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Giuliano Lellis Ito Santos

Marina Legroski
(orgs.)

Letras graduadas: trabalhos dos alunos do curso


de Letras da Universidade Estadual de Ponta
Grossa

Ponta Grossa
2023
Livro organizado sem fins lucrativos com a colaboração dos autores e do Departa-
mento de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Comissão Editorial
Andre Marques do Nascimento (UFG)
Carmen Rodrigues de Lima (UEM)
Cindy Mery Gavioli-Prestes (UNICENTRO-Guarapuava)
Claudia Daher (UFPR)
Diego Gomes do Valle (UFFS)
Jeniffer Imaregna Alcântara Albuquerque (UTFPR)
Livy Real (CE-PLN SBC)
Luana de Conto (UFPR)
Lucimar Araújo Braga (UEPG)
Márcio Jean Fialho de Sousa (UNIMONTES)
Melissa Andres Freitas (UEPG)
Mônica Veloso Borges (UFG)
Regina Halu (UFPR)
Rosangela Sarteschi (USP)
Tiago Pinheiro (UFSC)
Irene Müllerleily Stock (UNICENTRO)
Capa e diagramação
Giuliano Lellis Ito Santos
Fotos
Pedro Henrique Hara Matoso

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


___________________________________________________________

L649 Letras graduadas: trabalhos dos alunos do curso de


Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa /
Giuliano Lellis Ito Santos; Marina Legroski (Orgs.).
Ponta Grossa: DEEL, 2023.
ISBN 978-65-00-84094-0

1. Publicações acadêmicas.
CDD: 001
___________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Elson Heraldo Ribeiro Junior
CRB-9/1413
Sumário

Apresentação 6

Ensino

Reflexões sobre a educação especial na perspectiva inclusiva no contexto


brasileiro 9
Glaucia de Fatima da Luz
Charlott Eloize Leviski
Identificação e análise do contexto da abordagem lexical proposta por
Lewis em material didático de Língua Inglesa 34
Julia Valentin Silva
O uso da tecnologia no auxílio do ensino de português em escolas
bilíngues de surdos 63
Thyelle Francine Braz de Proença
Rúbia Carla da Silva
Alice Eulália de Oliveira Lima

Análises linguísticas

Análise sociolinguística da monotongação de [ow] na variedade do


interior paulista 98
Brenda Soares Rezende
Márcia Cristina do Carmo
A estrutura de posse nos sintagmas nominais em Kaingang: uma
descrição analítica em relação ao português brasileiro 136
Franciele Souza Cordeiro
Marcos B. Carreira
O verbo jantar: entendendo a construção polissêmica 159
Anthony Felipe Galvão Soares
Marina Chiara Legroski
A (im)polidez no debate presidencial: um olhar pragmático 190
Andrya Taynara Leal dos Santos
Sebastião Lourenço dos Santos
Línguas e literaturas indígenas

A invasão da Língua Portuguesa em Abya Yala na perspectiva Takariju 211


Mikaeli Kethleyn Messias Luz
A literatura dos Guaranis no Paraná 274
Adriane Cordeiro Mensen
A literatura indígena e a perspectiva de uma proposta curricular
decolonial 300
Valéria Mariano

Línguas e literaturas clássicas

Ironia como forma de persusão/sedução em Histórias verdadeiras, de


Luciano de Samósata 325
Leandro José Freitas
Jane Kelly de Oliveira
Ilíada e A canção de Aquiles: a homoafetividade de Aquiles e Pátroclo
344
Felipe Kalinoski Ribas
Larissa de Cássia Antunes Ribeiro

Literatura de Língua Inglesa

Estratégias dramáticas shakespearianas: estudo comparativo entre Rei


Lear e O mercador de Veneza 383
Cláudia de Geus Noernberg
Machado de Assis e Fernando Pessoa: a melancolia de The raven, de
Edgar Allan Poe, em duas visões e em duas traduções 422
Natália Rodrigues
Questão de gênero

Queerbaiting: o que é e como se manifesta na peça Harry Potter and the


Cursed Child 460
Ana Paula Schardosin
Vozes de mulheres negras em relação dialógica. Úrsula e Insubmissas
lágrimas de mulheres: escrevivências em diálogo 493
Marta Ferreira Pinto
Pactos narcísicos da cisgeneridade e da heterossexualidade em dois
contos de Caio Fernando Abreu 525
Alifer Rafael Nascimento Leal

Literatura e cinema

Quando a tragédia se torna uma vingança: Oldboy (2003) como releitura


de Édipo Rei (429 a. C.) 555
Rodrigo Paes
Jane Kelly de Oliveira
A criação da tragédia em Lavoura Arcaica de Raduan Nassar e Luiz
Fernando Carvalho 578
Mariana de Bona Santos
Jane Kelly de Oliveira

Teoria literária

Em defesa da literatura: Um diálogo entre Aristóteles, Jean-Paul Sartre e


Antoine Compagnon 604
Pedro Henrique Hara Matoso
Apresentação

Letras Graduadas: a primeira jornada pelos caminhos


da pesquisa
Como interessados pelas Letras, sabemos que escapar aos
clichês e às metáforas é impossível, seja do ponto de vista do
fazer literário, seja do viés linguístico que nos coloca como usu-
ários da língua que emprestam palavras com significados con-
cretos para falar de significados abstratos o tempo todo. Nem
tensiono fazer diferente: se abro a boca ou o documento no
computador, é para que a língua fale através de mim, ciente de
que minha criatividade linguística se encerra na análise combi-
natória que consigo fazer dessas palavras de uma forma talvez
inédita, ainda que muito provavelmente não.
A tarefa que temos aqui é a de apresentar os trabalhos, estes
sim inéditos – especialmente nas vidas dos nossos acadêmicos
– que marcam um ponto na caminhada que desenvolveram ao
longo de um ano, muitas vezes mais do que isso, ao lado de
seus orientadores: um ponto que, infelizmente, muitas vezes, é
o de chegada. Outras vezes, com sorte, vemos que se torna um
ponto de partida para uma nova caminhada.
Neste livro, estes textos têm o objetivo de ser um relato de
viagem para os próximos viajantes, para que possam mais ou
menos antever como percorrer os seus próprios caminhos, que
estratégias utilizar, que atalhos não tomar. Os trabalhos aqui
presentes foram os que tiraram as melhores notas entre os
apresentados no ano de 2022, o que certamente atesta a sua
excelência, mas não os torna guias: “Caminante, no hay cami-
no, se hace camino al andar”.
Temos aqui trabalhos que percorreram pesquisas bibliográfi-
cas, trilhas etnográficas, longas jornadas de discussões e densas
análises. Andaram por estradas do ensino de língua materna,
6
estrangeira, ensino bilíngue, ou se aventuraram em veredas da
linguística – da sintaxe, da semântica, da pragmática ou da va-
riação fonética – passando por vias misteriosas de literaturas
indígenas e clássicas, até avenidas onde a literatura encruzilha-
va com o cinema, com as teorias de gênero e a teoria literária.
Seus relatos se traduzem em cartografia de um objeto natural,
vivo, dinâmico, em constante transformação e expansão e, por
isso mesmo, infinito, instigante e convidativo a novas e impro-
váveis viagens. Cada descoberta é única e, por vezes, o resulta-
do final é a própria caminhada.
Por fim, buscamos manter as características dos trabalhos
como eles foram e são. Ou seja, esperamos que figurem como
Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs), por isso ao longo do
livro o leitor pode se deparar com diferentes modos de discurso
e diferentes abordagens, que, se não oferecem uma unidade
ortodoxa, oferecem uma visão plural de como se estabelece
o curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG).
Assim, esta obra, além de mostrar à toda a comunidade os
trabalhos desenvolvidos pelos nossos alunos, o nível de exce-
lência que atingimos e que buscamos, a cada ano, ultrapassar,
pretende servir de base para os alunos que se encontram pres-
tes a partir em suas próprias jornadas. Esperamos que aprovei-
tem a caminhada.

Giuliano Lellis Ito Santos


Marina Legroski

7
Ensino
Glaucia de Fatima da Luz
Charlott Eloize Leviski

1 Introdução
O presente trabalho tem como finalidade apontar os gran-
des desafios encontrados na atualidade referente à educação
especial na perspectiva inclusiva. Primeiramente, traçamos um
panorama do surgimento da Educação Especial no cenário in-
ternacional, e posteriormente a inserção do debate da educa-
ção inclusiva.
A inclusão, desde meados dos anos 1990, vem sendo deba-
tida para melhor se adequar na contemporaneidade na Edu-
cação Básica, e tem como objetivo alcançar todos e quaisquer
alunos inseridos no ensino regular, fazendo com que mais pes-
soas possam ter acesso não somente a educação eficaz e de
qualidade, mas também à valorização das diferenças.
O Art. 58º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
estabelece “a educação especial como modalidade de educa-
ção escolar e precisa ser oferecida preferencialmente na rede
regular de ensino para educandos com necessidades especiais”
(BRASIL, 1996, p. 31).
A educação inclusiva é mais do que somente garantir o aces-
so às escolas para todos, como também eliminar as dificulda-
des que impedem a participação de alunos, sem exceções, no
processo educativo. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia
(IBGE, 2010), quase 24% dos brasileiros (45 milhões de pesso-
as) possuem algum tipo de deficiência e esperam para serem
incluídos, assim como terem seus direitos garantidos.
9
Além das necessidades de informação, muitos pais ainda não
sabem os direitos que eles e seus filhos têm e, por isso, acabam
vivendo em um ambiente negligenciado, justamente por falta
de informações claras vindas da equipe pedagógica e dos go-
vernantes.
Muitos professores recém-formados não possuem experi-
ências com alunos com algum tipo de necessidade especial,
sendo importantes as discussões sobre o processo para alunos
graduandos e da pós-graduação. Um professor especializado
oferece um papel importante, atuando de forma mais colabo-
rativa em sala de aula, criando recursos que favoreçam estraté-
gias de acesso ao aluno na escola comum, interagindo em gru-
po e participando em todos os projetos e atividades no espaço
escolar.
A metodologia para fundamentar esse trabalho constitui-se
através da coleta de dados em que se utilizou o procedimento
de pesquisa bibliográfica e documental.
De acordo com Gil (2002, p. 50-51), “a pesquisa bibliográfica
serve-se de material secundário”, ou seja, é realizada através de
levantamento de bibliografia já publicada em forma de livros,
publicações avulsas, revistas, imprensa escrita, cujo objetivo
é fazer com que o pesquisador entre em contato direto com
aquilo que foi escrito acerca de determinado assunto. Quanto
a pesquisa documental, essa se desenvolve nos mesmos pas-
sos da pesquisa bibliográfica, mas consiste na exploração das
fontes documentais que não receberam tratamento analítico,
como leis, diretrizes e orientações curriculares (GIL, 2002).
Desta forma, segundo este método bibliográfico e docu-
mental, o corpus teórico constitui-se por Carvalho (2000),
Souza (2009), Noquele, Silva e Silva (2014), Souza e Rodrigues
(2009), Freire (1996), a Declaração de Salamanca (1994) e a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, entre outros auto-
10
res que tratam sobre a educação inclusiva, a fim de evidenciar
os direitos que os educandos possuem, entendendo-se que os
dados adquiridos possibilitam uma compreensão sobre a edu-
cação inclusiva assim como o papel da escola, professor e fa-
mília.

e pilares para a perspectiva inclusiva no Brasil


A ideia de cuidar de pessoas com necessidades especiais
constituiu-se, originalmente, como campo de atuação a partir
de um modelo médico ou clínico no qual pessoas com defi-
ciência, em sua maioria, habitam hospitais psiquiátricos, sem
distinção de patologia ou idade, principalmente nos casos de
deficiência mental (MENDES,1995).
Instituições de manicômios se encarregavam de tratamen-
tos de pessoas consideradas “antissociais”. O entendimento
da época era de que pessoas consideradas diferentes estariam
melhor protegidas e cuidadas se estivessem separadas do res-
tante da sociedade.
Na sociedade europeia, no século XVI, a educação era direito
para poucos, justificada pela crença de que a pessoa diferente
seria melhor educada e protegida se limitada em um espaço
separado dos demais. Nesse período, pessoas com necessida-
des especiais não precisavam estudar, somente dependiam de
cuidados médicos, visto que eram tratadas como doentes.
Quase de maneira inexistente se pensava na Educação Espe-
cial, médicos e pedagogos da época como os pioneiros Charles
M. Eppée e Valentin Hauy, entre outros, desenvolveram, então,
trabalhos cuja sua importância era voltada ao tema de propiciar
ensino aos alunos com Necessidades Educacionais Especiais
(PESSOTTI, 1984; SILVA, 1987).

11
A partir de 1930, a sociedade civil começa a organizar-se em associa-
ções de pessoas preocupadas com o problema da deficiência: a esfera
governamental prossegue a desencadear algumas ações visando à pe-
culiaridade desse alunado, criando escolas junto a hospitais e ao ensino
regular, outras entidades filantrópicas especializadas continuam sendo
fundadas, há surgimento de formas diferenciadas de atendimento em
clínicas, institutos psicopedagógicos e outros de reabilitação. (JANNUZ-
ZI, 2004, p. 34).

A Educação Especial é uma categoria de ensino que contem-


pla os alunos com deficiência. Segundo a Convenção dos Di-
reitos da Pessoa com Deficiência, proclamada pela ONU em
2006, que em seu artigo 1º dispõe:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natu-
reza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interações com
diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade com as demais pessoas. (ONU, 2006).

Para a ONU, a deficiência é um conceito em evolução, é uma


interação entre a deficiência de uma pessoa e os obstáculos
que impedem sua participação na sociedade. Não importa se a
deficiência é física, mental, sensorial, múltipla ou resultante da
vulnerabilidade.
Assim, a educação especial é ofertada para pessoas com de-
ficiência específica em instituições especializadas, por exem-
plo: escola para cegos, atendimento a pessoas com deficiência
intelectual e escolas para surdos.
O atendimento de pessoas com deficiência teve início no
Brasil na época do império, em instituições como: o Imperial
Instituto de Meninos Cegos em 1854, atualmente Instituto
Benjamin Constant - IBC, e o instituto dos Surdos e Mudos em
1857, hoje Instituto Nacional da Educação dos Surdos - INES,
ambos no Rio de Janeiro.
Na metade do século XX, o processo educacional avançava
lentamente, as escolas passaram por mudanças tanto na sua
12
estrutura quanto na equipe pedagógica para inserir o aluno nas
classes comuns.
Segundo Sá (2009, p. 26), “A denominada educação inclu-
siva nasceu nos Estados Unidos, pelas mãos da Lei Pública
94.142, de 1975”, que foi a primeira lei em defesa dos direitos
dos deficientes nos EUA. A criação da legislação foi deferida
após movimentos sociais de pais e familiares de alunos com
algum tipo de deficiência, que lutavam pelos direitos de acesso
às escolas de qualidade para seus filhos.
Conforme Stainback e Stainback (1999), os movimentos de
pais e familiares na América do Norte tinham como prioridade
reconhecer a diversidade e o multiculturalismo como essência
humanas.
Enquanto este movimento crescia na América do Norte, ao mesmo
tempo, o movimento reconhecia a diversidade e o multiculturalismo
como essências humanas começaram a tomar e ganhar força na Eu-
ropa em decorrência das mudanças geopolíticas ocorridas nos últimos
40 anos do século XX. Uma das consequências deste último movimen-
to foi em 1990, o Congresso de educação para todos em Jamtien na
Tailândia que tinha como propósito a erradicação do analfabetismo e a
universalização do ensino fundamental tornara-se objetivos e compro-
missos oficiais do poder público perante a comunidade internacional.
(STAINBAK e STAINBAK, 1999, p. 36).

O surgimento do conceito de educação inclusiva passou a


ser conhecido e entendido por meio de movimentos interna-
cionais, entre eles a Conferência Mundial Sobre Necessidades
Educacionais Especiais, ocorrida no ano de 1994, na Espanha,
que teve a participação de diversos países como, Estados Uni-
dos, Canadá e Europa. A partir desse evento foi assinada a De-
claração de Salamanca que destaca pontos importantes de
reflexão e mudanças na realidade atual em que objetivos, con-
teúdos, metodologia e avaliação sejam adaptadas para atender
todos e quaisquer alunos, independentes de suas característi-
cas individuais.
13
A Declaração de Salamanca reitera que, toda criança tem o
direito à educação de qualidade reconhecendo os interesses,
características, necessidades e habilidades individuais, pois
cada aprendizagem é única “reconhecendo a necessidade e ur-
gência do providenciamento de educação para crianças, jovens
e adultos com necessidades educacionais especiais dentro do
sistema regular de ensino”. (UNESCO, 1994, p. 1). Consequente-
mente, a Declaração de Salamanca trouxe o fortalecimento da
inclusão da pessoa com necessidades educativas especiais na
escola comum, garantindo o acesso e permanência do aluno
em diversos níveis de ensino e a escola deve considerar essas
diferenças, promovendo as adaptações necessárias, que aten-
dam às necessidades de aprendizagem de cada educando.
Segundo Freitas (2008, p. 8), “o modelo de educação inclu-
siva – conforme proposto pela Declaração de Salamanca – re-
quer primeiramente, que os direitos e as especificidades dos
educandos envolvidos no processo sejam respeitados para que
o processo educativo obtenha sucesso”.
A inclusão escolar de alunos com necessidades educacionais
especiais não se forma apenas em sua permanência física jun-
to aos demais educandos, mas também do compromisso com
uma educação de qualidade para todos, favorecendo a acessi-
bilidade, a flexibilização curricular, as adaptações curriculares,
que caracterizem sua opção por práticas inclusiva.
Segundo a Declaração de Salamanca (1994):
Cabe à escola reconhecer e responder às necessidades diversas de seus
alunos, acomodando ambos os estilos e ritmos de aprendizagem e as-
segurando uma educação de qualidade a todos através de um currículo
apropriado. (1994, p. 14).

Para que a educação inclusiva aconteça, deve ser reconhe-


cida a singularidade de cada indivíduo, sendo esse o primeiro
passo para a criação de métodos de estudos para cada aluno.
14
Assim como em outros países, a educação especial no Brasil
foi e ainda é marcada por muitas lutas e organizações sociais e
políticas. De acordo com Mazzotta (2005):
Na primeira metade do século XX, portanto, até 1950, havia quaren-
ta estabelecimentos de ensino regular mantidos pelo poder público,
sendo um Federal e os demais estaduais, que prestavam algum tipo de
atendimento escolar especial a deficientes mentais. Ainda, catorze es-
tabelecimentos de ensino regular, dos quais um Federal, nove estaduais
e quatro particulares, atendiam também alunos com outras deficiên-
cias. No mesmo período, três instituições especializadas (uma estadual
e duas particulares) no atendimento de deficientes mentais e outras oito
(três estaduais e cinco particulares) dedicavam-se à educação de ou-
trosdeficientes. (MAZZOTA, 2005, p. 31).

Em 1988, a Constituição Federativa do Brasil tornou a educa-


ção como direito de todos. O Art. 206 da constituição estabele-
ce que o ensino precisa ser baseado na igualdade de condições
de permanência na escola. Referente à educação inclusiva, a
Constituição no Art. 208 estabelece que pessoas com necessi-
dades especiais devem ser atendidas na rede regular de ensino.
Em meados dos anos 1990, a inclusão escolar no Brasil ofere-
ceu o direito a todos com Necessidades Educacionais Especiais
serem inseridos nas escolas regulares. Após esses movimentos
sociais e políticos para inserção da educação inclusiva, diversos
profissionais como médicos, professores e pedagogos se mo-
bilizaram com propósito de promover a educação para todos
com as políticas necessárias e preparando as escolas para aten-
der toda a sociedade. Conforme esclarece Jannuzzi (2004):
A partir de 1930, a sociedade civil começa organizar-se em associações
de pessoas preocupadas com o problema da pessoa com deficiência: a
esfera governamental prossegue a desencadear algumas ações visando
a peculiaridade desse alunado, criando escolas junto a hospitais e ao
ensino regular, outras entidades filantrópicas especializadas continuam
sendo fundadas, há surgimentos de formas diferenciadas de atendi-
mentos em clínicas, institutos psicopedagógicos e outras reabilitações.
(2004, p. 68).
15
A implantação, a integração e a inclusão de pessoas com ne-
cessidades especiais no Brasil e no mundo têm sido inspiradas
por uma série de documentos como declarações, recomenda-
ções e normas jurídicas envolvidas com a temática da deficiên-
cia (CARVALHO, 1999).

3 Educação especial na perspectiva da


educação inclusiva
O pensamento comum é de que a educação inclusiva é vol-
tada para alunos deficientes, tanto física quanto intelectual-
mente. Entretanto, a
[...] interpretação equivocada de que a inclusão diz respeito, apenas, a
portadores de deficiência tem gerado inúmeras resistências, não só à
sua presença nas classes comuns como, e, principalmente, no que res-
peita à valiosa contribuição do saber e do saber-fazer historicamente
acumulado pela educação especial. (CARVALHO, 2004, p. 81-82).

A educação especial teve uma trajetória de leis e diretrizes


que foi essencialmente necessária para dar maior visibilidade
às pessoas com necessidades especiais. Em uma perspectiva
inclusiva no meio escolar, alunos com suas especificidades vem
ganhando reconhecimento e visibilidade na sociedade. Sendo
assim, houve a importância de serem criadas políticas educa-
cionais para criar a melhor forma de atender os alunos com ne-
cessidades especiais.
Como Explica na Declaração de Salamanca:
[...]o princípio fundamental desta linha de ação é de que as escolas de-
vem acolher todas as crianças independentemente de suas condições
físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras. Devem
acolher crianças com deficiência e crianças bem-dotadas, crianças que
vivem nas ruas e que trabalham, crianças de minorias linguística, étnicas
ou culturais e crianças de outros grupos ou zonas desfavoráveis ou mar-
ginalizadas (1994, p. 17- 18).

16
Devem ser acolhidos aqueles que até então eram excluídos,
como: alunos provenientes de famílias pobres, povos indíge-
nas, discentes com alguma dificuldade de aprendizagem, mi-
norias étnicas, negros, estudantes de diferentes culturas e lín-
guas, entre outros. A inclusão não se trata somente de incluir
pessoas com deficiência e sim a inclusão de todas aquelas que
se encontram em situações desfavorecidas educacionalmente
e socialmente. Desse modo, é uma educação voltada para uma
cidadania livre de preconceitos e que reconhece as diferenças.
(UNESCO, 1994). A inclusão deve prever a inserção escolar de
forma radical e completa tendo todos os alunos sem exceção
frequentando as salas de aula do ensino regular.
A educação inclusiva está em evidência no Brasil e no mun-
do, e pode ser entendida como uma ação de ensino atual que
busca garantir o direto de educação para todos, pressupondo
que o educando tenha igualdade de oportunidades, reconhe-
cendo as características individuais de cada aluno, sendo o pri-
meiro passo para a criação de um método de ensino que se
aplique a cada estudante em específico.
Assim, percebe-se que existem políticas públicas voltadas
para a inclusão dos alunos com deficiência no ambiente esco-
lar, de maneira a responsabilizar o Estado a permitir que estes
alunos façam parte do contexto escolar.
A educação inclusiva, diferentemente da Educação Tradicio-
nal, em que os alunos necessitam ajustar-se a ela, constitui-se
em uma diretriz onde a escola é que necessita se adaptar às
necessidades e especificidades do aluno.
A educação inclusiva surgiu para resgatar o direito de edu-
cação independente de qual classe ou condição social o aluno
possa ter, atendendo a todos sem diferença ou discriminação,
a escola tem por obrigatoriedade atender todos os estudantes,
com e sem deficiência:
17
o [...] princípio fundamental da escola inclusiva é o de que todas as crian-
ças devem aprender juntas, sempre que possível, independentemente
de quaisquer dificuldades ou diferenças que elas possam ter. Escolas
inclusivas devem reconhecer e responder às necessidades diversas de
seus alunos, acomodando ambos os estilos e ritmos de aprendizagem e
assegurando uma educação de qualidade à todos através de um currícu-
lo apropriado, arranjos organizacionais, estratégias de ensino, uso de re-
cursos e parceria com as comunidades. Na verdade, deveria existir uma
continuidade de serviços e apoio proporcional ao contínuo de neces-
sidades especiais encontradas dentro da escola. (UNESCO, 1994, p. 7).

Diante disso, a inclusão supõe uma escola que se ajuste às


especificidades de todos os alunos, ao invés de esperar que
esses alunos com determinada necessidade se ajuste a escola.
Queiroz, Costa e Silva (2020, p. 127) salientam que:
A escola inclusiva na formação do cidadão implica em um sistema edu-
cativo que atenda às diferenças individuais e respeite as necessidades
dos alunos. Neste sentido, esperamos que a escola atenda não somente
os alunos com deficiências, mas, de uma maneira geral, todos os alunos
em suas peculiaridades, que seus fundamentos teórico-metodológicos
centralizam em uma concepção de educação de qualidade para todos,
no respeito à diversidade dos educandos.

Em relação à Educação Especial, reitero a necessidade desse


ensino ser parte essencial do ensino aprendizagem, para que
seus serviços possam ser implementados nas probabilidades
da educação inclusiva, como prevê a Política Nacional da Edu-
cação Especial (BRASIL,1994).
A seguir, discorro sobre os principais documentos legais no
Brasil que sustentam a política de educação especial.

3.1 Bases legais para educação inclusiva no


Brasil
A Constituição de 1824 prevê a integração e inclusão, que
foi concedida pelo Imperador Dom Pedro I, em 25 de março
de 1824, no artigo 208, da Constituição do Antigo Regime,
18
reconhece que é dever do Estado efetivar o atendimento es-
pecializado aos portadores de deficiências, essencialmente na
rede de ensino regular. Um dos seus objetivos fundamentais é
“promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
(art. 3º inciso IV).
No que se refere à Lei Federal 7.853, de 24 de outubro de
1989, ocorre o fortalecimento da oferta obrigatória e gratuita
da educação especial em escolas públicas. Em seu artigo 8º, a
referida Lei determina que é crime o preconceito e discrimi-
nação à pessoa com deficiência no que se refere ao acesso e
permanência na escola.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 13 de julho
de 1990, reforça os dispositivos legais supracitados, ao determi-
nar que “os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular
seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino” (BRASIL, 1990,
p. 44). O ECA também classifica quem é considerado criança
e adolescente, além de proteção para famílias com crianças e
adolescentes na condição de inclusão.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN
9.394/1996), que está fundamentada na Declaração de Sala-
manca reafirma o compromisso com a educação de qualidade
para todos, sendo necessária a integração de indivíduos com
necessidades especiais em toda a sociedade (BRASIL, 1996).
A Lei de Diretrizes de Base Educacionais (LDBEN) é a legisla-
ção que define e regulamenta o sistema educacional brasileiro,
podendo ser público ou privado. Foi citada pela primeira vez
na Constituição de 1934, porém só foi realmente efetivada em
1961, seguida de duas promulgações, uma em 1971 e a última
em 1996, que vigora até os dias atuais.
Em 1996, LDBEN afirma que alunos com “deficiência física
ou mental os que se encontrem em atraso considerável quanto
19
à idade regular de matrícula e os superdotados deverão receber
tratamento especial” ou seja é direito do cidadão à educação
desde a educação básica até o ensino superior. (BRASIL, 1996,
p. 31).
Ainda, a Lei de Diretrizes e Bases, nº 9394, de 20 de dezem-
bro de 1996, na qual tem um capítulo que ampara a educação
especial, afirma que “haverá, quando necessário, serviços de
apoio especializado, na escola regular, para atender às pecu-
liaridades da clientela de Educação Especial” (BRASIL, 1996, p.
39).
Atualmente, a Lei n° 13.146 de 6 de julho de 2015 - Lei Brasi-
leira de Inclusão da Pessoa com deficiência (Estatuto da Pessoa
com Deficiência) afirma que é direito do portador de deficiência
a inclusão do mesmo em escolas, que as instituições de ensino
têm o dever de assegurar e proteger, em condições de igual-
dade pessoas com qualquer tipo de deficiência, sem exceções.
Compondo as políticas curriculares, a Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2018) estabelece a necessidade de cada
instituição escolar elaborar seu próprio projeto pedagógico,
considerando as necessidades e os interesses de cada estudan-
te. É justo mencionar que a BNCC trata de educação inclusiva
apenas uma vez, em sua introdução, quando menciona a Lei n°
13.146, de 06 de julho de 2015, que corresponde a lei brasileira
de Inclusão da Pessoa com Deficiência, e no momento que foi
mencionado não aparecem propostas de práticas educativas
nesse contexto inclusivo.
Por ser um documento referencial recente, a BNCC (2018)
deveria buscar abordar a Educação Especial com mais proprie-
dade, pois a Educação Especial deve constar no Projeto Político
Pedagógico de cada escola, de acordo com a realidade viven-
ciada. Sendo assim, a BNCC além de não trazer tanta informa-

20
ção voltada ao professor deixa várias lacunas em relação à edu-
cação inclusiva.
Contudo, percorrendo pelos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais (PCNs, 1998), percebemos que um dos objetivos é a adap-
tação curricular, visando a uma educação apropriada aos alunos
que estão incluídos dentro da classe regular. Nos PCNs (1998)
existe uma parte específica especialmente para as adaptações
curriculares, proporcionando aos professores um engajamen-
to maior para adaptar suas aulas garantindo a participação de
todos os alunos. Essas adaptações curriculares são basear na
educação plural, e assim orienta para o trabalhar com diferen-
tes ritmos e abordagens de aprendizagem (BRASIL, 1998).
Nos anos 2000, esse documento foi dividido em oito mó-
dulos relativos ao Programa “Adaptações Curriculares em Ação”,
sendo quatro específicos para altas habilidades/superdotação,
deficiência física neuromotora, deficiência visual e surdez. Nes-
ses módulos, são reforçadas as ações que buscam a reorganiza-
ção dos currículos como condição imprescindível para a inclu-
são do aluno nas salas de aula do ensino regular.
Isso posto, é possível observar que os PCNs (1998) trazem
uma atenção voltada à formação dos professores que não é
contemplada na BNCC (2018).

4 Possibilidades da educação inclusiva na escola


básica brasileira
A modalidade da educação inclusiva é algo muito novo na
trajetória do Brasil. A educação por muitas décadas era ofer-
tada a apenas pessoas ditas “normais”. Demorou alguns anos
para que o ensino passasse a ser de qualidade e ofertado para
a sociedade de forma igualitária. Uma escola regular, capaz de
atender todas as crianças e adolescentes é uma determinação
da Declaração de Salamanca (1994). Uma escola pode se tornar
21
inclusiva quando responde com eficiência pedagógica a reali-
dade dos educandos. Para isso, as instituições de ensino preci-
sam adaptar seus currículos, de forma a atender às peculiarida-
des de cada aluno.
Nos PCN (BRASIL, 1998), para desenvolver um currículo que
garanta a permanência na escola regular, as adaptações curri-
culares devem ser entendidas como um processo de três ní-
veis, ou seja, no projeto pedagógico da escola, no qual é possí-
vel analisar as dificuldades enfrentadas pela escola e assim criar
objetivos e metas que se encaixem nos padrões dos alunos,
gestores, professores, funcionários da escola e familiares; no
currículo desenvolvido em sala de aula; e no nível individual,
por meio da elaboração e implementação do Programa Educa-
cional Individualizado (PEI).
Os estudantes de inclusão devem ou deveriam ser acom-
panhados por meio do Programa Educacional Individualizado,
mais conhecido pela sigla PEI, um documento elaborado pelo
corpo docente como uma estratégia para o estabelecimento
de um planejamento escolar individualizado, contendo as ne-
cessidades específicas do aluno, para que assim ele possa criar
habilidades específicas no ensino regular.
O PEI precisa ser aprovado pelo estudante ou pelo responsá-
vel, se o estudante for menor de idade. O planejamento deve
ser revisado periodicamente, para que o professor possa acom-
panhar o desenvolvimento do aluno e mudar as estratégias se
necessário (SASSAKI, 1999).
Os principais objetivos do PEI são garantir a todos uma edu-
cação de qualidade e igualdade de oportunidade, buscando
transformações sociais e governamentais, de maneira a garan-
tir o acesso e a permanência sem distinção. A inclusão está
sujeita à valoração e reflexão dos professores, pais e alunos e,
sobretudo, da comunidade. Deve-se levar em consideração to-
22
das as diferenças, para assim, promover o acolhimento dos es-
tudantes de forma adequada, sendo essencial ações educativas
perante as peculiaridades de cada aluno, sem deixar de consi-
derar o processo de ensino e aprendizagem, o que implica em
atender as necessidades dos alunos na escola e contextualizar
com a realidade dos mesmos (BRASIL, 1996).
A sociedade reproduz a exclusão quando impõe barreiras que
impedem o acolhimento dos estudantes. Sendo assim, pode-
-se aprender a lidar, respeitar e conviver com as diferenças en-
tre pessoas, pois é um processo pelo qual a sociedade pode
se adaptar para poder incluir. A inclusão escolar possibilita aos
alunos com suas especificidades conviver no mesmo espaço
social educacional que os demais e estimula a aprendizagem
colaborativa. Segundo Souza e Rodrigues (2009, p. 3),
[...] o Desenvolvimento Inclusivo tenta harmonizar os diferentes mode-
los sociais existentes e valoriza as diferenças e a diversidade na cons-
trução de uma sociedade melhor. É um conceito que reconhece uma
dívida de muito tempo com os povos mais pobres, com as pessoas com
deficiência e com todos aqueles que sempre estiveram à margem da
cidadania nacional e planetária.

As autoras apresentam três relações que englobam a educa-


ção inclusiva, sendo elas:
• Deficiências: os que possuem causa orgânica ou biológica compro-
vada.
• Dificuldades: não há causa orgânica para o tipo de característica
apresentada pelo aluno (ex.: alunos superdotados).
• Desvantagens: causadas por problemas socioeco-
nômicos, culturais, linguísticos, etc. (SOUZA; RODRIGUES, 2009 p.
3).

As especificidades acima se enquadram nas Necessidades


Educacionais Nacionais, ou seja, abrange além de deficiências
outras condições singulares que demanda modificações es-
truturais e culturais nas escolas a fim de que todos os alunos
23
tenham suas especificidades atendidas. Uma escola inclusiva
se constrói respondendo a essas necessidades com eficiência
pedagógica, e para que isso aconteça as instituições precisam
se adequar aos diferentes elementos curriculares de forma a
atender todas as singularidades dos alunos.
Referente ao currículo, Souza e Rodrigues (2009) explicam
que a adaptação curricular é realizada para que possam atender
às necessidades educacionais dos alunos que possuem singu-
laridade, para que assim possam ter acesso de forma justa ao
currículo geral utilizado pela escola.
Para pôr em prática uma ação educativa inclusiva e capaz de atender
às necessidades educacionais dos alunos é necessário desenvolver es-
tratégias de intervenções pedagógicas mais específicas que assegurem
uma melhor qualidade do ensino, levando em conta as necessidades
individuais de cada aluno em sua sala de aula e visando conferir maior
eficácia a todo o processo de aprendizagem. (SOUZA; RODRIGUES,
2009, p. 20).

Para que a educação inclusiva se torne de fato Inclusiva é de


suma importância que as organizações curriculares e as pro-
postas de desenvolvimento sejam elaboradas para promover
ajustes necessários para o contexto da sala de aula. Segundo
Souza e Rodrigues (2009), há dois tipos de adaptação de currí-
culos: as adaptações curriculares de grande porte, que são sis-
tematizadas políticoadministrativas superiores, que envolvem
diferentes ações de natureza administrativa, financeira, entre
outras, e as adaptações curriculares de pequeno porte, sendo
elas de responsabilidade da equipe pedagógica e do profes-
sor, pois se referem aos “ajustes nas ações planejadas a serem
desenvolvidas no contexto da sala de aula” (SOUZA; RODRI-
GUES, 2009, p. 20 ).
Essas adaptações têm por objetivo garantir que o aluno com
deficiência seja contemplado no processo de ensino e aprendi-

24
zagem, na sala comum da escola regular, com outros alunos da
mesma idade que ele.
Para Sassaki (2004):
Uma escola comum só se torna inclusiva depois que se reestruturou
para atender à diversidade do novo alunado em termos de necessida-
des especiais (não só as decorrentes de deficiência física, mental, visual,
auditiva ou múltipla, como também aquelas resultantes de outras con-
dições atípicas), em termos de estilos e habilidades de aprendizagem
dos alunos e em todos os outros requisitos do princípio da inclusão,
conforme estabelecido no documento, ‘A declaração de Salamanca e
o Plano de Ação para Educação de Necessidades Especiais’. (SASSAKI,
2004, p. 2).

A educação inclusiva pressupõe que as escolas se adaptem


a seus alunos levando em consideração que cada aluno apre-
senta sua singularidade, o que os tornam únicos. Um ambiente
escolar que trabalha a inclusão pensando em uma prática pe-
dagógica mais flexível aos alunos, onde o processo de ensino e
aprendizagem é de responsabilidade de todos que fazem parte
da escola.
Portanto, o trabalho com a diversidade deve caminhar na
perspectiva de construir novas metodologias de ensino e
aprendizado, introduzindo o aluno em um mundo cultural e
social priorizando a escolarização.
As escolas abertas à diversidade são escolas [...] em que todos os alunos
se sentem respeitados e reconhecidos nas suas diferenças, ou melhor,
são escolas que não são indiferentes às diferenças. Ao nos referirmos
a essas escolas, estamos tratando de ambientes educacionais que se
caracterizam por um ensino de qualidade, que não exclui não categoriza
os alunos em grupos arbitrariamente definidos por perfis de aprovei-
tamento escolar e por avaliações padronizadas e que não admitem a
dicotomia entre educação regular e especial. As escolas para todos são
escolas inclusivas em que todos os alunos estudam juntos, em salas de
ensino regular. Esses ambientes educativos desafiam as possibilidades
de aprendizagem de todos os alunos e as estratégias de trabalho peda-
gógico são adequadas às habilidades e necessidades de todos. (MAN-
TOAN, 2003, p. 7-8).
25
O modelo educacional deve partir diretamente da escola que
age decisivamente nas diferentes personalidades existentes
em uma mesma sala de aula. A escola deveria combater toda
a forma de exclusão, desigualdade e opressão. O papel do pro-
fessor é indispensável no processo de ensino e aprendizagem,
conhecendo seus educandos, investindo em melhores alterna-
tivas pedagógicas para atender todos seus alunos, tendo em
consideração o processo de educar para a heterogeneidade.
No que se refere ao papel do professor, Roldão (2017) defen-
de que o professor deve saber mediar entre três bases, sendo
elas: “[...] o conhecimento do estudo científico que vai ensinar;
o conhecimento do aluno e sua capacidade cognitiva singular;
o conhecimento do currículo escolar e seus objetivos” (2017, p.
1145).
Diante disto, o professor precisa ficar a par do que vai ensinar
e para quem vai ensinar, estabelecendo estratégias, uma vez
que o ensino tradicional não possui uma abrangência significa-
tiva. É essencial criar alternativas diferenciadas e adequadas à
maneira singular de cada aluno. Os professores devem buscar
conhecer os limites de cada aluno e explorar as possibilidades
de um ensino de qualidade, essas estratégias oferecidas pela
educação inclusiva pode começar com o ensino de recursos
que sirvam para os alunos enfrentarem seus obstáculos, como;
o código Braille, Língua Brasileira de Sinais (Libras), Língua Por-
tuguesa como segunda língua para estudantes surdos, salas de
recursos, além de planejar atividades diferenciadas conforme
as necessidades de cada aluno.
Um dos principais métodos para a eficácia da educação in-
clusiva é a adaptação dos currículos escolares. Segundo Souza
e Rodrigues (2009), a adaptação curricular promove alterações
que possam atender às necessidades educacionais de alunos
com singularidades. Para os autores, as adaptações curriculares
26
podem ser de grande e pequeno porte. No primeiro caso, são
ações sistematizadas pelas instâncias político-administrativas
superiores, que envolvem diferentes ações administrativa, fi-
nanceira, entre outros. Por sua vez, as adaptações de pequeno
porte basicamente são de responsabilidade da equipe peda-
gógica e do professor, já que se referem aos “ajustes nas ações
planejadas a serem desenvolvidas no contexto da sala de aula”
(SOUZA; RODRIGUES, 2009, p. 20).
Sabendo que o objetivo da educação inclusiva é inserir todo
e qualquer aluno na escola, as adaptações curriculares possibi-
litam atender às dificuldades específicas de cada aluno, incluin-
do-os de maneira gradual no processo de ensino e aprendiza-
gem na programação escolar. Construir essas adaptações não
significa diminuir os conteúdos, mas ajustá-los às condições de
desenvolvimento de cada aluno.
Para Paulo Freire (2006), os educadores e educadoras de-
vem assumir a ingenuidade do educando para poder com eles
superá-los” (p. 7). Compreender que cada aluno possui diferen-
tes níveis de aprendizagem, pois cada um tem um desenvolvi-
mento diferente, é preciso que todos os professores estejam
preparados para obter sucesso na inclusão, um professor espe-
cializado tem um papel importante na colaboração referente
a educação inclusiva, criando melhor forma e condições para
certas atividades propostas de forma satisfatória.
Freire (1996) ressalta que ser professor “exige de mim, como
professor, uma competência geral, um saber de sua natureza
e saberes especiais, ligados à minha atividade docente” (p. 36).
A realidade da educação inclusiva ainda é difícil, visto que
muitas escolas ainda são precárias, como o número elevado de
alunos nas salas de aulas, falta de materiais, recursos, equipa-
mentos, infraestrutura escolar. Além disso, a maioria dos jovens

27
e adolescentes de inclusão frequentam as escolas sem um lau-
do médico. O MEC, através da nota técnica 04/14 informa que:
[...]não se pode considerar imprescindível a apresentação de laudo mé-
dico (diagnóstico clínico) por parte do aluno com deficiência, transtor-
nos globais de desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação,
uma vez que a atendimento educacional especializado - AEE caracteri-
za-se por atendimento pedagógico e não clínico (MEC, 2014, p.3).

Independente de ter ou não um laudo, todos os alunos de-


vem ter seus direitos de educação supridos. Assim, a escola
deve observar se o desenvolvimento do aluno não vai bem e
orientar os pais para encaminhamentos pertinentes.
Em comparação a legislação e a realidade educacional brasi-
leira, a inclusão dos alunos não se concretizou da melhor for-
ma, a proposta de educação atual não tem condições para ser
considerada inteiramente inclusiva. Para que a educação inclu-
siva seja realmente inclusiva e de qualidade torna-se essencial
o desenvolvimento de estratégias que facilitem a implementa-
ção desta proposta. Algumas destas estratégias correspondem
à criação das salas de recursos multifuncionais, investimento na
infraestrutura e formação inicial e continuada para professores
que contemplem a educação especial e inclusiva.
Sassaki (2003) sustenta que para construir uma escola inclu-
siva são requeridas mudanças nos seguintes níveis:
• arquitetônico (eliminação ou desobstrução de barreiras ambientais);
• atitudinal (prevenção e eliminação de preconceitos, estereótipos,
estigmas e quaisquer discriminações);
• comunicacional (adequação de código e sinais);
• metodológico (adequação e flexibilização de técnicas e teorias,
abordagens e métodos pedagógicos);
• instrumental (adaptação de aparelhos, materiais, recursos e equipa-
mentos pedagógicos);
• pragmáticos (eliminação de barreiras invisíveis nas políticas e no
amparo legal vigente). (SASSAKI, 2003, p. 2).

28
Os currículos escolares devem ser adequados às necessi-
dades dos seus alunos. Ainda que não existam modelos cur-
riculares prontos para educação inclusiva, é essencial que cada
escola, equipe pedagógica e comunidade escolar busquem co-
nhecer novas estratégias de adaptações que possam contribuir
de forma simples e prática as dificuldades enfrentadas nas ins-
tituições de ensino quando se trata de inclusão.

A escola ideal e de qualidade é um desejo de todos, ainda


que poucos alunos com necessidades especiais tenham acesso
à escola regular. Este artigo teve a intenção de mostrar a rele-
vância de se reverem as práticas pedagógicas para que as esco-
las possam se tornar espaços inclusivos. Reitero o quão impor-
tante é essa modalidade de ensino ser parte por completo do
ensino e aprendizado.
A educação inclusiva é posta como desafio dentro e fora
das escolas, contudo merece esforço, vontade para fazer mu-
danças. Diante disso, reafirmo que é de extrema importância
professores, escola e sociedade estarem de mãos dadas com
a educação inclusiva, que cada um pode se inteirar buscando
melhores soluções e condições de ensinar, sobretudo eliminar
as dificuldades que impedem a participação de alunos, sem ex-
ceção, no processo educativo.
São muitos os desafios encontrados na época atual, tanto na
formação dos professores quanto no preparo dos profissionais
da educação e das escolas, no que diz respeito ao atendimento
dos alunos com necessidades especiais. No campo acadêmico,
o estudo referente à inclusão deve ser tratado nos cursos de
graduação em licenciatura, assim como em cursos de formação
continuada de professores da educação básica e do ensino su-
perior, para que os professores possam se tornar cada vez mais
29
apropriados desse conceito, praticando-o progressivamente
(CAMARGO, 2017; KASSAR, 2011).
A escola e seu currículo pedagógico precisam tentar ser di-
ferentes do que propõe a educação tradicional, devendo ser
mais ampla e complexa, considerando o contexto histórico dos
alunos, os interesses, as competências e as limitações dos indi-
víduos inseridos nas diferentes realidades. Isto posto, é impres-
cindível que sejam consideradas quaisquer tipos de diferenças,
seja ela social ou natural existente em cada ser humano, para
assim serem construídos currículos que possam acolher es-
sas desigualdades e assim, de fato, a educação seja para todos
(UNESCO, 2019; SOUSA; VALLE; DIAS, 2017).
O presente trabalho fez ampliar minha visão referente a edu-
cação inclusiva e refletir o quão importante é desenvolvermos
estudos sobre o tema para estarmos capacitados para contri-
buir neste processo.
Destaco, por fim, que a luta pela educação inclusiva não
pode parar, ainda temos um longo caminho a percorrer para
uma educação de qualidade e realmente para todos.

30
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33
material didático de Língua Inglesa

Julia Valentin Silva1

1 Introdução
Segundo Polidório (2014) no artigo “O ensino de língua in-
glesa no Brasil”, a língua inglesa é a língua oficial em mais de
55 países e organizações como a ONU e OTAN e como segun-
da língua oficial ela é falada em mais de 60 países. O número
de falantes nativos é de aproximadamente 430 milhões e de
não nativos é de aproximadamente 950 milhões. Como Lewis
(1993) retrata, a língua inglesa deixou de ser preservada por fa-
lantes nativos e se tornou essencial no mundo moderno. Por
ser considerada uma língua franca, ela nos permite o acesso e a
comunicação com outros falantes, nativos ou não, em diferen-
tes países e culturas. Com o avanço da globalização, marcada
pelo grande desenvolvimento da tecnologia no século XXI e o
maior acesso a informação, somos influenciados pela língua in-
glesa de diversas maneiras, o que a estabelece como uma das
principais línguas do comércio, da ciência e da tecnologia (FA-
DANELLI; MONZÓN, 2017). O conhecimento de uma segunda
língua, em específico o inglês, abre caminhos para mais opor-
tunidades, tanto na vida pessoal quanto profissional, nas mais
diversas áreas, tendo em vista que muitas palavras da língua
inglesa estão introduzidas no nosso vocabulário diário.
O presente Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) teve como
objetivo de análise a questão lexical abordada no material di-
dático de ensino de língua inglesa de uma escola de idiomas

1 Trabalho de Conclusão de curso orientado por Álvaro Kasuaki Fujihara.


34
da rede privada. Para tanto, esta pesquisa buscou identificar a
presença da Abordagem Lexical nestes livros didáticos, tendo
em vista que se observou em um primeiro momento a ênfase
dada no material para a comunicação do dia a dia, da vida real e
nas habilidades de ouvir, entender e falar.
Essa abordagem surgiu no início da década de 90 por meio
dos estudos do linguista Michael Lewis. A intenção dessa abor-
dagem não é o de mudar completamente a forma como os
idiomas são ensinados, o objetivo é agregar valor à forma como
o léxico é utilizado durante o ensino de língua estrangeira.
(STIEVANO; PIZAIA; PEREIRA, 2008). Na obra The Lexical
Approach, Lewis defende a ideia de que “a língua consiste de
léxico gramaticalizado, não de gramática lexicalizada” e que
“a gramática como estrutura é subordinada ao léxico” (LEWIS,
1993, p. vi e vii), e não como termos técnicos ou estruturas gra-
maticais que são ensinadas aos estudantes muitas vezes de
maneira mecânica e analítica. Para Lewis (1993), a gramática
como ensinada no ensino de inglês não deveria ser o centro
do ensino e aprendizagem de língua inglesa, mas sim, o léxi-
co (vocabulário). Para ele, a ênfase na utilização das estruturas
gramaticais caracterizam o ensino da língua inglesa como me-
tódico e mecânico, e distorcem a concepção de aprendizagem
significativa. O autor também aponta que, mesmo materiais
que supostamente se afastam do ensino de línguas por uma via
gramatical tradicional (para, por exemplo, empregar uma abor-
dagem comunicativa) muito frequentemente acabam fazendo
apenas uma mudança superficial, que apenas coloca o ensino
tradicional sob novas roupagens.

35
2 Língua Inglesa no Brasil
A introdução da língua inglesa no Brasil aconteceu nos me-
ados de 1809 e se tornou parte obrigatória no currículo esco-
lar objetivando melhoria nas relações comerciais que Portugal
mantinha com a Inglaterra e França. Dom João VI decreta a cria-
ção de duas escolas para o ensino de língua inglesa e francesa
para este fim. O objetivo do decreto era induzir os estudantes
a se comunicarem de forma oral e escrita com outras pessoas,
sendo assim o método de ensino aprendizagem se estabele-
ceu de forma convencional em que professores aplicavam o
“método clássico” ou “gramática-tradução” que era o método
de ensino de línguas estrangeiras conhecido para o momento
(SANTOS, 2011).
Na atualidade o destaque da língua inglesa é notório em nível
mundial com a globalização e as relações internacionais cada
vez mais consolidadas. Conforme Silva (apud RAJAGOPALAN,
2019) essa afirmação se torna clara:
A língua se tornou uma espécie de ‘língua mundi’ ou a que prefiro chamar
de ‘World English’ é uma ‘novi-língua’ em plena acepção desse termo
popularizado por George Orwell. Ela já escapou das mãos dos ingleses,
dos norte-americanos, dos australianos, dos novo-zelandeses, enfim de
todos aqueles que até bem pouco tempo atrás eram tidos como pro-
prietários do idioma. (SILVA apud RAJAGOPALAN, 2019, p. 14)

Consequentemente, o sistema educacional brasileiro vem


passando por diversas modificações conforme a evolução das
necessidades dos estudantes e professores. As modificações
por vezes aumentaram ou diminuíram o número de aulas da LI
na educação básica. Segundo Quevedo-Camargo e Silva (2017),
temos no Brasil quatro instâncias responsáveis pela efetivação
da língua estrangeira, sendo elas: a Constituição Federal, a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), os Parâme-
tros Curriculares Nacionais (PCNs) e as Secretarias de Educa-
36
ção dos estados e municípios. Além da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) que foi instituída no final de 2017 segundo a
Resolução CNE/CP nº2 e deve obrigatoriamente ser respeitada
ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da
Educação Básica.
Em sua grande maioria, nas escolas de ensino fundamental e médio, a
explanação da língua inglesa tem ficado resumida à explicação de regras
gramaticais convencionais, exemplificação de textos curtos ou palavras
soltas não complexas e a aplicação intensiva de exercícios de múltipla
escolha que proporcionam resultados regulares (SANTOS, 2011).

Atualmente, a língua inglesa vem sendo ensinada em diver-


sas esferas educacionais como no ensino fundamental, médio,
universidades da rede pública e privada, bem como nas escolas
de idioma e ensino à distância. Porém, boa parte dos materiais
didático utilizados são materiais produzidos em grandes cen-
tros de países anglófonos e exportados para o mundo. Esses
métodos desconsideram as particularidades dos estudantes
que os utilizam, o que pode constituir um problema para esse
aprendizado, sobretudo quando ele se dá pelo aprendizado ex-
plícito de regras gramaticais. Por outro lado, a ênfase no léxi-
co, aliada à produção de materiais feitos especificamente para
o país em questão (como é o caso do material utilizado) pode
possibilitar um aprendizado mais adequado.

comunicativa
A Abordagem Lexical tem como base um ensino focado no
léxico da língua, composto pelo ensino da gramática de uso em
sala de aula e abrangendo conceitos fundamentais propostos
pela Abordagem Comunicativa, utilizando da natureza do lé-
xico e da sua contribuição para o trabalho pedagógico como
chave do ensino de língua estrangeira.
37
A Abordagem Lexical convida os leitores a descartar, ou pelo menos ra-
dicalmente enfatizar materiais e procedimentos que violam a natureza
da linguagem ou a natureza da aprendizagem. Tem sugestões positivas
a fazer sobre a natureza e o papel do léxico; diferentes atitudes em rela-
ção ao texto e estratégias para ‘dividir’ a linguagem (dividindo-o em seus
‘bits’ componentes, que não são o vocabulário tradicional e estrutura -
que professores e alunos assumem). (LEWIS, 1993, p. 9)

A Abordagem Lexical abrange tudo o que a Abordagem Co-


municativa sugere. Introduzindo funções e certas reordenações,
e ainda, contribui para o reconhecimento do léxico, bem como,
da estrutura como sendo um princípio organizador que afeta
tanto o conteúdo quanto a metodologia. De acordo com Por-
tela (2006, p. 53) a Abordagem Comunicativa se constitui de
cinco características apresentadas por Nunan (apud BROWN,
1994), sendo elas:
• Ênfase no aprender a comunicar-se através da intera-
ção com a língua-alvo;
• Introdução de textos autênticos na situação da aprendi-
zagem;
• Provisão de oportunidades para os estudantes, não so-
mente na linguagem, mas também no processo de sua
aprendizagem;
• Intensificação das próprias experiências pessoais do es-
tudante como elementos importantes na contribuição
para aprendizagem em sala de aula;
• Tentativa de ligar a aprendizagem da linguagem em sala
de aula com ativação da linguagem fora da sala de aula.
O ensino comunicativo busca organizar o foco no sentido, no
significado e na interação entre os estudantes durante o ensino
da língua estrangeira. Segundo Widdowson (1990), na década
de 90, as aulas de línguas estrangeiras passaram a ser focadas
na habilidade de comunicação e interação da língua nas quais

38
os professores deveriam buscar distintos métodos para apren-
dizagem dos estudantes por meio da gramática de uso.
Na obra de Lewis, The Lexical Approach: state of ELT and a
way forward (1993), o autor nos traz a diferença entre gramática
normativa e gramática de uso. Na gramática normativa, o es-
tudante aprende sobre a língua, não como usá-la naturalmen-
te, os estudantes são ensinados a memorizar regras e termos
técnicos. Já na gramática de uso, o estudante aprende a usar
a gramática de maneira mais natural, por meio da comunica-
ção e interação com outros colegas, dentre outras maneiras. A
abordagem comunicativa segue características que facilitam
a aprendizagem dos estudantes, com objetivo de empregar
traços de oralidade e condições favoráveis para a aquisição da
língua estrangeira, utilizando da gramática de uso para que o
estudante seja motivado e aprenda como se comunicar com
outros falantes fora do ambiente de sala de aula.
A abordagem comunicativa encorajou o uso de tarefas reais em sala de
aula que exigiam comunicação, diminuição da ênfase na correção, au-
mento da autonomia do aluno, aumento da ênfase nas habilidades re-
ceptivas, o uso de dados de linguagem não produzidos especificamente
para fins de ensino de idiomas e uma série de outras ideias. (LEWIS,
1993, p. 2)

2.1 Chunks of language


Lewis (1993) relata que a proposta da Abordagem Lexical
propõe uma ruptura com a concepção que divide claramente
léxico e gramática (primeiro aprenderíamos as regras gramati-
cais para depois “preencher” essa estrutura com itens lexicais),
assumindo que ambas as coisas estão entrelaçadas. O falante
deve se familiarizar com a estrutura da língua por meio do con-
tato com os chunks e pelo processo ativo de construir hipóte-
ses acerca da língua. O autor nos mostra que a proficiência na
39
língua estrangeira é adquirida de maneira mais rápida por meio
dos chamados Chunks of Languages, o que oportuniza ao estu-
dante a memorização da gramática de uso.
Os chunks são combinações de palavras que podem ser
organizadas de acordo com diferentes situações do cotidiano,
temas específicos, etc. Também chamados de lexical chunks
ou lexical itens, são as combinações de palavras mais comuns
utilizadas por um falante da língua em um certo contexto. Eles
são armazenados e recuperados como uma unidade lexical
pronta pelo falante no processo de aquisição da linguagem, são
utilizados não apenas para o uso da língua mas também para
propostas de ensino de línguas. São exemplos de chunks: collo-
cations, semi-fixed sentences, fixed sentences, polywords, entre
outros.
Os chunks são definidos de diferentes formas por diversos
autores, dentre todas as definições, a de Nattinger & DeCarrico
(1992), pontua que os chunks são definidos como frases lexicais,
com funções de discurso particulares.
Os chunks são fenômenos lexicais que existem em algum lugar entre
os polos tradicionais de léxico e sintaxe, compostos de forma/função
convencionais que ocorrem com mais frequência e têm mais significado
idiomático determinado do que a linguagem que é construída a cada
vez. (NATTINGER; DECARRICO, 1992, p.1).

Tendo como base essa definição, podemos afirmar que as


frases lexicais não têm apenas uma estrutura sintática, mas
também significados funcionais, como por exemplo cumpri-
mentos (how do you do), expressão de relacionamento entre
ideias ou coisas (not only..., but also...), dentre outros.
Lewis (1993) define os chunks em quatro tipos básicos dife-
rentes: polywords, collocations, institutionalized utterances e sen-
tence frames and heads.

40
Polywords são extensões de palavras compostas por mais de uma pa-
lavra, sendo consideradas como vocabulário essencial para os alunos
adquirirem, ex: as soon as; talk about; on the one hand; grow up; and after
all. As collocations se referem a pares de palavras que frequentemente
co-ocorrem entre si, se fundindo em conexões habituais e geralmente
se encontram em uma ordem fixa, ex: ordem fixa: knife and fork, bre-
ad and butter; verbo + substantivo: shake hands, catch a cold; adjetivo +
substantivo: bright red, splendid future. Já as institutionalized utterances
são chunks chamados de unidades inteiras e convencionais na língua,
elas tendem a expressar pragmática ao invés de significado referencial.
Podem ser frases completas sem variação mas com identificação ins-
tantânea, ex: aceitando: I’d be delighted to; oferecendo: can I give you a
hand; supondo: If I were you… Para finalizar, as sentence frames and heads
servem como a construção das estruturas de frases inteiras, ex: The fact
is…, It is suggested that… (ZHAO, 2009, p. 9)

Lewis, (1993) aponta que dentre as quatro definições,


polywords e collocations se preocupam com o significado refe-
rencial e institutionalized utterances e sentence frames and heads
com o significado pragmático. Dentre esses conceitos de Lewis,
temos as definições de que:
• Polywords: frases curtas fixas sem variabilidade;
• Collocations: pares ou grupos de palavras que ocorrem
frequentemente em um texto natural (verbo mais subs-
tantivo, substantivo mais adjetivo, verbo mais advérbio/
adjetivo, advérbio mais adjetivo, etc.);
• Institutionalized expressions: principalmente sem varia-
bilidade e que permanecem como declarações separadas
com funções pragmáticas;
• Sentence heads or frames: chunks lexicais que fornecem
a estrutura das frases para parâmetros ou argumentos a
ponto de expressar ideias.
De acordo com Lewis (1993, 2000 apud BUNDY, 2011), a
aquisição de vocabulário é fator essencial para os aprendizes da
língua estrangeira. Sua argumentação utiliza como base pes-
quisas em que relatam que o conhecimento de vocabulário de
41
um falante nativo é de cerca de 20.000 palavras ou mais. Por
esse motivo, o autor enfatiza a importância do estudo do léxi-
co no ensino de língua estrangeira, pois esse é o componente
essencial para que a comunicação seja realizada de forma mais
segura e eficaz. Desta forma, o propósito da Abordaegm Lexical
é desenvolver competências alternativas ao reconhecimento
do ensino e da aprendizagem, que constituem grandes partes
das línguas naturais. Lewis enfatiza também que o elemento
central do ensino de línguas é oportunizar aos estudantes ha-
bilidades para a utilização dos chunks de linguagem durante o
aprendizado.
Lewis (1993) também define os elementos centrais da Abor-
dagem Lexical,
[...] ênfase na leitura, importância do vocabulário em todos os níveis,
principalmente falantes iniciantes, diminuindo a ênfase na precisão es-
trutural e, acima de tudo, na centralidade do significado da linguagem
(LEWIS, 1993, p. 24)

A ideia seria de que no início o aprendizado do uso da língua


adicional é pouco preciso por natureza, mas isso acaba sendo
corrigido com o próprio uso. Sendo assim, faria mais sentido in-
vestir no vocabulário assumindo que a expressão do estudante
não será precisa durante os primeiros estágios do aprendizado,
não fazendo sentido exigir o contrário. O que seria mais ade-
quado é o investimento no desenvolvimento de uma comuni-
cação efetiva mesmo sendo pouco precisa.
Neste sentido, também é destacada a importância de dar
ênfase na construção do vocabulário de maneira mais rápida,
utilizando dos chunks of language e tendo como base do apren-
dizado, a Abordagem Lexical.

42
3 Uso da abordagem lexical no material didático
Uma vez que na Abordagem Lexical tem-se o léxico como
base de uma língua, o tratamento dado à gramática é sempre
contextualizado. Sendo assim, tendo o léxico como foco prin-
cipal da língua, após ter aprendido alguns chunks, os estudantes
passarão a adquirir a gramática de maneira natural para seu uso.
Com base nesse conceito, a Abordagem Lexical, proposta por
Lewis (1993), pode contribuir com a prática pedagógica no ensi-
no e na aprendizagem da língua estrangeira, especialmente no
que se refere ao léxico. A visão do ensino da gramática nos dias
atuais é que ela não é o aspecto principal, pois não é a partir
dela que se ensina a língua, mas, como propõe Lewis (1993),
ela é aprendida através dos chunks, isto é, as unidades lexicais e
não de maneira isolada, muito embora ainda existam situações
nas quais o vocabulário é ensinado separadamente. Segundo
Lewis, em torno de 80% do vocabulário armazenado em nossa
cabeça está em formato de chunks e somente 20% em forma
de palavras soltas.
Segundo Lewis (1993), muitos estudantes relacionam voca-
bulário com palavras. Diversos bits de linguagem (itens lexicais)
não consistem de palavras únicas (ex: by the way, the day after
tomorrow, I’ll see you later), mas justamente porque a dicotomia
gramática/vocabulário parece tão direta, há uma tendência a
simplificar o que é, de fato, um dos aspectos mais complexos e
reveladores da análise da linguagem.
O ensino de línguas apresentado por Lewis (1993), faz parte
de um complexo mais amplo, onde toda experiência de apren-
dizagem deve contribuir para os indivíduos. Por mais que as
experiências educacionais sejam únicas para cada estudante, o
autor nos traz como maneira eficaz de aumentar a produtivida-
de do aprendizado, o aumento da autoestima do estudante, da
sua auto confiança e admiração. O que resulta em um aumento
43
de concentração, argumentação, tolerância e cooperação. A ca-
racterística mais distintiva do ensino como base a Abordagem
Lexical é a proposta da maneira como o texto deve ser tratado,
reconhecendo sua importância e descontextualizando seu dis-
curso. Seguindo essa análise inicial, o estudante deverá desen-
volver uma série de atividades que sensibilizam e direcionam a
atenção dos estudantes aos chunks de linguagem que compõe
o texto.
De acordo com Lewis (1993), cursos rápidos e intensivos de
ensino de línguas tendem a ter um valor mais alto de rendi-
mento e resultados. O autor afirma e enfatiza os seguintes
pontos que são destacados no ensino baseado na Abordagem
Lexical: todos os cursos de baixo nível ofertarão aos estudantes
um amplo vocabulário, mesmo que inicialmente os estudan-
tes sejam incapazes de decompô-los gramaticalmente; itens
lexicais pragmaticamente úteis, principalmente expressões
institucionalizadas, constituem um significativo componente
de todos os cursos; e um equilíbrio deve ser mantido entre pa-
lavras que carregam significado e padrões com baixo conteúdo
de significado.

4 Metodologia
Para este estudo foi realizada uma pesquisa exploratória e
qualitativa. A pesquisa exploratória “têm como objetivo pro-
porcionar maior familiaridade com o problema” (GIL, 1991, p.
45). Esse tipo de pesquisa tem como foco tornar a pauta ana-
lisada mais explícita ou construir hipóteses, tendo como prin-
cipal objetivo o aprimoramento de ideias ou descobrir novas
ideias. Para Malhotra (2001, p.106), a pesquisa exploratória “é
um tipo de pesquisa que tem como principal objetivo o forne-
cimento de critérios sobre a situação problema enfrentada pelo
pesquisador e sua compreensão”. Por outro lado, a investiga-
44
ção pautada na abordagem qualitativa proporciona a análise de
processos, valores, crenças e validações que não seriam possí-
veis quantificar (SANTOS, 2020).
A pesquisa qualitativa não é pautada na observação e análise
de métodos estatísticos a fim de encontrar respostas e valida-
ção dos resultados. Para tanto, busca-se analisar e compreen-
der determinados fenômenos com a intenção de descrevê-los
e não só mensurá-los ou quantificá-los. Segundo Matias et al
(2019) a abordagem qualitativa com ênfase na pesquisa edu-
cacional consolidou-se no Brasil aproximadamente na década
de 30, em que instituições governamentais tiveram a criação
como fonte de subsídio de dados e repositórios de trabalhos
acadêmicos que foram propulsores para o desenvolvimento e
crescimento da pesquisa qualitativa para a elucidação de pro-
cessos de levantamento e análise de dados.
O uso do método qualitativo gerou diversas contribuições ao avanço
do saber na dinâmica do processo educacional e na sua estrutura como
um todo: reconfigura a compreensão da aprendizagem, das relações
internas e externas nas instâncias institucionais, da compreensão his-
tórico-cultural das exigências de uma educação mais digna para todos
e da compreensão da importância da instituição escolar no processo de
humanização (ZANETTI, 2017, 159).

A utilização da metodologia qualitativa nessa pesquisa possi-


bilitou uma análise sobre um método de ensino da língua ingle-
sa, tendo como referência as obras de Lewis (1993); Stievano,
Pizaia, Pereira (2008); Nunan (apud BROWN, 1994); Widdow-
son (1990) e Nattinger & DeCarrico (1992). Sendo assim, a in-
vestigação se voltou para a a identificação da teoria proposta
no material didático utilizado em uma escola de idiomas, para
o curso da língua inglesa. Foi realizada a análise e compreensão
do material didático, justificando assim, a característica princi-
pal de pesquisa qualitativa deste trabalho (SANTOS, 2020).

45
4.1 Material didático
O material selecionado para a análise foi o estabelecido pela
escola de idiomas InFlux para o curso completo da língua ingle-
sa, composto por cinco livros teóricos e cinco livros intitulados
Communication Activities, acompanhados de seus respectivos
Cd’s de áudio para a realização de exercícios para o preparo da
aula em casa. Os níveis dos livros estão identificados como:
Book 1 – Basic Level, Book 2 – Lower Intermediate Level, Book 3
– Intermediate Level, Book 4 – Upper Intermediate Level e Book 5
– Advanced Level. Cada livro teórico tem aproximadamente 130
páginas e os Communication Activities, aproximadamente 100
páginas, permeando o ensino e aprendizagem do nível básico
ao avançado de conhecimento da LI.
O texto introdutório dos livros se repete a cada Book, infor-
mando a utilização das mais modernas abordagens no ensino
da língua inglesa: a Abordagem Comunicativa e a Abordagem
Lexical. São enfatizados na mensagem inicial dos livros a ênfa-
se em ouvir, entender ideias de outras pessoas e falar, utilizan-
do de uma linguagem do cotidiano.
Nesta análise, buscou-se identificar o uso dos aspectos apre-
sentados por Lewis (1993), se concretizando na prática, favore-
cendo o aprendizado e o ensino da língua inglesa para os estu-
dantes através do material didático analisado. Foi analisado em
particular o livro Book 1 – Basic Level, o primeiro livro da coletâ-
nea, onde os estudantes dão início ao curso do aprendizado da
língua inglesa.
No livro são apresentadas explicações breves das atividades
e enunciados sucintos, pois o professor exercerá o papel de ex-
plicar o exercício em sala de aula trocando ideias com todos os
estudantes, mas todas as atividades são compostas de figuras
e imagens para que os estudantes possam visualizar melhor o
contexto do material ali apresentado.
46
Na primeira lição temos de início uma atividade com o tema
“Primeiro dia de aula”, nessa atividade já temos uma relação
com o estudo do Lewis (1993), em que ele aponta que o mate-
rial didático utilizado deve conter situações da vida real.

Figura 1: First day of class


Fonte: Leal, E.M., Book 1, 2011, 7ª edição.

A lição inicia com um diálogo entre personagens (professora


e estudantes), onde durante a aula, os estudantes do curso pra-
ticam a habilidade de leitura do diálogo, promovendo a fala e
a interação entre os participantes. A atividade apresenta ainda
um símbolo do CD, que orienta o número da faixa de áudio que
os estudantes deverão ouvir para ampliar o conhecimento da
pronúncia das palavras utilizadas. Este tipo de exercício favo-
rece a interação entre os colegas e coloca em prática a habi-
lidade da fala, escuta e leitura, possibilitando que o estudante
faça uma relação entre o exercício e o uso do vocabulário no
cotidiano.
Na imagem mostrada abaixo podemos perceber o uso dos
chunks of language em estruturas semifixas - estruturas flexíveis
47
que podem mudar de acordo com a intenção do que será dito
- principalmente em expressões de cumprimento, como por
exemplo: what’s your name? (qual o seu nome?) e também em
estruturas fixas – estruturas únicas utilizadas em contextos es-
pecíficos - como: excuse me (com licença). O uso dos chunks of
language faz parte do método de ensino analisado no material
didático, com o objetivo de implementar no ensino pressupos-
tos lexicais analisados e observados por Lewis (1993).

Figura 2: Dialog
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

Em seguida, são disponibilizadas as Key Phrases and Expres-


sions, que são exemplos de palavras chaves e expressões que
se encaixam na situação vista anteriormente e em diversas ou-
tras do cotidiano. Os exemplos são acompanhados da tradução
em português destacada em outra cor e também trazem a in-
48
dicação da faixa de áudio no CD que pode ser reproduzido em
sala e praticada em casa. Nesta seção também podemos iden-
tificar ênfase na utilização dos chunks of language. Sob o ponto
de vista da proposta de Lewis (1993), verificamos o uso da tra-
dução no material didático, como ferramenta de auxílio para o
aprendizado da língua inglesa, uma vez que, principalmente na
fase inicial de aprendizado da língua estrangeira, os estudantes
registram melhor o vocabulário quando existe a presença da
tradução das expressões e palavras para a sua língua materna.

Figura 3: Key Phrases and Expressions


Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

Antes dos exercícios de consolidação, é apresentada uma se-


ção denominada Helping you que explora exemplos de vocabu-
lário formais e informais, que são utilizados para apresentação
pessoal. Nesta seção também observamos os chunks of langua-
ge em estruturas fixas e semifixas, também acompanhados da
tradução para a língua materna, onde já percebe-se destaque
no direcionamento do aprendizado léxico.

49
Figura 4: Helping You
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

Na sequência, para finalizar a aula, são disponibilizados os


exercícios de consolidação, que constam em tradução de diá-
logos e perguntas e respostas, com a finalidade de colocar em
prática todo o vocabulário anteriormente estudado na lição,
como exemplo da imagem abaixo. Os exercícios de consolida-
ção são compostos também por chunks of language, utilizando
de um vocabulário composto pelas collocations destacadas por
Lewis (1993).

