, p. 18-19) inicia
o vigésimo parágrafo e prepara o leitor para usar a imaginação,
porque os relatos que fará a seguir serão surpreendentes. A in-
trodução, com o anúncio da novidade e estranheza, faz o leitor
criar uma expectativa e, movido pela curiosidade, assim como
Luciano ao empreender essa viagem, continuar a leitura do li-
vro.
No parágrafo 25 ocorre novamente uma contradição simu-
lada quando Luciano diz uma coisa e faz outra. Nessa parte do
texto, ele diz que não descreverá os olhos dos habitantes do
espaço, porque julga inacreditável e, como se preocupa com o
leitor, não quer que o considerem mentiroso, mas logo a seguir
ele faz a descrição. Assim, entre descrição narrativa e confissão
de criação ficcional, Luciano encaixa os sucessivos episódios vi-
vidos em sua viagem, primeiro a espacial, depois o retorno para
a terra e a participação em uma batalha naval. Até que chegam
ao reinado de Endimião. A cena é retomada da passagem da
Odisseia, entre os cantos 6 e 8, em que Odisseu passa pelo país
dos Feáceos, narra as aventuras vividas e segue viagem com os
presentes adquiridos.
330
Ao sair da corte de Endimião, Luciano e seus companheiros
seguem escoltados pelos cavalos-abutre, veem constelações
até chegarem ao oceano, onde são engolidos por uma baleia:
Finalmente saudamos o rei e sua corte e embarcamo-nos e zarpamos;
Endimião me deu até presentes, duas ´túnicas de vidro, cinco de bronze
e uma armadura de lupino, mas eu acabei por deixar tudo dentro da
baleia. (LUCIANO, 2009, p. 22)
332
Ao serem liberados da Ilha dos Ímpios eles avistam a Ilha dos
Sonhos, na qual dormiram por 30 dias, e Luciano (2009, p. 47)
ironicamente diz que vai descrever a cidade, já que só Homero
a mencionou e não descreveu direito. Acordados por um tro-
vão, zarpam rumo à Ogígia.
Encontram Calipso, personagem da Odisseia, e com ela se
hospedam por uma noite. Novamente com ironia Luciano narra
um resumo de parte da viagem e morte de Odisseu e a falsa
promessa de imortalidade em uma carta lida pelos navegantes
(LUCIANO, 2009, 48-49). Por contar tudo de maneira que pa-
rece romântica, Luciano ironiza a traição escondida no discurso.
Quando seguiram viagem, mais uma tempestade os leva a
uma nova ilha, onde foram atacados por piratas-abóbora que
desistiram do conflito contra a tripulação de Luciano para guer-
rearem contra os marujos-noz (LUCIANO, 2009, p. 49-50).
Na sequência, encontram uma floresta em pleno mar, em
mais uma narrativa fantástica e irreal e, por não terem opção
de navegação, içaram o navio e atravessaram sobre as árvores,
com as velas abertas, até o outro lado da floresta. Após algumas
aventuras ali, eles avistaram um abismo no mar, uma fenda que
dividia o oceano em dois, e atravessaram por uma ponte.
Depois avistam uma ilha habitada por homens cabeça de
touro, como Minotauro, outra referência às lendas gregas. Eles
lutam e capturam dois desses monstros, mas os trocam por su-
primentos como queijo, peixe, cebolas etc. Aqui Luciano (2009,
p. 21), quer enfatizar a troca, pois se ele tivesse os prisioneiros,
certamente seria uma prova real, logo, é uma justificativa muito
conveniente para se defender de acusações das mentiras con-
tadas.
Continuaram a navegação, passaram por homens que nave-
gavam com seu próprio corpo, até que atracaram em uma ilha
só de mulheres cortesãs que os recebem em seus aposentos.
333
Tais figuras femininas, revelaram-se mulheres marinhas da es-
pécie Perna de Bode que se alimentavam dos marinheiros que
passavam por ali. Luciano captura uma, descobre o perigo e avi-
sa os companheiros, então, todos fogem dali.
Por fim, uma última tempestade os leva de volta a terra, des-
truindo a embarcação, outra técnica para justificar a falta de
prova da fabulosa viagem.
Luciano finaliza a narrativa com a promessa de continuação
da aventura agora em terra, sua última mentira irônica, uma vez
que o autor Luciano escreveu várias outras narrativas mas não a
que foi aqui prometida.
334
Assim, por meio da paródia e das narrativas fantasiosas –
narradas e desmentidas – Luciano estabelece com o leitor uma
relação pautada pela ironia.
Ele coloca todos narradores de fábulas inventadas, aqueles
que pensam registrar a história e os pensadores da Grécia Anti-
ga no mesmo patamar. Ambos os objetivos da narrativa luciâ-
nica são realizados, segundo o próprio autor, com “comicidade”,
o que nos sugere duas informações importantes: O caráter cô-
mico está ligado à ironia; e a ideia por trás do texto é persuadir
o leitor.
Sobre essa questão, o fato de Luciano ter utilizado o gêne-
ro “narrativa de viagem” no próprio enredo de Histórias Verda-
deiras contribui para uma visão irônica desse estilo de contar
histórias. Como aponta Sano (2008, p. 91), quando compara
essas narrativas com a obra fictícia Odisseia, o narrador dessas
falsas viagens quer iludir o leitor de que foi até lá e participou
dos eventos narrados. Deste modo, Luciano também ironiza
essa persuasão no início de sua história, quando escreve que
viaja com “[...] anseio por coisas novas e o desejo de descobrir
como é o fim do oceano e quem são as pessoas que habitam
além” (LUCIANO, 2009, p. 9).
Tendo em vista que o leitor da época em que Luciano escre-
veu não poderia chegar ao fim do oceano, é justamente para lá
que ele vai, utilizando-se da ironia para desvalorizar por meio
do humor o discurso de historiadores da antiguidade.
Sendo assim, a própria escolha formal do gênero indica que
Luciano propõe uma crítica aos recursos narrativos utilizados
por autores canônicos do período clássico da literatura grega. A
organização metaliterária contribui para a crítica e a ironia.
335
Seguindo nossa investigação da obra Histórias Verdadeiras, a
ironia nos ajuda a perceber mais um tema presente na obra: a
interrelação entre ficção e História.
Brandão propõe uma análise da obra de Luciano tendo em
vista sua ficção sobre a perspectiva histórica. De início, ele co-
menta sobre a liberdade do poeta, da imaginação de inventar
o que ele quiser, e sobre as diferenças que a linguagem poéti-
ca tem da área historiográfica. Como relação a Histórias Verda-
deiras, Brandão diz que ali se faz uma “[...] ficção da história”
fazendo um contraponto com a obra Como se deve escrever a
história, de Luciano, que seria uma ‘história da ficção’ (BRAN-
DÃO, 2001, p. 33).
O teórico propõe o termo pseudo para caracterizar as mentiras
que são contadas pelos historiadores, enfatizando a distinção
entre a história e o encômio: a intencionalidade do texto. En-
quanto o texto histórico tem como meta a verdade, o encômio
busca exaltar a pessoa ou o objeto referenciado (BRANDÃO,
2001, p. 34-35). Brandão cita a Ilíada, de Homero, como exem-
plo de fantasia, em concordância com Histórias Verdadeiras, em
que Luciano desmitifica as narrativas gregas clássicas.
Quando Luciano narra a guerra entre os lunares e os solares,
ele faz uma referência interessante:
Depois da brilhante vitória, muitos sobreviventes foram feitos prisionei-
ros e muitos mortos recolhidos, e o sangue derramava-se em grande
quantidade sobre as nuvens, até que elas se tingiram e ficaram verme-
lhas, conforme se mostram a nós no pôr-do-sol, e muitas gotas caíam
na Terra, e, por conta disso, perguntei-me se algo dessa sorte não pode-
ria ter acontecido lá no alto no passado, quando Homero supôs ser Zeus
a fazer chover sangue na ocasião da morte de Sarpédone. (LUCIANO,
2009, p. 16)
Ironia e Paródia
Na obra Uma teoria da paródia (1985), Linda Hutcheon dis-
corre sobre a busca da modernidade pela paródia, que leva a
uma intertextualidade, isto é, o diálogo entre o texto e suas
referências externas a ele. Apesar de o texto da Hutcheon ser
voltado para a reflexão sobre a pós-modernidade, algumas ca-
racterísticas da intertextualidade descritas por ela podem ser
percebidas claramente na obra Histórias Verdadeiras, de Lucia-
no de Samósata. Quando lemos os nomes de personagens e
autores da Antiguidade Clássica Grega, como o historiador He-
ródoto (LUCIANO, 2009, p. 34), e o poeta Homero (LUCIANO,
2009, p. 17) essa relação se evidencia. Assim, é no diálogo com
as obras do passado que uma paródia se efetiva, pois imprime-
-se um novo olhar sobre a cultura.
O fato do personagem principal de Histórias Verdadeiras ter
um anseio por “coisas novas” (LUCIANO, 2009, p. 9) e ao lon-
go de toda narrativa encontrarmos mitos antigos parodiados é
uma grande quebra de expectativa do ponto de vista do enre-
do.
Baseada nos estudos de Foucault, Hutcheon apresenta uma
crítica ao individualismo do autor da escola literária romântica,
e a noção de originalidade (HUTCHEON, 1985, p. 15-16). Diante
dessa discussão entre os textos passados e os novos escritos,
ela considera que:
339
Muito embora a paródia ofereça uma versão muito mais limitada e con-
trolada desta activação do passado, dando-lhe um contexto novo e,
muitas vezes, irónico, faz exigências semelhantes ao leitor mas trata-se
mais de exigências aos seus conhecimentos e à sua memória do que à
sua abertura ao jogo. (HUTCHEON, 1985, p. 16)
342
BOMPAIRE, JACQUES; LES BELLES LETTRES. Oeuvres. Paris: Belles
Lettres, 1993.
BRANDÃO, Jacyntho. A poética do Hipocentauro: Literatura, socie-
dade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte:
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HUTCHEON, Linda Uma teoria da paródia. Tradução de Teresa Louro
Perez. Edições 70, Lda., Lisboa – Portugal, 1985.
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burger. Porto Alegre: Editora geral, 2009.
SANO, Lúcia. Das Narrativas Verdadeiras, de Luciano de Samósata:
Tradução, Notas e Estudo. Dissertação de Mestrado. USP. São Paulo,
2008.
343
Ilíada e A canção de Aquiles
de Aquiles e Pátroclo
1 Introdução
Pensando no estudo das obras clássicas literárias na con-
temporaneidade e a relevância do olhar voltado para temáti-
cas LGBTQIA+ e sua representatividade no campo literário, o
presente trabalho busca fazer uma análise do relacionamento
dos personagens Pátroclo e Aquiles, que nos é apresentado no
romance A canção de Aquiles (2021), de Madeline Miller, releitu-
ra da obra homérica Ilíada (Séc. IX a.C.). Esta pesquisa pretende
explorar e apresentar um panorama sobre a historicidade das
relações ‘homo’ na Grécia clássica. Desse modo, selecionamos
para o estudo: a construção histórico-social, a pederastia e sua
prática na sociedade grega a fim de adentrarmos no relaciona-
mento das personagens das obras mencionadas. Em seguida,
analisar-se-á as duas obras e as distinções de escrita de ambas,
uma em verso e a outra em prosa.
Para dar início, levanta-se as seguintes questões: havia práti-
cas homossexuais ou bissexuais, homoafetivas ou homoeróti-
cas na Grécia Antiga? Quais as especificidades desses termos?
Até que ponto elas eram aceitas? Ou eram ridicularizadas? To-
dos esses apontamentos atrelados à análise e interpretação in-
terdisciplinar da obra clássica e de sua releitura contemporânea
serão o alicerce e guia deste trabalho.
Assim sendo, tem de se refletir acerca do embate que há
sobre sexualidade nas antigas sociedades, especificamente na
grega, pois há uma gama de palavras e termos para estudar e
344
entender o que se passava nesse período em que se originou
uma falsa verdade sobre a homossexualidade, a qual foi trazida
à atualidade, colocando a Grécia como um berço de aceitação,
acessível e tolerante quanto aos relacionamentos homoafeti-
vos e as práticas homoeróticas. Assim, apagando e/ou mudan-
do grande parte do preconceito, a satirização dos praticantes
dos atos homoeróticos que ocorriam no período.
Destarte, a pesquisa analisa, de forma comparativa interpre-
tativa, a relação que se constrói entre Aquiles e seu escudeiro,
Pátroclo, na Ilíada, que pode ser lida e interpretada em vários
momentos como sendo bastante íntima, algo além de frater-
no, deixando lacunasa serem preenchidas (ver pintura em vaso,
anexo IV); e a relação amorosa construída por Madeline Miller
em sua releitura contemporânea da obra homérica, A canção
de Aquiles, em que se tem ambos representados oficialmente
como amantes da narrativa.
Metodologicamente, o trabalho se desenvolverá com base
na análise e interpretação, tendo como guias principais as
obras de Madeline Miller e Homero. Além disso, visa-se tam-
bém o trabalho com o ramo da literatura comparada, posto que
se trata de uma pesquisa bibliográfica que possui como tema
principal a recepção de um clássico através de uma releitura,
não podendo distanciar-se da comparação e da interpretação.
Desse modo, para o corpus do estudo optou-se pela pesquisa
qualitativa, pensando que na nessa têm-se em mente uma cul-
tura a ser estudada, seu tempo e seu lugar. Assim, pretende-se
fazer uma investigação de forma interdisciplinar, isto é, com-
binando história com literatura (cf. DURÃO, 2020) utilizando
textos que trabalham com a questão da homoafetividade e do
homoerotismo na antiga sociedade grega, tais como Foucault
(2020),Corino (2006), Cardoso (2016), e da homossexualidade
na literatura, como Souza (2020), traçando assim um aporte
345
temporal da questão da sexualidade através dos séculos ena
era clássica.
Foucault (2020), no livro História da sexualidade: o uso dos
prazeres, escreve sobre a prática da pederastia, prática tida como
comum para a passagem de conhecimento entre os gregos, do
mais velho ao mais jovem, não caracterizando exatamente um
caso de homossexualidade, posto que é demasiado contempo-
râneo o termo, tampouco como um caso de homoafetividade,
já que não deveria existir sentimentos amorosos entre os pra-
ticantes (erastes e eromenos). Por isso, a pederastia encaixa-se
na categoria homoerotismo, mas chegando até a contempora-
neidade como uma prática homossexual aceita e admirada da
Grécia; gerando uma falsa verdade. Foucault (2020) explicita a
questão da relação desde o período clássico na Grécia, em que
mesmo estando casado com uma mulher, o homem não tem
de possuir, necessariamente, desejo sexual para com a esposa
(FOUCAULT, 2020, p. 180). Ele próprio sairá a procura de pra-
zer que muitas vezesserá encontrado em um rapaz. Entretanto
há de se estabelecer um relacionamento sexual para que assim
o homem possa possuir descendentes legítimos, papel que era
cobrado dele como cidadão.
Pensando na questão literária, Souza (2020) traz distinções
do que seria literatura gay e literatura homoerótica: na primei-
ra encontramos principalmente representatividade homosse-
xual; na segunda, desejo homoerótico, não necessariamente
ligado à representatividade. O autor escreve sobre a questão
da homotextualidade atrelada ou à identidade gay, a qual tra-
balharia por uma vereda representativa, política e cultural,
LGBTQIA+, sendo escrita e/ou protagonizada e lida apenas por
homossexuais (construindo assim a literatura gay); ou ao dese-
jo homoerótico, inclinando apenas para a questão do desejo e
atração, não precisando ser escrita por autores homossexuais,
346
nem sendo direcionada para apenas esse público (constituindo
a literatura homoerótica). Souza (2020) ressalta que “o espaço
de uma literatura gay deve existir, pois esse tipo de literatura
traz discussões associadas aos estudos culturais, que ainda são
de grande relevância em nossa sociedade, uma sociedade que
segue discriminando indivíduos que “ameaçam” o status quo.”
(SOUZA, 2020, p. 35). O que reforça o uso da literatura como
instrumento de luta e representatividade política de uma clas-
se. À vista disso, o trabalho também tem como objetivo trazer
esse debate sobre representatividade LGBTQIA+ na literatura.
Consequentemente, antes de entrar nas discussões teórico-
-filosóficas que norteiam o estudo, é importante trazer algu-
mas definições relevantes para o desenvolvimento do trabalho.
Dessa forma, o artigo de dividirá em cinco momentos, que são:
revisitar a literatura clássica e definir alguns conceitos que tra-
zem o prefixo ‘homo’; apresentar um panorama das relações
homoeróticas na Grécia antiga; explorar a relação de Pátroclo
e Aquiles na Ilíada; explorar a relação dos personagens na re-
leitura A Canção de Aquiles e compará-las; e debater sobre as
diferenças narrativas das obras e no que isso implica.
2 Revendo os clássicos
Desse modo, comecemos por tentar definir o que é um clás-
sico. Moisés (2013, p. 76), em seu Dicionário de termos literários,
postula quatro definições para a palavra clássico: “1) autor ou
obra de primeira classe, superior, 2) autor que se lê nas escolas
(nas classes), porque é considerado excelente, 3) autor grego
ou latino, da Antiguidade, vistoque se enquadra nos tipos an-
teriores, 4) autor que imita os clássicos greco-latinos”. Assim,a
definição de número três é a que mais se enquadra a Homero,
já que suas duas obras são consideradas clássicos da literatu-
ra: Ilíada e Odisseia. Todavia a definição de Moises está fixada,
347
principalmente, na autoria e não diretamente às obras, assim,
pode-se somar à nossadefinição de clássico, as palavras de Cal-
vino (2007, p. 11-12):
Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as
marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que
deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou maissimples-
mente na linguagem ou nos costumes). [...] Os clássicos são livros que,
quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de
fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos. (Grifo do autor).
351
[...] os casais de amantes homens eram incentivados como parte do
treinamento e da disciplina militar. Essas práticas dariam coesão às tro-
pas. Em Tebas, colônia espartana, existia o Pelotão Sagrado de Tebas,
tropa de elite composta unicamente de casais homossexuais. Eram ex-
tremamente ferozes, pois lutavam com muita bravura para que nada
acontecesse a seus parceiros. Em campo de batalha eram quase imba-
tíveis. (CORINO, 2006, p. 20).
3
2
353
O verdadeiro amor não tem lugar no Gineceu; e eu afirmo que não é
amoro que vocês sentem pelas mulheres ou pelas moças. Seria tão ab-
surdo como chamar de amor o que as moscas sentem pelo leite, as abe-
lhas pelo mel e os cozinheiros pelas carnes e iguarias que preparam [...]
com efeito,o Amor é o que vos liga a almas jovens e bem-nascidas que
através da amizade vos conduz a virtude... (PLUTARCO, 750 a.C. apud
CORINO, 2006, p. 20).
4 (Re)visitando Ilíada A
canção de Aquiles
Pensando em todos os estudos que rodeiam a obra homé-
rica, o propósito desse subtítulo é revisitá-la, expor e estudar
alguns aspectos da obra, principalmente a relação que se es-
tabelece entre Aquiles e Pátroclo, personagens centrais da
discussão desse trabalho. Além disso, constrói-se uma ligação
com a releitura contemporânea, o romance de Madeline Miller,
A canção de Aquiles, contextualizando e analisando sua elabo-
ração narrativa e a dos personagens.