50
Figura 5: Consolidation Exercises
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

Cada livro da coletânea apresenta seções de Appendix, com-


postos de um glossário com diversas categorias: traduções de
palavras e chunks de linguagem; lista de nacionalidades com-
postas por nome de países, nacionalidades e língua nativa; nú-
meros ordinais em abreviados e em extenso; verbos (onde são
destacados os mais utilizados e seus tempos verbais); verbos
irregulares e regulares; exemplos de profissões; diferenças en-
tre inglês americano e inglês britânico; lista de expressões de
expansão de vocabulário e palavras chave e também traduções
de todas as lições compostas por diálogos e exercícios de con-
solidação, como estão demonstradas nas figuras a seguir:

51
Figura 6: Nationalities
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

Figura 7: Ordinal numbers


Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

52
Figura 8: Verbs
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

Figura 9: Professions/Jobs
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

53
Figura 10: American English (AmE) x British English (BrE)
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

54
Figura 11: Vocabulary Expansion & Key Phrases and Expressions List
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

55
Figura 12: Translation of the dialogs
Fonte: Paixão, L. D. & Moraes, R., Book 1, 2011, 7ª edição.

5 Análise dos dados


Cada livro apresenta uma organização inicial para os estu-
dantes seguirem durante o estudo da língua inglesa que ser-
virá para todos os níveis correspondentes aos cinco livros. Na
contracapa dos livros teóricos são apresentados tópicos para
auxiliar o estudante no aprendizado efetivo da língua inglesa.
Esta preparação é composta por três passos referentes às Li-
ções Lexicais e Lições Comunicativas. As Lições Lexicais são
compostas de atividades de conversação e escuta; expansão
de vocabulário e expressões com palavras chaves e resolução
de exercícios que fazem parte do Communication Activities, que
56
são realizados e praticados em casa antes da aula. As Lições Co-
municativas são feitas em sala de aula com auxílio do professor
e com ênfase na interação com os colegas, os estudantes tam-
bém realizam algumas atividades em casa antes e após a aula,
sendo elas respectivamente: leitura e realização dos exercícios
junto com auxílio do CD, realização da tarefa de casa seguindo
o programa de estudos do livro.
Nas Lições Lexicais os estudantes são orientados a fazer:
1º passo (antes da aula)
• Para o item de Diálogo: ouvir o CD correspondente ao di-
álogo da aula e ler em voz alta, prestando uma especial
atenção na pronúncia;
• Para o item de Expansão de vocabulários e expressões e
frases chave: repetir a escuta do CD prestando atenção
na pronúncia em inglês e o equivalente em Português.
Depois repetir a escuta do CD, desta vez com pausas,
após cada palavra, frase ou expressão, repetindo elas em
voz alta;
• Para o item Ajudando você: ler e destacar algo que não
tenha sido compreendido;
• Para o item Amostra de diálogos segue-se a mesma
orientação para o item Diálogo. Ainda, orienta a produ-
zir imagens mentais dos diálogos e falar com entonação
própria como se estivesse vivenciando a situação.
2º passo (antes da aula):
• Fazer os exercícios do livro Communication Activities re-
ferentes à próxima aula.

57
3º passo (depois da aula):
• Fazer os exercícios de consolidação referentes a aula e re-
alizados após o estudo da teoria em sala de aula.

Nas Lições Comunicativas, referentes aos textos e diálogos,


os estudantes são orientados a fazer:
1º passo (antes da aula):
• Ouvir o CD e ler o diálogo em voz alta prestando atenção
à pronúncia;
2º passo (antes da aula):
• Fazer os exercícios no livro Communication Activities;
3º passo (depois da aula)
• Fazer os exercícios de consolidação.

Ainda, na contracapa dos livros de Communication Activi-


ties, são sugeridos três passos para a realização dos exercícios
de maneira eficaz com melhor aproveitamento do material
didático. Estes passos referem-se à realização dos exercícios
escritos; comparar as respostas que são fornecidas no final do
livro para a correção de erros; e fazer os exercícios de áudio com
o livro aberto e depois repetí-los com o livro fechado. Os livros
trazem também a orientação de repetir quantas vezes desejar
os passos de áudio.
Os livros são compostos por uma estrutura de texto, diálo-
go, vocabulário, imagens e exercícios que proporcionam para
os estudantes a fixação do conteúdo. No material analisado,
podemos identificar a presença dos chunks principalmente nas
seções Key Phrases and expressions e Helping you, devido à pre-
58
sença do uso do vocabulário e itens lexicais em situações do
cotidiano, promovendo maior proximidade da língua inglesa
com a realidade de cada estudante. No material foram iden-
tificadas características explicitamente lexicais, como a pre-
sença explícita de chunks, seja na forma de expressões fixas ou
expressões semifixas, a ênfase na variedade de vocabulário e
na equivalência entre as expressões de cada língua (ou seja, a
presença constante da respectiva tradução de cada chunk ou
item lexical); a ênfase no input e na sua repetição; a presença de
exercícios de tradução (que devem sedimentar a equivalência
entre os chunks) e a presença de instruções explícitas para rela-
cionar os itens lexicais com imagens mentais.

Podemos observar de acordo com Lewis (1993), que a mu-


dança no ensino é uma questão de ênfase, não de revolução.
Este trabalho teve por objetivo analisar o uso e a presença da
Abordagem Lexical nos materiais didáticos apresentados. Foi
realizada uma análise da relação entre a Abordagem Lexical e a
Abordagem Comunicativa, onde pudemos observar o foco no
sentido, no significado e na interação entre os estudantes du-
rante o ensino da língua estrangeira e o uso de tarefas em sala
de aula que exigiam comunicação, aumento da autonomia do
aluno e das habilidades receptivas, tendo como base do ensino
o papel do léxico apresentado por Lewis (1993) e o ênfase nas
características da Abordagem Lexical (o uso dos chunks of lan-
guage, traduções e ênfase no vocabulário).
O conteúdo educacional é uma grande estratégia para con-
duzir o ensino, proporcionando a interação entre os estudan-
tes, utilização da gramática com métodos contemporâneos e
divergindo do ensino da língua inglesa dos moldes tradicionais.
O desenvolvimento do poder comunicativo é auxiliado pela
59
incorporação de uma variedade bem equilibrada de atividades
lexicalmente derivadas na sala de aula. Essas atividades devem
refletir os diferentes tipos de itens lexicais. A gramática man-
tém um lugar, mas em um número reduzido tendo a lexis de-
sempenhando um papel maior no ensino. O conteúdo linguís-
tico, no entanto, não pode ser totalmente separado de outros
elementos do programa de estudos, pois segundo Lewis (1993),
o aprendizado trata-se da gramática lexicalizada, não da léxis
gramaticalizada.
Uma das habilidades centrais para a Abordagem Lexical é a
de desenvolver a capacidade dos estudantes a identificar ex-
pressões lexicais no texto. Deste modo, o material analisado
permite o reconhecimento do vocabulário nas expressões e
itens lexicais, como proposta de ensino e aprendizagem. Pois, a
partir dos exemplos de diálogos, exercícios de pronúncia e aná-
lise de situações, sem que haja ênfase na gramática normativa
em primeiro plano, o ensino se desenvolve com naturalidade e
promove uma aprendizagem gradativa com um aumento sig-
nificativo de fluência na língua inglesa.

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62
português em escolas bilíngues de surdos

Thyelle Francine Braz de Proença


Rúbia Carla da Silva
Alice Eulália de Oliveira Lima

Introdução
Vivemos em uma era tecnológica, diferentemente dos sécu-
los passados, nos quais a tecnologia não era tão avançada como
nos dias atuais. De fato, a vida cotidiana se tornou mais fácil.
Hoje, podemos ter acesso, de maneira mais rápida, a qualquer
informação de qualquer lugar do mundo. Assim como em nos-
sas vidas cotidianas, a era tecnológica chegou às instituições de
ensino, e, hoje, muitas escolas optam por utilizar diferentes fer-
ramentas, como celulares, tablets, computadores, softwares es-
pecíficos para o ensino, além de muitos apps que podem servir
como materiais de apoio. Igualmente com o uso das mídias
sociais, como, por exemplo, o Facebook ou o Instagram, redes
sociais em que se é possível criar grupos de estudos ou até pá-
ginas que tenham como objetivo de ensinar um determinado
assunto.
De acordo com Joly (2002), a tecnologia é um recurso estra-
tégico voltadopara a ação pedagógica. A autora aponta para as
mudanças ocorridas e efetivadas pelos computadores no pro-
cesso de aprendizagem, durante essas duas últimas décadas,
questionando sobre a validade desses recursos tecnológicos,
visto que são importantes frente às necessidades básicas da
educação. O desafio das escolas em relação à inclusão dessas
novas tecnologias, o abandono do monopólio do conhecimen-
to e a aceitação de mudanças para as ações educativas.
63
A partir do trabalho de todos os profissionais, tornam, nesse
contexto, os computadores mediadores de relações e de co-
municações que trazem para a aprendizagem a informação e o
conhecimento que já estão disponíveis.
A utilização dessas ferramentas não está restrita somente às
escolas monolíngues, mas também se estende para as escolas
bilíngues, ou seja, espaços educacionais onde se ensina mais de
uma língua. Nesse grupo de instituições, também podemos in-
cluir as escolas bilíngues de sujeitos surdos, em que aprendem
a sua primeira língua (L1), a Língua Brasileira de Sinais (doravan-
te Libras), e o Português como segunda língua (L2), na modali-
dade escrita.
De acordo com Saito e Pivetta (2019), as tecnologias contri-
buem de forma significativa para a inclusão, trazendo possibi-
lidades de fortalecimento e conexões entre os surdos. O sur-
gimento dessas tecnologias tem gerado boas perspectivas no
que diz respeito às necessidades individuais das pessoas surdas.
Entretanto, mesmo com melhorias na infraestrutura de acesso
à internet e com bons computadores, o caminho para se atin-
gir eficientemente a acessibilidade metodológica é longo, pois,
ainda que haja leis que assegurem, não são todos os lugares
que possuem esse tipo de acessibilidade.
A escola bilíngues para surdos é fundamental para
a formação e educação, pois é nela que eles se sentem
incluídos. Em conformidade com os dados do Instituto Na-
cional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP),
de 2020, há aproximadamente 64 escolas bilíngues no Bra-
sil, com cerca de 63.106 alunos, entreeles surdos, surdoce-

se considerado a extensão territorial do país.


-
ral, analisar como as Tecnologias da Informação e Comuni-
64
cação (TICs) podem ser utilizadas para o Ensino de Portu-

os conceitos sobre educação bilíngue para surdos; ensino


-
TICs podem ser utiliza-
das na educação, por meio de referencial teórico; (iii) analisar
quais são as TICs para o ensino de línguas e como podem ser
utilizadas nas escolas bilíngues de surdos.
A escolha desse tema se justifica por entendermos e acredi-
tarmos que, com achegada das novas tecnologias, os espaços de
educação vêm se transformando cada vez mais, afastando-se
do modelo tradicional e, por consequência, tornando as aulas
mais dinâmicas. Isso também traz a atenção do aluno para o
conteúdo proposto. A necessidade de pesquisar quais tecnolo-
gias podem ser usadas em sala de aula tem sua origem no fato
de que é preciso buscar trazer mais inclusão para os sujeitos
surdos. E não há dúvidas de que essas tecnologias podem ser
benéficas a esses estudantes, tanto no aspecto individual quan-
to no social.
Diante do exposto, o artigo foi estruturado da seguinte ma-
neira: apresentação do referencial teórico; na sequência, os
procedimentos metodológicos; os dados gerados, assim como
a análise desses; para culminar na importância acadêmica e so-
cial da referida pesquisa.

A educação bilíngue para surdos


Segundo Silva e Souza (2016), a educação bilíngue refere-se
ao uso de duaslínguas para se comunicar. No caso de indivídu-
os surdos, a primeira língua (L1) é a Língua Brasileira de Sinais
(Libras); e a segunda língua (L2) é o Português. De acordocom o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020), exis-
65
tem, aproximadamente, 10,7 milhões de indivíduos surdos ou
com alguma deficiência auditiva, o que equivale a 5% da popu-
lação brasileira. Diante disso, evidencia-se mais a importância
de discutir sobre a educação desse grupo.
A educação bilíngue é uma realidade assumida no Brasil, sen-
do uma das formas de reconhecimento da luta da comunidade
surda, resultando no Decreto Federal n.º 5.626/2005, o qual
estabelece que:
São denominadas escolas ou classes de Educação Bilíngues aquelas em
que a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), e a modalidade escrita da Lín-
guaPortuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimen-
to de todo o processo educativo (BRASIL, 2005).

Ao reconhecer o direito dos alunos surdos à educação bilín-


gue, o sistema de ensino, seja ele federal, estadual ou munici-
pal, abre a possibilidade do reconhecimento, de fato, da dife-
rença linguística e cultural. Dessa forma, amplia-se o universo
de acesso aos bens de conhecimento, além de outros bens da
informação, que a sociedade tem acumulado ao longo de sua
trajetória histórica (SILVA; SOUZA,2016).
Segundo o Ministério da Educação, a Lei n.º 14.191, sancio-
nada no dia 03 de agosto de 2021, altera a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), incluindo o ensino bilíngue
nas escolas para pessoas surdas. Com o intuito de tornar essa
modalidade independente, estabelece a Libras como primeira
língua e o Português escrito como segunda língua, iniciando a
partir da Educação Infantil e permanecendo ao longo da vida
acadêmica.
Araújo (2021) esclarece que o bilinguismo surgiu das lutas das
comunidades surdas, na busca de uma educação que tivesse
como objetivo o desenvolvimento dos surdos na aquisição da
linguagem, tanto em Libras (L1) quanto em Português escrito
(L2). também sobre a reformulação dos currículos e dos docu-
66
mentos, no estabelecimento de um único documento norma-
tivo para unificar a educação básica brasileira: a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC, 2005), uma vez que esse documen-
to dá ênfase à importância da Libras.
Contudo, as práticas pedagógicas para esse novo cenário
precisam ser pensadas no sentido de superação dos velhos in-
cômodos do “não possível”. Além disso, a construção dessas e
os modos de pensar em uma escola bilíngue diferenciada de-
para-se, quase sempre, com as exigências legais do sistema de
ensino; com as demandas de apresentação de resultados; com
os diferentes processos de formação dos professores; e, ainda,
com o pouco tempo destinado à formação continuada.Os pro-
fessores ouvintes enfrentam desafios em relação à educação
bilíngue, pois o universo da escola de surdos é sempre disputa-
do pela língua de sinais e pela língua oral, essa disputa pode se
tornar desigual (SILVA; SOUZA, 2016).
No que concerne às escolas bilíngues de surdos, não há uma
clareza em seu significado, pois é muito comum que as pessoas
as confundam com as escolas onde se ensinam línguas estran-
geiras, por exemplo, a língua inglesa (NASCIMENTO; COSTA,
2014). E é nesse contexto em que as pessoas ainda trocam
os conceitos, que se encontram o capítulo VI do Decreto n°
5.626/2005, no qual se menciona a organização de “escolas e
classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvin-
tes, com professores bilíngues [...]”.
A ambiguidade entre o que é uma escola bilíngue de surdos
e escolas bilíngues de idiomas estrangeiros gera uma grande
confusão. Nascimento e Costa (2014) discorrem sobre o fato
de que uma escola bilíngue ser aberta a surdos e ouvintes, não
quer dizer que ela, necessariamente, ofereça uma educação
bilíngue para eles. E como resultado disso, virou senso comum
o pensamento de que as escolas bilíngues são aquelas que têm
67
alunos surdos matriculados, junto com alunos ouvintes, onde
os surdos usam Libras e os ouvintes usam o Português.
Há dois tipos de escolas bilíngues: a primeira é a escola bilín-
gue de surdos, na qual apenas estudantes surdos têm acesso à
matrícula; a segunda é a escola bilíngue de Libras e Português
escrito, onde estudantes surdos e ouvintes podem ser matricu-
lados, como é o caso da primeira escola Bilíngue Libras e Por-
tuguês Escrito de Taguatinga (DF). O que há de comum entre
esses dois modelos é o fato de que Libras e o Português escrito
são línguas de instrução, diferenciando-se conforme o próprio
estudante. Em ambas as escolas, o professor deve ser bilíngue
(NASCIMENTO; COSTA, 2014).
Nas escolas bilíngues que aceitam alunos ouvintes, exige-se
que esses sejam bilíngues ou tornem-se. É aconselhado aos
pais que querem matricular seus filhos não bilíngues em uma
escola bilíngue que os matriculem antecipadamente. Isso para
que não haja atraso no ciclo de aquisição linguística da Libras e
na adaptação do estudante ouvinte à metodologia da instituição,
uma vez que os alunos ouvintes não terão tradutores ou in-
térpretes nas aulas, ministradas somente em Libras. A escola
bilíngue é uma síntese do que, há anos, a comunidade surda
brasileira tem priorizado, sendo representada, nas últimas duas
décadas, em relatos e publicações, descrita e analisada em tra-
balhos acadêmicos (NASCIMENTO; COSTA, 2014). Além disso,
é uma instituição que faz parte da sociedade brasileira, com his-
tórica e expressiva conquista do Movimento Nacional em favor
da Educação e da Cultura Surda, liderado pela Federação Na-
cional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), o que ga-
rante, dessa forma, uma Política de Educação de Surdos ampla
e diversificada, onde legaliza as escolas bilíngues por meio da
Lei Federal n°. 13.005, de 25 de julho de 2014, que regulamenta
o Plano Nacional de Educação, em vigor de2014 a 2024.
68
O bilinguismo, como é apresentado por Müller (2016), é com-
preendido como ahabilidade de usar duas línguas em graus de
competência diferentes, podendo o sujeito ter mais ou menos
fluência em uma delas, por isso o bilinguismo apresenta mui-
tas configurações e diferentes classificações. Também é funda-
mental respeitar asdiferenças entre as duas línguas. Em geral as
línguas orais-auditivas, como é o casodo Português, represen-
tam a produção da informação linguística através do aparelho
fonador e sua percepção se dá por meio da audição. No caso
da língua de sinais, se produz sentido por meio de um conjunto
de elementos linguísticos manuais, corporais e faciais, necessá-
rios para a articulação dos sinais em um determinado espaço
de enunciação, sua percepção se dá através da visão. É uma mo-
dalidade visuoespacial: forma como Libras atende as especifi-
cidades que o surdo tem para captar a informação, construir o
conhecimento e expressar suas ideias, sentimentos e ações.

O ensino do português como L2 para surdos


Como já apresentado por Araújo (2021), o bilinguismo surgiu
de uma reivindicação das comunidades surdas, que lutavam e
buscavam por uma educação que tivesse com o objetivo de-
senvolver, nos surdos, a aquisição da linguagem em Libras (L1)
e em Português escrito (L2). Isso porque a maioria deles vem
de famílias ouvintes, e a aquisição da linguagem nem sempre
acontece ou, quando é desenvolvida, apresenta um atraso.
Diante desse cenário, o ensino de Português para os surdos
deve ser trabalhado através de uma pedagogia visual e de me-
todologias ativas que favoreçam o maior aprendizado em sala
de aula, para tornar mais acessível a compreensão, desde que
esses alunos já tenham conhecimento e domínio de sua língua
de sinais, nesse caso, a Libras. Portanto, o processo de ensino
do Português como L2, precisa ser feito por um professor bilín-
69
gue (Libras-português), utilizando estratégias que contribuam
na aprendizagem do aluno surdo. Este trabalho pedagógico a
serdesenvolvido deve associar Libras, que é a língua de ins-
trução majoritária ou a primeira língua dos surdos, com o Portu-
guês, que é a segunda língua a ser aprendida.
Para que a aquisição da segunda língua seja bem sucedida,
deve-se focar nos aspectos básicos gramaticais e vocabulares
da língua, em contextos socialmente significativos. Isso é di-
ferente do ensino do Português como primeira língua, onde o
aluno ouvinte já chega na escola com algum conhecimento.
No caso dos surdos, há um ponto crucial, quando se trata da
aquisição do português: o fato de ser uma língua oral-auditiva,
seu aprendizado só é possível na modalidade escrita. Isso faz
com que haja a necessidade de um input1, exclusivamente visu-
al A capacidade de aprender um novo sistema linguístico, que
não corresponde a mesma modalidade da língua de sinais, vai
depender da compreensão de como esse ensino é conduzido e
de um incentivo que beneficie sua aprendizagem (LIMA, 2014).
Assim, o léxico é um elemento linguístico que permite a am-
pliação do vocabulário e sempre está em constante processo
de transformação durante toda a vida do ser humano. Tal pro-
cesso se dá de forma natural e inconsciente para os falantes
nativos de uma língua, pois todos aprendem palavras novas em
seu cotidiano. O que não ocorre para quem não é ainda falante
daquela língua.
Lima (2014) nos diz que quando se trata do ensino do portu-
guês para surdos brasileiros deve-se compreendê-lo como se-
gunda língua, na medida em que esses possuem uma língua de

1 Input – Ideia ou sugestão dada por alguém em reunião de trabalho, discus-


são em grupo etc. Ação que contribui para com o sucesso de um projeto ou
empreendimento. Entrada. Conjunto de dados fornecidos ao sistema de compu-
tador para processamento. Quantidade de informação e exposição a uma lín-
gua estrangeira recebida por uma pessoa durante o aprendizado desse idioma.
.
70
sinais na qual se comunicam em sua comunidade surda. Dessa
maneira, o Português deve ser ensinado com uma metodologia
própria, levando em consideração as diferenças entre as moda-
lidades de língua do Portuguêse da língua de sinais, ou seja, uma
é de modalidade oral-auditiva, e a outra de modalidade espa-
ço-visual.
Para se ter uma segunda língua, é necessário que se tenha,
como base, a primeira língua, pois é esta que dá suporte para o
aprendizado das próximas, independentemente se o indivíduo
é surdo ou ouvinte. Assim é que a segunda língua será aprendi-
da de maneira mais fácil (SOARES, 2019). No caso dos sujeitos
surdos, que têm uma cultura baseada em diferentes artefatos,
como experiências visuais, linguísticos, familiares, da literatura
surda, da vida social e esportiva, das artes visuais, políticos e
de materiais, que os caracterizam e os diferenciam da cultura
ouvinte. É por meio da Libras e por essa cultura que os sujeitos
surdos podem se comunicar. Por isso, para que o aprendizado
do Português obtenha êxito, é preciso que eles tenham domí-
nio da sua primeira língua.
Soares (2019) aponta que há duas maneiras de ter uma se-
gunda língua. No caso do Português como L2, a primeira manei-
ra trata-se de aprender o Português emum país no qual essa lín-
gua não seja nacional ou oficial; na segunda, trata-se do sujeito
aprendiz ser um cidadão brasileiro que não tenha o Português
como primeira língua, como é o caso de indígenas, imigrantes
e surdos.
Há uma preocupação constante dos educadores de alunos
surdos sobre esseensino do Português. Embora a natureza des-
sa preocupação tenha sofrido alteraçõesao longo do tempo, até
recentemente predominou, no Brasil, uma abordagem oralista,
na qual o ensino e a aprendizagem eram exclusivamente por
meio do Português na modalidade oral (PEREIRA, 2014).
71
Com a aprovação do Decreto Federal n° 5.626/2005, esta-
beleceu-se, entre tantos outros assuntos, a obrigatoriedade de
as escolas possibilitarem para os alunos surdos uma educação
bilíngue, sendo a Libras a primeira, e o português, a segunda.
Para surdos, filhos de pais ouvintes, abriu-se a possibilidade de
aquisição da primeira língua. Dentro do ambiente familiar, po-
rém, apesar dos efeitos positivos do uso da língua de sinais, não
se observaram resultados significativos na compreensão e uso
do português, reforçando a ideia de que a surdez é a respon-
sável pelas dificuldades que os surdos apresentam (PEREIRA,
2014).
Entretanto, o uso da língua de sinais contribui muito para a
aprendizagem dos alunos surdos, já que, por ser visual-espa-
cial, não oferece dificuldades para ser adquirida nas escolas
bilíngues, e, por meio dessa língua, observou-se a ampliação do
conhecimento de mundo e do conteúdo escolar, ainda que não
seja possível observar uma real aprendizagem do Português.

As TICs educacionais
As tecnologias modificaram a vida das pessoas, além de se-
rem antigas tanto quanto o próprio homem. Na pré-história,
nossos ancestrais usavam os recursos naturais como a pedra
lascada, metais e outros materiais. Um outro exemplo clássico
e igualmente importante é a invenção da roda, há 4.000 a.C.,
tornando-se umas das tecnologias mais famosas e úteis do
mundo. Com o passar dos tempos, surgiram outros inventos,
cada vez mais sofisticados, como exemplo: a locomotiva a va-
por, o rádio, avião, televisão, radar, cinema,computador, energia
nuclear e outros (COSTA, 2011).
O homem sente a necessidade de quantificar as coisas e pro-
cessar melhor asinformações para controlar suas ações sobre
o meio. Dessa maneira, a tecnologiapermite ao usuário execu-
72
tar muitas funções de forma prática e cômoda, promovendo a
agilidade e a versatilidade. Devido a todo esse progresso, os
professores compreendem que as tecnologias oferecem no-
vas possibilidades também no processo de ensino e aprendi-
zagem. Procurar meios que beneficiem o ensino eminimizem
as necessidades educacionais dos alunos, de maneira articu-
lada com o currículo e a proposta pedagógica da escola, deve
ser uma das ações dos docentes.Para Kenski (2007), as TICs
são denominadas como Tecnologias de Informação e de
Comunicação. Os avanços tecnológicos das últimas décadas
garantiram novas formas de seus usos, na produção e na pro-
pagação de informações, na interação e na comunicação em
tempo real. Além disso, as novas TICs não são apenas suportes
tecnológicos, elas possuem suas próprias lógicas, suas lingua-
gens e também maneiras específicas de se comunicarem com
as capacidades emocionais, cognitivas e comunicativas.
As TICs evoluem com muita rapidez, e a todo instante apa-
recem processos e produtos diferenciados e sofisticados. Esses
produtos não são acessíveis a todas aspessoas, por seus altos
preços e conhecimentos específicos para seu uso. Para queto-
dos possam ter acesso a essas novas tecnologias, é preciso que
haja um grande esforço educacional geral (KENSKI, 2007).
Não há dúvidas de que as TICs trouxeram mudanças conside-
ráveis e positivaspara a educação, mas para que as mudanças no
processo educativo sejam efetivas, elasprecisam ser compreen-
didas e incorporadas pedagogicamente. O desafio é inventar e
descobrir usos que sejam criativos para a tecnologia educa-
cional instiguem nos alunos o gosto por aprender. Ademais, as
TICs são utilizadas em atividades deensino de uma forma bem
diferente da comum, uma vez que as tecnologias ampliam as
possibilidades de aprendizagem, bem como as possibilidades
de interação entre professores, alunos, objetos e informações
73
que estejam neste processo de ensino e de aprendizagem, de
forma a criar vínculos (KENSKI, 2007).
As TICs são métodos utilizados como meio de disseminação
do conhecimento,de maneira ordenada, ferramentas de intera-
ção entre educadores e educandos,cada vez mais comuns nos
ambientes escolares. São nesses momentos em que as TICs
apresentam uma grande importância para o desenvolvimento
das práxisdos educadores. O entendimento sobre elas está em
questionamento por esses, a fim de entender quais as melhores
maneiras de aplicar e adequar essas ferramentas às atividades
didáticas, assim como garantir que o processo de aprendiza-
gem seja benéfico por meio desses recursos (PINHEIRO; SILVA,
2021).
Martines et al (2018) ressaltam que é essencial conhecer as
metodologias que as tecnologias podem oferecer, a fim de se
trabalhar o conteúdo de forma criativa. Apontam, também,
que o uso desses recursos tecnológicos enriquece a aula, po-
rém não podem ser colocados à frente do conteúdo. Muitas
vezes, os professores acabam abusando dessas tecnologias,
na tentativa de encobrir a falta de preparo. Porém nenhuma
ferramenta pode substituir a informação dos professores. Os
benefícios das TICs, em sala, consistem em apresentar ativida-
des que funcionem como elementos facilitadores no processo
de ensino e aprendizagem, e a observação da importância da
atuação de profissionais capacitados.
As evoluções das TICs transformaram, consideravelmente,
as relações sociais. Cada vez mais usamos dispositivos eletrô-
nicos na interação com o mundo ecom outras pessoas. Embora
haja interesse dos alunos por essas novas tecnologias,e esforços
Estatais em promover a informática educativa, ainda existem
dificuldades em introduzir as TICs nas práticas pedagógicas. O
modelo tradicional, em que professor é o possuidor do conhe-
74
cimento, não é mais aplicado na era digital,porém ainda se faz
necessária a presença do professor para que a aprendizagem
aconteça. Enquanto o aluno está sozinho, ele está em um ‘mar’
de informações que, muitas vezes, pode não ser construtivo
para o aluno (PASSERO; ENGSTER; DAZZI,2016).
Santo e André (2013) discutem que no âmbito educacional,
nos dias de hoje, há um universo de possibilidades de utiliza-
ção das novas tecnologias, e uma delas é o melhor aproveita-
mento pedagógico, no qual o professor pode ser capaz de re-
forçar o ensino e a aprendizagem. O professor é essencial, neste
contexto, desde que tenha consciência da necessidade de sua
adequação frente a essa nova realidade. Dessa forma, é pre-
ciso buscar maneiras que possibilitem a utilização desses
recursos eferramentas em benefício da aprendizagem. O perfil
dos estudantes mudou. Hoje, os alunos fazem várias atividades
ao mesmo tempo: assistem TV; navegam na internet; fazem a
tarefa; relacionam-se com os colegas e amigos por comuni-
cadores instantâneos; e desenvolvem novas habilidades a cada
recurso tecnológico utilizado.Por esse motivo, é preciso buscar
atividades que atraiam a atenção dos alunos. Este é o grande
desafio, porém, é preciso ser otimista e aproveitar o contato
que o jovem vive, atualmente, com o mundo tecnológico como
parte do processo de ensino e aprendizagem. Para isso, o pro-
fessor precisa ser criativo e dedicado. Os alunos possuem as
ferramentas principais para essa mudança e chegam conecta-
dos aos aparelhos mais tecnologicamente modernos (SANTO;
ANDRÉ, 2013).
Costa (2011) escreve que as pessoas, público-alvo da educa-
ção especial, utilizam todos os recursos que estão disponíveis
para facilitar sua aprendizagem, e os surdos vêm acompanhan-
do, de maneira gradual, as experiências tecnológicas, recursos
que são promissores para desenvolver o potencial cognitivo
75
dos seres humanos. Podemos perceber, então, que a tecno-
logia contribuí de forma benéfica dentro dos ambientes edu-
cacionais, e é através dela que podemos construir ambientes
diferenciados para os alunos, tornando o ensino mais eficiente.

Procedimentos metodológicos
Antes de serem apresentadas as etapas desenvolvidas para a
geração dos dados, é necessário tratarmos sobre a classificação
desta pesquisa. Conforme Prodanov e Freitas (2013), quanto
à natureza é básica, o objetivo é “gerar conhecimento novos
úteis para o avanço da ciência sem aplicação prática prevista,
envolvendo verdades e interesses universais” (p. 51); quanto à
abordagem do problema, é de caráter qualitativa, uma vez que
se “considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real
e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo obje-
tivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em
números” (p. 70). Já, em relação aos objetivos, o teor é descriti-
vo, por considerar que “o pesquisador apenas registra e descre-
ve os fatos observados, sem interferir neles” (p. 52). E, quanto
aos procedimentos, é uma pesquisa documental, por “tratar de
materiais que ainda não receberam um tratamento analítico ou
que podem ser reelaborados” (p. 72) de acordo com os objetivos
da pesquisa.
O delineamento da pesquisa foi organizado por meio de uma
revisão de artigos publicados em periódicos nacionais e inter-
nacionais, que tratam da temática da pesquisa, com o recorte
temporal dos últimos 10 anos (2012 - 2022). A geração dosda-
dos ocorreu por meio da busca avançada com palavras-cha-
ve, na plataforma do Portal de Periódicos da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). As
palavras-chave utilizadas foram: (i) Português; (ii) Surdos; e (iii)
Tecnologia.
76
Geração dos dados
Para a primeira etapa da geração dos dados, foram encon-
trados 42 artigos, que abordam a temática prevista pelas pala-
vras-chave. Na segunda etapa, foramrealizadas as leituras dos
títulos e dos resumos, para que fosse possível verificar quais
artigos tratavam sobre o ensino de Português para surdos com
o uso de tecnologias, apartir do relatório gerado pelo portal. Dos
42 artigos iniciais, foram selecionados para a análise 14 artigos,
apresentados no quadro a seguir.
QUADRO 1 – DADOS INICIAIS DOS ARTIGOS
SELECIONADOS

Ano Autor(es) Título do artigo

2012 Maria Clara M. A Ri- Língua Portuguesa como segunda língua


beiro para alunos: proposta de atividades a
partirde interfaces tecnológicas

2013 Romario Antunes Características de repositórios educacio-


da Silva; Rosangela nal abertopara usuários de Língua Brasi-
Schwazr Rodrigues leira de Sinais
2014 Camila Wohlmuth Livro Digital para crianças surdas: uma
da Silva; Jorge Teixei- análise naperspectiva do design visual de
ra Delglacy; João Vil- interface em tela
son Batista; Berenice
Goncalves Santos;
Ricardo Triska
2016 Fernanda G. A Soa- Português para surdos e tecnologias di-
res de Castro;Hector gitais
Renan da Silveira
Calixto

77
2016 Livia Maria Ninci Tecnologia e educação de surdos: possi-
Martins; Heloisa An- bilidades deintervenção
dreia de Matos Lins
2017 Aryane Nogueira; Ja- Considerações sobre educação de sur-
naina Cabello dos e tecnologias a partir da análise das
estratégias de um professor surdo

2017 Ednei Nunes de Oli- Português como L2: o ensino da disciplina


veira no curso deLetras Libras da UFGD

2018 Jaciara de Sá Carva- Da janelinha para o Janelão: a relevância


lho; de conteúdos qualificados para a educa-
Rita de Cassia Mar- ção permanente pelos surdos e sua in-
tins Costa clusão transformadora
2019 Marcia Cristina A proposta bilíngue na educação de sur-
Florêncio Fernandes dos: práticas pedagógicas no processo
Moret; João Guilher- de alfabetização no município de Colo-
me Rodrigues Men- rado Oeste/Rondônia
donça
2019 Fernanda Beatriz Ca- Educação a distância e os desafios para a
ricari de Morais; Osi- elaboraçãode material didático de Língua
lene Maria Sá e Silva Portuguesa como L2 para graduandos
Cruz surdos
2020 Maira Woloszyn; A relação do usuário surdo com a tipo-
Berenice Santos grafia em movimentos nos materiais
Gonçalves; Giselle educacionais em Libras: um estudo por
Schmidt Alves Diaz meio do rastreamento ocular
Merino
2020 Aryane S. Nogueira Práticas translingues na educação lin-
guística de surdos mediados por tecno-
logias digitais.
2020 Kelly Priscila Lóddo O uso dos recursos tecnológicos no
Cezar Katherine Fis- ensino bilinguepara acadêmicos surdos
cher

78
2021 Aline Cássia Silva Revisão sistemática de Literatura sobre
Araujo; Francisco tecnologia deinformação e comunicação
Kelsen de Oliveira de tradução do par linguístico português
Libras
Fonte: As autoras

Análise dos dados gerados


Para a análise dos dados, foram definidos cinco critérios: (i)
Nome do periódico, a Instituiçoes de Ensino Superior e região
do Brasil/internacional; (ii) O objetivo geral apresentado no arti-
go; (iii) Ametodologia utilizada; (iv) As tecnologias apresentadas
e/ou utilizadas; E (v) os resultados obtidos. Diante do exposto,
os dados são apresentados em quadros, conforme os critérios
estabelecidos, para melhor compreensão. Para a organização
dos quadros, foi estipulada a ordem dos títulos dos artigos
pelo ano de publicação constantes no quadro 1. Dessa forma, a
análise seguiu a mesma sequência em todos os quadros.
QUADRO 2 – 1º CRITÉRIO: NOME DO PERIÓDICO, IES E
REGIÃO DO BRASIL/INTERNACIONAL

Nome do Perió- Título do artigo IES Região


dico do Bra-
sil/ in-
terna-
cional
Caderno Semi- Língua Portuguesa como Un i ve r s i d a d e Sudeste
nal segunda língua para alu- do Estado do
nos: proposta de ativida- Rio de Janeiro
des a partir de interfaces (UERJ)
tecnológicas

79
Transinforma- Características de reposi- Pontifícia Uni- Sudeste
ção tórios educacional aberto versidade Cató-
para usuários de Língua lica – Campinas
Brasileira de Sinais (P U C- C a m p i -
nas)
Design & Tec- Livro Digital para crian- Un i ve r s i d a d e Sul
nologia ças surdas: uma análise na Federal do Rio
perspectiva dodesign visu- Grande do Sul
al de interface em tela (UFRGS)
Jorsen - Journal Português para surdos e Nasen Inglater-
of research in tecnologias digitais ra
special educa-
tional needs

Nuances Tecnologia e educação de Un i ve r s i d a d e Sudeste


surdos: Possibilidades de Estadual de São
intervenção. Paulo (UNESP)

Texto Livre Lin- Considerações sobre edu- Un i ve r s i d a d e Sudeste


guagem e Tec- cação desurdos e tecnolo- Federal deMinas
nologia gias a partir da análise das Gerais
estratégias de um profes- (UFMG)
sor surdo.
Ead &Tecnolo- Português como L2: o en- Un i ve r s i d a d e Centro -
gia Digitais na sino da disciplina no curso Federal daGran- -Oeste
Educação. de Letras Libras da UFGD de Dourados
(UFGD)
Diálogo Educa- Da janelinha para o Jane- Pontifícia Uni- Sul
cional lão: a relevância de con- versidade Cató-
teúdos qualificados para lica do Paraná
a educação permanente (PUC-PR)
pelos surdos e suainclusão
transformadora

80
Holos A proposta bilíngue na Instituto Federal Nordes-
educação de surdos: prá- do Rio Grande te
ticas pedagógicas no pro- do Norte (IFRN)
cesso de alfabetização no
município de Colorado
Oeste/Rondônia
Trama Educação a distância e os U n i v e r s i d a - Sul
desafios para a elaboração de Estadual do
de material didático de lín- Oeste do Para-
gua portuguesa como L2 ná (UNIOESTE)
para graduandos surdos
Revista Brasilei- A relação do usuário surdo Un i ve r s i d a d e Sul
ra de Design da com a tipografia em mo- Federal doPara-
Informação vimentos nos materiais ná (UFPR)
educacionais em Libras:
um estudo por meio do
rastreamento ocular
Diacrítica Práticas translingues na Un i ve r s i d a d e Braga -
educação linguística de do Minho Portugal
surdos mediados por tec-
nologias digitais.
Ideação O uso dos recursos tecno- Un i ve r s i d a d e Sul
lógicos no ensino bilingue do Oestedo Pa-
para acadêmicos surdos raná (UNIOES-
TE).
Revista Semiá- Revisão sistemática de Li- Instituto Fede- Nordes-
ridode Visu teratura sobre tecnologia ral do Sertão te
de informação e comuni- do Pernambuco
cação de tradução do par (IFSertão PE).
linguístico português-Li-
bras
Fonte: As autoras

81
QUADRO 3 – 2º CRITÉRIO: OBJETIVO GERAL
APRESENTADO NO ARTIGO

Título dos artigos Objetivo Geral

Língua Portuguesa como segun- Refletir sobre os usos e possibilidades


da línguapara alunos: proposta de da aplicação de Tecnologias da Infor-
atividades a partir de interfaces mação e Comunicação (TICs)no ensino
tecnológicas. da Língua Portuguesa (LP) para alunos
surdos.
Características de repositórios Identificar as características que um
educacional aberto para usuários repositório educacional aberto deve
de língua Brasileira deSinais apresentar para atender a necessida-
de de informação dos alunos surdos
e ouvintes do curso Letras Libras na
modalidade a distância (EaD) da Uni-
versidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
Livro Digital para crianças surdas: *** sem objetivo geral claro ***
uma análise na perspectiva do
design visual deinterface em tela

Português para surdos e tecnolo- Analisar atividades pedagógicas pro-


gias digitais postas por Quadros & Schmiedt
(2006) e relacioná-las às discussões
sobre o uso de tecnologias digitais no
ensino de Língua Portuguesa para alu-
nos surdos.
Tecnologia e educa- *** sem objetivo geral claro ***
ção de surdos: possibili-
dades de intervenção.
Considerações sobre educação *** sem objetivo geral claro ***
de surdos etecnologias a partir da
análise dasestratégias de um pro-
fessor surdo.

82
Português como L2: o ensino da Relatar a experiência vivida no ensi-
disciplina no curso de Letras Li- no da disciplina “A Língua Portuguesa
bras da UFGD como segunda Língua para surdos”
ministrado no ano de 2017, no curso
de Licenciatura de Letras, para uma
turma de alunos surdos e ouvintes.
Da janelinha para o Janelão: a re- *** sem objetivo geral claro ***
levância de conteúdos qualifica-
dos para a educação permanente
pelos surdos e sua inclusãotrans-
formadora
A proposta bilíngue na educação Mostrar a eficácia da proposta bilín-
de surdos: práticas pedagógicas gue no processo de alfabetização dos
no processo de alfabetização no surdos e proporcionar mais oportuni-
município de Colorado Oeste/ dades e qualidade no processo educa-
Rondônia cional.
Educação a distância e os desa- Trazer uma reflexão acerca dos desa-
fios para a elaboração de mate- fios e possibilidades da elaboração de
rial didático de língua portuguesa material didático de Língua Portugue-
como L2 para graduandos surdos sa escrita para alunos surdos de um
curso a distância de Licenciatura em
pedagogia.
A relação do usuário surdo com Verificar os principais pontos de aten-
a tipografia em movimentos nos ção do usuário surdo, tendo em vista
materiais educacionais em Libras: a tipografia de movimentos em mate-
um estudo por meio do rastrea- riais bilíngues.
mento ocular
Práticas translingues na educação *** sem objetivo geral claro ***
linguística de surdos mediados
por tecnologias digitais.

O uso dos recursos tecnológicos Compreender como os acadêmicos


no ensinobilingue para acadêmi- surdos observamos recursos tecnoló-
cos surdos gicos no ensino bilíngue.

83
Revisão sistemática de Literatura Identificar e classificar os softwares de
sobre tecnologia de informação e tradução Português-Libras que pode-
comunicação de tradução do par rão auxiliar os surdos na aprendiza-
linguístico português libras gem de conteúdos que são ministra-
dos em sala de aula.
Fonte: As autoras

QUADRO 4 – 3º CRITÉRIO: METODOLOGIA UTILIZADA

Título do Artigo Metodologias

Língua Portuguesa como segunda Propostas de atividades que privi-


língua para alunos: proposta de legiam a interação surdo/surdo em
atividades a partir de interfaces Português escrito.
tecnológicas.
Características de repositórios Foi utilizada a pesquisa descritiva,
educacionais abertos para usuá- com a aplicação de um questioná-
rios de língua Brasileira deSinais. rio, contendo 16 questões fechadas
e uma aberta, para alunos surdos e
ouvintes.
Livro Digital para crianças surdas: Análise descritiva de dois Ebooks-
uma análise nas perspectivas do -PP parasurdos bilíngues.
design visual de interface em tela.

Português para surdos e tecnolo- Pesquisa bibliográfica com seleção,


gias digitais leitura e análise de artigos, periódi-
cos e livros referentes a utilização de
recursos tecnológicos digitais para
ensinar Língua Portuguesa para sur-
dos
Tecnologia e e d u ca - Estudo de caso de dois projetos dis-
ção de surdos: Possibili- tintos e paralelos, mas relacionados:
dades de intervenção. descrição e análisedo uso de tablet.

84
Considerações sobre educação Metodologia quantitativa de pesqui-
de surdos e tecnologias a partir da sa, com observação de situação de
análise das estratégias deum pro- sala de aula; diário decampo; e entre-
fessor surdo. vista com professor
Português como L2: o ensino da Relato de experiência vivenciada
disciplina nocurso de Letras Libras pelo autor.
da UFGD.
Da janelinha para o Janelão: a rele- Recorte de pesquisa sobre o primei-
vância de conteúdos qualificados ro canal de WEB TV INES, no país,
para a educação permanente pe- protagonizado por surdos. Aplicação
los surdos e sua inclusão transfor- de questionários e realização de en-
madora. trevistas com 12 surdos com idade
entre 18 emais de 55 anos
A proposta bilíngue na educação Pesquisa-ação com uma aluna sur-
de surdos: práticas pedagógicas da,organizada em cinco etapas.
no processo de alfabetização no
município de Colorado Oeste/
Rondônia.
Educação a distância e os desafios Elaboração de unidades temáti-
para a elaboração de material di- cas da disciplina de Português para
dático de língua portuguesa como alunos ouvintes e surdos do curso
L2 para graduandos surdos. de Pedagogia do INES, modalidade
EaD.
A relação do usuário surdo com Pesquisa experimental, com realiza-
a tipografia em movimentos nos ção de teste, utilizando o instrumen-
materiais educacionais em Libras: to de coleta de dados Eye tracking.
um estudo por meio do rastrea-
mentoocular.
Práticas translingues na educação Pesquisa qualitativa de cunho et-
linguística desurdos mediados por nográfico, com participação de 20
tecnologias digitais. alunos, com faixa etária entre 16 a 35
anos, em curso de extensão univer-
sitária, de ensino de português para
surdos na modalidadeescrita

85
O uso dos recursos tecnológicos Investigação de cunho exploratória,
no ensino bilingue para acadêmi- com abordagem descritiva explicati-
cos surdos. va, com a participação de oito aca-
dêmicos surdos. Uso de entrevista
semiestruturada, com cinco ques-
tões norteadoras sobreo uso das
TICs no ensino superior
Revisão sistemática de Literatura Revisão Sistemática de literatura so-
sobre tecnologia de informação e bre tecnologia assistiva, software de
comunicação de tradução do par tradução e Libras
linguístico português libras.
Fonte: As autoras

QUADRO 5 – 4º CRITÉRIO: TECNOLOGIAS


APRESENTADAS OU UTILIZADAS

Título do Artigo Tecnologias apresentadas/


utilizadas
Língua Portuguesa como segunda língua Blog.
para alunos: proposta de atividades a par-
tir de interfaces tecnológicas.

Características de repositórios educacio- Messenger; Youtube.


nal aberto para usuários de língua Brasilei-
ra de Sinais.

Livro Digital para crianças surdas: uma Livro Digital.


análise nas perspectivas do design visual
de interface em tela.

Português para surdos e tecnologias digi- *** Tecnologia não especifi-


tais cada ***
Tecnologia e educação Tablets.
de surdos: Possibilidades de inter-
venção.

86
Considerações sobre educação de surdos Livro digital.
e tecnologias a partir da análise das estra-
tégias deum professor surdo.

Português como L2: o ensino da disci- *** Tecnologia não especifi-


plina nocurso de Letras Libras da UFGD. cada ***

Da janelinha para o Janelão: a relevância WEB TV INES


de conteúdos qualificados para a educa-
ção permanente pelos surdos e sua inclu-
são transformadora.

A proposta bilíngue na educação de sur- *** Tecnologia não especifi-


dos: práticas pedagógicas no processo de cada ***
alfabetização no município de Colorado
Oeste/Rondônia.

Educação a distância e os desafios para a Ambiente Virtual de Apren-


elaboração de material didático de língua dizagem (AVA)
portuguesa como L2 para graduandos sur-
dos.
A relação do usuário surdo com a tipogra- YouTube
fia em movimentos nos materiais educa-
cionais em Libras: um estudo por meio do
rastreamentoocular.

Práticas translingues na educação linguís- Facebook


tica de surdos mediados por tecnologias
digitais.
O uso dos recursos tecnológicos no ensi- *** Tecnologia não especifi-
nobilingue para acadêmicos surdos. cada ***

Revisão sistemática de Literatura sobre Hand Talk; VLibras; Prodeaf


tecnologia de informação e comunicação Librol; LibrasTI;Rybená; Kary-
de tradução do par linguístico português tu.
libras.
Fonte: As autoras

87
QUADRO 6 – 5º CRITÉRIO: RESULTADOS DE CADA
PESQUISA

Título do Artigo Resultados da Pesquisa


Língua Portuguesa Como resultado, o uso das tecnologias no ensino
como segunda língua de línguas parasurdos é promissor. É impossível
para alunos surdos: pro- pensar que, no século XXI, os processos de de-
postas de atividades a senvolvimentos estejam alheios à tecnologia. Se
partir de interfaces tec- o uso das TIC’s não ocorrerem de maneira for-
nológicas mal, irá ocorrer de maneira descompromissada.
Propõe-se, dessa maneira, que
a educação se aproprie de algo que já está nas
mãos dos alunos, dando um direcionamento
pedagógico.
Características de re- Foi possível identificar o perfil que constitui a
positório educacional primeira parte e usa metodologia descritiva, de-
aberto para usuários de pois foi feita a discussão sobre o uso da tecnolo-
língua brasileira gia, também de metodologia descritiva.
Livro Digital para crian- Mostrou que o Ebook--APP die gemmerkokman
ças surdas: uma análise possui uma interface clara de divisão de tarefas e
nas perspectivas do de- uma organização visual. Provando-se adequado
sign visual de interface para instrução de crianças surdas Enquanto que
em tela o Ebook-App The Baobab tem uma interface co-
erente com sua funcionalidade, onde a divisão
do espaço e distribuição dos elementos favore-
cem a ordem de prioridade da leitura, mas, no
caso do posicionamento, a tela do vídeo das
traduções prejudica a leitura visual.
Português para O resultado atingido foi de que as atividades, se
surdos e tecnologias utilizadas ao mesmo tempo com as tecnologias
digitais digitais, são facilitadoras no ensino de Língua
Portuguesa, e, por isso, é necessário que os pro-
fessores busquem a inserção dessas tecnologias
nas práticas didáticas.

88
Tecnologia e educação Nos mostra que os alunos surdos foram realo-
de surdos: Possibilida- cados para uma turma só. A forma como foram
des de intervenção acompanhados, todos juntos, e os professores
das disciplinas tendo uma rasa compreensão de
Libras, fez com que houvesse pouco contato
e atenção específica voltada a aprendizagem
desses sujeitos durante as aulas, de modo que
a intérprete acabava por assumir o papel de pro-
fessora do grupo.

Considerações sobre De acordo com os resultados obtidos, as refle-


educação de surdos e xões sobre as práticas de linguagem e de letra-
tecnologias a partir da mento, a partir do uso das tecnologias, incluindo
análise das estratégias seus recursos multimodais e multissemióticos,
de umprofessor surdo são necessários no ambiente escolar. Inclusive
no que se refere à educação de surdos, uma vez
que a contribuição desses recursos para a apro-
priação da escrita por crianças surda vem
sendo destacadas.
Português como L2: o Trouxe contribuições tanto para os estudantes
ensino da disciplina no quanto para os professores, e o maior benefi-
curso de Letras Libras ciado foi o professor. Além disso, não se deve
da UFGD limitar as atividades de reflexão sobre aborda-
gens e fundamentos metodológicos de ensino
de segunda língua para surdos.
Da janelinha para o Ja- Esta pesquisa sugere que há acessibilidade à
nelão: a relevância de informação por meio de uma língua que os su-
conteúdos qualificados jeitam dominam, que é a mais próxima de seu
para a educação per- universo cultural. A pesquisa também sugere a
manente pelos surdos necessidade de se observar as particularidades
e sua inclusão transfor- dos sujeitos e suas culturas para a promoção de
madora inclusões.

89
A proposta bilíngue na Nessa pesquisa, a ação foi realizar um levan-
educação de surdos: tamento dos 523 alunos matriculados na es-
práticas pedagógicas no cola E.E.F. Manuel Bandeira, em 2016. Desses,
processo de alfabetiza- 14 alunos necessitam de atendimento do AEE.
ção nomunicípio de Co- Uma das alunas tinha deficiência auditiva, e um
loradoOeste/Rondônia tinha deficiência intelectual. O trabalho ocorreu
na sala do AEE, com esses alunos, sempre no
período oposto em que estudavam.
Educação a distância e O resultado revelou que o artigo buscou mos-
os desafios para a ela- trar como é oprocesso de elaboração do mate-
boração de material rial online do curso de Pedagogia Bilíngue, com
didático de língua por- foco nas disciplinas de Língua Portuguesa,
tuguesa como L2 para apresentando, assim, recursos disponíveis, os
graduandos surdos desafios da modalidade EaD e o trabalho com a
leitura e escritacom aprendizes surdos.
A relação do usuário O resultado nos informa que o sujeito fixa o
surdo com a tipografia olhar mais vezes na informação apresentada
em movimentos nos pelo intérprete (22 fixações). Notamos também
materiais educacionais que é possível identificar que o olhar transita por
em Libras: um estudo toda aextensão do vídeo, mas se fixa princi-
por meio do rastrea- palmente no intérprete.
mento ocular Além disso, percebe-se um equilíbrio maior na
fixação do olhar entre o intérprete, o texto e a
imagem.
Práticas translíngues na Mostrou, por sua vez, que a educação linguísti-
educação linguística de ca de surdos, mediada por tecnologias digitais,
surdos mediados por em lugar de promover umtrabalho com línguas
tecnologias digitais compartimentalizadas, permite o reconheci-
mento e a integração de diferentes recursos
linguísticos e semióticos, em diferentes moda-
lidades. Com isso, pode haver uma abertura dos
alunos para pluralidade e a diversidade linguís-
tica.

90
O uso dos recursos Os resultados verificaram a disponibilidade de
tecnológicos no ensino recursos tecnológicos no ensino superior com a
bilíngue para acadêmi- plataforma Moodle, que oferece uma nova de-
cos surdos manda aos professores.
Revisão sistemática de O resultado foi de que existem muitas tecno-
Literatura sobre tecno- logias que podem contribuir para o ensino e
logia de informação e aprendizagem de pessoas surdas no ambiente
comunicação de tradu- escolar. Porém, ainda são poucas divulgadas e
ção do par linguístico conhecidas pelas comunidades acadêmicas e,
Português-Libras por isso, sugere o aprofundamento do estudo
das ferramentas que realizam a tradução de
Português-Libras, de forma a mostrar as várias
possibilidades de uso dentro do espaço escolar.
Fonte: As autoras

De acordo com os dados apresentados, o ensino bilíngue,


apesar de ter dado um grande passo nesses últimos dez anos,
ainda enfrenta desafios na educação dos surdos. É perceptível,
nas pesquisas, que as tecnologias digitais utilizadas podem, de
certo modo, facilitar o acesso dos alunos surdos à educação.
Um ponto positivo dessas tecnologias é o recurso visuoespacial,
que permite a utilização de imagens juntamente com a escrita,
possibilitando, assim, maiores associações e mais clareza para
os alunos surdos. A participação de intérpretes dentro dessas
plataformas pode ser benéfica no processo de aprendizagem
do aluno. Embora tenhamos recursos tecnológicos avançados,
muitos professores ainda não estão atualizados com essas fer-
ramentas.
Sobre as IES e regiões, cinco pesquisas foram publicadas em
periódicos de IES da região sul do Brasil; quatro publicações em
periódicos de IES da região sudeste; dois em IES da região nor-
deste; um em periódico de IES do centro-oeste do país; e dois
artigos publicados em periódicos internacionais, sendo um na
Inglaterra, e outro em Portugal.
91
Sobre os objetivos de cada pesquisa, foi possível notar que
correspondem aos objetivos gerais apresentados. Quanto às
metodologias, foi possível observar uma grande variação de
métodos e instrumentos de geração de dados, evidenciando a
diversidade de possiblidades de elaboração de pesquisas, con-
forme a intenção dos pesquisadores. Em relação às tecnologias
apresentadas/utilizadas, foi verificado que todas são tecnolo-
gias de fácil acesso e manuseio.
Tudo isso indica que os professores podem fazer uso de
tecnologia para o ensino de Português para surdos; utilizar-se,
também, daquelas de que os alunos surdos já fazem uso, o que
facilita a aprendizagem e enriquece o processo de ensino. So-
bre os resultados obtidos em cada pesquisa, verificamos que
foram satisfatórios, de acordo com os objetivos propostos, ini-
cialmente, pelos autores.

O propósito deste trabalho foi pesquisar sobre como as tec-


nologias têm potencial de boas ferramentas de ensino e apren-
dizagem dentro do ambiente educacional, em específico nas
escolas bilíngues para surdos. Por meio dos dados gerados, foi
possível notar que as ferramentas digitais apresentadas, além
de acessíveis, são de fácil uso em sala de aula, podendo tornar
o ensino do Português com L2 mais fluído e objetivo.
A metodologia que adotamos para a elaboração deste traba-
lho facilitou tanto para a geração de dados quanto para a análi-
se. Durante a pesquisa dos artigos, notamos que houve bastan-
te trabalhos elaborados no que diz respeito à tecnologia para
ensino de Português para surdos. Isso mostra que os espaços
bilingues estão adaptando-se a essas novas ferramentas digi-
tais. Para além disso, demonstra que o ensino de L2 para surdos
tem sido um tema muito relevante, e que há acadêmicos inte-
92
ressados em pesquisar quais tecnologias podem ser utilizadas,
a fim de dar um ensino de qualidade para os indivíduos surdos.
Mas, para que o ensino de L2 seja de qualidade, é necessário
que professores também estejam a par desses novos recursos
digitais. Entender como esses recursos tecnológicos funcionam
é fundamental para que as aulas sejam mais didáticas e dinâ-
micas.
Acreditamos que esta pesquisa poderá auxiliar futuros pro-
fessores de Português, que pretendam trabalhar com a inclu-
são de alunos surdos, enriquecendo seus conhecimentos sobre
ensino, ensino de L2, Tics educacionais e escolas bilingues. Fo-
cados em tornar o ambiente de sala de aula, além de acessível,
mais confortável.
Por fim, esperamos, também, que dentro da academia, mais
especificamente nos cursosde Letras, esta pesquisa possa aju-
dar acadêmicos que buscam compreender mais sobre o proces-
so de ensino aprendizagem dos surdos. Não obstante, aprender
como as tecnologias são ferramentas úteis, além de entender as
especificidades da Língua Brasileira de Sinais, de forma a incen-
tivaroutros acadêmicos a estudar Libras, uma vez que, no pró-
ximo ano, teremos Letras com habilitação em Libras. Enquanto
futura Professora de Língua Portuguesa, esta pesquisa me auxi-
liará a criar um ambiente acolhedor para meus alunos, além de
aprofundar o meu conhecimento sobre as ferramentas digitais,
adequando, dessa maneira, as atividades e proporcionando um
ensino de qualidade.

93
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gunda Língua (L2) para surdos de escola pública no ensino funda-
mental I em Bayeux-PB. João Pessoa, 2019. Disponível em:https://
repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/16715. Acesso em: 17
set. 2022.

96
Análises Linguísticas
Análise sociolinguística da monotongação de

Brenda Soares Rezende


Márcia Cristina do Carmo

1 Introdução
As variações linguísticas são ramificações naturais de uma
língua que culminam em diferentes variedades linguísticas e,
no cotidiano, encontram-se diversas dessas variações, pois a
sociedade é constituída por múltiplas comunidades de fala,
compostas por pessoas com vivências diferentes. Desse modo,
é possível identificar distintos modos de falar e se comunicar; e
até mesmo indivíduos pertencentes a uma mesma comunida-
de de fala apresentam diferenças linguísticas entre si. As dife-
rentes variedades linguísticas englobam fatores como regiona-
lidade, idade, classe social, escolaridade, situação comunicativa
e postura adotada pelo falante diante da variedade (LABOV,
2008 [1972]).
O presente estudo tem o objetivo de analisar o processo
fonético-fonológico variável denominado monotongação do
ditongo decrescente [ow] na variedade do Português Brasilei-
ro (daqui em diante, PB) da região noroeste do estado de São
Paulo, mais precisamente na região de São José do Rio Preto.
Especificamente, este trabalho objetiva descrever e caracteri-
zar os fatores linguísticos e sociais envolvidos na aplicação va-
riável do fenômeno, além de comparar a variedade estudada
com outras variedades do PB, a partir de pesquisas já realizadas
sobre o tema.
A escolha da variedade de São José do Rio Preto em detri-
mento da região de Ponta Grossa, onde se desenvolve este
98
trabalho, é justificada pela ausência de um banco de dados já
constituído para a região. Além do mais, o banco de dados da
região investigada já foi submetido e aprovado por Comitê de
Ética no período de sua elaboração, dessa forma não tendo
sido necessária a submissão deste projeto ao Comitê de Ética
em Pesquisa da UEPG. Outro fator considerado foi o preenchi-
mento da lacuna do estudo da monotongação em [ow] na va-
riedade investigada. Desse modo, destaca-se o ineditismo do
presente trabalho.
No PB, os ditongos orais decrescentes são formados por uma
vogal seguida por um glide que pode ser apagado em alguns
casos, processo denominado monotongação. Em relação ao di-
tongo [ow], este pode sofrer a variação do apagamento do glide
velar [w], como em outro ~ otro e pegou ~ pegô, ou seja, o diton-
go passa a ser produzido oralmente como um monotongo, isto
é, uma única vogal (CRISTÓFARO SILVA, 2011).
No que diz respeito a resultados de outras pesquisas (AMA-
RAL, 2005; FREITAS, 2017; MACHADO, 2020; CARMO; MA-
CHADO, 2023; OLIVEIRA, 2021; SILVEIRA, 2019; TOLEDO,
2011) acerca de ditongos orais decrescentes em outras varie-
dades do PB, atesta-se que o fenômeno é bastante investiga-
do e apresenta indícios de ser consolidado, principalmente em
[ow], devido ao grande número de ocorrências. Tais resultados
levam à hipótese inicial de que a monotongação de [ow] não
seja muito influenciada por fatores sociais, visto que se espera
que ocorra similarmente em diferentes estratificações sociais.
Em relação aos fatores linguísticos, pesquisas anteriores sobre
outras variedades do PB demonstram serem mais significativos
para a aplicação do apagamento do glide.
Esta pesquisa é embasada teórico-metodologicamente nos
pressupostos labovianos da Teoria da Variação e Mudança Lin-
guística (LABOV, 2008 [1972]), na qual o autor define que o
99
estudo da língua, pela sociolinguística, deve ser realizado sem
a exclusão do contexto social dos falantes (LABOV, 2008
[1972]). Labov (2008 [1972]) defende que a língua precisa ser
compreendida como heterogênea e dinâmica; dessa forma,
a sociolinguística leva em conta a relação dos fatores linguís-
ticos e extralinguísticos para a análise da variação. Os proces-
sos variáveis não ocorrem de maneira aleatória nas línguas, na
realidade, são definidos por um conjunto de normas que são
compartilhadas por uma comunidade de fala e que são condi-
cionadas não somente por fatores linguísticos, como também
por fatores sociais.
O trabalho tem, como córpus de pesquisa, doze inquéri-
tos retirados do banco de dados Iboruna, resultado do projeto
Amostra Linguística do Interior Paulista (ALIP). O banco apre-
senta 152 entrevistas coletadas entre 2003 e 2007 (GONÇAL-
VES, 2019) e segue os preceitos metodológicos da sociolinguís-
tica de Labov (2008 [1972]). As entrevistas são categorizadas
por variáveis sociais diversificadas, como sexo/gênero, escola-
ridade e faixa etária e apresentam diferentes gêneros textuais
(GONÇALVES, 2019).
Os doze inquéritos utilizados são divididos em seis com fa-
lantes do sexo/gênero masculino e seis do feminino. Outra vari-
ável utilizada para a pesquisa é faixa etária, sendo consideradas
as seguintes: 7 a 15 anos; 26 a 35 anos; e superior a 55 anos.
Como variável extralinguística, também é considerada a escola-
ridade, mais especificamente o 1º ciclo do Ensino Fundamental
e o Ensino Médio. Como variáveis linguísticas, são considera-
dos: (i) contexto seguinte (tepe, fricativa, africada, vogal, nasal,
oclusiva, lateral e pausa); (ii) tonicidade da sílaba (tônica, pretô-
nica, postônica medial e postônica final); (iii) classe de palavras
(verbos e não-verbos); e (iv) localização morfológica (radical e
sufixo).
100
O trabalho se apresenta com a seguinte organização: na se-
ção 2, é discutida a fundamentação teórica, mencionando a Te-
oria da Variação e Mudança Linguísticas (LABOV, 2008 [1972])
e o processo variável investigado. No item 3, são apresentados
os passos metodológicos utilizados na pesquisa, descrevendo
também a variável dependente e as variáveis independentes
linguísticas e extralinguísticas investigadas. Em 4, está organi-
zada a discussão dos resultados obtidos. Por fim, na seção 5,
têm-se as considerações finais, seguidas pelas referências bi-
bliográficas.

2 Fundamentação teórica
Nesta seção, é discutido o embasamento teórico do trabalho,
sendo dividida em: descrição da Teoria da Variação de Mudan-
ça Linguística (seção 2.1); fundamentação e caracterização do
ditongo decrescente [ow] (seção 2.2); e descrição da variação
estudada em outras variedades do PB (seção 2.3).
2.1 Teoria da Variação e Mudança Linguística
A Sociolinguística é um ramo da Linguística que busca orga-
nizar cientificamente variantes linguísticas existentes dentro de
um sistema linguístico compartilhado por uma comunidade de
fala. Segundo Labov (2008 [1972]), um dos nomes mais im-
portantes dos estudos na área, o objetivo da Sociolinguística é
estudar as mudanças linguísticas interseccionando com aspec-
tos sociais dentro de uma comunidade de pessoas que perma-
necem em interação e compartilham um conjunto de normas,
pois “não se pode entender o desenvolvimento de uma mu-
dança linguística sem levar em conta a vida social da comuni-
dade em que ela ocorre” (LABOV, 2008 [1972], p. 21).
101
Tarallo (2003, p. 19) define língua falada como “o veículo lin-
guístico de comunicação usado em situações naturais de inte-
ração social, do tipo comunicação face a face”. Dessa forma, o
objetivo da sociolinguística é analisar o vernáculo do informan-
te, isto é, a língua falada em contextos em que o falante não
está preocupado em atender às convenções gramaticais, pois o
seu foco não é a forma como está comunicando.
A Teoria da Variação e Mudança Linguística, ou Sociolinguís-
tica Quantitativa, compreende a língua como heterogênea.
Labov (2008 [1972], p. 16) define que “[...] o domínio de um
falante nativo de estruturas heterogêneas não tem a ver com
multidialetalismo nem com o “mero” desempenho, mas é par-
te da competência linguística monolíngue”. Isso quer dizer que
as variações linguísticas não são aleatórias ou arbitrárias, pois
elas são uma característica inerente na evolução de uma língua
e competem a motivações sociais e não individuais e isoladas
de um falante. A existência de variações linguísticas não anula
a existência de uma estrutura nem impossibilita que ela seja
sistematizada. A heterogeneidade permite que todas as reali-
zações dos falantes que são consideradas “desvios” ou “aciden-
tes” sejam utilizadas como argumento de que as línguas estão
em constante processo de mudança. Ainda sobre essas moti-
vações, Labov (2008 [1972], p. 19) diz que:
Essas variações podem ser induzidas pelos processos de assimilação ou
dissimilação, por analogia, empréstimo, fusão, contaminação, variação
aleatória ou quaisquer outros processos em que o sistema linguístico
interaja com as características fisiológicas ou psicológicas do indivíduo.

O autor (2008 [1972]) afirma que a explicação para a origem


das mudanças linguísticas perpassa três questões: a origem das
variações linguísticas; a difusão e propagação das mudanças
linguísticas; e a regularidade da mudança linguística. Por con-
ta disso, os estudos em Sociolinguística Variacionista incluem
102
concepções sincrônicas e diacrônicas, ou seja, tanto a variação
(a situação da língua em um determinado momento do tempo)
quanto a mudança (a situação da língua ao longo do tempo) de-
vem ser consideradas. Sobre as noções de “variação linguística”
e “mudança linguística”, Tarallo (2003, p. 63) afirma “nem tudo
o que varia sofre mudança; toda mudança linguística, no entan-
to, pressupõe variação. Variação, portanto, não implica mudan-
ça; mudança, sim, implica variação. Mudança é variação!”.
Tarallo (2003) ainda afirma que variantes linguísticas são di-
ferentes modos de dizer a mesma coisa em um mesmo con-
texto e com o mesmo valor de verdade, e que um conjunto de
variantes forma uma “variável linguística”. Quanto à classifica-
ção, as variantes podem ser padrão/não padrão; conservado-
ras/inovadoras; estigmatizadas/de prestígio. Essa classificação
expõe a relação de concorrência entre as variantes, na qual es-
sas acabam muitas vezes “competindo” por sua existência. Em
geral, esses três pares de classificação se intercruzam, pois va-
riantes padrão costumam ser conservadoras e podem ser mais
prestigiadas, enquanto as variantes não padrão tendem a ser
mais inovadoras, mas podem carregar marcas de estigma social
justamente por fugirem do padrão.
Seguindo os preceitos da Sociolinguística, para o linguista
conseguir classificar as variantes dentro desses pares, é neces-
sário investigar variáveis extralinguísticas, ou seja, relacionadas
ao perfil social do falante. A escolaridade, por exemplo, é uma
variável que pode demonstrar indícios de a variante ser padrão
ou não padrão, pois é comum que indivíduos mais escolariza-
dos se utilizem de formas linguísticas mais prestigiadas. Outro
exemplo é a variável sexo/gênero, que pode indicar se a variante
em questão é conservadora ou inovadora, pois, conforme La-
bov (2008 [1972]), é característico do falar das mulheres se ater

103
mais às convenções normativas do que os homens da mesma
classe socioeconômica a que pertencem.
A partir dos pressupostos da Sociolinguística, esta pesquisa
busca investigar os aspectos sociais e linguísticos que influen-
ciam as escolhas linguísticas e motivam a ocorrência do proces-
so fonológico variável da monotongação, processo recorrente
no PB conforme pesquisas que, como o próprio fenômeno va-
riável investigado, serão descritas a seguir.
2.2 Processo variável investigado
Antes de partir para a caracterização da monotongação, é
necessário fazer algumas considerações sobre a estrutura silá-
bica e os ditongos no PB.
Câmara Jr. (2015 [1970]) propõe que as definições de sílaba
de diferentes linhas de pesquisa convergem em um aspecto ao
afirmarem que as sílabas partem de um movimento crescente
que culmina no núcleo silábico. O autor (2015 [1970], p. 53)
ainda define que as vogais, de um modo geral, ocupam a posi-
ção de núcleo, pois é “o som vocal mais sonoro, de maior força
expiratória, de articulação mais aberta e de mais firme tensão
muscular”. Para Câmara Jr. (2015 [1970]), a sílaba possui uma
estrutura de aclive seguido por um ápice (núcleo) e depois por
um declive, tais posições são preenchidas, respectivamente,
por uma ou duas consoantes; por uma vogal; e pelas consoan-
tes /S/, /r/, /l/ ou pelas semivogais [j] e [w].
Além da posição de núcleo, Bisol (2014 [1996]) afirma que
a sílaba é constituída por um ataque (A) e uma rima (R), sendo
que a última é composta justamente pelo núcleo (Nu) e pela
Coda (Co). A autora também ressalta que, em português, todas
as posições que não são o Nu podem estar vazias, como na
representação a seguir:

104
Figura 1 – Estrutura silábica

Fonte: Elaboração própria, com base em Bisol (2014 [1996]).

Quanto aos padrões silábicos do português, Bisol (2014


[1996]) exemplifica a existência de 13 estruturas diferentes, de-
monstradas a seguir:

105
Fonte: Bisol (2014 [1996], p. 115).

Dentre esses padrões, alguns são constituídos por um en-


contro vocálico, denominado ditongo. Amaral (2005) define os
ditongos como um encontro vocálico formado por uma vogal e
uma semivogal em uma mesma sílaba, sendo que a semivogal
pode estar localizada na posição anterior ou posterior da vogal,
constituindo respectivamente um ditongo crescente (ár.d[wo])
e um ditongo decrescente (r[ow].pa).
As semivogais, também denominadas glides, são, conforme
interpreta Cristófaro Silva (2011, p. 127), “um segmento que

106
apresenta características articulatórias de uma vogal, mas que
não pode ocupar a posição de núcleo de uma sílaba”.
Câmara Jr. (2015 [1970]) enumera 11 ditongos decrescentes
([aj]: pai; [aw]: mau; [ej]: lei; [èj]: papéis; [èw]: véu; [iw]: riu; [òj]:
mói; [oj]: moita; [ow]: sou; [uj]: fui e [òw]: sol), alguns formados
pela vocalização da lateral /l/ na estrutura do português. Tanto
para o autor (2015 [1970]) quanto para Bisol (2014 [1996]), não
há, no PB, ditongos crescentes, pois, como define Bisol (2014
[1996], p. 119), “a sequência VV (glide-vogal) é o resultado da
ressilabação pós-lexical, ou seja, os ditongos crescentes não fa-
zem parte do inventário fonológico do português e surgem da
fusão de rimas de duas sílabas diferentes”.
As origens dos ditongos no PB ocorrem, conforme atesta
Abaurre (2019, p. 82), no latim vulgar, momento em que exis-
tiam apenas quatro ditongos que posteriormente passaram por
processos fonológicos que originaram outros ditongos ou mo-
notongos. Os quatro ditongos citados por Abaurre (2019, p. 82)
são:
• ae: caecu> cego;
• oe: poena> pena
• au: thesauro> tesouro
• eu: leuca/leuga>légua
A partir do século II a.C., esses ditongos já eram modifica-
dos pelo processo de monotongação, como no exemplo citado
pela autora quaestus>questus. Comparando o português atual
com o latim, observa-se que o português apresenta um núme-
ro maior de ditongos, pois vários deles foram criados em de-
corrência de processos fonológicos ocorridos na passagem do
latim vulgar para o português, a exemplo: a síncope de fonema
medial como em malu>mau (ABAURRE, 2019, p. 82-83).
Com relação à monotongação, processo fonológico bastante
consolidado principalmente nos ditongos [aj] (c[aj]xa ~ c[a]xa),
107
[ej] (d[ej]xa ~ d[e]xa) e [ow] (r[ow]pa ~ r[o]pa) no PB, ocorre, con-
forme Cristófaro Silva (2011, p. 153), quando um “ditongo passa
a ser produzido como uma única vogal” a partir do apagamento
de um glide.
Amaral (2020 [1920]), em relação aos ditongos [ow] e [oj] no
português europeu e nas variedades mais prestigiadas no PB,
afirmava existir um sincretismo em seu uso que não era visto
no dialeto dito caipira do PB, pois este utilizaria categoricamen-
te a mesma pronúncia para a realização desses ditongos. Por
exemplo, a palavra lavoura sendo pronunciada como lav[o]ra e
nunca lav[oj]ra, e noite nunca pronunciada como n[ow]te.
Para compreender a formação de um monotongo, é neces-
sário analisar a estrutura dos chamados ditongos leves e diton-
gos pesados. Bisol (2014 [1996]) afirma que os ditongos que
possibilitam a variação para um monotongo são denominados
ditongos leves (ditongo falso), pois, na estrutura, ligam-se a um
único elemento vocálico, já os ditongos pesados (ditongo verda-
deiro) se ligam na estrutura a dois elementos vocálicos, como
no exemplo a seguir:

Fonte: Bisol (2014 [1996], p. 122).

108
Os ditongos leves (falsos) permitem a ocorrência da mono-
tongação, pois, por serem classificados como fonéticos, a su-
pressão ou apagamento do glide não provoca uma mudança
lexical. Já os ditongos pesados (verdadeiros), classificados tam-
bém como fonológicos, tendem a não produzir o contexto ne-
cessário para a aplicação da monotongação por causarem al-
ternância de sentido na palavra (p[aw]ta - p[a]ta) (BISOL, 2014
[1996]). Cristófaro Silva (2011, p. 94) ainda define que os diton-
gos leves são um “ditongo associado a uma única posição es-
queletal [...] e apresenta comportamento análogo ao de uma
vogal simples, ou monotongo” e que, por sua vez, os ditongos
pesados são um “ditongo associado a duas posições esquele-
tais [...] e apresenta um comportamento análogo ao de uma
vogal longa”.
2.3 Processo variável investigado em outras
variedades do PB
A monotongação é um processo bastante mencionado e es-
tudado em diversas pesquisas e variedades do PB. Algumas
dessas pesquisas serão elencadas a seguir.
Amaral (2005), em sua pesquisa Ditongos Variáveis do Sul do
Brasil, apresenta um estudo acerca da variação dos ditongos
orais decrescentes. Para tanto, a autora, seguindo a metodo-
logia laboviana, analisou amostras de fala de 42 informantes
retiradas do banco de dados do projeto VARSUL. As localidades
representadas por esse banco e analisadas pela autora são: Flo-
res da Cunha, Panambi e São Borja. Como variável dependente,
a pesquisa definiu a realização do ditongo [ej] e o apagamento
da semivogal [j]. As variáveis independentes analisadas foram
(i) classe de palavras; (ii) contexto seguinte; (iii) posição do di-
tongo; (iv) tonicidade; (v) faixa etária; e (vi) grupo geográfico. Os
resultados da pesquisa demonstraram que os condicionadores
109
linguísticos são mais influentes para a aplicação da regra do que
os condicionadores sociais. Contexto fonológico seguinte - sen-
do os fatores tepe (palm[ej]ra) e fricativa palato-alveolar (b[ej]jo)
– tonicidade, sendo o fator sílaba postônica (vôl[ej]), classe de
palavra, sendo o fator não-verbos (cruz[ej]ro ~ cruz[e]ro) e faixa
etária - 23 a 46 anos - foram as variáveis mais notáveis para a
aplicação da monotongação de [ej].
Em seu trabalho Estudo da Monotongação de Ditongos Orais
Decrescentes na Fala Uberabense, Freitas (2017) estudou a mo-
notongação dos ditongos [aj], [ej] e [ow] em amostra de fala de
24 informantes moradores da cidade de Uberaba-MG. A cons-
trução do córpus de pesquisa foi feita pela pesquisadora levan-
do em consideração diferentes estratificações sociais. As vari-
áveis investigadas foram: (i) contexto fonológico seguinte; (ii)
tonicidade; (iii) extensão da palavra; (iv) escolaridade; (v) sexo/
gênero; e (vi) faixa etária. Os resultados demonstraram que exis-
te uma maior frequência no uso da forma monotongada pelos
falantes e que os fatores sociais não influem na ocorrência da
monotongação no falar de Uberaba. O grupo de fatores linguís-
tico contexto fonológico seguinte influencia a monotongação de
[aj] e [ej], destacando-se os fatores fricativas (b[aj]xa e d[ej]xa) e
tepe (brazil[ej]ra), já extensão da palavra afeta a monotongação
de [aj], que ocorre em maior quantidade em polissílabas (a.p[aj].
xo.na.da). Por fim, em relação à tonicidade da palavra, os resul-
tados apontam para uma maior frequência do apagamento em
sílabas tônicas.
A partir do banco de dados Iboruna, o mesmo utilizado nesta
pesquisa, e sob os preceitos da Teoria da Variação e Mudança,
Carmo e Machado (2023), retomando a pesquisa de Machado
(2020), consideraram a variável dependente apagamento do [j]
no ditongo [ej] para análise. Como córpus, utilizaram 12 entre-
vistas. Como fatores, foram considerados: (i) classe de palavras;
110
(ii) contexto precedente; (iii) contexto seguinte; (iv) posição do
ditongo; (v) tonicidade; (vi) sexo/gênero; (vii) faixa etária; e (viii)
escolaridade. Como resultados, foram levantados 1.057 dados
de ditongo [ej], dos quais 376 (35,6%) obtiveram monotonga-
ção. Os fatores mais influentes para a aplicação do apagamento
de [j] foram tepe (dinh[ej]ro) e fricativa (d[ej]xa) em contexto se-
guinte, plosiva (mad[ej]ra) em contexto precedente, nomes (serin-
gu[ej]ra) em classe gramatical e Ensino Médio em escolaridade, o
que indica que os mais escolarizados aplicam mais o processo
em relação aos menos escolarizados na dada variedade do PB.
Sobre o falar manauara, Oliveira (2021) analisou a monoton-
gação dos ditongos orais decrescentes [aj], [ej], e [ow]. A pesqui-
sa sociolinguística investigou os falares de 16 informantes com
amostras de diferentes tipos de coleta (entrevista, questionário,
leitura) extraídos da zona urbana de Manaus para a composição
do córpus de análise, e considerou as seguintes variáveis lin-
guísticas e extralinguísticas: (i) contexto seguinte; (ii) tonicidade;
(iii) posição na palavra; (iv) classe gramatical; (v) sexo; (vi) faixa
etária; (vii) escolaridade; (viii) localização de moradia; e (ix) tipo de
coleta. Como resultados, foram obtidas 3.898 ocorrências, sen-
do 552 do ditongo [aj], 1.597 do ditongo [ej] e 1.749 do ditongo
[ow]. Os resultados também indicaram que 18,3% dos dados
de [aj] foram monotongados, assim como 50,5% para a mo-
notongação de [ej] e 65,4% para a monotongação de [ow]. Para
[aj], as variáveis que influenciam o apagamento do [j], segun-
do os resultados da pesquisa, foram: contexto seguinte (fricativa
palato-alveolar: b[aj]xo), tipo de coleta (entrevista), posição na
palavra (posição medial: emb[aj]xo) e escolaridade (8 a 12 anos
de escolaridade). Para [ej], os condicionadores para o apaga-
mento foram: contexto seguinte (tepe: fever[ej]ro; e fricativa pa-
lato-alveolar: qu[ej]jo), tipo de coleta (entrevista), escolaridade (8
a 12 anos de escolaridade), sexo (masculino), faixa etária (18 a 33
111
anos), classe gramatical (substantivos: brincad[ej]ra) e posição na
palavra (posição medial). Para o ditongo [ow], os resultados de
Oliveira (2021) mostraram que a monotongação é favorecida
pelos seguintes grupos de fatores: tipo de coleta (entrevista),
tonicidade (sílaba tônica: p[ow]co), escolaridade (8 a 12 anos de
escolaridade), contexto seguinte (vogais: ou então), localização de
moradia (bairros periféricos), sexo (masculino), classe gramatical
(verbos: r[ow]bar) e faixa etária (18 a 33 anos).
Silveira (2019), em sua pesquisa Monotongação em Uso no
Português do Sul do Brasil, analisa a monotongação dos diton-
gos decrescentes [ej], [oj], [ow] nas cidades de Porto Alegre –
RS, Florianópolis – SC, Pato Branco – RS, Flores da Cunha – RS,
Chapecó – SC, e Curitiba – PR, a partir do banco de dados Va-
riação Linguística da Região Sul do Brasil (VARSUL). As variáveis
investigadas foram: (i) contexto seguinte; (ii) tonicidade da sílaba;
(iii) classe de palavras; (iv) localização morfológica; (v) extensão
do vocábulo; (vi) localização do ditongo na palavra; (vii) item lexi-
cal; (viii) sexo; (ix) escolaridade; (x) localidade; (xi) informante. Os
resultados mostraram comportamentos distintos para as três
variáveis dependentes consideradas. A monotongação de [ej]
na variedade em questão é condicionada por localização mor-
fológica (sufixo nominal: pedr[ej]ro) do ditongo na palavra, ex-
tensão do vocábulo e contexto fonológico seguinte ao ditongo
(palavras não monossilábicas (perf[ej]tamente) e obteve uma
porcentagem de ocorrência de 35,5%. A monotongação de [oj]
é influenciada por uma motivação predominantemente lexical
(pois; dois) e obteve uma ocorrência correspondente a 2,8%.
Já a monotongação de [ow], além da motivação lexical, tam-
bém é determinada por localização morfológica (sufixo verbal:
encontr[ow]) do ditongo na palavra, correspondendo à variável
dependente com a maior porcentagem de ocorrência (86,9%).

112
Ainda sobre o sul brasileiro, Toledo (2011) analisa a alternân-
cia [ej] ~ [e] na variedade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
O córpus de pesquisa foi composto por 14 inquéritos retirados
do banco de dados do Projeto de Estudo da Norma Linguística
Urbana Culta (NURC), banco posteriormente recontactado pelo
Projeto VARSUL, totalizando 28 entrevistas utilizadas na pes-
quisa. As variáveis determinadas para o andamento do estudo
foram: (i) contexto seguinte; (ii) tonicidade; (iii) natureza morfológi-
ca; (iv) classe de palavras; (v) faixa etária; e (vi) sexo. Os resultados
demonstraram pouca influência das variáveis extralinguísticas,
sendo de fato relevantes as variáveis linguísticas: contexto se-
guinte (tepe: brasil[ej]ro); natureza morfológica (radical: f[ej]ra); e
classe de palavras (não-verbos: man[ej]ra).
Os resultados obtidos por essas pesquisas convergem ao de-
monstrar pouca tendência de as variáveis sociais influenciarem
os processos de monotongação. A variação, em várias localida-
des do país, parece estar mais condicionada a fatores linguísti-
cos, principalmente em relação ao contexto fonológico seguinte
(tepe e fricativas) e à tonicidade (tônicas).
Assim como os estudos mencionados, esta pesquisa toma
como base a Teoria da Variação e Mudança Linguística (LABOV,
2008 [1972]) e analisa o apagamento do glide [w] no ditongo
oral decrescente [ow] conforme os passos metodológicos des-
critos a seguir.

3 Materiais e métodos
Nesta seção, parte-se para a descrição da metodologia em-
pregada para o desenvolvimento da pesquisa. Dessa forma,
está organizada de acordo com a seguinte estrutura: em 3.1,
está a descrição da comunidade de fala da variedade investi-
gada; em 3.2, constam informações sobre o banco de dados
Iboruna e as entrevistas analisadas; em 3.3, são detalhadas as
113
variáveis investigadas, tanto a dependente como as indepen-
dentes; por fim, em 3.4, parte-se para a descrição da metodo-
logia laboviana (LABOV, 2008 [1972]).

São José do Rio Preto é um município localizado na região no-


roeste do estado de São Paulo, a cerca de 442 km de distância
da capital do estado. Apresenta aproximadamente uma área de
431,3 km², destes sendo 119,48 km² de zona urbana. São José
do Rio Preto se divide em três distritos, sendo um de mesmo
nome, um nomeado de Engenheiro Schmitt, e outro Talhado,
em conjunto se subdividem em cerca de 360 bairros e lotea-
mentos. A região de São José do Rio Preto inclui 96 municípios,
ocupando uma extensão correspondente a 10% do estado.1 No
último Censo do IBGE (2021), a população estava estimada em
469.173 habitantes, sendo 51,99% o percentual da população
feminina e 48,01% da população masculina. A faixa etária com
maior percentual é a de 25 a 29 anos, correspondendo a 9,5%
de toda a população.2

1 Dados retirados do portal da Câmara Municipal de São José do Rio Preto, disponí-
vel em: http://www.riopreto.sp.leg.br/a-cidade#:~:text=O%20seu%20%C3%8D-
ndice%20de%20Desenvolvimento,Jaboticabal%20na%20d%C3%A9cada%20
de%201890. Acesso em: 26 mar. 2023.
2 Dados do Censo do IBGE de 2021. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cida-
des-e-estados/sp/saojose-do-rio-preto.html. Acesso em: 26 mar. 2023.
114
Figura 4 – Região de São José do Rio Preto

Fonte: Folha de São Paulo. Disponível em:


https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u78790.shtml. Acesso em:
27 out. 2022

A economia do município é baseada na agropecuária, princi-


palmente no cultivo de laranjeiras e seringueiras, fazendo com
que o município seja considerado o maior produtor de borracha
do país. Os setores que mais geram empregos na região são o
atendimento hospitalar, cargos públicos em geral e o comércio
varejista. Em 2020, dados do IBGE apontavam que (i) a média
salarial dos trabalhadores na região era de cerca de 2,6 salários
mínimos e (ii) a porcentagem de pessoas ocupadas na região
era de 36,1%.3
Quanto à escolarização, o município é classificado com um
dos melhores índices do país, constando uma taxa de escolari-
zação de 98% entre pessoas de 6 a 14 anos. No que diz respei-
to ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), a
cidade, no cálculo de 2021, recebeu a nota de 6,2 para os anos
3 Dados do IBGE de 2010 e 2020. Disponíveis em: https://cidades.ibge.gov.br/bra-
sil/sp/sao-jose-do-riopreto/panorama. Acesso em: 26 mar. 2023.
115
iniciais do Ensino Fundamental e 5,4 para os anos finais do En-
sino Fundamental na rede pública. Em relação a outros índi-
ces, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade é
de 0,834, um valor elevado em relação a outros municípios do
estado. O IDH municipal em 2010 era de 0,797.
Apresenta-se, na próxima subseção, o córpus que contém
amostras de fala da comunidade aqui descrita.
3.2 Córpus de pesquisa
A Sociolinguística exige metodologicamente que a amostra
utilizada para a pesquisa seja representativa da comunidade de
fala estudada, portanto, como córpus de pesquisa, foram utili-
zadas 12 entrevistas retiradas do banco de dados Iboruna, que,
segundo Gonçalves (2019), significa Rio Preto em Tupi Guarani.
Esse banco de dados é resultado do projeto Amostra Linguís-
tica do Interior Paulista (ALIP) (FAPESP 03/08058-6 – GON-
ÇALVES, 2007) e conta com entrevistas coletadas entre 2003
e 2007 (GONÇALVES, 2019).
A partir do trabalho coletivo de pesquisadores da Unesp de
São José do Rio Preto (Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas – Unesp/Ibilce), o banco de dados foi construído com o
objetivo de registrar, em meio eletrônico, a língua em contex-
to real de fala, como pedem as pesquisas em Sociolinguística,
favorecendo e fornecendo subsídios para pesquisadores enga-
jados da área (GONÇALVES, 2019).
O banco de dados é dividido em dois tipos de amostras:
Amostra Censo linguístico (AC), que contém 152 entrevistas, das
quais foram retiradas as analisadas nesta pesquisa; e Amostra
de Interação dialógica (AI), que é composta por 11 diálogos de
contexto livre registrados secretamente, ou seja, com o conhe-
cimento e consenso do informante somente após a gravação.
A AC segue os preceitos da sociolinguística laboviana, apresen-
116
tando perfis com variáveis sociais diversificadas, como sexo/
gênero, escolaridade e faixa etária; por esse motivo, o recorte
do córpus desta pesquisa foi feito a partir delas, pois os estudos
sociolinguísticos investigam o uso da língua também com re-
lação a fatores sociais. Em cada uma das entrevistas da AC, fo-
ram extraídos diferentes gêneros dos informantes, sendo eles:
(i) narrativa de experiência pessoal, contemplando fatos reais
ocorridos com os próprios informantes; (ii) narrativa reconta-
da de fatos que ouviram e que aconteceram com terceiros; (iii)
texto descritivo de locais ou ambientes; (iv) relato de procedi-
mento, baseado em atividades que necessitem de um procedi-
mento ordenado; e (v) relato de opinião de variadas temáticas
(GONÇALVES, 2019).
Das 12 entrevistas analisadas, seis são de entrevistados do
sexo/gênero masculino e as outras do sexo/gênero feminino.
Outros critérios de escolha para as entrevistas selecionadas fo-
ram a faixa etária: (i) de 7 a 15 anos; (ii) 26 a 35 anos; e (iii) supe-
rior a 55 anos; bem como a escolaridade: (i) 1º ciclo do ensino
fundamental; e (ii) ensino superior (completo ou em andamen-
to). Em relação aos gêneros textuais/discursivos, foram consi-
derados os cinco elencados, mas sem tomá-los como variáveis
que possam ser relevantes para o fenômeno investigado nesta
pesquisa. As entrevistas analisadas em relação às suas estrati-
ficações sociais podem ser mais bem visualizadas no quadro a
seguir:

117
Quadro 1 – Entrevistas analisadas

Sexo/gênero
Faixa etária Escolaridade
Masculino Feminino
1º Ciclo do EF AC-007 AC-008
7 a 15 anos
Ensino Médio AC-023 AC-024
1º Ciclo do EF AC-063 AC-064
26 a 35 anos
Ensino Médio AC-079 AC-080
Superior a 55 1º Ciclo do EF AC-127 AC-128
anos
Ensino Médio AC-143 AC-144
Fonte: Elaboração própria, com base em Gonçalves (2019, p. 286)

Como já mencionado, o banco de dados Iboruna e, conse-


quentemente, a variedade de São José do Rio Preto, foram es-
colhidos em decorrência de não haver um banco de dados com
registros de fala espontânea da variedade de Ponta Grossa (PR)
e para evitar a necessidade de submeter o projeto ao Comitê
de Ética da UEPG caso fosse optado por construir o córpus de
análise, o que inviabilizaria a conclusão do trabalho no tempo
necessário.
3.3 Variáveis investigadas
Parte-se, agora, para a descrição das variáveis consideradas
para execução desta pesquisa, assim como da justificativa e das
hipóteses iniciais relacionadas a elas. Nas subseções seguintes,
descrevem-se a variável dependente, assim como as variáveis
independentes linguísticas e extralinguísticas (sociais) e seus
respectivos fatores.

118
3.3.1 Variável dependente
A variável dependente sobre a qual a pesquisa se desenvol-
ve é a monotongação variável do ditongo [ow].4 Esse fenôme-
no consiste na realização do ditongo decrescente como uma
vogal, resultado do apagamento do glide na sílaba, como, por
exemplo, r[o]pa.
3.3.2 Variáveis independentes
As variáveis independentes extralinguísticas investigadas fo-
ram (i) sexo/gênero; (ii) escolaridade; e (iii) faixa etária. Quanto
às variáveis independentes linguísticas, têm-se: (iv) contexto se-
guinte; (v) tonicidade da sílaba; (vi) classe de palavras; e (vii) loca-
lização morfológica.

Conforme Labov (2008 [1972], p. 298) defende, “a teoria lin-


guística não pode ignorar o comportamento social dos falantes
de uma língua, tanto quanto a teoria química não pode ignorar
as propriedades observadas dos elementos”, para tanto, é ne-
cessário fazer a investigação das variáveis extralinguísticas - ou
seja, aquelas relacionadas ao perfil social dos falantes - que po-
dem ser condicionadoras ou não. Nesta pesquisa, foram consi-
derados:
i. Sexo/gênero: com os fatores masculino e feminino. O ob-
jetivo de analisar essa variável foi o de determinar se há
diferenças no comportamento comunicativo de homens
e mulheres. Baseando-se em Labov (2008 [1972]), é co-
mum que as mulheres se comuniquem se aproximando
mais das convenções normativas do que os homens da
mesma classe social a que pertencem. Porém, a hipótese
4 Para elaboração desta pesquisa, não foram considerados casos resultantes da vo-
calização da lateral em coda silábica, a exemplo olfato, realizado como [ow]fato.
119
é a de que não haverá uma influência significativa, pois
espera-se, inicialmente, que a monotongação seja mais
influenciada por fatores linguísticos do que sociais.
ii. Escolaridade: os fatores considerados foram o primeiro
ciclo do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Essa vari-
ável é analisada com o objetivo de investigar indícios de
estigma social do processo em questão.
iii. Faixa etária: os fatores foram as faixas etárias de 7 a 15
anos, de 26 a 35 anos e superior a 55 anos. O objetivo de
analisar essa variável é identificar qual é o status da mo-
notongação na variedade do PB estudada, tratando-se de
uma variação estável ou uma mudança em progresso.
3.3.2.2 Linguísticas
A escolha das variáveis linguísticas tomou como base a pes-
quisa de Silveira (2019), sendo elas:
i. Contexto seguinte: com os fatores tepe, fricativa, africada, la-
teral, vogal, nasal, pausa e oclusiva. Os resultados de outras
pesquisas, como Oliveira (2021) e Toledo (2011), indicam
que os segmentos que seguem o ditongo são influentes
para o fenômeno da monotongação. Os fatores são elen-
cados e exemplificados a seguir:
• Tepe: cenoura;
• Fricativa: ouvido;
• Africada: vou tirar;
• Lateral: acabou largando;
• Vogal: falou assim;
• Nasal: falou não;
• Pausa: contou...;
• Oclusiva: roupa.
i. Tonicidade da sílaba: os fatores dessa variável são sílabas
tônica e átona. Essa variável corresponde à tonicidade da
sílaba a que o ditongo pertence, e os fatores constam a se-
guir:
120
• Tônica: largou;
• Átona: roubar;
i. Classe de palavras: com os fatores verbos e não-verbos. A
divisão foi feita desse modo, com base em Amaral (2005),
que mostra que os não-verbos (nomes) favorecem a apli-
cação da monotongação de [ej]. A seguir, os fatores consi-
derados:
• Verbo: explicou;
• Não-verbo: doutor.
i. Localização morfológica: os fatores correspondem a locali-
zação radical e localização sufixal. Essa variável diz respeito
à localização morfológica do ditongo na palavra. Com rela-
ção a essa variável, a hipótese inicial pauta-se nos resulta-
dos obtidos por Toledo (2011), o qual analisou a variedade
de Porto Alegre, onde constatou maior ocorrência de mo-
notongação em palavras com o ditongo localizado na posi-
ção de radical. Os fatores analisados constam a seguir:
• Localização radical: louco;
• Localização sufixal: aplicou.
3.4 Passos metodológicos
A metodologia adotada para execução da pesquisa foi, como
já mencionado, a Quantitativa de descrição (LABOV, 2008
[1972]). Tarallo (2003) descreve essa metodologia com os se-
guintes passos: (i) seleção da amostra; (ii) descrição da variável
estudada; (iii) análise dos fatores (linguísticos e extralinguísticos)
que favorecem o surgimento da variante; (iv) levantamento dos
dados; (v) rodada estatística; e, por fim, (vi) análise dos dados.
Portanto, a amostra utilizada para a realização deste trabalho
foi as 12 entrevistas retiradas do banco de dados Iboruna. Após
essa seleção, foi feita a análise de oitiva, levando em conta a
variável dependente estudada. Os dados foram categorizados
em uma tabela, relacionando-os com os fatores linguísticos e
121
extralinguísticos, então foi feita a rodada dos dados no progra-
ma estatístico GoldVarbX (SANKOFF; TAGLIAMONTE; SMITH,
2020 [2005]) e, por fim, a análise dos resultados obtidos, des-
crita a seguir.

4 Análise dos dados


Como já mencionado, a rodada estatística dos dados foi fei-
ta pelo programa GoldVarb-X. A partir da análise dos inquéri-
tos, foram obtidos 1.198 dados de palavras com a presença do
ditongo [ow]. Desses dados, 1.164 passaram pelo processo do
apagamento do glide [w], como em r[o]pa, correspondendo a
uma porcentagem de 97,2%, enquanto somente 34 dados não
aplicaram a regra (2,8%), como em atir[ow], conforme pode ser
observado na tabela abaixo:
Tabela 1 – Ocorrências gerais.

Ocorrências Porcentagens
Aplicação 1.164 97,2%
Não aplicação 34 2,8%
Total 1.198 100%
Fonte: Elaboração própria.

A quantidade de dados monotongados é substancialmente


superior aos dados que mantiveram a forma [ow], e os resulta-
dos obtidos são semelhantes aos do trabalho de Silveira (2019),
que obteve uma aplicação de 86,9% da forma monotongada.
Segundo a autora, esse comportamento pode indicar que o fe-
nômeno tem um caráter categórico no PB. No gráfico a seguir,
é possível visualizar a relação entre as quantidades de aplicação
e de não aplicação na variedade do noroeste paulista:

122
Fonte: Elaboração própria

Na primeira rodada dos dados no programa estatístico, hou-


ve 4 nocautes, ou seja, a presença de 0% ou 100% no resulta-
do da rodada de alguma variável. Todos os nocautes ocorreram
na variável linguística contexto seguinte: lateral, pausa, tepe e
africadas.
Todos os 38 dados em contexto de lateral, como em traba-
lhou lá, foram monotongados. Olhando individualmente para
os 38 dados, é possível identificar que a lateral se encontra fora
do limite da palavra, não tendo a ocorrência de um dado em
que a lateral se localiza na sílaba seguinte ao ditongo [ow] e
dentro da palavra. Olhando para a variável localização morfoló-
gica, explicada mais a frente, é possível observar uma tendên-
cia de a monotongação investigada ocorrer nos ditongos em
123
posição de sufixos, tal fato pode explicar o 100% de aplicação
desse fator.
É notável um comportamento semelhante do contexto pau-
sa, como em contou..., pois as 54 ocorrências encontradas apli-
caram o apagamento do glide, ou seja, 100%. A pausa ocorre
ao final de uma palavra ou período, ou seja, após o sufixo e o
ditongo em posição sufixal se mostrou mais significativo para
a ocorrência do processo, então a explicação para a ocorrência
do fenômeno em 100% desses dados pode estar contida na
localização do ditongo na palavra, e não propriamente por in-
fluência do contexto seguinte pausa.
Das 25 ocorrências gerais de tepe, como em tesouraria, ne-
nhuma conservou a forma [ow] do ditongo. Os resultados do
trabalho de Freitas (2017) da variedade de Uberaba mostraram
que esse fator é significativo para a monotongação, obtendo
uma porcentagem de 90,9% para a forma reduzida e com um
peso relativo de 0.86. Porém, olhando para as ocorrências ge-
rais em contexto de tepe obtidos pela autora, observa-se que,
assim como os resultados desta pesquisa, o número foi baixo
(11 ocorrências gerais, sendo 10 monotongadas).
O último caso de nocaute foi em contexto de africadas, em
que os resultados mostraram 100% de aplicação para a forma
reduzida do ditongo, porém foram encontrados apenas dois
dados com contexto de africadas, em ligou de e em vou tirar.
Para resolver esses nocautes, foi realizado o amálgama (jun-
ção de dois ou mais fatores em um) dos fatores tepe, fricativas,
africadas, nasais, oclusivas e laterais com a pausa. Resumindo,
então, os fatores da variável contexto seguinte tornaram-se os
dois seguintes: consoantes + pausa e vogais.
Assim, foi possível prosseguir com a análise quantitativa dos
dados. O programa descartou as variáveis escolaridade, sexo/
gênero, contexto fonológico seguinte, tonicidade da sílaba e classe
124
de palavras, por demonstrarem ter pouca significância para a
motivação do apagamento do [w].
O descarte da variável sexo/gênero pode indicar que a va-
riação investigada está demarcada tanto no falar de homens
como no de mulheres, indicando um comportamento comum
entre ambos. Com relação à variável escolaridade, pode-se in-
terpretar que a monotongação não aparenta ter traços de es-
tigma social, justamente por apresentar certa uniformidade de
ocorrência nos dois níveis de escolaridade investigados.
A pouca relevância da variável contexto fonológico seguinte
pode ser um indício de que não existem contextos bloqueado-
res da monotongação. Os resultados após a amálgama, apre-
sentados na Tabela 2, indicam que, dos 925 dados do ditongo
[ow] em contexto de consoante ou pausa, somente 33 (3,6%)
não monotongaram, e os dados em contexto de vogal indicam
que, dos 273 dados levantados, somente 1 (0,4%) dado não
monotongou (Tabela 2). Os resultados de Oliveira (2021), pes-
quisa realizada na variedade de Manaus, indicaram essa variável
como a mais condicionante, principalmente em contexto de
vogais (PR 0.89) e indicam que não há contextos bloqueadores
da ocorrência, visto que, dos fatores analisados por ela (vogais,
oclusivas, nasais, pausa, tepe, fricativa e outras consoantes), so-
mente o fator outras consoantes se mostrou desfavorável, ao
resultar em um peso relativo de 0.25.

Tabela 2 – Variável contexto seguinte após


125
amálgama
Ocorrências com Ocorrências
aplicação gerais Porcentagens

Consoantes+pau-
sa 892 925 96,4%

Vogal 272 273 99,6%


Total 1.164 1.198 97,2%
Fonte: Elaboração própria

Com relação à tonicidade da sílaba, Amaral (2005), que es-


tudou o fenômeno na variedade da região Sul do Brasil, afirma
que, por conta de as sílabas tônicas demandarem mais esforço
expiratório, espera-se que a monotongação ocorra em maior
quantidade nas sílabas átonas, conforme indicam os resultados
da autora. Todavia, os dados desta pesquisa não demonstra-
ram a variável tonicidade como relevante para o processo, isso
pode ser explicado pela discrepância da quantidade de dados
de ocorrência geral entre os dois fatores (1.148 dados para síla-
bas tônicas e 50 dados para sílabas pretônicas), essa diferença
pode ser percebida olhando para os dados que mostram uma
quantidade massiva de verbos conjugados na 3a pessoa do sin-
gular do modo indicativo, que apresenta a desinência -ou como
tônica.
Já classe de verbos e não-verbos pode ter sido descartada
por conta de ambos os fatores obterem uma porcentagem de
aplicações do processo aproximadas, sendo 92,7% e 98,9%,
respectivamente. Silveira (2019), em seus resultados, aponta
um alto índice de monotongação de advérbios (pouco), prono-
mes (outros) e verbos (trouxe).
Finalmente, em relação às variáveis indicadas pelo programa
estatístico como significativas, há, da mais relevante para a me-
126
nos relevante, a variável linguística localização morfológica e a
variável social faixa etária.
A Tabela 3 indica os resultados relativos à localização morfo-
lógica. De 839 dados de ditongos localizados na posição sufixal,
834 obtiveram aplicação do fenômeno, equivalendo à porcen-
tagem de 99,4%, como em lig[o]. Com relação aos dados de
ditongo na posição de radical, 359 foram as ocorrências gerais
e 330 (91,9%) deles com aplicação, como em c[o]ro. Entre os
fatores sufixo e radical, o primeiro demonstra favorecer o pro-
cesso por apresentar um peso relativo de 0.689, enquanto o
último mostra-se desfavorecedor do processo (peso relativo
0.135).
Tabela 3 – Variável localização morfológica

Ocorrências O c o r - Peso
com aplicação rências Porcentagens relati-
gerais vo
Sufixo 834 839 99,4% 0.689
Radical 330 359 91,9% 0.135
Total 1.164 1.198 97,2% -
Input: 0,989 Significância:0,006
Fonte: Elaboração própria

Os resultados obtidos neste trabalho foram condizentes com


o de Silveira (2019), indicando similaridade nesse aspecto entre
a variedade da região sul com a variedade da região do inte-
rior de São Paulo. A autora obteve o fator sufixo verbal como
o mais relevante (PR 0.61) para a redução do ditongo, e como
possível explicação, defende que pode ser por conta da grande
quantidade de verbos com a desinência [ow] em seus dados.
Segundo a autora, o processo de apagamento é mais recorren-
127
te em verbos, porque a perda da desinência número-pessoal
/u/ em verbos conjugados na 3ª pessoa do singular do preté-
rito perfeito pode ser compensada por aspectos como acento,
fazendo com que o falante não tenha problemas em processar
essa ausência e não sinta a necessidade de manter a desinência
(SILVEIRA, 2019, p. 98). Porém, tal justificativa é amenizada na
variedade do interior paulista, pois como já mencionado, a vari-
ável classe gramatical foi descartada pelo programa estatístico.
Tabela 4 – Variável faixa etária

Ocorrências O c o r - Peso
com aplicação rências Porcentagens relati-
gerais vo
7 a 15 anos 307 317 96,8% 0.456
26 a 35 531 537 98,9% 0.658
anos
Mais de 55 326 344 94,8% 0.297
anos
Total 1.164 1.198 97,2% -
Input: 0,989 Significância: 0,006

Fonte: Elaboração própria

Assim como nos resultados da variedade da região sul obti-


dos por Amaral (2005), que identificou a faixa etária de 26 a 43
anos como um condicionante para a ocorrência da forma com
[w], os resultados desta pesquisa indicaram como favorecedora
a faixa etária de 26 a 35 anos. Dos 537 dados gerais coletados
desse fator, 531 monotongaram, correspondendo a uma por-
centagem de 98,9%.
Olhando para as outras faixas etárias, também se observam
porcentagens elevadas: 96,8% para a faixa etária de 7 a 15 anos
128
e 94,8% para a faixa etária relativa a mais de 55 anos. Porém,
destacam-se os pesos relativos, que apresentam valores bem
distintos entre os diferentes fatores. Para o primeiro grupo de
idade, foi obtido um peso relativo de 0.456, indicando certa
neutralidade para a aplicação da regra, já os mais idosos ob-
tiveram um peso relativo de 0.297, valor baixo indicativo de
que são desfavorecedores do fenômeno. A faixa etária que se
mostra favorecedora nos resultados é a de 26 a 35 anos, com
um peso relativo de 0.658. O gráfico a seguir ilustra a curva do
comportamento dos falantes em relação a essa variação de
acordo com a idade:
peso relativo

Fonte: Elaboração própria

-
ta estar estabilizada justamente por conta da faixa etária
intermediária se
da monotongação, pois, conforme Dallemole, Osório e Pa-

129
-
guístico de um falante é referente ao período em que este
de aquisição da linguagem e tende a
-

-
notongação, por se referir ao que era anteriormente a faixa
etária intermediária.
Ao todo, foi possível identificar que o fenômeno em geral
tem alta porcentagem de ocorrência, assim em conformidade
com pesquisas em outras variedades do PB, indicando que a
monotongação de [ow] é um processo recorrente e consolida-
do no PB. Apenas a variável linguística localização morfológica
indicou influenciar nos dados de monotongação. Quanto às
variáveis extralinguísticas, a faixa etária obteve maior relevân-
cia, dando indícios de se tratar de um caso de variação estável.
Tanto a variável sexo/gênero quanto a escolaridade indicaram
que o fenômeno não apresenta indícios de estigma social, pois
o comportamento dos falantes em relação a tais variáveis com
a monotongação mostra-se relativamente semelhante no que
tange à sua realização.

Esta pesquisa buscou analisar o fenômeno da monotonga-


ção do ditongo oral decrescente [ow] na variedade da região
de São José do Rio Preto, com o objetivo de identificar os moti-
vadores linguísticos e extralinguísticos para a aplicação do pro-
130
cesso, assim contribuindo para a descrição do PB. Para tanto,
foi feito um levantamento do processo variável investigado em
outras variedades do PB, como Silveira (2019) e Amaral (2019)
com estudos na região sul do Brasil e também Toledo (2011)
para especificamente Porto Alegre, Oliveira (2021) acerca do
falar manaura e Freitas (2017) sobre a região de Uberaba, em
Minas Gerais. Os resultados de tais pesquisas demonstraram
maior influência das variáveis linguísticas para a aplicação do
processo. Outro ponto em comum foi o valor alto das porcen-
tagens equivalentes à forma monotongada, assim como obser-
vado também nos resultados deste trabalho, indicando que é
um fenômeno consolidado no PB.
Os resultados deste estudo indicaram que as variáveis locali-
zação morfológica e faixa etária são motivadoras para o apaga-
mento do glide no ditongo. A faixa etária que o favorece é a de
26 a 35 anos, a qual pode indicar que o processo investigado se
encontre em variação estável. A localização morfológica indica
que a localização do ditongo na posição de sufixo é favorece-
dora da aplicação do fenômeno.
Com relação às outras variáveis extralinguísticas sexo/gê-
nero e escolaridade, os resultados mostram que o fenômeno
não aparenta apresentar traços de estigma social. Homens e
mulheres indicaram possuir um comportamento similar em
relação ao uso da forma monotongada. Entre os dois fatores
investigados da variável escolaridade, foi possível notar certa
similaridade, pois ambos apresentaram índices próximos de
aplicação do fenômeno, sendo um possível indicador de que
essa variação no interior paulista não é desprestigiada ou estig-
matizada socialmente.
A monotongação do ditongo [ow] parece estar implementa-
da no PB justamente por ter um número de ocorrências eleva-
do nas variedades analisadas. Um fator que pode indicar essa
131
implementação é o contexto fonológico seguinte, uma vez que
nenhum dos contextos parece inviabilizar a monotongação.
Com relação à hipótese inicial de que os fatores linguísticos
seriam mais condicionantes em detrimento dos fatores sociais,
ela pode ser parcialmente confirmada, pois das quatro variá-
veis linguísticas investigadas, apenas localização morfológica se
mostrou significativa para o fenômeno, e, ademais, o programa
indicou uma variável extralinguística motivadora para o apaga-
mento do glide, a faixa etária de 26 a 35 anos.
Espera-se que este trabalho seja útil para pesquisas de des-
crição do PB, ao fazer uma análise do contexto linguístico e so-
cial de um fenômeno fonológico na variedade do interior pau-
lista, trazendo resultados que buscam preencher uma lacuna
nos estudos sobre essa variedade linguística.

132
ABAURRE, Maria Bernadete. Monotongações e Ditongações. In: CAS-
TILHO, Ataliba T. (Coord.). História do Português Brasileiro: mudança
fônica do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2019, p. 78-107.
AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: Parábola, 2020
[1920].
AMARAL, Marisa Porto do. Ditongos variáveis no sul do Brasil. Entre
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135
A estrutura de posse nos sintagmas nominais em
Kaingang: uma descrição analítica em relação
ao português brasileiro

Franciele Souza Cordeiro


Marcos B. Carreira

1 Introdução
Este trabalho busca investigar, a sintaxe do Kaingang, quanto
às estratégias de indicação de posse nos sintagmas nominais
(NP), seja por meio de itens como pronomes possessivos ou
por meio da justaposição ou anteposição em estruturas NP-NP
(ou DP-DP). Apesar de já haver alguns trabalhos que investi-
gam a sintaxe dessa língua, o diferencial se encontra no quadro
teórico, baseado na Gramática Gerativo - Transformacional de
Noam Chomsky, conforme Chomsky (1965, 1986, 1995, entre
outros).
Para isso foi necessário primeiramente revisar os pressupos-
tos teóricos e metodológicos da Gramática Gerativa, com o
objetivo de apresentar resumidamente o quadro teórico deste
trabalho; revisar também os estudos linguísticos sobre as lín-
guas indígenas no Brasil; compreender e revisar as descrições
sobre o sintagma nominal (NP) ou sobre o sintagma deter-
minante (DP). Coletar dados de uso linguísticos em Kaingang
presentes na literatura sobre a língua, que envolvam NP posse;
e, por fim, a partir desses dados coletados, classificar, glosar e
analisar, com vista a construir generalizações hipóteses sobre o
funcionamento da gramática da língua em estudo.
Como já mencionado o quadro teórico será baseado na Gra-
mática Gerativo-Transformacional de Noam Chomsky, confor-
me Chomsky (1965, 1986, 1995, entre outros), que compreen-
136
de que a linguagem é uma competência linguística, que tem
nesse sentido uma realidade mental e que se trata, ao menos
em parte, de uma propriedade biológica da espécie humana.
A metodologia de pesquisa é fortemente implicada por essa
visão de linguagem, de modo que a coleta de dados deve levar
em conta esse quadro.
A coleta de dados foi feita a partir de trabalhos bibliográficos,
que apresentassem exemplos da língua Kaingang que envol-
vam NP posse, de diferentes abordagens teóricas da gramáti-
ca, como Abreu (2009), Domingues (2013) e Navarro (2012). A
partir disso, organizamos esses dados e os analisamos de modo
a compreender o funcionamento do aspecto gramatical objeto
deste trabalho. Assim, trata-se de uma pesquisa de coleta de
dados, mas que é essencialmente bibliográfica.
A partir da nossa pesquisa, criamos um banco de dados com
mais de 100 exemplos da língua (parte deles reproduzido no
corpo deste trabalho), fizemos um recorte de acordo com os
objetivos elencados, separamos esses SN que continham es-
trutura de posse em duas seções: em posição de sujeito e em
posição de objeto nas orações (as glosas apresentadas foram
retiradas dos autores consultados). Para uma aproximação
maior e uma forma de comparação para a análise sintática, usa-
mos exemplos do português brasileiro.
Esses dados podem constituir contribuição importante para
a compreensão da língua Kaingang, na medida em que bus-
camos construir generalizações e embasar hipóteses sobre o
funcionamento da gramática dessa língua. Além da contribui-
ção que pode também trazer as comunidades, da valorização e
preservação da língua.
O artigo se organiza da seguinte maneira. Primeiramente,
apresentamos uma contextualização breve sobre a língua Kain-
gang e seu povo. Depois, evidenciamos o quadro teórico que
137
esse trabalho está inserido, a importância de investigações em
Gramática Gerativa e questões em torno do DP e sua estrutura.
Na sequência, abordamos o conceito de posse, seus diferentes
tipos, e a estrutura de posse no Português Brasileiro. Por fim,
será realizada a análise dos dados que envolvam NP posse em
Kaingang, tendo em vista também a estrutura de posse do PB.

2 O povo e a Língua Kaingang


O Brasil é um país rico pela diversidade linguística. Segundo
o Censo de 20101 do IBGE, são faladas 274 línguas indígenas
no Brasil. O Kaingang (também denominado: Caingangue, Ka-
nhgág) é uma dessas riquezas de nossa diversidade linguística,
identitária e também cultural.
As línguas do mundo são classificadas em famílias de acordo
com o critério genético, segundo Rodrigues (1999), Kaingang
faz parte da família Jê, do tronco Macro Jê, juntamente com o
Xokleng integram o ramo Jê Meridionais. Segundo consta no
site Portal Kaingang: “Sozinhos, os Kaingang correspondem a
quase 50% de toda população dos povos de língua Jê, sendo
um dos cinco povos indígenas mais populosos no Brasil”.
Trata-se, ainda segundo Rodrigues (1986 apud NASCIMEN-
TO, 1995), da língua deste tronco com maior número de fa-
lantes. Para Navarro (2012), a língua conta com 25 a 30 mil
falantes. Não temos clareza destes números, dado que o site
Instituto Socioambiental registra 45.620 pessoas, distribuídas
entre os estados de PR, RS, SC e SP, em diversas comunidades.
Como os falantes estão dispersos, a língua tem variações de
acordo com a região, (assim como ocorre em qualquer língua,

1
<<

138
inclusive no português), essas diferenças podem ser encontra-
das somente na pronúncia ou também em algumas palavras.
Nem todos os membros das diferentes comunidades são fa-
lantes de Kaingang, mas ainda de acordo com o Instituto So-
cioambiental2, há um crescimento na valorização de sua língua
materna:
Mesmo com essas variações percebe-se que os Kaingang, em geral,
passaram a valorizar o uso da língua materna como um elemento im-
portante, politicamente, para afirmar a legitimidade de suas lutas pela
terra. (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2021).

Podemos perceber a importância que a língua materna tem


para as comunidades indígenas Kaingang, seja na afirmação de
sua identidade, seja na valorização de sua língua e de sua cul-
tura.
Em relação aos aspectos gerais da língua Kaingang, segundo
D’Angelis (2006), pode-se observar algumas regras quanto a
estrutura sintática, sendo elas: as formas verbais não se alteram
nas frases, independente do sujeito; o objeto direto sempre
deve estar colocado logo antes do verbo; já o objeto indireto
é posicionado em lugares diferentes da oração, e acompanha-
do da posposição m ; há marcadores de aspectos posicionados
no final da oração, sendo eles: t , n . E, por fim, apesar de não
ser o assunto central desse trabalho, é importante ressaltar que
semanticamente o Kaingang é uma língua muito rica. Como
exemplo desse aspecto, podemos observar a citação abaixo:
Se for um objeto comprido, usa: vyn. Se for objeto comprido, carregado
no ombro: va. Se for objeto curto ou redondo. Se for coisa comprida
carregada em pé: tug. Assim, se for dizer que carrega ou vai carregar le-
nha, vai usar o verbo vyn. Para carregar uma foice, usa wa. Para um livro
ou uma panela, usa mba. E para carregar uma criança nas costas, usa tug
(D’ANGELIS, 2006).

2 -
ambiental.org
139
O autor argumenta que o verbo ‘carregar’ (ou a ideia de car-
regar), em Kaingang, precisa escolher entre vários verbos di-
ferentes, dependendo do tipo de coisa ou objeto a que vai se
referir.

3 Investigação em gramática gerativa e a


estrutura do DP
O Kaingang é uma língua que já foi objeto de diferentes estu-
dos descritivos de diferentes componentes da gramática, inclu-
sive da sintaxe que é nosso foco de interesse. No entanto, uma
investigação considerando as hipóteses teóricas da Gramática
Gerativa é ainda bastante rara e bastante ausente, ainda mais
estudos que envolvam o DP em Kaingang.
Já que o diferencial deste trabalho está presente no quadro
teórico, baseado na Gramática Gerativa, é importante primeira-
mente abordar como a linguagem é compreendida nessa teoria
e ressaltar a importância das investigações nessa área:

A Teoria Gerativa trata a capacidade para a linguagem como uma ca-


racterística dos seres humanos, parte integrante de sua biologia. Essa
capacidade de desenvolver língua se deve à existência de uma Facul-
dade da Linguagem, um componente da mente/cérebro dedicado
exclusivamente à linguagem (Chomsky 1986, 1998). Essa faculdade é
ainda caracterizada como sendo “restrita à espécie humana e comum
aos membros da espécie” (Chomsky 1988, p. 35). (Lunguinho; Resenes;
Negrão, 2012, p. 120).

Essa concepção de linguagem afeta o modo como vemos os


dados linguísticos nas pesquisas em sintaxe gerativa:
A adoção de uma perspectiva biolinguística,’ ou seja, a assumpção de
que a linguagem é parte da genética humana, acarreta a reintrodução,
nos estudos Iinguísticos da busca de propriedades universais: apesar de
haver inúmeras línguas no mundo, superficialmente diferentes entre si,
todas elas devem ser, em um nível mais profundo de análise, bastante
aparentadas, pois surgiram a partir da mesma base biológica. Dito de
140
outra maneira, apesar das diferenças constatadas observacionalmente,
todas as línguas humanas, por hipótese, devem partilhar propriedades
comuns. Além disso, devido ao fato de o locus da linguagem ser a men-
te humana, estamos lidando com uma perspectiva internalista: a lin-
guagem está centrada na mente e não fora dela.’ (Lunguinho; Resenes;
Negrão, 2012, p. 121).

Na perspectiva gerativista, uma sentença é composta por


três camadas sintáticas básicas, como a seguir:

gerativista

Fonte: Lunguinho; Resenes; Negrão, 2012, p. 152.

Com o tempo, novas e diferentes concepções em relação ao


estudo de sintagmas nominais foram surgindo, neste trabalho
destacamos principalmente a hipótese DP de Abney (1987), re-
sumida abaixo por Sedrins (2004):
“Esse autor sugere que a categoria funcional D (em português repre-
sentada pelos artigos, demonstrativos, etc.) subcategoriza o NP atuando
sobre ele, construindo sua referencialidade e conferindo-lhe estatuto
de argumento” (SEDRINS, 2004, p. 17).

Dessa maneira, a representação configuracional dessa hipó-


tese, em esquema X-barra é a seguinte:
141
DP Abney (1987)

Fonte: SEDRINS, 2004, p. 18.

Podemos observar que o determinante é o núcleo da cate-


goria funcional (D) que seleciona o NP como complemento,
tendo como núcleo o N (nominal, substantivo). Fica a questão
de como colocar a posse na representação acima, no entanto,
como este é um trabalho inicial, não vamos lidar diretamente
com essa questão. De todo modo, pode se imaginar, a partir do
português que a categoria de posse deva estar entre o D e o N
(à esquerda de N). Porém, conforme Prim e Carreira (2022), no
Kaingang, o possessivo inicia o sintagma nominal e, no final à
direita, o demonstrativo e o número encerram o sintagma (al-
guns autores consideram ‘ti’ uma forma do D singular/masculi-
no), como podemos observar em um dos exemplos citados no
texto:

Desse modo, isso implica em questionar também a validade


da árvore acima para o DP em Kaingang.

142
4 Conceito/tipos de posse e a estrutura de posse
no PB
Segundo Freitas e Facundes (2018, p. 21) se pode entender
como posse “De modo geral, [...] como uma ‘relação’ envol-
vendo, necessariamente, um possuidor a quem pertenceria
um dado item possuído”. Porém, há diversos tipos de posses,
maneiras que essa relação entre o possuidor e o item possuído
ocorre. Entre elas estão a posse alienável e a posse inalienável.
A posse alienável ocorre quando a relação entre o possuidor
e o possuído não é inseparável, não é algo intrínseco. Segundo
Freitas e Facundes (2018) “Embora essa relação de posse seja
vista como relativamente estável temporalmente, esta, proto-
tipicamente, continua a existir apenas enquanto o possuidor
escolhe mantê-la, tendo, portanto, controle sobre a relação”,
como exemplo temos a sentença Paulo tem um carro. Neste
caso, o carro é uma parte independente do sujeito, não faz par-
te dele.
Já a posse inalienável segundo Guerón (1985):
É uma interpretação associada a certas estruturas contendo dois cons-
tituintes nominais, um dos quais denota uma parte do corpo enquanto
o outro denota um ser humano interpretado como o possuidor da parte
do corpo (o POSS DP). Proporemos que a mesma configuração sintá-
tica está subjacente tanto à posse “inalienável” quanto à “alienável”. A
diferença entre os dois reduz-se ao valor de um único traço formal das
determinações do nominal “possuído” (TRADUÇÃO NOSSA).

Quando ocorre a posse inalienável, não há propriamente


uma estrutura de posse típica (por não possuir um possessivo).
O item possuído é uma parte intrínseca do NP possuidor, ele
não tem controle sobre o mesmo, não há como teoricamente
se desvencilhar de uma parte do seu corpo ou de um mem-
bro da sua família, por exemplo, é uma parte dependente. Ou
seja, as diferenças entre posse alienável e inalienável são que:
143
“[...] a posse alienável exige um possuidor que faça a aquisição,
enquanto a posse inalienável é inerente, posse íntima que não
precisa ser adquirida” (ALEXIADOU, 2003, p.168, TRADUÇÃO
NOSSA).
Observando o sintagma nominal do português brasileiro
podemos perceber que ocorre tanto posses alienáveis, como
o exemplo “Paulo tem um carro”, quanto inalienáveis, (estrutu-
ras de posse que não envolvem precisamente um possessivo),
como: “Machuquei o braço”, “Quebrei o pé”, “O pai chegou”.
Em relação à estrutura dos possessivos no português brasilei-
ro, segundo Siqueira (2021) podem ocorrer em: a) posição pré-
-nominal, como em (3); b) em posição pós-nominal, como em
(4); c) suprimindo um nome já estabelecido no discurso, como
em (5); e d) em contextos predicativos, como em (6).
(3) Meu livro.
(4) Um livro meu.
(5) Teu livro e o meu (livro).
(6) Este é o meu livro/Esse livro é o meu (livro).
Tendo em vista todas essas características elencadas acima
sobre a posse no PB, analisamos a seguir como a estrutura de
posse ocorre na língua Kaingang.
5 Dados estrutura de posse no Kaingang

Os dados que utilizamos neste trabalho de Abreu (2009),


Domingues (2013) e Navarro (2012), foram coletados na terra
indígena Apucaraninha, no norte do Paraná. Abaixo listamos
esses dados que coletamos, separados por tipo de posse e por
função sintática.

144
1° p.poss.sg: inh

Inh pode atuar como pronome pessoal ou pronome posses-


sivo, dependendo da posição que ocupa na sentença, como
nos exemplos:

Em (1), inh ocorre na função de sujeito, sendo o pronome


pessoal, eu; Em (2), observe que há duas ocorrências da forma
inh. Na primeira ocorrência, inh é pré-nominal (vem antes do
nominal n - mãe) e se trata do possessivo minha; por sua vez a
outra é pronome pessoal eu.
Entenderemos um pouco mais da estrutura dos possessivos
nos dados abaixo:
Posição de sujeito

145
inh é usado para plural3 Neste trabalho não nos atemos

marcação de plural no Kaingang. como na sentença (3),


para masculino (4) meu prato e feminino (2) minha mãe. No

O que motiva a forma de 1º pessoa do singular, (6),


não foi esclarecido neste estudo, levando em consideração que
há poucos dados dessa ocorrência. Portanto, não há evidências
significativas para propor possíveis hipóteses.
Como mencionado, os pronomes possessivos também po-
dem ser encontrados em sentenças como pronomes pessoais,
como no exemplo (7) em que ã é utilizado como o pronome
pessoal você.
2° p.poss.sg: ã

Por sua vez, nos exemplos em (8), (9) e (10), a mesma forma ã
aparece em posição pré-nominal, como um possessivo:
Posição de sujeito

Posição de sujeito

3 Neste trabalho não nos atemos às explicações mais aprofundadas sobre o meca-
nismo de marcação de plural no Kaingang.
146
Posição de objeto

Assim, nos dados acima, ã (seu, sua, em português) é o pro-


nome possessivo de 2° pessoa do singular. Seu posicionamen-
to também é antes do nominal, núcleo do SN sujeito como em
(8, 9) e do SN objeto (10). Não há diferenças em sentenças
masculinas (8, seu), plural (9, seus) e femininas (10, sua). Ou
seja, ã é usado para sentenças femininas, masculinas, e plural,
sem distinção entre essas formas.
3° p.poss.sg: ti fi
A seguir, vamos observar os dados de ti e fi, se comportando
como pronomes pessoais:
Pronome na posição de sujeito

Pronome na posição do sujeito

Observamos que ti é o pronome ele (11) e fi ela (12). Um exem-


plo de sentença que apresenta ambos pronomes, ele e ela, seria
a seguinte:
Pronome na posição de objeto

Agora observemos os dados de possessivos com as formas


ti e fi:

147
Posição de objeto

Posição de sujeito

O pronome possessivo da 3° p. do singular ocorre antes do


SN objeto (14) e do SN sujeito (15). Porém, há uma diferença
em relação aos outros dados já mencionados: esse possessivo
possui distinção entre a forma feminina e masculina – ti é usado
para dele (14) e fi para dela (15).
Quando ocorre em uma única frase, os dois modos (prono-
me e possessivo), na estrutura dessa sentença, o possessivo é
anterior ao pronome, como no exemplo (16).
Além disso, fi também é usado em sentenças como marca-
dor de feminino, como nos exemplos abaixo:

E ainda podemos retornar ao exemplo (2):

1° p.poss.pl.: g
Em (18) e (19), g aparece como pronome pessoal nós.
Pronome em posição de sujeito

148
Pronome posição de objeto

Já em relação a ocorrência do pronome possessivo da 1° pes-


soa do plural, não há variação entre sentenças no masculino
e plural (e provavelmente no feminino, apesar de não termos
os dados), isto é, g é usado para as três maneiras (20, 21, 22).
Também se posiciona antes do núcleo SN sujeito (20, 21) e
antes do núcleo SN objeto (22).
Posição de sujeito

Posição de sujeito

Posição de objeto

2° p. poss. pl.: ãjag

No dado (23), ãjag aparece como pronome vocês, eviden-


ciando mais uma vez que essas formas também atuam como
pronomes. Aliás, atuam como pronomes pessoais, possessivos
e marcadores de gênero (no caso da terceira pessoa):
Posição de Sujeito

149
Posição de Objeto

Ãjag - de vocês, é o pronome possessivo da 2° pessoa do


plural, como o restante ele também se posiciona antes do SN
sujeito (24) e do SN objeto (25).
3° p.poss.pl: ag fag
Primeiramente ag pode ser o pronome pessoal da 3° pessoa
do plural eles:
Posição de Sujeito

E fag o pronome pessoal elas:


Posição de Objeto

O pronome possessivo da 3° pessoa do plural também apa-


rece antes do núcleo SN sujeito (28) e do núcleo SN objeto (29),
mas possui diferenças de acordo com o gênero, ag é usado para
masculino (28, deles) e fag para feminino (29, delas).
Posição de Sujeito

Posição de Objeto

Ademais, ag também funciona como marcador de plural:

150
No exemplo (30) fica evidente que ag pode atuar como mar-
cador de plural, aparecendo após as palavras sua e rede, in-
dicando assim o plural, o mesmo ocorre no exemplo (31), ag
acompanha posteriormente as palavras caçador e onça, trans-
formando em caçador(es) e onça(s).
A partir dos dados analisados, é possível perceber que ocorre
distinção de gênero somente terceiras pessoas. Na 3ª pessoa
do singular, ti e fi: ti é usado para masculino e fi para feminino; e
na 3ª pessoa do plural, ag e fag: ag é masculino e fag feminino.
As outras formas pronominais são usadas tanto em sentenças
que contém masculinos ou femininos, singular ou plural, indis-
tintamente.

Abaixo temos outro tipo de estrutura, que chamamos aqui de


estrutura DP-DP, ou como NPs justapostos, como nos exemplos
abaixo:
Posse DP-DP:

No dado (32), podemos perceber que o nome do possuidor


“Jandira” antecede o objeto possuído “martelo”, ou seja, tanto o
nome como seu respectivo pronome antecedem o objeto pos-

151
suído. O mesmo ocorre no dado (33), o possuidor “Kaingang”
antecede o objeto possuído “casa”.
Posses não pronominais: oracional
Temos ainda outro tipo de estrutura de posse observada, que
é externa ao DP ao sintagma nominal, e se dá no nível oracio-
nal, como no exemplo abaixo:

Em (34), observamos que a posse é estabelecida por um ver-


bo, em uma estrutura diferente da que vimos, dado que o pro-
nome possessivo i se encontra fora do sintagma nominal,
numa relação que parece mediada pela forma verbal nï.
Posses inalienável
Há ocorrências de posse inalienável no Kaingang, como graus
de parentesco (35, 36) e partes do corpo (37).

Podemos perceber nos dados acima, que a configuração sin-


tática de posse inalienável, aparentemente continua seguindo
a mesma regra, sendo pré-nominal. Porém, não encontramos
dados com estrutura de posse inalienável sem o uso de posses-
sivos, como ocorre em português, como nos exemplos citados
anteriormente “quebrei o pé”, “machuquei o braço”.

152
Nos dados observados acima, no PB, poderíamos encontrar
sentenças como “Eu fui pra casa da mãe”, “o pai chegou ontem”,
que envolvem posse sem que haja necessariamente possessi-
vos, sentenças que não foram encontradas em Kaingang nos
trabalhos a que tivemos acesso. Então acreditamos, por hipó-
tese, que o Kaingang expressa a posse inalienável também por
meio da marcação do pronome possessivo pré-nominal, como
nos casos que vimos acima. Assim, parece não estar disponível
o recurso de expressar posse sem o pronome possessivo nes-
tes casos.
Desse modo o Kaingang se difere de outras línguas in-
dígenas da família Jê, no que diz respeito à marcação de posse,
pois uma das principais características dessa família é o uso de
marcação de pronominal. Como contraste, por exemplo temos
a língua indígena Pykobjê, que, conforme Domingues (2013)
realiza a posse por meio de uma prefixo relacional (portanto,
no nível da morfologia), conforme exemplo abaixo:

Para cada um dos nomes há uma marcação, o uso de um


prefixo relacional próprio para isso. Dessa forma, a marcação
de posse pronominal (como o uso de um pronome no nível do
sintagma) é específica no Kaingang.
5.1 Olhando para os dados
Através dos dados selecionados e glosados neste artigo, foi
possível observar que os pronomes possessivos em Kaingang
são os mesmos usados como pronomes pessoais, sendo assim
a sua função será afirmada de acordo com a posição que ocu-
pam (sua distribuição) na sentença. São eles:

153
Possuído masculi- Possuído feminino
no
Pronome
Singular Plural Singular Plural
Referente pessoal
1° pessoa sin- Eu Inh Inh Inh
gular (meu) (meus) (minha) (minhas)
2° pessoa sin- Tu à à à Ã
gular (seu) (seus) (sua) (suas)
3° pessoa sin- Ele/ela Ti Fi
gular (dele) (dela)
1° pessoa plural Nós
(nosso) (nossos) (nossa) (nossas)
2° pessoa plural Vocês Ãjag Ãjag Ãjag Ãjag
(de vo- (de vo- (de vocês) (de vo-
cês) cês) cês)
3° pessoa plural Eles/elas Ag Fag
(deles) (delas)
Fonte: Adaptado de ABREU, 2009.

É possível perceber que ocorre distinção de gênero somente


em terceiras pessoas. Na 3ª pessoa do singular, ti e fi: ti é usado
para masculino e fi para feminino; e na 3ª pessoa do plural, ag e
fag: ag é masculino e fag feminino. As outras formas pronomi-
nais são usadas tanto em sentenças que contém masculinos ou
femininos, singular ou plural, indistintamente, sendo a forma
plural acompanhada com o marcador de plural ag.
Em contrapartida, no português brasileiro ocorre variação de
gênero e de número em todas as pessoas (não somente na ter-
ceira pessoa do plural como em Kaingang). No entanto, há uma
semelhança em relação à ocorrência de “de vocês”, uma forma
vista também em possessivos preposicionados do PB.
154
Com relação à estrutura de posse, notou-se que, apa-
rentemente, os possessivos possuem uma estrutura bem regu-
lar, que segue as mesmas regras e ordens: se comportam como
prenominais, antepostos ao nome, que podem aparecer em
posição (sintagmas em função) de objeto e/ou de sujeito.
Considerando a estrutura de posse do PB, não observamos
neste estudo nenhum dado do Kaingang no qual aparecesse
possessivos em posição pós-nominal, exemplo “Um livro meu”,
mas há várias ocorrências em posição pré - nominal, como em
“Meu livro”.

Diante da pesquisa realizada e da observação dos dados, foi


possível criar algumas hipóteses sobre a estrutura de posse no
Kaingang, mas por ser uma língua que com poucas pesquisas
a partir da teoria da Gramática Gerativa, restam ainda muitas
dúvidas e lacunas. Nosso corpus, apesar de termos coletado
alguns dados a partir da literatura, ainda é bastante limitado,
uma vez que não colhemos sentenças agramaticais (ou não
sentenças) que seriam fundamentais para entender melhor a
estrutura da língua. Além disso, como citado acima, a estrutura
de posse se comporta aparentemente de maneira regular.
Alguns fenômenos linguísticos não apareceram, mas isso
não significa que eles não existam na língua Kaingang. Esses
fenômenos podem apenas não ter sido mapeados ainda, em
sentenças diferentes.
Não conseguimos localizar nos dados a que tivemos acesso
se existe alguma implicação sintática em relações de posse
inalienável. Acreditamos, por hipótese, dado à natureza
bastante regular da sintaxe de posse em Kaingang, que a posse
inalienável não implique diferenças sintáticas. No entanto, essa
questão ainda demanda mais investigação.
155
Novas pesquisas precisam ser feitas para se compreender
melhor a estrutura de posse no Kaingang. Um exemplo seria
em relação a forma da primeira pessoa do singular Is , que le-
vantou questões como: Qual seria o critério para usar Inh ou Is
em uma determinada sentença? Qual a diferença entre elas?

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158
O verbo jantar: entendendo a construção
polissêmica

Anthony Felipe Galvão Soares


Marina Chiara Legroski

Introdução
A utilização de palavras específicas em contextos e estrutu-
ras que não são usuais não é algo particular do verbo jantar. Na
realidade, trata-se de um número extenso de verbos que per-
mitem tal aplicação. Neste trabalho, utilizamos a teoria cunha-
da por Lakoff & Johnson (1980) que postula que a forma que
os seres humanos pensam e se expressam verbalmente são
naturalmente metafóricas. Ou seja, buscaríamos explicar uma
coisa nos utilizando de propriedades que são de outra. Enten-
deremos melhor a relação desse pensamento com nossa abor-
dagem adiante porque pensamos ser necessário, a princípio,
descrever como esse fenômeno é visto em um verbo especí-
fico, podendo, assim, identificar um padrão individual. Portan-
to, objetivamos entender a estrutura que o verbo jantar utiliza,
comparando a estrutura emergente (com seu significado não
usual) à estrutura comum, dicionarizada, bem como a relação
dessa estrutura com a distribuição de papéis temáticos ao lon-
go da sentença, identificando se, de alguma forma, essa relação
teria algo a nos dizer sobre sua construção.
Tivemos a ideia e o interesse em pesquisar tais ocorrências
a partir da visualização que muitos verbos que são utilizados, a
depender da monitoração ou não da fala, deslocam-se de seus
significados usuais, dicionarizados, a ponto de trazer ao ouvinte
e, porquê não, ao próprio falante, uma estética e perspectiva
nova de entendimento da ação e sua descrição. Dessa forma,
159
começamos a realizar as buscas de forma intuitiva a fim de ex-
plorarmos quais poderiam ser as possibilidades de pesquisa
nesse campo do significado e da sintaxe, visto que ambas pro-
priedades eram alteradas. Nesse momento, pensávamos em
ocorrências como queimar-se, jantar, cair, ver, etc. para um pos-
sível trabalho de investigação. Após o estreitamento das pes-
quisas e a busca por diferentes referências, nos saltou aos olhos
a investigação feita por De Matos (2006), na qual ela constrói
uma ligação entre a abordagem temática trabalhada por Can-
çado (2005) e o entendimento da construção da comunicação
ao redor de metáforas proposta por Lakoff & Johnson (1980).
Dessa forma, esses se tornaram trabalhos basilares no desen-
volvimento de nossa pesquisa.
Como De Matos (2006) já havia trabalhado com grande par-
te dos verbos que encontramos mediante pesquisas na inter-
net e redes sociais, buscando os usos dos falantes, resolvemos
adotar o trabalho de análise dos caminhos que levam o verbo
jantar a sua possibilidade de entendimento polissêmica. Ob-
viamente, sabemos que os verbos trabalhados por esta autora,
em sua maioria, possuem mais do que 3 entradas para signifi-
cado, sendo muito produtivos, diferente do que ocorre com o
verbo jantar, para o qual se encontra somente 1 ocorrência que
vai além da dicionarizada. O motivo da escolha de tal verbo foi
seu uso recorrente e fácil de ser identificado nas redes sociais,
o que nos dá a impressão de que se trata de um vocabulário de
utilização de um determinado grupo. Dessa forma, entender
como se estrutura e quais são os parâmetros e perspectivas lin-
guísticas que fazem com que os usos possam ser modificados
e emergirem de tal forma sempre é válido, podendo desvelar
situações que não haviam sido pensadas anteriormente.
Assim, primeiramente, entenderemos melhor cada um dos
trabalhos desenvolvidos e quais são os atos que podem nos au-
160
xiliar nessa descrição para que possamos verificar e nos dedicar
à explicação do verbo em destaque: jantar.

Os verbos polissêmicos e uma abordagem


possível
Em sua dissertação, De Matos (2006) abarca uma abrangen-
te descrição de 76 de verbos do português brasileiro (PB), iden-
tificando o processo de produção de polissemias em seus usos.
Inicia seu texto tratando sobre o que seria polissemia, vagueza
ou homonímia. Todas suas descrições de casos do tipo, entre-
tanto, se atentam a situações onde não se descrevem verbos.
Seguindo a proposta da autora, entenderemos que cada ver-
bo deve somente ter uma entrada lexical, fazendo com que
toda ocorrência que faça o verbo ter um significado diferen-
te do usual (canônico) seria um fator derivado da composicio-
nalidade. Para Cançado (2005), referência no trabalho de De
Matos (2006, p. 26), papéis temáticos seriam “um grupo de
propriedades atribuídas a um determinado argumento a partir
dos acarretamentos estabelecidos por toda a proposição em
que esse argumento encontra-se”. Ou seja, tais propriedades
de argumento seguiriam e seriam definidas com base na pro-
posição em que esse argumento se insere. Dessa forma, po-
deríamos ter, a partir da composição de uma sentença e suas
modificações específicas, uma nova propriedade estabelecida
para o argumento em questão. Com isso, De Matos (2006) afir-
ma que, tratando com um rigor maior e com uma abordagem
mais intuitiva, a proposta utilizada por Cançado (2005) seria
a mais sucinta na literatura até o momento, sendo a proposta
de papéis temáticos a que aborda o fenômeno de forma mais
direta. Isso pode ser entendido a partir do exemplo utilizado
pela autora para verificarmos a forma como a composição al-
tera aquilo que analisamos como propriedade do argumento:
161
i. João machucou o irmão.
Com essa sentença, seguindo a explicação de De Matos
(2006), temos a noção de que o verbo em destaque neces-
sita de um agente e de um paciente para que seja concretiza-
da a ação. Entretanto, não podemos entender de forma clara
a agentividade do sujeito João na ação descrita, uma vez que a
ação pode não ter sido intencional.
ii. João machucou o irmão com um tapa.

Olhando para o próximo exemplo utilizado em sua disserta-


ção, podemos entender que, através do que serão chamadas
de expressões predicadoras (aquelas que nos auxiliam a iden-
tificar de forma clara o papel semântico devido), podemos ca-
racterizar com firmeza a ação de João para machucar o irmão.
Assim, o papel temático atribuído a João deve ser entendido
como um conjunto de conceitos semânticos que fazem par-
te do verbo pelo acarretamento da proposição em jogo. Como
pontua a autora, devemos entender o acarretamento lexical
como A acarreta B; se A é verdade, B necessariamente é ver-
dade; o teste de acarretamento deve ser realizado da seguinte
forma, como explicitado por De Matos (2006): se é verdade
que João machucou o irmão com um tapa, então, é necessaria-
mente verdade que João:
• é um ser animado;
• foi o iniciador do processo de machucar o irmão;
• teve a intenção de machucar o irmão;
• tem controle sobre o processo de machucar o irmão.
Para que a lista de propriedades não seja enorme, como nos
explica a autora sobre a abordagem de Cançado (2005), é ne-
cessária a definição de quais propriedades são relevantes ou
não nesse levantamento e análise.