4.1 Homero e a Ilíada
Quando se comenta algo sobre literatura clássica, certamen-
te o que virá à mente serão as obras homéricas, Ilíada e Odis-
seia, posto que esse trabalho de Homero perpassa vários perío-
dos e ainda segue sendo revisitado e estudado até o século XXI.
Mas quem foi de fato Homero? Foi um poeta épico da antiga
Grécia, “(...) viveu na Jônia, na segunda metade do século VIII a.
C.” (NUNES, 2015, p. 31). Ele é considerado um dos principais
agentes de transmissão da história, cultura e mitologia grega,
mesmo com toda essa fama que o cerca, existem poucos da-
dos sobre sua vida.
Outro ponto bastante relevante são as diversas autorias que
lhe foram atribuídas, mas que, com o passar dos anos e com
os estudos, foram considerados textos apócrifos, ou seja, de
autoria anônima, desconhecida.5 Ilíada e Odisseia são um caso
364
Chegando no reino de Peleu, ele começa a participar dos
treinamentos propostos aos jovens que são adotados pelo rei.
E lá terá contato direto com Aquiles, filho de Peleu. Assumindo
então o posto de companheiro, cargo tão estimado pelos ou-
tros garotos, a pedido do próprio Pelida:
Esqueci-me de dizer que o queria para meu companheiro – Therapon
(grifo do autor) foi o termo que empregou. Um camarada de armas liga-
do a um príncipe por juramentos de sangue e por afeto (grifo meu). Na
guerra, esses homens formavam sua guarda de honra; na paz, eram seus
conselheiros mais íntimos. Tratava-se de um posto de grande prestígio
[...]. (MILLER, 2021, p. 38-39).
369
5 De Homero a Miller: do verso à prosa
As duas obras utilizadas como objeto de análise possuem
duas formas de escritas diferentes e dois tipos de conteúdo.
Ou seja, apresentam estéticas distintas, que ao mesmo tempo
se misturam e se complementam: o verso e a prosa; a poesia
e a prosa. Verso e prosa constituem expressões literárias dife-
rentes uma da outra; enquanto poesia e prosa, dizem respeito
ao conteúdo literário, nesse caso, um não é o oposto do outro,
mas sim um pendant (MOISÉS, 2012, p. 61).
A discussão que abrange essa área de estudo literário não
é recente, pois a poesia sempre esteve presente na cultura
ocidental, não apenas na escrita como também na oralidade,
exemplo disso é a própria obra homérica, material de estudo
da época, escritaem versos; tendo a estrutura da prosa apare-
cendo depois. Assim, o questionamento entre semelhanças e
diferenças entre versos x prosa e poesia x prosa já estava em
pauta desde Aristóteles na Poética. Segundo o estudioso grego:
[...] não é ofício do poeta narrar o que realmente acontece; é, sim o de
representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível, ve-
rossímil e necessariamente. Com efeito, não diferem o historiador e o
poeta por escreverem em verso ou prosa (pois que bem poderiam ser
postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser
história, se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em
que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder.
Por isso, a poesia é mais filosófica e mais elevada que a história, pois
refere aquela principalmente ao universal, e esta, o particular. Referir-
-se ao universal, quero eu dizer: atribuir a um indivíduo de determinada
natureza, pensamentos e ações que, por liame de necessidade everos-
similhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa
à poesia quando põe nomes aos seus personagens; particular, pelo con-
trário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu.” (ARISTÓTELES,
1951 apud MOISÉS, 2012, p. 66).
370
Aristóteles coloca o trabalho do poeta voltado principalmen-
te para a área da filosofia, como algo possível de acontecer, en-
quanto o prosador escreveria histórias que já aconteceram. Mas
o filósofo deixa claro que, se mudada a forma de escrita, ou
seja, passado uma prosa para verso, aquela não perderia sua
essência de prosa estando disposta em verso. Como isso é pos-
sível? E a prosa, carrega características da poesia?
Essas questões são passíveis de várias interpretações pos-
síveis entre os teóricos. No livro A criação literária: poesia e
prosa (2012), Moisés utiliza-se de um exemplo de Cohen
(1966) bastante interessante, que consiste em dispor em versos
uma notícia jornalística. Esse exercício rendeu opiniões, afinal:
era poesia ou não era? Alguns teóricos pontuaram já tratar-se
de poesia, para outros não, o autor do exemplo, entretanto, diz
que “isto já não é prosa” (MOISÉS, 2012, p. 63), mas não es-
pecifica se constitui uma poesia. Moisés então, faz o exercício
contrário transformando uma poesia em prosa, e conclui que
“o poema resiste à desconstrução em prosa, enquanto a notícia
de jornal continuará a ser prosa, qualquer que seja o artifício de
torná-la poesia.” (MOISÉS, 2012, p. 64).
O que há de semelhante entre as duas formas (a poesia e a
prosa) é o que se chama de “essência estética”, que são exata-
mente os traços, características que são nomeadas “à falta de
outro rótulo, ‘poéticos’” (MOISÉS, 2012, p. 67). Como pode ser
verificado em trechos citados acima da narrativa de Miller.
A poesia possui essa marca de ornamentação, elementos
escolhidos a dedo pelo poeta para que possa transmitir aquilo
que sente/quer. Por isso apresenta metáforas, sinestesia e ou-
tras figuras de linguagem para compor uma métrica e um ritmo
para aquele poema. E todos esses elementos juntos descrevem
musicalidade. Eles podem aparecer em textos de prosa, dando
essa característica poética à narrativa, a essência estética. Assim
371
como será possível encontrar elementos da narrativa em um
poema, como personagens, descrições de cenários, e inclusive
diálogos; esses são chamados de poemas narrativos, um bom
exemplo é o poema Romance sonâmbulo, do escritor espanhol
Federico GarcíaLorca. Outro elemento que une as duas for-
mas é o subjetivismo, marca universal daliteratura (MOISÉS,
2012).
Por isso durante a leitura de A canção de Aquiles, o leitor de-
parar-se-á com episódios poéticos, o que não quer dizer que
esses estarão em forma de versos, necessariamente, mas que
os elementos que os compõem remetem à estética tradicio-
nalmente poética, com figuras de linguagem e subjetividade,
como pode ser visualizado no seguinte trecho:
A cintilação rósea de seus lábios, a chama verde de seus olhos. Naquele
rosto não havia nenhuma marca de expressão, nenhum sinal de ruga
ou envelhecimento; tudo era mocidade, primavera, ouro e viço. A Morte
invejosa beberia seu sangue e rejuvenesceria. Ele me observava, seus
olhos eram profundos como a terra. (MILLER, 2021, p. 152, grifo meu).
372
Além de a obra homérica ser passível de prosa, caso seja
transformada, não perde sua essência estética poética, como
os seguintes versos, por exemplo:
Deita-se o claro Pelida na praia do mar sonoroso,
Em lugar limpo, onde as ondas espúmeas na areia se quebram, [...]apro-
ximou-se-lhe o espectro do mísero Pátroclo, [...]
“Dormes, Aquiles, o amigo esquecendo? Zeloso eras antes,
quando me achava com vida; ora, morto, de mim te descuidas.
(HOMERO, 2015, p. 467).
O trecho traz inclusive a marcação de diálogo, recurso tipica-
mente utilizado na prosa. Ainda que fosse escrito em verso, sua
essência estética se manteria. Concluindo o complexo debate
sobre construção literária que envolve verso, poesia e prosa,
Moisés (2012) escreve:
Embora sejam complementares, duas cosmovisões diferenciadas ex-
primem-se em linhas descontínuas (os versos) e em linhas contínuas
(ou prosa, à falta de um termo mais adequado). Entretanto, a análise
evidencia que a linha descontínua se adapta mais à visão poética do
mundo, ao passo que a linha contínua, à visão prosística do mundo,in-
clusive pelo fato de ser a prosa a linguagem nossa de cada dia. (MOISÉS,
2012, p. 82).
377
ANEXOS
378
Anexo II: Cerâmica de 550 a.C.. (Disponível em:<https://hav120151.wordpress.c
om/2016/07/03/a- homossexualidade-na-grecia-antiga-e-suas-representacoes-
-na-arte/.>.
Acesso em: 14 AGO 2022.)
379
Anexo III: Detalhe em uma ânfora de Atenas, séc V a. C.. (Disponível em:<https://
hav120151. wordpress.com/2016/07/03/a-homossexualidade-na-grecia-antiga-
-e-suas- representacoes-na- arte/.> Acesso em: 14 AGO 2022.)
380
Anexo IV: Aquilescuidando de ferimentos em Pátroclo. Figura em um prato do séc
V a. C..
FONTE: CORINO,
2006, p. 22)
381
Literatura de Língua
Inglesa
Estratégias dramáticas shakespearianas: estudo
comparativo entre Rei Lear e O mercador de
Veneza
1 Introdução
“Totus mundus agit histrionem” (“O mundo é todo um pal-
co”). Esse era o emblemático lema do Globe Theatre, do qual
Shakespeare era sócio e onde foram encenados diversos de
seus dramas, entre eles Rei Lear. A partir dessa afirmativa, é pos-
sível delinear algumas peculiaridades que constituem o univer-
so de Shakespeare e que nos levam a entender por que pensar
o mundo como um palco é enxergar as peças de Shakespeare
como a própria invenção do humano, expressão que Harold
Bloom (2000) criou para definir a arte dramática do bardo.
Segundo Bloom (2000, p.26), Shakespeare nos ensinou a
compreender a natureza humana, pois foi “o autor que me-
lhor representou o universo concreto em todos os tempos”
(BLOOM, 2000, p. 42). Ele pretendeu nos edificar como seres
conscientes, ensinando-nos a pensar (BLOOM, 2000, p.34-
35).
Shakespeare era um observador da realidade e da multipli-
cidade de situações humanas, cuja complexidade ele revelava
através do teatro, deixando para o espectador a tarefa de che-
gar por si só a uma conclusão:
Ele tinha, a rigor, profunda consciência e grande interesse pelas ques-
tões intelectuais, que não foi de sua escolha simplificar, codificar, re-
conciliar ou solucionar, preferindo antes dramatizá-las de tal modo que
seu público se tornasse emocionantemente consciente de uma nova
384
atitude e modo de proceder do autor, do encenador ante o assunto a ser
tratado ou da encenação a ser efetuada e, em última instância, da ação
simbólica a ser exercida sobre o espectador.
O trabalho dramatúrgico […] implica, para ser sistemático e eficaz, uma
reflexão sobre o sentido do texto encenado e sobre a finalidade de sua
representação nas circunstâncias concretas em que ele será apresen-
tado ao público. Portanto, é em função ao mesmo tempo da interpre-
tação interna do texto e de seu modo de recepção que se efetuam o
trabalho dramatúrgico e a estratégia apropriada à sua boa recepção. A
determinação destes parâmetros constitui a estratégia global do espe-
táculo. (PAVIS, 1999, p. 148)
385
Não há como falar em estratégias de caracterização de per-
sonagens sem definir primeiramente o que vem a ser o ter-
mo “caracterização” na linguagem do teatro. Segundo Pavis, a
caracterização se constitui em uma “técnica literária ou teatral
utilizada para fornecer informações sobre uma personagem ou
uma situação”.
Ela consiste em fornecer ao espectador os meios para ver e/ou imaginar
o universo dramático, portanto para recriar um efeito de real que prepara
a credibilidade e a verossimilhança da personagem e de suas aventuras.
Por conseguinte, esclarece as motivações e as ações dos caracteres. Ela
se estende ao longo de toda a peça, com os caracteres evoluindo sem-
pre levemente. É acentuada e fundamental na exposição e na instalação
das contradições e dos conflitos. Entretanto, nunca se conhece total-
mente a motivação e a caracterização de todas as personagens; o que
é ótimo, uma vez que o sentido da peça é a resultante sempre incerta
dessas caracterizações: cabe ao espectador definir as coisas e também
sua própria visão dos caracteres (perspectiva).[…] A caracterização da
personagem é sempre dada pela condução da fábula, pelo discurso dos
outros actantes, pelos silêncios e pelos sons, pelas ambiguidades e pe-
las ausências da cena. (PAVIS, 1999, p 38)
402
And thy dear judgment out! (SHAKESPEARE, 1997, I, iv, p. 1312)13
15
/É virtuosa. (SHAKESPEARE, 1990, p. 147)
16 Qual de vós sereis capaz/De declarar maior amor por nós,/Para que a nossa libe-
ralidade/Venha ampliar-se aonde a afeição/Confronte-se com o mérito? (SHAKES-
PEARE, 2000, p. 37)
405
Além da utilização de estratégias imagísticas para enfatizar a
temática do amor, é possível também estabelecer uma relação
entre as peças quanto ao uso de imagens que remetem a anti-
gos mitos ou temas de contos de fadas. Tanto no Mercador de
Veneza quanto em Rei Lear, existe um momento em que uma
escolha é feita, entre três arcas ou entre três mulheres, respec-
tivamente. Freud interpreta essas imagens e entende que am-
bas as peças tratam de um mesmo tema humano: a escolha de
um homem entre três mulheres. Afirma o autor:
Duas cenas de Shakespeare, uma de uma comédia e a outra de uma
tragédia, proporcionaram-me ultimamente ocasião para colocar e solu-
cionar um pequeno problema. A primeira destas cenas é a escolha dos
pretendentes entre os três escrínios, em O Mercador de Veneza. A bela e
sábia Portia está comprometida, a pedido do pai, a tomar como marido
apenas aquele de seus pretendentes que escolha o escrínio certo entre
os três que se lhe acham à frente. Os três escrínios são de ouro, prata e
chumbo: o certo é aquele que contém o retrato dela. Dois pretendentes
já partiram sem sucesso; escolheram ouro e prata. Bassanio, o terceiro,
decide-se em favor do chumbo; assim ganha a noiva, cuja afeição já era
sua antes do julgamento da fortuna. (FREUD, 2006, p. 368)
Este mesmo conteúdo, porém, pode ser encontrado noutra cena de
Shakespeare, num de seus dramas mais poderosamente comoventes;
não a escolha de uma noiva desta vez, mas ligada por muitas semelhan-
ças ocultas à escolha do escrínio em O Mercador de Veneza. O velho Rei
Lear resolve dividir seu reino, enquanto ainda se acha vivo, entre as três
filhas, em proporção à quantidade de amor que cada uma delas expres-
sar por ele. As duas mais velhas, Goneril e Regan, exaurem-se em asse-
verações e louvores de seu amor por ele; a terceira, Cordélia, recusa-se
a fazê-lo. Ele deveria ter reconhecido o despretensioso e mudo amor da
terceira filha e o recompensado, mas não o faz. Repudia Cordélia e divi-
de o reino entre as outras duas, para sua própria ruína e ruína geral. Não
é esta, mais uma vez, a cena de uma escolha entre três mulheres, das
quais a mais jovem é a melhor, a mais excelsa? (FREUD, 2006, p.370)
4 Estratégias de linguagem
No período elisabetano, mais importante que assistir a uma
sequência de ações dramáticas era ouvir o desenrolar dessas
ações. As ações eram determinadas sobretudo pelo texto do
poeta dramático e, por isso, diferentes estratégias de lingua-
gem eram utilizadas na construção do enredo.
Como afirma o diretor de teatro Richard Eyre, citado por Ker-
mode:
A vida das peças está na linguagem, não paralela a ela, ou debaixo dela.
Sentimento e pensamento são liberados no momento da fala. Uma
plateia elisabetana reagiria ao pulsar, ao ritmo, às formas, sons e acima
de tudo significados, dentro da consistente linha de dez sílabas e cinco
acentuações do verso branco. Essa plateia era composta por um público
que ouvia. (EYRE, apud KERMODE, 2006, p. 16)
407
Tendo em vista a relevância da linguagem no drama shakes-
peariano, o presente estudo selecionou algumas dentre as inú-
meras estratégias que evidenciam o valor da palavra e possi-
bilitam significativas aproximações entre as peças objeto de
análise, O mercador de Veneza e Rei Lear. São elas: o uso do ce-
nário verbal, os jogos de palavras e a ironia dramática.
Comecemos pela estratégia do cenário verbal. Ao contrário
dos palcos da Renascença italiana, o teatro elisabetano dispen-
sava o uso de cenários e, por isso, dependia em grande parte do
poder imaginativo da plateia. Paralelamente, cabia às persona-
gens fornecer as indicações espaço-temporais necessárias para
propiciar a construção imaginária do espaço dramático pelo
público. Era por intermédio das falas das personagens que de-
lineava-se o cenário e obtinha-se a atmosfera pretendida para
cada momento da encenação. Conforme Pavis (1999, p. 44),
a técnica do cenário verbal só é possível em virtude de uma convenção
aceita pelo espectador: este tem que imaginar o lugar cênico, a transfor-
mação imediata do lugar a partir do momento em que ele é anunciado.
Em Shakespeare, deste modo, passa-se sem dificuldade de um local
exterior para outro interior, da floresta para o palácio. As cenas enca-
deiam-se sem que seja necessário oferecer algo além de uma simples
indicação espacial ou uma troca de palavras que evoque um lugar dife-
rente (indicações espaço-temporais). (PAVIS, 1999, p. 44)
20 A maioria dos eventos cruciais que ocorrem perto do fim da peça acontece nos
arredores de Dover. Contudo, o lugar é muito mais vividamente evocado na cena do
penhasco de Dover, a qual, na minha opinião, está intimamente relacionada àqueles
eventos. […] Algo que é surpreendente nessa cena é a quantidade de palavras que
sugerem ameaça, que sugerem que alguma coisa assustadora está à espreita em
algum lugar. (TEIXEIRA, 2001, p. 120, tradução nossa)
411
Em relação à comédia O mercador de Veneza, Kermode
(2006, p. 113) a considera “uma boa ilustração do crescente
poder de Shakespeare para produzir um texto impregnado de
ideias, e com palavras sempre questionadas pela própria lin-
guagem da peça”. Para o autor, o trocadilho ou equívoco básico
da peça ocorre com as palavras gentle e gentile (gentil e gentio).
Como exemplo, podemos citar a cena em que o cristão An-
tonio qualifica o judeu Shylock como gentil, insinuando esse
jogo de palavras, ao dizer: “Hie thee, gentle Jew. The Hebrew
will turn Christian, he grows kind.” (SHAKESPEARE, 1997, I, iii, p.
294)21. De acordo com Martins (2004, p. 145), a palavra gentle
fica com duplo sentido devido à sua homofonia com gentile,
além de criar uma oposição com Jew (judeu). Essa ambiguida-
de sugere então que, para ser um gentil-homem, é preciso ser
gentio ou cristão.
Além disso, o uso da palavra kind (traduzida por Heliodora
como bondoso) cria uma nova ambiguidade na cena, tendo em
vista a pluralidade semântica de seus homônimos. Quando a
personagem Antonio afirma que o hebreu se tornará cristão
por estar ficando kind, essa palavra pode assumir aqui mais de
um significado, sugerindo não apenas generoso ou bondoso,
mas também natural, em oposição a selvagem, como acentua
Kermode (2006, p. 110).
Da mesma forma, na tragédia Rei Lear são comuns os troca-
dilhos e ambiguidades relacionados à palavra kind. Um exem-
plo está na maneira do próprio Lear se referir às filhas Goneril e
Regan como unkind daughters (ato III, cena iv), por estas terem
quebrado a ordem natural das coisas ao trair a confiança de seu
pai. Conforme explica Heliodora:
Ser kind é ser não só bondoso como também fiel às características bá-
sicas da espécie, enquanto ser unkind é não ser bondoso mas também
21 Vai, judeu bondoso;/O hebreu está ficando bom cristão.(SHAKESPEARE, 1990,
p. 160)
412
trair a espécie, de modo que a unkindness de Goneril e Regan será a
expressão de sua desumanidade, de sua transgressão da lei natural que,
para o espectador, regia a estrutura familiar… (HELIODORA, 2004a, p.
181)
418
Lembrando a afirmação de Spurgeon (2006, p. 317) sobre a
atmosfera de tortura mental em Rei Lear ser intensificada por
inúmeros verbos que revelam crueldade física e dor corporal,
é perfeitamente viável estabelecermos aqui também uma re-
lação entre as imagens criadoras dessa atmosfera de contínuo
sofrimento e a linguagem utilizada para engendrá-las.
Também o cenário verbal, estratégia de linguagem utilizada
para possibilitar a construção imaginária do espaço dramático
pelo público, inevitavelmente associa-se à estratégia imagística
criadora de uma determinada atmosfera para cada momento
da encenação, pois a imagem pretendida só emerge a partir da
fala das personagens.
Diante dessas ponderações, conclui-se que as estratégias
dramáticas selecionadas, apesar de suas peculiaridades, não se
limitam necessariamente a apenas uma categoria, mas asso-
ciam-se umas às outras e mutuamente se completam. Contu-
do, a divisão em grupos constitui-se em um meio eficaz para
assegurar a compreensão das especificidades de cada estraté-
gia em ambas as peças.
Os inúmeros liames que compõem a tessitura da arte dramá-
tica shakespeariana reverberam a superioridade do intelecto de
seu autor e comprovam a qualidade da obra de Shakespeare.
Tudo em sua arte está perfeitamente ordenado, relacionado,
enredado.
Somos meros aprendizes nesse grande palco que é o mun-
do, apresentado diante de nós. Como disse Caroline Spurgeon
(2006, p. XV), no prefácio de seu livro A imagística de Shakespe-
are, escrito em julho de 1934: “Ninguém pode estudar Shakes-
peare detidamente durante anos sem ficar reduzido à condição
da mais completa humildade”.
Reverência ao Bardo!
419
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Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001.
421
Machado de Assis e Fernando Pessoa: a
melancolia de The raven, de Edgar Allan Poe, em
Natália Rodrigues
Introdução
Percebemos durante as aulas de Literaturas de Língua Ingle-
sa um tópico frequente: os impasses do processo de tradução
literária, no que se refere a priorização da tradução literal ou a
adaptação linguístico-cultural.
Com relação ao poema The Raven, de Edgar Allan Poe, por
exemplo, entre outros desafios do tradutor, destacamos a ne-
cessidade de tradução da expressão “nevermore”, a partir da
qual se estrutura a proposta estética do poema, uma vez que o
tom melancólico do vocabulário e o seu impacto sobre o eu-lí-
rico e o leitor contemplam também a sua proximidade sonora
com o grasnido de um corvo. Em vista disso, o objetivo desse
trabalho é abordar os problemas que envolvem a atividade tra-
dutória, bem como as soluções que o tradutor literário pode
encontrar, na literatura de forma geral e no poema de Poe, em
específico.
Ivo Barroso sintetiza a biografia de Edgar Allan Poe como
“uma vida marcada pela miséria, a desgraça e o alcoolismo;
uma tragédia lamentável, cujo desenlace é um horror aumen-
tado pela trivialidade” (1998, p. 33). Para Perna e Laitano
[...] seja por ter dado voz aos seus sentimentos mais profundos, ou por
ter vivido em uma época que não o compreendeu, produziu contos, po-
emas e ensaios que fascinam leitores e o consagram como um Clássico
da literatura universal. (2009, p. 10).
422
Edgar Allan Poe nasceu em Boston, Massachusetts, em 1809.
O autor iniciou seus estudos em Glasgow e, em 1820, voltou
para os Estados Unidos para frequentar uma escola particular,
onde escreveu seus primeiros versos. Aos dezessete anos, Poe
ingressou na Universidade de Virgínia. Em 1835, o autor se ca-
sou com a sua prima, Virginia Eliza Clemm Poe, que já apresen-
tou os primeiros sintomas de tuberculose em 1842 e, em 1847,
veio a falecer. Em 1844, Poe publicou, depois de outras obras,
seu poema “The Raven”, no qual trabalhou por dois anos.
Por um período de tempo, o autor apresentou o poema em
conferências, enquanto escrevia ensaios críticos e filosóficos,
incluindo “A filosofia da composição”, de 1845, e “O princípio
poético”, de 1850. Embora tenham sido suas obras em prosa
que atraíram maior público, outros de seus poemas de des-
taque são “Annabel Lee”, “For Annie”, “Ulalume” e “The Bells”
(POE, 1999). Edgar Allan Poe faleceu em 1849, depois de cri-
ses de alcoolismo e de um ataque de paralisia facial, de acordo
com Barroso (1998). Em uma primeira leitura, pode-se supor
que “The Raven” inclui aspectos da vida de Poe, porém, segun-
do “A filosofia da composição”, o autor teria seguido critérios
exclusivamente técnicos.
Conforme Barroso (1998), a obra de Poe influenciou a litera-
tura de todo o mundo e foi amplamente traduzida para dife-
rentes idiomas, incluindo as línguas francesa, alemã, espanhola,
italiana e portuguesa. Machado de Assis publicou a sua versão
do poema The Raven em 1883 e Fernando Pessoa, em 1924.
Buscamos realizar uma pesquisa comparativa das versões de
Machado de Assis e de Fernando Pessoa do poema “The Ra-
ven”, de Edgar Allan Poe, por meio da análise, em termos de
conteúdo, da obra original, a fim de delinear as problemáticas
do processo de tradução. Para isso, utilizamos os conceitos
apresentados nas obras “Teorias da tradução”, de José Pinhei-
423
ro de Souza, “Poética da Tradução: Do Sentido à Significância”,
de Mario Laranjeira e “A tradução literária”, de Paulo Henriques
Britto, que contribuem para a análise de modo que, a partir dos
princípios que envolvem o processo de tradução, é possível re-
fletir crítica e objetivamente sobre as escolhas dos autores.
Embora praticada desde a antiguidade, a tradução se cons-
tituiu como área de estudos autônoma a partir da década de
1970 (BRITTO, 2012). Dessa forma, a teorização e as discussões
a respeito desta atividade são relativamente recentes. O teórico
da tradução, segundo Britto, “é um investigador de uma práxis
social específica voltada para um determinado fim: a produção
de textos que possam substituir outros textos.” (BRITTO, 2012,
p. 41). Em vista disso, faz-se relevante, além de buscar contri-
buir com o campo de estudos da tradução, investigar como e se
esses objetivos podem ser alcançados.
A princípio, realizaremos uma análise do poema “The Raven”,
de Edgar Allan Poe. A seguir, delinearemos as teorias envolven-
do o processo de tradução, à luz de alguns conceitos apresen-
tados por Souza, Laranjeira e Britto. Em um terceiro momento,
abordaremos as versões de Machado de Assis e de Fernando
Pessoa da obra, sob uma perspectiva voltada mais especifica-
mente para o conteúdo, ainda que reconheçamos que algumas
questões de estrutura são relevantes para toda a obra e para
este trabalho. Nesse sentido, buscaremos identificar e discutir
aspectos lexicais e rítmicos, assim como perceber de que modo
os trajetos de Assis e de Pessoa refletem em suas escolhas
no processo de tradução. Por fim, retomaremos as principais
questões discutidas no trabalho, a fim de apresentar as consi-
derações finais.
424
O pensamento por trás de The raven
O poema “The Raven” é composto por dezoito estrofes de
seis versos e apresenta um esquema de rimas ABCBBB, sendo
que que a rima B é sempre um som de “or” (Lenore, door, more,
evermore, nevermore, etc.). Na primeira estrofe, é possível per-
ceber o uso da repetição, de modo a criar um efeito sonoro que
enfatiza o bater na porta, nos versos:
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
“This some visitor”, I muttered, ‘tapping at my chamber door–
Only this and nothing more.”1 (POE, 2017, p. 354).
p. 361). “E a única palavra dita foi um nome cheio de ais – / Eu o disse, o nome dela,
e o eco disse aos meus ais.” (PESSOA, 2017, p. 367).
6 “Eia, fora o temor, eia, vejamos / A explicação do caso misterioso / Dessas duas
pancadas tais. / Devolvamos a paz ao coração medroso,” (MACHADO, 2017, p.
361). “Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais’ / Meu coração se distraía
pesquisando estes sinais.” (PESSOA, 2017, p. 367).
7 “Vens, embora a cabeça nua tragas, / Sem topete, não és ave medrosa / Dize os
teus nomes senhorais / Como te chamas tu na grande noite umbrosa?” (MACHADO,
2017, p. 362). “Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! / Dize-me qual o teu
nome lá nas trevas infernais.” (PESSOA, 2017, p. 367).
8 “Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, / Ao pé de muita lauda antiga, / De uma
velha doutrina, agora morta / Ia pensando, quando ouvi à porta” (MACHADO, 2017,
p. 359). “E já quase adormecia, ouvi o que parecia” (PESSOA, 2017, p. 366).
9 “Eu, ansioso pelo sol, buscava / Sacar daqueles livros que estudava” (MACHADO,
2017, p. 360). “Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada / P’ra
esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –” (PESSOA, 2017, p. 366).
10 A ideia de “originalidade”, segundo Barros (2009), era um dos princípios
fundamentais do Romantismo.
426
Tendo em vista, pois, a originalidade, Poe começou por re-
fletir sobre um efeito específico de sua obra sobre seus leito-
res. A sua preocupação inicial se dirigia à extensão. Para o autor,
o grau de duração do poema é um aspecto importante para a
produção do efeito desejado.
Se uma obra literária é longa demais para ser lida numa única senta-
da, somos obrigados a abrir mão do efeito, cuja importância é imensa,
causado pela unidade de impressão– pois se duas sessões de leitura se
fizerem necessárias, os assuntos do mundo intervirão, e a impressão de
totalidade será destruída por completo. (POE, 2019, p. 60).
11 “Profeta, ou o que quer que sejas! / Ave ou demônio que negrejas! / Profeta
sempre, escuta, atende, escuta, atende! / Por esse céu que além se estende, / Pelo
Deus que ambos adoramos, fala, / Dize a esta alma se é dado inda escutá-la / No
Éden celeste a virgem que ela chora / Nestes retiros sepulcrais, / Essa que ora nos
céus anjos chamam Lenora!” (MACHADO, 2017, p. 364). “‘Profeta’, disse eu, ‘profeta
– ou demônio ou ave preta! / Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais. /
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida / Verá essa hoje perdida entre
hostes celestiais, / Disse o corvo, ‘Nunca mais’.” (PESSOA, 2017, p. 369).
12 “No entanto, o corvo solitário / Não teve outro vocabulário,” (MACHADO, 2017,
p. 362). “Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,” (PESSOA, 2017, p.
368).
429
out my heart”, no verso “Take thy beak from out my heart, and
take thy form from off my door!”13 (POE, 2017, p. 357).
Elas [as palavras], juntamente com a resposta, nevermore, sugerem
à mente que procure uma moral em tudo que foi narrado até então.
O leitor começa agora a encarar o Corvo como um símbolo [...]. (POE,
2019, p. 73).
13 “Tira-me ao peito essas fatais / Garras que abrindo vão a minha dor já crua.”
(MACHADO, 2017, p. 365). “Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
(PESSOA, 2017, p. 369).
14 “No chão espraia a triste sombra; e, fora / Daquelas linhas funerais / Que flutuam
no chão, a minha alma que chora / Não sai mais, nunca, nunca mais!” (MACHADO,
2017, p. 365). “E a minh’alma dessa sombra que no chão há mais e mais, / Libertar-
se-á... nunca mais!”. (PESSOA, 2017, p. 369).
430
enquadram-se na tradução interlingual, visto que consiste na
interpretação da língua inglesa para a língua portuguesa.
Em todos esses processos de tradução – intersemiótica, intralingual,
interlingual – o que se busca é a equivalência entre a mensagem I e a
mensagem II, não a identidade absoluta, que, por definição, é impossí-
vel. (LARANJEIRA, 2003, p. 18).
432
Pessoa se preocupa em reproduzir o uso de recursos alite-
rativos, presente, entre outros, nos versos: “Numa meia noite
agreste, quando eu lia, lento e triste”, “Como, a tremer frio e
frouxo, cada reposteiro roxo” (PESSOA, 2017, p. 366) e “A treva
enorme fitando, fiquei perdido receando,” (PESSOA, 2017, p.
367). Além disso, o autor faz uso de epístrofe, isto é, repetição
de palavras no final de versos próximos, como nos versos: “E a
única palavra dita foi um nome cheio de ais –” / Eu o disse, o
nome dela, e o eco disse aos meus ais–”, / “Eu o disse, o nome
dela, e o eco disse aos meus ais.”, “Vamos ver o que está nela, e
o que são estes sinais. / Meu coração de distraía pesquisando
estes sinais.” E “Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!”
/ Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.” (PESSOA,
2017, p. 367).
Por fim, notamos a presença de cesura em ambas as versões,
entre outros, nos versos “Em certo dia, à hora, à hora” (MACHA-
DO, 2017, p. 359) e “Falo: Imploro de vós,– ou senhor ou se-
nhora,” (MACHADO, 2017, p. 361) e “Numa meia-noite agreste,
quando eu lia, lento e triste,” e “E o fogo, morrendo negro, urdia
sombras desiguais.” (PESSOA, 2017, p. 366).
Assim como no texto original em Língua Inglesa, tanto na
tradução de Machado e quanto na de Pessoa, a primeira men-
ção da figura da mulher amada se dá na segunda estrofe, com
os versos: “Sacar daqueles livros que estudava / Repouso (em
vão!) à dor esmagadora / Destas saudades imortais / Pela que
ora nos céus anjos chamam Lenora. / E que ninguém chamará
mais.” (ASSIS, 2017, p. 360) e “P’ra esquecer (em vão!) a amada,
hoje entre hostes celestiais – / Essa cujo nome sabem as hos-
tes celestiais, / Mas sem nome aqui jamais!” (PESSOA, 2017,
p. 366). Em ambos os casos, é possível entender que a mulher
está morta. Da mesma forma, as duas versões reproduzem o
433
sentimento de esperança do narrador quanto ao retorno de Le-
nora:
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço; (MACHADO, 2017, p.
361).
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais. (PESSOA, 2017, p.
367).
434
Os versos mencionam temas espirituais, assim como o dese-
jo do eu-lírico de esquecer Lenore.
Ao mesmo tempo, as duas versões retratam a aspiração do
eu-lírico em encontrar Lenore depois da vida, que Machado e
Pessoa traduzem para: “Dize a esta alma se é dado inda escu-
tá-la / No Éden celeste a virgem que ela chora / Nestes reti-
ros sepulcrais, / Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!’”
(MACHADO, 2017, p. 364) e “Dize a esta alma entristecida se
no Éden de outra vida / Verá essa hoje perdida entre hostes
celestiais, / Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!’” / Essa
cujo nome sabem as hostes celestiais!” (PESSOA, 2017, p. 369)
e para qual o corvo responde “Nunca mais”.
Em termos de narração, as duas traduções são capazes de
exprimir a dor e o desespero do eu-lírico. A simbologia do corvo
é retratada nas duas estrofes finais, com os versos, no poema
original: “Take thy beak from out my heart, and take thy form
from off my door!” (POE, 2017, p. 357) e “And my soul from out
that shadow that lies floating on the floor / Shall be lifted–ne-
vermore!” (POE, 2017, p. 357), os quais Machado e Pessoa tra-
duzem para “Tira-me ao peito essas fatais / Garras que abrindo
vão a minha dor já crua.” (MACHADO, 2017, p. 365), “Que flu-
tuam no chão, a minha alma que chora / Não sai mais, nunca,
nunca mais!” (MACHADO, 2017, p. 365), “Tira o vulto de meu
peito e a sombra de meus umbrais!” (PESSOA, 2017, p. 369)
e “E a minh’alma dessa sombra que no chão há mais e mais, /
Libertar-se-á... nunca mais!” (PESSOA, 2017, p. 369).
Britto (2019) ressalta o fato de que Pessoa não menciona, em
sua tradução, o nome de Lenore, no que se refere aos versos:
“From my books surcease of sorrow –sorrow for the lost Lenore
– / For the rare and radiant maiden whom the angels name Le-
nore – / Nameless here for evermore.” (POE, 2017, p. 354), que
Pessoa traduz para “P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre
435
hostes celestiais – / Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
/ Mas sem nome aqui jamais!” (PESSOA, 2017, p. 366). O tex-
to original conteria, pois, uma pequena contradição: “o eu lírico
revela o nome da amada, ‘Lenore’, dizendo que os anjos a cha-
mam de ‘Lenore’, mas logo em seguida afirma que no mundo
dos vivos ela permanecerá para sempre sem nome”. (BRITTO,
2019, p. 52). Para o autor, esta escolha de Pessoa acentua ainda
mais os padrões românticos de poeticidade utilizados por Poe:
“[...] se a morte de uma bela mulher é o tema mais poético que
existe, a morte de uma bela mulher cujo nome não pode mais
sequer ser pronunciado neste mundo caído é algo ainda mais
poético.” (BRITTO, 2019, p. 53).
Finalmente, destacamos a expressão “nevermore”, em que
“The Raven” se alicerça e a qual Machado e Pessoa traduzem
para “nunca mais”. Segundo Britto (2019, p. 35), “[...] a sonorida-
de da expressão inglesa se aproxima ao grasnido de um corvo
bem mais do que sua tradução para o português ou qualquer
outra língua neolatina”. Nas duas traduções, pois, perdemos
parte do efeito causado pela proximidade sonora entre “never-
more” e o grasnido de um corvo, que contribui com o tom me-
lancólico e o impacto sobre o eu-lírico e o leitor.
Machado e Pessoa traduzem o verso “Soon I heard again a
tapping somewhat louder than before.” (POE, 2017, p. 355) para
“Logo depois outra pancada / Soa um pouco mais forte; eu,
voltando-me a ela:” (MACHADO, 2017, p. 361) e “Não tardou
que ouvisse novo som batendo mais e mais.” (PESSOA, 2017,
p. 367). Notamos que uma “pancada” tem um impacto maior
que um “bater”, que se aproxima mais do significado de “ta-
pping”. No verso “To the fowl whose fiery eyes now burned into
my bosom’s core;” (POE, 2017, p. 356), Poe faz alusão a “quei-
mar”, a qual apenas Machado mantém: “Sentia o olhar que me
436
abrasava.” (MACHADO, 2017, p. 363); “À ave que na minha alma
cravava os olhos fatais,” (PESSOA, 2017, p. 368).