162
Para Cançado (2005), segundo De Matos (2006, p. 31), exis-
tem quatro propriedades semânticas utilizadas para o estabe-
lecimento das Regras de Projeção da semântica na sintaxe: 1)
ser desencadeador ou não do processo/ação, 2) ser afetado pela
ação/processo, 3) ser ou estar em determinado estado; 4) ter o
controle sobre o desencadeamento, sobre o processo ou sobre o
estado. Dessa forma, temos as propriedades: desencadeador,
afetado, estativo e controle. Para a autora, o desencadeador es-
taria relacionado às ações/causações; o afetado relacionado ao
processo; enquanto o estativo aos estados. O controle coexiste
com as três citadas, mas nunca ocorre em isolamento, sempre
associado a animacidade, conforme nos fala a autora em rela-
ção à abordagem cunhada por Cançado (2005).
O objetivo desta nova forma de verificar a relação dentro das
proposições seria não necessitar da utilização de várias entradas
lexicais para cada sentido novo utilizado para o mesmo item -
nesse caso, a autora nos apresenta aos diversos usos possíveis
do verbo “quebrar” (quebrar o vaso/quebrar a empresa/que-
brar a cabeça/etc.), bem como a não necessidade de utilização
de duplo papel temático para um mesmo argumento, visto que
seriam atribuídas duas propriedades para esses casos.
Sendo assim, tendo representado as ideias gerais para esse
tratamento com os verbos polissêmicos, seguimos para outro
ponto interessante no trabalho com verbos polissêmicos: a
possível explicação para sua existência.

A motivação para o uso polissêmico


A ideia geral do que seria metáfora, como podemos visualizar
em Lakoff & Johnson (1980, p. 15-16, tradução nossa), seria que
“A essência da metáfora é o entendimento e experienciação
de algo nas palavras de outro”. Dessa forma, a partir desse en-
tendimento basilar das construções metafóricas, conforme De
163
Matos (2006) afirma com apoio em Lakoff & Johnson (1980,
2002), o ato de ser alguém no espaço do mundo e nossas ex-
periências estarem em consonância com o que esse mundo
proporciona nos dá base para a formação de nossas categorias
mentais. Com esse entendimento de categorias mentais, nosso
sistema conceitual acompanharia o mesmo ideal.
Assim, as situações de polissemia indicam uma tendência à
categorização no sistema conceitual do indivíduo, que faz com
que palavras possam ser usadas em contextos diferentes por
participarem de um mesmo nicho de ideias, fato esse que seria
um contraponto à utilização de palavras aleatórias em contex-
tos diversos. Assim, De Matos (2006, p. 41) afirma que, para
os cognitivistas, “a metáfora é um processo cognitivo que dá
origem à polissemia, ou seja, no nível lexical, a metáfora é res-
ponsável por estender outros significados aos itens lexicais”.
Seguindo a mesma linha dos cognitivistas, segundo De
Matos (2006), as metáforas possuem as seguintes característi-
cas: convencionalidade, sistematicidade, assimetria e abstração.
Convencionalidade, a partir do exposto, seria a medida da no-
vidade da metáfora. De Matos (2006, p. 42), utiliza-se das se-
guintes frases para exemplificar o ocorrido:
iii. O presidente está escondendo o jogo.
iv. A geladeira ronca a noite toda.

Conforme nos expõe a autora, é claro que a sentença em iii


é mais conhecida de todos os falantes comparada à proposta
da sentença iv. Isso, para alguns autores, seria a prova de que
algumas expressões possíveis seriam cristalizadas, entretanto,
existem discordâncias no meio. Acerca da sistematicidade, se-
ria quando um conceito se torna uma associação para expli-
car outro, como acontece na metáfora trabalhada por Lakoff &
Johnson (1980), vida é um jogo de azar. Isso se dá, como aborda
também De Matos (2006), pela utilização de um conceito para
164
entender outro, tendo uma clara lógica sistêmica. Aqui, somen-
te apresentamos algumas frases que demonstram essa siste-
matização no trabalho de Lakoff & Johnson (1980, p. 60):
v. I’ll take my chances.
vi. The odds are against me.
vii. I’ve got an ace up my sleeve.
viii. He’s a real loser.

Falando da assimetria, essa seria a propriedade de que as


metáforas acompanham uma mesma direção, se a direção da
metáfora for alterada ou teremos um significado diferente ou
teremos uma situação que não é comum de ser utilizada. Po-
demos perceber na expressão abaixo utilizada como exemplo
por De Matos (2006, p. 43):
ix. Nosso vôo nasceu.

Aqui, temos totalmente ciência de que seria a metáfora


como a viagem é uma vida enquanto a comumente utilizada
seria a vida é uma viagem. Por fim, a abstração seria o fato de
utilizar verbos que descrevem uma situação física, mais palpá-
vel, concreta, para a descrição e identificação de uma situação
mais abstrata. Ou seja, é tratado de uma ocorrência física como
o jogo de azar para entender a ocorrência de algo mais abstrato,
em comparação, a vida. Assim, teríamos a metáfora utilizada
de a vida é um jogo de azar. Esse será um ponto interessan-
te para tratarmos de nossas ocorrências polissêmicas a serem
analisadas. Corroborando isso, Lakoff & Johnson (1980, p. 33)
embasam:
Just as the basic experiences of human spatial orientations give rise to
orientational metaphors, so our experiences with physical objects (es-
pecially our own bodies) provide the basis for an extraordinarily wide
variety of ontological metaphors, that is, ways of viewing events, activi-
ties, emotions, ideas, etc., as entities and substances.

165
Dessa forma, podemos entender que encontramos maior
produtividade polissêmica em verbos que produzem e descre-
vem ações que remetem a experiências físicas. Concluímos, a
partir disso, segundo De Matos (2006) sobre a construção cog-
nitivista, baseados em um esquema modelo que propõe uma
visão primeira do evento, que temos a produção/criação de no-
vos sentidos que acompanham uma linha de raciocínio lógico,
apoiado em um sistema conceitual coerente. Portanto, como
pontuam Lakoff & Johnson (1980, p. 121) em um refinamento
do entendimento exposto no começo desta seção:
First, we have suggested that there is directionality in metaphor, that is,
that we understand one concept in terms of another. Specifically, we
tend to structure the less concrete and inherently vaguer concepts (like
those for the emotions) in terms of more concrete concepts, which are
more clearly delineated in our experience.

Dessa forma, podemos entender tanto que o caminho cog-


nitivo do abstrato ao concreto não será possível, bem como o
caminho com partes menores do que o todo será difícil de ser
localizado. Nesse ponto, os autores referenciam o trabalho com
a metáfora argument is a building, onde somente a fundação se-
ria interessante para sustentação dessa imagem, uma vez que a
utilização de outras partes da construção (como os corredores,
espaços internos, etc.) não são produtivas na concretização de
seu uso.
A partir deste pensamento, voltaremos o olhar para os da-
dos a serem analisados em nosso trabalho, visando explicitar as
relações entre o que já foi estudado sobre esse campo e aqui-
lo que encontramos analisando o verbo jantar em seu sentido
canônico e seu sentido emergente a partir de sua composição
com os argumentos presentes na sentença.

166
Apresentando o verbo: jantar
Para nosso trabalho com as ocorrências do verbo jantar, bus-
camos coletar sentenças variadas onde pudéssemos explorar a
maior diversidade estrutural possível, que se fizesse relevante.
Assim, após verificarmos as realizações do verbo em algumas
redes sociais (Facebook, Twitter, etc.) e também no campo de
pesquisas do Google entre postagens em blogs, matérias e ou-
tras formas textuais disponíveis, compreendemos que a me-
lhor saída para focar nas construções realizadas por falantes
do PB seria a escolha pelas ocorrências encontradas no Twitter.
Tratando-se de uma rede social, ainda que não em sua totali-
dade, de linguagem escrita, poderíamos ser beneficiados por
uma análise que se ativesse à sentença, sem dar margem ao
contexto das proposições, mesmo que isso seja, em alguns ca-
sos, como iremos comentar mais a frente, fator importante na
compreensão global do que objetivava ser dito. Ainda que pre-
zemos pelo trabalho somente com sentenças realmente escri-
tas por usuários, algumas das ocorrências utilizadas não foram
possíveis de encontrar correspondência no mundo real, ou seja,
na rede social Twitter. Ainda que não tenham sido utilizadas, as
ocorrências em questão, a partir da nossa intuição de falante
nativo, não foram identificadas como agramaticais. Dessa for-
ma, quando necessário, trazemos à discussão esses casos.
Delineando as sentenças a serem utilizadas, pesquisamos
especificamente as construções nas quais julgamos mais clara
a utilização não canônica do verbo jantar, tais como:
(1) a. Você foi jantado, irmão.
b. Emicida jantando a Pugliesi não foi uma jantada fitness, não.
c. Jantei minha mãe agora.
d. O dia que a Shivani jantou uma mulher que tem 41M.
e. Jantaram a mente da menina mesmo.

167
Aqui, demonstramos de forma ilustrativa qual foi o pa-
drão utilizado para a coleta de sentenças que pretendemos.
Em (1a), temos a ocorrência do verbo estudado na voz passi-
va. Em (1b), possuímos a ocorrência em uma estrutura única,
tendo a sentença com o evento jantar com dois argumentos,
bem como a utilização de “jantada” como substantivo derivado
do verbo jantar. Iremos comentar sobre essa realização mais à
frente. Em (1c), (1d) e (1e), verificamos as ocorrências mais bási-
cas do verbo; respectivamente, temos uma realização na pri-
meira pessoa do singular, na segunda pessoa do singular e na
terceira pessoa do plural.
Notamos, durante nossa coleta, que não seria necessária uma
descrição minuciosa da ocorrência do verbo jantar em todas as
pessoas por dois motivos bem claros: primeiro, a falta de tem-
po hábil para uma pesquisa dessa natureza; segundo, por uma
escassez de utilizações reais e autênticas dessas estruturas.
Portanto, decidimos por seguir com as ocorrências com maior
uso por quem utiliza a língua cotidianamente, sem extrapolar
tais realizações, ainda que elas fossem, em certo ponto, possí-
veis e possam, de algum modo, tornarem-se objeto de estudo
para futuros trabalhos. A partir daqui, faremos uma subdivisão
daquilo estudado: abordaremos primeiramente a construção
feita a partir da análise proposta por uma linha de abordagem
dos papéis temáticos mais robusta e que é utilizada em larga
escala; após isso, continuaremos com a abordagem proposta
por De Matos (2006) para análise de verbos polissêmicos em-
basada nas considerações e na abordagem cunhada por Can-
çado (2005) para que possamos entender ambas análises.

168
O verbo jantar e os papéis temáticos
Consultando as leituras de Ilari e Basso, 2014; Mioto Silva e
Vasconcellos, 2007 e Negrão, Scher, 2003, buscamos anali-
sar as ocorrências encontradas no processo de coleta de dados
descrito, objetivando entender como se estruturam e como a
estrutura emergente do verbo se diferencia da utilização co-
mum do verbo jantar. Sendo assim, buscamos um paralelo
que apresenta um princípio de análise que pode ser entendida
como uma base para posteriores investidas científicas.
A partir de Ilari e Basso (2014), buscamos vislumbrar uma
maneira de compreender a organização das sentenças enca-
beçadas pelos verbos e como estes se relacionariam com seus
argumentos em casos específicos. Nossa proposta, como já
apontado, consiste em, basicamente, trabalhar com as possi-
bilidades de significado do verbo jantar. Além de ser um verbo
de uso cotidiano (fato que pensamos ajudar na sua diversidade
de modos de estruturação), é um verbo comumente utilizado e
passível de grande ocorrência nas redes sociais em seu sentido
emergente. A partir disso, tentamos explicar, com base na teo-
ria temática, tal realização e alteração de significados.
O verbo jantar possui, a princípio, dois significados que nos
saltam aos olhos: o primeiro, seu significado canônico, “alimen-
tar-se à noite”; o segundo, seu significado não usual, em ques-
tão neste trabalho, o de “refutar e/ou humilhar alguém”. Pon-
tuando isso, podemos ver como as estruturas se apresentam:
(2) a. Jantou a homofóbica.
b. Jantei risoto ontem e ia comer o que sobrou, mas minha mãe deu
o resto para a vizinha.

Observando a primeira ocorrência, (2a), é perceptível que o


significado comum do verbo jantar não se trata de uma reali-
zação possível de ser concebida, visto que [a homofóbica], em
169
linhas gerais, não pode ser entendida como algo que pode ser-
vir de “alimento à noite”. Seguindo o mesmo raciocínio, pon-
deramos que, em (2b), [risoto] não se trata de uma entidade
que pode ser “refutada e/ou humilhada”. Assim, notamos de
forma ilustrativa a noção de papel temático, bem como a ideia
de s-seleção, a qual seria selecionar com base semântica os ar-
gumentos da sentença. Antes de darmos nome aos papéis uti-
lizados nas sentenças realizadas de forma diferente, temos que
explicar essas estruturas.
Procurando identificar tais estruturas, poderíamos iniciar o
trabalho com as árvores sintáticas, porém, optamos pela des-
crição básica, já que as sentenças identificadas não possuem
estruturas longas. Pelo contrário, prestemos atenção na sen-
tença (2a): nessa, temos uma apresentação de sujeito ou argu-
mento externo em elipse, ou seja, omitido foneticamente, en-
tretanto, sua função sintática está presente e se mostra através
da flexão verbal presente em jantar. Dessa forma, tratando de
valência verbal, poderíamos considerar a ocorrência de jantar
em seu significado não usual como bivalente. Ou seja, um ver-
bo que necessita de dois argumentos, externo e interno, para
sua realização. É necessário “alguém que pratique a ação de
jantar” e “alguém que se torne a janta”, falando de outra forma.
Sendo assim, o significado de jantar, como vemos na senten-
ça (2a), não seria possível se houvesse uma modificação para
a ocorrência em (3a), abaixo, sem termos acesso ao contexto.
Portanto, como não objetivamos trabalhar com a possibilidade
do contexto afetar nossa análise, verificamos que as sentenças
em (3a) e (3b) seriam ocorrências do verbo jantar canônico. Ou
seja, temos o entendimento que, em grande parte das opor-
tunidades, a ocorrência canônica terá preferência à ocorrência
emergente. Entendendo o processo dessa forma, verificamos
que a realização de jantou teria a preferência para ser entendida
170
como “alimentou-se à noite”, não tendo interferências do con-
texto externo contrariando tal percepção. Alongando a discus-
são, podemos ter a ocorrência imperativa, (3c), a qual nos cla-
reia a ideia de que a s-seleção de [a homofóbica] dá à sentença
traços de um significado específico.
(3) a. Jantou.
b. Jante.
c. Jantou/Jante a homofóbica.

Com isso, concluímos, neste momento, que a estrutura bi-


valente do verbo jantar em seu significado não usual é uma re-
gra, ou seja, sua ocorrência não é verdadeira sem essa estrutura
prévia. Do mesmo modo, verificamos que o argumento inter-
no tem uma ação importante no evento implicado pelo verbo.
Tendo isso em mente, devemos nos atentar que traços peque-
nos diferenciam as duas ocorrências até o momento, mas, do
mesmo modo, fazem com que tenhamos duas interpretações
completamente diferentes do evento descrito nas proposições
em questão. Dessa forma, analisemos as ocorrências tiradas de
tweets de usuários utilizando o verbo jantar em seu significado
comum:
(4) a. Fui correr e jantei açaí.
b. Já jantei hoje.
c. Comi salgado, jantei.

Verificando as sentenças acima, podemos entender que a


ocorrência de jantar como “alimentar-se à noite” se trata, tam-
bém, em pelo menos uma das ocorrências de forma explíci-
ta, de um verbo bivalente. Na sentença (4a), vemos que [açaí]
ocupa o espaço de argumento interno, sendo aquilo que se
janta, enquanto o argumento externo, da mesma forma que a
ocorrência em (2a), está implícito. Sendo assim, devemos focar
naquilo que o argumento interno nos diz a respeito do signifi-
171
cado geral da sentença. Se, em um primeiro momento, pen-
samos que a mudança de estrutura era regra para a ocorrência
de uma mudança de significado, verificando estruturalmente a
disposição sintática, podemos entender que as construções são
similares. Entretanto, a s-seleção que o verbo solicita para seu
argumento interno, nas duas ocorrências, é diferente. Isto é um
caso daquilo que o falante pretende comunicar.
Pensando nisso, as utilizações em (4b), bem como (3a), se
tratariam de ambiguidades estruturais que, fora do contexto de
enunciação, não seriam interpretáveis. Enunciar [já jantei hoje]
logo após uma briga não física poderia significar nosso “refu-
tar e/ou humilhar alguém”, enquanto enunciar a mesma frase
logo após alguém ter oferecido algo para você comer deveria
significar o que o jantar dicionarizado nos proporciona. Como
explicamos, durante essa pesquisa, não objetivamos trabalhar
com o contexto dessas sentenças. Portanto, em (4c), a ocor-
rência não seria de todo ambígua, já que a oração [comi sal-
gado] nos insere nesse contexto de fala, obviamente, a partir
de outra sentença. Seriam possibilidades como essa, mesmo
que não somente na forma escrita, que as construções com o
verbo jantar sem seu argumento interno necessitam para que
as sentenças sejam compreendidas em sua totalidade. De todo
modo, tratamos de situações em que isso ocorre somente com
dois significados diferentes, como é sabido, vários verbos do
PB são passíveis da polissemia verbal, fato que pode alongar a
discussão e os problemas a serem elencados a respeito dessas
construções emergentes.
Aproveitando o raciocínio sobre contexto, podemos apon-
tar que esse foi um dos maiores desafios para trabalhar com a
plataforma do Twitter para a coleta de dados. Em vários mo-
mentos, por tratar-se de uma rede social, o contexto afetava
de forma importante o significado do texto escrito: em certas
172
ocorrências, ao retirarmos somente o dado em questão, perdí-
amos o significado agregado a partir de fotos, gifs, vídeos, áu-
dios, links alternativos, etc.
Continuando com nossa descrição, precisamos falar agora
dos papéis temáticos que são distribuídos nas sentenças que
verificamos durante a pesquisa. Como esperado, os papéis
apresentados pelos argumentos em (4a) e (2b) são iguais aos
apresentados em (2a). Com [(eu) jantei açaí], verifica-se que te-
mos um agente, aquele que pratica a ação de jantar, e aquilo
que é a janta, nesse caso, o paciente. Isso se aplica facilmen-
te à sentença [(eu) jantei risoto], onde as mesmas proprieda-
des, sem distinção, ocorrem. Do mesmo modo, com a oração
[(ela) jantou a homofóbica], temos a agente, que pratica a ação
de jantar, e aquela que é jantada, o experienciador da ação. A
maior diferença aqui se encontra na propriedade daquele que
ocupa a lacuna do tema. Quando temos um tema que não se
trata de um ser humano ou um grupo deles, que pode ser “re-
futado e/ou humilhado”, possuímos uma sentença que tende
a ter o significado comum do verbo jantar. Porém, quando te-
mos como argumento interno um ser humano, grupo ou parte
que pode ser identificada como de seres humanos, tende-se
ao significado de jantar não usual. Entendemos aqui “parte
que pode ser identificada como de seres humanos” pois, no
exemplo (1e), temos a representação dessa possibilidade; ainda
que não seja recorrente, a ocorrência não se torna agramatical
e é igualmente inteligível. Dessa forma, conclui-se que, para
significar “alimentar-se à noite”, o verbo jantar necessita de um
argumento interno -animado e -humano; e, para significar “re-
futar e/ou humilhar”, o argumento deve ser +animado e +hu-
mano. A respeito do argumento externo, vemos que em ambas
as situações o argumento deve ser +humano e +animado para
que a ocorrência seja concretizada em seu significado comum
173
e +animado e +humano para que o verbo jantar seja entendido
com seu significado não usual/emergente.
Retomando a sentença (1a), identificamos que a voz passiva
será de forma recorrente usada para representar o sentido de
jantar não usual, fato que não se reproduz com seu significado
comum. Aqui, tratamos de frases não reais de usuários:
(5) a. *O risoto foi jantado (por mim).
b. A homofóbica foi jantada (por ela).
c. O homofóbico foi jantado (por ela).

É possível perceber, como falante nativo do português, que a


sentença (5a) não é algo comum de ser utilizado, ao passo que
(5bc) são sentenças totalmente possíveis de realização. Tanto
que localizamos ocorrências similares no Twitter, como em (6a)
e (6b):
(6) a. Takefusa Kubo foi jantado por Frenkie de Jong no lance do 1º gol
do Barcelona.
b. É muito mau caráter, véi, foi jantada no argumento e se retirou da
mesa.

Não temos profundidade para afirmar qual relação ocorre


para que uma sentença seja possível de realização e outra não,
porém, temos indícios que essa relação pode ser regulada pelas
diferenças de seleção semântica que ocorrem nas construções
das sentenças. Além disso, temos a evidência factual de que o
verbo jantar em seu uso emergente possui um tensionamento
a saber quem está sendo jantado, propriamente. Dessa forma,
conseguimos vislumbrar que seu uso na voz passiva nos da-
ria uma projeção direta daquele que é o experienciador dessa
ação, ou seja, quem sofre com tal ato. Assim, imaginamos que o
uso da voz passiva, nesse caso em específico, não seria somen-
te uma forma de representar a cena, mas, contudo, representar
o enfoque mediante o deslocamento de argumentos. Obvia-
mente, tais pontos são um princípio para explicar tal fenôme-
174
no, mas essa argumentação pode ser um caminho para enten-
der melhor a relação estrutural presente na construção desses
dois significados diferentes do verbo jantar. Assim, em (5b), os
papéis se mantêm, sendo alçado somente [a homofóbica] para
a posição inicial da sentença. A partir disso, a presença ou não
de [ela] será opcional; portanto, se essa realização ocorrer, será
inserida através de um adjunto imposto por uma preposição.
Discutido isso, é interessante recobrar a ocorrência (1b). A par-
te importante, nesta questão, não se aplica à utilização de jan-
tar como incluso em uma oração que serve de argumento, mas,
sim, da ocorrência de jantar em seu sentido não usual como
substantivo: “jantada”. Em um contexto qualquer, utilizaríamos
o substantivo de jantar sendo “a janta” de forma cotidiana ou “o
jantar” seguindo. Dessa forma, como do mesmo verbo emer-
ge um significado diferente, seria esperado que o substantivo
para essa construção também fosse alterado, caso não, haveria
uma possibilidade grande de uma nova ambiguidade ser iden-
tificada. Assim, sentenças como (7a) e (7c) necessitariam de um
contexto para terem seu significado determinado de forma cla-
ra. Entretanto, com a utilização de um substantivo derivado de
outra forma, temos uma ocorrência característica que não dá
margem à ambiguidade de significado como em (7b) e (7d).
(7) a. A janta/O jantar foi ótima/ótimo.
b. A jantada foi ótima.
c. GSW devolvendo a janta de ontem. Azar dos carismáticos Bulls.
d. GSW devolvendo a jantada de ontem. Azar dos carismáticos
Bulls.

É preciso entender que, em (7c), temos um conflito no


que diz respeito à interpretação dos significados, visto que
“devolvendo” nos remete algo que, em algum momento, pode
parecer ruim em seu uso com o substantivo jantar. Aqui, obvia-
mente supomos a situação de que retribuir seria uma situação
175
onde a janta teria sido agradável, enquanto o uso do devolver
poderia ser tratado como o oposto. Em (7c), entretanto, so-
mente utilizamos a mesma construção de (7d) para explicitar a
ocorrência real feita por usuário da plataforma Twitter. Em ca-
sos cotidianos, não seria possível verificar a ocorrência de (7c).
Ou seja, seria gramaticalmente incorreta, devolver e janta pare-
cem não combinar semanticamente na sentença em questão.
Cremos que conseguimos explicitar alguns pontos impor-
tantes no entendimento dessas ocorrências. Com toda certeza,
a discussão é muito mais profunda e, com essa descrição das
ocorrências do verbo jantar em seus dois sentidos correntes,
podemos ter uma ideia de como se comportam e vislumbrar
uma saída para as questões que esse tipo de mudança semân-
tica nos impõe. Notamos padrões interessantes e conseguimos
vislumbrar uma saída preliminar para o labirinto que é entender
os mecanismos linguísticos de mudança do PB na contempo-
raneidade. Como as ocorrências do verbo jantar não se tratam
de algo consolidado e, por consequência, não antes trabalha-
do, entendemos como um avanço a discussão a respeito des-
sas características das estruturas sintáticas e semânticas pró-
prias dessa relação. Agora, iremos apresentar o entendimento
pela abordagem citada no começo desse trabalho para, então,
termos uma posição sobre o que seria palpável acerca de tais
ocorrências.

O verbo jantar e as propriedades semânticas


Como vimos anteriormente, para o entendimento de De
Matos (2006), com base em outros autores, a ocorrência de
polissemias não estaria amarrada à organização lexical. Pelo
contrário, estaria em consonância com um processo cognitivo
de criação de metáforas aplicado a todos os verbos da língua.
Dessa forma, seguindo as ideias de Lakoff & Johnson (1980),
176
seria possível entender o mundo de uma forma propícia para
a construção de metáforas, em sua maneira mais cotidiana e
direta, para se valer de expressões linguísticas a fim de enten-
der o mundo. A partir do trabalho com 76 verbos do PB, De
Matos (2006) organiza a descrição dos significados possíveis
para esses verbos, fazendo o entendimento do sentido o mais
concreto e palpável possível para aquele que seria mais abstra-
to e, porquê não, metafísico. Particularmente, penso ser preciso
o entendimento utilizado pela autora a partir do verbo afogar;
aqui fazemos a citação de suas sentenças analisadas:
(8) a. O marido afogou a mulher no rio.
b. A mulher se afogou no rio.
c. A cozinheira afogou o arroz.
d. O carro afogou e agora não quer pegar.
e. Curió afogou suas desilusões na cachaça.

É possível perceber que os significados dados para cada


proposição são entendidos de forma diferente a partir da
relação do verbo com seus respectivos argumentos internos
e externos, bem como na relação com suas adjunções. Dessa
forma, como afirma Cançado (2005) e De Matos (2006), toda
propriedade semântica interessante para a descrição dessas
ocorrências vai se dar a partir dessa composicionalidade.
Conforme De Matos (2006, p. 61) explica, em relação ao afo-
gar, “todos os sentidos são construídos a partir da ideia comum
de afundar algo em algum recipiente com algum tipo de con-
teúdo e ter um estado final.” Dessa forma, essa ideia comum
que age em relação a esses sentidos da polissemia seria dada o
nome de ideia relacional.
Como pontua De Matos (2006, p. 52-53):
[...] tem que existir algum tipo de sentido canônico do item lexical, que
sirva como origem do processo metafórico. Esse processo de criativida-
de, que é acionado a todo momento, não pode ser tão livre, tem que ter
um ponto de partida: é óbvio que algum tipo de conhecimento prévio
177
deve existir, armazenado, em nossas mentes, senão poderíamos em-
pregar, por exemplo, a palavra digerir no sentido de voar, como observa
PERINI (1999).

Sendo assim, temos como base aquele sentido canônico


do verbo expresso através de dicionários e do senso comum,
fazendo com que, a partir do que a autora chama de ideia re-
lacional, podemos observar a criação não de novas entradas
lexicais, mas, sim, a criação de novas combinações que geram
significados emergentes para um mesmo verbo. Dessa forma,
a partir da composição visualizada pelas proposições a serem
analisadas, temos evidências para a ocorrência dessa alteração
de significado.
Em seu trabalho, De Matos (2006, p. 53-54) referencia
os autores Lakoff & Turner (1989) para trabalhar a hipótese de
que utilizamos verbos de cunho factual e físico para descrever
sentidos de gênero mais abstrato e, até mesmo, metafísico. Na
análise realizada pela autora, foi possível identificar uma ten-
dência para essa ocorrência. Dessa forma, seguindo a mesma
linha de raciocínio, entendemos que, nas explicações que fa-
remos e fizemos sobre nosso verbo analisado, podemos visu-
alizar o mesmo tensionamento, visto que é utilizado o sentido
canônico proposto (que é algo totalmente físico) para descrever
uma ideia, em certo ponto, mais abstrata, que sobrepõe o que
poderíamos descrever com outros verbos específicos desse
tipo de ação no mundo real. Assim, entendemos que a escolha
do verbo jantar para descrição de argumentações extrapola o
significado que poderia ser concebido a partir do uso de verbos
como refutar, humilhar, contrapor, etc.
Como De Matos (2006, p. 70) afirma, verbos de causação
seriam uma classe muito produtiva para a produção metafóri-
ca, visto que se tratam de verbos que desencadeiam processos,
trabalhando com situações físicas, consequentemente. Dessa
178
forma, o verbo jantar, por se encaixar em tal classe, traz, ainda
que não na produtividade vista em verbos utilizados pela au-
tora, mas, por diversos outros motivos que discorremos nessa
descrição, uma interessante utilização. Aqui, trabalhamos com
a mesma ideia exposta por De Matos (2006), acompanhando
outros autores, que quanto mais específico o verbo é menor
será sua possibilidade de projetar novos significados. Sendo as-
sim, seria justificada uma produção polissêmica reduzida, mas
não por isso menos interessante. Além disso, a autora, através
de suas análises, entende que, conforme os verbos possuem
ou não uma utilização cotidiana, as chances de serem produ-
tivos na utilização polissêmica seriam maiores ou menores. No
levantamento de dados proposto por De Matos (2006), foi
possível concluir que a maioria dos verbos comuns do PB apre-
sentam mais de um significado. Assim, entendemos a dimen-
são do trabalho com polissemia em uma língua como a nossa.
Com isso em mente, passaremos ao trabalho direto
com os dados para seu entendimento a partir da abordagem
proposta por Cançado (2005) e utilizada como uma composi-
ção para o trabalho visualizado em De Matos (2006). Vejamos
as seguintes sentenças a seguir, a primeira retirada do Twitter, a
outra, sendo somente utilizada como um contraponto lógico:
(9) a. Haddad jantou o bolsonarista Tarcísio nesse 1º bloco #Debate-
NaBandsp.
b. Haddad jantou sopa.

Olhando para ambas colocações, percebemos que conse-


guimos verificar algumas propriedades para cada uma delas.
Ou seja, com base naquilo discutido nas primeiras impressões
a respeito do que De Matos (2006) nos apontava, podemos
traçar um panorama a respeito das propriedades semânticas a
serem entendidas (controle, desencadeador, afetado e estati-

179
vo). Seguimos com outras sentenças que nos auxiliarão nessa
análise:
(10) a. Haddad decidiu não mais jantar o bolsonarista Tarcísio nesse 1º
bloco #DebateNaBandsp.
b. Tarcísio decidiu não mais ser jantado por Haddad nesse 1º bloco.
c. Haddad decidiu não mais jantar sopa.
d. *A sopa decidiu não mais ser jantada por Haddad.

Na proposição (10a), conseguimos identificar que Haddad


tem controle sobre a ação descrita dentro do evento como um
todo. Entretanto, visualizando a sentença (10b), não é possível
entender o evento como sendo o mesmo. Para que quem é
jantado decida agir a partir da ação sofrida (pois não é possível
agir contra ela), ele não teria como controlar o evento ou inter-
romper a ação de quem janta, dessa forma, seria uma situação
posterior à ação primeira que desencadeia o evento de não mais
ser jantado, não tendo qualquer evidência de controle na ação
realizada primeiramente. Assim, Tarcísio decidir não mais ser
jantado não impede que ele tenha sido jantado previamente.
Ou seja, ele toma a ação de não mais ser jantado a partir da jan-
tada. Dessa forma, entendemos que quem controla a ação de
jantar em seu sentido emergente, ou seja, aquele que contraria
o uso canônico, seria quem pratica a ação, não sendo possível
que o estativo (propriedade dada a quem sofre o ato) possua
controle sobre o evento. O mesmo é possível de ser observado
quando tratamos da questão proposta por (10c), onde quem
pratica a ação tem como controlar se irá ocorrer ou não, en-
quanto o contrário, aquele que é afetado, não possui qualquer
controle sobre ela - isso sendo expresso pela sentença (10d).
Seguindo com a análise de tais propriedades, podemos en-
tender como uma diferença crucial para a criação de dois sig-
nificados distintos o entendimento dado a partir daquilo que
entendemos por argumento interno das sentenças, aqui não
180
teremos um trabalho focado em seus adjuntos, visto que, no
verbo focalizado para nossa análise, não necessariamente pre-
cisamos dessa abordagem para provar o ponto de vista. Sendo
assim, vejamos essas ocorrências retiradas do Twitter:
(11) a. Só pra lembrar, NATURA almoçou e jantou com Lula antes de
votar!
b. [...] estamos no 4° episódio e ela não jantou ainda.
c. Jantou o Feriado.
d. César Calejon jantou o Rodrigo Constantino de uma forma ex-
cepcional. Uma análise impecável e fiel as manifestações antidemocrá-
ticas. Recomendo!

É nítida a mudança de significado presente nas ocorrências


vistas acima. Entendemos que seja impossível um falante do
PB não entender que estamos falando de coisas totalmente
diferentes quando comparamos a ocorrência (11a) e o que
encontramos em (11d). Por qual motivo isso pode ser observado?
Com toda clareza, podemos nos remeter ao ato de jantar quan-
do vemos uma ocorrência como (11d), é visual que pensemos
em todo no ato de abarcar os conhecimentos de um grupo e,
tal qual o ato de alimentar-se, utilizar esse alimento para com-
preender novas possibilidades; e é exatamente com base nisso
que seria construído o entendimento de polissemias e a gran-
de quantidade de significados diferentes para mesmos verbos,
conforme De Matos (2006) propõe, acompanhando diversos
autores. Entende a autora, em seu trabalho, que ações físicas,
ligadas ao corpo, seriam mecanismos muito utilizados para o
tratamento de situações abstratas.
Com isso em mente, para entender aquilo que ocorre nas
sentenças relacionadas, já verificamos que quem age possui
esse controle e, da mesma forma, desencadeia essa ação, tan-
to em jantar como “alimentar-se à noite”, bem como o ato de
“humilhar e/ou refutar alguém”. Agora, precisamos entender a
propriedade daquele que se trata do argumento interno dessas
181
proposições. Em (11a) e (11b), observamos duas proposições que
tratam do jantar em seu sentido canônico. Nas duas sentenças,
não temos a concretização do argumento interno e externo, ou
seja, não observamos ele escrito, temos somente sua realização
como um entendimento gramatical. Entretanto, visualizamos
em (11a) a utilização de uma adjunção [com Lula] que não nos
diz algo muito próprio sobre sua estrutura básica. Mesmo as-
sim, podemos visualizar que aquilo que [NATURA jantou] teria
sido afetado pela sua ação, estamos falando aqui de uma situ-
ação de um argumento interno que seria mais bem entendido
como afetado. Continuando para (11c) e (11d), temos uma posi-
ção diferente daquela presente nas outras sentenças. Quando
fazemos a verificação de quem ocupa a posição de argumento
interno nesses casos, vemos que [o Feriado] (aqui uma men-
ção à Fernando Holiday) e [o Rodrigo Constantino] seriam se-
res que, sim, poderiam ser afetados psicologicamente pela ação
de quem desencadeia o evento representado pelo verbo jan-
tar, como seria uma possibilidade, encaramos o mesmo como
um estativo. Sendo assim, entendemos que a diferença crucial
entre a construção dos significados se daria primordialmente
a partir dessa diferenciação. Sintetizando esse fato, a grade do
verbo jantar poderia ser descrita dessa forma:

1. Jantar: alimentar-se à noite


Jantar {desencadeador/controle, afetado}
a. Gabi jantou sopa.
b. A gente já jantou Ifood 3 dias essa semana, chega.
c. Boa noite, pra quem jantou macarrão instantâneo!
2. Jantar: refutar e/ou humilhar alguém
Jantar {desencadeador/controle, estativo}
a. Jantou os que usam o zap como fonte.
182
b. Obrigado a todos os envolvidos que jantaram os bolso-
minion no grupo da sala, eu me divirto muito.
c. Jantei o bolsonarista INSUPORTÁVEL doido obcecado
que tava enchendo meu saco.
Concluímos, assim, os pensamentos acerca daquilo que vis-
lumbramos retratar como fator relevante na construção de
ambas significações possíveis para o verbo abordado. Para o
entendimento de como seria o tratamento e classificação de
outros verbos, recomendamos o acesso ao trabalho proposto
por De Matos (2006) que abarca um número grande de ocor-
rências, sem contarmos sua diversidade de possíveis subsigni-
ficados para cada entrada lexical. Agora, faremos um breve co-
mentário sobre aquilo para o que não conseguimos achar uma
resposta assertiva, mas que verificamos e entendemos como
importante a apresentação da ocorrência.

Durante nosso tempo de pesquisa, encontramos diversas


ocorrências possíveis para aquilo que entendemos como im-
portante na descrição desse verbo. Entretanto, como o uso
ainda era recente em nosso início de pesquisa, retornar para
visualizar as ocorrências após um bom tempo da seleção das
sentenças a serem utilizadas, foi um importante termôme-
tro naquilo que conseguimos medir das ocorrências possíveis
para os significados. Uma das ocorrências que nos chamaram
a atenção e destoam daquilo que conseguimos delimitar em
nossa pesquisa são ocorrências como as abaixo:
(12) a. Sem fome até agora que ontem eu jantei o enem.
b. Eu indo preso depois que jantei na porrada todos os jogadores
ruins do Vasco.
c. O primeiro, eu jantei na porrada até quebrar o maxilar de tanto
murro.

183
d. “Eu sou átila, biólogo e pesquisador e jantei na porrada quem dá
opinião sem base pra política de saúde pública.”
e. “Tá vendo essa cicatriz aqui na minha mão? Foi de quando eu
jantei o presidente no soco.”

Com base nessas ocorrências, não podemos dizer necessa-


riamente que haja um terceiro significado para o verbo jantar.
Se pesquisarmos no Twitter situações que apareçam [eu jantei o
enem] somente teremos 1 resultado para essa utilização. Dessa
forma, não seria devida a alteração no entendimento do verbo
jantar repassado tanto na teoria temática vista em Ilari e Basso
(2014), Mioto Silva e Vasconcellos (2007) e Negrão, Scher &
Viotti (2003); bem como na abordagem que fizemos baseados
em Cançado (2005) e De Matos (2006). Obviamente, sendo o
caso de uma ocorrência com números altos, entenderíamos a
possibilidade de que o jantar, além de um significado físico, te-
ria seu significado psicológico, como De Matos (2006) utiliza na
abordagem de alguns verbos durante sua dissertação. De todo
modo, o monitoramento do crescimento desse e outros usos
pode ser de muita importância para compreender o movimen-
to desses significados, visto que o verbo jantar, em específico,
possui uma grande circulação no meio cibernético.
Tratando das ocorrências em (12b), (12c), (12d) e (12e), temos
combinações com números maiores que os encontrados com
a proposição (12a). Aqui, temos uma subversão do significado
padrão de jantar tanto do canônico como o emergente apre-
sentado. Nesse tipo de construção, seguindo a proposta de
abordagem de Cançado (2005), teríamos que entender o ad-
junto utilizado, tanto [na porrada] quanto [no soco], como uma
forma de projetar uma nova propriedade semântica para o ver-
bo em questão. Em se tratando da teoria temática vigente, seria
necessária uma abordagem diferente, já que o verbo natural-
mente não solicita qualquer informação sobre a ação para que
uma adjunção seja necessária. Dessa forma, ter visualizado tal
184
ocorrência após a finalização das análises prejudicou a inclusão
desse tema dentro do trabalho. Mesmo assim, entendemos ter
feito uma descrição sólida da ocorrência identificável no perío-
do proposto. Além disso, entendemos que o fenômeno pode
ter uma ligação com a utilização do jantar como uma expressão
idiomática, fato que ocorreu no início de seu uso e ainda é mui-
to propagado. Alguns exemplos retirados do Twitter:
(13) a. Eu não tinha visto essa não, jantou na hora certinha…
b. Babi foi fina, cirúrgica, coerente e combatente em seu posiciona-
mento do voto. Diz aí, jantou né?
c. Lays Campos me almoçou, jantou, merendou e ainda sobra pra
ceia, lenda que estará de bucho cheio até amanhã.

Nas sentenças apresentadas, não temos uma construção es-


trutural passível de encaixe nas descrições feitas anteriormente
acerca dos significados do verbo jantar. Entretanto, a não inclu-
são dessa ocorrência de nada prejudica nosso entendimento,
visto que podemos visualizar uma questão muito mais crista-
lizada, possível de ser entendida como ocorrências de expres-
sões idiomáticas ou construções que só fazem sentido por si
mesmas, sem alteração. Sendo assim, a abordamos em nossa
discussão no início como sendo possíveis de tratamento a par-
tir de ambiguidade estrutural, onde, sem acesso ao contexto,
teríamos uma falta de conteúdo que impossibilitaria identifi-
car o significado desejado pelo falante. Entretanto, essa é uma
análise que deve ser aprofundada.
Por último, temos a ocorrência mencionada no começo des-
te trabalho: o substantivo jantada contrariando o utilizado para
o significado canônico do verbo jantar, o qual poderia ser a jan-
ta ou, até mesmo, o jantar. Abaixo temos algumas ocorrências
retiradas de tweets:
(14) a. Assim foi o jantar de ministros do STF em NY.

185
b. Meu problema é a janta, fico compulsiva à noite e quero comer
de tudo.
c. Isso daqui foi uma JANTADA.
d. Uma belíssima jantada…

Dessa forma, conseguimos entender uma clara diferença en-


tre a forma de abordagem entre um evento e outro. Entretanto,
temos ocorrências que se referem ao significado emergente do
verbo jantar como sendo a janta. Como é esperado, o contrário
não foi identificado nas análises feitas. Não buscamos enten-
der junto às teorias que tratam do surgimento de substantivos
derivados de verbos, porém conseguimos buscar na memória
intuitiva do falante nativo do PB situações que ocorrem seme-
lhante troca para diferenças de significado. Uma delas poderia
ser a diferença entre corrida e corridão. A partir disso, enten-
demos que todos esses pontos podem ser desenvolvidos com
mais carinho em próximos trabalhos, bem como outros pontos
que podem surgir à medida que os registros na língua se tor-
nem monitorados e/ou cotidianos.

Primeiramente, concluímos que há um longo caminho a ser


traçado para alcançar o objetivo de apontar com clareza qual
ou quais mecanismos regem a mudança semântica possível
de ser verificada no verbo estudado. Embora seja um assunto
complexo, a descrição que desenvolvemos pode nos mostrar
padrões importantes para a continuação de pesquisas futu-
ras. Observamos que para a ocorrência de ambos os significa-
dos o verbo jantar necessita ser bivalente, ou seja, pede dois
argumentos para concretizar seu significado; visto que a falta
de um desses argumentos resulta em uma sentença ambígua,
que não pode ser decifrada em sua totalidade sem o auxílio do
contexto de enunciação. Dito isso, com base na teoria temáti-
186
ca, percebemos um padrão a respeito da natureza desses argu-
mentos solicitados pelo verbo jantar: para a emergir o signifi-
cado como “humilhar e/ou refutar alguém”, é necessário que o
argumento interno seja algo que possa ser refutado (+animado
e +humano); por outro lado, para emergir o significado comum
do verbo jantar, “alimentar-se à noite”, o argumento deve ser
algo que possa ser janta para alguém (-animado e -humano).
Utilizando-se da abordagem proposta por Cançado (2005) e
De Matos (2006), entendemos que para ambos os significados
temos argumentos externos que são entendidos como desen-
cadeadores e controladores da ação descrita. Por outro lado,
notamos que o significado canônico do verbo jantar possui um
argumento interno que será descrito como afetado, enquanto
o seu significado emergente terá um estativo, que não se altera
em momento algum durante a ação.
Assim, uma distinção é delimitada e vislumbramos que, a
partir dessa diferença estrutural, podemos pensar em uma res-
posta para a questão base sobre os mecanismos que possibili-
tariam essa mudança semântica. Portanto, concluímos que, por
um lado, a diferença na disposição da seleção de argumentos
e, por outro lado, a identificação de propriedades semânticas
diferentes para cada caso tratam de uma parte importante da
emergência do significado e explica, por hora, a relação descrita
do verbo jantar. Entretanto, é fato que existe um grande campo
conceitual que pode fazer com que a discussão a respeito da
mudança semântica nesse e em outros casos se torne ainda
mais profunda. Além disso, como pontuamos na seção ante-
rior, existem situações ainda a serem manipuladas e verificadas
à medida que o uso aumenta ou diminui.
A emergência de novos significados é uma linha de pesqui-
sa com várias vertentes de análise e entendemos que a base
utilizada seria a mais condizente com o trabalho que nos pro-
187
pomos desde o início. O entendimento de que a metáfora se-
ria um mecanismo conceitual próprio do ser humano proposto
por Lakoff & Johnson (1980) e seguido por De Matos (2006)
nos auxiliou a entender que toda a noção de base para a possi-
bilidade de um significado pode ser o sentido de um conceito
mais concreto para representar e, assim, ser utilizado para ex-
primir um conceito menos concreto, criando um novo uso para
o verbo. Com base nisso, projetamos nossa ideia para explicar
tais ocorrências.
Dessa forma, vislumbramos que futuros trabalhos acerca
desse e de outros verbos, que ainda não receberam a devida
atenção científica, poderiam se debruçar sobre a questão da
polissemia verbal. Temos muitos verbos e novos significados
sendo propagados em redes sociais a todo momento, enten-
demos nossa posição como um passo inicial para um mapea-
mento maior.

CANÇADO, M. Posições argumentais e propriedades semânticas.


Delta 21. São Paulo, v.1, p. 23-56, 2005
DE MATOS, M. A. D. N. Verbos Polissêmicos: propriedades semân-
ticas e processos metafóricos. Orientadora: Márcia Maria Cançado
Lima. 2006. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) - Uni-
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189
A
pragmático

Andrya Taynara Leal dos Santos


Sebastião Lourenço dos Santos

1 Introdução
Para iniciarmos o estudo se faz necessário conceituarmos o
que é “sociedade”:
Émile Durkheim entende a sociedade como superior ao indivíduo e
existe independente deste. Para ele, o indivíduo é apenas receptor de
regras e modo de viver da sociedade da qual faz parte. As regras foram
chamadas, pelo sociólogo, de fatos sociais. [...]
Para Karl Marx, a sociedade é heterogênea e formada por classes sociais
que se mantêm por meio de ideologias das elites.1

Nas diversas estratégias de comunicação, quanto maior o


desejo de viver em harmonia e ser aceito pelos demais da so-
ciedade, mais cortês o indivíduo deve ser e agir no seu grupo
social/comunidade.
Assim como Dias (2010), acreditamos que ser polido, ao con-
trário do que muitos pensam, não é somente uma questão de
pedir “por favor” quando se deseja algo ou um “muito obriga-
do(a)” como uma resposta a alguma gentileza. Ser polido/cor-
tês envolve além da educação habitual e valores familiares, tra-
balhar com várias estratégias linguísticas para que se tenha um
requerimento/aceitação por todos os interlocutores, e acredite,
nenhuma pessoa consegue ser requerida e aceita a todo mo-
mento. Estudar como as comunicações humanas se efetivam
é algo deveras interessante, mas estudar como funcionam as
estratégias para uma boa comunicação é extraordinário.
1 -
dade
190
Hipotetizando como se dão as relações em uma sociedade e
sabendo das estratégias conversacionais dos falantes quando
estão em interações discursivas, neste estudo buscamos ana-
lisar momentos de discursos daqueles que nos representam:
políticos.
O interesse por analisar o discurso político televisivo com
fundamentação em teorias pragmáticas se deu após algumas
disciplinas durante a graduação em letras apresentarem a Teo-
ria da Polidez. Ao assistirmos o debate presidencial pelo meio
televisivo, relacionamos as linhas de estudos e notamos que
em alguns momentos havia muito respeito entre os contendo-
res e em outros nem tanto.
Existem diversos estudos sobre como se dá a (im)polidez en-
tre indivíduos e sobre as faces envolvidas em uma comunica-
ção. Para este trabalho utilizaremos as noções de face segundo
a Teoria da Polidez, proposta por Brown e Levinson (1987).
Para a Teoria da Polidez (BROWN; LEVINSON, 1987), toda
e qualquer situação conversacional é marcada pelo confronto
entre as faces dos interlocutores, uma vez que está em jogo
o embate do locutor em tentar convencer o interlocutor so-
bre estados das coisas do mundo. A partir deste pressuposto
teórico, este estudo objetiva analisar a (im)polidez no debate
político televisivo que ocorreu dia 29/09/2022, na Rede Glo-
bo de televisão, tendo em vista os(as) momentos/falas em que
apresentam confronto conversacional entre os candidatos à
presidência da República.
Brown e Levinson (1987) destacam que:
O caráter “ritual” da polidez foi muito enfatizado por Goffman e outros.
Um diagnóstico de ritual é muitas vezes considerado um comporta-
mento repetitivo ou pré-padronizado. Embora nossa teoria minimize a
importância das rotinas de polidez enfatizando a produção ‘generativa’
da polidez linguística, as fórmulas polidas formam claramente um im-
portante elemento focal nas noções populares e na distinção entre tato
191
‘pessoal’ e polidez ‘posicional’ [...], onde, este último está associado ao
decoro estereotipado2 (BROWN; LEVINSON, 1987, p.43).

Este comportamento pré-padronizado tem ligação direta


com o modo de agir de um político que visa sempre estar em
bem comum com seu eleitorado. Como já dito, a polidez vai
muito além das noções populares e, em geral, está ligada ao
meio em que estão sendo proferidas as sentenças.
Sendo assim, temos como objetivos específicos para este
estudo:
a. Coletar essas manifestações da (im)polidez entre candi-
datos à presidência da república brasileira no debate te-
levisivo;
b. Analisar como se dá o confronto linguístico-discursivo
entre pares no debate;
c. Descrever como os candidatos utilizam estratégias de
polidez no debate político.
Vale ressaltar que:
O modelo de Brown e Levinson enfatiza os aspectos ligados à harmonia
interacional, partindo do princípio de que os falantes vão evitar o confli-
to a qualquer custo. Porém, há ocasiões das relações sociais em que os
falantes não pretendem preservar a imagem do outro e, muitas vezes,
nem mesmo a própria. Assim, os insultos são um exemplo de ataque à
imagem, que pode levar ao conflito e, inclusive, a reações físicas violen-
tas (DIAS, 2010, p. 51).

Se espera em um debate televisivo de candidatos à presi-


dência que haja discussão entre as propostas que irão decidir o
futuro da nação e logo proporcionar ao público uma boa esco-
lha de candidato. No entanto, o que ocorreu em 2022 foi uma
2
-

192
série de ataques de político para político na intenção de deixar
o público muitas vezes confuso com as informações e optar por
uma escolha que não condiz com suas ideologias ou que leva a
um alto índice de desinformação e rejeição ao voto.
Durante o debate em questão, ocorreram várias situações
que podem ser estudadas sob a ótica da (im)polidez, porém
optamos por selecionar quatro momentos, a saber:
• Diálogo entre a candidata Simone Tebet (MDB) e a candi-
data Soraya Thronicke (União Brasil), no qual Tebet cha-
ma Soraya pelo nome de outro candidato por engano e
logo pede perdão por isso.
• Diálogo entre a candidata Soraya e padre Kelmon (PTB),
onde a candidata chama o padre de “Padre de festa juni-
na”.
• Diálogo entre Tebet e Felipe d’Avila (Novo), que ocorre
respeito ao máximo entre ambos
• Diálogo entre Padre Kelmon e o candidato Luíz Inácio
Lula (PT), em que o padre faz o uso de vários insultos a
Lula.

-
do nos ambientes que frequenta. Empregar corretamente

com que esse desejo pela companhia alheia ocorra. Ao uti-

-
sas com seu grupo social ou desconhecidos.

193
A noção de “face” adotada por Brown e Levinson (1987),
apresenta a distinção entre face positiva e face negativa. Veja-
mos o que Dias (2010) apresenta em suma sobre tal assunto:
A partir do pressuposto de que todo ser humano tem uma auto-ima-
gem pública que pretende preservar e de que a melhor forma de conse-
guir isso é respeitando a imagem do outro, Brown e Levinson formulam
sua teoria da imagem [...] Essa imagem ou face, nos termos de Brown e
Levinson (p. 62), apresenta dois lados: a imagem negativa — vista como
o desejo de qualquer pessoa de que suas ações não sejam impedidas
e de não sofrer imposições, ou seja, de ter o território respeitado pelos
outros — e a imagem positiva — que, por outro lado, refere-se ao desejo
que todo ser humano tem de ser aprovado pelos demais interlocutores,
de ter seus desejos compartilhados por pelo menos algumas pessoas
(DIAS, 2010, p. 37-38).

Trazemos ainda, a consideração/síntese de Lopes (2018) so-


bre o assunto:
Brown e Levinson distinguem entre face positiva e face negativa. A pri-
meira reflete a necessidade de ser aceito e de se sentir incluído, o desejo
de ser aprovado e apreciado; a segunda corresponde à necessidade de
ser independente, de ter liberdade de ação, de não se sentir coagido
pelos outros, de ter um espaço inviolável de privacidade. Consideram
ainda os autores que a noção de face é universal, presente em todas as
sociedades humanas. Como agentes racionais, os participantes de uma
interação verbal tenderão, idealmente, a preservar as faces de ambos,
de modo a não provocar disrupções (sic) comunicativas e conflitualida-
de interpessoal. (LOPES, 2018, p. 200).

Quando se pensa em polidez, Dias (2010) diz que logo vem


a ideia de “educado” e sempre pedir “por favor” “com licença”
“obrigado(a)” e por aí segue-se. Mas quando tratamos conscien-
temente da comunicação, sabemos que a linguagem vai muito
além disso, pois saber o que o interlocutor deixa implícito é as
vezes desafiador.
Lopes (2018) de certa forma complementa o raciocínio de
Dias (2010), até porque há quatro faces envolvidas em um diá-
logo, sendo elas: 1- a face positiva e a negativa do ouvinte, 2- a
194
face positiva e a negativa do locutor. Nosso desejo de preserva-
ção e exposição é mutuo e estão em constante comunicação.
Se eu escolho falar algo em determinada frequência ou gesti-
culando, não estou somente visando a preservação/exposição
da face do outro, mas sim a minha também.
A noção de (im)polidez provém do quanto somos capazes
em nossos atos de fala em comprometer nosso ouvinte e nos
autocomprometermos. Quando se tem em jogo uma conversa
em que se há necessidade de tomar cuidado com o que será
proferido, algo que provavelmente possa ferir a face do outro,
se demonstra uma preocupação com a manutenção da face
positiva do ouvinte e se busca estratégias para que nada de de-
sagradável na comunicação se estabeleça entre ouvinte e locu-
tor. Por sua vez, quando se retira esse ouvinte da sua zona de
conforto pedindo algo, por exemplo, se fere sua face negativa.
O fato de o ouvinte aceitar o agir do que lhe foi proferido tam-
bém pode por em risco (ou não) sua face, por exemplo, não
cumprir uma ordem.
Ao se tratar do locutor, pouca coisa muda. De acordo com
Brown e Levinson (1987), se mantém a face positiva toda vez
que se tem o desejo de agradar ou de não ferir a face do inter-
locutor, visto que essa tentativa de não ferir já é uma ameaça
de face a qual poderá ter ação reparadora ou não. Mantém-se
a face negativa toda vez que é imposta uma ordem, um conse-
lho, ou um diálogo curto com o ouvinte.
Dias (2010) afirma que:
No senso comum, a palavra “polidez” normalmente remete à ideia de
bons modos, de comportamento de acordo com os manuais de etique-
ta e boa educação. Entretanto, a mesma palavra também pode ser en-
tendida como um termo técnico usado no estudo pragmático e socio-
linguístico das interações verbais para referir-se aos comportamentos
que buscam promover a harmonia em tais interações. [...] Para diferen-
ciar essas duas formas de entender a “polidez”, Watts (2003, p. 30-31)
propõe denominá-las de polidez1 e polidez2, respectivamente. Sendo
195
assim, a polidez1 remete a comportamentos sociais que são específicos
de cada cultura, como: abrir e segurar a porta para que alguém saia antes
de você, não arrotar em público, oferecer assento no ônibus para pesso-
as mais velhas, não falar com a boca cheia, etc. Já a polidez2, a partir da
ideia de que todo encontro social supõe um risco para os interlocutores,
é vista como um comportamento linguístico que busca compensar ou
minimizar esse risco para que a comunicação ocorra da forma mais har-
moniosa possível — as críticas e reclamações atenuadas ou indiretas são
um exemplo de tal comportamento. Por isso, este último tipo de poli-
dez também é denominado de “comportamento político” (DIAS, 2010,
p. 28-29).

Neste trabalho, adotamos como polidez um conjunto de es-


tratégias de manutenção de nossa face/imagem pública que
visa sempre estar em bem comum com os demais, consideran-
do também que nem sempre é possível manter esse bem estar
entre locutores, o que causa a má interpretação da face que
desejamos expor deixando assim em aparência a face negativa,
a qual é indispensável para compreender a Teoria da Polidez.
Para que uma comunicação seja efetiva, há uma necessidade
de cooperação entre falantes para que haja uma boa recepção
de informação e logo uma interpretação e compreensão das
inferências no diálogo. A partir da teoria de Grice (1975), Dias
(2010), ao explicar a teoria da polidez, esclarece:
Tomando como referência o PCO, os autores assumem o postulado
griceano de que a natureza racional e eficiente da comunicação está
pressuposta nas interações verbais. Entretanto, eles observaram que
a maioria dos atos de fala produzidos nas conversações naturais não
ocorre de forma tão eficiente como sugerem as máximas propostas por
Grice (1975).
[...]tem-se que o modelo de comunicação de Brown e Levinson, toman-
do como referência o Princípio de Cooperação griceano, e guiado por
critérios racionais, psicológicos e sociais, concebe a polidez linguística
como um fenômeno centrado na noção metafórica de face ou imagem
que foi elaborada inicialmente por Erving Goffman, em 1967, no âmbito
da psicologia social (DIAS, 2010, p. 34-35).

196
Sendo cooperativo, a conversa tende a fluir, porém não po-
demos deixar com que se torne algo em exagero, pois como
dizia Grice (1989) ser cooperativo significava não dar mais infor-
mações que o requerido, ou seja, ser cooperativo em excesso
nem sempre pode ser uma boa escolha de comunicação. Se
sempre pecarmos pelo excesso pode ocorrer que nossa auto
imagem se torne depreciativa e negativa. Dar mais informações
além das solicitadas tende a ferir nossa face pública se conside-
rarmos que as pessoas teriam baixa confiança em nossa ima-
gem e teriam extrema cautela em fornecer informações com
certo receio de até onde essas informações estariam “protegi-
das” em uma comunicação futura entre nós e outros falantes/
ouvintes.
Levando em consideração o exposto acima, considera-
mos que não existe uma face sem a outra, e que não há julga-
mento de valor entre os termos “positivo” e “negativo”.

3 O discurso político em debate televisivo


A televisão é um dos meios de comunicação mais presentes
no dia-a-dia das pessoas e com ela podemos nos distrair as-
sistindo uma novela, acompanhar uma missa, um esporte, ou
seja, a televisão não funciona somente como um meio de levar
a cultura à população, mas sim como um meio de levar a infor-
mação.
A política por sua vez se faz cada dia mais presente na vida
das pessoas, pois atualmente as pessoas desejam saber mais
sobre os candidatos que se elegeram ou que irão se eleger.
Confiar sempre na internet às vezes assusta muitos, pois ela traz
muitas informações incorretas e as famosas Fake News, além
do acesso que muitas pessoas não encontram em uma rede
midiática. A não confiança plena no que encontram na internet
faz com que as pessoas busquem tais informações em algum
197
jornal, seja ele em mídia televisiva ou mídia impressa. Conside-
rando essa vontade de informação e tendo maior confiabilida-
de nos temas após aparecerem em mídias de maior acesso, é
de extrema importância que os jornais tragam sempre aos seus
telespectadores/leitores as informações com credibilidade e
fontes seguras.
O debate político televisivo proporciona aos telespectadores
acompanhar ao vivo os candidatos frente às perguntas feitas
por seus concorrentes ou pelos mediadores do debate. Desta
maneira o alcance ao público através das propostas dos can-
didatos é maior, o que leva percepções aos interlocutores e
proporciona uma escolha de candidato mais próxima aos seus
princípios. Em um debate se coloca à mercê a sua imagem e
sua face para uma grande quantidade de pessoas. A estratégia
racional de se manter a face pessoal e a de seus oponentes de
debate preservadas tem suas vantagens, ainda mais com uma
imagem pública sendo construída. Brown e Levinson (1987)
afirmam que:
No contexto da vulnerabilidade mútua da face, qualquer agente racional
procurará evitar esses atos de ameaça à face ou empregará certas estra-
tégias para minimizar a ameaça. Em outras palavras, ele levará em con-
sideração os pesos relativos de (pelo menos) três desejos: (a) o desejo de
comunicar o conteúdo do FTA x, (b) o desejo de ser eficiente ou urgente,
e (c) o desejo de manter a face de O em qualquer grau. A menos que (b)
seja maior que (c), F vai querer minimizar a ameaça de seu FTA (BROWN
E LEVINSON, 1987, p.68).

O ato de não usar estratégias linguísticas que comprometam


sua construção em imagem social tem sim seus lugares especí-
ficos de ocorrerem, porém neste trabalho não analisaremos os
perfis dos candidatos dentro e fora do debate, e sim somente
dentro do debate e o momento em que ocorrem os atos (im)
polidos.

198
Neste trabalho analisaremos momentos de debates jor-
nalístico midiático, que ocorreram na Rede Globo, no dia
29/09/2022, e contou com a participação dos candidatos
Ciro Gomes (PDT), Jair Bolsonaro (PL), Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), Luiz Felipe D’Ávila (NOVO), Simone Tebet (MDB), Soraya
Thronicke (União Brasil) e Padre Kelmon (PTB). O debate com
os candidatos à presidência contou com quatro blocos, obtinha
regras e foi mediado pelo jornalista William Bonner.

4 A análise dos momentos selecionados


Para esse estudo houve diversos momentos que poderiam
ser selecionados, porém optamos por dois momentos nos
quais a manutenção da face positiva dos falantes prevaleceu
e dois momentos onde não houve importância com a face do
outro ou de si mesmo. Retomando que:
Na perspectiva da teoria da polidez, há certos atos que intrinsecamente
ameaçam a imagem pública do falante (F) e/ou do ouvinte (O), uma vez
que, por natureza, vão contra ao que é desejável para manter tal ima-
gem. Tais atos são denominados por Brown e Levinson de face-threa-
tening acts (FTAs) e podem ameaçar tanto a imagem negativa quanto a
imagem positiva de ambos interlocutores (DIAS, 2010, p. 38).

Políticos tendem a manter suas faces bem preservadas para


obter maiores vantagens nas eleições. No entanto, em debates
os ânimos tendem a se exaltar/cansar e logo em algum mo-
mento os interlocutores deixam suas faces à mercê de uma
imagem negativa. Pode ocorrer também do candidato obter
uma boa retórica e assim responder bem o questionamento
que lhe foi proferido elevando sua face positiva. Uma questão
a se considerar é que a impolidez deliberada também pode ser
uma estratégia eleitoral, na medida em que promove uma re-
lação de antagonismo contra alguém que pode ser construído
como inimigo.
199
Por se tratar de um debate aberto ao público, pode-se afir-
mar que “O uso de estratégias encobertas (4) permite que o
falante faça o FTA sem ter que se responsabilizar por ele, dei-
xando que o interlocutor decida como interpretar o ato de fala“
(DIAS, 2010, p. 42), ou seja, a interpretação não se dá somente
de candidato a candidato, mas sim entre candidatos e público,
afinal, cada um pode obter uma interpretação diferente sobre a
mesma coisa ou coincidir opinião e interpretação.
O FTA ocorre, por exemplo, quando eu estou desconfortável
com uma situação e ela envolve outra pessoa, logo tenho que
proferir uma sentença para esse alguém (seja uma pessoa pró-
xima ou não) e posso escolher não fazer esse FTA ou fazer do
uso de estratégias de comunicação para isso. Essas estratégias
podem apresentar alguma atenuação para o lado com polidez
ou sem polidez, ou então não ter atenuação nenhuma e ser
mais direto, o que exporia a face do ouvinte e de certa forma a
do falante.
Agora que já sabemos na teoria o conceito de Face e sabe-
mos como expomos nossa imagem em uma conversa, iremos
apresentar nosso objeto de estudo.
I.Diálogo entre a candidata Soraya (União Brasil) e
padre Kelmon (PTB)

Soraya: Eu acho que o Senhor vai se dar mal com seu candidato, você
vai arrumar confusão aí perder o cargo de cabo eleitoral, mas vamos lá.
Quero aproveitar esse momento para mostrar que não tem propostas
só tem xingamento, e dizer [padre a interrompe e William Bonner cha-
ma atenção de Kelmon, Soraya então retorna]. Eu quero então aprovei-
tar esse momento pra dizer que eu não mandei o senhor para o inferno,
tá?! Mas eu perguntei se o senhor não teria medo de ir para o infer-
no porque o senhor não disse se que se deu nenhuma extrema unção
na pandemia, o senhor, a pergunta, o senhor não respondeu. Sobre o
imposto único eu vi que o senhor não estudou, o senhor tá parecendo
mais o seu candidato que é “nem-nem” nem estuda e nem trabalha,
200
o senhor não estudou. E dizer mais, não deu extrema unção porque o
senhor é um padre de festa junina.

Inácio Lula (PT)

Kelmon: Condenado. O senhor nem deveria estar aqui como candidato


à presidência da república. Por que o senhor está aqui? O Senhor sabe
porquê. A população precisa saber a verdade, mas o senhor é cínico,
mente, o senhor é um ator. Mente o tempo todo. [Lula o interrompe
“olha, mentiroso é você, irresponsável”]. O Senhor deveria respeitar
um padre. [Candidato Lula “não sei se o senhor é padre! Tá fantasia-
do rapaz.”], fantasiado? Me respeita [William Bonner os interrompe e é
ignorado] o senhor deveria me respeitar [Lula “você é padre ou tá fanta-
siado?”] Eu sou sacerdote, o senhor respeite a população do Brasil, um
padre cristão, me respeita! O senhor é abortista [Lula fala longe do mi-
crofone e não se escuta o que foi proferido, o mediador do debate pede
perdão ao público, pede respeito entre candidatos e fala em cortar os
microfones até se acalmarem] O senhor é abortista! O aborto é assassi-
nato e você tá promovendo isso para todo mundo! [Lula “padre fariseu”]
Fariseu é você! Pilatos lavou as mãos, eu não vou fazer isso [novamente
as palavras do candidato Lula não são bem entendidas] fale a verdade
pro povo. Fale a verdade! Fale a verdade pro povo.

Os exemplos I e II apresentam uma ameaça a face po-


sitiva de ambos candidatos, tanto de falante (F) como ouvinte
(O). Sobre a questão, Dias (2010) esclarece que:
2- Atos que ameaçam a imagem positiva do ouvinte: (i) os atos que
mostram uma avaliação negativa de F de alguns aspectos da imagem
positiva de O incluem as desaprovações, críticas, queixas, acusações e
insultos; (ii) há outros atos que mostram que F não se importa com a
imagem positiva de O, tais como trazer à tona temas emocionalmente
perigosos ou controvertidos. [...]
4- Atos que afetam diretamente a imagem positiva do falante: descul-
par-se, confessar ou reconhecer culpa e aceitar elogios. Nos casos dos
elogios, ao aceitá-los F pode sentir-se obrigado a depreciar o objeto elo-
giado pelo interlocutor ou retribuir o elogio, enaltecendo algum aspecto
do outro (DIAS, 2010, p. 39),
201
No exemplo I, a candidata faz o uso de vários termos que
ameaçam sua(s) face(s), porém demonstra coragem em afron-
tar outro candidato assim ferindo a imagem positiva dele pe-
rante o público. A candidata Soraya inicia avisando a Kelmon
que ele irá “Se dar mal com seu candidato” visto que estava re-
percutindo que o candidato Kelmon era cabo eleitoral do can-
didato Bolsonaro. O fato de a candidata expor sua opinião sem
se importar com seu locutor evidencia sua face negativa. Logo
a candidata profere “eu não mandei o senhor para o inferno,
tá?! Mas eu perguntei se o senhor não teria medo de ir para
o inferno” e tal locução produzida poderia prejudicar sua face
positiva, pois estaria se justificando. Porém a candidata man-
teve sua face positiva visto que essa locução funcionou como
uma retomada de sua fala para o público, dando assim mais
credibilidade à sua imagem perante o seu maior público naque-
le momento e não reparando sua imagem efetivamente para o
candidato o qual não obtinha sua consideração mínima para tal
ato reparativo.
Seguido de um questionamento de sua função dentro da
igreja a qual o candidato padre se diz pertencer, ela o acusa de
estar “parecendo mais o seu candidato que é ‘nem-nem’ nem
estuda e nem trabalha, o senhor não estudou” ferindo assim
não somente a face positiva de Kelmon como a face positiva
do candidato Bolsonaro perante ao público, visto que Soraya
profere novamente sua acusação de função de Kelmon de
cabo eleitoral. Novamente o questiona e faz uma ironia com a
função a qual o padre diz pertencer dentro da igreja “não deu
extrema unção porque o senhor é um padre de festa junina”,
fazendo quase como que um xeque-mate em seu oponente,
porém deixando sua face negativa evidente novamente. A for-
ma como a candidata entoa as palavras, faz o jogo de olhares
para Kelmon e para as câmeras faz com que suas palavras te-
202
nham mais credibilidade o público e desconcentrem mais seu
oponente, porém o uso da linguagem corporal também pode
alcançar outras duas funções: cair na gargalhada se não levar a
sério o proferimento da candidata ou se enfurecer por estar fa-
lando desta maneira com um candidato que se diz pertencer ao
clero. Nota-se que a candidata faz o uso da estratégia de poli-
dez sem atenuação, o que significa que não houve importância
e preocupação em preservar a face adversária.
Soraya não demonstra alguma preocupação com a face po-
sitiva de seu oponente, porém no momento em que retoma
sua fala como se estivesse “não foi bem isso que eu te falei não”,
está numa tentativa de em um diálogo elevar mais a sua face
enquanto profere que a outra não é positiva.
No exemplo II, não há nenhum respeito entre candidatos.
Lula tenta ferir a face positiva de Kelmon e Kelmon a de Lula.
Porém, neste caso, ocorre algo intrigante. Ambos deveriam
buscar defender sua face, e somente Kelmon está na defensi-
va. Ambos se encontram interrompendo a fala do outro, o que
ocasiona um bate-boca entre eles e deixa o público com a ima-
gem de ambos candidatos em representações negativas, pois
percebe-se que nenhum tem controle ou respeito no momen-
to de alteração. O fato de não respeitarem o comando do me-
diador do debate agrava ainda mais a imagem positiva de am-
bos candidatos, deixando-os com uma falta de discernimento
e consideração com as regras que lhes foram apresentadas.
Percebemos que em ambos casos os falantes tentam ferir
a face positiva de seu oponente, o que é natural em um de-
bate onde se colocam pessoas com pensamentos distintos,
assuntos relevantes e polêmicos. Dias afirma que tais atitudes
partem das “estratégias de polidez negativa (3), que são aque-
las que visam a preservar a face negativa do interlocutor por
meio de diferentes procedimentos linguísticos de atenuação”
203
(DIAS, 2010, p. 42). Um debate ao vivo com transmissão para
milhares de pessoas, traz não somente a falta de consideração
entre candidatos, como falta de consideração com o público.
Basicamente, essa estratégia de polidez negativa visa mostrar
o desprezo do falante pelo ouvinte, pois não busca fazer a es-
tratégia de comunicação com nenhuma ação que possa reparar
a face do ouvinte.
Vejamos outros dois exemplos, onde ocorrem a manutenção
da face positiva:
I. Diálogo entre a candidata Simone Tebet (MDB) e a
candidata Soraya Thronicke (União Brasil)

Tebet: Candidata Bolsonara, é, candidata Soraya. E eu peço desculpas


até pelo carinho e respeito que tenho por você, jamais a desrespeitaria.
Eu quero dizer que você fez hoje a pergunta mais importante da noite
para mim, cê sabe que eu sou mãe e professora...

II. Diálogo entre Tebet e Felipe d’Avila (Novo)

D’Ávila: Senadora, chamei a senhora para reestabelecermos a civilidade.


Discutir o Brasil. Chega desse baixo nível que nós estamos assistindo
hoje à noite que é deprimente ver alguém que queira ocupar a presidên-
cia da república num bate-boca de botequim. Vamos discutir o Brasil?
Tão vamos lá. A pergunta é: nós divergimos um pouco na questão das
privatizações porque eu quero privatizar as grandes estatais e a senhora
sempre defende a manter ainda a Petrobrás como estatal e outras. Eu
gostaria que a senhora fizesse sua colocação.
Tebet: Bom, é, nós realmente divergimos, mas divergimos em alguns
pontos apenas. Mas nós temos uma visão em comum, nós somos um
governo que se eleito seremos parceiros da iniciativa privada, não é um
estado grande paquiderme pesado e muito menos um estado mínimo
na minha visão, é estado necessário para servir as pessoas e aquilo que
é bom tem que ficar na mão do estado se essa for a responsabilidade
dela. [...]

204
O exemplo III entre Tebet e Soraya, houve um equívoco (ou
uma estratégia) por parte de Tebet, que chamou Soraya pelo
nome de outro candidato, Bolsonaro. Logo se retratou a fim
de manter sua imagem positiva e manter a de sua colega de
debate também, usando assim da estratégia de comunicação
com atenuação positiva. Visto que Tebet diz que “Jamais a des-
respeitaria” quando a chama pelo nome do outro candidato,
podemos inferir que Tebet não tem nenhuma afinidade com
Bolsonaro e acha desrespeitoso chamar outra pessoa por esse
nome. No entanto, quando profere essa sentença faz o uso de
uma estratégia para com o público e não diretamente com So-
raya, pois demonstra que ela não se importa com a imagem
construída pelo candidato Bolsonaro ao público e aos demais
participantes do debate. Com isso, Tebet realça a imagem ne-
gativa que ela tem construída sobre o candidato Bolsonaro e
não se importa em como sua imagem será representada pelo
mesmo, sugerindo assim um embate recíproco.
Houve comentários que Tebet e Soraya já se conheciam an-
tes, inclusive que Tebet foi professora de Soraya. Podemos pen-
sar que talvez por isso Tebet se referiu a Soraya proferindo “cê
sabe que eu sou mãe e professora”, pois sugere a proximidade
entre ambas além da estratégia de reforço das faces positivas.
O exemplo IV traz um momento onde se tenta demons-
trar uma maturidade entre Tebet e D´Ávila após uma série de
ameaças entre os candidatos envolvidos anteriormente, assim
estabelecendo a preservação das faces que estão em direito
de palavra no púlpito naquele instante, ou seja, um FTA com
atenuação e polidez. O proferimento “Senadora, chamei a se-
nhora para restabelecermos a civilidade. Discutir o Brasil. Chega
desse baixo nível que nós estamos assistindo hoje à noite que é
deprimente ver alguém que queira ocupar a presidência da re-
pública num bate-boca de botequim” deixa em evidência isso.
205
Por sua vez, quando Tebet vai dar sua réplica profere “Bom, é,
nós realmente divergimos, mas divergimos em alguns pontos
apenas” e explica onde ocorrem suas divergências e porquê.
O respeito em IV não demonstra somente a polidez entre
candidatos que estão cumprindo as regras, mas sim respeito
com o público que está em casa. Em contrapartida fere as faces
positivas dos seus oponentes fazendo assim um FTA com ate-
nuação negativa aos demais contendentes, visto que funcio-
na como uma “chamada de atenção” à falta de educação dos
demais neste momento de debate, o qual exige maturidade e
seriedade perante os demais presentes e ao público.
Tal situação preserva a face positiva tanto de Tebet quanto de
d’Ávila perante o público e fere a face de seus oponentes con-
tendentes. Além disso, demonstra o respeito construído entre
candidatos que observam os diálogos alheios quando seu opo-
nente está em debate e não é à toa que d’Avila chama Tebet.
Queremos afirmar que o fato de chamar a Tebet é porque o
candidato observou sua postura, analisou sua imagem e levou
em consideração todo interesse político, onde o reconheci-
mento que ela o proporcionaria seria propicio para as estraté-
gias futuras que favoreceriam o candidato. O jogo de interesses
não é somente manter a elevação de ambas faces, mas sim
aproveitar o momento positivo e negativo de outros candida-
tos para se reerguer e fazer com que seu nome se equivalha ao
de outro e principalmente, chamar atenção para com o público.
Ora, se o público pode estar gostando de atitude de X e se
está em Y, busca-se a aprovação social que X tem através dos
meios que X constrói sua imagem para os demais, assim deixa-
-se de estar em Y e passa-se para X.
Vale ressaltar que:
As estratégias de polidez positiva (2), por sua vez, incluem algum tipo
de ação reparadora e destinam-se a preservar a imagem positiva do in-
206
terlocutor. Tais estratégias giram em torno de três objetivos: ressaltar o
conhecimento compartilhado, a cooperação entre o falante e o inter-
locutor e mostrar simpatia pelos desejos do outro (DIAS, 2010, p. 41).

Retomamos também que:


1-Atos que ameaçam a imagem negativa do ouvinte: (i) atos que predi-
cam alguma ação futura de O e, com isso, o pressionam a realizá-la (ou
o impedem de realizá-la), como ordens, pedidos, sugestões, conselhos,
lembretes, ameaças, advertências, etc.; (ii) atos que predicam alguma
ação futura positiva de F em direção a O e que pressionam O a aceitá-la
ou a rejeitá-la, ficando possivelmente em dívida com F, como ofertas e
promessas; (iii) atos que predicam algum desejo de F em relação a O ou
em relação às posses de O e que dão motivo para O pensar que deve
proteger o objeto de desejo de F ou dá-lo a F, como as felicitações e os
elogios. [...]
3- Atos que ameaçam, principalmente, a imagem negativa do falan-
te: entre tais atos estão os agradecimentos, a aceitação de desculpas
e ofertas, dar explicações, fazer promessas e ofertas que não deseja
(DIAS, 2010, p. 38 - 39).

Nitidamente o uso de estratégias comunicativas com atenu-


ações ocorreram mais pensando em como seria essa manuten-
ção de face para com o público do que propriamente com os
candidatos. Todo o debate se voltou para com o público.

Neste trabalho chegamos à conclusão de que não se pode


separar a análise das faces sem perceber o jogo que está por
trás, nitidamente sempre há uma busca de equilíbrio entre fa-
ces. Nunca é somente uma face positiva ou somente negativa,
sempre ambas estão em equilíbrio. Ambas em conjunto cons-
troem a imagem pública-social das pessoas, seja ela positiva ou
negativa.
Observando os quatro diálogos, percebemos que os can-
didatos analisados mesmo quando estão exercendo sua face
negativa buscam a manutenção de face positiva para o público
207
telespectador. O fato de não manter a face negativa em jogo
todo o tempo tem relação com sua imagem pública e de maior
alcance nas mídias, assim como manter sua imagem positiva
para o público se torna essencial. Se obtiverem uma imagem
boa é mais propenso que se tenha êxito em uma ação pública,
neste caso as eleições. Lembrando que essa imagem pode ser
considerada também ao longo do tempo, por exemplo, outras
eleições para outros cargos ou não.
A retórica e os movimentos para as câmeras em certos atos
de fala comprovam essa necessidade de construção de uma
imagem que pode ser mais bem aceita pelo público.
Concluímos também que a teoria da polidez, se aplicada cor-
retamente, dá conta por si só de explicar o porquê se faz uso de
tais mecanismos a fim de manter as faces envolvidas, seja ela
positiva ou não.
Quando os contendentes tinham o desejo de manter a face
negativa do ouvinte em atenuação, se fez evidente que era ex-
clusivamente uma estratégia para manter essa face perceptível
para o concorrente a qual estavam proferindo no momento.
Porém, quando se tratava da exposição para seus respectivos
telespectadores, em meio aos proferimentos e ameaças as fa-
ces positivas dos ouvintes se tinham reparos de faces positivas
dos locutores direcionados à câmera.
O exagero em exaltação adversária também pode ocasio-
nar um efeito reverso em alguns telespectadores, que podem
considerar a politicagem um meio o qual sempre estarão em
embate nos decorrentes debates. Além disso, se policiar em
excesso para preservar a face positiva para que não seja tida
como negativa tem suas desvantagens, visto que não estará se
portando como realmente é, mas sim como uma pessoa mol-
dada para estar ali e ter consciência de até que ponto se deve
manter essa face positiva e com quem se deve mantê-la. Foi
208
o caso de d’Avila com Tebet, o qual acreditamos que o candi-
dato não quis somente manter sua face positiva de fato, mas
sim utilizar da positividade de outra face para que se construa a
imagem própria.

BROWN, P.; LEVINSON, S. Politeness: some universals in language


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CRUZ, Nathália. Sociedade: sociologia- manual do Enem. Quero bol-
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LOPES, Ana Cristina Macário. Globoplay. Edição na íntegra. Debate
para presidente na Globo: veja a íntegra. 29 set 2022. Disponível em:
https://globoplay.globo.com/v/10979025/?s=0s Acesso em: 28
out 2022

209
Línguas e literaturas
indígenas
A invasão da Língua Portuguesa em Abya Yala
na perspectiva Takariju

Mikaeli Kethleyn Messias Luz1

O Brasil precisa se reconciliar com sua história; aceitar


que foi “construído” sobre um cemitério (MUNDURUKU,
2019, n.p.)

Introdução
Vivemos em uma sociedade que sempre esteve envolvida
em preconceitos, tanto racial quanto linguístico. Em outros ter-
mos, o prejulgamento é formulado antecipadamente, sem que
se conheça tradição, cultura, língua, características físicas das
pessoas que são vítimas dessa violência. Já a violência é expres-
sa a partir das ações ou atitudes discriminatórias contra outra
pessoa ou grupos sociais. No Brasil, o preconceito racial, ou
melhor, o racismo, está enraizado desde a chegada dos bran-
cos, ou seja, do início da colonização, em que foi imposta uma
cultura e língua totalmente diferente das línguas e culturas que
havia neste território, segundo Baniwa,
Historicamente os índios têm sido objeto de múltiplas imagens e con-
ceituações por parte dos não-índios e, em consequência, dos próprios
índios, marcadas profundamente por preconceitos e ignorância. Desde
a chegada dos portugueses e outros europeus que por aqui se instala-
ram, os habitantes nativos foram alvos de diferentes percepções e jul-
gamentos quanto às características, aos comportamentos, às capacida-
des e à natureza biológica e espiritual que lhes são próprias. (BANIWA,
2006, p. 34).

Ao analisar tanto a questão do racismo quanto da imposi-


ção da língua portuguesa neste território, é possível considerar
1 Trabalho orientado por Letícia Fraga.
211
que ambas estão relacionadas, pois os indígenas, desde 1500,
sofrem racismo por serem diferentes do colonizador, inclusi-
ve por falarem línguas diferentes. É interessante mostrar que
o racismo se coloca contra o corpo indígena, pois relevamos o
português falado por estrangeiros, especialmente os brancos
europeus e estadunidenses, mesmo que muito carregado de
sotaque. No entanto, se é um indígena falando português com
sotaque, o olhar que lançamos a ele é totalmente o oposto, o
que deixa evidente o julgamento diferenciado entre indígenas
e brancos.
Por essa razão, a proposta deste trabalho é discutir como se
deu a “Invasão da língua portuguesa no Brasil na perspectiva
Tacariju”, que consiste em analisar a construção da noção de
língua materna aplicada à língua portuguesa no Brasil, um local
em que tem variadas línguas em uso, “por mais de 305 etnias”
(COLLET; PALADINO; RUSSO, 2014. p. 43), a partir da transcri-
ção das aulas ministradas na disciplina de Prática I, pelo pós-
-graduando Felipe Coelho Iaru Yê Takariju, em 2021.
Felipe Coelho Iaru Yê Takariju é Licenciado em Filosofia pela
Universidade Estadual do Ceará - UECE, é membro do CEAI
(Coletivo de Estudos e Ações Indígenas - UEPG – Universidade
Estadual de Ponta Grossa) Membro pesquisador do PRAGMA-
CULT (Grupo de estudos em Linguagem e Pragmática Cultural
– UECE – Universidade Estadual do Ceará), recentemente no
ano de 2023 foi nomeado Mestre em Linguística Aplicada pelo
PPGEL da UEPG (Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem, da Universidade Estadual de Ponta Grossa).
O Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG) é um programa acadêmico que oferece
cursos de especialização, mestrado e doutorado em diversas
áreas do conhecimento. A UEPG é uma universidade pública

212
localizada na cidade de Ponta Grossa, no estado do Paraná,
Brasil.
O Departamento de Estudos da Linguagem (DEEL) da Uni-
versidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) é uma unidade
acadêmica responsável pelo ensino, pesquisa e extensão re-
lacionados à área da linguagem. O DEEL oferece cursos de
graduação, pós-graduação e desenvolve projetos de pesquisa
e extensão nas diversas áreas que compreendem os estudos
linguísticos.
Dentro do Departamento de Estudos da Linguagem, são
abordadas diferentes disciplinas e campos de estudo, tais como
linguística, letras, literatura, tradução, ensino de línguas, entre
outros. Essas áreas são desenvolvidas por meio de cursos de
graduação, como Letras Português/Espanhol e Letras Portu-
guês/Inglês, bem como por programas de pós-graduação, in-
cluindo mestrado e doutorado em Estudos da Linguagem. Vale
ressaltar que este programa oferece bolsas de estudos e cotas
para alunos.
Neste TCC, pretendo fazer uma exposição de como se deu a
invasão e implantação da língua portuguesa no território brasi-
leiro, a partir de uma perspectiva reflexiva da questão indígena
que luta contra essa colonização, a qual tive acesso por meio
das aulas que Felipe ministrou, e que versaram sobre todas es-
sas invasões linguísticas e territoriais. É um trabalho que tam-
bém se coloca a favor da permanência das línguas indígenas,
para que estas continuem vivas, ou seja, é uma luta contra o
estado que ainda quer destruir os povos originários mantendo
o processo do colonizador. Exporemos os percalços ocorridos
desde a colonização até os dias de hoje e as lutas pela liberta-
ção e reconhecimento do uso das línguas indígenas como parte
do patrimônio cultural e necessidade para a sobrevivência dos
povos nativos.
213
Sabemos que ainda existem estereótipos preconceituosos
desde a época dos colonizadores, que foram passados de ge-
ração a geração na sociedade brasileira, como o racismo, into-
lerância religiosa, preconceito de ideologia, intolerância cultu-
ral, com o reforço do preconceito linguístico, em um país onde
existem as mais variadas expressões orais. Ressaltamos tam-
bém a criação da falácia de que a língua considerada materna
das pessoas que vivem nesse território é a “portuguesa”, mes-
mo que o país possua uma configuração multilíngue por conta
das línguas indígenas.
Takariju (2021) entende a configuração brasileira como múl-
tipla em línguas orais, em que a língua materna do falante é
aquela que ele aprendeu desde criança em seu convívio social,
ou seja, a nativa coloquial, já a língua nacional e a língua oficial
do país, que é a língua comercial pregada e oficializada pelo
governo é considerada uma linguagem mais culta e tradicional.
Com isso, minhas perguntas nesta pesquisa são as seguintes:
por que se defende que a língua materna dos brasileiros é o
português? Quais as consequências da colonização para os po-
vos indígenas em relação às suas línguas?
Dessa forma, o objetivo geral deste trabalho é analisar os fa-
tos e contextos ocorridos na colonização, que mostram que o
português não é língua materna deste território, mas língua in-
vasora.
Já os objetivos específicos são verificar as consequências da
colonização em território indígena e as consequências que es-
tes colonizadores causaram nos povos originários, principal-
mente em suas línguas maternas.
A base teórica deste trabalho são as aulas do pós-graduan-
do Felipe Coelho Iaru Yê Takariju que, como já afirmei, foram
ministradas na disciplina de Prática I, da Universidade Estadual
de Ponta Grossa (UEPG), as quais receberam o seguinte título:
214
“Invasão da língua portuguesa”. Em suas aulas, Felipe se baseou
em autores indígenas, como Gersem dos Santos Luciano Ba-
niwa (2006) e Altaci Corrêa Rubim (2016) e nos seguintes au-
tores não-indígenas: Célia Collet; Mariana Paladino; Kelly Russo
(2017), Olimpia Maluf Souza; Wellington Marques da Silveira;
Ana Cláudia de Moraes Salles (2019). Por fim, foram utilizados
também o Referencial Curricular Nacional para as Escolas In-
dígenas (RCNEI) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Esta pesquisa justifica-se pela necessidade de se quebrarem
paradigmas em relação a um ensino colonial, no qual sempre
se ensinou e ainda se ensina para os alunos que o Brasil foi des-
coberto. Entretanto, sabemos que isso é uma farsa. O Brasil não
foi descoberto por Cabral e, sim, invadido por ele. Na obra “500
anos de angústia” (1999), o escritor Guarani Olívio Jekupé retrata,
através da poesia, esta violência que os europeus causaram nos
povos originários em 1500, pois já havia vidas neste território
antes da invasão, vidas que lutaram contra essa invasão e aca-
baram morrendo, sendo escravizados ou tendo que se adequar
a isso, sendo que no último caso passaram a ser nomeados
pejorativamente de “indígena bom” ou “mal”. Por isso, a base
teórica deste trabalho se dá pelo olhar indígena. Ainda segundo
Jekupé (1999), este país foi roubado pela coroa portuguesa no
tratado de Tordesilhas, em 1492, e posteriormente em 1500,
pela invasão portuguesa, sendo que até os dias atuais os povos
originários continuam sendo desrespeitados por muitos da so-
ciedade.
Vivemos em um país multilíngue que mantêm pensamentos
coloniais, um país com diversificadas línguas. Segundo Bruna
Franchetto, “não há apenas uma língua indígena. E elas não são
idiomas, são línguas no sentido pleno do termo, como qualquer
outra língua falada no mundo” (2010, p. 10). Melhor dizendo,
não existe apenas uma língua indígena no Brasil, mas, sim, vá-
215
rias línguas de diversos povos indígenas espalhados neste ter-
ritório, as quais carregam as regras e valores das suas comuni-
dades linguísticas. Por isso, as línguas indígenas são diferentes
umas das outras e ainda há, dentro das próprias línguas, dife-
renças dialetais. Nessa caso, este trabalho é de alta relevância
para auxiliar uma sociedade que luta por reais direitos humanos
linguisticamente.
A justificativa de por que escolher esta temática para o meu
trabalho de conclusão de curso se dá pela minha trajetória aca-
dêmica. Inicialmente, no primeiro ano de Letras Espanhol da
Universidade Estadual de Ponta Grossa, cursei a disciplina de
Prática I, em que tive um primeiro contato com o RCNEI e com
as normativas relacionadas à temática indígena. No segundo
ano da graduação, em algumas aulas de diacronia abordamos a
questão das apropriações culturais. Além disso, tive a oportuni-
dade de participar de projetos de extensão na universidade que
também tratavam desse assunto.
O primeiro projeto era justamente sobre temática indígena,
em que fiquei responsável pela digitação de materiais didáti-
cos de professores indígenas. Com isso, comecei a querer me
aprofundar mais sobre isso. Ao terminar este projeto, iniciei
outro em que seguia no mesmo ramo da temática indígena, a
diferença é que fazíamos atividades em escolas e formação de
professores, levando nosso conhecimento sobre tais temáticas
indígenas e afro-brasileiras.
Inicialmente, eu pensava em levar meu TCC para a área da
literatura, mas repensei e vi que minha área seria esta, a da de-
fesa dos direitos indígenas, o direito da sociedade de saber a
realidade a partir do relato de quem sofreu danos por séculos,
daqueles que até hoje têm marcas desta colonização. Com isso,
fiz minha proposta sobre o tema que queria trabalhar, que era a
implantação da língua portuguesa no Brasil. Então, a professora
216
Letícia me mandou os vídeos das aulas ministradas por Felipe
Coelho e perguntou se era aquele assunto que queria discutir
e era justamente aquilo que queria fazer. Fiz a transcrição, da
oralidade para a escrita, das três aulas em que Felipe abordava
este assunto.
Creio que este trabalho é de suma importância, principal-
mente por permitir que possamos acessar um material único,
que descreve a violência sofrida pelos indígenas neste país a
partir da sua perspectiva, de pessoas cujos ancestrais foram di-
zimados, maltratados, machucados e mortos, além de terem
suas línguas apagadas, mas jamais esquecidas, pois esses povos
lutam até hoje pelos seus direitos nesta sociedade que ainda
mantém costumes coloniais. Por isso tive a certeza que aqui
era meu lugar, um lugar da real história que ainda é ocultada
dos livros e da sociedade. Tive a certeza que estava no lugar
certo depois de participar do ENEI2 e sentir de perto a realidade
indígena que, muitas vezes, nós brancos, julgamos sem conhe-
cer o outro, sem saber a realidade de quem ainda sofre ataques
diários.
A metodologia de pesquisa utilizada para este trabalho se
baseia no estudo qualitativo feito a partir da transcrição e análi-
se do conteúdo das aulas do pós-graduando Felipe Coelho Iaru
Yê Takariju, em que explica como a invasão foi prejudicial aos
indígenas da época e aos seus descendentes e questiona o uso
da expressão “língua mãe” aplicada ao português, pois o territó-
rio já era multilíngue.
Com isso, a problemática deste trabalho diz respeito ao con-
junto que será apresentado das transcrições das aulas, com a

2 O ENEI¹, conhecido como Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas, é um


evento de grande relevância no âmbito do Ensino Superior no Brasil. Além de ser
o maior encontro do gênero, ele se destaca por promover reflexões e mobilizações
em prol dos povos indígenas, O mesmo ocorreu no ano de 2022, na UNICAMP Uni-
versidade Estadual de Campinas - Campinas - São Paulo - Brasil, durante os dias 26
a 29 de julho de 2022.
217
minha contribuição, para que este texto escrito seja fonte de
conhecimento que também dá mais visibilidade sobre a reali-
dade brasileira, pelo olhar de quem realmente é dono deste lo-
cal, de quem cuida e zela por este território. Este trabalho visa,
portanto, dar mais visibilidade àqueles que, por séculos, foram
calados, silenciados, menosprezados pela sociedade, dentro ou
fora de suas aldeias.
Dessa forma, inicialmente traremos uma contextualização
das teorias que abordam o estudo da temática dos povos origi-
nários, buscando compreender o que foi a invasão dos coloni-
zadores na perspectiva indígena.

área da linguagem
Quando pensamos na colonização portuguesa, ocorrida en-
tre os séculos XVI e XIX, qual é a primeira coisa que vem à cabe-
ça? Normalmente, é o pensamento do colonizador, aquele que
temos impregnado em nossas mentes desde a nossa infância.
As escolas “tradicionais” contam que o Brasil foi “descoberto
em 1500 pelos Europeus de Portugal”. Nas palavras de Takariju:
Somos ensinados na escola pela educação “oficial”, desde cedo, que o
Brasil foi “descoberto e desbravado por corajosos e aventureiros euro-
peus”. Quem aí não conhece uma cidade do sudeste do país que tenha
o nome de um bandeirante ou coronel ou de qualquer outro ‘assassino’.
Sempre tem aqui um colégio com o nome do Castelo Branco que é um
dos primeiros coronéis da ditadura militar. O cara matou, torturou, fez
o que quis e ainda ganhou uma homenagem com seu nome em um
colégio (TAKARIJU, 2021).

Neste trecho, fica evidente o que a sociedade dominante im-


põe. O reconhecimento evidente de certas figuras públicas que
causaram algum tipo de dominação de sua autoridade neste
território com marcas da colonização e que isto ainda percor-
re nossa realidade, e nossa sociedade considera estas figuras
218
como heróis da sociedade brasileira, a ponto de concederem
títulos como forma de homenageá-los, como Castelo Branco
que foi um dos líderes do golpe militar de 1964. “Para os indí-
genas, os jesuítas não são heróis, eles são invasores, assassinos
e destruidores do mundo” (TAKARIJU, 2021).
Se pararmos para pensar, na realidade há 522 anos havia al-
gumas canoas que adentraram este país pelo litoral nordestino.
Naquelas caravelas, haviam viajantes brancos que vieram para
essas terras achando que se tratava das “Índias”. Entretanto, o
que hoje chamamos de “Brasil”, para os povos originários cha-
mava-se “Pindorama” (TAKARIJU, 2021) e estes “desbravado-
res” eram os colonizadores. Na visão destes, o Brasil foi “desco-
berto”, deixando de lado a verdadeira história de um país que foi
massacrado e passou a ter dores eternas, nas palavras de Davi
Kopenawa Yanomami (1998) “Os brancos clamam hoje: ‘Nós
descobrimos a terra do Brasil!’ Isso não passa de uma mentira.
Ela existe desde sempre e Omama nos criou com ela. Nossos
ancestrais a conheciam desde sempre”.
Ao pensar sobre os fatos ocorridos, compreendemos que,
desde nossa raiz, a história oficial sustenta que o Brasil foi “des-
coberto” em abril de 1500, por Pedro Álvares Cabral, uma his-
tória que é narrada nas cartas de Pero Vaz Caminha ao rei de
Portugal, que haviam encontrado um país “novo”, e, com isso,
gerou um interesse na coroa portuguesa, que começou a des-
bravá-lo. Os que adentravam o país viram que era um local em
que existiam diversificadas especiarias, um rico solo com uma
fauna favorável e com vegetações diferentes, uma delas o fa-
moso pau-brasil, que era utilizado para a extração de tinta, fato
que marca o que chamamos de período da extração de pré-co-
lonização (COLLET; PALADINO; RUSSO, 2014).
No ano de 1530, o destemido comandante militar Martim
Afonso de Souza desbravou as terras brasileiras com sua po-
219
derosa frota, estabelecendo assim o que viria a ser conhecido
como Brasil Colônia. Após essa conquista em 1534, o territó-
rio foi dividido em 15 capitanias hereditárias, com o intuito de
promover o povoamento, desenvolvimento e exploração por
parte dos portugueses. Esse período de colonização do Bra-
sil se estendeu por séculos, mas mesmo nos dias atuais ainda
podemos encontrar vestígios desse passado colonial. Ao anali-
sarmos a história, percebemos que essa “descoberta” também
serviu como meio de doutrinação dos povos nativos, ao afirmar
que não havia nada a ser descoberto no Brasil, pois já existiam
diversos grupos e povos habitando essas terras, que “viviam
aqui há mais de 20 mil anos” (TAKARIJU, 2021).
Com isso, começou a colonização deste novo solo e das pes-
soas que haviam no local, por meio da imposição de uma outra
língua, a língua portuguesa, que passaria a oficial. Começaram
a doutrinar os indígenas, muitos dos quais foram obrigados a
abandonar suas culturas, por meio da imposição de uma nova,
deixando de lado o modo de vida de aproximadamente 5 mi-
lhões de pessoas que habitavam o país “e as mais de mil línguas
antes da chegada dos colonizadores a este país” (RODRIGUES,
1986).
A doutrina se deu a partir do ensino, que era tarefa dos jesuí-
tas da Companhia de Jesus. Estes tinham a finalidade de educar
e catequizar os indígenas. Entre os jesuítas, estavam Manuel de
Nóbrega e José de Anchieta, que foram os criadores de uma
ação mais educadora, de base catequética, do que conservado-
ra. Segundo Takariju (2021):
Então ele diz aqui que “De base catequética do que conversora”, ora
como assim? Pois catequese já é uma conversão, isso é uma citação
complicada e o mais engraçado é que esses autores descrevem essas
coisas e são publicadas porque eles acham que somos abestados, idio-
tas de não perceber um negócio destes.

220
Quando se trata desta afirmação “de base catequética, do
que conversora”, na frase já há uma controvérsia, pois “base ca-
tequética” já quer dizer conservadora, de uma cultura que se
deve seguir. Gersem dos Santos Luciano Baniwa (2006) ratifica
a afirmação de Takariju (2021):
A educação indígena no Brasil Colônia foi promovida por missionários,
principalmente jesuítas, por delegação explícita da Coroa Portuguesa,
e instituída por instrumentos oficiais, como as Cartas Régias e os Regi-
mentos. Assim, em todo aquele período, compreendido entre os sécu-
los XVI e XVIII, é praticamente impossível separar a atividade escolar do
projeto de catequese missionária (BANIWA, 2006, p. 150).

A conversão dos povos indígenas a partir da catequese é uma


das tecnologias de invasão, era uma estratégia dos portugueses
europeus para conseguir doutrinar os indígenas e ensiná-los a
ter a religião do colonizador e a cultura que eles queriam impor
para a sociedade na época. Em outras palavras,
A conversão dos povos indígenas a partir da catequese é uma das tec-
nologias de invasão, destruição dos nossos povos. Aí o texto continua
“A ação jesuítica se definia pela compreensão de que era a língua geral
o caminho a seguir”. Que língua geral era essa? O português? Não, ainda
não. Essa língua geral foi a criada pelos jesuítas a partir de uma junção
do tupi com o português que é a língua nheengatu que não está sendo
citada no texto (TAKARIJU, 2021).

Esta afirmação também pode ser comprovada a partir da se-


guinte citação de Baniwa (2006): “O nheengatu ou língua geral
é uma variação da língua tupi-guarani falada por diversos povos
indígenas” (BANIWA, 2006, p. 32). Esta catequização foi mais
uma maneira de empregar os costumes e culturas religiosas
dos europeus em uma nação que eles alegavam que não tinha
fé. Segundo Souza, Silveira e Moraes Salles (2019)
Vale ressaltar que, embora compreendamos que a palavra “cultura” in-
tegre as línguas/crenças, marcamos, pois, que a via principal de entrada
para os gestos colonizadores europeus se deu, primeiramente, pelo si-
221
lenciamento das práticas religiosas indígenas, por meio da imposição/
disseminação do processo de catequização. Ou seja, para um povo que
não tinha fé, lei ou rei, a catequização, ou, em outras palavras, a implan-
tação de uma fé produziu, como consequência, o respeito ao governo e
às suas leis (2019, p. 198).

Com isso, os colonizadores afirmavam que a ação dos jesuí-


tas se definia pela compreensão de que era a língua geral a ser
empregada aos povos indígenas e o caminho que deveriam se-
guir. Mas se pararmos para analisar, qual seria essa língua? Seria
a dos portugueses? Não, a língua que foi criada pelos jesuítas
foi uma junção do tupi com o português que, na época, era a
língua nheengatu, uma língua geral que passou séculos junto
ao português como uma língua oficial no país (TAKARIJU, 2021).
Takariju ainda afirma a respeito de Houaiss (1992):
Eu pego uma das primeiras citações que a autora coloca no texto que é
“O ensino no Brasil foi, inicialmente, tarefa dos jesuítas da companhia
de Jesus, com a finalidade da catequização indígena. Foram os jesuítas,
entre eles Manuel de Nóbrega e José de Anchieta, credores de uma ação
mais educadora, de base catequética, do que conservadora. (Houaiss:
1992, p. 147). A ação jesuítica se definia pela compreensão de que era a
língua geral caminha a seguir” (TAKARIJU, 2021).

O mesmo autor justifica porque essa língua estaria sendo im-


posta neste território invadido, o que até os dias atuais é nega-
do, uma vez que se continua afirmando que este território foi
descoberto. O mesmo debate sobre o tema é retomado:
Percebe que o ensino é uma das formas de invadir e colonizar? aí diz
que o ensino no Brasil, isso daqui nem se chamava Brasil pra come-
ço de conversa foi tarefa inicial dos jesuítas, qual foi o papel principal
dos jesuítas? Ou como eles se apresentavam para a gente nas escolas?
No ensino fundamental quando vamos estudar a história do Brasil, eles
apresentam os jesuítas como os que trazem este ensino aos indígenas,
por isso ela cita que “criadores de uma ação mais educadora”, ou seja,
para este autor que é da citação em que a autora utiliza a invasão jesuí-
tica à destruição de um modo de vida dos povos indígenas a partir dos
jesuítas e uma ação educadora, ou seja, eu estou educando você, não
222
estou destruindo a sua vida, estou levando a luz para você, você é um
aluno, você não tem a luz, então estou vindo do outro lado do mundo
para salvar a sua vida (TAKARIJU, 2021).

O ensino foi uma das formas de invadir e colonizar. Como


sabemos, a história deste país é testemunha de uma grande
violência cultural e linguística, que foi empregada por anos pe-
los jesuítas e portugueses, que ensinavam a tal da língua geral.
Com esse ensino, eles tinham que ensinar o nheengatu e mui-
tos povos não tinham nem a noção do tupi e quem diria uma
língua nova. Com base neste aspecto, Takariju esclarece como
realmente era empregada a língua geral pelos jesuítas.
Como é que esse povo iria se entender? Os jesuítas iam lá e ensinavam
a tal da língua geral, e com esse ensino que muitas vezes não era o tupi
e tinha que ensinar o nheengatu. E se eu não aprendesse? Você não
tinha a opção de não querer aprender, pois se não você seria açoitado,
torturado, assassinado. Então aqueles que não aceitavam eles fugiam,
resistiam, guerreavam, e eram trazidos e tratados pelos jesuítas como
índios selvagens, e aqueles que por outro motivo ficavam nessas al-
deias/aldeamentos que tinham uma simpatia maior pelos portugueses
esses eram chamados de índios mansos. (TAKARIJU, 2021)

A liberdade de escolha era inexistente, qualquer pessoa que


se opusesse às imposições dos colonizadores era cruelmente
punida, seja por meio de açoites, tortura ou até mesmo assas-
sinato. Aqueles que se recusavam a aceitar o jugo dos invasores
optavam por fugir, resistir ou lutar, sendo então capturados e
enviados aos aldeamentos, onde eram tratados pelos jesuítas
como índios selvagens. Já aqueles que permaneciam nesses al-
deamentos, por qualquer outro motivo, e se aliavam aos portu-
gueses, eram chamados de índios mansos.
Os aldeamentos missionários tinham em seus projetos de funciona-
mento três objetivos “principais”: misturar, amansar e criar mão-de-obra
servil. “Misturar” povos diferentes, com intuito de enfraquecer suas or-
ganizações singulares enquanto povos. Através da penitência e religião,
objetivavam “amansar” os indígenas, tornando-os tementes a um deus,
223
implantando o pecado como tecnologia de servidão, garantindo que
aqueles povos não iriam se rebelar, “civilizando-os”. (TAKARIJU, 2021)

Esta afirmação é ratificada por Collet, Paladino e Russo (2014):


Segundo Beatriz Perrone-Moisés, a legislação e a política da coroa por-
tuguesa em relação aos povos indígenas do Brasil colonial distinguiram
os índios aldeados e aliados dos índios bárbaros ou inimigos (Perrone-
-Moisés, 1992). Essa distinção redundou num tratamento igualmente
distinto. Aos primeiros foi garantida a liberdade ao longo de toda a colo-
nização. Deles dependiam o sustento (produção de gêneros de primeira
necessidade e trabalho nas plantações dos colonizadores) e a defesa da
colônia (constituição do grosso dos contingentes de tropas de guerra
contra inimigos, tanto indígenas quanto europeus). Já aos índios inimi-
gos reservou-se a escravidão, ou seja, àqueles que resistiam aos aldea-
mentos e não se submetiam às políticas da colônia. (COLLET; PALADI-
NO; RUSSO, 2014. p.18).

Então a história do Brasil, principalmente da língua portugue-


sa, só é contada a partir desses indígenas que se “sujeitaram”
a isso, pela dor que os colonizadores causaram, além de mas-
sacrar, escravizar, torturar, entre as mais diversas atrocidades
que deixaram marcas nos povos originários até os dias da atua-
lidade, como sabemos “foram mais de 506 anos de dominação”
(BANIWA, 2006, p. 18). Foram milhares de histórias, línguas,
culturas apagadas por séculos. Por isso, é possível dizer que,
ainda na atualidade, vivenciamos vestígios da colonização de
1500. Quando estudamos todo o percurso da língua atualmen-
te oficial do país tornada língua “mãe” adentramos em contro-
vérsias, pois vivemos em um local em que não existe somente
uma língua. Takariju (2021) reforça esta afirmação quando dis-
cute a ideia de que o português é língua “mãe” desse território:
[...] percebe que a língua do príncipe já sofre alterações, e começa a se
falar a língua que hoje se fala no Brasil, mas estas alterações/modifica-
ções têm muito do atravessamento dos povos indígenas, pois aqui no
Brasil eram mais ou menos 6 milhões de indígenas antes da invasão,
imagina o atravessamento de cada língua destes povos na língua portu-
guesa, eu penso muito por sotaque, pois muitos que temos no Brasil há
224
esse atravessamento indígena em contato com outras línguas invasoras,
como o italiano, francês, português, espanhol, entre outras. Então esta
língua portuguesa nunca será uma língua pura, então não se pode falar
que fulano está falando certo ou errado, e nem que ela é uma língua
mãe, ela pode ser reivindicada por algumas pessoas, falando que nas-
ceu no território brasileiro e para ela ser uma língua mãe, a partir desta
perspectiva você pode falar que ela é uma língua mãe, porém tem que
entender que ela não é uma língua daqui, ou seja, é invasora, mas a par-
tir outro conceito de territorialidade pode se dizer que ela e sim uma
língua materna, porém eu vejo que este discurso reforça mais ainda esse
aliciamento indígena, por isso não utilizo e digo que a língua materna
chamada de português aqui no Brasil é uma mentira colonial, é uma
questão política.

Sabemos que no processo de colonizar o país foi necessário


usar uma língua, a qual foi imposta para o comércio. Com isto,
vários indígenas tiveram que se adequar ao padrão e se sub-
meter a uma educação que foi implantada como instrumento
de invasão e colonização, uma educação de um sistema não
plural, mas, sim, binário, homogêneo, ou seja, a educação a que
fomos submetidos na escola, desde cedo, a que afirma que o
Brasil foi descoberto e desbravado por corajosos e aventureiros
europeus, que ao longo da história são premiados e homena-
geados em grande parte das cidades, municípios, escolas, pra-
ças etc. Estes mesmos são retratados no Brasil como grandes
heróis pela sociedade.
Segundo Takariju (2021), “Nossas formas de sentir e pensar
foram subestimadas por muito tempo, silenciadas como nos-
sas línguas e narrativas, que precisam encontrar formas de so-
breviver ao esmagamento da narrativa hegemônica colonial”
(2021). Em outras palavras, essa é a primeira grande farsa sobre
a qual o Brasil é erguido, que está impregnada no berço desta
nação, em que a trapaça do descobrimento, a mentira de que
essas pessoas chegaram aqui para trazer essa “luz”, o “progres-
so”, a civilização. Essa ainda é a invenção que até a atualidade
continua alimentando essa história, por exemplo, a ideia de que
225
alguém vai chegar ao poder governamental tomando a presi-
dência, com um discurso de que nossa vida irá mudar. Ou me-
lhor, isto é uma grande falsidade que reina desde a colonização,
desde o início da história oficial desse país.
Um país que vive grandes evoluções tecnológicas, comerciais,
empresariais, mas que ainda tem impregnado em si preconcei-
tos étnico-raciais, linguístico, apropriações culturais etc. Neste
sentido, será que são os povos originários que não evoluíram
ou a sociedade brasileira que não reconhece a contribuição dos
povos originários? Segundo Baniwa, “os povos indígenas não
são seres ou sociedades do passado. São povos de hoje, que
representam uma parcela significativa da população brasileira
e que por sua diversidade cultural, territórios, conhecimentos e
valores ajudaram a construir o Brasil” (2006, p. 18).
O povoamento deste território se deu muitos anos antes
do início do processo de colonização, antes de ser “Brasil”, um
país de um processo de marcas violentas, com uma bagagem
imensa de variadas línguas, culturas, histórias e comidas que já
existiam e habitavam este local. Alguns desses tesouros ainda
persistem, em palavras, culinárias, especiarias, que vêm destes
povos, mas que não recebem os créditos necessários, pois são
totalmente desvalorizados.

Quando se discute língua materna no território brasileiro,


vem à mente a língua “oficial” do país, que é a língua portugue-
sa, já que é isso que se ensina às crianças desde a infância, nas
escolas e nos livros didáticos de maneira geral. Porém, como já
citei, quando nos dispomos a entender como se deu essa ofi-
cialidade – por meio de lutas, massacres, violências, causados
pelos colonizadores portugueses contra os povos originários
–, percebemos que isso é algo contraditório. No início do pro-
226
cesso de colonização, em 1500, não existia uma comunicação
viável, pois no território que seria desbravado e manchado de
sangue existiam as mais variadas línguas indígenas, enquanto
para os colonizadores só havia a língua deles, que era a língua
portuguesa. Com isso, eles tiveram que ter uma estratégia para
poder se comunicar com os povos originários. Por meio do pac-
to que tinham com a igreja católica, os missionários vieram para
catequizar os indígenas, tentando empregar uma língua geral, o
nheengatu, que, segundo Baniwa:
O nheengatu ou língua geral é uma variação da língua tupi-guarani fa-
lada por diversos povos indígenas do litoral brasileiro, que foi sistemati-
zada por missionários e levada a outros povos indígenas do Brasil como
uma língua de comunicação pan-indígena (2006, p. 32).

Portanto, o uso do nheengatu foi uma estratégia da coloni-


zação e dos missionários, para que houvesse um entrosamen-
to linguístico no sentido de facilitar a comunicação, entretanto
isso não foi aceito facilmente pelos indígenas, que foram taxa-
dos primeiramente de “selvagens”, um nome pejorativo. Este
termo, segundo Takariju,
O interesse em “civilizar” os “selvagens” não era apenas para lucrar com
eles e com o roubo de suas terras, mas também objetivava assassinar
sua singularidade ancestral, colonizando seu pensamento e modo de
vida, tomando suas mentes, almas, tempo, espaço, corpos e sentimen-
tos, mudando suas relações consigo mesmos e com a Terra para garantir
que esse seja um movimento sem retorno, e depois lhes tomarem os
territórios (2021, p. 29).

Os povos indígenas foram forçados a abandonar seus co-


nhecimentos ancestrais para se adaptarem às imposições dos
colonizadores, principalmente em relação à sua doutrina. A fal-
ta de escolha era evidente, pois aqueles que se recusavam a
aceitar eram submetidos a castigos físicos, tortura e até mesmo
assassinato. Diante dessa realidade, muitos optavam por fugir,
resistir e lutar, mas acabavam sendo capturados pelos jesuí-
227
tas, que os tratavam como “selvagens”. Aqueles que escolhiam
permanecer nas aldeias coloniais eram rotulados como “índios
mansos”, numa tentativa de evitar serem estigmatizados dessa
forma, como afirma Takariju (2021):
Nas aldeias indígenas tentavam ensinar os índios, porém não, pois eles
criavam aldeamentos de missões indígenas que eram um pedaço de
terra que eles pegaram e ocuparam, invadiam que ali eles montavam
um aldeamento de missão jesuítica, e esse aldeamento eles captura-
vam vários povos de diferentes etnias, e jogavam todos dentro de uma
única casa para eles se entenderem, e muitas vezes eles eram inimigos/
rivais uns dos outros.

Toda esta ação jesuítica não foi nem um pouco educadora aos
indígenas, mas, sim, “uma ação etnocida, invasora, destruidora,
escravizadora, torturadora, racista e perseguidora” (TAKARIJU,
2021), pois eles não vieram só para implantar o sistema linguís-
tico, mas para também implantar seu sistema espiritual no Bra-
sil. Fizeram isso com o argumento de que estariam salvando
as almas dos povos originários, utilizando todas as artimanhas
para a civilização do que eles tratavam como “selvagens”.
Assim essa visão romântica que a autora Houaiss (1992) traz sobre o
texto dos jesuítas segue uma ideologia mentirosa dos invasores na for-
mação do Brasil então “a ação jesuíta não foi educadora, foi uma ação
etnocida, invasora, destruidora, escravizadora, torturadora preconceitu-
osa e perseguidora” porque quê eu digo tudo isso e porque os jesuítas
eles para implantar não só o sistema linguístico, mas também o sistema
espiritual no Brasil, que eles o chamavam assim, e para eles salvarem as
almas dos indígenas eles se utilizavam de todas essas formas e artima-
nhas, para que eles civilizaram as almas dos selvagens (TAKARIJU, 2021).

Para que as almas fossem “salvas”, os indígenas teriam que


seguir as artimanhas impostas, deveriam seguir um padrão im-
posto, caso contrário, receberiam uma punição e suas almas
não seriam salvas pelos salvadores da pátria, que tinham esse
intuito. Segundo as palavras de Takariju (2021):

228
Então a alma do selvagem que estava em processo de civilização ele
sempre precisava de uma punição, então se você não rezasse na hora
que era pra rezar você apanhava se não trabalhasse na hora que tinha
que trabalhar você apanhava se não utilizasse as roupas que eram pra
usar você apanhava se não falasse na língua que era pra falar você apa-
nhava se não vivesse de acordo com as relações sociais que ele manda-
va você apanhava, por exemplo, as famílias como hoje nós conhecemos
com esse núcleo de pai, mãe e filhos, em uma casa é um modo que foi
trazido da Europa para cá.

A partir do momento em que Pindorama se tornou Brasil, as


línguas originárias sempre tiveram uma trajetória marcada pelo
massacre, um massacre linguístico. Os governantes do Brasil,
desde o início, fizeram questão de esconder as origens do país,
conforme se pode observar no trecho a seguir, de Marquês de
Pombal: “Sempre foi máxima inalteravelmente em todas as
missões que praticaram os novos domínios e introduziu logo
nos povos conquistados o seu próprio idioma por ser indispen-
sável’’. Ou seja, era uma máxima dos colonizadores introduzir
nos povos conquistados o seu próprio idioma, porque por meio
da unificação da língua é mais fácil unificar os pensamentos.
Dessa forma, para Takariju (2021):
Era uma máxima dos colonizadores introduzir nos povos conquistados
o seu próprio idioma, porque se fosse um idioma único seria muito mais
fácil de unificar os pensamentos. Não é nem um povo, porque todo o
território brasileiro falante de português, não se torna homogêneo, en-
tão a ideia de um idioma único no país e para trazer essa ideia de unida-
de e soberania, que é a principal ideia central do estado nação, em que o
mesmo é soberano linguisticamente, nas fronteiras e com isso notamos
que o Brasil é dividido em fronteiras, e soberano em sua economia.

Então a língua é utilizada de maneira legítima para garantir a


soberania desse povo, para que em todo o território brasileiro
se fale a língua portuguesa. Então a ideia de ter um idioma úni-
co no país é para trazer essa ideia de unidade e soberania, que é
a principal ideia do estado-nação, em que o mesmo é soberano
229
linguisticamente, nas fronteiras. Com isso notamos que o Brasil
é dividido em fronteiras e soberano em sua economia.
Os conceitos geográficos oficiais de fronteiras e a história “oficial” criado
pelo Estado-Mercado são ferramentas conceituais e científicas utiliza-
das para implantar nesse imaginário essa unidade nacional. (TAKARIJU,
2021)

Como Takariju já disse, a língua é utilizada como meio de


controlar e colonizar, pois é um dos meios mais eficazes para
desterrar os povos originários dos seus antigos costumes, en-
tão esse é dos meios mais eficazes para transformar os povos,
por meio da destruição dos seus antigos costumes e de todo
o modo geral de uma vida, deixando de lado a real situação
linguística.
Segundo Takariju, um dos primeiros mitos do colonialismo
linguístico é reiterar que a língua portuguesa é uma língua ma-
terna, é um recolonizar, que não considera que aqui existem
hoje ainda mais de 200 línguas indígenas, ou seja, o termo
língua “materna” neste território, se torna inválido, pois é um
país que, segundo dados do IBGE, de 2010, é multilíngue. Vale
ressaltar que este número não representa nem um terço das
línguas que havia no território antes do início da colonização
de Portugal, quando se estima que havia entre 1.200 a 1.500
línguas indígenas (BANIWA, 2006).
A língua portuguesa é, portanto, uma língua invasora, não
“materna”, nas palavras de Takariju (2021): “a implantação e o
transplante da língua portuguesa não efetivaram só uma mu-
dança de uma língua, ou um modo de vida, mas também de-
marcava e ampliava a colonização”. A língua foi submetida a um
transplante e implante, como se fosse uma cirurgia invasiva,
um vírus voraz que corroeu todas as outras línguas indígenas
que antes habitavam este território. Rapidamente, ela se tor-
nou a língua oficial, imposta pela máquina burocrático-concei-
230
tual colonial, que ganhou poder de dominação e destruição das
demais línguas indígenas. Quando uma língua indígena é ani-
quilada, não é apenas a língua que sucumbe, mas sim todo um
modo de vida que se baseia nela. Entretanto, vale ressaltar que
ainda em pleno século XXI existem pesquisadores que defen-
dem que a língua real e oficial é o português, pois os mesmos
acreditam que os povos indígenas nascem já introduzidos na
língua portuguesa, mas isso não se torna uma verdade absolu-
ta, pois existem mais de 270 línguas indígenas, então a língua
portuguesa como língua materna é uma invenção, é uma men-
tira colonial.
[...] A língua portuguesa e a nossa “língua materna” então eu digo aqui”
A língua portuguesa é uma língua invasora, ela foi transplantada e im-
plantada, assim como uma cirurgia, uma mutação, um vírus que corrói
todas as outras línguas indígenas tomando-se oficial, pela maquinaria
burocrática-conceitual colonial, ganha força de destruição das outras
línguas indígenas. ’’ ou seja é quando se destrói uma língua indígena não
se destrói somente a língua mas também todo um modo de vida que é
baseado nesta língua (TAKARIJU. 2021) .

Felipe ainda ressalta que a língua portuguesa e o Brasil são


uma invenção da colonização
E essa mentira colonial sendo perpetuada no cotidiano ela cria essa cris-
talização de norma e naturalidade, fazendo achar um Brasil e a língua
portuguesa sempre existiram, mesmo elas sendo uma invasão, pois o
Brasil é uma invenção, estado marcado, estado nação, e a língua portu-
guesa e a língua oficial deste estado nação (TAKARIJU, 2021).

Portanto, essa mentira colonial que vem sendo cada vez mais
aprofundada, sendo perpetuada no cotidiano, criando uma
cristalização de norma e naturalidade, fazendo com que ache-
mos que o Brasil e a língua portuguesa sempre existiram, isto
é uma farsa da colonização, ambas foram uma invasão, pois o
Brasil é uma invenção colonial, dos portugueses, de um estado

231
mercado, em que a língua portuguesa equivale à língua oficial
desta nação para sustentar a ideia de nacionalidade brasileira.
Quando a gente fala sobre a língua, não pode deixar escapar as outras
questões que atravessam esta questão linguística, porque a língua é di-
ferente do que muitos pensadores e cientistas que pensam, pois a lín-
gua não fica em um laboratório, bolha, num estado ideal vai estudar e
utilizar dela, a língua é dinâmica, cotidiana e da vida dos acontecimentos
em que ela atravessa a história, economia, sociologia, filosofia, ou seja,
tudo que atravessa a língua. Pensar na língua como um compartimento
e muito de um pensamento conceitual e trazido na forma de educar no
mundo moderno, é justamente essa forma de educar compartilhalizado
em que existem cursos em que são totalmente diferentes um dos ou-
tros e tem um compartimento como, por exemplo, o curso de humanas
não estão próximos dos cursos de exatas, com isso acham que não exis-
tem filosofia na física, matemática (TAKARIJU. 2021).

Em outras palavras, neste trecho se discute o uso do termo


“língua”. Não se pode esquecer da questão linguística, pois a lín-
gua é diferente do que muitos pesquisadores defendem. O uso
geral é demarcado pelas pessoas. A língua não é algo que se
pode criar em um laboratório, nem dentro de uma bolha so-
cial governamental hierárquica, pois ela é dinâmica, faz parte
do cotidiano de uma vida que está envolta de acontecimentos,
atravessando todas as ciências, como história, economia, so-
ciologia, filosofia, ou seja, tudo que atravessa a língua e suas di-
versas áreas científicas, pois para os indígenas a língua vai muito
além da sua forma literal científica, como afirma Takariju.
[...] a língua é instrumento de conexão consagrada com um ancestral,
natureza, a nossa língua não é só algo que seja o signo de um significan-
te que seja só para falar e comunicar, as nossas línguas são chaves para
abrir portais, curas, etc… A língua para nossos povos ela tem outras pers-
pectivas, Mas também a para a comunicação, já para os portugueses eu
não sei se existe essa conexão com a linguagem, língua, ao não ser essa
da comunicação (2021).

As línguas indígenas por muitos anos foram banidas, sofre-


ram preconceitos, não tiveram garantias. Não havia garantia
232
nenhuma aos povos originários, ou seja, até então eles não
eram reconhecidos perante as leis. Os povos indígenas e suas
línguas maternas são alvos destas leis, que asseguram que o
Brasil tem a língua portuguesa como oficial, mesmo que ela
seja um instrumento e tecnologia de invasão e destruição dos
povos indígenas.
A continuidade das línguas, assim como das culturas indígenas,
depende da superação da cultura eurocêntrica e branqueocêntrica
imposta aos povos indígenas. Não se pode continuar com o processo
colonial de supervalorização das línguas e das culturas dominantes e
desvalorização sistemática e institucionalizada das línguas e culturas
indígenas. É necessário eliminar a visão de que as línguas e culturas
brancas são superiores, mais desenvolvidas, mais civilizadas e ver-
dadeiras. Ou que os povos indígenas são transitórios pelos seus
estados atrasados de culturas e civilizações (BANIWA, 2017).

Portanto, o uso do termo “materno” é invasor, pois sua im-


plantação se torna invasora e racista. Segundo Takariju (2021),
A língua portuguesa não é a língua Mãe, é uma instituição invasora e seu
modo é de implantação e racista. Racista por quê? Quando você im-
planta algo que é oficial, aquilo que não é oficial é visto como errado, e
terá punição, que recai nos falantes de outra língua fora a oficial, naquela
época os povos que não eram falantes eram a maioria os indígenas. En-
tão os povos indígenas foram caçados a partir desta implantação racista
da língua portuguesa, então a língua do príncipe como era referida a
língua portuguesa marquês de pombal, e elevada a uma língua única e
oficial, e virou lei e com isso há uma punição para quem não cumpre a
risca, ou seja, a lei e a língua trabalham no mesmo universo, apesar de
serem diferentes, mas atravessam (2021).

Ou seja, quando você implanta algo que é oficial, aquilo que


não é oficial, é visto como errado, e terá punição. Quem sem-
pre sofreu as consequências foram os mais “fracos” que eram
os indígenas, que não tinham um olhar malicioso para aqueles
que adentraram estas terras. Desde a colonização, é imposto
que no Brasil a única língua oficial é o português, desde que a
mesma seja usada para escola, comércio etc. Em um país que
233
tem diversificadas línguas vivas em uso diariamente, reconhe-
cer somente uma língua que foi invasora e implantada a partir
de regras, a língua está envolvida em uma guerra de mundos,
porque quando essa língua portuguesa foi implantada e suces-
sivamente os povos originários deixaram de falar suas línguas
maternas indígenas, a língua portuguesa é uma língua invasora,
invasão essa que provoca a perda da conexão com o ancestral,
mas não totalmente, por isso existe o processo de retomada
(TAKARIJU, 2021).

A luta por um país multilíngue


O Brasil é um dos países mais extensos do mundo. Nele há
mais de 26 estados e um distrito federal, com mais de 5.565
municípios, contendo uma rica vegetação, florestas. Entretan-
to, se compararmos com outros continentes, como por exem-
plo, o continente africano (figura 1), vemos que seu formato é
similar ao do Brasil (figura 2).

Figura 1- Mapa do Continente Africano

234
Figura 2- Mapa do Brasil

Nota-se que no continente africano há a representação de


diversificadas bandeiras, pois em cada região deste continente
há línguas e um nativo pode saber mais de uma língua desde
sua infância. Notamos que, nesse sentido, há uma diferença
imensa em relação ao nosso país, pois o Brasil só tem uma lín-
gua oficial, que foi uma língua invasora do território no tempo
do colonialismo há mais de 500 anos. Em um país multilíngue,
é preciso ter cuidado com o uso da expressão língua “materna”.
Por exemplo, no caso do Brasil, antes da sua invasão, existiam
milhares de línguas que tiveram que se submeter à língua oficial
que, na época, era a língua geral, que era tratada como “mater-
na”. Se os indígenas não se submetessem a estas regras eram
taxados de “selvagens”.
Por que o caminho a seguir era o da língua geral? A resposta
está nas destruições linguísticas, que massacraram as línguas.
Só para citar um exemplo do que os colonizadores faziam,
os jesuítas que eram responsáveis pela educação catequética,
montavam um aldeamento de missão jesuítica e, nestes lo-
cais, capturavam vários grupos de diferentes etnias indígenas,
235
jogavam todos dentro de uma única casa e, quem estivesse
dentro, tinha que se entender com os demais, e muitas vezes
eles eram inimigos/rivais uns dos outros. Nas palavras de Taka-
riju,
No regime de funcionamento das missões jesuíticas dos aldeamentos,
conviviam juntos diferentes povos, obrigatoriamente, visando à mes-
tiçagem, à mistura e descaracterização da língua e dos costumes sin-
gulares de cada povo para produzir uma única massa de identificação.
(TAKARIJU, 2021, p. 17)

Desta forma, os jesuítas empregavam apenas a língua geral,


pois, como uma maneira de adentrar ao colonialismo, como
maneira de comunicação, como forma de fazer os variados
grupos se entenderem através de uma única língua geral. Com
isto, a pergunta que resta é a seguinte: como é que esses povos
iriam se entender? Ora, os jesuítas iam lá e ensinavam a tal da
língua geral. Se os indígenas não aprendessem? Eles tinham a
opção de não querer aprender, mas teriam que aceitar sofrer as
consequências empregadas pela coroa, que muitas vezes eram
dolorosas, razão pela qual muitos acabavam fugindo, resistin-
do.
A história do Brasil é voltada principalmente para língua
portuguesa. Por isso ela só menciona os indígenas que se “su-
jeitaram” a isso, ao aprendizado, e passaram a ser taxados de
“mansos”. Talvez muitas vezes nos perguntemos sobre a ra-
zão de ainda existirem tantas outras línguas indígenas e por
que muitos indígenas se rebelaram, resistiram, mantiveram as
suas línguas vivas, fugindo do que o capitalismo empregava.
Entretanto, aqueles que entraram no sistema geral sofreram as
consequências por diversas questões, perdendo ou até mesmo
esquecendo-se da sua língua mãe.
A luta se dá desde a resistência contra esta língua, seja a geral
lá de 1500 até os dias atuais, como nas escolas quando usa
236
de uma apropriação cultural no dia dos indígenas. Em outras
palavras, “O processo de colonização acontece no início da tra-
jetória escolar, como o dia do índio, em que a criança é pintada
e já vai induzir que o indígena fosse uma caricatura, fantoche,
em que ele não existe mais e foi um período histórico do nosso
país, um primitivo que hoje em dia não existe mais” (TAKARIJU
2021).
Assim sendo, muitos povos indígenas ainda resistem ao uso
da língua portuguesa, principalmente pelas violências que a so-
ciedade dominante impõe. Entretanto, perante as leis, o uso da
língua portuguesa se torna obrigatória no ensino formal. Mas
por que não podemos ser um país multilíngue? Cadê o reco-
nhecimento da dor vivenciada por estes povos desde a colo-
nização? Cadê a valorização deste povo que luta todos os dias
pela natureza, por sua terra, e por um reconhecimento digno?
Até uns anos atrás nem reconhecimento em papéis estes po-
vos originários tinham. A sociedade preza tanto pelos direitos
humanos, mas até quando o mesmo é defendido? Ou será que
só para alguns grupos isto é válido?
A luta pela igualdade na sociedade acontece há séculos. São
séculos vivenciando variados preconceitos, lutando para obter
uma igualdade social e linguística, um país que tem mais de
207 línguas vivas, que ainda usa o termo “língua materna” de
forma pejorativa, para uma língua que é invasora, que vem com
a história de colonização, de um país que foi “descoberto” por
europeus portugueses, um povo originário que ainda passam
anos sofrendo a diferença social, que lutam por suas terras até
os dias atuais (figura 3), pelo reconhecimento, a luta em que o
governo tenta demarcar até onde podem ser as terras destes
indígenas, conforme Takariju (2021):
Esse movimento de colonização e um processo cotidiano ele está acon-
tecendo neste momento em Brasília que querem aprovar a PL 490 do
237
marco temporal é um processo colonizador, ou seja, a colonização não
acabou não é um marco histórico, data que começou em 1500 e ter-
minou quando o Brasil “apareceu” com a proclamação da república do
Brasil, a colonização está ocorrendo até hoje, é um dos mitos em relação
a isso é justamente tratar ela como se estivesse acabado, pois ela está
em processo, por isso os indígenas lutam por essa colonização e suas
demarcações territoriais, também para que suas línguas continuem vi-
vas, então esta luta contra o estado ainda quer destruir e um processo
colonizador.

A luta pelas demarcações territoriais acontece desde a toma-


da dos colonizadores. Mesmo que os indígenas mudem para
as cidades, são tratados diferentemente pela sociedade urbana.
Esses julgamentos se dão pelo fato de os indígenas não usarem
suas vestimentas sagradas, não andarem pintados, falarem
português “errado”. Os mesmos sofrem os mais diversos pre-
conceitos tanto dentro quanto fora de suas aldeias.
Mas o que fazer com aqueles que não são mais “índios”? Esta é uma
questão que ainda hoje permanece, uma confusão criada pelos inva-
sores, dificultando o afirmar desse lugar de escolha, do pertencer a Ter-
ra para os povos no Nordeste. No Nordeste, nós, indígenas, temos que
provar que estamos vivos e que somos indígenas todos os dias (TAKA-
RIJU, 2021).

Figura 3- Demarcação já. Fonte: Pedro Lacerda, Enei 2022.

238
Portanto, por que um país gigantesco ainda tem traços tão
marcantes do colonialismo? Por que aqui nestas terras só uma
língua é oficial? O racismo é algo recorrente na sociedade atual,
a marca da dor em quem foi marcado jamais será apagada, no
Brasil há marcas de sangue de milhares de indígenas em sua
história, nada que possa ser feito pode apagar esta marca de
dor na raiz deste país, entretanto manter uma só língua como
materna, em um país de múltiplas línguas antes desta implan-
tação é algo errado. Este movimento pode ser comparado a
uma guerra entre mundos, como afirma Takariju (2021):
O movimento que a autora Houaiss (1992) faz deixa bem claro e evi-
dente que eu chamo de guerra de mundos porque é uma guerra de
mundos? Tira os ET e coloca os colonizadores e tira o tom e coloca os
indígenas, e foi isso que aconteceu aqui e ainda está acontecendo 521
anos de luta e guerra então são essas guerras de mundo cada povo e um
mundo. No mundo eu falo num sentido de algo fechado, mas ha aber-
tos, mas neste sentido podemos criar mundos em que cada povo e um
mundo, então essa guerra de mundos e os mundos europeus, portu-
gueses, franceses, alemães, ingleses, que invadiram mundos indígenas
que estão em guerras até hoje.

Chamar o português de língua materna é querer que os po-


vos originários ainda sofram com estas ações que já passaram
durante séculos. Como o inglês, a língua portuguesa pode ser
tratada como uma forma de comércio no Brasil, não como
língua materna, pois os povos que já ocupavam este território
tinham outras línguas maternas. Ou seja, é um país de multi-
culturas linguística de mistura de várias etnias, várias nações e
povos que tinham suas línguas diferentes.
Aqui no Brasil hoje existem cerca de 1 milhões de povos indígenas no
país, naquela época no Ceará existia mais de 6 milhões de indígenas e
destes eram várias nações e povos que tinham suas línguas diferentes,
o tupi era apenas um tronco linguístico, existe o aruaque, yge, aruri, ca-
ribe, e todos esses troncos linguísticos existem línguas a partir desses
troncos, e essas línguas formam povos, e esses povos formam clãs que
239
formam famílias, todas essas gigantescas constelações, galáxias, de po-
vos indígenas. (TAKARIKU, 2021)

O tupi (figura 4) é apenas um dos troncos linguísticos, além


do macro-jê.

Figura 4- Línguas indígenas brasileiras. Fonte: Laboratório da Visualidade e Visuali-


zação

A língua em questão que se torna “materna e oficial” neste


país é uma língua invasora, pois ela foi “transplantada e implan-
tada” (TAKARIJU, 2021), causando sofrimento aos povos indíge-
nas que já residiam nestas terras, que tiveram que se adequar
a um sistema novo, uma religião diferente da sua, uma cultura
totalmente diferente de seus costumes. Quem fosse contra
este regime da época acabava levando as consequências. Fo-
ram documentos que tornaram esta língua europeia oficial e as
indígenas selvagens, como demonstra Takariju (2021):
A partir do pensamento reducionista e binário dos invasores portugue-
ses os conceitos de certo e errado traduzidos no conceito de “oficial’’
transformaram as línguas indígenas em línguas inferiores “selvagens’’. E

240
a língua portuguesa tratada como ‘’oficial’ que foi feita a partir do decreto
do diretório dos índios do marquês de pombal.

Com este decreto, por séculos esses povos não tiveram seus
direitos estabelecidos, foram vítimas de racismo linguístico, que
os obrigou a deixar de lado a sua real história. Sofrem desde a
invasão até a atualidade por suas demarcações territoriais, pre-
conceitos explícitos tanto pela sociedade quanto por governos,
que ainda creem que estamos em 1500, pois como sabemos
esta terra de fato é dos indígenas, pois já existiam vários grupos,
povos, aldeias vivendo aqui há mais de 20 mil anos (TAKARIJU,
2021) e os índios desta terra somos nós, os brancos.
Como se sabe, atualmente as escritas de autores indígenas
vêm ganhando cada vez mais espaço na sociedade contem-
porânea, principalmente por causa das teorias do pós-colonia-
lismo, pela visão daquele que sofreu e ainda sofre as consequ-
ências causadas por aqueles que invadiram um território onde
havia milhares de povos e línguas indígenas, estes que foram
dizimados por aqueles que são considerados os salvadores da
pátria brasileira, ou seja, os europeus portugueses, estes que
citam que descobriram um país, o Brasil. Entretanto, nestas
histórias contadas por estes, há uma grande lacuna que não se
encaixa com a realidade. Ou seja, as histórias que faltam nestas
lacunas é a verdadeira história deste país, são as histórias de
um povo realmente originário desta terra, uma terra em que há
ainda várias línguas, que luta por sua sobrevivência.
Inclusive, podemos tirar uma grande reflexão a partir da co-
lonização pelo olhar originário, pois paramos para pensar que
se realmente podemos dizer que a língua deste país é o portu-
guês. Nem para nós, falantes nativos desta língua, muitas vezes
ela é original, pois sabemos que dentro da mesma há variações
e ninguém a fala 100% a todo o momento. Nem todo mundo
é culto igual à lei garante que seja, a língua só é considerada
241
formal quando está sendo comercializada e nem assim é usa-
da, pois é introduzida outra língua, o inglês, ou seja, outra língua
que se torna mais importante para o comércio, conforme Taka-
riju (2021):
O avanço da língua dos colonizadores e do inglês é principalmente para
nós, Indígenas, o avanço da morte e do conflito com nossas singulari-
dades enquanto povo. O nordeste brasileiro teve as línguas de seus po-
vos nativos quase todas extintas por políticas linguísticas bilíngues. Não
queremos que isso se amplie aos outros povos irmãos e parentes que
ainda possuem essa ligação ancestral e esperamos que nossos parceiros
se juntem a nós nessa luta.

De fato, a sociedade dá valor àquilo que vem de fora, aquilo


que não é a cultura real de seu país. O Brasil é um país em que
muitas pessoas seguem culturas que não são próprias do terri-
tório originário, mas sim de outros países. Isso chama a atenção
tendo em vista que este país foi erguido a partir da colonização
de indígenas e negros escravizados, razão pela qual muitas pa-
lavras do português vêm de línguas indígenas, como é o caso
do nome de muitas cidades que têm nomes de origem tupi,
como, por exemplo, Curitiba, Foz do Iguaçu, Guaíra, Guaraniaçu,
Guarapuava. Dessa forma, como vivemos em uma sociedade
de equívocos, erguida sobre inúmeras mortes, devemos de fato
repensar qual de fato seria a língua deste país. Um dos avanços
desse pensamento é justamente a descentralização e des-hie-
rarquização, que é um processo que encaminha para uma nova
visão sobre as línguas, que entende que o Brasil é um país em
que há múltiplas línguas faladas, tal como afirma Takariju:
E a língua ancestral é para os povos que ainda tem uma forma de li-
gação a mais com seus encantos e antigos, então os povos que ainda
continuam suas línguas nativas/mãe/maternas, e mais uma conexão
com os encantados com a memória ancestral de um passado que é um
presente, a língua tem esta força de trazer esse passado pro presente,
porque quando você fala esta língua fala junto há um ancestral, então
não é só uma língua, símbolo, não é só uma coisa que se aprende para
242
gerar um ganho, ela não é só funcional, ela tem um sentido energético,
espiritual, de vida. (TAKARIJU, 2021)

Em outras palavras, a língua é um objeto que é passado de


geração a geração, havendo suas modificações. É algo ancestral
tanto na cultura indígena quando na língua portuguesa. A dife-
rença é que os povos originários já existiam aqui, tinham suas
culturas e diversificadas línguas indígenas e o brasileiro, não,
pois é fruto da colonização portuguesa, que cometeu muitas
atrocidades contra os indígenas e seus ancestrais.

Sabemos que todo processo de retomada indígena se dá


a partir de todas as trajetórias que esse povo passou durante
séculos e que ainda passa na atualidade. Todos os percalços
que estes povos vivenciaram não os deixaram abalados e com
medo do que iriam enfrentar, o que os deixaram cada vez mais
fortes para as batalhas futuras.
A base teórica deste trabalho ajudou na diálogo dos fatos nar-
rados por Felipe, nas aulas que foram ministradas por ele, para
que o leitor tenha uma visão ampla de diferentes fontes indí-
genas com o mesmo intuito, falar sobre a realidade de como
este país foi invadido e massacrado, matando diversificadas
línguas, culturas de povos que existiam antes de toda aquela
devastação europeia, que achavam que aqueles que estavam
aqui precisavam de sua ajuda, mas na realidade quem precisava
de ajuda eram os próprios portugueses.
Quando se discute a ideia de língua materna no Brasil, vem à
mente que se trata da língua portuguesa, pois para nós, brasilei-
ros, é a língua na qual somos inseridos desde o ventre de nossas
mães. Entretanto, sabemos que a língua portuguesa é variável,
pois a linguagem que usamos é diferente em cada âmbito em
que estamos inseridos. Já para os indígenas, a língua portugue-
243
sa é como se fosse uma língua estrangeira que foi inserida em
suas vidas de formal brutalmente em 1500, com a chegada dos
colonizadores. Os mesmos tiveram que adentrar uma realidade
oposta à sua, em que muitos povos foram mortos e dizimados
por não aceitar que tivesse esta nova posição linguística.
Com estas atrocidades, até a atualidade os povos originários
sofrem as consequências causadas por aqueles que têm títulos
importantes. Chamar o português de língua “mãe” é uma forma
de matar a sua origem, sua língua, sua história, por essa razão
Felipe afirma que se trata de um colonialismo linguístico ficar
dizendo que a língua portuguesa é uma língua materna, é um
recolonizar, pois se deixa de lado que no país existem mais de
200 línguas faladas diariamente.
Os vídeos que transcrevi, que são a base deste trabalho, fo-
ram de extrema relevância para que este projeto aconteces-
se, tanto para mim, que sou acadêmica de letras, quanto para
quem futuramente for ler este trabalho, pois o tema tratado
deveria ser algo que todos procurassem saber, pois normal-
mente vemos somente o lado que a sociedade impõe para nós.
Desde a infância fui colocada para ver a história de que o Brasil
foi descoberto, o que é fruto da visão do colonizador. Entretan-
to, quando adentrei a universidade e comecei a estudar sobre
o tema, vi que deveria ser mais divulgada esta parte da história,
contar a real história de quem sofreu todas aquelas atrocidades
que os portugueses deixaram, as cicatrizes em diversificados
povos que ainda existem e mantêm suas línguas mães vivas, ou
seja, este país é um país multilíngue, em que há várias línguas
faladas. Entretanto, a língua oficial é só uma, o português, que é
uma língua invasora neste território.
Portanto, quando dizemos que o português é língua mater-
na cometemos um equívoco, pois se não fosse a colonização,
nossa realidade seria a de um país que tem várias línguas, como
244
o continente africano, em que existem vários países e nestes
países há uma língua oficial, mas também há naquelas línguas
variações, diferenças.
Devemos lutar para um país mais justo, tanto linguisticamen-
te quanto em relação ao racismo que as pessoas cometem em
relação aos povos indígenas, que muitas vezes são julgados por
não viver em suas terras, não usar suas vestimentas sagradas,
usar as tecnologias, roupas, usar a língua portuguesa, mas se
pararmos para pensar a língua portuguesa para eles é uma lín-
gua de comércio, assim como o inglês é imposto como língua
de comunicação mundial.
Para concluir este trabalho, vivemos em uma sociedade que
vive em constante evolução psicológica e tecnológica, mas
mesmo com tanta evolução ainda há tanto preconceito linguís-
tico em uma sociedade que se vangloria de suas origens múlti-
plas. No entanto, se trata de um país cuja base é sangrenta em
função dos massacres. Muitas vezes não sabe nem a sua pró-
pria origem e se apropria da cultura alheia. Como diria Daniel
Munduruku, “O Brasil precisa olhar para a sua ancestralidade”,
ou seja, precisa repensar melhor as atitudes que toma e dar va-
lor àqueles que são realmente dignos deste lugar.