Destacamos ainda a tradução de Pessoa de “dreary” e “pon-
dered, weak and weary” para “agreste” e “lia, lento e triste”. Em
relação à tradução de poema, Britto (2012) ressalta a dificulda-
de em reproduzir todos os elementos da obra original. Cabe ao
tradutor, portanto, “sacrificar” um ou outro, de modo a alcançar
um equilíbrio. Em vista disso, “agreste” e “lia, lento e triste” não
apresentam o mesmo significado que “dreary” e “pondered,
weak and weary” precisamente, mas funcionam como corres-
pondentes, ao mesmo tempo em que preservam aspectos de
ritmo. Mafra e Schrull (2012, p. 12), ao discorrer sobre o texto de
Pessoa, apontam que “segundo o próprio autor, o objetivo des-
sa tradução era preservar ao máximo os componentes rítmicos
presentes no original”. Percebemos que Machado, no entanto,
não tem a mesma preocupação. “Em The Raven, por exemplo,
Machado desvia-se de modo sistemático do texto fonte, o que
torna difícil aceitar que sua postura não teria sido proposital.”
(MAFRA; SCHRULL, 2011, p. 12). Dessa forma, notamos que os
“desvios” do autor em relação ao poema original envolvem mé-
todo e objetivo.
Britto (2019, p. 47) escreve:
“O Corvo” de Machado de Assis é um poema bem-acabado, dentro dos
padrões parnasianos que pautam toda a poesia do autor; em termos
semânticos, é uma tradução bem fiel ao original; mas as opções formais
do tradutor fazem dele um poema muito diferente de “The Raven”, a
ponto de não poder ser considerado uma boa tradução, tal como en-
tendemos a expressão.
438
refletir acerca da unicidade do poema e perceber a tradução
como a escrita de uma das leituras do texto.
Britto escreve que “ao traduzir um poema composto em ver-
sos cuidadosamente medidos e rimados, o tradutor terá de pro-
duzir um texto poético tão regular quanto o original” (BRITTO,
2012, p. 54). Nessa concepção, melhor se encaixa a tradução de
Fernando Pessoa, visto que preserva, na medida do possível, os
aspectos formais do poema. Machado de Assis, por outro lado,
não tem a mesma preocupação. De acordo com Laranjeira:
[...] como é a poesia essencialmente aberta para uma infinidade de lei-
turas, a reescrita dessa infinitude de leituras dá ao poema uma gama
maior de possibilidades de realizações textuais pela via da tradução.
(LARANJEIRA, 2003, p. 38).
439
ASSIS, Machado de. O Corvo. In: Edgar Allan Poe: Medo Clássico. Tra-
dução de Marcia Heloisa. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017.
BARROS, José D.’Assunção. O romantismo e o revival gótico no sé-
culo XIX. Artefilosofia, v. 4, n. 6, p. 169-182, 2009.
BARROSO, Ivo. (org.) O corvo e suas traduções. Rio de Janeiro: Lacer-
da Ed., 1998.
BRITTO, P. H. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra, 2012.
BRITTO, P. H. Um raven e dois corvos. In: Edgar Allan Poe: O Corvo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LARANJEIRA, Mario. Poética da Tradução: Do Sentido à Significân-
cia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
MAFRA, Adriano; SCHRULL, Munique. Análise de quatro traduções
do poema The Raven de Edgar Allan Poe. Translatio, n. 2. p. 10-10,
2011.
PERNA, Cristina; LAITANO, Paloma. O clássico Edgar Allan Poe. Le-
tras de hoje, v. 44, n. 2, 2009.
PESSOA, Fernando. O Corvo. In: POE, Edgar Allan Poe: Medo Clássi-
co. Tradução de Marcia Heloisa. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017.
POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: Edgar Allan Poe: O
Corvo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Globo Livros, 1999.
POE, Edgar Allan. The Raven. In: Edgar Allan Poe: Medo Clássico. Tra-
dução de Marcia Heloisa. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017.
SOUZA, José Pinheiro de. Teorias da tradução: uma visão integrada.
1998.
440
ANEXO A – “THE RAVEN”, DE EDGAR ALLAN POE
The Raven
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and
weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore—
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tap-
ping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door—
“’Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door—
Only this and nothing more.”
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and
flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or
stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber
door—
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door—
442
Perched, and sat, and nothing more.
But the Raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered—not a feather then he flut-
tered—
Till I scarcely more than muttered “Other friends have flown
before—
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown
before.”
Then the bird said “Nevermore.”
445
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off
my door!”
Quoth the Raven “Nevermore.”
O Corvo
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
“É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais.”
O Corvo
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”
17 Disponível em <https://luradoslivros.wordpress.com/2007/05/23/the-raven-
por-edgar-allan-poe-e-sua-traducao-por-fernando-pessoa/>.
458
Questão de gênero
Queerbaiting
peça Harry Potter and the Cursed Child
1 Introdução
Esse artigo pretende fazer uma análise da peça Harry Potter
and the Cursed Child (2016) como uma narrativa que faz uso da
aproximação entre dois personagens masculinos, mas que esse
relacionamento não se efetiva. A partir disso, visamos trazer
uma definição delimitada do fenômeno denominado queer-
baiting e as várias formas na qual ele pode se manifestar em
diferentes mídias. Com essa definição, pretendemos distinguir
como tal fenômeno se realiza na peça, analisando certa pro-
ximidade com o desdobramento das comédias românticas.
Além disso, a comparação entre as duas versões da peça torna-
-se um procedimento para aprofundarmos nossa análise, pois
acreditamos que, através de comparações entre o roteiro origi-
nal de quatro partes e a reescrita oficial de duas partes, possa-
mos identificar modificações que podem se configurar como
estratégias de queerbaiting, e, por fim, pretendemos avaliar a
recepção do público a essa narrativa por meio de publicações
em rede social.
O universo do Mundo Mágico, onde Harry Potter está inse-
rido, pode ser considerado um dos grandes pilares da cultura
pop mundial da atualidade, principalmente se levarmos em
consideração o número de cópias vendidas da série: mais de
500 milhões (WRADMIN, 2021). A série de sete livros sozinha
marcou gerações de uma forma que poucas obras conseguiram.
De acordo com Hanne Birk, Denise Burkhard e Marion Gym-
nich, em artigo intitulado “‘Harry – yer a wizard’: Exploring J.K.
1
460
Rowling’s Harry Potter Universe”, “the novels have played a vital
role in establishing the notion of ‘crossover/all-ages literature’
as one of the key terms within research in the thriving field of
children’s and young adult literature studies” [os romances têm
desempenhado um papel vital no estabelecimento da noção de
“literatura de crossover/para todas as idades” como um dos ter-
mos-chave dentro da pesquisa no próspero campo de estudos de
literatura infantil e de jovens adultos.] (2017 p. 7, tradução nossa).
Harry Potter and the Cursed Child (2016) se enquadra como
sequência da saga de sete livros, estabelecendo-se nesse uni-
verso como a continuidade da história do personagem principal,
porém trazendo como foco a próxima geração de personagens
e, como pilar central da narrativa, o relacionamento (ambíguo)
entre Albus Potter (filho de Harry Potter e Gina Weasley) e
Scorpius Malfoy (filho de Draco Malfoy e Astoria Greengrass).
Porém, por ser uma peça de teatro em vez de um romance tor-
na mais difícil nosso acesso ao espetáculo.
Por exemplo, os livros foram adaptados para o cinema, facili-
tando o acesso da comunidade a essa narrativa visual. Além dis-
so, na prosa, percebemos uma estrutura mais descritiva em que
a verdade dos sentimentos de uma pessoa se exprime através
do monólogo interno e fornece pormenores visuais através de
uma boa descrição. Por outro lado, a peça se apresenta através
dos atores e dos colaboradores criativos, que trabalham para
dar vida no palco aos elementos presentes no roteiro. Há uma
singularidade na recepção da peça, que fica, muitas vezes, res-
trita à leitura do roteiro, já que o espetáculo foi encenado, em
uma primeira versão, no Teatro de Londres e na Broadway e,
neste momento, encontra-se em cartaz, novamente, em uma
nova versão, em Nova Iorque. Esse problema relacionado à di-
ferença de consumo da obra é algo que fica claro a partir da
461
própria fala de um dos diretores da peça original, Jack Thorne,
em uma discussão introdutória no livro de roteiro da peça:
I remember in rehearsals we’d delete chunks of the script because the
actors were communicating something effortlessly with a look, so didn’t
need the lines I’d written.
[Lembro que nos ensaios apagávamos pedaços do roteiro porque os ato-
res comunicavam algo sem esforço com um olhar, então {o roteiro} não
precisaria das falas que eu havia escrito]. (THORNE, 2016, n.p., tradução
nossa)
464
era o objetivo da reestruturação da peça, além do encurtamen-
to: atingir o público LGBTQ+ e cativar pink money.
Um fenômeno que ocorre com bastante intensidade no con-
texto da recepção da peça é o estabelecimento de comunidades
interpretativas, tal como encontrado no E-Dicionário de Termos
Literários definido por Almeida (2009):
aquele ponto de intersecção a partir do qual se constrói uma certa esta-
bilidade significativa, a partir do momento em que os indivíduos que ali
se agrupam compartilham regras e estratégias de leitura que emoldu-
ram a aceitabilidade interpretativa e que permitem a comunicabilidade,
o intercâmbio e a coincidência de interpretações. (ALMEIDA, 2009)
465
Além disso, os personagens de Remo Lupin e Sirius Black se
mostravam na narrativa como personagens fortemente codi-
ficados como LGBTQ+, através de subtextos e metáforas em
relação à descrição das personagens e suas vivências dentro da
narrativa. Remo Lupin sofria com a condição de licantropia, algo
que a própria autora explicitou, em outra entrevista, que havia a
intenção de ser uma metáfora para pessoas soropositivas, num
universo que se passa nos anos 80 e 90. O aspecto subtextual
da história está relacionado ao personagem de Sirius Black, que
fugiu de casa aos 16 anos por conta das crenças preconceituo-
sas de sua própria família. Ambos os personagens morreram no
decorrer dos livros, e um deles fora de tela.
Levando isso em consideração, a estratégia estabelecida
se mostra quase prevista pela comunidade consumidora das
obras na peça de Harry Potter and the Cursed Child.
2 Análise da peça
Na peça Harry Potter and the Cursed Child, o queerbaiting
se manifesta através de paralelos subtextuais, que serão veri-
ficadas mais profundamente a partir da análise do texto ori-
ginal, da comparação de sua reescrita a partir de duas versões
da peça, representadas na Broadway em 2016 e depois, com
algumas modificações em 2021, e sua recepção.
Para dar início na análise, partiremos de uma consideração
sobre os 10 elementos narrativos que constituem a comédia
romântica, pois tais elementos evidenciam a insinuação da re-
lação amorosa entre Albus e Scorpius.
Em um segundo momento, pretendemos demonstrar como
algumas mudanças efetuadas na versão de 2021 apontam para
uma adequação do relacionamento entre o par principal.
Para finalizar a análise, iremos verificar como se deu a recep-
ção da narrativa pelo público através das redes sociais, tornando
466
mais clara como a estratégia de queerbaiting se evidencia para
os leitores/espectadores que leram e/ou foram ver a peça, de
acordo com seus comentários.
2.1 Enredo
Para iniciar nosso estudo, devemos mencionar que há uma
relação de expectativa do leitor/espectador sobre as narrativas
ligadas ao universo Harry Potter, sejam elas literárias, teatrais
ou fílmicas. Nesse sentido, partimos para uma análise da orga-
nização narrativa das comédias românticas e como os elemen-
tos desse gênero podem ser encontrados na peça Harry Potter
and the Cursed Child, pois essa estrutura comporá a estratégia
do queerbaiting.
Sobre essa perspectiva, a comédia romântica possui ele-
mentos narrativos característicos em sua constituição e, como
gênero arquetípico no campo do cinema, apresenta-se como
dominante no imaginário dos espectadores. Assim, diferentes
tipos de elementos são estabelecidos numa ordem específica,
cuja disposição pode variar. Elementos como a introdução de
two lovable leads, que basicamente consiste na introdução de
dois protagonistas “amáveis”, na justificativa de que a audiência
deverá torcer pela dupla, e como há a necessidade de – por ser
uma comédia romântica – um final feliz.
Na peça, seja na versão original seja na versão reescrita, há
uma boa quantidade desses elementos narrativos, como, por
exemplo, two lovable leads (dois protagonistas amáveis, tradu-
ção literal), meet cute (apresentação fofa, tradução literal), trou-
blesome situation (situação única e difícil, tradução literal), rela-
tionship in Jeopardy (relacionamento em perigo, tradução literal),
the lightbulb moment (momento lâmpada, tradução literal), a
467
grand gesture or epic line (gesto grandioso ou fala épica, tradução
literal).2
No caso de two lovable leads (dois protagonistas amáveis, tra-
dução literal), os dois personagens principais se estabelecem
como amáveis de acordo com suas características, que podem
ser classificados como “relacionáveis” em relação ao especta-
dor e de acordo com a química entre eles. A caracterização de
Scorpius se mostra como um dos melhores aspectos da peça e
sua dinâmica com Albus – seja romântica ou não – se evidencia
como a base da narrativa.
Outro exemplo presente na narrativa de comédia romântica
é o meet cute (apresentação fofa, tradução literal), o momen-
to da narrativa em que os dois personagens se conhecem, que
normalmente contêm falas que se mostram com característi-
cas específicas que em geral insinuam um relacionamento ro-
mântico. Em Harry Potter and the Cursed Child, a cena em que
os personagens principais se apresentam pela primeira vez tem
características do meet cute:
ALBUS: Hi. Is this compartment . . .
SCORPIUS: It’s free. It’s just me.
ALBUS: Great. So we might just — come in — for a bit — if that’s okay?
SCORPIUS: That’s okay. Hi.
ALBUS: Albus. Al. I’m — my name is Albus…
SCORPIUS: Hi, Scorpius. I mean, I’m Scorpius. You’re Albus. I’m Scorpius.
[ALBUS: Oi. Este compartimento está…
SCORPIUS: Está livre. Só eu estou aqui.
ALBUS: Ótimo. Então nós podemos entrar... por um tempo, se estiver tudo
bem?
SCORPIUS: Tá bom. Oi.
ALBUS: Albus. Al. Eu sou... meu nome é Albus.
SCORPIUS: Oi, Scorpius. Quero dizer, eu sou Scorpius. Você é Albus. Eu sou
Scorpius.]
HPCC3 (2016, n.p.), Ato 1 cena 3, tradução nossa.
2 Elementos narrativos retirados do site Screencraft, escrito por Britton
Perelman (2021).
3 A partir daqui iremos referenciar o livro Harry Potter and the Cursed Child
como HPCC e a reescrita como HPCC1.
468
É possível identificar o fenômeno do meet cute desde a pri-
meira cena em que os dois personagens interagem: o nervosis-
mo e a timidez, que são comuns em apresentações de um casal
que eventualmente se tornam romântico, se mostram eviden-
tes, o que pode levar o leitor/espectador a encarar o relaciona-
mento entre Albus e Scorpius como amoroso.
Outro movimento da narrativa da peça que se aproxima da
comédia romântica é a unique, troublesome situation (situação
única e difícil, tradução literal), que é quando ocorre um conflito
essencial na narrativa que faz com que os personagens princi-
pais se encontrem: a) na mesma situação complicada; e b) for-
çados a lidarem com essa situação juntos. Nesse caso, tal mo-
mento pode ser encontrado quando, de uma forma impulsiva,
Albus convence Scorpius a roubar o Vira-Tempo do Ministério e
salvar Cedrico Diggory, antigo colega de seu pai. Assim, o con-
flito principal da peça se estabelece quando esses dois perso-
nagens voltam no tempo e devem consertar as discrepâncias
que eles causaram.
Mais um elemento essencial da ordem das comédias român-
ticas que se mostra muito presente na narrativa da peça é a
relationship in jeopardy (relacionamento em perigo, tradução li-
teral), que é o momento mais baixo na narrativa em relação ao
relacionamento das personagens:
Beat.
SCORPIUS: There was a moment I was excited, when I realized time
was different, a moment when I thought maybe my mum hadn’t got
sick. Maybe my mum wasn’t dead. But no, turns out, she was. I’m still
the child of Voldemort, without a mother, giving sympathy to the boy
who doesn’t ever give anything back. So I’m sorry if I’ve ruined your life
because I tell you — you
wouldn’t have a chance of ruining mine — it was already ruined. You just
didn’t make it
better. Because you’re a terrible — the most terrible — friend.
ALBUS digests this. He sees what he’s done to his friend.
[Baque.
469
SCORPIUS: Tem momentos que fiquei animado, quando percebi que o
tempo estava diferente. Por um momento pensei que, talvez, minha mãe
não tivesse adoecido, e que não estivesse morta. Mas não, ela está. E eu
ainda sou o filho de Voldemort, sem uma mãe, oferecendo simpatia a um
garoto que nunca retribui. Então me desculpe se arruinei sua vida, porque
não teria a chance de arruinar a minha. Já está toda arruinada. Você não a
faz melhor, porque é um terrível — o mais terrível — amigo.
ALBUS digere as palavras. Ele vê o que fez com SCORPIUS.]
HPCC (2016, n.p.), Ato 2 cena 16, tradução nossa.
470
O que temos nesse diálogo é a enunciação do reconheci-
mento da proximidade entre Albus e Scorpius, veiculada a par-
tir de uma afinidade quase espiritual, através do pensamento,
já que se trata da lembrança de um evento, e figurada como
física na cena como se, nesse momento, houvesse uma conso-
lidação do relacionamento nos campos imaginário e empírico.
Além disso, há o momento que se é denominado como a
grand gesture or epic line (gesto grandioso ou fala épica, tradução
literal), que é o momento da narrativa quando um dos perso-
nagens decide fazer uma descrição ou fala que se torna icôni-
ca para a obra. Na peça, ele pode ser reconhecido na seguinte
cena:
SCORPIUS: Your dad thinks the rumors are true — I am the son of Vol-
demort?
ALBUS (nods): His department is currently investigating it.
SCORPIUS: Good. Let them. Sometimes — sometimes I find myself
thinking — maybe they’re true too.
ALBUS: No. They’re not true. And I’ll tell you why. Because I don’t think
Voldemort is capable of having a kind son — and you’re kind, Scorpius.
From the depths of your belly, to the tips of your fingers. I truly believe
Voldemort — Voldemort couldn’t have a child like you.
Beat. SCORPIUS is moved by this.
SCORPIUS: That’s nice — that’s a nice thing to say.
ALBUS: And it’s something I should have said a long time ago. And you
don’t — you couldn’t — hold me back. You make me stronger — and when
Dad forced us apart — without you —
SCORPIUS: I didn’t much like my life without you in it either.
ALBUS: And I know I’ll always be Harry Potter’s son — and I will sort that
out in my head — and I know compared to you my life is pretty good,
really, and that he and I are comparatively lucky and —
SCORPIUS (interrupting): Albus, as apologies go this is wonderfully ful-
some, but you’re starting to talk more about you than me again, so pro-
bably better to quit while you’re ahead.
ALBUS smiles and stretches out a hand.
ALBUS: Friends?
SCORPIUS: Always.
SCORPIUS extends his hand, ALBUS pulls SCORPIUS up into a hug.
471
[SCORPIUS: Seu pai acha que os rumores são verdadeiros, e que sou o filho
de Voldemort?
ALBUS (concorda): O seu departamento está investigando.
SCORPIUS: Deixa eles. Às vezes penso que sejam verdadeiros, também.
ALBUS: Não, não são. Voldemort não era capaz de ter um filho tão gentil.
E você é gentil, Scorpius. Do fundo da sua barriga até as pontas dos dedos.
Voldemort não poderia ter um filho como você.
Baque. Scorpius se comoveu com isso.
SCORPIUS: Isso é uma boa coisa para se dizer.
ALBUS: E é algo que deveria ter dito muito tempo atrás. Na verdade, você é
a melhor pessoa que conheço. Você não me atrapalha, me faz sentir forte.
Quando meu pai forçou que nos afastássemos, sem você…
SCORPIUS: Não gostei da minha vida sem você também.
ALBUS: Sei que sempre serei filho de Harry Potter, e vou aceitar isso na
minha cabeça. E eu sei que comparado a você, minha vida é muito boa, e
que meu pai e eu somos relativamente sortudos, e…
SCORPIUS (interrompendo): ALBUS, por mais que as desculpas estejam
sendo maravilhosamente lisonjeadoras, mas você está falando mais de
você do que de mim, de novo, então provavelmente é melhor parar en-
quanto você pode.
ALBUS sorri e estende sua mão
ALBUS: Amigos?
SCORPIUS: Sempre.
SCORPIUS estende sua mão, ALBUS puxa SCORPIUS para um abraço.]
HPCC (2016, n.p.), Ato 2 cena 16, tradução nossa, destaque nosso.
Nesse caso, nós temos a fala que, nos livros originais do Harry
Potter, se tornou uma das mais marcantes da saga, marcando
a cultura pop de maneira expressiva. Originalmente, associada
ao amor (obsessivo) de Severo Snape por Lily Evans-Potter, a
expressão “always” é lida como uma fala romântica por grande
parte da recepção dos livros. Por conta disso, a análise na qual
confirma a interpretação romântica entre os protagonistas da
peça se torna mais transparente.
472
Harry Potter e a câmara secreta Harry Potter e a criança amaldi-
çoada
– Porque é isso que Mione faz – ALBUS/RONY: Como distrair Scor-
disse Rony sacudindo os ombros. pius de questões emocionais difí-
– Quando tiver uma dúvida, vá à ceis? Leve-o a uma biblioteca.
biblioteca. HPCC (2016, n.p.), Ato 1 cena 19,
Harry Potter e a Câmara Secreta tradução nossa
(1998), p. 108
A proximidade entre as falas demonstra como o mecanismo
do relacionamento amoroso entre os “casais” é muito pareci-
do. Nesse sentido, a contraposição das personagens de Scor-
pius Malfoy e Hermione Granger e como elas agem, ao mesmo
tempo a comparação das reações de Albus Potter e Rony We-
asley, através do subtexto, acaba por insinuar, quando compa-
ramos os trechos, a leitura dos protagonistas como casais even-
tualmente românticos.
Adicionalmente, há outras comparações, desta vez intra-
-narrativas, que sugerem paralelos que fortalecem o subtexto
romântico do “casal” principal, reforçando, ao mesmo tempo,
o diagnóstico de queerbaiting na peça. Draco Malfoy é casado
com Astoria Greengrass, que morre no primeiro ato. No terceiro
ato da peça, Scorpius está preso numa realidade em que a ma-
gia negra reina e Voldemort sobreviveu à batalha final, quando
ele tem uma conversa com seu pai, a peça traz outro tema, que
se torna constante na peça:
SCORPIUS: I don’t want to be who I am.
DRACO: And what’s brought that on?
SCORPIUS desperately thinks for a way of describing his story.
SCORPIUS: I’ve seen myself in a different way.
473
DRACO: You know what I loved most about your mother? She could
always help me find light in the darkness. She made the world — my
world, anyway — less — what was the word you used — “murky.”
SCORPIUS: Did she?
[SCORPIUS: Eu não quero ser o que eu sou.
DRACO: E o que causou isso?
SCORPIUS pensa desesperadamente em uma forma de explicar sua his-
tória.
SCORPIUS: Eu me vi de uma forma diferente.
DRACO: Sabe o que eu mais amava sobre sua mãe? Ela sempre me ajudou
a achar luz na escuridão. Ela fazia com que o mundo – o meu mundo, de
qualquer forma – menos – como foi a palavra que você usou – nebuloso.
SCORPIUS: Ela fazia?]
HPCC (2016, n.p.), Ato 3 cena 3, tradução nossa, destaque nosso
479
As alterações, novamente, mostram um objetivo de instaura-
ção do não-interesse romântico de Scorpius em relação à Rose.
Dessa forma, fortalecendo o entendimento dos protagonistas
como um possível casal romântico com mais objetividade.
Além da extração dos diálogos insinuando o romance entre
Scorpius e Rose, há também a alteração de cenas para que surja
uma insinuação maior entre os protagonistas, seja tal insinua-
ção feita pelos próprios sobre eles mesmos, seja por persona-
gens terceiros. Por exemplo:
SNAPE: Think of something else,
Scorpius. Occupy your thoughts.
But SCORPIUS can’t occupy his
thoughts.
SCORPIUS: I feel cold. I can’t see.
There’s a fog inside me — around me.
SNAPE: You’re a king, and I’m a pro-
fessor. They’ll only attack with good
reason. Think about those you love,
think about why you’re doing this.
SCORPIUS (utterly consumed): I
can hear my mother. She wants me
— my help — but she knows I can’t
— help.
SNAPE: Listen to me, Scorpius.
Think about Albus. You’re giving up
your kingdom for Albus, right?
SCORPIUS is helpless. Consumed
by all the dementor is making him
feel. And SNAPE knows he needs to
open his heart to save him.
One person. All it takes is one per-
son. I couldn’t save Harry for Lily.
So now I give my allegiance to the
cause she believed in. And it’s pos-
sible — that along the way I started
believing in it myself.
SCORPIUS steps decisively away
from the dementor
480
[SCORPIUS: Eu não acredito que eu [SCORPIUS: Eu não acredito que eu
fiz isso fiz isso
ALBUS: Eu também não acredito ALBUS: Eu também não acredito
que você fez isso. que você fez isso.
SCORPIUS: Rose Granger-Weasley. SCORPIUS: Rose Granger-Weasley.
Eu chamei Rose Granger-Weasley Eu pedi para Rose Granger-Weasley
para sair. ser minha amiga.
ALBUS: E ela disse não. ALBUS: E ela disse não.
SCORPIUS: Mas eu pedi. Eu plantei SCORPIUS: Mas eu pedi. Eu plantei
a semente. A semente que even- a semente. A semente que eventu-
tualmente crescerá no nosso casa- almente crescerá na nossa filiação.]
mento.] HPCC1 (2021, n.p.), ato 2, Cena 24,
HPPC (2016, n.p.), parte 2, Ato 4, tradução noss
Cena 14, tradução nossa
484
Not gonna lie, supes bummed my Albus/Scorpius ship didn’t materia-
lize. [Não vou mentir, estou super chateada que meu casal Albus/Scorpius
não aconteceu]. (MARGHERITA, 2016, tradução nossa)
485
Ao fingir tornar o relacionamento amoroso homoafeti-
vo mais transparente, a narrativa encena uma conciliação com
a comunidade interpretativa, porém tal relação se mantém so-
mente como uma possibilidade implícita, pois continua a não
se realizar.
O perfil oficial da peça publica a última fala de Harry na peça.
O destaque vai para o comentário de Heather:
486
Figura 1
488
público já consolidado, do qual faz parte, também, a comuni-
dade LGBTQ+.
Nesse sentido, o queerbaiting pode ser definido como uma
forma explícita de tentativa de lucro em cima de uma comuni-
dade já desfavorecida numa contextualização cultural capitalis-
ta e se mostra como bastante prejudicial justamente pelo fato
de “se aproveitar” de uma comunidade que desde já sofre pre-
conceitos sociais evidentes. De acordo com Joseph Brennan:
(...) queerbaiting reveals itself as the latest example of “gay marketing.”
There is nothing particularly new about marketing to a niche audien-
ce, and such strategies have historically involved both “open” and more
“covert” tactics—such tactics that, when boiled down, are designed to
capture the loyalty and cash of queer audiences.
[queerbaiting se revela como o mais recente exemplo de “marketing gay”.
Não há nada de particularmente novo sobre marketing para um nicho
de audiência, e tais estratégias têm historicamente envolvido tanto táti-
cas “abertas” quanto mais “encobertas” - tais táticas que, quando cozidas,
são projetadas para capturar a lealdade e o dinheiro de audiências queer.]
(2019, tradução nossa.)
489
relação à efetivação do relacionamento entre Albus e Scorpius,
o que o queerbaiting acaba por frustrar.
490
dução nossa. Disponível em: https://twitter.com/QueenLesli/sta-
tus/760447818389712896. Acesso em: 21, nov. 2022.
NANOR, Nene. Now that the hype is over, anyone notice how gay
the bond between Albus and Scorpius is?? Glitter flew out the page
with every dialogue smh. 14, set. 2016. Twitter: @lyk_ronan. Tra-
dução nossa. Disponível em: https://twitter.com/lyk_ronan/sta-
tus/776058903876538368. Acesso em: 21, nov. 2022.
PERELMAN, Britton. The 9 Elements of All Great Rom-Coms. Scre-
enCraft, 12, fev. 2021. Disponível em: < https://screencraft.org/blog/
the-9-elements-of-all-great-rom-coms/>. Acesso em: 17 nov. 2022.
Não tem paginação.
RIDGE, Heather. Yeah it is... 13, nov, 2021. Twitter: @impossible_cut.
RE: Figura: “I think it’s going to be a nice day” We think so too. Which
extraordinary wizard does this line belong to? 13, nov. 2021. Twitter:
@CursedChildLDN. Disponível em: https://twitter.com/impossible_
cut/status/1459660370105167872. Acesso em: 21, nov. 2022.
ROMANO, Aja. ...we don’t know what romance tropes look like when
we see it. Like, within the play, multiple textual romantic inferences
are made between Albus and Scorpius. 23, set. 2016a Twitter: @aja-
romano. Tradução nossa. Disponível em: https://twitter.com/ajaro-
mano/status/779415770438725632. Acesso em: 21, nov. 2022.
ROMANO, Aja. ALSO while i’m on the subject, the queerbaiting of
Albus/Scorpius is extra-insulting because like, it basically assumes
that… 23, set. 2016. Twitter: @ajaromano. Disponível em: https://
twitter.com/ajaromano/status/779415508584128512. Acesso em:
21, nov. 2022.
ROWLING, J.K. Harry Potter e a Câmara Secreta. Rio de Janeiro: Roc-
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ROWLING, J.K.; TIFFANY, John; THORNE, Jack. Harry Potter and the
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SYD. Harry Potter and the Cursed Child Unofficial one part script.
Não publicado. A partir da peça de J.K. Rowling; John Tiffany; Jack
491
Thorne. Harry Potter and the Cursed Child. Encenada na Broadway,
NY, em 2021. Não tem paginação.
WRADMIN. Harry Potter books stats and facts. Wordsrated, 19, out.
2021. Disponível em: < https://wordsrated.com/harry-potter-s-
tats/>. Acesso em: 21 ago. 2022. Não tem paginação.
492
Úrsula e Insubmissas lágrimas de mulheres:
escrevivências em diálogo
498
Conceição Evaristo
499
Maria Firmina dos Reis
A autora de Úrsula, apesar de não ter registros fotográficos,
tem a seguinte biografia disponível:
Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís do Maranhão, em 11 de ou-
tubro de 1825, ‘filha natural’ da escrava alforriada Leonor Felipa dos
Reis, tendo como avó a também escrava alforriada Engrácia Romana
da Paixão e, como tio, o professor, gramático e filólogo Sotero dos Reis,
pertencente ao ramo branco da família e com forte atuação nos círcu-
los letrados da capital maranhense. Em 1847, é aprovada em concur-
so público para a Cadeira de Instrução Primária na vila de São José de
Guimarães, no município de Viamão, situado no continente e separado
da capital pela baía de São Marcos, conforme registram seus biógrafos
Nascimento Morais Filho (1975) e Agenor Gomes (2022).
Segundo Morais Filho, ao se aposentar, no início da década de 1880, a
autora funda, na localidade de Maçaricó, a primeira escola mista e gra-
tuita do Maranhão e uma das primeiras do país. (...) A professora foi pre-
sença constante na imprensa local, publicando poesia, ficção, crônicas e
até enigmas e charadas. Segundo Zahidé Muzart (2000, p. 264), ‘Maria
Firmina dos Reis colaborou assiduamente com vários jornais literários,
tais como A Verdadeira Marmota, Semanário Maranhense, O Domingo,
O País, Pacotilha, O Federalista e outros’.
Além disso, teve participação relevante como cidadã e intelectual ao
longo dos noventa e dois anos de uma vida dedicada a ler, escrever,
pesquisar e ensinar. Atuou como folclorista, na recolha e preservação
de textos da cultura e da literatura oral e também como compositora,
sendo responsável, inclusive, pela composição de um hino em louvor à
abolição da escravatura. Firmina é autora de Úrsula, publicado em 1859,
mas com circulação somente a partir do ano seguinte. Livro revolucio-
nário para o seu tempo, figura como o primeiro romance abolicionista
de autoria feminina da língua portuguesa; e, possivelmente, o primeiro
romance publicado por uma mulher negra em toda a América Latina.
Maria Firmina dos Reis faleceu em 1917, pobre e cega, no município de
Guimarães. Infelizmente, muitos dos documentos de seu arquivo pes-
soal se perderam e até o momento não se tem notícia de nenhuma foto
sua daquela época (LITERAFRO, 2022).
500
Figura 2 – Lélia Gonzalez. Fonte: Palmares (2019).
Sueli Carneiro
Grada Kilomba
-
505
porque temos sido falados (...), que neste trabalho assu-
509
O ato de dizer faz com que a pessoa não se cale diante das
situações que oprimem. Isso as autoras Conceição Evaristo e
Maria Firmina fazem através de suas obras, possibilitando que
personagens narrem e questionem aquilo que lhes foi imposto.
Para Conceição Evaristo (2005), escrever é um modo de ferir
o silêncio imposto; ao escrever-se, “toma-se” o lugar da escrita
como direito, assim como se toma o lugar da vida.
A resistência promovida pelo dizer-se, não permitindo que ou-
tra/o pessoa branca/o diga a pessoa negra, também é tomada
como reflexão por Grada Kilomba (2019). Essa autora nos des-
creve as formas de silenciamento impostas pelo colonialismo,
dentre as quais destaca-se a máscara, que se tornou parte do
projeto colonial europeu.
510
Tal máscara foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se
tornou parte do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos.
Ela era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca
do sujeito Negro, instalado entre a língua e a mandíbula e fixado por
detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra
em torno do nariz e da testa. Oficialmente, a máscara era usada pelos
senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/ as comes-
sem cana-de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações,
mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de
medo, visto que a boca era um lugar tanto de mudez quanto de tortura.
Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela
simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes
brutais de silenciamento dos(as) chamados(as) ‘Outros(as)’: Quem pode
falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?
(KILOMBA, 2019).
514
Sofrida a violência da separação da família e da terra natal,
assim como a mãe Susana, do romance Úrsula, a personagem
vê-se privada também de seu nome, como se lhe negassem
sua própria existência: “Jamais perguntaram o meu nome, me
chamavam de ‘menina’” (EVARISTO, 2011, p. 41), sendo as-
sim despersonalizada. Para Maria, essas pessoas que a haviam
roubado negavam-lhe também sua história: “Eu tinha um de-
sejo enorme de falar de minha terra, de minha casa primeira,
de meus pais, de minha família, de minha vida e nunca pude”
(EVARISTO, 2011, p. 41).
Maria Firmina, em seu romance Úrsula, tem um capítulo in-
titulado “A preta Susana”, em que a personagem mulher negra
narra sua história de ser roubada de sua família, sua terra natal
e sua liberdade. Susana se identifica como uma mulher africa-
na escravizada, personagem secundária que narra sobre a sua
vivência, como era a sua vida em África, conta sobre seu matri-
monio e sobre sua filha e como ela foi trazida forçadamente ao
Brasil como escrava.
Ainda não tinha vencido cem braças do caminho, quando um assobio,
que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente,
que aí me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-
-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde
que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade:
os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem com-
paixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível...
a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram
daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e
liberdade! Meu Deus!. (REIS, 2018, p.122, grifos nossos).
518
Maria Firmina dos Reis abriu caminho para que novas mulhe-
res negras pudessem escrever ou ler, escreveu para um povo
que estava à margem da sociedade, criou uma narrativa com
esse povo negro que estava fora das literaturas, fora da socieda-
de. O romance Ùrsula abriu portas para que aquelas mulheres
que tinham timidez ou dificuldade de falar sobre as suas difi-
culdades, sobretudo em espaços públicos, pudessem ter força,
coragem para poder ultrapassar opressões que são impostas às
mulheres: “As palavras das mulheres clamam para ser ouvidas,
cada uma de nós devemos reconhecer a nossa responsabilida-
de de buscar essas palavras, de lê-las, de compartilhá-las e de
analisar a pertinência delas na nossa vida” (LORDE, 2019. p.55)
Os obras de Maria Firmina dos Reis e de Conceição Evaris-
to nos alertam para que escutemos aquilo que elas trazem,
compartilhemos essas narrativas, valorizemos as autorias das
mulheres negras e as identidades negras brasileiras. As autoras
também chamam a atenção para os processos de letramentos
vivenciados pelas mulheres negras (como leitoras e escritoras)
em diferentes espaços sociais.
Como assinala Lélia Gonzalez, devemos reconhecer essa co-
munidade negra que nos deu sentido, nos deu uma história de
luta e resistência. Através das narrativas literárias, Maria Firmina
e Conceição Evaristo nos possibilitam conhecer as vivências das
mulheres negras. Essas narrativas, no contexto escolar, possibi-
litam que sejam implementadas as leis 10.639/03 e 11.645/08,
que determinam o ensino de culturas africanas, afro-brasileiras
e indígenas. Com as leituras dessas obras, podemos tratar da
escravização como processo violento, que esfacelou famílias,
impôs sofrimento aos povos africanos e afro-brasileiros escra-
vizados, privou pessoas de suas origens e impôs novas relações
entre negras/os e brancos/as. Essas novas relações são mar-
cadas pela perda e pela dor das pessoas negras. Mesmo assim,
519
as mulheres negras – resistindo passivamente em alguns mo-
mentos e resistindo ativamente em outros momentos – foram
fundamentais na construção da nação brasileira. Assim, alian-
ças antirracistas precisam ser construídas. Além disto, as resis-
tências negras precisam romper as limitações impostas pelas
pessoas brancas dos grupos hegemônicos.
Audre Lorde, em sua obra intitulada Irmã Outsider, traz essa
importância que a linguagem tem para as mulheres e escritoras
negras; ela traz um diálogo de despertar e refletir a partir da lin-
guagem. Vale ressaltar aqui que Maria Firmina dos Reis e Con-
ceição Evaristo e tantas outras autoras negras utilizam a lingua-
gem e a escrita como instrumento, ferramenta para dizer aquilo
que os grupos hegemônicos pretendem silenciar. Segundo a
autora (EVARISTO, 2009; LORDE, 2019), nós compartilhamos
um compromisso com a linguagem, com o poder da linguagem
e com o ato de ressignificar essa linguagem que foi criada para
operar entre nós. Na transformação do silencio em linguagem e
em ação, é essencial que cada uma de nós estabeleça ou anali-
se o seu papel nessa transformação e reconheça que seu papel
é vital nesse processo.