245
“A invasão da língua portuguesa”. Produção de Universidade Estadu-
al de Ponta Grossa. Realização de Takariju, Felipe Coelho Iaru Yê. Co-
ordenação de Leticia Fraga. 2021. (200 min.), Meet, color. Disponível
em: https://doc-14-2o-docs.googleusercontent.com/docs/secures-
c/9c3rjlmt8hu1f57u4rhgtrh3r8id432t/04icfq8rkl9fk7o2l0gfsno1ka7
cjk8d/1669681575000/06638811225459952807/177307439431
43226308/1bBQU4AqOFR0wiaK7hz1uaQSKTGSNMlj?e=downloa-
d&authuser=0. Acesso em: 20 fev. 2022.
BANIWA, Luciano, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você
precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabe-
tização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
COLLET, Célia; PALADINO, Mariana; RUSSO, Kelly. Quebrando pre-
conceitos: Subsídios para o ensino das culturas e histórias dos po-
vos indígenas. Contra Capa, 2017.
COELHO TAKARIJU, Felipe Iaru Yê. Alienindi: Os portais do mundo.
Ponta Grossa: UEPG-PROEX, 2021.
MUNDURUKU, Daniel. Minha vó foi pega a laço, 2020. Disponível
em: https://www.geledes.org.br/minha-vo-foi-pega-a-laco/. Aces-
so em: 28 jun. 2023.

246
ANEXOS

Transcrição das aulas ministradas por Felipe parte


1 “A invasão da língua portuguesa”
A partir desse texto que trata de uma questão histórica, o nome
do livro é ensino de língua portuguesa com visão histórica.
Eu vou tratar um pouco mais sobre a questão histórica princi-
palmente o começo de como a língua portuguesa chegou aqui
nessas terras, e por isso que o título da aula é esse “A invasão da
língua portuguesa”, porque foi uma invasão diferentemente do
que a autora coloca que chama a língua portuguesa de materna
foi uma invasão.
Isso é um dos primeiros mitos, primeiro colonialismo linguís-
tico, é um colonialismo linguístico ficar dizendo que a língua
portuguesa e uma língua materna é um recolonizar, não trazer
e nem considerar que aqui existem hoje ainda mais de 200
línguas indígenas.
Como eu vinha falando sobre essa questão para que primeira-
mente você comece a contextualizar historicamente algo prin-
cipalmente aqui no Brasil é indispensável que compreenda que
aqui não foi descoberto, e indispensável pensar que não havia
nada cobrindo o Brasil e não veio ninguém descobrindo o Brasil,
tipo achou, olha aqui, alguma coisa, não achou nada, já existiam
vários grupos, povos vivendo aqui a mais de 5 a 20 mil anos.
Então a nossa história linguística, histórica, filosófica, econômi-
ca e social, já é bem mais antiga do que, por exemplo, do esta-
do brasileiro que só tem 521 anos.
Então a história do estado brasileiro é bem menor que a história
indígena.
A história da língua portuguesa, também é bem menor que as
línguas indígenas, o português ele foi criado pelo estado mo-
derno, é uma cria de uma determinada fase histórica da Europa,
247
e a partir dele se cria um estado nacional, a partir das chamadas
línguas nacionais.
A língua nacional era também uma característica de um estado
nação de um estado nacional.
Para que esse estado nação fosse consolidado uma das formas
é a invasão da “língua” do invasor, que é uma língua, que ela se
torna e pretende ser única.
A minha aula hoje vai muito nessa perspectiva de pensar a lín-
gua portuguesa como uma perspectiva de língua e tentar de-
bater porque essa perspectiva de língua ela é naturalizada e
imposta como única língua, e naturalizada não só na forma em
como ela é utilizada, mas na forma em que ela é instrumentali-
zada a partir da educação.
A educação é um instrumento de implantação dessa língua
como única aqui em nosso país assim como, por exemplo,
como em outros países que foram invadidos como espanhol
que foi implantado como língua única ou tentaram em outros
países aqui na América latina, também assim como o inglês foi
implantado ou tentado como língua única na América do norte,
na África também como alguns países têm o francês, alemão,
inglês, italiano, que foi fruto dessa invasão.
Eu coloco “mentiras coloniais” porque aproximo o termo âm-
bito de mentira não no sentido grego da palavra mito, mas no
sentido contemporaneamente como, por exemplo, essa cria-
tura que está no governo que se diz um mito que na verdade
ele é uma mentira, assim como esse Brasil que ele pensa, eu
não sei se ele pensa, mas e esse Brasil que ele quer implantar.
Eu pego uma das primeiras citações que a autora coloca no tex-
to que é “O ensino no Brasil foi, inicialmente, tarefa dos jesuítas
da companhia de Jesus, com a finalidade da catequização indí-
gena”. Foram os jesuítas, entre eles Manuel de Nóbrega e José
de
248
Anchieta, credores de uma ação mais educadora, de base ca-
tequética, do que conversadora. (Houaiss: 1992, 147). “A ação
jesuítica se definia pela compreensão de que era a língua geral
caminha a seguir”.
Percebe que o ensino é uma das formas de invadir e colonizar,
aí diz que o ensino no Brasil, isso daqui nem se chamava Brasil
pra começo de conversa foi tarefa inicial dos jesuítas, qual foi o
papel principal dos jesuítas? Ou o como e que eles se apresen-
tavam para a gente nas escolas? No ensino fundamental quan-
do vamos estudar a história do Brasil, eles apresentam os jesu-
ítas como o que traz este ensino aos indígenas, por isso ela cita
que “creadores de uma ação mais educadora”, ou seja, para este
autor que é da citação em que a autora utiliza à invasão jesuítica
a destruição de um modo de vida dos povos indígenas a partir
dos jesuítas e uma ação educadora, ou seja, eu estou educando
você, não estou destruindo a sua vida, estou levando a luz para
você, você é um aluno, você não tem a luz então estou vindo
do outro lado do mundo para salvar a sua vida.
E os jesuítas eram (13h12min não entendi a palavra que ele cita)
a igreja e a coroa sempre andaram de mãos dadas e até hoje, é
só observar essa criatura que está no poder e ver quem é que
anda com ele, que é a pancada “BBB” que é a bíblia, à bala e o
boi.
Então ele diz aqui que “De base catequética do que converso-
ra”, ora como assim? Pois catequese já é uma conversão, isso
é uma situação complicada e o mais engraçado é que esses
autores descrevem essas coisas e são publicadas porque eles
acham que somos abestados, idiotas de não perceber um ne-
gócio destes.
Aí você entende que publicação neste país não é uma questão
de mérito, mas sim uma questão política.

249
A conversão dos povos indígenas a partir da catequese e uma
das tecnologias de invasão, destruição dos nossos povos, aí
continua “A ação jesuítica se definia pela compreensão de que
era a língua geral o caminho a seguir” que língua geral era essa?
O português? Não, ainda não essa língua geral foi uma que foi
criada pelos jesuítas a partir de uma unção do tupi com o por-
tuguês que é a língua nheengatu que não está sendo citada no
texto. Nheengatu foi uma língua geral que passou séculos junto
ao português como uma língua oficial no país.
Mas por que eles estavam querendo a língua geral nesse cami-
nho? Porque era o caminho que seguia a língua geral? Aqui no
Brasil hoje existem cerca de 1 milhões de povos indígenas no
país, naquela época no seara existia mais de 6 milhões de indí-
genas e destes eram várias nações e povos que tinham suas lín-
guas diferentes, o tupi era apenas um tronco linguístico, existe
o aruaque, yge, aruri, caribe, e todos esses troncos linguísticos
existem línguas a partir desses troncos, e essas línguas formam
povos, e esses povos formam clãs que formam famílias, todas
essas gigantescas constelações, galáxias, de povos indígenas.
Por que a língua geral era o caminho para seguir? Porque você
destruindo essas formas de diferentes formas linguísticas você
vai eliminando a comunicação, um exemplo que eles faziam
era que os jesuítas traziam não somente essa educação cate-
quética, mas também o aldeamento de demissão indígena, que
a autora não comenta em seu trabalho, porque dá a impressão
que só os jesuítas chegaram às aldeias indígenas e tentavam
ensinar os índios, porém não, pois eles criavam aldeamentos
de missões indígenas que eram um pedaço de terra que eles
pegaram e ocuparam, invadiam que ali eles montavam um al-
deamento de missão jesuítica, e esse aldeamento eles captura-
vam vários povos de diferentes etnias, e jogavam todos dentro

250
de uma única casa para eles se entenderem, e muitas vezes
eles eram inimigos/rivais uns dos outros.
Como é que esse povo iria se entender? Os jesuítas iam lá e
ensinavam a tal da língua geral, e com esse ensino que muitas
vezes não era o tupi e tinha que ensinar o nheengatu.
E se eu não aprendesse? Você não tinha a opção de não querer
aprender, pois se não você seria açoitado, torturado, assassi-
nado, então aqueles que não aceitavam eles fugiam, resistia,
guerreavam, e eram trazidos e tratados pelos jesuítas como ín-
dios selvagens, e aqueles que por outro motivo ficavam nessas
aldeias/aldeamentos que tinham uma simpatia maior pelos
portugueses esses eram chamados de índios mansos.
Então a história do Brasil e principalmente da língua portuguesa
ela só conta a partir desses indígenas que se “sujeitaram” a isso,
os outros não.
E porque ainda existem tantas outras línguas indígenas? E por-
que esses indígenas se rebelaram, e mesmo aqueles que se re-
belaram que não quiseram aprender essa língua geral também
sofreram consequências por uma questão e outra, e também
perderam a sua língua mãe, materna caso de umas línguas
como a daqui do povo do Ceará.
E por que isso? Porque o nordeste foi o primeiro na invasão,
porque eles chegaram lá na Bahia e se espalharam por Pernam-
buco, Ceará, maranhão, depois que eles foram descendo para
o resto do brasil.
Então se hoje o inhauma-me ainda fala a língua dele e muito
por consequência da nossa luta, nós barramos essa entrada o
quanto antes, para o interior.
E hoje eles estão fazendo isso, destruindo a Amazônia, e toda
aquela região que já fizeram no nordeste.
Às vezes fico pensando: será que nosso sertão era sertão
mesmo? Ou passou por um processo de dissertação e destruição
251
destes invasores, será que aquilo ali sempre foi assim? Eu me
pergunto sobre isso.
A educação como foi implantada aqui ela é um instrumento de
invasão e colonização, às vezes fico pensando “ai a educação
muda tudo” calma, ela realmente muda tudo, hoje a gente so-
mente fala o português aqui, o ensino se deve muito a educa-
ção ou a falta dela.
Eu tenho certas críticas ao sistema educacional do Brasil, pois
é um sistema que não é plural e sim binário homogêneo, e não
podemos romantizar isso dessa forma. “somos ensinados na
escola pela educação “oficial”, desde cedo que o Brasil foi des-
coberto e desbravado por corajosos e aventureiros europeus”
quem aí não conhece uma cidade do sudeste do país que tenha
o nome de um bandeirante ou coronel ou de qualquer outro
“assassino” sempre tem aqui tem um colégio com o nome do
castelo branco que é um dos primeiros coronel da ditadura mi-
litar, em que o cara matou, torturou fez o que quis e ainda ga-
nhou uma homenagem com seu nome em um colégio.
Lá no coleirinho na entrada há uma estátua do governador ge-
ral do Brasil o cara que mais assassinou indígena e tem uma
estátua do cara lá.
E isso não é só uma questão histórica, hoje também acontece
isso, existem várias figuras que num passado recente fizeram
coisas absurdas em relação a o nosso povo que hoje são cele-
brados por inclusive povos nossos.
Então essa é a primeira mentira que funde o Brasil a menti-
ra do descobrimento, a mentira que essas pessoas chegaram
aqui trazer essa “luz”, o “progresso”, a civilização, e essa mentira
que ainda continua alimentando essa história essa ideia de que
alguém vai chegar e vai tomar a presidência e a nossa vida irá
mudar.

252
A história do fulano livre que irá se libertar e todos os demais
também, que sempre haverá um salvador da pátria, tendo
sempre um herói.
Esse mito de fundição é muito comum, se pegar as tradições
europeias é comum que tenha essa figura de um homem sen-
tado em um cavalo gritando “independência ou morte” e o ou-
tro Deodoro da Fonseca da área pública, Getúlio Vargas, sem-
pre tem um melhor presidente do Brasil, sempre tem alguém
que é o “cara”.
Assim essa visão romântica que a autora traz sobre o texto dos
jesuítas segue uma ideologia mentirosa dos invasores na for-
mação do Brasil então “a ação jesuíta não foi educadora, foi uma
ação etnocida, invasora, destruidora, escravizadora, torturadora
preconceituosa e perseguidora” porque quê eu digo tudo isso
e porque os jesuítas eles para implantar não só o sistema lin-
guístico, mas também o sistema espiritual no Brasil, que eles o
chamavam assim, e para eles salvarem as almas dos indígenas
eles se utilizavam de todas essas formas e artimanhas, para que
eles civilização as almas dos selvagens.
Então a alma do selvagem que estava em processo de civiliza-
ção ele sempre precisava de uma punição, então se você não
rezasse na hora que era pra rezar você apanhava se não traba-
lhasse na hora que tinha que trabalhar você apanhava se não
utilizasse as roupas que eram pra usar você apanhava se não
falasse na língua que era pra falar você apanhava se não vivesse
de acordo com as relações sociais que ele mandava você apa-
nhava, por exemplo, as famílias como hoje nós conhecemos
com esse núcleo de pai, mãe e filhos, que eu vivo em uma casa
e você em outra isso é um modo que foi trazido da Europa para
cá.
Mas não no modo de produção, pensamento indígena porque
os povos viviam dentro de uma casa com seis famílias essas fa-
253
mílias todos eram parentes por isso que a gente se trata como
parentes, porque a forma da gente pensar nas relações nosso
psicológico é totalmente diferente, e até isso os jesuítas chega-
ram torturando, invadindo, destruindo juntamente com a lín-
gua.
A língua era esse vetor atravessado então à base catequética
conservadora na prática e na ideologia jesuítica da coroa por-
tuguesa foi e ainda é um sistema implantado à custa das vidas
indígenas, e até hoje isso é implantado, ele vai se atualizando,
porque a ideia deles é a ideia desse estado moderno e transfor-
mar todo mundo em uma forma de consumir e ser consumidos
pelo consumo.
Para nós indígenas os jesuítas não são heróis, eles são invaso-
res e assassinos e destruidores do mundo e esses que foram
citados no texto, Manuel da Nóbrega e José de Anchieta são os
piores e eles são citados em São Paulo como um dos fundado-
res da cidade.
A primeira pancada que temos que entender quando se trata
não só de sobre língua porque o negócio não é só língua portu-
guesa, pois não está apartada do mundo, ela está conectada a
todas as coisas que falei.
Quando se trata de povos indígenas do Brasil, essa questão
histórica não tem como contornar isso, na verdade até tem se
você tiver uma ideologia colonizadora por trás, aí você contor-
na a história direitinha por trás com isso se cria uma história
de heróis e não dá ouvido a narrativas, perspectivas, dos povos
que estavam aqui antes destes tais heróis chegarem.
Outra citação do texto “Durante três séculos, foram os jesuí-
tas os educadores no brasil.” aí pensamos que 300 anos des-
se negócio, aí imagina se que muitas línguas indígenas foram
assassinadas e destruídas, e muitos povos sumiram também
em trezentos anos com esse contato com o mundo ociden-
254
tal/moderno, mas em vinte mil anos entre os povos indígenas
não aconteceram isso, mas em trezentos anos com esse povo
que veio a essa outra parte do mundo aconteceu isso. “a autora
insiste na perspectiva dos invasores, onde ela os vê como edu-
cadores”. Essa
Perspectiva de ver a história e contá-la é uma perspectiva que
nada contribui com as lutas
Indígenas, pelo contrário, ajudam a colocar as perspectivas lin-
guísticas indígenas como inferiores, porque como inferiores, se
os jesuítas estavam chegando aqui para educar os indígenas e
que os indígenas estariam fazendo as coisas erradas.
Então a gente não tinha um “saber” e ai eles vem trazer esse
saber para gente, que é a história que a ideia que o pensamento
dualista, binário, trazendo as caravelas para cá, ou é homem,
mulher, e branco ou preto, certo ou errado, menino ou menina,
azul e rosa como diz aquela criatura lá, e a gente vai se condi-
cionando então foram 3 séculos de ou e um ou de outro, essa
questão é também estrutural, mas na questão fixa maleável,
que se adapta a um vírus e uma nova cetra pra ir recolonizado,
devemos prestar atenção em tudo que ouve e escuta e lê de
forma crítica, principalmente quando estamos neste local de
privilégio uma universidade pública.
Esse movimento que a autora faz deixa bem claro e evidente
que eu chamo de guerra de mundos porque é uma guerra de
mundos? Tira os ET e coloca os colonizadores e tira o tom e
coloca os indígenas, e foi isso que aconteceu aqui e ainda está
acontecendo 521 anos de luta e guerra então são essas guerras
de mundo cada povo e um mundo.
Mundo eu falo num sentido de algo fechado, mas ha abertos,
mas neste sentido podemos criar mundos em que cada povo e
um mundo, então essa guerra de mundos e os mundos euro-

255
peus, portugueses, franceses, alemães, ingleses, que invadiram
mundos indígenas que estão em guerras até hoje.
Umas parcelas destes mundos querem que os outros mundos
se tornem iguais a eles e esses outros mundos não querem que
todos sejam indiferentes como eles são.
A questão linguística da língua é uma questão de guerra de
mundos porque quando essa língua foi implantada deixando
de falar a língua materna e começo a falar uma língua portu-
guesa que é uma língua invasora de certa forma perde a co-
nexão com o ancestral, mas não totalmente por isso existe o
processo de retomada.
Mas a língua é instrumento de conexão consagrada com um
ancestral, natureza, a nossa língua não é só algo que seja o sig-
no de um significante que seja só para falar e comunicar, as
nossas línguas são chaves para abrir portais, curas, etc…
A língua para nossos povos ela tem outras perspectivas, Mas
também a para a comunicação, já para os portugueses eu não
sei se existe essa conexão com a linguagem, língua, ao não ser
essa da comunicação.
Continuação do vídeo parte 2
“Então como eu estava falando na última aula sobre essas
mentiras coloniais que a língua portuguesa e a nossa “língua
materna” então eu digo aqui” A língua portuguesa é uma lín-
gua invasora, ela foi transplantada e implantada, assim como
uma cirurgia, uma mutação, um vírus que corrói todas as outras
línguas indígenas tomando-se oficial, pela maquinaria burocrá-
tica-conceitual colonial, ganha força de destruição das outras
línguas indígenas. ’’ ou seja e quando se destrói uma língua in-
dígena não se destrói somente a língua mas também todo um
modo de vida que é baseado nesta língua.

256
Assim como existe todo um modo de vida que são baseadas na
língua portuguesa, nas expressões viver e se expressar, existe
também essas formas na língua indígenas.
E essas línguas indígenas e as que foram destruídas assassina-
das hoje não existem mais, então essas formas e mundos fo-
ram perdidos.
A partir do pensamento reducionista e binário dos invasores
portugueses os conceitos de certo e errado traduzidos no con-
ceito de ‘’oficial’’ transformaram as línguas indígenas em línguas
inferiores ‘’selvagens’’. E a língua portuguesa tratada como “ofi-
cial” que foi feita a partir do decreto do diretório dos índios do
marquês de pombal foi tornada oficial, “O que não era ‘‘oficial’’
era ‘‘errado’’ e sem prestígio”. Então se você não falasse o portu-
guês estaria errado e sem prestigio que era como um status, ‘’ O
racismo é típico do pensamento Colonial ocidental e o racismo
linguístico também. ’’ porque você falar outra língua que não
era oficial iria sofrer alguns preconceitos tanto como linguísti-
cos quanto os de toda ordem. os povos indígenas eram vistos
como selvagens, sem civilização.
A implantação e o transplante da língua portuguesa não efeti-
vou só uma mudança de uma língua, modo de vida, mas tam-
bém demarcava e ampliava a colonização. “““ “““ Missão da lín-
gua portuguesa definitiva com a vinda de famílias de imigrantes
portugueses, mas, principalmente como diretório dos índios” e
aquilo que eu havia citado sobre o marquês de pombal,” im-
plantando após a expulsão dos Jesuítas, em 3 de Maio de 1757,
pelo Governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado com
o aval do Marquês de Pombal é aplicado a princípio no Pará e
no Maranhão e no ano seguinte em todo o Brasil.” tratando em
termos históricos isso foi uns dias desses, não faz muito tem-
po em que a língua portuguesa e tratada como oficial, no en-
tanto muitos professores e pesquisadores do português ainda
257
afirmam que ela é uma língua materna, pois eles creem que
nascemos já introduzidos na língua portuguesa, mas isso não é
uma verdade absoluta já que existem mais de 270 línguas indí-
genas, então a língua portuguesa como língua materna é uma
invenção, mentira colonial.
E essa mentira colonial sendo perpetuada no cotidiano ela cria
essa cristalização de norma e naturalidade, fazendo achar um
Brasil e a língua portuguesa sempre existiram, mesmo elas sen-
do uma invasão, pois o Brasil é uma invenção, estado marcado,
estado nação, e a língua portuguesa e a língua oficial deste es-
tado nação.
Quando a gente fala sobre a língua, não pode deixar escapar as
outras questões que atravessam esta questão linguística, por-
que a língua é diferente do que muitos pensadores e cientistas
que pensam, pois a língua não fica em um laboratório, bolha,
num estado ideal vai estudar e utilizar dela, a língua é dinâmica,
cotidiana e da vida dos acontecimentos em que ela atravessa a
história, economia, sociologia, filosofia, ou seja, tudo que atra-
vessa a língua.
Pensar na língua como um compartimento e muito de um pen-
samento conceitual e trazido na forma de educar no mundo
moderno, é justamente essa forma de educar compartilha liza-
do em que existem cursos em que são totalmente diferentes
um dos outros e tem um compartimento como, por exemplo,
o curso de humanas não estão próximos dos cursos de exatas,
com isso acham que não existem filosofia na física, matemáti-
ca.
‘’ O Marquês de Pombal sentindo a língua portuguesa ainda re-
alizada pela língua geral, uma mistura da língua indígena com
o português, tornou obrigatório por um por um instrumento
legal, o ensino de português no Brasil- Um fato já Consumado
apenas sancionado então por ele. A finalidade era abolir essa
258
língua geral e impor a chamada ‘’língua do Príncipe’’, ou seja, o
português de Portugal. ’ ’
“Então, assim como é colocado no texto à língua portuguesa
não é a língua Mãe, é uma instituição invasora e seu modo é de
implantação e racista” Racista por quê? Quando você implanta
algo que é oficial, aquilo que não é oficial é visto como errado, e
terá punição, que recai nos falantes de outra língua fora a oficial,
naquela época os povos que não eram falantes eram a maioria
os indígenas.
Então os povos indígenas foram caçados a partir desta implan-
tação racista da língua portuguesa, então a língua do príncipe
como era referida a língua portuguesa marquês de pombal, e
elevada a uma língua única e oficial, e virou lei e com isso há
uma punição para quem não cumpre a risca, ou seja, a lei e a
língua trabalham no mesmo universo, apesar de serem dife-
rentes, mas atravessam.
A língua cria essa ideia de oficial, e se oficializa através das leis.
Então os povos indígenas e suas línguas maternas são alvos
destas leis, em que elas transformaram o português uma língua
oficial, que foi mais um instrumento e tecnologia de invasão e
destruição dos povos indígenas.
A colonização vai avançando e destruindo cotidianamente
dando a impressão de movimento natural da colonização.
Esse movimento de colonização por ele ser esse movimento
de processo cotidiano ele está acontecendo neste momento
em Brasília que querem aprovar a pé 490 do marco temporal
é um processo colonizador, ou seja, a colonização não acabou
não é um marco histórico, data que começou em 1500 e ter-
minou quando o Brasil “apareceu” com a proclamação da re-
pública do Brasil, a colonização está ocorrendo até hoje, é um
dos mitos em relação a isso é justamente tratar ela como se es-
tivesse acabado, pois ela está em processo, por isso os indíge-
259
nas lutam por essa colonização e suas demarcações territoriais,
também para que suas línguas continuem vivas, então esta luta
contra o estado ainda quer destruir e um processo colonizador.
Um trecho de como o marquês de pombal e seu povo tratava
os povos indígenas, “Sempre foi máxima inalteravelmente em”
todas as missões que praticaram novos domínios em introdu-
zir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma por ser
indispensável eram uma máxima dos colonizadores introduzir
nos povos conquistados o seu próprio idioma, porque se estiver
um idioma único é muito mais fácil de unificar os pensamentos.
Não é nem um povo, porque todo o território brasileiro falante
de português, não se torna homogêneo, então a ideia de um
idioma único no país e para trazer essa ideia de unidade e sobe-
rania, que é a principal ideia central do estado nação, em que o
mesmo é soberano linguisticamente, nas fronteiras e com isso
notamos que o Brasil é dividido em fronteiras, e soberano em
sua economia.
Então a língua é utilizada de maneira legítima da soberania des-
se povo que quer dominar outros povos, por isso ele cita que é
indispensável que este é um dos meios mais eficazes para des-
terrar os povos rústicos a barbaridades dos seus antigos costu-
mes então esse é dos meios mais eficazes para transformar os
povos que ele chama de rústicos e bárbaros destruindo seus
antigos costumes, ou seja, não se destrói apenas uma língua,
mas também um modo de vida.
“Ao mesmo passo centro dois neles o uso da língua do Príncipe,
que os conquistou” aqui traz aquela ideia de colonização finali-
zada, colocando que a invasão como algo conquistado, mesmo
que isso não se reflita na realidade, mas na cabeça deles fomos
conquistados.
Isso faz a diferença, pois vai ser perpetuado na educação, em
que falam que o Brasil foi descoberto, que dom Pedro declarou
260
a independência, e todas as mentiras declaradas a este criando
um herói acerca disto, do estado nacional.
“Esse relato do Marquês de Pombal explicita o colonialismo
na linguagem e a língua portuguesa como um instrumento de
colonialismo linguístico é indispensável como arma de invasão
e colonização” assim como também outros países da Améri-
ca como a língua espanhola foi esta língua de colonização, e
é recendo não é algo natural e sim inventado implantado vio-
lentado, quando se pensar em estado nação devemos pensar
que estado e este, como a angola que foi colonizada pelos por-
tugueses, em que eles têm um histórico de violência praticado
pelos portugueses.
Para os indígenas é indispensável que quebrem essas mentiras
coloniais, e que o português não é uma língua materna e sim
uma língua invasora, assim como muitas plantas no Brasil que
são invasoras que são de outro canto.
O processo de colonização acontece no início da trajetória es-
colar, como o dia do índio, em que a criança é pintada e já vai
induzir que o indígena fosse uma caricatura, fantoche, em que
ele não existe mais e foi um período histórico do nosso país, um
primitivo que hoje em dia não existe mais.
Se não conectar o indígena com o do passado ele é conside-
rado um falso indígena, em que o mesmo não possa usar as
tecnologias e mantenha primitivo, enfim são vários mitos que
são reforçados pela educação.
A educação pode servir a muitos senhores, mas muitas pessoas
nunca tiveram professores indígenas, principalmente por um
país ser majoritariamente indígena e nem muito menos uma
referência a eles.
“Os diferentes instrumentos e Tecnologia de invasão utiliza-
da pelos invasores para destruir os modos de vida indígena é
implantar o modo de produção Colonial atravessou tudo que
261
compõem a vida, assim outras plantas da língua invasora e o
status de língua oficial cria pelo valor simbólico que se efetiva
no cotidiano” existe essa norma de falar o português e quem
fala fora dela e visto de forma sem valor, não domina a língua,
pessoa com menor cognitiva, como se ela fosse inferior, porém
existem várias formas de pensar na inteligência, “Essas tecno-
logias ainda são utilizadas a partir de suas atualizações junto ao
mercado capitalista” se a língua portuguesa foi tratada como
uma língua invasora e foi tratada como oficial, hoje as atualiza-
ções linguísticas de mercado capitalista como o mercado trata,
hoje recai sobre outras línguas como inglês, espanhol, francês
etc..
Atualmente, se for a um mercado de trabalho e for um traba-
lhador que não sabe falar uma segunda língua, é visto como
uma pessoa inferior ao mercado de trabalho, então deve sem-
pre ficar atualizando e isso gira sempre em torno do mercado
de trabalho.
As atualizações linguísticas nesse sentido, como um doutorado,
só podem ser feitas somente se você souber inglês, pois o mer-
cado acadêmico gira em torno deste tipo de mercado.
Problematizando o porquê essa língua é obrigatória, ela não é
obrigada de graça, nem naturalmente porque é a melhor lín-
gua, será que e porque os estados unidos e a maior potência
destruidora do planeta, ou, porque o mercado fala inglês, talvez
uma norma? Mundial, são perguntas para se pensar Eu penso
muito no conceito de diferença e identidade no sentido de va-
riação, ou seja, a variedade e diferente que a diferença, a varie-
dade e uma variedade do mesmo, como a variedade da língua
portuguesa que vem do português europeu, têm uma matriz,
norma, sempre se aproximando porque isso é através de uma
variedade, já a diferença e diferente não existe uma semelhan-
ça, analogia, e isso eu penso através das diferenças das identi-
262
dades, do ser humano, em que ele é essa identidade e existem
as variedades do humano que estão sempre tentando se apro-
ximar, e aquele que não tenta aproximar que é pra diferente
ele é taxado como alguma patologia mostra bárbaro, selvagens
etc. Ou seja, não é uma coisa do humano e esse conceito de
diferença e variação e um conceito, em que ele pensava sobre
tudo, e ele queria justamente trazer essa variação do absoluto.
Sempre é colocada a diferença como algo ruim, como falar que
uma pessoa é ruim, irá ficar com medo porque não encontra
uma semelhança.
A ideia de semelhança que ele traz vem desde Aristóteles, se
for pegar o fio da meada de como se criou este estado nação,
esta forma da língua, que é uma relação com a vida, à linguís-
tica no curso de letras não fica somente presa à língua, pois ela
pode ser debatida em outro viés. A língua é um emaranhado em
que se vai tirando os fios e observa que estão conectados, mas
não são únicos, são coisas diferentes que estão conectados em
redes, é esse e o pensamento indígena são coisas diferentes,
mundos, que estão conectados em redes e dialogam entre eles
e não tem medo de ser diferentes, já na língua portuguesa ao
ser diferente da língua indígena quis ser à única, e atualmente
ainda tenta ser, de várias formas.
Continuação parte 3
Colonialismo Linguístico língua portuguesa como arma de
invasão’ ’Para desterrar esse preciosíssimo abuso, será um dos
principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respec-
tivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo
por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que perten-
cerem às Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes
de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas
Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa,
263
na forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas
ordens, que até agora se não observaram com total ruína Es-
piritual, e Temporal do Estado’’. As majestades da época eram
intelectualmente pobres, eram pessoas que estavam ali sem
nenhuma contribuição intelectual, “entretanto não foi apenas
um decreto que tomou possível o restabelecimento da língua
portuguesa como padrão este se deve a fatores de unificação
como a língua escrita culta e ainda a língua falada pelas elites
e o ensino preconizadas nas escolas” Quando se institui a lín-
gua portuguesa como oficial de certa forma se institui uma di-
ferença entre oralidade e escrita, não só uma diferença do que
já é, mas também no status, prestígio, porque até determinada
época no Brasil quem sabia ler e escrever havia outro tipo de
status, até hoje se falam em acabar com o analfabetismo, ou
seja, a escrita para muitos povos indígenas não é um instru-
mento de ensino, passagem de visões e narrativas de mundo
ela é uma língua oral, então para alguns povos indígenas não é
interessante aprender escrever.
Até que ponto escrever não é um grafismo, pode ser uma
letra ou um desenho, até que certo ponto os povos indígenas
não sabem escrever? Atualmente vemos que a escrita está ga-
nhando porque a oralidade não tem muito prestígio, quando
fala que você ouviu e aprendeu na oralidade não há certo regis-
tro daquilo, pois podem falar que é uma invenção, porém quem
escreve não é uma invenção?
Mais uma vez os conceitos eram implantados e realizados
no cotidiano que vai influenciando a modo de vida e relação
das pessoas normatizando tudo normal diferente de natural,
mas eles tentam normalizar a norma em algo natural, hoje se
diz naturalmente que a língua portuguesa e a língua materna e
isso foi condicionado como norma, mas ela não é naturalmente
uma língua materna.
264
Continuação parte 3
Colonialismo linguístico: língua portuguesa como arma de in-
vasão, aqui são as partes que eu trouxe do texto, que eu já havia
terminado, então eu só vou recapitular para saber onde parei,
’’Para desterrar este preciosíssimo abuso, será um dos principais
cuidados dos Diretores”, gerais transformar a língua como algo
oficial, e o porque, que a língua transformada como oficial eles
não queriam ensinar a maioria dos povos indígenas? É porque
esta língua era que eles utilizavam para poder fazer seus arqui-
vos oficiais, portanto como é que eu vou fazer estes arquivos
oficiais e ensina a língua oficial dos arquivos a pessoas que eu
estou querendo controlar, então não faria sentido, para alguns
indígenas eles ensinavam, mas estes a quem eles ensinavam,
eram indígenas com quem eles poderiam contar.
Eu estava lendo um livro descolonizando metodologias:
pesquisa e povos indígenas da Linda, em que ela retrata muito
isto, tem uma parte dele entre o capítulo 3 e 4. A autora não
trata somente das metodologias, mas sim também a questão
da história, espaço, tempo, questões conceituais de como isto
foi criado para montar este mundo moderno, também fala em
como a linguagem é essencial para a criação deste mundo mo-
derno a linguagem como única, como um único centro de pen-
samento de uma estada nação, no caso dela e o inglês, mas
para nós e o português.
Ela cita que só existe uma forma de pensar a pesquisa que
tenha a haver com este pensamento colonizador, e que temos
que superar isso, e pensar em outras formas, e respeitar a nossa
história e de nossa família, os conhecimentos que aprendemos
com a família e as pessoas ao nosso redor.
Quando ela fala de como foi criada esta “psique” o mundo
moderno através de Freud, e em como ela pensa que a partir
desta criação, se cria as relações, e quando se quer criar quase
265
todos os índios ou de descendência Índia, é outro mito vamos
parar de usar esta palavra “índia”, pois é uma palavra pejorati-
va para os indígenas. Os falares gerais, porém, foram pouco a
pouco empurrados para os Sertões. “Nas cidades litorâneas, só
se falava a língua dos colonizadores que representava fator de
status”. E aqueles indígenas que se destacavam eram levados
para a Europa, os povos indígenas não eram seres desconhe-
cidos na maioria europeus, na Europa tem muitos registros dos
povos indígenas.
“E para além dessas informações trazidas pela autora, exis-
tem outras histórias que não são “oficiais”, mas são verdadeiras
e aconteceram” como histórias familiares, que não são oficiais,
mas elas aconteceram e são verdadeiras, pois estamos aqui
para conta-las e provar, “
Essas histórias são passadas pela oralidade dos povos indíge-
nas’’ Está oralidade pode ser utilizada de várias formas, “E em
vários desses relatos é possível perceber e verificar que os in-
dígenas e que não falavam português eram presos, Torturados,
sofriam preconceito e isso fez com que muitos indígenas para
não serem perseguidos sós por serem indígenas e falar em sua
língua ensinassem o português as outras gerações.” Minha bi-
savó relatou muito isso que ela foi ensinada assim, que tinha
que parar de falar a sua língua porque a família era perseguida,
“ Aprender a falar português para alguns povos indígenas foi
uma tática de sobrevivência e, principalmente no nordeste, lo-
cal por onde as invasões começaram.” Então aqui não tem nada
de uma língua materna, pois nós não aprendemos a língua ma-
terna por opção mas sim uma imposição para não morrer.
A língua portuguesa não só ganhou poder de “oficial”, mas
também ganhou um valor simbólico referente ao modo de
produção capitalista que os invasores implantaram aqui como
modo de vida único e “oficial”.
266
Esse valor simbólico era/ é expressa pelo domínio da Norma
culta de se falar a língua de forma “correta”. “Quem tinha este
domínio era considerada a pessoa “superior”, alto falante da lín-
gua geral e aos falantes de outras línguas indígenas.”.
“Esse valor simbólico não se exerce apenas na língua invaso-
ra, mas também na sua cor de pele e, nas suas tradições e nar-
rativas em tudo que vem da Europa”, ou seja, a língua neste caso
no aspecto superior de quem sabia falar e quem domina essa
língua está relacionada à questão de raça, visto que esta ques-
tão não tem nada haver com questão biológica, questão de
raça são questões historicamente construídas. Então se histo-
ricamente a língua portuguesa foi construída como uma língua
“SUPERIOR” então ela foi construída estruturada no racismo.
Um racismo linguístico, “Assim”, o racismo linguístico é uma das
práticas de racismo que os ocidentais europeus implantaram
aqui no como sistema de produção vertical e hierárquico, assim
como, por exemplo, o racismo outra forma de pensar, ou seja,
descolonizar estar metodologias, não se pode continuar repro-
duzindo a forma de pensar que foi criado a partir deste mundo
moderno, ou seja, não dá para criar um anti Édipo pensando
através do mesmo, e ela traz o fanon para desenvolver seu tra-
balho.
Como eu coloco no slide 12 “Além disso”, o português era a
língua do Comércio utilizada nos pontos, nas cidades e vilas e
até mesmo no seio da família, “Mas ainda aí aparecia o” Tupi
falado pelos fâmulos que ficavam em torno destas famílias, co-
mércios, vilas e cidades, acadêmico, que vemos, outro exemplo
é quando se faz um curso de filosofia, que existe algumas lin-
guagens, que só se for filósofo que irá entender.
“Vem de longe os problemas relativos ao ensino de língua
materna no “Brasil”“. Essa é uma das maiores mentiras coloniais
sobre o Brasil e a língua portuguesa, o ensino de língua mater-
267
na no Brasil e vem de longe os problemas relativos a isto, eu
vejo um problema do ensino de língua portuguesa/ materna
no Brasil para os povos indígenas, então este problema relativo
ao ensino de língua materna e justamente para os povos indí-
genas, como hoje os deputados dizem que os problemas do
Brasil são os indígenas porque eles querem muitas terras para
poucos indígenas, o problema no PIB no Brasil são os indígenas
que não querem deixar o agro crescer.
Então se sempre o problema foram os indígenas, será que o
Brasil não é um dos maiores inimigos dos povos indígenas? Le-
vando para outros continentes será que os indígenas também
são este problema?
“Paralelamente, a língua literária que se desenvolvia ganhou
no século xlx com José de Alencar uma modalidade própria
aproveitando-se da cor local. Editar a formação de uma língua
brasileira quando na verdade estávamos diante de um abraço
estilo brasileiros, ou variedade brasileira numa concepção mais
atual traço, que iria desenvolver-se até o século xx quando se
afirma com o movimento modernista”. Aqui já se percebe que
a língua do príncipe já sofre alterações, e começa a se falar a
língua que hoje se fala no Brasil, mas estas alterações/modi-
ficações têm muito do atravessamento dos povos indígenas,
pois aqui no Brasil eram mais ou menos 6 milhões de indíge-
nas antes da invasão, imagina o atravessamento de cada língua
destes povos na língua portuguesa, eu penso muito por sota-
que, pois muitos que temos no Brasil há esse atravessamento
indígena em contato com outras línguas invasoras, como o ita-
liano, francês, português, espanhol, entre outras. Então esta lín-
gua portuguesa nunca será uma língua pura, então não se pode
falar que fulano está falando certo ou errado, e nem que ela é
uma língua mãe, ela pode ser reivindicada por algumas pesso-
as, falando que nasceu no território brasileiro e para ela ser uma
268
língua mãe, a partir desta perspectiva você pode falar que ela é
uma língua mãe, porém tem que entender que ela não é uma
língua daqui, ou seja, é invasora, mas a partir outro conceito de
territorialidade pode se dizer que ela e sim uma língua materna,
porém eu vejo que este discurso reforça mais ainda esse alicia-
mento indígena, por isso não utilizo e digo que a língua materna
chamada de português aqui no Brasil é uma mentira colonial, é
uma questão política.
Esses escritores crias desse Brasil, que nasce das mentiras co-
loniais. As escritas sobre os povos indígenas foram feitas pelos
invasores. Assim, nossa história foi inventada a partir do olhar
racista dos invasores criando várias mentiras sobre os nossos
povos. José de Alencar foi um dos maiores responsáveis por
criar essas mentiras coloniais acerca dos nossos povos, con-
tribuindo para o apagamento dos indígenas no Ceará e para a
criação de estereótipos racistas sobre os nossos povos e assim
criando um Imaginário a partir da literatura “oficial”. Mais uma
vez os conceitos implantados e realizados no cotidiano mol-
dam a forma de se relacionar e viver.
“O caráter homogêneo e de padronização é uma caracterís-
tica fundamental dos Mundos invasores e que se pretendem
como únicos e verdadeiros” E não só do mundo dos invasores,
mas hoje em dia essa forma de mundo moderno, buscando
uma homogeneidade padrão para classificar o que é e o que
não e humano. “Assim a língua portuguesa como língua invaso-
ra é arma de implantação de um mundo ocidental tem base no
Renascimento europeu, no Iluminismo e na consolidação das
unidades nacionais” Quando se pensa em língua nacional tem
que remontar estes aspectos iluministas, revolução francesa
porque foi ela que criou esse tal de “cidadão” e no Brasil na-
quela época quem falava o português, era considerado cidadão,
superior, portanto o cidadão/humano e a língua estão conecta-
269
dos, porque os indígenas não eram considerados humanos. “A
língua portuguesa é um símbolo de unidade Nacional, de uma
estada nação, de um mercado” Que mercado foi esse? Foi o
mercado de ligamento entre Brasil, África e Europa, “de uma
ideia de mundo de uma relação com a terra, de uma relação
uns com os outros”.
“Nas primeiras décadas do Século xx, a concepção de língua
que orienta o ensino de língua materna era de sistema único o
que significava a não aceitação das variedades. Ensinar portu-
guês representava levar os alunos ao reconhecimento do siste-
ma linguístico, com a aprendizagem das regras prescritas pela
gramática normativa. Era função da escola transmitir e fixar a
variedade culta da língua e, garantindo a continuidade, para,
dessa forma, atender aos interesses dos grupos dominantes.”
O “trabalho de fixação” de uma variedade da língua acaba
por levar a um compromisso com uma visão estática da língua
e a consequentes assunções de crenças que ligam a mudança
linguística a conceitos negativos avaliados pela escola.” E esta
fixação da variação da língua ela também pode ser estendida
para a fixação de variação de relações, porque qual é a fixação
que temos hoje em dia? A nossa família ou a tradicional família
brasileira, é uma forma de fixação e não pode ter uma varie-
dade de uma família brasileira, ou seja, um padrão de certo e
errado.
“Português como língua “oficial” foi cada vez mais cristaliza-
da sua força invasora e a educação foi uma das armas para que
se a propagar a educação foi instrumento de oficialização da
língua invasora como língua única. É com o único intuito de dar
vantagens para os grupos aristocracia dominantes pontos a lín-
gua é utilizada como um instrumento de guerra para que esses
grupos continuem no domínio e no poder”.

270
“E os professores que ainda” não descobriram que o texto
é o grande instrumento de ensino da língua’’ Eu não acho que
o texto seja um grande instrumento de ensino da língua, até
porque nós indígenas sempre fomos ensinados nossas línguas
oralmente, o texto pode ser grande instrumento no caso do
português ou alguma outra língua, mas na língua indígena e
mais a oralidade que é este grande instrumento de ensino da
língua.
Essa afirmação da autora no texto é uma grande afirmação
coloca a escrita e o texto como abraço grande instrumento
de ensino da língua o texto coloca a escrita e a oralidade em
uma encruzilhada, “Assim, inconscientemente ela desqualifica
todas as tradições indígenas que trabalham com a oralidade
e não trabalham com o texto, a inferiorização da oralidade é
uma estratégia de invasão dos ocidentais, para colocar como
inferiores a forma e modos de vida indígena.” como eu disse
“quem foi que te falou?” “foi minha avó” e como tu prova isto?”é
tem que provar”? eu tenho aqui um texto que prova, e quem
é que garante que este texto é verdadeiro? não tem garantia,
não existe isso de verdadeiro e falso, quando é colocado isso
de valor, a questão começa a piorar, pois se olhar as questões
como diferentes a partir de horizontes, perceber que a visão
de mundo é diferente para cada um, e pode ser certo naquela
visão, querendo saber como ele funciona e deixando de lado se
é certo e errado. Não importa se é verdadeiro ou falso, e sim em
como este mundo funciona, como as pessoas vivem, em como
manter um diálogo não impondo língua, modo de vida, não se
relacionar a partir do certo e errado.
Porque quando se diz que o texto é o central mais impor-
tante, estamos dizendo que nada disto vale, pessoas sem o
conhecimento necessário que moram mais afastados sem a
escolarização, indígenas, nada das histórias passadas em gera-
271
ções familiares, ou seja, o que era transmitido pela oralidade
não tinha valor.
“Povos originários no Brasil, em suas diferentes cosmologias
apresentam complexidades de modo de ser.” Para muitos po-
vos o texto não é um instrumento de ensino, ele pode vir a ser
um dos instrumentos.
Suas histórias, suas línguas, suas memórias, seus ritos, seus
modos de caminhar pela terra, tudo é experiência coletiva an-
cestral. Esta experiência coletiva não está somente no texto,
mas sim na vivência cotidiana, oralidade, no sentir (a natureza,
o ar etc..).
E a língua ancestral é para os povos que ainda tem uma for-
ma de ligação a mais com seus encantadas e antigos, então os
povos que ainda continuam suas línguas nativas/mãe/mater-
nas, e mais uma conexão com os encantados com a memória
ancestral de um passado que é um presente, a língua tem esta
força de trazer esse passado pro presente, porque quando você
fala esta língua fala junto há um ancestral, então não é só uma
língua, símbolo, não é só uma coisa que se aprende para gerar
um ganho, ela não é só funcional, ela tem um sentido energé-
tico, espiritual, de vida.
‘’O apagamento a destruição e a negligência com as línguas
nativas, tornando-as invisíveis, foi e é um dos diferentes cami-
nhos impostos pela destruição da colonização que formou o
estado Brasil e que ainda está em prática hoje em dia, pois ainda
hoje as mais de 250 línguas nativas indígenas são invisíveis nas
escolas de educação básica e nas universidades, o que contribui
para que o índio e sua língua nativa seja artigo de um passado
primitivo.” Muitos acham que as línguas indígenas são apenas
línguas para serem estudadas e não faladas no cotidiano, como
a língua do nheengatu, estas línguas não estão mortas mas são
silenciadas como mortas.
272
Quando a Amazônia é devastada por madeireiros, isso atinge
a terra, que atinge um povo.
Se esse povo morrer, sua língua morrerá com eles. O avanço
da língua dos colonizadores e do inglês é principalmente para
nós, Indígenas, o avanço da morte e do conflito com nossas
singularidades enquanto povo. O nordeste brasileiro teve as
línguas de seus povos nativos quase todas extintas por políticas
linguísticas bilíngues. Não queremos que isso se amplie aos ou-
tros povos irmãos e parentes que ainda possuem essa ligação
ancestral e esperamos que nossos parceiros se juntem a nós
nessa luta.
Essa tática destrutiva visa apagar a singularidade multilinguís-
tica dos povos Indígenas em detrimento de uma normalização,
padronização da língua, uma língua dura, morta, que só tem um
sentido: lucrar. Que é a língua do mercado que é o inglês, quan-
do a gente pensa que uma única língua e a do mercado e ela é
uma língua monolíngue, e os povos indígenas são plurais, todas
estas formas de pensar a pluralização sejam impostas aos indí-
genas se confundem, pois eles não têm fidelidade ao mercado.

273
A literatura dos Guaranis no Paraná

Adriane Cordeiro Mensen1

Introdução
Sou estudante da Universidade Estadual de Ponta Grossa,
atualmente estou finalizando o 4° ano do curso de Licenciatura
em Letras Português/Espanhol. O presente trabalho pauta-se
nas obras e escritores indígenas paranaenses da etnia guarani.
Meu interesse por esse tema surgiu mediante a proximidade
que tive com a língua Guarani. Morei por alguns anos no Para-
guai onde tive contato com a língua.
Com minha vinda para o Brasil e meu ingresso na faculda-
de, tive a oportunidade de conhecer alguns indígenas quando
entrei para o grupo de estudos do CEAI (Coletivo de Estudos e
Ações Indígenas), um grupo vinculado à Universidade Estadual
de Ponta Grossa (UEPG) e que está composto por indígenas e
não indígenas. Com isso, o desejo de não deixar a língua Guara-
ni morrer e mostrar a importância dela e de seu povo, me mo-
tivou a trabalhar uma perspectiva diferente. Foi então que, com
o projeto iniciação científica, eu vi a oportunidade perfeita para
trabalhar com esse tema, sendo já um dos assuntos que minha
orientadora, Professora Lígia, estava familiarizada.
Para discutir a literatura produzida pelos guaranis no Paraná,
busquei fundamentação primeiramente no conceito da Deco-
lonialidade, que segundo Matos, é um meio para a valorização
e acesso à literatura de diversas identidades, e sendo assim,
podemos dizer que a identidade indígena está presente nesta
discussão.

1 Trabalho orientado por Ligia Paula Couto.


274
Proponho que a Decolonialidade seja um caminho para a promoção da
educação linguística e literária que visibilize e estimule o protagonismo
das diversas identidades não hegemônicas [...]. (MATOS, 2020, p. 95)

Também segundo a visão de Matos (2020), ainda existe a


questão dos “grupo marginalizados” e saber quem são esses
atores sociais dentro da perspectiva de uma pesquisa é mui-
to relevante, porque é por meio deste conhecimento que será
possível “re-narrar” o discurso negativo que recai sobre esse in-
divíduo.
Assim, trabalhar a Decolonialidade é o “enfrentamento da
colonialidade” (MATOS, 2020, p. 98) e se relaciona com a te-
mática indígena, visto ainda que a educação gira em torno da
colonialidade. Por exemplo, desde os tempos da escola, a his-
tória que eu escutei, é a de que o Brasil foi descoberto e co-
lonizado, sendo que a afirmação de que foi descoberto está
totalmente errônea, uma vez que aqui já havia uma civilização
(JEKUPÉ, 2020). E isso vem sendo exposto e problematizado
cada vez mais por escritores e escritoras indígenas.
Até o momento é possível notar resistência sobre a forma de
construir um currículo decolonial, visto que desde 10 de mar-
ço de 2008, existe a lei 11.645 que fala da obrigatoriedade do
ensino sobre o estudo da história e cultura afro-brasileira e in-
dígena, para os níveis de ensino fundamental e médio, tanto
para escola privada como pública. Porém, o que vemos sobre
esses assuntos, em muitos contextos, é um trabalho apenas na
semana do dia 20 de novembro, semana da consciência negra,
e outro apenas no dia 19 de abril, que até pouco tempo tinha
como decreto “dia do índio”, agora perante a Lei 5.466/2019
aprovada em 0 4 de março de 2022, passou a ser “Dia dos Po-
vos Indígenas”.
É necessária a desconstrução do pensamento colonial, re-
pensar como de verdade essa desconstrução deveria ser traba-
275
lhada na escola. Uma possibilidade é como a origem da cultura
indígena influenciou nossa cultura e está presente no nosso dia
a dia, e que isso não deve ser tratado meramente com uma
fantasia e caras pintadas no dia do índio, onde supostamente
estão fazendo uma celebração honrosa (MUNDURUKU, 2018).
Essa discussão se acerca da nossa pesquisa pelo fato que antes
toda a história indígena era repassada adiante por intermédio
do homem branco, da forma que eles julgavam ser mais con-
veniente.
Em nosso trabalho, colocaremos os povos indígenas como
protagonistas desta literatura, porque até então, não é isso que
vem sendo mostrado nos livros didáticos. Segundo Regina
Aparecida Kosi dos Santos, indígena, da etnia Kaingang, gradu-
ada pela UEPG no curso de Licenciatura em História, em aná-
lise para sua Monografia, “História indígena nos livros didáti-
cos” (2018), nos apresenta a perspectiva que os livros didáticos
trazem sobre a história indígena, que sempre essa temática é
trabalhada dentro de outros assuntos, a história indígena em si,
não tem foco principal (SANTOS, 2018).
Diante disso, o objetivo principal da nossa pesquisa é realizar
um levantamento da produção literária de indígenas no Paraná,
mais especificamente da etnia guarani. E entre os nossos obje-
tivos específicos estão: discutir o conceito de literatura indígena
brasileira, a literatura indígena não é como aquela que conhe-
cemos no papel, vai além disso, é pintura corporal, é grafismo,
é cultura. Apresentar os povos indígenas que vivem no Paraná,
seu território, sua língua e alguns aspectos culturais. Realizar um
levantamento de publicações literárias produzidas por indíge-
nas guarani no contexto paranaense e elaborar textos de divul-
gação das produções literárias encontradas para gerar conteú-
do para o instagram do Coletivo de Estudos e Ações Indígenas
(CEAI) da UEPG, com o intuito de contribuir com a divulgação
276
dessa literatura. Isso será de grande importância, pois através
de tudo isso é que mostraremos que a “literatura indígena vem
para educar a sociedade e é um objeto de poder” (informação
verbal)2 e ajudaremos a que essa cultura continue ganhando es-
paço, e não seja apagada.

brasileiro
Não é difícil ainda nos dias de hoje encontrar pessoas que
desconhecem ou têm pensamento muito equivocado sobre a
temática indígena. Sendo que, o que se sabe, muitas vezes, é
aquilo que se aprendeu na escola com os livros didáticos, os
quais fazem esses povos culpados por coisas que os próprios
colonizadores foram os causadores. Santos (2018), em sua pes-
quisa, faz uma análise sobre como a cultura e história indígena
são tratadas no livro didático e Munduruku (2018) também cita
a questão de o indígena ainda ser visto de forma estereotipada.
Assim, quando se fala em indígenas, a visão que muitas pes-
soas têm é de o índio nu e vivendo na floresta. Isso mostra a
dificuldade de aceitar que o indígena evoluiu junto com toda a
história.
Santos (2018) faz sua análise sobre os livros didáticos do en-
sino médio de autoria de Gilberto Cotrin, onde é possível ver
uma pequena diferença entre as edições de antes e depois da
Lei 11.645/2008. O autor passa a trazer algumas informações
relevantes sobre os povos indígenas, por exemplo, traz a ques-
tão do tronco linguístico, das nações, mas fica tudo muito su-
perficial. E até mesmo quando trata do artesanato, ele não diz
qual povo confecciona o que, se entende de uma forma ge-
neralizada que todos os povos indígenas fazem exatamente a

2 Fala durante o IX ENEI 2022 sobre a literatura indígena.


277
mesma coisa, quando isso não é verdade, cada um tem seu sig-
nificado. Segundo Regina:
[...] e com o passar do tempo descobriram que os grupos se diferem uns
dos outros. Assim também é na confecção dos materiais, há etnia, que
produzem pote de barro, outras etnias cestaria. Assim também como
a cestaria de alguns grupos são diferentes uma da outra. A cestaria da
etnia kaingang é produzida com Taquara, bambu ou criciúma, já a etnia
Guarani produz sua cestaria com Cipó, e também produzem animais de
madeira. (SANTOS, 2018, p. 26)

Ainda, o autor expõe outras mudanças para a leitura de ques-


tões históricas, como os ataques dos bandeirantes nas aldeias
indígenas por volta do século XVII. Ele traz a questão dos povo-
amentos, a violência que sofreram por conta de suas crenças,
mas ainda assim não é da forma que deveria ser tratada, porque
novamente a história dos povos indígenas segue como se fosse
uma só e não é abordada a história desses povos como prota-
gonistas, sempre ficam em segundo plano (SANTOS, 2018).
Por isso que é de grande importância a participação de es-
critores indígenas na construção desta história, quem melhor
que eles para nos contar sobre sua cultura, seus artesanatos,
nos mostrar o significado de seus grafismos, passar adiante a
oralidade por meio da escrita? Muito do que conhecemos da
literatura indígena é aquilo que o não indígena diz, e, como ar-
gumentar contra? Trago aqui uma fala de Olívio Jekupé ao canal
de Youtube Matilda My, Olivio, indígena da etnia guarani, para-
naense, morador da aldeia Kakane Porã, em Curitiba, diz:
No passado, as pessoas vinham na aldeia e pesquisavam o índio e daí o
índio contava a história e o branco ia lá e publicava o livro. Só que não
ficava no nome do índio. (JEKUPÉ, 2017).

Ainda, Jekupé fala sobre a baixa venda das obras de autoria


literatura indígena, que os órgãos governamentais ainda não se
dedicam o suficiente à compra com destino para as escolas; a
278
saída desse material ainda é pequena e, com isso, vem a des-
valorização.
Muitos de nós apenas conhecemos a história do descobri-
mento que ocorreu em 22 de abril de 1500 e, a partir de aí,
segundo Amanda Machado, em sua Dissertação de mestrado
“O livro indígena e suas múltiplas grafias” (2012), se criou uma
literatura brasileira, pois afinal era necessário ter um ponto de
partida. De certa maneira, essa literatura nasceu com a criação
de um personagem para o indígena, com o escritor branco ocul-
tando suas vozes, sua cultura, seus costumes. Além disso, essa
literatura acabou escondendo todas as torturas, escravização e
dizimação de povos inteiros, sendo tudo isso justificado com o
“discurso de civilização e integração” (MACHADO, 2012, p. 24).
Os habitantes originários do território brasileiro foram figuras importan-
tes e correntes nos textos publicados nos séculos seguintes ao “desco-
brimento” da América. Porém, a sua figuração nestes textos foi na maior
parte das vezes de caráter etnocêntrico e não valorizou a singularidade
e a riqueza cultural de cada um dos mais de mil povos que existiam an-
tes da chegada dos colonizadores. Essa literatura etnocêntrica acabou
por mascarar um processo de destruição desses povos em proporções
genocidas, fazendo com que, dos 7 milhões de índios que habitavam o
território brasileiro em 1500, só restassem, no início do século XX, cem
mil, menos de 1%. (MACHADO, 2012, p. 23).

E ainda, segundo Edson Krenak, a literatura indígena não é


apenas texto escrito, a literatura indígena vai além disso, é a
pintura corporal, o grafismo, a oralidade. São coisas que, a prin-
cípio, podem não ser vistas como literatura, mas é dessa forma
que ela se expressa. Para nós, os não indígenas, o texto escrito
é muito valorizado, porém essa nova perspectiva de literatura
indígena nos mostra e nos ensina a ver o povo indígena com
outros olhos, e que eles são de fato muito importantes para
nossa história, não podemos deixá-los de lado e apagar o início
de uma jornada que já vinha sendo escrita por eles, precisamos
valorizá-los, ajudá-los a recuperar uma parte de suas vidas que
279
acabou, por um tempo, sendo esquecida e assim mostrar a im-
portância da preservação do conhecimento e tradições de um
povo.
É interessante notar que, no fim dos anos 70, o movimento
indígena foi se organizando para lutar pelo direito de ser quem
são. Porque, ao que parece, nessa época, o indígena não era
visto como um cidadão brasileiro, eles não se encaixavam na
sociedade, então foram à luta para mostrar que, segundo Mun-
duruku (2018, p. 179), “Posso ser como você, sem deixar de ser
como sou”. Com isso, os indígenas defendem que podem viver
na mesma sociedade e fazer as mesmas coisas que os não in-
dígenas, sem deixar de ser indígenas, sem esquecer sua cultura.
Um exemplo claro disso vem a ser as obras produzidas por au-
tores indígenas, “se apropriam da língua do colonizador” (KRE-
NAK, s.d., p. 2) isso, os possibilita compartilhar suas vivências,
sua tradição.
Escrevem contos, poemas e romances, autobiografias, e até ensaios,
seguindo a tradição do múltiplo: multigêneros, multimodais, multidis-
cursivos, multilinguagens... multiautoral. (KRENAK, s.d., p. 2)

Aos poucos vamos vendo que esta literatura produzida por


autores/as indígenas vem ganhando frente e espaço quando
professores decidem trazer a verdade sobre o tal dia do índio
em 19 de abril, seria aqui, a pesquisa, uma das dobras, do cor-
dão de três dobras que Krenak menciona em seu artigo,
“Porque professores [...] têm pesquisado a literatura indígena, e traba-
lhado com escritores indígenas, e com as editoras que publicam essas
obras a fim de criar um ambiente literário mais rico e diversificado nas
escolas. (KRENAK, s.d., p. 2)

É por meio dessa busca de novos conhecimentos, por meio


da pesquisa em obras produzidas por autores/as indígenas que
vai se construindo um novo saber, quebrando rótulos e ideias
estereotipadas que foram criados sobre esses povos.
280
Segundo o censo IBGE de 2010 (Instituto Brasileiro de geo-
grafia e Estatísticas), no Brasil todo, existem cerca de 896.917
pessoas que se declaram indígenas, 305 etnias e ao redor de
274 línguas faladas e, dentro deste número, temos cerca de
57,7% que ainda vivem dentro das terras indígenas reconheci-
das oficialmente pela FUNAI (Fundação Nacional do índio). No
total, são mais de 30 terras indígenas.
No Paraná, existem cerca de 26.559 indígenas das etnias
Guarani, Xetá e Kaingang onde 11.943 vivem dentro das 17 terras
reconhecidas, sendo elas: Reserva indígena Ocoí, Reserva indí-
gena Rio das Cobras, Reserva indígena Mangueirinha, Reserva
indígena Palmas, Reserva indígena Marrecas, Reserva indíge-
na Ivaí, Reserva indígena Faxinal, Reserva indígena Rio D’Areia,
Reserva indígena Queimadas, Reserva indígena Apucaraninha,
Reserva indígena Barão de Antonina, Reserva indígena São Je-
rônimo da Serra, Reserva indígena Laranjinha, Reserva indígena
Pilarzinho, Reserva indígena Ilha da Cotinga, Reserva indígena
Mococa, Reserva indígena Tekoha-Añetetê.
Figura 1 - Localização das terras indígenas no estado do Paraná. Fonte:
<https://www.folhadelondrina.com.br/transmidia/terrae-brasilis---os-primeiros-
-da-terra-2952277e.html>. Acesso em: 01 nov. 2022.

O Paraná conta com cerca de 39 escolas indígenas, e destas,


15 ofertam o ensino médio. Além da língua materna, as crianças
têm a oportunidade de aprender o português. Segundo o Art.
32, parágrafo 3º e Art. 78 da LDB (Lei de diretrizes e Bases da
Educação Nacional):
Art. 32
§ 3º - O ensino fundamental regular será ministrado em língua portu-
guesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas lín-
guas maternas e processos próprios de aprendizagem.

281
Art. 78 - O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências
federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá
programas integrados de ensino e pesquisas, para oferta de Educação
escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas.

Após a apresentação dos povos indígenas no território do


que hoje chamamos de Paraná, trago a lista de autores que foi
possível organizar mediante as seguintes formas de pesquisa.
Em primeiro lugar, dois dos autores eu já tinha algum ma-
terial, pois havia sido discutido uma das obras do Olívio Jeku-
pé, indígena paranaense da etnia guarani, no 4º encontro do Vi
Porã3 em 2021. Para confirmar as obras escritas por ele, acessei
o google, o blog pessoal do autor, o aplicativo digital kindle e fiz
contato direto com Jekupé via instagram e whatsapp.
O outro autor, Nelson Florentino, teve sua obra apresenta-
da a mim pela professora Ligia. Para obter mais informações,
fiz uma busca usando o mecanismo do google, sobre o Nelson
Florentino. Encontrei informações no facebook sobre quando
foi lançado seu livro, “Histórias de um guarani”, em 10 de feve-
reiro de 2020 com o apoio da Universidade Estadual de Ponta
Grossa e financiado com recursos concedidos pelo Concelho
Nacional de Desenvolvimento Cientifico e tecnológico (CNPq).
Já ao final desta pesquisa, obtive acesso às três últimas obras,
que chegaram a mim também por meio da professora Ligia.
Uma sendo do autor Tiago de Oliveira, “Quando eu caçava Tatu
e outros bichos”. Nascido em Amélia, Estado do Paraná, apre-
senta várias narrativas sobre seu tempo de infância, conta so-
bre suas vivências com outros garotos de sua idade na aldeia de
Nimuendaju, e suas saídas para caçar Tatu e pescar.
A segunda obra foi “Tetã Tekoha”, que surgiu por meio do
Projeto Palavra Indígena, que junto com a Universidade Esta-
3 Vi Porã significa “palavra bonita”

282
dual de Londrina, um grupo de estudantes da etnia Guarani e
Kaingang contribuiu com suas escritas sobre vivências, lutas,
desafios e conquistas. A obra apresenta texto em português,
guarani e kaingang. Entre os autores da etnia guarani estão: Ale-
xandro da Silva Nhandeva, Ana Lucia Ortiz M. Kunha Yvoty, Fe-
lipe Zamboni, Rodrigo Luís Tupã, Uerique Gabriel Matias, Valéria
Lourenço Jacinto. E da etnia Kaingang, Débora Silva de Manoel
Ribas, Jaqueline de Paula Sabino, Tiago Pyn Tánh de Almeida e
Yago Junio dos S. Queiroz.
Também a obra “Ler, Escrever e Ser Indígena no Paraná”
(2012), da Secretaria de Educação do Estado do Paraná. “Varai
Para’I Regua. O Balaio Enfeitado” (2001) da autora Lídia Krexu
Rete Veríssimo, da Aldeia de Rio das Cobras.
Embora tenha seguido o mesmo padrão de busca várias ve-
zes, não encontrei, além das obras mencionadas aqui, outros/
as escritores/as indígenas da etnia guarani no Paraná. Sendo
assim, vamos à apresentação da vida dos autores indígenas no
contexto paranaense da etnia guarani que têm obras publica-
das. E, juntamente com suas vidas, apresentaremos uma breve
sinopse das obras.
Olívio Jekupé, escritor e poeta, estudou na Universidade Ca-
tólica do Paraná, natural de Novo Itacolomy, porém atualmente
reside em Curitiba. Ele já participou em diversas palestras so-
bre a cultura e defesa dos indígenas, já escreveu diversas obras,
sendo que uma delas escreveu junto com a sua família. Sua es-
posa e seus três filhos, já escritores, participaram da obra “Lite-
ratura Nativa em família”.
Sobre as obras de Olívio, as separei em três grupos:
1. Obras que tive acesso e pude fazer a leitura;
2. Obras que não consegui acesso, então as sinopses foram
retiradas da internet;

283
3. As obras que não consegui localizar a sinopse na internet
e, por isso, são apresentadas somente com o título.

Grupo 1

A literatura escrita por povos indígenas (2009)


No livro “A Literatura Escrita Pelos Povos Indígenas”, o autor
conta um pouco da sua trajetória, que começou quando ele
ainda era menino. O que o incentivou a seguir com sua escrita
era demostrar a importância da literatura escrita indígenas, por-
que na maioria das vezes que lia algo sobre os povos indígenas,
era escrito pelo não indígena. Olívio Jekupé viu a importância
da literatura, que poderia usar como uma arma, mostrar aquilo
que os autores não indígenas não relatam em suas obras
Tekoa: Conhecendo uma aldeia indígena (2011)
Carlos, um garotinho da cidade de São Paulo que tinha o de-
sejo de conhecer uma aldeia indígena depois de ser instigado
por sua professora que falava sobre a grande diferença com as
pessoas que viviam na cidade. Depois de falar com Eduardo,
seu pai, sobre seu desejo, os dois partiram rumo a Aldeia Tekoa,
uma aldeia indígena do povo guarani. La seu pai encontrou o
cacique Tukumbó e acertou com ele para que seu filho Carlos
pudesse passar uns dias ali pois gostaria de conhecer mais so-
bre a cultura e vivencia indígena. O cacique deu permissão para
que Carlos ficasse por um mês. Isso proporcionou ao garoto co-
nhecer e vivenciar muitas coisas da cultura guarani. Mirim, filho
do cacique ficou encarregado de acompanhar o jovem Carlos,
durante todo um mês Carlos acompanhou Mirim pela mata,
a pescar, nadar, fazer armadilhas, aprendeu acender fogueira,
medicinas, sobre culinária e espiritualidade e muito mais.

284
Como bem diz o título, o livro traz uma coleção de histórias
contadas pela família Jekupé, depois que Olívio Publicou seus
livros, sua esposa Maria Kerexu, contadora de casos, histórias e
lendas, à procura de preservar a cultura guarani, à qual pertence
toda essa família, passou a relatar suas histórias para seus filhos,
que as escreveram para que possam perdurar e que outras pes-
soas possam continuar desfrutando dessas histórias e conhe-
cendo a tradição indígena.
A Invasão (2020)
Fala um pouco sobre a chegada dos colonizadores em 1500,
traz a perspectiva do indígena sobre esse tema, de que foi uma
invasão e não um descobrimento, também aponta temas como
por exemplo que os indígenas não são ÍNDIOS, e que esse foi
um apelido dado a eles.

Werá Jeguaká Mirim é um garoto indígena guarani, filho do


escritor e poeta indígena Olivio Jekupé. Olivio conta como foi a
participação de seu filho na abertura da Copa Mundial de Fute-
bol de 2014, assim que entrou, ele estendeu entre os braços a
faixa DEMARCAÇÃO JÁ, diante de todo o público ali presente.
Werá Jeguaká também é um rapper, conhecido como Kunumi
MC, nas letras de suas músicas busca defender a causa indíge-
na. Nesta obra é possível acompanhar o início de sua carreira.
Grupo 2
Reforço que, neste grupo, estão as obras que não consegui
acesso, então as sinopses foram encontradas da internet. Sen-

285
do assim, ao final de cada sinopse, inseri o site de onde o texto
foi retirado.
500 anos de Angústia, Editora: Scortecci (2019)
Segundo o próprio o autor, a obra poética não tinha nome
até o momento que chegou à gráfica, e devido à situação do
momento decidiu nomeá-la de 500 anos de angústia para
mostrar o descontentamento do povo indígena, que enquanto
a sociedade comemorava os 500 anos de descobrimento, os
povos indígenas viviam os 500 anos de sofrimento. Disponível
em: <https://amz.onl/h9Z4Zay>. Acesso em: 21 out 2022.
O Saci verdadeiro, Editora: Panda Books (2021)
Karaí aprendeu com sua mãe várias histórias sobre o seu
povo. Sua favorita era a de Jaxy Jaterê, o protetor das florestas e
das pessoas. Quando começou a frequentar a escola, ele des-
cobriu que havia um livro sobre Saci-Pererê, nome dado pelos
não índios ao mesmo personagem. Aquilo deixou o curumim
confuso, afinal, qual era o Saci verdadeiro?