Para aqueles que, entre nós, escrevem, é necessário esmiu-
çar não apenas a verdade do que dizemos, mas a verdade da
própria linguagem que usamos. Para as demais, é necessário
compartilhar e espalhar também as palavras que nos são signi-
ficativas. Mas o mais importante para todas nós é a necessidade
de ensinarmos a partir da vivência, de falarmos as verdades nas
quais acreditamos e conhecemos. Porque somente assim po-
demos sobreviver, participando de um processo de vida criati-
vo e contínuo (LORDE, 2019, p. 55).
520
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524
Pactos narcísicos da cisgeneridade e da
Fernando Abreu
Introdução
Minha jornada na construção deste trabalho de conclusão
de curso inicia ainda no ano de 2018, quando muito jovem in-
gressei no ensino superior. Estudante, LGBT, pobre e filho de
empregada doméstica, aspirava me tornar professor, nutria em
mim o sonho de concretizar a transformação da sociedade e a
superação das injustiças sociais por meio da prática educacio-
nal, isto é, inserido enquanto docente nos contextos de sala de
aula. Comecei a trilhar, ainda na época, meus primeiros passos
na pesquisa científica. De lá para cá, entre deslumbre, frustra-
ções e a pandemia de covid-19, atravessei quatro longos anos
de estudos sobre currículo, educação, ensino, literatura, gênero,
sexualidade e linguagem. Foi nessa longa e árdua trajetória que,
em algum momento, na interlocução com as epistemologias
subalternas, especialmente com bell hooks, tomei consciência
de onde emergia esse meu desejo por me inserir em discussões
comprometidas com o combate às opressões.
526
estudos de gênero e de sexualidade, em intersecção com os
estudos literários, compreendem a composição deste estudo.
Evidenciadas e justificadas as motivações e a jornada que
me levaram a formular esse trabalho, posso proceder com a
exposição aprofundada das discussões dispostas e propostas
nas páginas seguintes. Buscando assimilar e apreender como
se elaboram as identidades de gênero e sexualidade nos escri-
tos de Caio Fernando Abreu, especialmente em relação ao con-
texto histórico, procurei mapear as trajetórias de gênero e de
sexualidade delineadas em dois contos de Abreu – “Dama da
Noite” (1982), e “Sargento Garcia” (1982) –; ao passo que propus
desnudar e caracterizar os pactos narcísicos da cisgeneridade e
da heterossexualidade nas relações dos personagens nos dois
contos do autor.
Nesse sentido, a realização deste estudo - compromissado
em investigar textos que fazem pulsar do interior das relações
entre as personagens: interdições, exclusões e violências, cujos
fios condutores são os pactos e os modelos identificatórios de
autoproteção - necessitou partir dos pressupostos de que as
identidades de gênero e de sexualidade são produções sociais
e discursivas da cultura, envolvidas e fabricadas no interior de
relações de poder hierarquizadas, as quais são responsáveis por
elaborar as engrenagens normalizadoras e classificatórias das
existências, conferindo a algumas identidades o status de nor-
malidade e naturalidade, na medida em que reduzem outras
posições-de-sujeito à anormalidade abjeta.
Procurei direcionar a análise a partir desta pergunta: Como
funcionam e se caracterizam os pactos narcísicos (BENTO,
2002) da cisgeneridade e da heterossexualidade nas relações
dos personagens nos contos de Abreu?, considerando, princi-
palmente, que os pactos narcísicos são movimentos discursivos
e performáticos das relações humanas. Ao passo que a cis-he-
527
terossexualidade se auto identifica e se auto posiciona em um
lugar de hegemonia e dominação social, criando estratégias de
autoproteção e manutenção de privilégios, cuja perpetuação
se desdobra através de violências e opressões a grupos mino-
ritários, ela configura os procedimentos dos chamados pactos
narcísicos.
É importante ressaltar que, embora o contexto da obra não
circunscreva o primeiro plano de análise, ele é bastante rele-
vante à composição do trabalho, e está presente em diversos
momentos da escrita, especialmente porque as relações de po-
der e disputa entre as personagens dos contos estão intrinse-
camente conectadas com a conjuntura histórica e política em
que viviam, ainda que em um pano de fundo ficcional.
Nessa perspectiva, a concepção geral de minha pesquisa é de
que fosse possível identificar, com e através do texto literário,
os modos de atuação dos sujeitos beneficiados pelas cis-hete-
ronormatividades no interior de relações de poder, cuja agência
contribui à perpetração de exclusões e marginalizações sociais
dos corpos e identidades desviantes a essas matrizes regula-
doras. Na análise do texto literário, eu mobilizo o conceito de
pacto narcísico, o qual implica, de acordo com Maria Aparecida
Silva Bento (2002), em um sistema de exclusões, opressões e
violências contra as existências que não participam deste pacto.
Dessa maneira, dividi por tópicos a sequência do estudo,
compondo três ao total. No primeiro, o qual está disposto a
seguir, discuto o percurso e o arcabouço teórico e bibliográfi-
co empreendido na pesquisa, enquanto os dois últimos tópicos
compreendem a análise dos contos, respectivamente. As con-
siderações finais, por sua vez, dão sequência logo após a última
obra analisada. Nesse momento, propus uma conclusão que,
na medida em deixa em aberto os caminhos e as possibilida-
des possíveis para o trabalho docente no campo dos estudos
528
literários, aponta para alternativas envolvidas e implicadas com
letramentos literários de reexistência (SOUZA, 2009).
Giro teórico
O material literário que compôs este trabalho de conclusão
de curso corresponde a análise de dois contos de Caio Fernan-
do Abreu, sendo, respectivamente, “Dama da Noite” (1982),
e “Sargento Garcia” (1982). O último pertence à obra Moran-
gos Mofados (1982), enquanto o primeiro pertence à obra Os
Dragões Não Conhecem o Paraíso (1988). O enfoque acerca das
relações de gênero e sexualidade das personagens me exigiu
lançar mão de alguns caminhos teóricos para empreender a
discussão. Os estudos de Kathryn Woodward (2014) e Tomas
Tadeu da Silva (2014) forneceram a este trabalho uma argu-
mentação consolidada a respeito das engrenagens sociais pro-
dutoras das identidades e suas hierarquias de poder, já que para
Woodward “a identidade é marcada pela diferença, mas parece
que algumas diferenças [...] são vistas como mais importantes
que outras, especialmente em lugares particulares e momen-
tos particulares.” (p. 11). Neste caso, as identidades desviantes às
matrizes normativas de gênero e sexo é que são demarcadas
pela diferença e pela sua condição de subordinação. A auto-
ra reitera que este procedimento social pelo qual a identidade
é produzida decorre da relação dela mesma com o simbólico,
isto é:
A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e
a relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é
incluído. É por meio da diferenciação social que essas classificações da
diferença são “vividas” nas relações sociais. (WOODWARD, 2014, p. 14).
48 apud
paródia da ideia -
, -
as
-
-
-
535
acerca da cisgeneridade, que a autora caracteriza como a
538
Assim, ao lançar mão das referências intertextuais ao médico
sanitarista “Emílio Ribas” e aos estigmas e as desinformações
que se difundiam na sociedade acerca do vírus HIV e, especial-
mente, da AIDS – doença decorrente do HIV – o conto sinaliza
o seu pano de fundo, considerando que:
A aids foi construída culturalmente e houve uma decisão de delimitá-la
como DST. Uma epidemia que surge a partir de um vírus, que poderia
ter sido pensada como a hepatite B, ou seja, uma doença viral, acabou
sendo compreendida como uma doença sexualmente transmissível,
quase como um castigo para aqueles que não seguiam a ordem sexual
tradicional. Então, a aids foi um choque, e da forma como foi compre-
endida tornou-se uma resposta conservadora à Revolução Sexual, a
qual, no Brasil, foi vivenciada pela então conhecida ‘geração desbunde’.
(MISKOLCI, 2017, p. 23).
544
As referências intertextuais ao contexto ditatorial ficam ainda
mais contundentes. Apesar da palavra “ditadura” nunca apare-
cer, seu significado transcende a partir das experiências narra-
das no trecho anterior. A “revolução”, conforme Garcia, se refere
ao evento que culminou na instauração do regime de ditadura
civil-militar de 1964, enquanto o quartel opera como sinônimo
da instituição militar, a qual conduziu as duas décadas de dita-
dura do Brasil pós-64. Não por acaso, o sargento ainda reitera
não suportar os comunistas, que no jargão autoritário daquela
conjuntura servia àqueles que se insurgiam contra o regime.
O trajeto segue, a tensão sexual no ar quase explode e, en-
tão, entre mãos nas coxas, Garcia convida Hermes para que
chegassem a um lugar, uma “coisa fina”, para que ficassem
mais à vontade onde “Ninguém incomoda” (ABREU, 2018, p.
371), buscando manter em segredo sua relação homossexual,
resguardada ao âmbito privado: “tu sabe como é, tem sempre
gente espiando a vida alheia, melhor eu ir na frente, fica no por-
tão azul, vem vindo devagar, como se tu não me conhecesse,
como se nunca tivesse me visto em toda a tua vida.” (ABREU,
2018, p. 372). Brevemente eles adentram naquela espécie de
bordel, onde são recebidos por Isadora, que maliciava ao mili-
tar “– O de sempre, então? [...] – Esta é a sua vítima?” (ABREU,
2018, p. 372), os conduzindo a um quarto para que pudessem
ficar a sós. Detalhando sua relação com o militar, Hermes re-
vela: “Com os joelhos, lento, firme, ele abria caminho entre as
minhas coxas, procurando passagem. Punhal em brasa, farpa,
lança afiada. Quis gritar, mas as duas mãos se fecharam sobre
a minha boca. Ele empurrou, gemendo”. (ABREU, 2018, p. 373-
374). Evidentemente que a prática sexual de Hermes e Garcia
aponta para a contradição do militar, considerando que em um
primeiro momento sua performatividade de gênero máscula,
hostil e autoritária além de confirmar a expectativa cis-hete-
545
rossexual da inteligibilidade do gênero (BUTLER, 207), coadu-
nava com o sistema de opressão ao qual ele servia. O sargento
pertencia a instituição militaresca que, insuflada por valores
conservadores e cristãos, procurou na empreitada do regime
militar:
fundamentar e legitimar o seu discurso político com base na defesa
da moral e dos bons costumes. Durante esse período, as autoridades
governamentais empreenderam inúmeras campanhas para efetivar a
sistematização dos corpos e das sexualidades dos cidadãos. Corrobo-
rando, dessa maneira, para a perseguição e repressão dos indivíduos
que não se enquadravam nos paradigmas morais e comportamentais
impostos pela ditadura militar. (COSTA, 2018, p. 14).
547
fundamente intolerantes com as expressões individuais e/ou
subjetivas” (p. 42).
O discurso LGBTfóbico, na medida em que nomeia o “via-
do” – Hermes –, também o empurra para o lócus marginal e
desumanizado, do que é lido como “sujo”, impuro, imoral. Nes-
se sentido, aos rapazes que enfrentavam o alistamento junto a
Hermes, restava, por um lado, a subordinação a uma posição-
-de-sujeito disciplinada e previamente calculada, para corres-
ponder aos ideais cisgêneros e heteronormativos exigidos pelo
Sargento que, reiteradamente exigia não somente “– Sen-ti-
do!” (ABREU, 2018, p. 366), mas também docilidade e sujeição:
“– Limite-se a dizer sim, meu sargento ou não, meu sargento.
Correto?” (ABREU, 2018, p. 365). Além disso, a instituição em
que se desdobrava o alistamento foi responsável por operar:
mediante o uso indiscriminado de normas e de dispositivos proibitivos,
bem como da perpetração de violentas operações policiais, cujo intuito
foi promover uma ampla campanha a favor da moral e dos bons cos-
tumes contra os indivíduos que não se enquadravam nos paradigmas
comportamentais exigidos pelo regime militar, dentre eles, os dissiden-
tes sexuais. (COSTA, 2018, p.31-32).
549
generalizada que figura como uma espécie de ódio coletivo de-
corre, particularmente, do fato de que:
O amor narcísico está relacionado com a identificação, tanto quanto o
ódio narcísico com a desidentificação [...] A escolha narcísica de objeto
se faz a partir do modelo de si mesmo, ou melhor, de seu ego ideal:
ama-se o que se é, ou o que se foi, mas ama-se principalmente o que se
gostaria de ser, ou mesmo a pessoa que foi parte de si, enquanto vista
como ideal do ego, nos processos de indiferenciação.
Por outro lado, o alvo de nosso ódio narcísico é o outro, o “diferente”, de-
positário do que consideramos nosso lado ruim. (BENTO, 2002, p. 44).
551
ABREU, C. F. Dama da noite. In: ABREU, C. F. Contos Completos: Caio
Fernando de Abreu. ed. 1, São Paulo: Companhia das Letras, 2018: p.
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de de Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.
Ensinando a transgredir
-
553
Literatura e cinema
Quando a tragédia se torna uma vingança:
Oldboy (2003) como releitura de Édipo Rei (429 a.
C.)
Rodrigo Paes
Jane Kelly de Oliveira
Introdução
Apontado pelo filósofo Aristóteles como a maior tragédia do
teatro grego, Édipo Rei (429~425 a.C.) de Sófocles é uma das
obras mais influentes, não somente para a literatura, como
também para outros aspectos de nossa cultura. É impressio-
nante a vitalidade do mito grego de Édipo e como a obra de Só-
focles demonstra-se ainda muito produtiva e desperta, através
do filme do diretor sul-coreano dirigido por Park Chan Wook,
OldBoy (2003), uma releitura contemporânea que revisita a
obra antiga, e ao mesmo tempo desenvolve uma narrativa úni-
ca. Justamente essa relação existente entre a obra cinemato-
gráfica do diretor Sul-Coreano e a tragédia grega clássica será
explicitada nesse artigo.
A obra de Park Chan Wook é o segundo filme de uma tri-
logia do diretor, conhecida como trilogia da vingança. O filme
apresenta a jornada de vingança de Oh Dae-Su, um homem
comum, com esposa e uma filha de 3 anos, que certa noite é
levado para a delegacia por estar alcoolizado. Ao sair da dele-
gacia é sequestrado e mantido em cativeiro por 15 longos anos,
durante os quais descobre que sua esposa foi assassinada e que
ele se tornou o único suspeito do crime. Quando enfim liberto,
ele investiga juntamente com Mi-Do, uma mulher que conhece
em um restaurante e com quem se envolve romanticamente, a
razão de seu sequestro.
555
O enredo tem seu desenrolar trágico com a revelação de que
Dae-Su foi sequestrado e mantido em cativeiro por presenciar
a relação incestuosa que Lee Woo-Jin mantinha com sua pró-
pria irmã. O irmão culpou Dae-Su pelo suicídio da irmã, uma
vez que a revelação de tal relação impeliu a moça a se matar.
Além disso, o próprio protagonista vive em uma relação de in-
cesto com Mi-Do que descobrimos ser filha do personagem
principal do filme.
Como estamos trabalhando com a premissa de que o filme
está adequado no processo de recepção da herança literária
clássica, assim sendo, temos que ter em mente que:
A teoria da recepção rejeita a existência de um texto único, original, ob-
jetivo e fixo que tem de ser examinado como uma forma de arte pura
[...] na recepção, nós falamos em ‘textos’, no plural, porque, a cada vez
que um texto é lido, ele está sendo recebido e interpretado de uma nova
maneira. [...] Textos clássicos são em geral incompletos, controversos,
recuperados de uma variedade de fontes e reinterpretados por cada ge-
ração de estudiosos de Clássicas. A recepção dos clássicos concentra-se
na forma como o mundo clássico é recebido nos séculos subsequentes
e, em particular, nos aspectos das fontes clássicas que são alterados,
marginalizados ou negligenciados. (BAKOGIANNI, 2016, p.115)
557
A primeira definição do que conhecemos por tragédia e os
elementos que a compõem foi desenvolvida pelo filósofo gre-
go Aristóteles em sua obra Poética. Para ele,
A tragédia é a imitação (mimesis) de uma acção elevada e completa, do-
tada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes
em cada uma das suas partes, que se serve da acção e não da narração
e que, por meio da compaixão (eleos) e do temor (phobos), provoca a
purificação (katharsis) de tais paixões. (POÉTICA, 1449b 24).
558
(OldBoy, 2003 41min 36’)1
que
De todos estes elementos, aqueles em que a tragédia exerce maior
atracção são as partes do enredo, isto é, as peripécias e os reconheci-
mentos. Mais uma prova disso é que os autores principiantes conse-
guem, em primeiro lugar, aperfeiçoar-se na elocução e nos caracteres e,
só depois, estruturar as acções; e o mesmo acontece com quase todos
os poetas antigos. (POÉTICA, 1450a 32).
561
Com suas investigações tendo importantes avanços e o nas-
cimento de um romance com Mi-Do, a trama parece se enca-
minhar para uma resolução positiva para Oh Dae-Su. Mas, com
uma sucessão de revelações que podemos categorizar como
a anagnórise presente no filme, o protagonista descobre não
somente que é o principal agente causador de sua própria des-
graça, mas também que mantém relações incestuosas com sua
filha. Essas revelações sucessivas levam o desenrolar da trama
a terminar com o protagonista em dois estados de infortúnio.
O primeiro pode ser caracterizado como uma cena de Pathos,
ou seja, uma cena de grande impacto simbolizando a emoção e
sofrimento do protagonista de forma dramática, quando, para
proteger Mi-Do da verdade, Oh Dae-Su corta sua própria lín-
gua.
3 Fotograma da cena na qual Oh Dae-Su corta sua própria língua com uma tesoura.
(OldBoy, 2003 1h 45min 36’)
562
semelhante ao de eliminar a arma causadora da dor do antago-
nista e demonstrar a mudança de perspectiva do protagonista.
Já o segundo estado trágico no final da jornada do protago-
nista é a sua perda de identidade, visto que assombrado pela
revelação de toda a verdade, decide recorrer à hipnose apa-
gando sua memória e esquecendo-se de tudo o que ocorreu. A
cena da hipnose leva a crer que a identidade do Oh Dae-Su que
sabia de tudo “morre” juntamente com o lamentável segredo.
Essa escolha do protagonista é dimetralmente oposta da apre-
sentada na tragédia de Sófocles, pois enquanto Édipo, a todo
momento, busca conhecer mais de seu próprio passado, seja
ele qual for, como pode ser percebido na citação a seguir,
ÉDIPO: Tem brio! Mesmo se eu for escravo ao triplo
- de mãe da mãe da mãe -, o mal é meu
JOCASTA: Mas eu, contudo, insisto: encerra a busca!
ÉDIPO: Só encerro quando tudo esclarecer. (SÓFOCLES, 2011 v.1062 –
1065, p.90)
563
enredo apontados por Aristóteles como próprios das composi-
ções dos tragediógrafos gregos em Old Boy.
Além dos aspectos da estrutura narrativa há outros pontos
de contato entre as duas obras aqui analisadas sobre os quais
passaremos a tratar.
564
A maior dessas lacunas que permeia grande parte da narrativa
influenciando a maioria das grandes cenas da tragédia é o fato
de Édipo não conhecer sua origem parental. Não saber quem
são seus verdadeiros pais o leva a interpretar erroneamente a
profecia que o indicava como assassino de seu pai e esposo de
sua mãe. Ao decidir pelo exílio de Corinto, sem saber que fora
adotado pelos soberanos daquele lugar, Édipo sente-se seguro
e confiante de ter conseguido fugir do destino profetizado.
ÉDIPO: É lícito. Meu fado - Apolo disse -
seria fazer amor com minha mãe,
das mãos vertendo o sangue de meu pai.
Eis o motivo pelo qual Corinto
virou lugar longínquo. Tive o bem
do acaso, mas rever meus pais, quem me dera!
MENSAGEIRO: O exílio decorreu desse pavor?
ÉDIPO: Quis evitar também matar meu pai. (SÓFOCLES, 2011, v.994 –
1001, p.85)
566
em Old Boy há vários sinais negados que poderiam antecipar o
reconhecimento de si mesmo.
Semelhante à tragédia grega, a grande maioria de informa-
ções obtidas por Oh Dae-Su em suas investigações vêm através
de diálogos com outros personagens. Como exemplo, temos
durante as investigações do passado do antagonista o diálogo
entre Oh Dae-Su e sua ex-colega de classe que, ao pesquisar
com uma amiga sobre a pessoa com quem Lee Soo-Ah, irmã
de Lee Woo-Jin, estava mantendo um caso amoroso, revela
que o próprio protagonista sabe a resposta em sua memória.
Esse diálogo ativa uma memória em forma de flashback, por
meio da qual o espectador presencia visualmente a lembrança
do passado esquecida por Oh Dae-Su, descobrindo que Woo-
-Jin, o próprio irmão, era o amante da jovem.
5 Fotograma da foto da família de Oh Dae-Su que estava na caixa entregue por Lee
Woo-Jin. (OldBoy, 1h36min41’)
568
cia desse conhecimento de si mesmo leva Oh Dae-Su (assim
como Édipo) em direção à sua ruína.
Contudo, apesar de ambos protagonistas, o do filme e o da
tragédia, trilharem caminhos equivocados e tomarem decisões
precipitadas na busca por saber mais de si, no filme, Oh Dae-Su
opta por um desfecho muito diferente do desenredo da histó-
ria de Édipo. Enquanto esse enfrenta as consequências de sua
tragédia, mergulhando na verdade descoberta, aquele opta por
apagar suas memórias e viver uma vida mergulhada na sombra
do ignorar-se.
Analisaremos a seguir como todo esse processo no enredo
acaba por ser influenciado pela personalidade do protagonista,
sendo novamente um ponto de contato entre a obra clássica e
o filme sul-coreano.
A hybris de Oh Dae Su
A Hybris, como apontado por Fábio Cândido dos Santos, se
caracteriza como o desrespeito humano à sua própria estrutura
ontológica, sucumbindo ao próprio poder e à sedução dos pra-
zeres. Quando o homem deixa de se corrigir e ordenar certos
desejos para si mesmo enquanto leva outros à desgraça, moti-
vado por grandes paixões como o ódio, a cólera ou a soberba,
os homens se deixam ser arrebatados por ela. (SANTOS, 2019
p. 17).
O estudioso aponta que por mais que Aristóteles não faça
uso da palavra Hybris em seus estudos, aponta que a quebra de
algum tipo de medida é prejudicial ao exercício da Areté, bem
como impede o homem realizar de forma adequada a medi-
da do ser. Ele também sugere que sucumbir aos vícios repre-
sentaria cair em extremos que levariam a uma vida desmedida.
(SANTOS, 2019 p.19)
569
Dessa forma, como já mencionado anteriormente, uma ca-
racterística muito proeminente na personalidade de Édipo é
sua propensão aos excessos frente ao poder e imponência dos
deuses, pois o personagem trágico acaba embebedado por seu
próprio poder e influência, demonstrando por diversas vezes
grande insolência em relação à veracidade e credibilidade dos
deuses quanto ao que se refere a profecia do oráculo, questio-
nando se os deuses não estavam enganados sobre seu destino.
(FILHO, 2018)
ÉDIPO:
[...] A pólis concedeu-me o dom do reino;
sem meu empenho o pôs em minhas mãos;
[...] Não de um desavisado a solução
do enigma dependia, mas de um profeta.
Ficou patente: nem as aves, nem
os deuses te inspiravam. E eu cheguei;
dei cabo dela, alguém sem crédito, Édipo;
vali-me do pensar e não dos pássaros.
A mim pretendes expulsar agora,
sonhando secundar Creon no cargo?
Lamentareis querer purgar a pólis. (SÓFOCLES, 2011, v.383 – 401, p.103)
570
Durante o período em que esteve cativo, o que o motivava
a continuar vivo sempre foi o sentimento de vingança, dese-
jando sair e encontrar o responsável por sua desgraça para que
este tivesse sua devida punição. Após sua libertação, uma de
suas primeiras ações é entrar em uma luta corporal com certos
jovens que fizeram provocações na rua. Sua atitude violenta se
justifica tanto no desejo de extravasar toda a raiva e rancor con-
tidos todos esses anos que passou preso, como no desejo de
testar suas habilidades após seu treinamento intensivo. Dae-
-Su demonstra, assim como na cena de tortura citada anterior-
mente, ações intensas e desmedidas, baseadas em seus fortes
sentimentos.
Outro aspecto das medidas extremas do personagem é a seu
relacionamento com Mi-Do. Durante o filme Dae-Su se deixa
levar por sua intensidade de desejos e sentimentos, chegando
ao ponto de quase estuprar a moça, simplesmente para satis-
fazer sua abstinência sexual.
(OldBoy, 30min29’)6
A questão do incesto
Uma característica muito marcante na tragédia de Sófocles e
comumente colocado em posição de proeminência na análise
de Édipo Rei é a relação incestuosa vivida por Édipo e sua mãe
Jocasta. Esse estado peculiar da vida dos personagens centrais
da trama é tão marcante que Sigmund Freud, em seus estu-
dos de psicanálise, propôs o estudo do complexo de Édipo, que
aborda a relação afetiva de filhos e seus progenitores, toman-
do por base elementos da peça para exemplificar seus estudos.
Demonstrando assim a grande importância do incesto na tra-
ma. (VIEIRA, 2017)
No enredo de Édipo Rei, existe o pressuposto da profecia que
atestava que Édipo irá matar o próprio pai e desposar a própria
572
mãe. Saber desse destino é o que leva Édipo a fugir de Corinto
e da própria profecia. Mais tarde, ao descobrir que seu empe-
nho não o livrou de cometer o que estava predestinado, ele fura
seus próprios olhos e opta pelo exílio como forma de expiar
os pecados. Já Jocasta, sua mãe, é a primeira a perceber que
estavam em tal relação incestuosa e por diversas vezes tenta
dissuadir Édipo de continuar as investigações, Ao falhar com a
persuasão, comete suicídio. Ou seja, ambos, mãe e filho, aca-
bam assombrados pelo fato de terem consumado uma relação
de incesto.
Em OldBoy, a temática do incesto é um elemento muito pre-
sente na narrativa do filme, no qual há duas relações incestu-
osas. A primeira, entre o protagonista Oh Dae-Su e sua filha
Mi-Do e a segunda entre Lee Woo-Jin e sua irmã Lee Soo-Ah.
A revelação das relações entre os personagens causa efeitos e
decisões variadas, e um desfecho único para cada casal.
No romance entre Woo-Jin e sua irmã, ambos aceitaram o
amor que sentiam um pelo outro, mas ao se deparar com seu
nome envolvido em diversos boatos, Soo-Ah acuada e sem ver
outra alternativa opta pelo suícidio. Woo-Jin amargurado pela
perda da pessoa que mais lhe era importante decide se vingar
da pessoa que julga ser a culpada por sua desgraça, causando-
-lhe a mesma dor que sofrera. Uma vez que teve sucesso em
sua empreitada, decide por também tirar sua própria vida, mas
não antes de colocar em dúvida a convicção do protagonista
com sua própria relação amorosa.
Com a semente de dúvida plantada por Woo-Jin na mente
de Oh Dae-Su, ele percebe que não conseguirá conviver sa-
bendo ser pai e amante de Mi-Do. Com uma surpreendente
decisão, opta por manter Mi-Do ignorante de tal informação e,
ao mesmo tempo, não desejando sentir-se atormentado pelo
fato, decide apagar suas memórias através do hipnotismo. Ter-
573
minando sua história sem suas memórias, mas ainda manten-
do sua relação incestuosa com a filha.
É notável, que os três casais têm plena consciência dos pro-
blemas acarretados pela relação incestuosa e como essa rela-
ção é um tabu. Mas, ao mesmo tempo, cada casal toma dife-
rentes decisões frente ao relacionamento. Édipo e Jocasta, ao
se depararem com a verdade, tratam a questão como extrema-
mente grave e buscam com suas decisões finais expiar a culpa
que sentem pelos crimes cometidos. Já Dae-Su, apesar de sa-
ber que Mi-Do é sua filha, decide fugir da verdade e manter-se
na relação, sabendo que ao apagar suas memórias não restaria
mais ninguém que conhecesse sua condição incestuosa. O des-
fecho do personagem parece propor que ‘se ninguém souber
do problema, o problema não existe’. Apesar de ter um trági-
co fim, a relação de Woo-Jin e Soo-Ah segue por um caminho
mais romântico, pois mesmo tendo consciência do tabu que
os cerca, eles não negam seus sentimentos e morrem ainda se
amando.
Desta maneira, apesar de ambas as obras, Édipo Rei e Ol-
dBoy, trabalharem a relação do incesto e o tabu social envol-
vido nisso, percebemos diversas perspectivas e abordagens de
como cada personagem encara tal tabu no desenrolar de suas
respectivas tramas.
574
Mesmo quando a relação parece pouco evidente, é possível,
a partir de uma investigação mais atenta, revelar o processo de
releitura e recepção entre obras da antiguidade clássica e da
modernidade. Esse olhar bilateral, que leva em consideração a
retomada de elementos narrativos dos textos da antiguidade
clássica, mesmo que para contrapô-los, ganhou importância
com os estudos de recepção dos clássicos fortalecidos por Ha-
rwick (2003), Hardwick e Stray (2008), Martindale e Thomas
(2006) entre outro, e foi um ganho definitivo para a área de
estudos clássicos.
O estudo comparativo entre o filme OldBoy e a tragédia gre-
ga Édipo Rei revela relações importantes que subjazem tanto
a camada narrativa das obras, bem como suas semioses - um
fílmica, outra teatral.
Park Chan Wook deixou-se ser influenciado pela obra de Só-
focles ao dirigir seu filme, aplicando diversos elementos narra-
tivos que acabam sendo pontos de contato muito fortes entre
as obras, como uma estrutura aos moldes da tragédia clássica,
uma narrativa que trabalha no entorno do autoconhecimento,
um protagonista que ao mesmo tempo se aproxima e se afasta
do herói da tragédia grega e por fim o trabalho com um ele-
mento tão conhecido na obra sofocliana, o incesto.
Todavia, sendo uma mídia voltada para um público atual,
Park Chan Wook toma liberdade de aplicar sua própria visão
artística em seu filme, desenvolvendo uma narrativa em tor-
no da vingança. Dessa forma, notamos como uma obra pode
revisitar, para homenagear ou criticar outra, mas sem tirar sua
própria particularidade como obra isolada. Por isso, ao analisar
esse tipo de obra, o conceito de inferioridade devido a tempo-
ralidade ou ao fato de ser uma releitura são entendidos como
preconceitos sem fundamentos teóricos ou estéticos. Não há
aqui relação de inferioridade da obra moderna em relação à an-
575
tiga, mas sim uma visão diferente de artistas que emergem de
sociedades diferentes, mas que, ainda assim, comunicam-se
pelo fato de carregarem algumas angústias humanas que são
universais.
577
A criação da tragédia em Lavoura Arcaica de
Introdução
Esse artigo analisa o romance Lavoura Arcaica, de Raduan
Nassar, e o filme de mesmo nome de Luiz Fernando carvalho a
partir da Teoria da Recepção dos Clássicos, compreendendo e
indicando elementos das tragédias gregas clássicas que são en-
contrados no romance e no filme, tais quais o reconhecimento,
a peripécia e o pathos, descritos por Aristóteles na Poética. Os
principais pontos de análise são as características que contem-
plam a estrutura da tragédia, e como podemos notar uma tra-
dução disso para tal romance moderno e para o cinema.
Na obra de Nassar, André narra sua oposição contra a autori-
dade do pai e suas regras morais impostas ao resto da família,
além de explicar os motivos pelos quais saiu de casa. Lavoura
Arcaica é dividido em duas partes, e se inicia com o protagonis-
ta narrador longe de casa até ser encontrado pelo irmão mais
velho, Pedro, que o convence a retornar. Na segunda parte, há a
volta do protagonista para a fazenda da família, e a descoberta
do pai a respeito da relação incestuosa entre André e sua irmã
Ana. Após isso, o pai ataca sua filha, resultando em sua morte.
No romance, há uma releitura da parábola do filho pródigo,
mas com uma ruptura da ideia de que felicidade e paz estão
diretamente atadas à união familiar. Nassar explicita como as
relações entre parentes são complicadas e podem resultar em
desfechos catastróficos. Além disso, a relação entre os irmãos
André e Ana contribui para a construção de temas trágicos em
578
Lavoura Arcaica, e, por esses aspectos, torna-se possível anali-
sar a obra pela ótica de uma releitura da tragédia clássica.
Aristóteles define a tragédia da seguinte forma:
A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa, dotada de
extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada
uma das suas partes, que se serve da acção e não da narração e que, por
meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões.
(ARISTÓTELES, PO. 1449b 24-28)
583
Lavoura arcaica
Em Lavoura Arcaica, o leitor acompanha a trajetória de An-
dré, o narrador protagonista, e sua relação com sua família,
principalmente com a sua irmã Ana e com seu pai, uma figura
autoritária que representa todo o patriarcado rígido através de
suas regras morais impostas a toda família. Ao fazer referên-
cia à parábola bíblica do filho pródigo, Lavoura Arcaica constrói
uma visão mais contrubada, já que André retorna não por en-
tender que está seguro e protegido por conta da união familiar,
mas porque seu irmão mais velho o busca, e o protagonista
não deseja compactuar ou consentir com a orientação moral
que seu pai sempre expressa e exige que os filhos sigam.
A narrativa do romance é algo que constrói os sentimentos,
angústias, culpas e desejos de André através de um fluxo de
consciencia, no qual, na estrutura do texto, pontos finais não
são usados com frequência, traduzindo certa anseidade do
protagonista, despejando todos os seus sentimentos na nar-
ração.
Como mencionado anteriormente, o romance é dividido em
duas partes: O Retorno e A Partida. Na primeira parte, André é
encontrado pelo irmão mais velho no quarto de uma pensão,
e logo no primeiro encontro dos dois é possível notar como a
instituição familiar carrega uma força da qual André não con-
seguiu escapar: ‘“não te esperava’ foi isso o que eu disse mais
uma vez e eu senti a força poderosa da família desabando so-
bre mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia ‘nós te
amamos muito, nós te amamos muito’” (NASSAR, 1989, p. 9).
Além disso, a autoridade da figura paterna e da própria ins-
tituição familiar, da qual André anseia fugir, aparece na ordem
de Pedro, que acabara de reencontrar o irmão: “(...) mostrei-lhe
a cadeira do canto, mas ele nem se mexeu e tirando o lenço
584
do bolso ele disse ‘abotoe a camisa, André” (NASSAR, 1989, p.
10). A movimentação de André ao, rapidamente, abrir as ve-
nezianas quando Pedro comenta sobre elas estarem fechadas,
também demonstra como obediência e resignação à família
são fatores enraizados no protagonista, apesar de querer – e
não conseguir – fugir disso.
André narra, após pensar em confessar para Pedro alguns de
seus sentimentos, que entende que o irmão mais velho estava
ali para realizar uma tarefa: “ele cumprira a missão de devolver
o filho tresmalhado ao seio de família” (NASSAR, 1989, p. 16).
Pedro, naquele momento, considera estar fazendo algo bom,
uma ação que faria a família se reunir novamente, e explica
isso para o irmão mais novo, ao sugerir uma certa imaturidade
de André, mas compreender que erros como o dele podem
existir, mas que era importante não deixar de lado todos os
laços que uniam a família: “pois bastava que um de nós pisasse
em falso para que toda a família caísse atrás; e ele falou que
estando a casa de pé, cada um de nós estaria também de pé
(...)” (NASSAR, 1989, p. 21).
Pedro, ao realizar uma ação que tem como intuito fortale-
cer a união famíliar e trazer felicidade a esse núcleo, induz a
uma consequência contrária, da mesma forma como Aristó-
teles descreveu a peripécia na Poética: “Peripécia é, como foi
dito, a mudança dos acontecimentos para o seu reverso, mas
isto, como costumamos dizer, de acordo com o princípio da
verosimilhança e da necessidade” (Po. 1452a 25). Quando An-
dré retorna para a fazenda, após confessar para Pedro a pai-
xão incesutosa que sente pela irmã, Pedro informa isso para o
pai, resultando em um ataque do pai à filha, que causa a morte
da moça. No romance, os principios da verossimilhança e ne-
cessidade descritos por Aristóteles são cumpridos, já que essa
mudança dos acontecimentos do enredo começa a ocorrer por
585
uma vontade da família de estar reunida de volta. Pedro não
procura por André sem uma justificativa coerente para a nar-
rativa.
Após o reencontro, André narra suas memórias na fazenda,
sobre como “escapava dos olhos apreensivos da família”, sua
conexão com a natureza, sobre os sermões do pai e, em uma
passagem, explica que, mesmo que tivesse o carinho e afeto de
sua mãe, ela não o conhecia de fato:
quando fui procurar por ela, eu quis dizer a senhora se despede de mim
agora sem me conhecer, e me ocorreu que eu pudesse também dizer
não aconteceu mais do que eu ter sido aninhado na palha do teu útero
por nove meses e ter recebido por muitos anos o toque doce das tuas
mãos e da tua boca; eu quis dizer é por isso que deixo a casa, por isso é
que parto (...) (NASSAR, 1989, p.64).
Com essa passagem, fica mais claro para o leitor que os mo-
tivos que fizeram André sair de casa eram mais que sua relação
sem afeto com o pai e suas discordancias ideológicas, ou os
sentimentos que nutria pela irmã. André não se sentia visto na
família, nem pertencente.
Enquanto queixa-se para Pedro a respeito da sua vida na fa-
zenda, compartilha com o irmão seus sentimentos a respeito
de uma das histórias que o pai sempre contava à família, e esse
fragmento do romance expressa as opiniões de André sobre o
patriarca e suas ações.
Na história, um faminto busca comida em um palácio e é
direcionado ao ancião que mora no local. Ao pedir alimento, o
ancião lhe oferece pratos e copos vazios, e encena que está se
alimentando. O faminto, após também simular que estava co-
mendo, é elogiado pelo ancião por ser um homem com muita
paciência, e, por isso, é convidado a morar no palácio e nunca
mais passar fome. André, porém, conta que o pai não concluia
a história, deixando de narrar o momento em que o faminto,
após encenar beber vinho, soca o ancião, impaciente e com
586
fome, e diz que suas ações agressivas eram efeito da bebida –
que não havia tomado de verdade.