Xerekó Arandu: a morte de Kretã. Editora: Peirópolis


(2003)
Você vai se emocionar com as histórias contadas por Olívio
Jekupé em sua viagem ao Paraná onde decidiu retomar os es-
tudos. Em meio a aventuras ele nos apresenta Ângelo Kretã ca-
cique do povo Kaingáng conhecido pela sua coragem e deter-
minação na defesa das terras do seu povo e na união dos povos
indígenas. Disponível em: <https://www.amazon.com.br/Xe-
rek%C3%B3-Arandu-Morte-Olivio> Acesso em: 21 out 2022.
286
Quando o curumim Popyguá descobre que seu cachorro Ia-
randu pode falar, o mundo se transforma. Juntos, eles se en-
volvem em aventuras de magia e mistérios, em que realidade
e fantasia se misturam. E assim nos ensinam a observar tudo
ao nosso redor, o céu e a terra, as pessoas e os animais, para
descobrirmos segredos inimagináveis. Disponível em: <https://
www.amazon.com.br/Iarandu-C%C3%A3o-Falante>. Acesso
em: 21 out 2022.
Verá, o contador de história. Editora Peirópolis (2003)
O protagonista é um pequeno contador de histórias que se
preocupa com o respeito à tradição e com a realidade de sua
aldeia, como bem apresenta o texto divertido sobre Nhanderu,
o grande criador indígena. As histórias trazem termos em Tupi-
-Guarani, que são traduzidos em um glossário no final. As ilus-
trações são de crianças Guarani. Disponível em: <https://www.
amazon.com.br/Vera-Contador-Historias-Olivio-Jekupe/
dp/8585663987/ref=mp_s_a_1_1>. Acesso em: 21 out 2022.
Ajuda do Saci. Editora: DLC (2006)
Com a possibilidade de leitura em português e guarani, Ajuda
do saci é sobre a história de um pequeno índio, chamado Verá
que queria estudar na escola dos não indígenas e aprender de
tudo para assim defender seu povo. Apesar de existir diferen-
ças entre ele e os não indígenas, ele logrou o feito de ir para a
escola e acabou sendo o melhor da turma, porém um acidente
muda o rumo da história. Disponível em: <https://www.ama-
zon.com.br/Ajuda-Saci-Kamba%C2%B4i-Ol%C3%ADvio-
-Jekup%C3%A9/dp/853680193X/ref=mp_s_a_1_>. Acesso
em: 21 out 2022.
287
A mulher que virou Urutau. Editora: Panda Books
(2011)
Conta a história de uma bela índia que se apaixona por Jaxi,
o Lua. Para saber se o sentimento é verdadeiro, Jaxi resolve co-
locar em prova o amor da jovem. Esta é a lenda guarani sobre
o pássaro urutau, ave que possui uma diferente estratégia de
camuflagem: ficar imóvel nos troncos das árvores, de olhos fe-
chados, para não chamar a atenção dos predadores. Por meio
da lenda é possível discutir a relação entre essência e aparên-
cia, valores e virtudes, além da própria cultura indígena. O livro
traz o texto em português e em guarani, além de dados infor-
mativos sobre o pássaro urutau. Disponível em: <https://www.
amazon.com.br/mulher-que-virou-urutau-ebook/dp/B018X-
PB782/ref=mp_s_a_1_1>. Acesso em :21 out 2022.

Books(2017)
Conta a história de uma jovem indígena, Kerexu, que ao fi-
car muito curiosa depois de ouvir várias histórias sobre o pro-
tetor da floresta, que era poderoso e realizava desejos a quem
o pedisse, porém ela não sabia como fazer isso, foi aí que sua
prim1a, como sabia do segredo, deu uma ajudinha para que
ela pudesse chamá-lo. Disponível em: <https://www.amazon.
com.br/presente-Jaxy-Jater%C3%AA-Ol%C3%ADvio-Jekupe/
dp/8578883616/ref=mp_s_a_1_1>. Acesso em: 21 out 2022.

Grupo 3
N

e nem encontrei textos sobre elas na internet. No entanto,


-
288
assim.
Arandu Ymangaré. Editora Evoluir. 2022.
O Tupã Mirin. O pequeno guerreiro. Editora Leya Didáticos. 2014.
A Volta de Tukã. Editora Kazuá. 2018.
As Queixadas e outros contos guaranis. Editora FTD Educação. 2021,
O Lamento do Uratau. Revista Indío. 2011.
Casa de Passagem. Editora Jekupe. 2022.
Nelson Florentino, por sua vez, é contador de histórias, indí-
gena da nação Guarani mbya localizada em Rio das Cobras. Ele
trabalhou por muitos anos em parceria com o linguista norte-a-
mericano Robert Dooley4, para ser mais específico, desde me-
ados de 1975, sendo que um dos primeiros projetos de Dooley
junto a Nelson Florentino foi um dicionário guarani-português.
As histórias presentes em sua obra foram usadas como mate-
rial didático para ensinar ao linguista, a língua guarani.
Histórias de um Guarani (2019)
A obra “Histórias de um guarani” é formada por dezoito tex-
tos, algumas histórias que o autor ouviu e aprendeu com seus
pais e avós, e outras de sua experiência pessoal. É possível apre-
ciar ditas histórias em três idiomas, guarani, português e espa-
nhol. A princípio, os textos foram escritos na língua guarani e a
tradução para o português foi feita por Florentino. A intenção é
nos mostrar um pouco mais de sua cultura, tradição.

4 Robert Dooley linguista norte-americano, na época veio como missionário à Aldeia


de Rio das Cobras com intuito de evangelizar os indígenas, em 1975. Foi nessa época
que Dooley conheceu a Nelson Florentino, ainda adolescente, o qual lhe foi indicado
como um bom contador de histórias. A partir de então, os dois se tornaram amigos
e mais tarde trabalharam em parceria em alguns projetos como, por exemplo, a tra-
dução da Bíblia e um dicionário guarani. Como Dooley não entendia a língua guarani,
Nelson Florentino usou suas histórias para ensinar a ele sua língua materna.
289
Segundo informações contidas na obra, o trabalho de publi-
cação do livro fez parte das atividades do Programa de Exten-
são “Laboratório de Estudos do texto (LET)” da UEPG. “Histórias
de um Guarani” traz, assim, narrativas dos povos guaranis que,
até então, estavam todas guardadas numa pasta e em mãos da
filha de Nelson Florentino, Sara Gonçalves. A princípio, essas
narrativas foram o material didático usado por Florentino para
ensinar sua língua materna a seu parceiro Robert Dooley, com
quem trabalhou por 12 anos.
Anos mais tarde, quando Sara recebeu o material, também
pode fazer uso dele, sendo ela professora de língua guara-
ni inseriu os textos em suas aulas. A obra também conta com
depoimento de Sara Gonçalves, onde relata a dificuldade em
conseguir material didático para trabalhar com as crianças; en-
tão, ficou imensamente surpresa e feliz ao receber o material
de seu pai, pois além de agora ela ter material para trabalhar,
o fato de seu pai ser o autor e ela dizer isso aos seus alunos, os
incentivou a querer escrever suas próprias histórias.
Tiago Nhandewa, autor da obra “Quando eu caçava Tatu e
outros bichos”, nasceu no ano de 1985 em Amélia, Estado do
Paraná, e viveu até os seus seis anos na Terra indígena Laran-
jinha. Depois, se mudou para a Aldeia de Nimuendaju onde
passou sua juventude. Pedagogo, mestrando em antropologia
Social, possui Especialização em Antropologia pela USC/São
Paulo. Há mais de 15 anos trabalha com a educação escolar in-
dígena, onde atualmente é Coordenador Pedagógico. Casado e
pai de duas meninas, Tiago Nhandewa pertence à etnia guara-
ni-Nhandewa.
Quando eu caçava Tatu e outros bichos (2020)
A obra “Quando eu caçava Tatu e outros bichos” ainda está
na primeira edição, a qual parte dos exemplares publicados foi
290
destinada para a escola Estadual Aldeia Nimuendaju e o restan-
te foi vendido e seu lucro destinado para fins sociais. Sua obra
traz as narrativas do jovem Tiago, que nos relata os tempos de
menino que viveu na Aldeia Nimuendaju, sobre como eram as
caçadas de tatus, suas aventuras, nados e pescarias no famoso
rio Batalha, a caça e pesca era tanto para o sustento das fa-
mílias quanto para diversão dos garotos. Porém, com o passar
dos anos as caçadas foram diminuindo em consequência do
avanço das fazendas, que aos poucos foram tomando conta do
território.
As histórias presentes no livro são: A caçada de tatu no rio ba-
talha, Caçando tatu na fazenda de café, O amigo da cidade na
caçada de tatu, Nunca fui bom em caçar passarinhos! Pescando
sozinho no ribeirão grande, O dia que fiquei com medo de pes-
car noite e quase apaguei, Fuga para pescar no tubão, Pescando
e nadando no rio batalha, O rio Araribá e suas facetas, O dia não
estava e nem para cavalo.
Tetã Tekoha (2020)
A obra Tetã Tekoha, publicada em 2020, surgiu por meio do
Projeto Palavra Indígena que, junto com a Universidade Esta-
dual de Londrina, um grupo de estudantes da etnia Guarani e
Kaingang contribuiu com suas escritas sobre vivências, lutas,
desafios e conquistas. Sendo assim, na sequência, trago os/as
autores/as da etnia guarani que participaram deste projeto.
Alexandro da Silva Nhandeva5, de nome guarani Awa Tapé
Mirim, viveu toda sua vida em Terra Indígena, depois foi para a
universidade onde viu que sua passagem por ali não seria fácil,
porém todo esse sofrimento o motivou a seguir, porque apenas
vencendo é que ele teria a oportunidade de ajudar seu povo.
Também nos conta que seu nome é ligação direto com Nhan-

5 Nhandeva na língua indígena guarani significa nosso povo.


291
deru6 e seu povo. Segundo Tiago, os nomes das pessoas são
revelados pelo txamoi durante um ritual, não é simplesmente
escolhido como fazem os não indígenas. Carrega suas histórias,
traz consigo toda a ancestralidade de um povo guarani.
As colaborações de Tiago Nhandeva para a obra Tetã Tekoha
são: “Imagem indígena”, o texto fala sobre a imagem colonizada
e as formas de reproche que ainda se tem sobre os povos origi-
nários, sobre a atuação do indígena na sociedade, por exemplo
se tem carro, se usa celular ou até mesmo se fala português,
que a mentalidade do homem branco parece que ainda não
mudou, ou não aceita que o indígena evoluiu junto com a his-
tória e como os não indígenas ainda veem os indígenas conge-
lados na época de 1500. “Indígenas, as sementes ancestrais”, o
pequeno texto de 14 linhas fala da força e resistência dos povos
originários quando tiveram seu território invadido em 1500.
Em “Aos eternos e grandes líderes indígenas”, o autor faz uma
homenagem àqueles líderes que já não se encontram nesta
terra, agradece as memorias que ficaram, lutas e batalhas que
enfrentaram e diz que agora a luta fica na mão daqueles que
ficaram neste mundo.
Ana Lucia Ortiz M. Kunha Yvoty, com a ajuda da escrita nos
conta sobre sua história, nasceu e cresceu em terras indígenas,
seu nome foi dado pelo avô e na língua indígena quer dizer me-
nina bonita. Desde pequena, conheceu as dificuldades vividas
por seu povo, com isso aprendeu a lutar por seus direitos.
As contribuições da autora para a obra vêm com o texto
“Aldeia (Tekohape), e Cidade”. A autora conta a liberdade das
pessoas que vivem na aldeia, têm contato com a natureza, são
livres como passarinho. Já em seu outro texto, “Cidade”, ela traz
todo o contrário do que é a vida na aldeia, pessoas cercadas de
muros, e mesmo podendo andar por onde querer, ainda assim
são reféns e vivem engaiolados. Ainda, em “Tempo”, a autora
6 Nhanderu na língua indígena guarani significa nosso deus.
292
traz a reflexão sobre o tempo vivido, a viagem que o ser hu-
mano faz ao longo de sua jornada. Em “Menina”, como se fosse
um conselho, a autora diz para deixar de lado a dor pela perda
daqueles que se foram e voltar a ser feliz. Em “Mulheres indí-
genas”, a luta e resistência da mulher indígena é o foco contido
em 11 linhas. Se trata da mulher guerreira e indígena, sempre à
frente para lutar por seus direitos. “Mulheres indígenas e a ocu-
pação do nosso espaço”, seguido o foco do texto acima, trata
da mesma questão e defende o espaço que a mulher indígena
ocupa, e deve ocupar. “A lenda do Saci contada pelo meu avô”
fala de um uma índia muito bonita que foi expulsa da aldeia
por seu pai depois que ficou gravida, ela viveu na floresta so-
zinha por um tempo mas faleceu deixando a criança sozinha,
Nhanderu então deu uma missão à criança, cuidar e proteger
as crianças que ficam sozinhas. Por fim, em “Petyngua e suas
funções”, petyngua ou cachimbo como é mais conhecido, é um
instrumento usado pelo povo guarani, a autora nos conta as vá-
rias funções do objeto. Serve para se comunicar com Nhanderu
e também é usado em cerimônias.
Felipe Zamboni, graduando do 3º ano de medicina na Uni-
versidade Estadual de Londrina (UEL), filho de pai italiano e
mãe indígena, explica que não conheceu os preconceitos e di-
ficuldades que um indígena enfrenta. Sua mãe, como forma de
protege-lo, sempre reforçou sua branquitude, sua cor de pele
permitiu que tivesse certos privilégios, que um indígena, muitas
vezes não tem. Hoje ele se reconhece como indígena, parte de
um povo originário, e busca reafirmar sua identidade todos os
dias. Suas contribuições para a obra são: “Moro na cidade”, texto
que evidencia os contra tempos que um indivíduo pertencen-
te ao povo indígena enfrenta quando mora na cidade, existem
vantagens e também muitas desvantagens, a principal é estar
longe de seu povo e sua cultura. Em “Nossa saúde”, o autor des-
293
creve os níveis de sofrimento que seu povo enfrenta, discrimi-
nação e acusações de aculturação. Por fim, com “Estereótipo”,
como o título do texto já diz bem, o autor aborda as formas
que o indígena é tratado, ainda existe a visão estereotipada. O
indivíduo não pode ser livre na sociedade e acompanhar a evo-
lução e a história, porque senão é chamado de aculturado, falso
índio. Para o não indígena, o índio é visto como era lá em 1500.
Rodrigo Luís Tupã é graduando de medicina, nascido na
aldeia de Porto Lindo, Mato Grosso, onde viveu toda a sua
infância. Sua família em busca de encontrar um novo lugar para
viver, acabou vindo parar no Paraná. Suas contribuições para a
obra são: “Certezas e incertezas”, texto em que nos conta a cer-
teza que foi o massacre dos povos indígenas e a incerteza sobre
o fim de todo esse sofrimento. “Lugar bonito (Tekoha Porã)”,
em breve relato, o autor conta que em busca do lugar perfeito a
vida o levou para Guaíra, no Paraná. Porém o que era sonho não
passou disso, os povos ainda vivem sob pressão. “Em memória
a Cheramoî (meu Avô)”, o autor fala da lembrança de seu avô,
cacique e líder espiritual da Aldeia, que faleceu em sete de ja-
neiro de 2019, aos seus 103 anos. Seu desejo era que seu neto
assumisse seu posto de líder espiritual, mas Rodrigo sabia que
Nhanderu tinha outros planos para ele. Em “Jeroky Guassu”, faz
um breve relato sobre a importância do papel da mãe na vida
das crianças indígenas. Em “Chereki yma’guare”, Rodrigo faz um
relato de suas aventuras e histórias do seu tempo de menino
enquanto ainda morava na Aldeia de Porto Lindo, Mato Grosso
do Sul. Viveu por muito tempo na casa que seu avô e seu pai
construíram, a família era grande. Com a o avanço das fazendas
as famílias começaram a enfrentar grandes dificuldades então
sua família não teve outra escolha senão trabalhar para os fa-
zendeiros. Por fim, em “Casa de reza no modo de viver”, o autor
descreve qual a função da casa de reza, um local onde as pes-
294
soas se reúnem para rezar e se conectar com Nhanderu e os
espíritos, um local que transmite sabedoria, também é ali que
as crianças ganham seus nomes quando nascem.
Uerique Gabriel Matias, de nome guarani Djatsu Porã, que
quer dizer lua bonita, se descreve como num sonho onde con-
versa com Nhanderu e ele diz que Uerique será um guerreiro,
quando desperta de sono está na Universidade um grande so-
nho que sempre teve e não quer acordar. É guerreiro, luta por
seu povo, pelas injustiças que sofreram ao longo dos anos. Em
“Sou resistência”, explica como um povo que presa pela resis-
tência, o indígena cada vez se levanta mais forte, e hoje a sua
luta não é mais com arco e flechas e sim com a caneta em pu-
nho.
Valéria Lourenço Jacinto, seu nome indígena Nimboawy
possui dois significados, um sendo cabelos avermelhados, na
etnia Guarani Nhandewa, e, a que nasceu para ensinar, na etnia
Awa-Guarani, viveu sua infância na terra indígena de Laranji-
nha, Munícipio de Santa Amélia. Quando chegou a época da fa-
culdade, se mudou para Londrina com seus irmãos. A princípio,
não foi nada fácil se acostumar mas o fato de pensar que seu
povo precisava de sua ajuda, foi o que a motivou a seguir seu
caminho. Decidiu cursar medicina.
Em “A passagem do Txondaro para a terra sem mal”, faz uma
homenagem a Marcio Lourenço, guerreiro guarani Nhandewa,
quando passou para o outro plano. Em “Ywy Marae’y”, fala da
promessa que o povo indígena recebeu de Nhanderu, que se-
riam levado para a terra sem mal. Em “Txere’yi Reta- Nhande-
reko. Meus Irmãos- Nosso jeito”, a autora faz um relato sobre a
sua aldeia e nos conta o motivo de não falar sua língua materna
no dia a dia. Fala sobre sua cultura ter sido ridiculariza e seu
povo humilhado, tempos de ditadura, por organizações que
tinham o dever de proteger os povos originários. Segundo os
295
relatos que ouviu de seu pai, antigamente os povos originários
passaram por grandes dificuldades e recebiam punição se fa-
lassem em sua língua materna. Porém como como resiliência
e união define esse povo, se mantiveram firmes e fortes e hoje
continuam na luta por seus direitos, inclusive o direito de cursar
uma faculdade. Em “Medicina”, a autora nos mostra a visão que
ela teve sobre o curso depois que começou a cursar, pode dizer
que nem tudo são rosas e nem tudo é para o bem. Em “2019”,
em uma pergunta para fazer uma reflexão, discute o porquê o
homem branco não traz a verdadeira história sobre o ocorrido
com os povos, e o porquê de todo preconceito e perseguição,
que dura até dias atuais, sobre um povo que construiu o Bra-
sil. Para terminar, em “Ano de 1976”, fala de Mauricio Rangel
Reis, ministro do interior na época da ditadura, é o que a autora
cita neste breve texto, onde ele diz que a partir desta data, no
máximo em 20 anos, no Brasil já não haveria mais indígenas,
mas ela mostra mais vez que os povos originários resistiram e
seguem firmes na luta.

Sobre minha experiência durante essa pesquisa, posso dizer


que foi bastante árdua, procurei em muitos sites, em várias pá-
ginas e mesmo assim o material que consegui coletar foi pou-
co, o fato de ter pouquíssimas informações sobre os escritores
dificultou bastante meu trabalho. Porém com esse trabalho e
todo o material colhido, creio ser de grande valor em questão
de listagem de obras e autores paranaenses da etnia guarani.
Outra questão diz respeito às diferenças entre a literatura es-
crita por Florentino e a escrita por Jekupé: enquanto que uma
é sobre as narrativas dos povos, uma delas como já citado, são
narrativas orais que vêm sendo repassadas de pai para filho
296
durante muitos anos - passíveis de modificações ao longo do
tempo mas que ainda detém muito valor.
Já a escrita de Jekupé traz a visão do colonizado em algumas
obras, como por exemplo, em “A invasão”, além de escrever so-
bre sua vivência, acontecimentos com sua família. No entanto,
também possui obras infantil juvenis, poesias, contos. Mesmo
tendo essas diferenças entre uma e outra, as duas se encaixam
perfeitamente dentro dessa perspectiva de literatura indígena.
Além de Jekupé e Florêncio, temos a geração de estudantes
universitários indígenas que, recentemente, publicou material
pela UEL. A escrita deles nos revela suas lutas, suas conquis-
tas, histórias de sobrevivência. Cada um traz a sua percepção
de vida, como chegou até aqui, batalhas e desafios vencidos e
que estão se superando cada vez mais, desta forma mostram
que o indígena pode fazer parte de uma sociedade e preservar
sua cultura.
Por fim, o escritor Tiago Nhandewa relata suas histórias de
menino, quando ainda morava na aldeia Nimuendaju, como era
a vida das crianças que moravam na aldeia, faziam armadilhas
para os peixes, nadavam no rio, caças de tatu, e pesca que tanto
eram sua diversão, quanto para sustento das famílias. Os meni-
nos eram livres para saírem pela mata, eram livres na natureza.
Porém com o passar dos anos essas práticas foram diminuindo,
com o aumento das fazendas as matas diminuíram e com isso
a escassez de animais, outro aspecto que Tiago menciona é a
mudança no paladar dos meninos.
Automaticamente pensamos em papel quando o assunto
é história, contos, poesia, porém a literatura indígena vai além
disso, é oralidade, grafismo, pintura corporal, música, dança ar-
tesanato, contos, vivência.

297
BRASIL. Poder Executivo. Lei 11.645/08 de 10 de Março de 2008.
Brasília. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso
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2012. Dissertação de Mestrado (Dissertação para obtenção do título
de mestre em Estudos Literários) - Faculdade de Letras da Universi-
dade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, 2012.

298
MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva Matos. Decolonialidade e cur-
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cussões decoloniais. Campinas/SP: Pontes Editores, 2020, p. 93-111.
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Educação. Ler, Escrever e ser Guarani no Paraná, 2012. Curitiba:
SEED/PR.
SANTOS. A, K, Regina. História Indígena nos Livros Didáticos. 2018.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universi-
dade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2018.
VERÍSSIMO, Lídia Krexu Rete. Varai Para’i Regua. Curitiba: SEED/PR.
2001.

299
A literatura indígena e a perspectiva de uma
proposta curricular decolonial

Valéria Mariano1

1 Introdução
O interesse pela pesquisa teve início durante a graduação
em Letras Espanhol por ocasião da participação no Projeto de
Iniciação Científica “O ensino de línguas a partir de gêneros li-
terários: Interculturalidade e descolonização do conhecimento
– A literatura dos Kaingangs no Paraná”. O referido projeto teve
como objetivo geral problematizar a relação da literatura indí-
gena brasileira com a perspectiva de um currículo decolonial.
Além do interesse acadêmico, também despertou o interes-
se pessoal pelo tema, pois me identifico como indígena porque
meus avós, tanto maternos quanto paternos, eram indígenas.
Como tantas outras histórias silenciadas de mulheres indíge-
nas, sei pouco a respeito da vida de minha avó materna, ela
vivia onde hoje é a cidade de Tacuru-MS que significa cupim
em guarani, região que faz divisa com o Paraguai e que tem o
guarani como língua oficial. Esta região era habitada por erva-
teiros paraguaios e indígenas Kaiuwás. Nesse contexto, sabe-
-se que minha avó doou duas meninas, uma de 4 e outra de
2 anos, para um senhor fazendeiro branco e de posses, que as
trouxe para o Paraná. Uma delas era minha mãe Ramona Ga-
marra, nome típico paraguaio. Após aproximadamente 22 anos
de busca, encontramos minha avó residindo em Dourados-MS,
ela falava guarani mas não queria ensinar e nem recordar a vida
passada, ou seja, queria apagar sua triste sina.
Por outro lado, segundo noticiado no jornal Diário dos Cam-
pos da cidade de Ponta Grossa-Pr, edição do dia 9 de fevereiro
1 Trabalho orientado por Ligia Paula Couto.
300
de 1975, Gabriel Mariano, meu avô paterno, era “índio puro da
tribu Caingangue” que “desmentiu as teorias dos racistas exal-
tados e de certos brasileiros broncos que dizem que o índio é
incapaz de assimilar as criações dos chamados brancos”, pois,
“era agrimensor de mão cheia e falava até árabe”. Não o conhe-
ci, ele faleceu quando meu pai tinha dois meses de idade.
O tema da pesquisa relaciona-se diretamente com a propos-
ta de decolonizar os currículos trazida por Matos (2020). Pes-
quisar, ler e trazer a literatura indígena para o debate e possi-
bilitar que este conhecimento chegue até o maior número de
pessoas é uma maneira de colocar em prática o que a legislação
brasileira prevê. Para Matos (2020, p. 94), é “urgente a criação
de propostas curriculares que estabeleçam estratégias para a
construção de saberes transdisciplinares, a partir de perspec-
tivas decoloniais, de modo que os professores proponham e
estejam atentos às narrativas e discursos não hegemônicos”.
Desse modo, o objetivo geral deste artigo é problematizar
a relação da literatura indígena brasileira com a perspectiva de
um currículo decolonial. Como objetivos específicos, será de-
batida a questão do encontro entre indígenas e não indígenas,
o conceito de literatura indígena brasileira, a Lei 11.645/2008 e
a perspectiva decolonial para o currículo.
A presente pesquisa faz parte de uma agenda decolonial, de
uma postura e de uma atitude contínua de enfrentamento da
colonialidade na literatura. Ainda, a presente pesquisa preten-
de dar passagem às vozes dos indígenas e também, de algum
modo, resgatar a minha ancestralidade.

2 Olhares sobre o encontro


Os primeiros jurua kuery, ou os chamados não índios nas pa-
lavras de Jekupé (2020), vieram de Portugal e invadiram o Brasil
em 1.500 com a intenção de explorar e roubar o território. Para
301
os portugueses, tratou-se de um descobrimento, no entanto,
para os povos que já viviam no Brasil tratou-se de uma invasão.
Além disso, outro grande engano se deu quanto à identifi-
cação do povo que vivia no Brasil. Os portugueses navegavam
com a intenção de chegar na Índia, no entanto, chegaram no
Brasil, por isso, quando avistaram os povos nativos acreditaram
que estavam diante de índios. Segundo Jekupé (2020, p. 8), “a
palavra índio em nenhuma nação deste país tem tradução, para
nós, ela se tornou um apelido”. No entender de Gonzaga:
Sabe-se que apelido não retrata quem o apelidado de fato é, mas sim o
que as demais pessoas acham e pensam dele. O apelido é muitas vezes
uma maneira de chamar o outro de maneira desqualificada. Nos anos
70 nasceu o movimento indígena e o termo “índio” passou a ser utiliza-
do como um instrumento de luta e como uma maneira de se identifi-
car com aqueles que estavam em sintonia de pensamento. (GONZAGA,
2021, p. 2)

No mesmo sentido, Chauí diz que:


Quando a palavra “índio” é utilizada por grande parcela da sociedade
brasileira, nota-se que é atribuído o sentido do desdém do apelido, ou
seja, de maneira pejorativa, traduzindo pensamento que visa ao estere-
ótipo e a construir uma ideologia a fim de macular a imagem do indíge-
na e à ideologia. (CHAUÍ, 1984, p. 119)

A partir desses entendimentos, optou-se, na presente pes-


quisa, pela utilização dos termos povos originários e/ou povos
indígenas. Além disso, como pesquisadora das letras, entendo
que a escolha das palavras e seu correspondente sentido deno-
tam e expressam um lugar de fala próprio e potente desta pes-
quisadora. Por oportuno, e também enfatizando o lugar de fala2
da pesquisadora também como advogada, vale ressaltar que
toda a legislação brasileira ainda se refere ao indígena como
2 Para Djamila Ribeiro, lugar de fala remete ao local de fala do enunciador. A

por cada um. Por isso, esta pesquisadora enfatiza que se considera indígena, é
302
“índio”. A exemplo da Constituição Federal de 1988, o Estatuto
do Índio e a própria Fundação Nacional do Índio.
Anote-se como se expressou a poeta indígena Márcia Kam-
beba a esse respeito:
Índio eu não sou
Não me chame de índio
Poque esse nome
nunca me pertenceu
Nem como apelido eu quero levar
O erro que Colombo cometeu
Por um erro de rota
Colombo em meu solo desembarcou
E com desejo de nas
Índias chegar
Com nome de índio me apelidou
Esse nome me traz muita dor
Uma bala em meu peito transpassou
Meu grito na mata ecoou
Meu sangue na terra jorrou.
Chegou tarde eu já estava aqui
Caravela aportou bem ali
Eu vi homem branco subir
Na minha uka me escondi
Ele veio sem ter permissão
Com a cruz e a espada na mão
Nos seus olhos uma missão
Dizimar em nome da civilização.
Índio eu não sou
Sou Kambeba, Tembé, Suruí,
Sateré, Mura, Guarani, Apinaé
Tikuna, Kokama, Pankararu, Truká,
Tuxá, Fulni-ô, Guajajara
E existi com garra e com muita fé.
Mas índio eu não sou. (GONZAGA, 2021, p. 5)

Com a invasão dos portugueses, iniciou-se um grande mas-


sacre da cultura dos povos nativos, tal massacre se deu por-
que ocorreu a destruição da religião dos povos originários, bem
como, a destruição de seus costumes e de suas línguas. O pri-
303
meiro embate foi linguístico. Para comunicarem-se com os in-
dígenas, os jesuítas aprenderam a língua tupi, no entanto, eles
a descaracterizaram, modificaram-na, criaram uma gramática
com o intuito de torná-los alvos fáceis para os seus interesses.
Na verdade, entre os mesmos grupos linguísticos também ha-
via embates, muitas vezes motivados pelas alianças feitas com
os colonizadores, tais embates contribuíam para o fortaleci-
mento da opressão dos colonizadores sobre os indígenas, pois
as cisões tornavam os nativos ainda mais vulneráveis. O fato
é que, nessa relação primeira, perdeu-se muito da língua dos
povos originários.
Para Jekupé (2020, p. 8), “Uma nação pode ter o corpo vivo,
mas espiritualmente está “morta”, sem sua religião, sem seus
costumes tradicionais, sem sua língua, seguindo ideias daquele
que oprimiu os seus antigos parentes. Não é o mesmo povo”.
Este massacre ao qual o autor se refere, se deu especialmente
com a catequização dos nativos por parte dos padres jesuítas
que vieram de Portugal. Os jesuítas aliciavam os nativos e os
faziam crer que a pajelança era uma crença diabólica, com isso,
muitos nativos cederam para preservarem as suas próprias vi-
das.
Kopenawa (2015) relata que assim que os brancos começa-
ram a falar a língua nativa, também começaram a amedrontar
e ameaçar constantemente os indígenas com as palavras de
Teosi:
Não masquem folhas de tabaco! É pecado, sua boca vai ficar queimada!
Não bebam o pó de yãkoana, seu peito ficará enegrecido de pecado!
Não riam e não copulem com as mulheres dos outros, é sujo”. Parem
de fazer dançar seus espíritos da floresta, isso é mau! São demônios
que Teosi rejeitou! Não os chamem, eles são Satanasi! Se continuarem
assim ruins persistirem em não amar Sesusi, quando vocês morrerem
serão jogados no grande fogo de Xupari! Vão dar dó de ver! Sua língua
vai ressecar e sua pele vai estourar nas chamas! Parem de beber o pó

304
de yãkoana! Teosi vai fazê-los morrer! Vai quebra-los com suas próprias
mãos, porque é muito poderoso! (KOPENAWA, 2015, p. 256)

Tais ameaças deixavam os povos nativos confusos, ansiosos


e amedrontados, de modo que, aos poucos, foram deixando de
praticar seus rituais, ou seja, foram emudecendo e apagando
a sua cultura. As palavras ameaçadoras vinham também com
histórias do velho testamento da Bíblia como a história de Adão
e Eva.
Muitos nativos começaram a acreditar nesse discurso e pas-
saram a seguir a religião católica em detrimento da espirituali-
dade de seu povo e de seus ancestrais. Contudo, como relata
Kopenawa em sua obra, em dado momento, começou uma
desconfiança e descontentamento por parte dos indígenas em
relação aos brancos e suas crenças, especialmente porque no-
tou-se que os brancos não seguiam exatamente o que prega-
vam.
Contudo, a sabedoria e a inteligência dos povos nativos que
mantiveram a sua cultura foram passadas às novas gerações
através da tradição oral, ou seja, a cultura dos povos nativos e
todo o seu conhecimento era transmitido de forma oral a partir
dos mais velhos, considerados mais sábios, para as novas gera-
ções. Deste modo, justifica-se a escassez de livros escritos por
indígenas em comparação com os autores brancos, ou seja, a
cultura dos povos indígenas era e é originariamente transmitida
oralmente e através da prática cotidiana.
Por isso, muito da história e da cultura dos povos nativos se
perde com as violências contra os indígenas. São violências que
foram e ainda são feitas contra os povos indígenas em todas as
suas modalidades, ou seja, violência física, psicológica, patrimo-
nial, sexual e moral. Neste sentido, é importante registrar que
nos dias atuais e na atual conjuntura de pandemia da Covid-19,
viu-se instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito com
305
o intuito de indiciar o presidente da república do Brasil pelo ge-
nocídio contra os indígenas, além disso o referido presidente foi
também denunciado por genocídio de indígenas no Tribunal de
Haia.3
O massacre, perseguição e genocídio continuam nos dias
atuais, enquanto pesquisamos, uma menina indígena Kaiuwá
de 13 anos foi retirada de sua casa, morta e encontrada após
uma semana em uma fazenda na cidade de Dourados, região
do Mato Grosso do Sul.
Como não existiam registros escritos feitos pelos próprios
indígenas naquela época e, por muito tempo, não houve, muito
da cultura se perdeu ao longo dos séculos que se seguiram após
a invasão. O fato de não existirem registros escritos pelos povos
nativos não significa que não tinham interesse na preservação
da sua cultura, da sua língua, de sua religião, ao contrário, trata-
-se de uma cultura que se transmite de modo predominante-
mente oral.
Além disso, e como agravante, a história que foi contada
pelos invasores a respeito dos povos nativos é a história sob
a visão deles, ou seja, o que se tem registrado são relatos de
brancos invasores sobre os povos nativos, ou seja, não se tem
a voz do nativo. É uma história contada apenas sob a perspec-
tiva do colonizador. Falou-se sobre os indígenas e não com os
indígenas.
No entender da estudiosa em educação Linda Smith (2018),
a história da ciência ocorreu baseada em práticas racistas e na
exploração dos povos indígenas. Cárdenas (2019), ao abordar
a obra de Linda Smith, explica que a autora explicita e analisa
criticamente como se deu a história do saber e quais foram as
bases filosóficas e históricas que nortearam a pesquisa ociden-
tal, enfatiza ainda, como se deu a representação do outro e da
3
306
diferença nos textos, discursos e práticas escolares. Nesse senti-
do, o estudo de Smith vem ao encontro do nosso entendimen-
to de que a literatura indígena e toda a cultura indígena de um
modo geral foi subjugada e deslegitimada no contexto da his-
tória do conhecimento científico. Outrossim, a autora pontua
que a pesquisa e a educação podem ser usadas para enfrentar
o colonialismo e a opressão.
Não por outra razão que o ensino e a pesquisa acadêmica são
permeados pelo colonialismo. O que interessa, nesta pesquisa,
é problematizar a relação da literatura indígena brasileira com a
perspectiva de um currículo decolonial com o intuito de propi-
ciar o trânsito, o estudo, a leitura e a problematização das cul-
turas dos povos nativos dentro das escolas e das universidades
públicas. Nesse sentido, a escolha do tema e título da pesquisa
já apontam por si só para um posicionamento de resistência ao
colonialismo no ensino e na pesquisa dentro das universidades
públicas.
Tem-se a consciência de que estamos diante de um grande
desafio que é utilizar a pesquisa e a educação para enfrentar o
colonialismo e a opressão, assim como disse a referida autora.
Até os dias atuais, a história dos povos nativos do Brasil é
ofuscada pelos discursos dos ditos “colonizadores”, ou seja, a
literatura, a história, a cultura, a religião dos povos nativos estão
contaminadas pelas percepções dominantes do colonizador.
Nesse sentido, a voz dos nativos foi tolhida, silenciada, apa-
gada, e, com isso, ocorreu a dizimação ou exclusão da própria
identidade de muitos povos nativos, que viram seu povo ser
extinto. Portanto, a partir da invasão dos portugueses, lhes foi
tolhida a liberdade que é, segundo Jekupé (2020), o que os se-
res humanos mais gostam:
Sei que uma das coisas que todos os seres humanos mais gostam é se-
rem livres para fazerem o que querem. Por isso, se quiserem entender
307
o que é liberdade, é preciso que as pessoas abram a mente e reflitam
sobre a vida dos nossos ancestrais, antes de os portugueses chegarem
aqui. Para entender essa liberdade cultural é preciso voltar ao passado.
Mas reflitam com liberdade e não com a mente presa e dominante que
acredita ser superior (...). (JEKUPÉ, 2020, p. 15)

Em busca dessa almejada liberdade, Olívio Jekupé, índio


Guarani, nascido no estado do Paraná, tem escrito várias obras
que traçam a história dos povos indígenas sob a perspectiva do
próprio povo indígena e deseja que através de suas obras seja
dada uma nova percepção para a sociedade brasileira do que é
o indígena e do que é o povo Guarani.
Ainda sobre o encontro entre brancos e indígenas, Davi
Kopenawa descreve em sua obra todas as ameaças que o seu
povo sofreu, violências estas que atormentavam suas mentes e
também seus espíritos, pois os deixavam confusos e duvidosos
quanto ao quê e no que crer. Essas violências se deram espe-
cialmente em relação à língua, aos costumes como de vestir-se
e aos aspectos religiosos.
Quando eu era criança, os missionários quiseram a todo custo me fazer
conhecer Teosi. Não esqueço essa época da missão Toototobi. Às vezes
me lembro de tudo. Então digo a mim mesmo que Teosi talvez exista,
como aqueles brancos tanto insistiam. (KOPENAWA, 2015, p. 275)

Portanto, o encontro entre nativos e colonizadores não de


seu da forma como até hoje é transmitida nas escolas para os
alunos. No entender de vários autores indígenas, ainda que não
tenham mencionado a legislação que determina a contempla-
ção de conteúdos da cultura e da história dos povos nativos, a
literatura indígena é uma das principais formas de manuten-
ção de seus saberes tradicionais, bem como, é o caminho para
a transmissão dessa cultura para os estudantes e comunidade
em geral.

308
A partir das considerações feitas anteriormente, faz-se ne-
cessário refletir sobre a educação escolar brasileira. Nesse sen-
tido, é fundamental que, no currículo escolar brasileiro, seja
compreendido o ensino da cultura, história, religião e língua dos
povos nativos, de modo que o conhecimento, experiências a
serem transmitidas e trocadas sejam decoloniais, que sejam
abordados os fatos históricos, sociais e culturais não apenas
pelo viés do colonizador como se este fosse o dono da verdade
real.
Em entrevista concedida ao Portal Namu em 20194, o autor
indígena Munduruku falou a respeito da importância da cultura
e da literatura indígena nas escolas do Brasil:
A cultura e os conhecimentos tradicionais indígenas são fundamentais
para a identidade brasileira. Os cantos, os ritos de passagem, o jeito tra-
dicional de transmissão de conhecimento devem ser mantidos nas co-
munidades, e ao mesmo tempo, precisam ser valorizados nas escolas
convencionais para que as crianças entendam que há diferentes manei-
ras de ensinar e de educar. O padrão de escola que temos não é único,
ele é apenas mais uma das formas de transmissão de conhecimento.
Dar oportunidade para as crianças da cidade refletirem sobre os conhe-
cimentos tradicionais indígenas vai criar nelas também um sentimento
de pertencimento. (MUNDURUKU, 2019)

Para que tais conhecimentos possam ser passados para os


alunos, é necessário que eles estejam vivos ou que sejam vi-
vificados nos estudos e práticas dos professores e, além dis-
so, é necessário que se utilizem materiais didáticos e literaturas
produzidos pelos povos indígenas. Mas onde estão os referidos
matérias didáticos e literaturas? Quem os quer ler e ensinar;
quem os quer esquecer e apagar?
A importância da propagação das obras produzidas pelos
autores e autoras indígenas, no entender de Jekupé (2021), se
4 -
309
dá pelo fato de que eles produzem, o que ele chama de litera-
tura nativa, ou seja, é uma literatura escrita por quem conhe-
ce o povo indígena e vive entre eles, por este motivo podem
escrever sem medo e além disso, através da literatura podem
mostrar para a sociedade que os indígenas também têm capa-
cidade de escrever e portanto não são ignorantes como sempre
imaginaram.5
A esse respeito, importante material foi produzido pelo Pro-
jeto Jenipapos Rede de Saberes, uma parceria entre o Itaú So-
cial e Mina Comunicação e Arte. O projeto propõe um deba-
te sobre a literatura de autoria indígena, reunindo alguns dos
maiores expoentes da cultura indígena brasileira.
Daniel Munduruku foi um dos convidados a participar do
projeto ao lado de outros expoentes da literatura indígena, a
exemplo de Ailton Krenak, Eliane Potiguara, Julie Dorrico, Van-
da Domingos da Silva Macuxi Pajé e Liça Pataxoop.
Munduruku expressou-se, dentro da roda de conversa Rede
de Saberes - “Uma outra pedagogia” no projeto Jenipapos, o
consenso entre os referidos autores de que:
ao lado da floresta de pedra, a literatura de autoria indígena cresce e
aparece, mas ainda está longe de ocupar o espaço que merece. Autores
e autoras indígenas lutam pela preservação da cultura dos povos origi-
nários através de suas literaturas escrita e oral.6

Para que, que de fato, a literatura indígena ocupe o espaço


que merece, em primeiro lugar, há necessidade de uma trans-
formação na formação de professores, ou seja, existe a neces-
sidade de decolonizar o currículo das universidades e, deste
modo, formar professores que estejam preparados para en-
5 O autor compactua com o entendimento referido na notícia de jornal, quan-
contrariou aqueles que creem que o índio não tem capacidade de assimilar as

6 -
res
310
frentar as discussões decolonias com seus alunos e enfrentar,
com coragem, o discurso hegemônico.
Enquanto acadêmica do curso de letras de universidade pú-
blica vejo, com pesar, que o currículo atual não contempla disci-
plinas necessárias e específicas para a formação de professores
em literatura indígena, por exemplo. Pior do que isso, observo
que justamente pelo desconhecimento dos professores, existe
pouco estímulo para pesquisa nesta área.
Neste contexto, torna-se, de fato, difícil que se cumpra a le-
gislação que determinada a inclusão do estudo da história e da
cultura indígena nos estabelecimentos de ensino.
Para além disso, não se trata apenas de uma imposição legal,
mas sim da necessidade de um outro olhar para a ancestralida-
de, ou seja, o Brasil é um país de negros, índios, brancos, amare-
los, etc. De modo que, ao resgatarmos a verdadeira história do
nosso passado, vivificamos o nosso presente.
Assim, concordo com Montysuma (2019, p. 47), para quem a
“memória torna o passado vivificado no presente, para que as
pessoas não esqueçam o que são, de onde vem e o que podem
fazer a partir daí”. As discussões sobre a memória e esqueci-
mento fazem parte e servem como constructo político e social.
Se houver o esquecimento de uma língua, de uma cultura, da
história de um povo, dos cultos e da religião dos ancestrais de
um povo, este povo desaparece e então o esquecimento vence
sobre a memória. Se isso ocorrer, perde-se a capacidade de se
discutir questões e experiências subjetivas de uma nação den-
tro de um plano social.
Daí a necessidade e a responsabilidade dos professores e de
gestores educacionais posicionarem-se diante das intenções
de apagamentos, de esquecimentos e silenciamentos da ver-
dadeira história dos povos originários constituintes da popula-
ção brasileira.
311
Os autores e autoras indígenas têm plena consciência de que,
hoje em dia, a maneira de lutar pela preservação e pela cultu-
ra indígena depende do conhecimento e este conhecimento
pode e dever ser transmitido através da literatura. Para Jekupé
(2021, p. 17 e 29), “a literatura será nossa grande arma para de-
fender nosso povo. Nós seremos a mudança e a sociedade sa-
berá de nós, através de nossa escrita”. “Se antes as armas contra
os invasores e destruidores de nossa Terras eram arcos, flechas
e lanças, hoje a nossa forma de lutar é no papel e na caneta”.
Os indígenas sabem que é através do conhecimento que po-
derão formar líderes preparados para lutar pela preservação de
sua história e de sua cultura. No entender de Jekupé (2021), o
conhecimento é uma arma que não precisa de guerra; só de
conversa, discurso.
Na perspectiva de que o conhecimento é fundamental na
contemporaneidade para resolver problemas, recorremos às
perspectivas fundamentadas na decolonialidade. E sobre este
conceito, Matos explica:
Proponho que a decolonialidade seja um caminho para a promoção da
educação linguística e literária que visibilize e estimule o protagonismo
das diversas identidades não hegemônicas ... novas epistemologias,
preocupadas com discursos invisibilizados, marginalizados e subalter-
nizados por modelos tradicionais de ciência, e, consequentemente de
educação. (MATOS, 2020, p. 95)

Nesse sentido, a colonialidade atinge várias esferas da socie-


dade e não é diferente na área de ensino de línguas e litera-
turas. Daí a relevância do conhecimento da literatura indígena
com o intuito de levar aos alunos outros saberes que abarquem
conhecimentos de povos e nações historicamente marginali-
zados, como é o caso dos povos nativos.
No entanto, para que haja implementação das práticas de-
coloniais, há necessidade que haja um currículo que permita
trabalhar tais conteúdos, ou seja, segundo Matos (2020), é ne-
312
cessário que existam propostas de currículos que estabeleçam
estratégias para a construção de saberes transdisciplinares, a
partir de perspectivas decoloniais.
A legislação vigente prevê que é obrigatório o estudo da his-
tória e da cultura indígena nos estabelecimentos de ensino fun-
damental e médio do país. A lei 11.645/2008 veio na esteira da
obrigatoriedade do estudo da cultura afro-brasileira que se deu
no ano de 2003. Mas o que interessa é saber como tem sido o
cumprimento da legislação por parte dos professores, ou seja,
daqueles que, de fato, são os executores ou os destinatários da
referida menção legal. Tem-se trabalhado a cultura indígena
nas escolas de ensino fundamental e médio? De que maneira?
Uma coisa que era instituída e veiculada no meio escolar de
modo folclórico é do dia do “índio”, o que mudou a partir da
entrada em vigor da lei nova?
Cavalcante elucida a questão nos seguintes termos:
Apesar dessa questão, esse dispositivo legal pode contribuir para o de-
senvolvimento da pesquisa em história indígena, pois se espera que as
instituições de ensino superior abram novos posto de trabalho nessa
área. Isso propiciará a contratação de professores e pesquisadores com-
prometidos com a temática e a formação de licenciados habilitados
para o ensino da questão nas escolas. Para o sucesso efetivo dessa le-
gislação, é fundamental que seja superada a perspectiva eurocêntrica e
evolucionista presente em muitos currículos escolares. Observa-se em
muitos casos, quanto a história e a cultura dos indígenas são inseridas
nas atividades escolares por meio de projetos anexos, mas desconec-
tados das atividades curriculares normais. Essa forma de cumprimento
da obrigação legal tem caráter inverso ao esperado, pois tratar dessas
histórias de forma isolada da dita história nacional pode reforçar pre-
conceitos, visto que são apresentadas somente na “semana do índio”
e na “semana da consciência negra” de forma desconexa em relação à
chamada “História do Brasil”. (CAVALCANTE, 2011, p. 364)

O papel do professor é o de problematizar, juntamente com


os alunos e alunas, a lógica perversa colonial de exploração e
dominação, aqui no caso, no campo da literatura. Portanto, de-
313
colonizar o ensino precisa também ser uma prática do ensino
da literatura; trata-se, em primeiro lugar, de uma agenda nova,
uma postura e uma atitude contínua de enfrentamento às co-
lonialidades. Essa agenda nova, na verdade, não é tão nova as-
sim. Por Lei, desde 2008, é obrigatório o ensino da temática
indígena em nossas escolas.
LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.
Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela
Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira
e Indígena”.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional
decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a
vigorar com a seguinte redação:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino
médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e
cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação
da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como
o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos
povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o
negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as
suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos
povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de
literatura e história brasileiras.” (NR)
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120o da
República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad

A busca pela compreensão e posterior aplicação da Lei que


implementa a obrigatoriedade do estudo da história e cultura
314
indígena nas escolas de ensino fundamental e médio brasilei-
ras, perpassa a necessidade de falar a respeito da formação do
povo brasileiro nos seus mais diversos aspectos sociais e cultu-
rais, desde a invasão.
O Brasil é um país que pode ser definido como um ambiente de encon-
tro de diversas culturas, caracterizado pelas grandes riquezas naturais e
culturais. Munanga e Gomes (2006, p.11) afirmam que “aprender a co-
nhecer sobre o Brasil e sobre o povo brasileiro é aprender a conhecer
a história e a cultura de vários povos (...)”. (PRADO; PEDRO e GOMES,
2018, p. 18)

Especialmente os povos negros e indígenas foram os que ti-


veram a sua cultura massacrada por ocasião da invasão, com
já mencionamos, no entanto, a miscigenação ocorreu entre os
povos nativos, os negros, os portugueses e demais europeus
que vieram para o Brasil. Por isso, vê-se muito da cultura in-
dígena e africana no dia a dia dos brasileiros até os dias atuais.
No estado do Paraná, por exemplo, muitas cidades têm nomes
indígenas e alguns costumes alimentícios dos povos nativos
permanecem nas nossas mesas.
Apesar disso, ainda que alguns aspectos da cultura indíge-
na sejam considerados na educação fundamental e média, são
vistos de modo estereotipado, como algo folclórico e muito
longe da realidade. Apresenta-se os nativos como povos selva-
gens, de pouca ou nenhuma escolaridade, violentos e incapaci-
tados de conviver na sociedade dos brancos por terem costu-
mes muito alheios e por não terem a capacidade de aprender e
de interagir com os brancos de maneira equânime. No mesmo
sentido é o entendimento:
No processo histórico relatado no presente trabalho conclui-se que o
fato de ser negro ou indígena no Brasil é algo complexo. Afirma-se a
neutralidade, mas o que se vê - no dia-a-dia são pretextos e prerro-
gativas acerca da aceitação do negro, (ou até tolerância) do indígena e
de seus valores. Na prática, as ações que envolvem esse tema, em sua
315
maioria, se reduzem a atos folclóricos relativo às lembranças das tradi-
ções... (PRADO; PEDRO e GOMES, 2018, p. 18)

Com o intuito de reparar os danos causados aos povos indí-


genas e africanos, surgiu em 1990 o conceito de Ação Afirma-
tiva, este conceito foi fruto de muita luta impulsionada pelos
movimentos sociais e visava através de pesquisas e estudos fo-
mentar a criação de políticas públicas que buscassem o direito
a igualdade dos povos indígenas em todos os aspectos da vida,
para a melhor qualidade de vida dos povos nativos e acesso
igualitário aos bens e serviços. A partir do ano de 2001 quan-
do se realizou a Conferência Mundial Contra o Racismo, que
ocorreu na África do Sul começou um trabalho coletivo para a
promoção da diversidade no ensino público.
Após a realização da citada Conferência e a ascensão de um governo
com olhar direcionado para a produção de políticas sociais - enfren-
tando as desigualdades sociais - os movimentos da área, a sociedade
civil e o governo federal iniciam um trabalho voltado para promover a
diversidade nas escolas de educação básica, por meio da Lei Federal nº
10.639/2003, uma das primeiras conquistas que viria contribuir para
a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, valorizando as
raízes históricas do nosso país. (PRADO, 2017, p. 19)

Note-se que todos estes movimentos que culminaram com


a promulgação de algumas leis foram fortalecidos ou tiveram
maior visibilidade com o movimento pela democracia e que
teve o seu marco a Constituição Federal de 1988.
A Lei 11.645/2008 é bem específica no que se refere à litera-
tura. Em seu § 2o, estabelece que os conteúdos referentes à his-
tória e cultura dos povos indígenas brasileiros serão ministrados
na área de literatura. Ou seja, o próprio corpo da Lei destaca a
responsabilidade que essa área do conhecimento tem para que
sua implantação seja efetivada.
Nessa perspectiva, ao entrar em contato com as literaturas
indígenas os alunos têm a oportunidade de conhecer as memó-
316
rias dos povos originários e, com isso, entender qual o motivo
dos apagamentos, dos esquecimentos e dos silenciamentos da
história dos seus ancestrais, considerando que o povo brasileiro
é multirracial. Além disso, Matos (2020, p. 106) explica que os
alunos podem perceber “que muito do legado artístico e cultu-
ral que apresentamos é compartilhado entre nossas culturas”.

4 Entendimentos sobre literatura indígena


Para Graúna (2013, p. 19), “a literatura indígena ainda é pouco
estudada em seu escopo contemporâneo e, particularmente,
em seus aspectos fronteiriços”. O primeiro aspecto que deve
atentar é ao fato de que a literatura escrita dos povos indígenas
no Brasil é transversal, ou seja, relaciona-se diretamente com
a história de outras nações excluídas como é o caso dos ne-
gros e principalmente origina-se de uma forte tradição oral, de
modo que esta literatura não é nova, o que é recente é o seu
modo de expressão. Por isso, segundo, Graúna (2013), a litera-
tura indígena no Brasil trata-se de um conjunto de vozes entre
as quais o autor procura testemunhar a sua vivência e transmitir
“de memória” as histórias contadas pelos mais velhos, embora
muitas vezes se veja diferente aos olhos do outro. Essa per-
cepção da memória, da auto-história e da alteridade configura
um dos processos intensificadores do pensamento indígena na
atualidade.
Para Montysuma (2019, p. 46), “memória enquanto fragmen-
to do passado possibilita ao sujeito discutir as suas experiências
subjetivas, bem como, discutir um acontecimento, uma ques-
tão, uma passagem da história”. A memória é a vitória contra o
esquecimento, neste sentido, a literatura indígena é o próprio
apelo contra o esquecimento da cultura de toda uma nação.
No entender de Graúna (2013), são características da litera-
tura indígena a abordagem de, em princípio, seis temas trans-
317
versais, quais sejam, terra e conservação da biodiversidade, au-
tossustentação, direitos, lutas e movimentos, ética, pluralidade
cultural, saúde e educação. Jekupé entende que:
através dela podemos mostrar ao mundo nossos problemas que acon-
tecem no Brasil diariamente: terras sendo roubadas, rios sendo destru-
ídos, índios assassinados, índias estupradas e tantas outras coisas mais.
Por isso, eu via na escrita pelos próprios indígenas como uma grande
arma para a defesa de nosso povo. (JEKUPÉ, 2021, p. 14)

Eliane Potiguara, citada por Jekupé (2021), falou num encon-


tro de escritores indígenas, realizado em 2004 pelo Instituto
Brasileiro de Propriedade Intelectual na cidade do Rio de Janei-
ro-RJ o que entende por literatura indígena:
A literatura indígena cumpre o papel de resgate, preservação cultural,
fortalecimento das cosmovisões étnicas. O futuro escritor indígena de-
ver ser incentivado na aprendizagem da educação bilingue e educação
geral desde pequeno. O escritor indígena é o futuro antropólogo; aquele
que vê, enxerga e registra. (POTIGUARA, 2004 apud JEKUPÉ, 2021, p.
36)

O entendimento da autora quando menciona que o escri-


tor indígena é o futuro antropólogo, entende que até então, a
história dos povos nativos foi contada pelos antropólogos, so-
ciólogos e historiadores brancos que mantinham em seus re-
latos um único olhar sobre o encontro e suas consequências.
A autora entende que a literatura indígena é e deve ser uma
literatura de combate, combate ao paternalismo que se nota
nas histórias sobre a colonização. Notadamente o que se rei-
vindica através da literatura indígena é o protagonismo da sua
história, memória e cultura, ou seja, que os povos nativos não
sejam apenas objeto de estudos antropológicos e sim autores
das suas próprias vivências e experiências.
Segundo Darlene Taukane:

318
essa nova literatura que começa a surgir da parte dos indígenas é uma
tentativa de escrever a própria história conforme a perspectiva dos pró-
prios indígenas. O que vem acontecendo, secularmente, é que nós, os
povos indígenas, sempre fomos, escritos e conhecidos na perspectiva
dos outros. E quando somos vistos sob a lente de outras pessoas que
não são indígenas, nós, os povos indígenas, quando lemos ou toma-
mos conhecimento do que foi escrito, o que acontece muitas vezes, é
que nós não nos reconhecemos naquela ou nessa literatura. (TAUKANE
apud JEKUPÉ, 2021, p. 83)

Esta questão do não reconhecimento dos povos indígenas


nas narrativas descritas por autores não indígenas é recorrente
entre os autores, daí a importância da literatura indígena ou li-
teratura nativa como explica Munduruku, ou seja, uma literatura
escrita por quem vive a cultura e convive entre a comunidade
indígena. A autora saiu de sua aldeia para completar os estu-
dos e mais tarde transformou em livro a história do seu próprio
povo.
A partir de 2008, e de devido à Lei 11.645/2008, o Brasil viveu uma
alteração profunda no mercado editorial de literatura indígena. A Lei
obrigou o ensino de culturas indígenas e afro-brasileiras nas escolas e
inaugurou uma demanda nova por produção literária de autoria indíge-
na no país (JEKUPÉ, 2021, p. 8).

O presente trabalho me proporcionou a possibilidade de


pesquisar, analisar os dados e sobretudo refletir sobre a minha
formação em letras. Digo isso, porque a partir das leituras tanto
das propostas de um currículo decolonial quanto das obras de
autores e autoras indígenas, pude entender a urgência da mu-
dança de paradigma em se tratando de literatura e ensino.
O crescimento veio com o conhecimento de que literatura
indígena existe, é rica, necessária, no entanto, vê-se subjuga-
da do mesmo modo como outrora seus povos foram massa-
crados e marginalizados. Por isso, trata-se de uma literatura de
319
combate, combate ao colonialismo no ensino, combate a uma
única verdade, combate aos silenciamentos, combate aos apa-
gamentos da memória, história e cultura de um povo, um povo
que é o verdadeiro filho desta mãe terra que é o Brasil.
A importância de a literatura indígena integrar de forma con-
tundente os currículos nacionais não se dá apenas pela impo-
sição legal que veio com a Lei nº 11.645/2008, mas pela ne-
cessidade de problematizar, refletir, explorar e discutir com os
alunos de todos os níveis a respeito de todas as consequências,
nos mais diversos âmbitos da vida, advindas da colonização e
que influenciam de forma direta ou indireta as vidas de todos
os cidadãos, sejam estudantes ou não.
Além disso, a literatura indígena com suas peculiaridades é
determinante para a construção de um currículo decolonial, ou
seja, um currículo que, em primeiro, lugar aponte para a cons-
trução do conhecimento de forma interdisciplinar.
A literatura indígena não pode e não dever ser trabalhada
apenas nas disciplinas de português, mas sim, e considerando
a sua riqueza e diversidade, deve ser compreendida e trabalha-
da em outras disciplinas como história, sociologia, antropolo-
gia, ciências, biologia e outras tantas quantas forem possíveis.
A riqueza dos conteúdos que a integram permite que vários
aspectos sejam explorados e trabalhados com os alunos. Con-
tudo, este material dever analisado a partir de uma perspectiva
decolonial e não somente, mas é importante que o aluno seja
provocado a refletir sobre as supostas verdades que foram ditas
e reproduzidas desde a época da colonização e que, no entan-
to, não refletem a realidade, pois foram narrativas alheias, ou
seja, o papel da literatura indígena é, em primeira análise, o de
recuperar as narrativas dos povos originários do Brasil e trazê-
-los para o debate como autores da sua história e não como

320
objeto de estudo. Trata-se de falar com os povos originários e
não sobre os povos originários.
Outra necessidade que emerge e é urgente e imperiosa é a
formação de professores que estejam preparados para mane-
jar a produção do conhecimento, a partir da literatura indígena,
de modo que tenham uma postura decolonial, ou seja, que te-
nham internalizado o fato que trabalhar com cultura e história
dos povos originários é um posicionamento de resistência con-
trário à colonização de corpos, mentes e saberes que, até en-
tão, todos nós estamos submetidos. Por óbvio que não é uma
missão fácil nem tão pouco algo que possa ser solucionado em
tempo estreito, porém, é possível dar o primeiro passo.
Entendo que este passo, sem dúvida, deve ser dado pelos
alunos das instituições acadêmicas a partir de pesquisas deco-
lonizadoras, ou seja, dentro deste campo epistêmico decoloni-
zador.

321
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2018, 239 pp.

323
Línguas e literaturas
clássicas
Histórias verdadeiras, de Luciano de Samósata

Leandro José Freitas


Jane Kelly de Oliveira

Neste artigo, pretendemos demonstrar como a ironia, recur-


so discursivo muito presente em Histórias Verdadeiras, passa a
figurar em tal obra de Luciano como um recurso persuasivo, por
meio do qual o autor seduz o leitor, proporcionando, a um só
tempo humor e reflexão sobre a organização social e os va-
lores que os homens depositam nas instituições socialmente
construídas. Para desenvolver tais reflexões, utilizamos como
referência alguns teóricos como Jacyntho Lins Brandão, Lúcia
Sano e Linda Hutcheon, dentre outros, para tentarmos elucidar
as características da escrita de Luciano, no que se refere à pre-
sença da ironia em sua obra Histórias Verdadeiras.
Luciano ficou conhecido pelos diálogos satíricos que escre-
veu utilizando o humor para criticar os costumes da sociedade
grega daquele tempo. A ele foram atribuídas mais de 80 obras
que fazem parte do corpus lucianeum. Mesmo essa quantida-
de significativa de obras atribuídas a ele não foi suficiente para
torná-lo presença constante nos estudos atuais, chegando ao
ponto de Brandão (2001, p. 11) na introdução do livro A Poética
do Hipocentauro o classificar como um “(des)conhecido escritor
pós-antigo. Ilustre, sem dúvida, mas cuja obra tem atravessado
os séculos marginalmente.”
Luciano, denominado por alguns críticos contemporâneos
como “o grande satirista”, foi o autor da obra intitulada Histó-
rias Verdadeiras, traduzida para o português brasileiro por al-
325
guns autores como: Lúcia Sano em 2008; Gustavo Piqueira em
2012, e a tradução a que iremos nos apoiar para a realização
deste estudo é a de Théo de Borba Moosburger, traduzida do
Grego para o Português no ano de 2009.
Sobre a obra em questão, Sano (2008, p. 39) afirma, em
sua dissertação de mestrado, que “Histórias Verdadeiras é uma
narrativa fantástica”, isto é, possui elementos ficcionais fora de
uma realidade existente, em que Luciano narra fatos surpre-
endentes e fantasiosos, utilizando da paródia e da ironia para
criticar outros autores que ele considera “mentirosos”, e que
escrevem irrealidades como se fossem histórias verdadeiras. A
esse respeito, Brandão (2001, p. 140) declara que:
Se, nos autores que lhe servem de referência, Luciano identifica menti-
ras que pretendem passar por verdades, sua diferença está justamente
em assumir o psêudos, através da surpreendente confissão da mentira.

Luciano, movido por um ceticismo muito grande e uma cria-


tividade única, impõe em sua escrita, por meio da ironia, um
humor satírico. Por vezes ele expõe ao ridículo algumas inven-
cionices de autores respeitados naquela época por utilizarem
em sua retórica uma persuasão muito eficaz, mas, contudo, tais
autores narram acontecimentos inverificáveis, que o povo ouve
e aceita como um discurso verdadeiro.
Várias técnicas para persuadir o povo são utilizadas, sobre
isso Lúcia Sano (2008, p. 53) declara que “Luciano não aceita
como critério de verdade a autoridade dos antigos, cujas ‘nar-
rativas verdadeiras’, são, como ele mesmo declara, mentirosas
por natureza”. Sobre isso, logo no início do livro Histórias Verda-
deiras, Luciano faz a seguinte afirmação:
Tornei-me para a mentira, mas uma mentira muito mais comedida do
que as outras; pois, ainda que seja a única, em uma coisa direi a verdade:
eu digo que minto. E assim penso poder escapar das acusações dos ou-

326
tros, eu próprio confessando que não digo nada verdadeiro. (LUCIANO,
2009, p. 9).

A passagem citada acima é um exemplo do traço irônico no


texto desse autor que queremos evidenciar aqui. Na sequên-
cia vamos apresentar outras passagens em que fica evidente
a forma como Luciano explora a ironia na construção de sua
obra, traçando, assim, uma das linhas que o caracterizam como
autor. Antes de passar a análise, julgamos necessário fazer uma
breve apresentação do enredo da obra a seguir.

Linhas gerais do enredo de Histórias Verdadeiras


Histórias Verdadeiras é uma obra dividida em dois livros. No
início do primeiro, Luciano deixa claro que o objetivo da obra é
proporcionar um “leve entretenimento” (LUCIANO, 2009, p. 7),
pois, após várias leituras sérias, uma leitura descompromissada,
mas com qualidade, relaxaria a mente e a deixaria, utilizando
as palavras do próprio Luciano, “mais afiada para o esforço
subsequente” (2009, p. 7). Mesmo esse objetivo declarado no
livro pelo autor é irônico, uma vez que a obra é extremamente
crítica e, assim, ultrapassa a proposta do entretenimento.
Há uma crítica implícita a historiadores, poetas e filósofos
antigos que Luciano prefere não explicar ao leitor, pois ele con-
sidera de fácil interpretação. Porém, Luciano se contradiz, por-
que no próximo parágrafo ele nomeia Ctésias de Cnido, Jâmbu-
lo e o que ele considera líder e professor dessa falastrice toda,
Homero e sua obra Odisseia, nomeando, assim, os autores que
recebem a crítica dita velada.
No parágrafo 4, ao dizer que “[...] e por nada de verdadeiro ter
para narrar - já que nunca me sucedeu nada notável - tornei-
-me para a mentira [...]” (LUCIANO, 2009, p. 8), Luciano con-
sidera que após essa confissão, ficará imune aos julgamentos,
pois, ao confessar que mente, ele estabelece, retoricamente,
327
uma relação de cumplicidade com o leitor e, assim, ele enreda
seu leitor ideal em seu jogo de convencimento e persuasão.
Nesta citação de Luciano: “já que nunca me sucedeu nada de
notável” (2009, p. 8), observamos o caráter irônico caracterís-
tico desse escritor ao deixar uma crítica, nas entrelinhas, pois
fica evidente que está se referindo aos escritores que escrevem
mentiras sem ao menos confessar que mentem.
A narrativa, ao mesmo tempo, propõe um debate entre fic-
ção e história e segue emulando o modelo do herói explorador,
tal qual Odisseu na Odisseia. Mas Luciano supera os limites ter-
restres ou marítimos e abre caminho para a exploração espacial.
O personagem, em ambiente estelar, protagoniza encontros e
batalhas surpreendentes até mesmo para o leitor moderno ou
para os atuais fãs de ficção científica.
A seguir, apresentaremos um resumo de Histórias Verdadei-
ras (2009), de Luciano de Samósata, para melhor situar o leitor
no enredo da narrativa.
O narrador-personagem inicia sua viagem às Colunas de
Héracles com o objetivo de sanar a curiosidade e pelo anseio de
descobrir como é o fim do oceano (LUCIANO, 2009, p. 9). Ele
parte com cinquenta homens, armas e alimentos. Já no início da
viagem, eles enfrentam uma tempestade, até avistarem uma
ilha onde teriam passado Héracles e Dionísio, dois personagens
da mitologia grega clássica. Ao ver que o rio era de vinho, com
peixes cheios de mosto de uva, e colocar essa narrativa como
“prova” de que Dionisio esteve ali, Luciano usa da ironia para
explicitar ao leitor que tanto esta quanto as aventuras mitológi-
cas são narrativas fantasiosas e irreais. Outras invenções de Lu-
ciano, como as parreiras com formato de mulher que prendem
os homens pela genitália quando esses se aproximam (LUCIA-
NO, 2009, p. 11), atestam o humor e um tom erótico da obra,
também presente em outras narrativas gregas.
328
Diante do risco de ficarem aderidos às parreiras-mulher, Lu-
ciano (2009, p. 12-13) e seus companheiros de viagem conse-
guem fugir para o mar, mas outra grande tempestade com um
tufão de vento os faz voar e chegar até a lua, em uma espécie
de narrativa espacial lúdica.
Após serem capturados pelos cavalos-abutres e levados a
servir Endimião, rei da lua, eles entram em guerra junto com os
habitantes da lua contra os habitantes do sol, cujo rei é Faéton
(LUCIANO, 2009, p. 12-13).
Luciano narra esta luta e inicia uma descrição dos persona-
gens que encontra no espaço: cavalos-abutre; cavalos-formi-
ga; asas-de-vegetal; arqueiros-de-pulga; corredores-de-vento,
etc. Ele descreve estes personagens de uma forma fantasiosa,
exagerando nas proporções, talvez para enfatizar a mentira e a
invencionice. Mas, o que nos espanta é que, após essas descri-
ções absurdas, ele não descreve os pardais-glande e os cava-
los-grou, no parágrafo 13 (LUCIANO, 2009, p. 13-14), alegando
que não os viu e que não pode dizer como parecem. Posterior-
mente, ocorre evento semelhante em que Luciano descreve os
centauros-das-nuvens, e diz tratar-se de uma visão estranhís-
sima, porém se nega a dizer a quantidade deles, porque como
ele mesmo diz, “seria inacreditável” (LUCIANO, 2009, p. 17).
Assim o autor vai mesclando a narração e o questionamento da
narração, provocando a dúvida constante do leitor na suposta
verdade narrada.
Faéton, deus do sol, vence os lunares e eles estabelecem um
suposto ‘acordo de paz’ (LUCIANO, 2009, p. 17-18), mas dizem
que os solares incendiaram o país, e um dos termos é guerrear
como aliados caso sejam atacados. Luciano critica aqui a ironia
da chamada paz, em que os poderosos colonizam outros paí-
ses.

329
Esse vai e vem na lógica narrativa – ora o narrador detalha os
personagens, ora assume textualmente que são invenções fan-
tasiosas e, portanto, não cabem em escritos de histórias verda-
deiras – constrói com o leitor uma espécie de narrador confesso
de sua técnica narrativa, uma espécie de desnudamento da arte
– que sabemos simulado para atingir o leitor em cheio e incen-
tivar-lhe a leitura crítica do processo de construção ficcional
(mesmo em textos que se arvoram transposição de discursos
verdadeiros).
A narrativa das aventuras espaciais continua: “Durante os
dias em que eu estive na lua, observei coisas novas e estranhas”
(LUCIANO, 2009, p. 19). Assim Luciano (2009, p. 18-19) inicia
o vigésimo parágrafo e prepara o leitor para usar a imaginação,
porque os relatos que fará a seguir serão surpreendentes. A in-
trodução, com o anúncio da novidade e estranheza, faz o leitor
criar uma expectativa e, movido pela curiosidade, assim como
Luciano ao empreender essa viagem, continuar a leitura do li-
vro.
No parágrafo 25 ocorre novamente uma contradição simu-
lada quando Luciano diz uma coisa e faz outra. Nessa parte do
texto, ele diz que não descreverá os olhos dos habitantes do
espaço, porque julga inacreditável e, como se preocupa com o
leitor, não quer que o considerem mentiroso, mas logo a seguir
ele faz a descrição. Assim, entre descrição narrativa e confissão
de criação ficcional, Luciano encaixa os sucessivos episódios vi-
vidos em sua viagem, primeiro a espacial, depois o retorno para
a terra e a participação em uma batalha naval. Até que chegam
ao reinado de Endimião. A cena é retomada da passagem da
Odisseia, entre os cantos 6 e 8, em que Odisseu passa pelo país
dos Feáceos, narra as aventuras vividas e segue viagem com os
presentes adquiridos.

330
Ao sair da corte de Endimião, Luciano e seus companheiros
seguem escoltados pelos cavalos-abutre, veem constelações
até chegarem ao oceano, onde são engolidos por uma baleia:
Finalmente saudamos o rei e sua corte e embarcamo-nos e zarpamos;
Endimião me deu até presentes, duas ´túnicas de vidro, cinco de bronze
e uma armadura de lupino, mas eu acabei por deixar tudo dentro da
baleia. (LUCIANO, 2009, p. 22)

A introdução da baleia que engole a todos os tripulantes é


uma mudança de expectativa e parece ser uma estratégia para
instigar ainda mais a aderência do leitor ao texto, uma vez que,
quando o arco narrativo parece estar em descendência, já en-
caminhando para o desfecho, um novo elemento é inserido,
causando, assim, uma possibilidade de reativar a narração ini-
ciando-se um novo episódio.
Dentro da baleia o espaço é incrível, há florestas e constru-
ções. Um velho e um jovem provindos de Chipre moram ali há
27 anos. Eles também foram engolidos pela baleia. Há também
outros povos hostis contra os quais Luciano (2009, p. 26-27)
e seus companheiros, aliados aos antigos habitantes, fazem
guerra e vencem.
Depois de 1 ano e 8 meses dentro da baleia, ouvem ruídos de
uma batalha naval. Homens gigantes com cabelo de fogo guer-
reavam entre si, navegando em ilhas que funcionavam como
navios de guerra.
No segundo livro, assistem a batalha, matam a baleia
e escapam. Seguem-se aventuras pitorescas, o mar congela e
eles deslizam pelo gelo continuando a viagem, e até navegam
em um mar de leite. Então avistam uma ilha branca que era um
grande queijo e chama-se Queijosa. Lá as uvas eram feitas de
leite e o lugar parece ser um bom território para descanso. Os
homens desembarcam e permanecem ali por 5 dias. (LUCIA-
NO, 2009, p. 33-34).
331
A narrativa continua com Luciano e seus companheiros de
viagem atraídos pelo cheiro de um perfume quando eles de-
sembarcam em uma ilha dos mortos, a Ilha dos Bem-Aven-
turados A ilha era governada por Radamanto, que, segundo a
mitologia grega, é o responsável por julgar os mortos.
Luciano e seus companheiros tiveram que responder o mo-
tivo de estarem em terra sagrada antes da morte e, aguardan-
do julgamento, permaneceram na ilha por 7 meses. O lugar é
fabuloso, com árvores frutificando o ano todo, pão nascendo
pronto das árvores, simpósios em que o vento traz o que os
convivas desejam e árvores de vidro, cujos frutos são vinho,
vertem a bebida nas taças dos convivas. Há duas fontes das
quais os convivas bebem, uma de riso e outra de prazer.
Depois de descrever vários julgamentos e condenações dos
heróis gregos, e dos comportamentos dos personagens gregos
com muito humor, Luciano utiliza ironia para contestar a exis-
tência de Homero. Como ele estava entre os mortos, pergunta
diretamente para Homero o que podemos ler na citação “[...] e
eu, aproximando-me do poeta Homero, numa ocasião em que
estávamos ambos no ócio, perguntei-lhe, dentre outras coisas,
de onde ele era. Pois isso, em especial, ainda hoje é investigado
entre nós.” (LUCIANO, 2009, p. 40).
A seguir, Luciano e sua equipe desembarcam na Ilha dos Ím-
pios e, enquanto observam os castigos sofridos pelas pessoas,
o guia vai informando as falhas destes. O caso que chama aten-
ção é que os castigos mais cruéis são destinados às pessoas que
haviam contado alguma mentira e às que não haviam escrito a
verdade, citando Heródoto e Ctésias de Cnido. Então Luciano
(2009, p. 46-47) desperta o riso do leitor quando diz que tem
boas esperanças para o futuro, pois não se lembra de ter con-
tado alguma mentira.