Dessa forma, André questiona a hipocrisia do pai ao contar
a história de um homem faminto, enquanto ele “tem o pão na
mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho (NASSAR, 1989, p.
84). O faminto, após agredir o ancião, diz: “Senhor meu e lou-
ro da minha fronte, bem sabes que sou teu escravo, o teu es-
cravo submisso, o homem que recebestes à tua mesa e quem
banqueteastes com iguarias dignas do maior rei, e a quem por
fim mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que que-
res, senhor, o espírito do vinho subiu-me a cabeça e não posso
responder pelo que fiz quando ergui a mão contra o meu ben-
feitor” (NASSAR, 1989, p. 84).
É possível compreender pela forma intensa com que André
narra esse episódio que, além de criticar a hipocrisia que diz
ter o pai, enxerga-se naquele personagem que, tendo que ser
submisso, escravo, ainda tem um desejo de agredir, fisica ou
psicologicamente, seu pai.
A imagem do faminto pregada na história é retomada de-
pois, quando André confessa seus sentimentos por Ana para
Pedro, no capítulo 19, colocando Ana como uma doença, e a si
mesmo como o faminto, que, assim como na parábola, man-
teve-se submisso até o limite de sua dor e sua fome:
Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodi de repente num
momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro
e pestilento, “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o
meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio imper-
tinente dos meus testículos [...] consumindo neste pasto um grão de
trigo e uma gorda fatia de cólera embebida em vinho, eu, o epilético, o
possuído, o tomado, eu, o faminto (NASSAR, 1989, p. 107)
588
(...) foi um milagre o que aconteceu entre nós, querida irmã, o mesmo
tronco, o mesmo teto, nenhuma traição, nenhuma deslealdade, e a cer-
teza supérflua e tão fundamental de um contar sempre com o outro no
instante de alegria e nas horas de adversidade; foi um milagre, querida
irmã, descobrirmos que somos tão conformes em nossos corpos, e que
vamos com nossa união continuar a infância comum, sem mágoa para
nossos brinquedos, sem corte em nossas memórias, sem trauma para a
nossa história; foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bas-
tamos dentro dos limites da nossa própria casa, confirmando a palavra
do pai de que a felicidade só pode ser encontrada no seio da família (...)
(NASSAR, 1989, p.118)
Pai!
e vi a mãe, perdida no seu juízo, arrancando punhados de cabelo, des-
cobrindo grotescamente as coxas, expondo as cordas roxas das varizes,
batendo a pedra do punho contra o peito
Iohána! Iohána! Iohána!
e foram inúteis todos os socorros, e recusando qualquer consolo, an-
dando entre aqueles grupos comprimidos em murmúrio como se va-
gasse entre escombros, a mãe passou a carpir em sua própria língua,
puxando um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do
Mediterrâneo: tinha cal, tinha sal, tinha naquele verbo áspero a dor are-
nosa do deserto. (NASSAR, 1989, p. 190-192)
2 Os nomes dos personagens têm forte simbologia no romance. André deriva das
palavras gregas anér (que significa homem, do ponto de vista de sua virilidade e do
que o difere da mulher) e andreía (que significa coragem); Pedro vem da palavra latina
petrus (que significa pedra). Pedro, André, Ana são nomes constantes na tradição
bíblica e as mitologias envoltas em suas narrativas são muito significativas para a
análise do romance. A palavra Iohana também tem uma forte simbologia aqui. Mas
esses aspectos não serão enfocados nesse artigo.
592
Adaptação da tragédia em Lavoura arcaica de
593
filme e que remetem às partes do enredo trágico previstas por
Aristóteles na Poética.
Iniciando com a primeira cena do filme, quando Pedro vai
em busca de André, percebe-se que a estrutura é a mesma do
romance: André, no quarto de pensão após fugir de casa, en-
contra Pedro à porta, com o objetivo de fazê-lo retornar para
casa. No longa-metragem, é possível perceber de forma mais
clara como André é retirado de seu estado de letargia de forma
brusca, se assustando. É pelo audiovisual, juntamente com os
movimentos de câmera que acompanham o ator se preparan-
do para ir até a porta que o expectador identifica a surpresa
do protagonista. A impaciência de Pedro também é mais clara
no filme, já que os recursos sonoros trazem essa ideia de for-
ma mais simples – quando o silêncio que preenche o quarto de
André é bruscamente interrompido pelas batidas altas e impa-
cientes na porta.
Além disso, quando André percebe que é seu irmão mais ve-
lho à porta, não há uma narração que explica seus sentimentos,
mas o silêncio entre os personagens, e o tempo que ambos se
olham, demonstram a hesitação, a surpresa e, talvez, a frustra-
ção de André ao ver um membro da família à sua frente. Quem
se aproxima do irmão primeiro é Pedro, mas é André quem
apoia a cabeça no ombro do irmão, parecendo cansado.
Assim como no romance, Pedro também faz uma ordem a
André assim que chega, sem demonstrar muito afeto pelo ir-
mão.
594
Figura 1 – LAVOURA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: Europa
Filmes, 2001. DVD (6min 55’).
596
Figura 3 – LAVOURA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: Europa
Filmes, 2001. DVD (107min 39’).
599
Assim que o pai reage à informação e empurra Pedro a tri-
lha sonora é cortada abruptamente, dando espaço para gritos
e chamados das personagens presentes na festa, mesmo que
a cena não esteja condizendo com os sons. Depois que o pai
pega a arma com a qual matará Ana, a cena seguinte é o ataque,
e não há imagens explicitas da morte da personagem. O que se
mostra são as pétalas da rosa que Ana usava no cabelo no chão,
e o olhar perturbado do pai, enquanto tentam o conter.
Como na obra de Nassar, o filme termina com um dos ser-
mões do pai, mas não o mesmo que encerra o romance, mas
que está presente, com algumas pequenas diferenças, no ca-
pítulo 9:
O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor embora
inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o
conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem
começo, não tem fim; rico não é o homem que coleciona e se pesa no
amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos
e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e
humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura,
não se rebelando contra o seu curso, brindando-o antes com sabedoria
para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida está es-
sencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quan-
tidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre
nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é, pois
só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas (LAVOU-
RA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: Europa Filmes,
2001.)
602
Teoria literária
Compagnon
Introdução
O presente trabalho nasce de uma dúvida e de uma inquie-
tação. A dúvida vem da incerteza quanto ao poder da literatu-
ra. Que é a literatura? de Jean-Paul Sartre tenta responder esta
questão ao longo de suas 264 páginas, porém não consegue
defini-la por completo, como também não o conseguiremos.
Enquanto objeto vivo, a literatura muda e enquanto conseguir
existir sempre mudará.
Já a inquietação é resultado de tempos de realismo capita-
lista (usando o termo de Mark Fisher). Colocamos então uma
das perguntas que Antoine Compagnon discute em Literatura
para quê?: Qual o papel da literatura hoje? Por que defender sua
permanência no mundo contemporâneo? E não encontramos
melhor resposta do que o vaticínio de Georges Bataille, citado
na epígrafe deste trabalho: “A literatura é o essencial, ou não é
nada”.
Para problematizar as tantas respostas possíveis para estas
perguntas essenciais, escolhemos dividir o trabalho em três
momentos, sempre tentando trazer o texto já mencionado
de Sartre, pois é ele quem dá origem a este trabalho. Primei-
ramente, voltamos às origens da teoria literária, analisamos
como Aristóteles, em sua célebre A poética, trata as questões
aqui colocadas e quais suas contribuições para o debate. En-
tão, olhamos diretamente para Sartre e discutimos o porquê da
importância do engajamento do escritor. Finalmente, Antoine
604
Compagnon entra em cena e discutimos como defender a per-
manência da literatura no mundo atual.
E, antes de mais anda, é importante mencionar que este tra-
balho começou a ser concebido quando o governo brasileiro
ainda vigente estava em um de seus auges de desmonte de
todos os sistemas da Federação. Quando milhares de pessoas
morriam todos os dias por negligência e falta de humanismo
por parte do governo e seus apoiadores. Quando ficar em casa
era difícil e sair dela era mais ainda pois se tinha medo de retor-
nar e contaminar parentes e familiares, a literatura, mais do que
qualquer outra coisa, ajudou-nos a sobreviver este momento
horrendo e sofrível da história brasileira e mundial. Enquanto
não havia cura, a literatura era acalento.
Agora, este trabalho é finalizado em tempos muito mais es-
perançosos. Uma das cabeças da Hidra foram cortadas, mas é
preciso que pensemos, assim como Hércules, um meio de cor-
tar todas, até a última, e como enterrá-la. Que refletir sobre a
importância da literatura auxilie-nos em nossa luta, pois é atra-
vés e por ela que resistimos.
A Poética1, de
Aristóteles)
Refletir sobre a arte de escrever, os motivos que a impulsio-
nam e o que ela realmente é, se configuram como as preocu-
pações centrais para a formação de um pesquisador da área de
Letras. Nesse sentido é que destacamos A Poética de Aristóte-
les como o momento chave para o início de uma tradição vol-
tada aos estudos literários. Grande pilar no assunto, a presença
da obra de Aristóteles em trabalhos de teoria literária parece
quase obrigatória, isto devido ao fato de inúmeros conceitos
17 Este texto é uma conferência dada em 2006 por Compagnon no Collège de Fran-
ce. Além dele, usamos também seu O Demônio da Teoria (1999).
616
vamente o elogio da literatura, de protegê-la da depreciação na
escola e no mundo” (COMPAGNON, 2009, p. 45).
No mundo atual tudo está a um toque. Não é necessário ir a
uma livraria ou a uma biblioteca perguntar se tal livro está dis-
ponível e quando ele estará. Com a internet, são raras as situ-
ações em que não conseguimos encontrar determinada obra
literária. A literatura então pode parecer ter perdido sua força. O
livro físico não é mais necessário, hoje é possível ler em celula-
res, computadores e em aparelhos projetados especificamen-
te para se parecerem com um livro real. Uma distopia absurda
para os amantes do cheiro de folhas recém adquiridas.
Ainda que haja certo distanciamento entre leitor e obra, uma
vez que a “aceleração digital”, como coloca Compagnon, ou
seja, um mundo cada vez mais conectado com mais editoras,
mais autores e mais “centenas de primeiros romances”, apesar
disso tudo a literatura ainda tem algo de extrema importância
a nos dizer e incitar. O palco pode ter mudado, espectadores
podem ter nascido e morrido, ido e vindo, mas a literatura con-
tinua lá, e seu ato parece não ter fim.
Para que literatura? O que ela pode fazer? Qual sua força?
Ela ainda tem algo a dizer? Postulando 4 poderes da literatura,
Compagnon não tem tanta preocupação em definir a literatura
em si, em entender o que ela é. Compagnon vê uma neces-
sidade em defender a presença da literatura nos dias atuais,
tentando, por meio de tais poderes, mostrar a relevância desta
arte (ainda que acabe por a definir no processo). Um de seus ar-
gumentos iniciais é que “a vida é mais cômoda, mais clara, mais
ampla para aqueles que leem que para aqueles que não leem”
(COMPAGNON, 2009, p. 29).
Sim e não. Realmente a vida é mais ampla para quem lê,
é mais bela, mais colorida. Aprendemos com a leitura o pra-
zer das pequenas coisas, como encontrar nossa Madeleine de
617
Proust18, ver a beleza de uma paisagem ou do voo dos pássaros
ao anoitecer. Porém também assumimos uma responsabilida-
de, como coloca Sartre: “Você é perfeitamente livre para deixar
esse livro sobre a mesa. Mas uma vez que o abra, você assume
a responsabilidade” (SARTRE, 2019b, p.50). A tomada de cons-
ciência de que o mundo é um lugar lindo e ao mesmo tempo
cruel é, talvez, a maior força da literatura. Como Compagnon
mesmo coloca: “Assim, a literatura, ao mesmo tempo sintoma
e solução do mal-estar na civilização, dota o homem moderno
de uma visão que o leva para além das restrições do mundo
cotidiano” (COMPAGNON, 2009, p. 35-36).
E por que quereria o homem adquirir tal benção, e ao mes-
mo tempo maldição, por parte da literatura? Voltemos a Aris-
tóteles, como Compagnon coloca ao citar o grego “é graças à
mimesis [...] que o homem aprende, ou seja, pelo intermédio
da literatura entendida como ficção” (COMPAGNON, 2009, p.
30). Não é à toa que “aprender brincando” é sempre melhor,
ou que fábulas de Esopo e La Fontaine ainda sejam usadas no
ensino fundamental. “A literatura deleita e instrui” (COMPAG-
NON, 2009, p. 30). Tem poder fundamental no ensino da ética
e da moral na sociedade ocidental, como coloca o estudioso
contemporâneo.
De acordo com o terceiro poder da literatura colocado por
Compagnon, a literatura ultrapassa os limites da linguagem,
ainda corrigindo seus defeitos, e se torna filosofia, formando
uma tênue linha entre ficção e não-ficção (ou história e poesia,
como trazia Aristóteles). Podemos pensar no que Alfredo Bosi
coloca em seu ensaio As fronteiras da literatura: “Falar em ‘fron-
teiras’ da literatura dentro desse campo de interações é sempre
recuar um pouco, é no fundo pensar as diferenças entre ficção
18 Marcel Proust traz em seu Magnum opus, Em busca do tempo perdido (1913-1927),
o conceito da madeleine. Determinado personagem molha uma Madeleine (bolinho
doce francês) no chá e se lembra de seu passado. Desde então o termo é usado na
língua francesa para qualquer coisa que nos faça lembrar imediatamente do passado.
618
e não-ficção” (BOSI, 2015, p. 223). Compagnon também trata
disso em seu O demônio da Teoria (1999). Mera comunicação,
como um bilhete, um panfleto de uma loja qualquer ou um car-
tão de visita, tudo isso é literatura? Notas esquecidas de escrito-
res conhecidos também? Tudo se complica quando vemos a li-
teratura, ficção e não-ficção, quebrarem padrões do romance e
se tornando quase puramente um ensaio filosófico. Como, por
exemplo, a segunda parte de O Estrangeiro, de Albert Camus:
“Mas todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida. No
fundo, não ignorava que morrer aos trinta ou aos setenta anos
tanto faz, pois em qualquer dos casos outros homens e mu-
lheres viverão, e isso durante milhares de anos” (CAMUS, 1972,
p.144). As bases do existencialismo e do niilismo estão aqui!
A relevância se constrói, aos poucos, conforme analisamos
melhor a literatura. Outra prova é sua própria existência. Discos
de vinil, por exemplo, foram substituídos por fitas, então pelos
CDS, depois os MP3 e hoje a música acontece no streaming. A
fotografia analógica deu lugar à digital, com uns poucos entu-
siastas ainda por aí. Já o livro não. A forma digital existe, há pelo
menos uns 20 anos, porém volumes e volumes em papel con-
tinuam sendo vendidos. Isto com certeza nos diz algo.
Lembremos a fala de Sartre: a literatura é um apelo. Um ape-
lo à emoção de quem a consome. Assim como toda arte o é. Se
ninguém consome a arte ela não tem sentido, ela é vã. Sartre
colocará: “Uma vez que a criação só pode encontrar sua realiza-
ção final na leitura, uma vez que o artista deve confiar a outrem
a tarefa de completar aquilo que iniciou, uma vez que é só atra-
vés da consciência do leitor que ele pode perceber-se como
essencial à sua obra, toda obra literária é um apelo” (SARTRE,
2019b, p. 48). A obra se mostra aqui como inacabada, atingindo
seu ápice pela leitura.
619
A literatura não é senão emoção. Não é à toa que, como
Compagnon relembra citando Proust, “na literatura saímos de
nós”. Quando lemos colocamos máscaras, assumimos diversos
personagens que não somos, conhecemos seus pensamentos,
seus desejos, suas invejas. A literatura é, então, uma e-moção.
Como coloca Georges Didi-Huberman, em Que emoção! Que
emoção? (2016), as emoções são gestos vivos “que, aliás, reafir-
mam muito bem o próprio sentido da palavra: uma emoção não
seria uma e-moção, quer dizer uma moção, um movimento que
consiste em nos pôr para fora (e-, ex) de nós mesmos?” (DIDI-
-HUBERMAN, 2016, p. 24-26). Que melhor forma de estarmos
fora de nós mesmos que não na literatura? De ver o mundo
pelos olhos do outro, que nos pode ensinar tanto e que, fisica-
mente, nem existe?
Sartre certa vez disse: “o inferno são os outros”. Célebre frase
que nos lembra que o eu não existe sem o outro. Somos seres
sociáveis, políticos (como diz Aristóteles), e viver em sociedade
requer ação. Aí entra o papel da responsabilidade de Sartre. Ser
responsável é tomar consciência de que para mudar as coisas
é preciso agir. O existencialismo, que é um humanismo, “não
pode ser considerado uma filosofia do quietismo, uma vez que
define o homem pela ação [...]” (SARTRE, 2019a, p. 33). Está ai
o papel do escritor engajado, conscientizar o leitor, incitá-lo à
mudança. E, mesmo que a grande mudança da época de Sar-
tre, o famoso Maio de 68, não tenha atendido às expectativas
da época, como colocam Deleuze e Guattari em Maio de 68
não ocorreu, a teoria de Sartre ainda pode ser muito proveitosa,
principalmente em tempos como os nossos.
620
Conclusão
A literatura é viva, está em constante mudança, e por isso é
quase impossível tentar defini-la de maneira absoluta, como
tentava Aristóteles. O foco deste trabalho foi, portanto, le-
vantar a questão novamente, como o fez Sartre, e defender
a presença da literatura em tempos de capitalismo selvagem.
Pois, como coloca Mark Fisher em Realismo Capitalista (2020):
“Nenhum objeto cultural pode preservar seu poder quando não
existem mais olhos para vê-lo” (FISHER, 2020, p. 12). É preciso,
portanto, fazer a literatura ser vista, problematiza-la, coloca-la
em jogo. É preciso continuar a discutir literatura.
No século IV a. C. Aristóteles já nos dava uma das funções
mais importantes da literatura: ensinar e proporcionar prazer.
Como Compagnon mesmo o coloca: “A literatura deleita e ins-
trui” (COMPAGNON, 2009, p. 30). Ensina-nos cores novas,
sentimentos e paisagens que só podem acontecer ali, em pági-
nas de preto e branco. Além disso, lembremos Sartre: “[...] toda
obra literária é um apelo” (SARTRE, 2019b, p. 48). Um apelo
à liberdade do leitor para que torne a obra que tem em mãos
viva. E a mensagem transmitida ali, uma vez que seja o autor
engajado, busca engajar também o leitor. Busca colocá-lo em
ação.
Portanto, ainda que seja difícil definir a literatura de uma vez
por todas, sendo ela objeto vivo, em constante mudança, é
possível observá-la e admirá-la enquanto muda de forma. E,
além de bela, ela instrui, instiga, deleita, amedronta e emocio-
na. A esse nosso mundo problemático ela nos ensina uma saí-
da. Pois, como traz Sartre: “Uma saída é algo que se inventa. E
cada um, inventando sua própria saída, inventa-se a si mesmo.
O homem é para ser inventado a cada dia” (SARTRE, 2019b, p.
261). Se a literatura auxilia-nos a construir nossa essência, está
aí mais um motivo para defendê-la.
621
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