332
Ao serem liberados da Ilha dos Ímpios eles avistam a Ilha dos
Sonhos, na qual dormiram por 30 dias, e Luciano (2009, p. 47)
ironicamente diz que vai descrever a cidade, já que só Homero
a mencionou e não descreveu direito. Acordados por um tro-
vão, zarpam rumo à Ogígia.
Encontram Calipso, personagem da Odisseia, e com ela se
hospedam por uma noite. Novamente com ironia Luciano narra
um resumo de parte da viagem e morte de Odisseu e a falsa
promessa de imortalidade em uma carta lida pelos navegantes
(LUCIANO, 2009, 48-49). Por contar tudo de maneira que pa-
rece romântica, Luciano ironiza a traição escondida no discurso.
Quando seguiram viagem, mais uma tempestade os leva a
uma nova ilha, onde foram atacados por piratas-abóbora que
desistiram do conflito contra a tripulação de Luciano para guer-
rearem contra os marujos-noz (LUCIANO, 2009, p. 49-50).
Na sequência, encontram uma floresta em pleno mar, em
mais uma narrativa fantástica e irreal e, por não terem opção
de navegação, içaram o navio e atravessaram sobre as árvores,
com as velas abertas, até o outro lado da floresta. Após algumas
aventuras ali, eles avistaram um abismo no mar, uma fenda que
dividia o oceano em dois, e atravessaram por uma ponte.
Depois avistam uma ilha habitada por homens cabeça de
touro, como Minotauro, outra referência às lendas gregas. Eles
lutam e capturam dois desses monstros, mas os trocam por su-
primentos como queijo, peixe, cebolas etc. Aqui Luciano (2009,
p. 21), quer enfatizar a troca, pois se ele tivesse os prisioneiros,
certamente seria uma prova real, logo, é uma justificativa muito
conveniente para se defender de acusações das mentiras con-
tadas.
Continuaram a navegação, passaram por homens que nave-
gavam com seu próprio corpo, até que atracaram em uma ilha
só de mulheres cortesãs que os recebem em seus aposentos.
333
Tais figuras femininas, revelaram-se mulheres marinhas da es-
pécie Perna de Bode que se alimentavam dos marinheiros que
passavam por ali. Luciano captura uma, descobre o perigo e avi-
sa os companheiros, então, todos fogem dali.
Por fim, uma última tempestade os leva de volta a terra, des-
truindo a embarcação, outra técnica para justificar a falta de
prova da fabulosa viagem.
Luciano finaliza a narrativa com a promessa de continuação
da aventura agora em terra, sua última mentira irônica, uma vez
que o autor Luciano escreveu várias outras narrativas mas não a
que foi aqui prometida.

A Ironia em Histórias Verdadeiras, de Luciano de


Samósata
Luciano, em Histórias Verdadeiras, parece usar a figura de lin-
guagem da ironia de modo a construir um discurso persuasivo
ficcional. Além disso, há uma recorrente utilização da paródia
na obra para suscitar o humor.
Sano (2008, p. 39) apresenta a ideia de que Histórias Ver-
dadeiras “é uma narrativa fantástica em primeira pessoa sobre
os locais e povos que Luciano (autor, mas também narrador
do texto) e seus companheiros encontram na viagem que
empreendem para além do mundo conhecido”. Mas além de
apresentar tal narrativa fora da realidade factível, o enredo
cheio de aventuras irreais e homens mesclados a animais evo-
ca uma ironia, pois, como o próprio autor narrador deixa claro,
os objetivos de suas narrativas são dois: o entretenimento para
relaxar a mente; e a intenção por trás de cada aventura narrada
de desmentir os “[...] antigos poetas, historiadores e filósofos,
que escreveram muitas coisas absurdas e fabulosas” (LUCIA-
NO, 2009, p. 7).

334
Assim, por meio da paródia e das narrativas fantasiosas –
narradas e desmentidas – Luciano estabelece com o leitor uma
relação pautada pela ironia.
Ele coloca todos narradores de fábulas inventadas, aqueles
que pensam registrar a história e os pensadores da Grécia Anti-
ga no mesmo patamar. Ambos os objetivos da narrativa luciâ-
nica são realizados, segundo o próprio autor, com “comicidade”,
o que nos sugere duas informações importantes: O caráter cô-
mico está ligado à ironia; e a ideia por trás do texto é persuadir
o leitor.
Sobre essa questão, o fato de Luciano ter utilizado o gêne-
ro “narrativa de viagem” no próprio enredo de Histórias Verda-
deiras contribui para uma visão irônica desse estilo de contar
histórias. Como aponta Sano (2008, p. 91), quando compara
essas narrativas com a obra fictícia Odisseia, o narrador dessas
falsas viagens quer iludir o leitor de que foi até lá e participou
dos eventos narrados. Deste modo, Luciano também ironiza
essa persuasão no início de sua história, quando escreve que
viaja com “[...] anseio por coisas novas e o desejo de descobrir
como é o fim do oceano e quem são as pessoas que habitam
além” (LUCIANO, 2009, p. 9).
Tendo em vista que o leitor da época em que Luciano escre-
veu não poderia chegar ao fim do oceano, é justamente para lá
que ele vai, utilizando-se da ironia para desvalorizar por meio
do humor o discurso de historiadores da antiguidade.
Sendo assim, a própria escolha formal do gênero indica que
Luciano propõe uma crítica aos recursos narrativos utilizados
por autores canônicos do período clássico da literatura grega. A
organização metaliterária contribui para a crítica e a ironia.

335
Seguindo nossa investigação da obra Histórias Verdadeiras, a
ironia nos ajuda a perceber mais um tema presente na obra: a
interrelação entre ficção e História.
Brandão propõe uma análise da obra de Luciano tendo em
vista sua ficção sobre a perspectiva histórica. De início, ele co-
menta sobre a liberdade do poeta, da imaginação de inventar
o que ele quiser, e sobre as diferenças que a linguagem poéti-
ca tem da área historiográfica. Como relação a Histórias Verda-
deiras, Brandão diz que ali se faz uma “[...] ficção da história”
fazendo um contraponto com a obra Como se deve escrever a
história, de Luciano, que seria uma ‘história da ficção’ (BRAN-
DÃO, 2001, p. 33).
O teórico propõe o termo pseudo para caracterizar as mentiras
que são contadas pelos historiadores, enfatizando a distinção
entre a história e o encômio: a intencionalidade do texto. En-
quanto o texto histórico tem como meta a verdade, o encômio
busca exaltar a pessoa ou o objeto referenciado (BRANDÃO,
2001, p. 34-35). Brandão cita a Ilíada, de Homero, como exem-
plo de fantasia, em concordância com Histórias Verdadeiras, em
que Luciano desmitifica as narrativas gregas clássicas.
Quando Luciano narra a guerra entre os lunares e os solares,
ele faz uma referência interessante:
Depois da brilhante vitória, muitos sobreviventes foram feitos prisionei-
ros e muitos mortos recolhidos, e o sangue derramava-se em grande
quantidade sobre as nuvens, até que elas se tingiram e ficaram verme-
lhas, conforme se mostram a nós no pôr-do-sol, e muitas gotas caíam
na Terra, e, por conta disso, perguntei-me se algo dessa sorte não pode-
ria ter acontecido lá no alto no passado, quando Homero supôs ser Zeus
a fazer chover sangue na ocasião da morte de Sarpédone. (LUCIANO,
2009, p. 16)

O narrador coloca em dúvida o mito de Homero ao com-


parar com sua própria história, que ele confessa ser ficção no
336
início do livro. Assim, o diálogo entre os dois textos deixa indica
a avaliação que Luciano faz dos mitos antigos. Para ele ambos
os textos têm o caráter fantasioso de uma história inventada.
Neste sentido, o tipo de leitor que Luciano busca é aquele que
possa compreender as referências que ele ironiza, neste caso,
Homero e sua obra. O autor lança mão da técnica narrativa para
persuadir o leitor idealizado a perceber o que está por trás da
cena fictícia. Um exemplo dessa técnica persuasiva é quando
Luciano critica o fato de Odisseu, personagem da Ilíada, ser um
grande ‘falastrão’ (2009, p. 8), característica que se repete em
outros trecho de Histórias Verdadeiras. Assim, Luciano enfatiza
o discurso mentiroso de um dos personagens considerado o
mais sábio da Grécia.
Também o próprio Homero é representado na narrativa
em Histórias Verdadeiras como personagem, tendo seu nome
mencionado mais de dez vezes na obra, dentre as quais, desta-
ca-se a passagem cômica:
Ainda não haviam decorrido dois ou três dias e eu, aproximando-me
do poeta Homero, numa ocasião em que estávamos ambos no ócio,
perguntei-lhe, entre outras coisas, de onde ele era. Pois isso, em espe-
cial, ainda hoje é investigado entre nós. E ele disse que nem ele próprio
ignorava que uns pensam que ele seja de Quios, outros de Esmirna, e
outros ainda de Colofon [...]. (LUCIANO, 2009, p. 40)

Na citação acima, Luciano coloca em dúvida a existência de


Homero questionamento onde ele teria nascido, sendo que o
próprio poeta estaria ciente de que o questionavam tal infor-
mação, o que torna claro o humor na escrita do autor de Histó-
rias Verdadeiras.
Logo a seguir, Luciano (2009, p. 41) continua a questionar
Homero, desta vez ironizando sua autoria, quando descreve o
poeta confessando que não escreveu a obra Odisseia, o que co-
labora ainda mais com a ideia de que o autor e a história foram
inventados, já que a Ilíada e a Odisseia não seriam sequências,
337
mas obras fabulosas compiladas por diferentes autores. O leitor
é então seduzido pela comicidade irônica ao duvidar da exis-
tência real de Homero, justamente porque um personagem de
mesmo nome confessa que não escreveu.
Outra ironia pode ser percebida na narrativa de Luciano no
trecho “uma brisa maravilhosa foi sentida à nossa volta, delei-
tosa e perfumada, da sorte que o historiador Heródoto con-
ta emanar da abençoada Arábia.” (LUCIANO, 2009, p. 34-35).
A ‘Arábia’ aqui citada na época era uma província do Império
Aquemênida (FERNANDES, 2020, p. 1), conhecido como o
primeiro Império Persa que travou guerra com a Grécia Antiga.
O fato de Luciano referenciar o ‘historiador’ grego Heródoto é
para fazer uma crítica à veracidade de seus escritos, pois ele
retornará como um personagem tão fictício quanto suas ‘his-
tórias’, sofrendo o maior castigo do tribunal por ser ‘mentiroso’
junto com outro historiador grego, Ctésias de Cnido (LUCIANO,
2009, p. 46).
A técnica da persuasão de Luciano consiste justamente em
apresentar uma referência à obra de um homem considerado
historiador e subverter a credibilidade histórica dada pelos gre-
gos da época ao sentenciá-lo como o personagem mais men-
tiroso, usando o humor para seduzir o leitor a repensar o que é
História e o que é ficção.
Ao longo de toda narrativa o leitor é levado por Luciano a
rir dos personagens fictícios ironizados, e, ao chegar ao final,
na falsa promessa de que publicará outro livro para continuar a
narrar sua viagem. Esse desfecho remete o leitor às intenções
do livro apresentadas no prólogo: a primeira é entreter, o que já
foi cumprida durante a leitura, e a segunda é a crítica aos ‘men-
tirosos’ tidos como historiadores, poetas e filósofos gregos.
Enfim, muito da cultura grega vem das obras de Homero, e ao
ironizar não só ele, como também historiadores e filósofos da
338
antiguidade, representando-os como personagens de suas nar-
rativas fictícias, Luciano faz sua crítica ao pensamento clássico
grego que idealiza grandes feitos em guerra e o caráter heroi-
co dos guerreiros. Ele apresenta essas narrativas como fábulas
inventadas para justificar os erros históricos, julgando inclusive
em um tribunal fictício toda a ‘falsa história’ com ironia, e assim,
leva o leitor a repensar os discursos por trás da História.

Ironia e Paródia
Na obra Uma teoria da paródia (1985), Linda Hutcheon dis-
corre sobre a busca da modernidade pela paródia, que leva a
uma intertextualidade, isto é, o diálogo entre o texto e suas
referências externas a ele. Apesar de o texto da Hutcheon ser
voltado para a reflexão sobre a pós-modernidade, algumas ca-
racterísticas da intertextualidade descritas por ela podem ser
percebidas claramente na obra Histórias Verdadeiras, de Lucia-
no de Samósata. Quando lemos os nomes de personagens e
autores da Antiguidade Clássica Grega, como o historiador He-
ródoto (LUCIANO, 2009, p. 34), e o poeta Homero (LUCIANO,
2009, p. 17) essa relação se evidencia. Assim, é no diálogo com
as obras do passado que uma paródia se efetiva, pois imprime-
-se um novo olhar sobre a cultura.
O fato do personagem principal de Histórias Verdadeiras ter
um anseio por “coisas novas” (LUCIANO, 2009, p. 9) e ao lon-
go de toda narrativa encontrarmos mitos antigos parodiados é
uma grande quebra de expectativa do ponto de vista do enre-
do.
Baseada nos estudos de Foucault, Hutcheon apresenta uma
crítica ao individualismo do autor da escola literária romântica,
e a noção de originalidade (HUTCHEON, 1985, p. 15-16). Diante
dessa discussão entre os textos passados e os novos escritos,
ela considera que:
339
Muito embora a paródia ofereça uma versão muito mais limitada e con-
trolada desta activação do passado, dando-lhe um contexto novo e,
muitas vezes, irónico, faz exigências semelhantes ao leitor mas trata-se
mais de exigências aos seus conhecimentos e à sua memória do que à
sua abertura ao jogo. (HUTCHEON, 1985, p. 16)

Logo, a autora considera que a paródia ressignifica a história


parodiada recorrendo à ironia para conduzir o leitor a revisitar
o texto referenciado e favorecer uma nova visão da obra que
colabore para o ponto de vista do autor da paródia. A citação
de nomes como ‘Endimião’ e ‘Faéton’ no início da narrativa de
Luciano (2009, p. 12-13), por exemplo, ressalta a referência à
mitologia grega, pois são nomes de personagens fictícios das
lendas que personificam a lua e o sol, e cuja inimizade resulta
em guerra pela invasão do território alheio, uma crítica ao que
os povos da Grécia faziam na época.
Hutcheon afirma que é necessária ao leitor idealizado pelo
autor da paródia uma compreensão da obra anterior e da ironia
presente, pois só assim o texto tem seu efeito catártico, do hu-
mor, da crítica e da nova forma de ler o texto clássico.
Luciano recorre a esse método de referenciação, ironia e hu-
mor várias vezes, por exemplo, ao narrar figuras antropomór-
ficas em sua história, como os cavalos-abutres (2009, p. 12),
uma possível referência ao ‘Pégaso’ da mitologia grega, em que
Perseu monta um cavalo alado. Aqui a paródia figura na comi-
cidade do exagero, um homem montar um cavalo com asas
de águia é algo inusitado para o leitor, mas montar em abutres
gigantes de três cabeças é mais ‘monstruoso’. Deste modo, per-
cebemos que a ironia pode ser compreendida aqui como uma
forma de evidenciar o contexto da obra, o que está por trás do
dito, nas entrelinhas do texto. No caso, o antropomorfismo que
era usado para acentuar os feitos dos heróis, na paródia de Lu-
ciano é colocado como um sinal da irrealidade e bizarrice dos
mitos gregos.
340
Em nossa investigação a respeito da questão irônica, com-
preendemos que a paródia e a ironia para Hutcheon estão
relacionadas de tal modo que ela chega a mencionar que em
toda paródia existe a ‘inversão irônica’ (HUTCHEON, 1985, p.
18). Logo, escreve-se uma afirmação com o propósito de que
o leitor compreenda o contrário do que foi dado, e com isso, a
importância da ironia como figura de linguagem é uma peça-
-chave da paródia. Subverter a ordem dada, fomentar no leitor
um pensamento crítico e, por vezes, inovador.
Uma passagem que demonstra essa inversão irônica na obra
de Luciano é quando os navegantes são engolidos por uma ba-
leia gigante e encontram uma escuridão (LUCIANO, 2009, p.
24). Ao encontrarem um velho e seu filho dentro do monstro,
Luciano narra sua vida lá dentro, o cultivo da terra e no bom
vinho encontrado lá, e quebra a expectativa do leitor ao dizer
que tudo poderia suportar lá, menos os vizinhos que são bri-
guentos. A inversão irônica funciona como um recurso de cri-
tica à desunião dos indivíduos, pois em vez de os personagens
se unirem para encontrar rota de fuga, começam a rivalizar por
espaço, e não por um espaço privilegiado, mas pelo interior de
uma baleia, Isso faz o leitor reavaliar o pensamento de que a
guerra é um instrumento para a paz e olhar as lendas que cul-
tuam as guerras com mais criticidade.
Ainda sobre os efeitos da paródia, para Hutcheon o texto
deve ser analisado teoricamente não apenas quanto à estrutu-
ra, mas quanto à intenção subjetiva e o contexto da obra, pois
esses elementos levarão o leitor a repensar a leitura original,
tendo a ironia como uma característica importante para o hu-
mor crítico da obra.
Podemos observar que a estrutura de Histórias Verdadeiras
pode ser comparada ao parodiado Homero, pois a partida do
protagonista para uma aventura no Livro Primeiro representaria
341
a Ilíada, e a volta para casa seria a Odisseia, sendo que ambas
as obras são parodiadas ironicamente na obra de Luciano. Mas,
nos apoiando nos dizeres de Hutcheon, podemos afirmar que
Luciano vai além da estrutura, pois questiona o próprio Homero
e a cultura clássica grega, como vimos ao longo deste artigo.

Diante de nossa pesquisa, compreendemos que a ironia


contida na obra Histórias Verdadeiras, de Luciano de Samósa-
ta, está relacionada ao estilo crítico do autor e também à ideia
persuasiva que ele quer passar aos leitores. Esta ideia vem a ser
uma crítica à falsa historicidade atribuída às lendas mitológicas
gregas clássicas, que inventaram histórias fictícias a fim de de-
fender o imperialismo vigente da época.
A análise da ironia como forma de persuasão na releitura das
paródias, além de nos proporcionar uma leitura prazerosa das
narrativas fantásticas de Luciano, nos leva a repensar os clássi-
cos gregos sobre uma nova ótica, e a estudar de forma crítica
a literatura como mera ficção que representa um pensamento
que é fruto da imaginação humana.
Consideramos de grande importância o estudo da obra His-
tórias Verdadeiras, de Luciano de Samósata, bem como de ou-
tras obras deste autor que é pouco conhecido e que tem muito
a nos dizer sobre a cultura clássica da Grécia e sobre as narrati-
vas humanas.

342
BOMPAIRE, JACQUES; LES BELLES LETTRES. Oeuvres. Paris: Belles
Lettres, 1993.
BRANDÃO, Jacyntho. A poética do Hipocentauro: Literatura, socie-
dade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2001.
FERNANDES, Pierre. Entre atenas e o Império Aquemênida: percep-
ções de receptividade e etnicidade em rhyta de cerâmica ática do
século v a.c. UFF, 2020. Disponível: Pierre_Romana_Fernandes.pdf
(uff.br). Acesso em: 25/11/2022.
HUTCHEON, Linda Uma teoria da paródia. Tradução de Teresa Louro
Perez. Edições 70, Lda., Lisboa – Portugal, 1985.
LUCIANO. Histórias Verdadeiras. Tradução de Théo de Borba Moons-
burger. Porto Alegre: Editora geral, 2009.
SANO, Lúcia. Das Narrativas Verdadeiras, de Luciano de Samósata:
Tradução, Notas e Estudo. Dissertação de Mestrado. USP. São Paulo,
2008.

343
Ilíada e A canção de Aquiles
de Aquiles e Pátroclo

Felipe Kalinoski Ribas


Larissa de Cássia Antunes Ribeiro

1 Introdução
Pensando no estudo das obras clássicas literárias na con-
temporaneidade e a relevância do olhar voltado para temáti-
cas LGBTQIA+ e sua representatividade no campo literário, o
presente trabalho busca fazer uma análise do relacionamento
dos personagens Pátroclo e Aquiles, que nos é apresentado no
romance A canção de Aquiles (2021), de Madeline Miller, releitu-
ra da obra homérica Ilíada (Séc. IX a.C.). Esta pesquisa pretende
explorar e apresentar um panorama sobre a historicidade das
relações ‘homo’ na Grécia clássica. Desse modo, selecionamos
para o estudo: a construção histórico-social, a pederastia e sua
prática na sociedade grega a fim de adentrarmos no relaciona-
mento das personagens das obras mencionadas. Em seguida,
analisar-se-á as duas obras e as distinções de escrita de ambas,
uma em verso e a outra em prosa.
Para dar início, levanta-se as seguintes questões: havia práti-
cas homossexuais ou bissexuais, homoafetivas ou homoeróti-
cas na Grécia Antiga? Quais as especificidades desses termos?
Até que ponto elas eram aceitas? Ou eram ridicularizadas? To-
dos esses apontamentos atrelados à análise e interpretação in-
terdisciplinar da obra clássica e de sua releitura contemporânea
serão o alicerce e guia deste trabalho.
Assim sendo, tem de se refletir acerca do embate que há
sobre sexualidade nas antigas sociedades, especificamente na
grega, pois há uma gama de palavras e termos para estudar e
344
entender o que se passava nesse período em que se originou
uma falsa verdade sobre a homossexualidade, a qual foi trazida
à atualidade, colocando a Grécia como um berço de aceitação,
acessível e tolerante quanto aos relacionamentos homoafeti-
vos e as práticas homoeróticas. Assim, apagando e/ou mudan-
do grande parte do preconceito, a satirização dos praticantes
dos atos homoeróticos que ocorriam no período.
Destarte, a pesquisa analisa, de forma comparativa interpre-
tativa, a relação que se constrói entre Aquiles e seu escudeiro,
Pátroclo, na Ilíada, que pode ser lida e interpretada em vários
momentos como sendo bastante íntima, algo além de frater-
no, deixando lacunasa serem preenchidas (ver pintura em vaso,
anexo IV); e a relação amorosa construída por Madeline Miller
em sua releitura contemporânea da obra homérica, A canção
de Aquiles, em que se tem ambos representados oficialmente
como amantes da narrativa.
Metodologicamente, o trabalho se desenvolverá com base
na análise e interpretação, tendo como guias principais as
obras de Madeline Miller e Homero. Além disso, visa-se tam-
bém o trabalho com o ramo da literatura comparada, posto que
se trata de uma pesquisa bibliográfica que possui como tema
principal a recepção de um clássico através de uma releitura,
não podendo distanciar-se da comparação e da interpretação.
Desse modo, para o corpus do estudo optou-se pela pesquisa
qualitativa, pensando que na nessa têm-se em mente uma cul-
tura a ser estudada, seu tempo e seu lugar. Assim, pretende-se
fazer uma investigação de forma interdisciplinar, isto é, com-
binando história com literatura (cf. DURÃO, 2020) utilizando
textos que trabalham com a questão da homoafetividade e do
homoerotismo na antiga sociedade grega, tais como Foucault
(2020),Corino (2006), Cardoso (2016), e da homossexualidade
na literatura, como Souza (2020), traçando assim um aporte
345
temporal da questão da sexualidade através dos séculos ena
era clássica.
Foucault (2020), no livro História da sexualidade: o uso dos
prazeres, escreve sobre a prática da pederastia, prática tida como
comum para a passagem de conhecimento entre os gregos, do
mais velho ao mais jovem, não caracterizando exatamente um
caso de homossexualidade, posto que é demasiado contempo-
râneo o termo, tampouco como um caso de homoafetividade,
já que não deveria existir sentimentos amorosos entre os pra-
ticantes (erastes e eromenos). Por isso, a pederastia encaixa-se
na categoria homoerotismo, mas chegando até a contempora-
neidade como uma prática homossexual aceita e admirada da
Grécia; gerando uma falsa verdade. Foucault (2020) explicita a
questão da relação desde o período clássico na Grécia, em que
mesmo estando casado com uma mulher, o homem não tem
de possuir, necessariamente, desejo sexual para com a esposa
(FOUCAULT, 2020, p. 180). Ele próprio sairá a procura de pra-
zer que muitas vezesserá encontrado em um rapaz. Entretanto
há de se estabelecer um relacionamento sexual para que assim
o homem possa possuir descendentes legítimos, papel que era
cobrado dele como cidadão.
Pensando na questão literária, Souza (2020) traz distinções
do que seria literatura gay e literatura homoerótica: na primei-
ra encontramos principalmente representatividade homosse-
xual; na segunda, desejo homoerótico, não necessariamente
ligado à representatividade. O autor escreve sobre a questão
da homotextualidade atrelada ou à identidade gay, a qual tra-
balharia por uma vereda representativa, política e cultural,
LGBTQIA+, sendo escrita e/ou protagonizada e lida apenas por
homossexuais (construindo assim a literatura gay); ou ao dese-
jo homoerótico, inclinando apenas para a questão do desejo e
atração, não precisando ser escrita por autores homossexuais,
346
nem sendo direcionada para apenas esse público (constituindo
a literatura homoerótica). Souza (2020) ressalta que “o espaço
de uma literatura gay deve existir, pois esse tipo de literatura
traz discussões associadas aos estudos culturais, que ainda são
de grande relevância em nossa sociedade, uma sociedade que
segue discriminando indivíduos que “ameaçam” o status quo.”
(SOUZA, 2020, p. 35). O que reforça o uso da literatura como
instrumento de luta e representatividade política de uma clas-
se. À vista disso, o trabalho também tem como objetivo trazer
esse debate sobre representatividade LGBTQIA+ na literatura.
Consequentemente, antes de entrar nas discussões teórico-
-filosóficas que norteiam o estudo, é importante trazer algu-
mas definições relevantes para o desenvolvimento do trabalho.
Dessa forma, o artigo de dividirá em cinco momentos, que são:
revisitar a literatura clássica e definir alguns conceitos que tra-
zem o prefixo ‘homo’; apresentar um panorama das relações
homoeróticas na Grécia antiga; explorar a relação de Pátroclo
e Aquiles na Ilíada; explorar a relação dos personagens na re-
leitura A Canção de Aquiles e compará-las; e debater sobre as
diferenças narrativas das obras e no que isso implica.

2 Revendo os clássicos
Desse modo, comecemos por tentar definir o que é um clás-
sico. Moisés (2013, p. 76), em seu Dicionário de termos literários,
postula quatro definições para a palavra clássico: “1) autor ou
obra de primeira classe, superior, 2) autor que se lê nas escolas
(nas classes), porque é considerado excelente, 3) autor grego
ou latino, da Antiguidade, vistoque se enquadra nos tipos an-
teriores, 4) autor que imita os clássicos greco-latinos”. Assim,a
definição de número três é a que mais se enquadra a Homero,
já que suas duas obras são consideradas clássicos da literatu-
ra: Ilíada e Odisseia. Todavia a definição de Moises está fixada,
347
principalmente, na autoria e não diretamente às obras, assim,
pode-se somar à nossadefinição de clássico, as palavras de Cal-
vino (2007, p. 11-12):
Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as
marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que
deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou maissimples-
mente na linguagem ou nos costumes). [...] Os clássicos são livros que,
quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de
fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos. (Grifo do autor).

Dessa forma, define-se um clássico como uma obra e/ou


autor, que transcende espaço e tempo, ou seja, perpassa cir-
cunstâncias diferentes e seguem sendo lidos e estudados,
apresentando, inclusive, discussões contemporâneas, e que
não precisam ser de origem greco-latina, como, por exemplo,
Johann W. von Goethe, Virginia Woolf, Oscar Wilde, Machado
de Assis, entre muitos outros, que são tidos e lidos como clás-
sicos nos dias de hoje.
Partindo, em seguida, para a questão central da discussão do
trabalho: a sexualidadena Grécia antiga, tem-se que percorrer
alguns séculos até chegar ao termo contemporâneo “homos-
sexualidade”. Destarte, é preciso primeiro entender e distinguir
a tríade homo: homossexualidade, homoafetividade e homo-
erotismo. Tem-se o elemento de composição homo comum a
todas: esse se origina do grego homós, e significa: “o mesmo,
o semelhante, igual”;1 por conseguinte, todos os termos dizem
respeito ao “igual” ao “semelhante”, entretanto, como o prefixo
é aplicado a vocábulos diferentes, têm-se diferentes significa-
dos.A homossexualidade, como é entendida hoje, diz respeito
à atração que se sente pelo semelhante, sendo construídos e
desconstruídos vários pareceres sobre o homossexual através
dos tempos: ora tratado como transtorno mental, ora como
doença, ora como uma espécie à parte (cf. FOUCAULT, 2020),
1 Disponível em: <https://dicionario.priberam.org/homo>. Acesso em: 19 Jun 2022.
348
se pensamos na construção da sexualidade, “o casal, legítimo e
procriador, dita a lei.” (FOUCAULT, 2020, p. 7). Assim, encon-
tramos a cisheteronormatividade controlando tudo o que diz
respeito à sexualidade, além de três estruturas que vigoraram
do século XVI até o XVIII e que regiam as práticas sexuais: o
direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil. A forma de
regirem as práticas sexuais era como o método da confissão,
a princípio, posto em prática apenas pela religião, que consistia
na revelação, para um sacerdote dos atos sexuais praticados e/
ou dos pensamentos pecaminosos e perversos sobre a sexuali-
dade tidos como transgressão da moral cristã. Em seguida, esse
método foi utilizado pela medicina, pelo jurídico, pelos pais
e educadores a fim de controlar a sexualidade da população.
Tudo isso sugere que a utilização do termo homossexualidade
para discutir as relações sexuais entre iguais gregos é errônea, já
que não cobre todas as relações. De acordo com Foucault: “(...)
a noção de homossexualidade é bem pouco adequada para re-
cobrir uma experiência, formas de valoração e um sistema de
recortes tão diferentes do nosso.” (FOUCAULT, 2020, p. 231).
Portanto, torna-se um erro fazer uso desse termo para se referir às re-
lações que ocorriam na Grécia antiga, pois ele só virá a ser utilizado no
século XVII, em 1869 (CORINO, 2006).

Pensemos na homossexualidade como orientação sexual,


cuja prática se desenvolveatravés da homoafetividade e do ho-
moerotismo. A primeira, como o próprio nome sugere, significa
ter afeição e carinho, é ligada principalmente à parte emocional
de uma relação com pessoas do mesmo sexo sem, necessa-
riamente, conotação sexual. O termo é bastante utilizado na
área política e judiciária, sobretudo no que confere a questão de
direitos de união ou ainda para fins de adoção, etc:
[...] uma vez que está previsto na Constituição Federal de 1988 a forma-
ção de famílias com laços afetivos. O ordenamento jurídico busca efeti-
349
var esse direito de constituição de famílias de pessoas do mesmo sexo,
bem como dos direitos de união de casais de pessoas do mesmo sexo.
O avanço jurídico possibilitou uma maior discussão na sociedade acerca
da união estável, direitos de adoção e novas concepções de relações de
pessoas do mesmo sexo. (MENEGHINI, 2017, p. 17).

O termo “homoafetividade” no contexto grego clássico, tam-


bém, assim como a “homossexualidade”, acaba não se ade-
quando, visto que não eram bem-vistos casais do mesmo sexo,
unidos amorosa e romanticamente; sobretudo homens, pois
indicaria que um acabaria fazendo o “papel inferior” na relação,
ou seja, aquele que era destinado ao sexo feminino, comparan-
do assim o homem com a mulher da sociedade grega, dimi-
nuindo-o, ridicularizando-o (cf. FOUCAULT, 2020). Assim, há o
questionamento quanto à relação apresentada entre Pátroclo
e Aquiles no romance escrito por Miller: ela é homoafetiva ou
homoerótica?
Ao contrário da homoafetividade, o homoerotismo está
voltando para a questão sexual, e esse termo sim, se adéqua
à Grécia, pois aqui se encaixa a prática da pederastia, que será
detalhada mais a frente, pois além de atividade sexual, era tam-
bém uma pedagogiaadotada pelos gregos para a passagem do
conhecimento dos homens mais velhos e sábios para os mais
jovens e inexperientes. Há todo um ritual entre o que cerca o
erastes (no grego ) e o eromenos (no grego ,
nomeações aos que desenvolvem a relação de pederastia, sen-
do ela mesma uma ação homoerótica. Contudo não é possível
afirmar que, necessariamente, não havia paixão ou amor entre
os praticantes.
A ideia da união heterossexual na Grécia clássica, tem como
uma das suas principais finalidade, mas não só, a reprodução,
melhor dito, a descendência. Um homem tem de possuir des-
cendentes fortes e viris, cabendo a figura feminina o papel de
prover ao homem esses descendentes legítimos; assim como
350
há registros em que é possível verificara busca pelo sexo he-
terossexual por prazer, como exemplo, pode-se citar Lisístra-
ta, de Aristófanes, em que mulheres, buscando o fim da guer-
ra, resolvem fazer uma greve de sexo, mas algumas delas não
aguentando a privação, tentam fugir e ir ao encontro dos mari-
dos, em busca do sexo. Foucault (2020, p. 165), ao trazer à tona
os escritos de Platão, cita uma “legislação persuasiva” proposta
para o casamento, afirmando que essa é apioneira em todas as
cidades, pois diz respeito ao “princípio dos nascimentos”:
Casar-se-á entre trinta e 35 anos, dentro do pensamento de que o gê-
nero humano retira de um dom natural uma certa parte de imortalidade
cujo desejo também é inato em todos os homens e de todos os pon-
tos de vista. Pois é ambição de se afamar e de não permanecer sem
nome após a morte provém desse desejo. Ora, a raça humana possui
uma afinidade natural com o conjunto do tempo que ela acompanha
e acompanhará através da duração; é por meio disso que ela é imortal,
deixando os filhos de seus filhos e assim, graças à permanência de sua
unidade sempre idêntica, participando, pela geração, da imortalidade.
(PLATÃO apud FOUCAULT, 2020, p 165).

Na tragédia grega de Eurípides, Medeia (Cf. EURÍPIDES), no-


tamos exatamente essa noção da mulher com o papel de dar
herdeiros ao marido, entretanto, após ser traída e trocada, para
vingar-se de Jasão, ela assassina os filhos que possuíam, ferin-
do diretamente o ex-companheiro e seu ego, pois ficara sem
herdeiro, sem descentes com seu sobrenome.
Entretanto, o encontro prazeroso no mesmo sexo era justi-
ficado e bem-visto em certas regiões até certo limite. Segun-
do Corino (2006), a relação sexual entre homens era vista de
formas distintas, por exemplo, nas duas principais cidades-
-estados gregas, Atenas e Esparta. Em Esparta, conhecida por
possuir exércitos fortes e invencíveis, orelacionamento homo-
afetivo era aceito e reverenciado:

351
[...] os casais de amantes homens eram incentivados como parte do
treinamento e da disciplina militar. Essas práticas dariam coesão às tro-
pas. Em Tebas, colônia espartana, existia o Pelotão Sagrado de Tebas,
tropa de elite composta unicamente de casais homossexuais. Eram ex-
tremamente ferozes, pois lutavam com muita bravura para que nada
acontecesse a seus parceiros. Em campo de batalha eram quase imba-
tíveis. (CORINO, 2006, p. 20).

Já em Atenas, a única forma de relação permitida e respeitada


era a da pederastia, pois as relações homoafetivas com homens
da mesma faixa etária eram mal-vistas edesrespeitadas, pois ali
significava que um dos homens adotaria a posição de passivo
“[...] traindo assim a masculinidade que dele requeria o papel
de cidadão ativo.” (CORINO, 2006, p. 22). Todavia a prática da
prostituição, tanto feminina quanto a masculina, era permitida,
porém a lei ateniense proibia que o homem que se prostituísse
ocupasse cargo político, ademais de ser passível de ridiculariza-
ções públicas, como o caso de Timarco, de Cerâmico (cf. CORI-
NO, 2006). Mais adiante, falar-se-á da busca por prazeres fora
de casae mais detalhadamente sobre a questão da pederastia.

3
2

Toma-se a antiga sociedade grega como sendo o berço da


homossexualidade, tendo como base muitos registros des-
sa época em vasos e demais cerâmicas que trazem pinturas
e representações de casais tendo relações homoafetivas e/ou
homoeróticas, essas “[...] representações iconográficas gregas
de tema homoerótico, arcaicas e clássicas, presentes, majo-

2 Os autores aqui utilizados para trabalhar a história da (homo)sexualidade na Grécia


antiga, como Foucault, Platão e Plutarco, não levam em consideração as abordagens
feministas, assim que, traçam comentários machistas sobre a mulher em certo mo-
mento de seus escritos. Ao utilizá-los aqui, reconheço o bom apanhadado da história
grega que fazem, mas não concordo integralmente com seus posicionamentos so-
bre a insubordinação da mulher, visto que há obras literárias e autoras que demons-
tram sua luta feminista à época, como Safo e a comédia Lisístrata, de Aristófanes.
352
ritariamente, em vasos pintados têm a ver, sem dúvida, com
coisas que eram feitas, praticadas por certas pessoas. Elas são
suficientemente numerosas e variadas [...]” (CARDOSO, 2016,
p. 22), alguns exemplos dessas iconografias podem ser visua-
lizadas nos anexos I, II e III; além de representarem cuidados,
como no anexo IV, exatamente as figuras de Aquiles e Pátro-
clo. Remetendo a ideia de que era uma sociedade além de seu
tempo e que se permitia e se praticava de tudo, sexual e afe-
tivamente falando. Entretanto, se averiguarmos o que de fato
ocorria na sociedade nota-se que a história que nos chega é, de
certa forma, distorcida.
As relações que se estabeleciam entre homens na antiga
Grécia tinham certas finalidades ou eram práticadas devidos
fatores externos à essas finalidade, todavia eram julgadas de
diferentes maneiras, dependendo de qual região grega era pra-
ticada.
Os laços do casamento entre um homem e uma mulher não
assegurava a fidelidade, sobretudo a sexual, nem mesmo hoje
em dia.Corino (2006), discorre exatamente sobre esse ponto,
chamando a atenção para o fato de que as relações heterosse-
xuais não preenchiam todas as necessidades carnais e inter-
pessoais dos homens gregos, resultando assim na busca por
jovens para suprir essa necessidade que não era concedida no
lar. O sexofeminino era considerado inferior ao masculino na
política e muitas vezes na educação, sendo assim um dos
principais papeis da mulher na sociedade era proporcionar a
descendência para o homem. Além disso, Corino (2006) traz
um trecho de uma obra de Plutarco, em que ele escreve que o
que havia entre um homem e uma mulher na sociedade grega,
não era exatamente amor, pois esse só se podia sentir por al-
mas mais jovens e “amigáveis”:

353
O verdadeiro amor não tem lugar no Gineceu; e eu afirmo que não é
amoro que vocês sentem pelas mulheres ou pelas moças. Seria tão ab-
surdo como chamar de amor o que as moscas sentem pelo leite, as abe-
lhas pelo mel e os cozinheiros pelas carnes e iguarias que preparam [...]
com efeito,o Amor é o que vos liga a almas jovens e bem-nascidas que
através da amizade vos conduz a virtude... (PLUTARCO, 750 a.C. apud
CORINO, 2006, p. 20).

Dessa relação com os “as almas jovens e bem-nascidas” que


virá a se consolidar umdos métodos da paideia: a prática da pe-
derastia.
A paideia (em grego ), que pode ser traduzida como
“a educação das crianças”, era o modelo de educação que os
3

gregos aplicavam aos seus jovens. Nas cidades-estados gregas


do século IV a. C. essa forma de educar “supera a vinculação
limitada à instrução da criança. Trata-se de uma reflexão sobre
a formação do homem para a vida racional na “pólis”. Aplica-se
à vida adulta, à formação e a cultura, à sociedade e ao universo
espiritual da condição humana.” (JAEGER, 1986 apud PAIDEIA,
2012, s.p.) Portanto, seu modelo era direcionado à sociedade
e à formação de bons cidadãos, homens acima de vinte e um
anos. Homero era um dos autores lido na paideia, suas obras,
Ilíada e Odisseia foram interpretadas e usadas como exemplo
de educação. Porém, esse modelo educacional não alcançava
uma educação integral, ou seja, sua extensão cobria apenas en-
sinos fundamentais, tais como “a leitura, ginástica, música e a
aritmética” (SOUSA, 2008, apud VALOURA, 2017, s.p.), as de-
mais áreas do conhecimento eram aprofundadas com o passar
dos anos de outros modos.
Chega-se então ao conceito de pederastia, que vem de pai-
derastia, expressão composta por paid- (radical de , criança)
e por eráo (em grego , ‘amar’). A prática da pederastia, se-
gundo estudos, era popular principalmente em Atenas, e cons-

3 Disponível em: <https://dicionario.priberam.org/paideia>. Acesso em 23 JUL 2022.


354
tituía uma continuação da educação básica (cf. SOUSA, 2008).
Mas quem era o educador e quem erao educando?
Havia uma hierarquização quanto a prática da pederastia, e
seus praticantes nesse período não eram estigmatizados ou
proscritos, pelo contrário, quem praticava era a elite helenística,
ou seja, só aqueles que viriam a exercer papel de destaque na
polis.
Nessa prática havia dois papeis: o erastes (em grego ,
amante), que era um homem mais velho, possuidor de grande
sabedoria e que, segundo alguns estudos (cf. SOUSA, 2008;
FOUCAULT, 2020), precisaria conquistar seu eromenos (em
grego , amado), um adolescente aristocrata que de-
veria possuir entre 12 e 18 anos, entretanto há discussões sobre
a idade limite para o rompimento da relação entre osamantes.
Foucault, no segundo volume da História da sexualidade, ques-
tiona-se sobre até que idade era aceita essa relação amorosa.
O autor nos mostra esse limite, mas também explicita que não
era um limiar obedecido por todos:
Conhecida casuística dos sinais de virilidade que devem marcar um li-
miar, que é tanto mais declarado intangível quanto frequentemente
devia ser transposto e porquanto se reivindica a possibilidade de repro-
var aqueles que transgrediam; a primeira barba, como se sabe, passava
por essa marca fatídica, e a navalha que a cortava devia romper, como se
dizia, o fio dos amores. (FOUCAULT, 2020, p. 245-246).

Nesse caso, se as relações continuassem aflorando, mesmo


com os sinais da virilidade vindo à tona, não só os rapazes que
supostamente já haviam adquirido conhecimento, eram censu-
rados, mas também os homens que buscavam rapazes velhos
demais para educar. Os estoicos, seguidores do estoicismo, es-
cola de filosofia fundada em Atenas, mas com participantes
estrangeiros, que tem sua criação atribuída a Zenão de Cítio.
Este costumava dar suas aulas em um local público, conhecido
como PórticoPintado, para alcançar o maior número de ouvin-
355
tes possível, seus objetivos e de quem o seguia, era serem “[...]
seres insensíveis aos males, absolutamente impassíveis, aque-
les que possuem austeridade de caráter em face de qualquer
perigo, rigidez de princípios, resignação contra a dor, firmeza
frente aos acontecimentos, capacidade de extirpar as paixões
e aceitar o que destino lhe reserva”,4 daí que surge a máxima
estoica de “viver conforme a natureza”.
Os estoicos, com seus pressupostos e ensinamentos pas-
saram a ser rivais das outras correntes filosóficas do período,
como os platônicos, os aristotélicos e os epicuristas. Essa des-
conformidade se estendia à prática da pederastia, pois os
estoicos não estavam de acordo com esse limite imposto, as-
sim são “[...] criticados por guardarem por muito tempo os seus
amados – até os 28 anos –, mas o argumento que eles darão
[...] mostra que esse limite era menos uma regra universal do
que um tema de debate, o que permite soluções bem diversas.”
(FOUCAULT, 2020, p. 246).
Para que a prática da pederastia tivesse início, o eromenos de-
veria ser cortejado pelo erastes e teria a escolha de aceitar ou
negar seus cortejos, além de não poder aceitar sem critérios,
ou o primeiro que aparecesse. Deveria manter-se coerente na
sua escolha e ao final, ser o amado daquele que mais poderia
lhe ensinar:
[...] não convinha que o rapaz se conduzisse ‘passivamente’, que ele se
deixasse levar e dominar, que cedesse sem combate, que se tornasse
o parceiro completamente das volúpias do outro, que ele satisfizesse
a seus caprichos, e que oferecesse seu corpo a quem quisesse, e da
maneira pela qual o quisesse por lassidão, por gosto pela volúpia ou
por interesse. É nisso que consiste a desonra dos rapazes que aceitam
o primeiro que chega, que se exibem sem escrúpulos, que passam de
mão em mão, e que concedem tudo ao que mais oferece. (FOUCAULT,
2020, p. 259).

4 Disponível em: <https://razaoinadequada.com/filosofos/estoicos/>. Acesso em:


14 AGO 2022.
356
Logo, não se podia pensar na pederastia, como busca de pra-
zer; mas sim pela forma de passar a educação do mais velho
para o mais jovem, ainda que ela ocorresse junto à relação se-
xual.
O cortejo que o erastes propunha-se a fazer para conquistar
o rapaz tinha um cunho completo e integralmente pedagógico,
o que implicava a evolução pessoal masculina.Presentes como
o galo e a lebre eram comuns, pois: “O galo era símbolo de for-
ça e virilidade, ensinando aos jovens o espírito de combate e
agressividade. A lebre era entregue ao jovem para que ele a
soltasse e saísse em sua perseguição descobrindo o prazer na
caçada.” (CORINO, 2006, p. 23). Dentre os presentes pedagó-
gicos, também se destacavam: “(...) as tabuletas para escrever,
os instrumentos musicais, discos de arremesso, os stlengídeos
(espécie de raspadores utilizados nos banhos) e os frascos de
óleo para ungir o corpo.” (CORINO, 2006, p. 23, grifo do autor).
Também era comum um vaso com o nome do eromenos, junto
da palavra kalós (em grego , belo”), esse era feito sobre
encomenda do erastes, ou ainda era produzido, em grande es-
cala, com nomes dos jovens mais belos de Atenas, pois eram
disputados por vários erastes (CORINO, 2006).
Resumindo a prática da pederastia, Foucault (2020, p. 263),
escreve:
(...) a singularidade histórica não consiste em que os gregos tinham pra-
zeres com os rapazes, nem mesmo em que eles tinham aceitado esse
prazer como legítimo. Ela consiste em que essa aceitação do prazer não
era simples, e que ela deu lugar a toda uma elaboração cultural. Falando
esquematicamente, o que é preciso apreender aqui não é por que os
gregos tinham um gosto pelos rapazes, mas sim por que eles tinham
uma pederastia: isso é, por que, em torno desse gosto, eles elaboraram
uma prática de corte, uma reflexão moral e (...) um ascetismo filosófico.

O ato da pederastia ia muito além da homoafetividade e do


homoerotismo, tinha, acima de tudo, um valor moral de cons-
357
trução e de imersão do jovem cidadão na sociedade helenística.
Entretanto não se pode negar que o homoerotismo e a homo-
afetividade estavam ligadas à essa prática.

4 (Re)visitando Ilíada A
canção de Aquiles
Pensando em todos os estudos que rodeiam a obra homé-
rica, o propósito desse subtítulo é revisitá-la, expor e estudar
alguns aspectos da obra, principalmente a relação que se es-
tabelece entre Aquiles e Pátroclo, personagens centrais da
discussão desse trabalho. Além disso, constrói-se uma ligação
com a releitura contemporânea, o romance de Madeline Miller,
A canção de Aquiles, contextualizando e analisando sua elabo-
ração narrativa e a dos personagens.
4.1 Homero e a Ilíada
Quando se comenta algo sobre literatura clássica, certamen-
te o que virá à mente serão as obras homéricas, Ilíada e Odis-
seia, posto que esse trabalho de Homero perpassa vários perío-
dos e ainda segue sendo revisitado e estudado até o século XXI.
Mas quem foi de fato Homero? Foi um poeta épico da antiga
Grécia, “(...) viveu na Jônia, na segunda metade do século VIII a.
C.” (NUNES, 2015, p. 31). Ele é considerado um dos principais
agentes de transmissão da história, cultura e mitologia grega,
mesmo com toda essa fama que o cerca, existem poucos da-
dos sobre sua vida.
Outro ponto bastante relevante são as diversas autorias que
lhe foram atribuídas, mas que, com o passar dos anos e com
os estudos, foram considerados textos apócrifos, ou seja, de
autoria anônima, desconhecida.5 Ilíada e Odisseia são um caso

5 Disponível em: <https://www.historiadomundo.com.br/grega/homero.htm>.


Acesso em: 24 JUN 2022.
358
à parte. Apesar de lhe ser atribuída a composição dessas duas
obras célebres e atemporais, há muita discussão sobre o fato
de haver sido realmente Homero o autor de ambas (cf.
NUNES, 2015):a chamada ‘A Questão Homérica’.
Pesquisadores alemães – Wilamowitz Moellendorf, Erich Be-
the e Eduard Schwartz –desenvolveram estudos sobre a temá-
tica homérica e perceberam que dois fatores se contrapõem
quando se trata da escrita de Ilíada e Odisseia: a era em que
Homero viveu eos acontecimentos descritos na obra, a Guerra
de Tróia, que totaliza quatro séculos de diferença(VIII a. C e XII a.
C., respectivamente); e a reunião de escritos. Nessa visão, Ho-
mero seria um compilador, ou seja, alguém que reuniria vários
fragmentos de narrativas para originar apenas em um. Textos
esses que seriam transmissões orais, sendo que o autor teve a
artimanha de transcrevê-los (NUNES, 2020).
Ilíada é uma epopeia ou como também pode ser chamada,
poema épico. Nesse poema, extremamente longo, encontra-
-se a narrativa da vida de um herói e seus feitos, além de tra-
zer como plano de fundo temáticas históricas misturadas com
um mundomitológico. O poema homérico estrutura-se da se-
guinte maneira: 15.693 versos, todoescrito na métrica poética
de hexâmetro dactílico ou heroico, possui esse nome do grego
dactilus, pois traz a estrutura de um dedo, apresentando uma
sílaba longa, seguida de duas breves; esses versos estão dividi-
dos de forma dissemelhante em 24 cantos, dos quais contam
a história de, aproximadamente, cinquenta dias do último ano
da Guerra de Tróia, ou seja, narra acontecimentos do décimo
ano da guerra. Possui esse nome por fazer menção à cidade
de Tróia, ‘Ílion’, todavia, a sua narrativa decai sobre a desarmo-
nia entre Aquiles Pelida e Agamêmnon, sendo assim “alguns
comentadores antigos, por causa disso, diziam que o poema
era mais uma Cólera de Aquiles do que uma Ilíada, uma histó-
359
ria de Ílion.” (RIBEIRO JR, 2001, s.p.). Tendo como protagonista
o jovem guerreiro Aquiles e sua ira, sua cólera, como pode ser
verificado nos primeiros versos do poema épico:
Canta-me a Cólera – ó deusa! – funesta de Aquiles Pelida,causa que foi
de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta e de baixarem para o Ha-
des as almas de heróis numerosos e esclarecidos, ficando eles próprios
aos cães atirados
e como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio
desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos, o de
Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino. (HOMERO, 2015, p.
55).

No excerto acima, lemos os primeiros sete versos do poema


épico, em que notamos a ‘discórdia’, a tensão que está se ins-
taurando entre o herói Aquiles e o guerreiro Agamêmnon. Ou-
tra característica do poema, também presente nesse trecho
é seu início, que recebe o nome de in medias res, termo latino
que quer dizer “no meio das coisas” (MOISÉS, 2013, p. 248),
isso significa que o poema já inicia com acontecimentos me-
dianos, ou seja, no meio da história, e não propriamente de um
começo. Moisés (2013) escreve que o começo in medias res era
comum às epopeias, que deveriam expressar-se já no meio dos
acontecimentos, pois “o trecho inicial não só carecia de interes-
se para o leitor como poderia perfeitamente ser narrado mais
tarde.” (MOISÉS, 2013, p. 248), assim, no desenvolvimento no
poema fazia-se uso de analepse, para retomar acontecimentos
iniciais.
Como mencionado anteriormente, uma característica notá-
vel nos poemas épicos é a presença de divindades, criaturas
mitológicas, etc. Na Ilíada podemos notar e dividir dois níveis:
o físico, que seria a conjuntura da guerra, o mundo humano
propriamente dito, e o nível metafisico, que vem a ser o pla-
no habitado pelos deuses bastante presentes na obra, inclusive
intervindo de forma direta ou indireta na batalha. Como, por
360
exemplo: Apolo no primeiro canto e o pedido de Tétis, mãe de
Aquiles, a Zeus. Inclusive divindades intervindo na guerra, pois
têm-se, do lado dos gregos: Hera, Atena, Poseidon, Hefesto e
Tétis; e do lado dos troianos: Apolo, Afrodite, Ares, Ártemis e
Leto.
Refletindo, sobre a relação que rodeia os personagens, Aqui-
les e Pátroclo. O último, personagem secundário da obra
homérica, era filho do Rei Menécio e, após o assassinato de
Clisônimo, resultado de um descontentamento por conta de
um jogo, é mandado ao exílio, sendo o reino que o recebe per-
tencente a Peleu, pai de Aquiles. Este, filho de Peleu e da ninfa
Tétis, uma das cinquenta nereidas do antigo deus do mar, é o
herói grego que possui seu destino traçado por uma profecia,
da qual sua mãe faz de tudo para protegê-lo e privá-lo, pois sua
morte é certa segundo a previsão.
No reino de Peleu, ambos passam por vários treinamentos
de guerra, estudos medicinais, de música e conhecimentos em
geral. Os dois, inclusive são mandados para a caverna de Quí-
ron, o centauro superior, possuidor de grande sabedoria para
aprimoramentos de seus saberes.
É a partir da chegada de Pátroclo ao reino de Peleu, que se
começa a formar a amizade com Aquiles. Daí a especulação de
uma possível relação homoafetiva entre os personagens, já que
o relacionamento de ambos se estreita a partir desse momento
de aproximação, inclusive dormem juntos na mesma tenda no
acampamento da guerra. Outro ponto relevante é o momento
da morte de Pátroclo durante a batalha de Tróia que é bastan-
te sentida por Aquiles, além de servir como estímulo para que
esse avance contra Heitor, a fim de vingar o assassinato de seu
fiel escudeiro.
A morte de Pátroclo ocorre quando ele, após dias no acam-
pamento, vai até Aquilese lhe pede para usar sua armadura no
361
ataque aos troianos. Aquiles cede; Pátroclo mata alguns troia-
nos, entretanto, encontra-se com Heitor, e travam dura peleja:
Nesse entrementes, Heitor, do seu carro, também, já saltara.Ambos em
torno do morto iniciaram terrível peleja,
como dois leões esfaimados e cheios de ardor que no cimo de um alto
monte disputam o corpo da corça abatida: sobre Cebríones lutam, desta
arte, dois fortes guerreiros, Pátroclo, o filho do claro Menécio, e o impe-
cável Heitor, ambos querendo ferir o adversário com o bronze funesto.
(HOMERO, 2015, p 359-360).

Durante a batalha, Heitor fere gravemente e, mata Pátroclo,


mas antes de descer ao Hades, fala:
Ora outra coisa te quero dizer, guarda-a bem no imo peito: não tens,
também, muito tempo de vida, que já se aproximade ti o Fado implacá-
vel e a sombra da lívida Morte.
Às mãos de Aquiles terás de morrer, o implacável Eácida. (HOMERO,
2015, p. 362).

Sendo tradição e uma questão de honra, religiosa muito im-


portante o enterro dos corpos para os antigos gregos, e Pátro-
clo não havendo tido essa celebração, sua imagem aparece a
Aquiles, o início do canto XXIII, intitulado Prêmios em honra de
Pátroclo:
Aquiles e os guerreiros fazem honras ao corpo de Pátroclo e há um
banquete em sua homenagem. À noite a sombra de Pátroclo aparece
a Aquiles. Pela manhã uma grande pira é preparada para o corpo do
amigo e várias vítimas são sacrificadas junto. Doze jovens Troianos são
imolados. Aquiles conclama aos Ventos para ajudar e o fogo queima du-
rante a noite toda. No dia seguinte, as cinzas são colocadas numa urna
de ouro e um túmulo é construído para Pátroclo. Iniciam-se os jogos
em homenagem a Pátroclo. São feitas grandes disputas entre os Gregos
em diversas modalidades pelos prêmios valiosos que Aquiles oferece.
(HOMERO, 2015, p. 465).

E a partir do verso 69, quando aparece a imagem de Pátroclo


a Aquiles, na qual vê- se o companheirismo estreito que existia
entre os personagens, como pode ser lido no trecho abaixo:
362
Dormes, Aquiles, o amigo esquecendo? Zeloso eras antes, quando me
achava com vida; ora, morto, de mim te descuidas. Com toda a pressa
sepulta-me, para que no Hades ingresse, pois as imagens cansadas dos
vivos, as almas, me enxotam, não permitindo que o rio atravesse para a
elas ajuntar-me.
Por isso, vago defronte das portas amplíssimas do Hades.
Dá-me tua mão; é chorando que o peço; não mais à tua frente con-
seguirei retornar, quando o fogo me houver consumido, [...](HOMERO,
2015, p. 467).

Mais adiante, no verso 82 é que nos deparamos com um pe-


dido de Pátroclo a Aquiles, o qual envereda todo esse trabalho:
a relação homoafetiva que existe entre ambos:
Ora desejo fazer-te um pedido, e bem sei que me atendes. Não deixes
serem mui longe dos meus os seus ossos depostos,
mas junto deles, que juntos crescemos em vosso palácio, desde bem
moço, (...).
Que nossas cinzas, por isso, numa urna somente se guardem, a ânfora de
ouro que Tétis te deu, tua mãe veneranda. (HOMERO, 2015, p. 467 -
grifo meu).

Como podemos ver nas partes grifadas, Pátroclo profere pa-


lavras bastante intimas, muito mais que um simples escudeiro,
há um carinho em sua fala, uma afeição muito grande pelo herói
Aquiles, que nos versos seguintes concorda em fazer tudo o que
foi dito por Pátroclo e pede um último abraço do companhei-
ro: “Mas aproxima-te; embora por breves instantes, concede /
ainda uma vez abraçar-te e de tristes lamentos saciarmo-nos.”
(HOMERO, 2015, p. 468), e após proferir tais palavras investe
na imagem de Pátroclo para abraçá-lo. Não obtendo sucesso,
pois não consegue tocá-lo, ficando melancólico e lamurioso.
Pode-se assim, depois dos excertos lidos e analisados, con-
cluir que sim, houve uma relação homoafetiva entre Aquiles
e Pátroclo, pois durante vários momentos da épica vê-se um
comportamento amoroso e demosntração de carinho e afeto
entre os dois personagens homéricos, sugerindo ao leitor tal in-
363
terpretação, que virá a ser consolidada na releitura feitapor Ma-
deline Miller, A canção de Aquiles, sob a narrativa de Pátroclo.
4.2 A canção de Aquiles, a Ilíada contemporânea
Nessa obra contemporânea, escrita pela professora de li-
teratura clássica e escritora norte-americana Madeline Miller,
temos os fatos narrados pelo personagem quase apagado da
Ilíada. Miller dá voz a Pátroclo e traz uma escrita em prosa, ou
seja, seu texto é estruturado em parágrafos e de forma corri-
da, enquanto Homero escreveu sua obra em versos, com uma
métrica e um ritmo. O que antes era um texto mais cantado,
ritmado,agora desdobra-se de forma mais narrativa. Poder-se-
-ia pensar que pela mudança na forma de escrita o texto per-
desse a essência poética encontrada em Homero, entretanto
isso não acontece. Isto é, mesmo em prosa, a obra de Miller
ainda reproduz marcas tidas como poéticas.
Diferentemente do começo homérico in media res, aqui via-
jamos com Pátroclo até o reino de Menécio, seu pai, e partici-
pamos da sua infância e de seu crescimento. A história se inicia
com Pátroclo narrando o casamento arranjado e malsucedido
dos pais e como isso o afeta pessoalmente. No primeiro capí-
tulo, temos o primeiro contato visual de Pátroclo com Aquiles,
em jogos patrocinados pelo reino de seu pai no qual Aquiles
compete. A descrição que aquele faz deste, já nos mostra um
certo interesse: “meus olhos surpreendem uma cabeça loura
em meio a dezenas de cabeleiras negras, desgrenhadas. Incli-
no-me para ver melhor. Os cabelos reluzem como mel ao sol
e, por entre as mechas, um brilho de ouro - o diadema de um
príncipe.” (MILLER, 2021, p. 8). Entretanto, o contato entre am-
bos só vai ocorrer oficialmente após Pátroclo ser exilado para
Fítia, pelo assassinato de Clisônimo.

364
Chegando no reino de Peleu, ele começa a participar dos
treinamentos propostos aos jovens que são adotados pelo rei.
E lá terá contato direto com Aquiles, filho de Peleu. Assumindo
então o posto de companheiro, cargo tão estimado pelos ou-
tros garotos, a pedido do próprio Pelida:
Esqueci-me de dizer que o queria para meu companheiro – Therapon
(grifo do autor) foi o termo que empregou. Um camarada de armas liga-
do a um príncipe por juramentos de sangue e por afeto (grifo meu). Na
guerra, esses homens formavam sua guarda de honra; na paz, eram seus
conselheiros mais íntimos. Tratava-se de um posto de grande prestígio
[...]. (MILLER, 2021, p. 38-39).

Nota-se que o termo usado (Therapon), já apresenta ligação


com “afeto”, o que explicita a relação afetiva recíproca desde
o começo entre os dois personagens. Aquiles estava tentan-
do ajudar Pátroclo a esconder sua ausência do treino matutino
e que resultaria em castigos severos. A partir daí a relação e o
contato entre os dois só aumenta. Os pertences de Pátroclo são
levados ao dormitório de Aquiles e ambos passam a habitar o
mesmo espaço e aí a tensão sexual entre eles começa a se eri-
çar, pois aos treze anos, as especulações sobre a iniciação da
vida sexual aparecem. Peleu incentiva o seu filho a relacionar-
-se com as servas que o dispõe no palácio, entretanto Aquiles
sempre arruma de subterfúgios para não as ter, pelo menos
não no sentido sexual. Durante um anoitecer ocorre uma cena
que dará início ao romance entre os dois: “Aquiles correu em
minha direção e jogou-me sobre a cama, debruçando-se so-
bre mim. [...] Seus cabelos se esparramaram em volta de mi-
nha cabeça e eu só conseguia sentir o cheiro daquela pele.Seus
lábios estavam quase encostados aos meus.” (MILLER, 2021,
p. 61). O ato descrito por Pátroclo torna-se tão marcante que
ele mesmo delira e sonha com o acontecido, como descreve o
trecho abaixo:
365
Durante a noite, na cama, as imagens vêm. Começam como sonhos,
comocarícias que deslizam sobre o meu corpo durante o sono do qual
desperta o trêmulo. Fico estendido, acordado, mas ainda assim elas se
acercam, uma nesga de pescoço entrevista à luz da chama, a curva de
um quadril que se inclina. Mãos macias e fortes se estendem, procu-
rando me tocar. Conheço essas mãos. Porém mesmo agora, por trás da
escuridão de minhas pálpebras cerradas, não consigo dar nome àquilo
que quero. De dia, sinto-me inquieto, nervoso. Nem andando, cantan-
do ou correndoconsigo mantê-las a distância. Elas se aproximam e não
podem ser detidas. (MILLER, 2021, p. 61).

Pode-se sentir a tensão de Pátroclo por conta do sentimento


que desenvolve por Aquiles, aquele que ele deveria ser apenas
um companheiro de guerra. E é na cena narrada em seguida
que ambos os personagens finalmente cedem e se beijam na
praia, a cena descrita por Pátroclo é poética:
Inclino-me para ele e, desajeitadamente, nossos lábios se tocam. São
como os corpos arredondados das abelhas, macios e semeados de pó-
len. Sinto o gosto de sua boca – quente e doce como mel da sobremesa.
Meu estômago se agita e uma gota tépida de prazer se espalha sobre
minha pele. Mais. (MILLER, 2021, p. 62, grifo da autora; grifos meus).

O pequeno trecho traz em sua composição elementos essen-


ciais da poesia, como por exemplo, a metáfora, recurso poético
fundamental, que “por ser polivalente, fala ao mesmo tempo
à inteligência e à sensibilidade.” (MOISÉS, 2012, p. 72-73), e o
excerto acima é composto de uma intensa sensibilidade que
vai muito além do físico, mas sentimental também, assim che-
gando a outro recurso poético: a subjetividade. No trecho “são
como os corpos arredondados das abelhas, macios e semeados
de pólen”, Miller utiliza-se de recursos naturais e da grandiosi-
dade da natureza para expressar e intensificar um sentimento
e uma ação amorosa: o beijo entre os protagonistas. Através de
suaspalavras líricas, ultrapassa a barreira das páginas e atinge o
leitor, assim como a poesia o faz. Outra referência poética, é o
caráter sinestésico do fragmento. A sinestesia é uma ferramen-
366
ta literária que junta um ou mais sentidos (tato, olfato, gosto,
visão e audição) com outro, ou seja, é a “[...] transferência de
percepção de um sentido para outro, isso é, a fusão, num só
ato perceptivo, de dois sentidos ou mais.” (MOISÉS, 2013,
p. 442), No mesmo trecho, há a mistura do tato com o gosto,
em que vislumbramos o macio dos lábios com o doce gosto
do mel, assim a fusão de sentidos explorada no texto remete à
fusão dos sujeitos no encontro amoroso.
A cena é assistida pela deusa Tétis, que se desagrada com o
comportamento do mortal para com seu filho que saiu corren-
do. A deusa então vai até Pátroclo, ergue-o pela garganta e o
adverte do distanciamento com Aquiles, falando que o manda-
rá para longe e que não o deve seguir.
Aquiles então é mandado ao Pélion, lugar onde vive Quíron,
o centauro dotado de sabedoria sobre-humana. Pátroclo de-
sesperado com o desaparecimento do companheiro, sai sem
rumo pelas florestas que cercam Fítia, acaba sendo encontrado
por ninguém mais que Aquiles e Quíron, que os leva até sua
caverna no monte Pélion.
Se a relação entre os personagens já estava estreita, nos anos
que passaram juntos sendo treinados e ensinados no Pélion,
ela cinge ainda mais. É lá que se tem a descrição do primeiro
ato sexual de ambos. Descobre-se que dentro da caverna de
Quíron, a deusa Tétis não consegue penetrar ou ver, e os dois
amantes se aproveitam dessa situação, e é onde se culmina o
ato, Pátroclo narra:
Nossas bocas se aproximaram, entreabertas, e a doçura tépida de sua
garganta invadiu a minha. Eu não conseguia pensar, não conseguia fa-
zer nada exceto sorver cada alento seu, cada movimento suave de seus
lábios. Era o êxtase. [...] Aquiles não parou. A sensação foi aumentando
até que um grito rouco escapou da minha garganta e o prazer agudo me
comprimiu arquejante contra ele. Ainda não era tudo. Minha mão des-
ceu, encontrou a sede de seu prazer. Aquiles cerrou os olhos. Eu podia
sentir o ritmo que o deliciava pela respiração entrecortada, pelo arque-
367
jar anelante.Meus dedos ligeiros acompanhavam o compasso cada vez
mais acelerado de seus gemidos. Suas pálpebras tinham a cor da alvora-
da; seu corpo rescendia a terra e chuva. A boca de Aquiles se abriu num
grito inarticulado; estávamos tão juntos que senti o jorro quente contra
mim. Ele estremeceu e ficamos imóveis.” (MILLER, 2021, p. 95).

No trecho se concretiza enfim, os sentimentos de ambos:


“Era o êxtase”, se nota não apenas o prazer, ou seja, a parte
física, carnal, mas também os sentimentos que os une, a subje-
tividade literária citada anteriormente. Nota-se a sensação de
amor que paira sobreos personagens: um sentindo o que o ou-
tro está sentindo, e a forma de ver o companheiro “pálpebras
com a cor da alvorada, fragrância de terra e chuva”, ou seja, um
cheiro natural, fresco e simples, trazendo a conotação aclama-
tiva, tal como ocorre quando se contempla a natureza; nesse
momento os sentimentos e o prazer dos personagens atingem
o ápice. Nas cenas que se seguem é que podemos cons-
tatar que o que existe e se constrói entre os personagens
millerianos não é uma simples relação homoerótica, em que
há o domínio apenas da relação carnal e/ou uma relação pede-
rástica, apenas com o intuito de passagem de conhecimento;
mas sim, uma relação homoafetiva. Recorre-se ao momento
em que Aquiles diz a frase que se torna símbolo do livro: “cite
um herói que tenha sido feliz” (MILLER, 2021, p. 98), e a respos-
ta para o contexto grego é “nenhum”, pois todos que haviam
sido heróis famosos não foram felizes em vida, e então o herói
grego complementa: “Os deuses não permitem que sejamos
famosos e felizes. [...] Eu serei o primeiro. [...] Porque você é a
razão.” (MILLER, 2021, p. 98, grifo da autora). Assim ele explicita
o vínculo amoroso que há entre eles.
Quando acontece o rapto de Helena; Pátroclo e Aquiles são
requisitados, mesmo com todo o esforço de Tétis em mantê-
-lo afastado da guerra. O episódio da morte de Pátroclo e o
sofrimento de Aquiles, na obra de Miller são semelhantes ao
368
que acontece na obra homérica. Pátroclo pede emprestada a
armadura de seu amante e vai a luta. Lá acaba sendo morto por
Heitor. Então a cena se segue com Menelau trazendo seu corpo
para o acampamento dos gregos, a cena é de grande tristeza e
melancolia, pois Aquiles perde seu companheiro, e isso desper-
ta sua cólera contra Heitor, jurando-lhe morte no dia seguinte:
Tudo o que ele vê é a mortalha ensanguentada. Com um rugido, repele
Antíoco e derruba Menelau. Debruça-se sobre o cadáver. A constata-
ção do fato tira-lhe o fôlego. Um grito. Depois outro. E outro. Agarra os
cabelos como se quisesse arrancá-los. Mechas douradas caem sobre o
corpo coberto de sangue. [...] Aquiles chora. Embala-me e não comerá
nem dirá outra palavra que não o meu nome. Vejo seu rosto como atra-
vés da água, da mesma forma que os peixes veem o sol. Suas lágrimas
caem enão posso enxugá-las. Este é agora o meu elemento, a meia vida
de um espírito insepulto. (MILLER, 2021, p. 298-299).

Aquiles jura vingança pela morte do seu companheiro e a


cumpre. Matando Heitor e arrastando seu corpo pela arreia.
Depois de tudo, é morto por uma flecha atirada por Páris, to-
cada pelo deus Apolo. Misturam-se então as cinzas dele com
Pátroclo. Mas seu filho com Deidâmia, Pirro, recusa-se que a
sepultura leve o nome de ambos. Sem ser sepultado decente-
mente, a alma de Pátroclo não descansa, como consta as tra-
dições gregas, que uma alma só descerá ao Hades após sepul-
tura. Até entrar em contato com Tétis, a deusa, mostrando-lhe
lembranças felizes com Aquiles; ela então, compadecendo-se
escreve PÁTROCLO ao lado de AQUILES na tumba. Ajudando
assim Pátroclo a chegar ao Hades. Lá “Duas sombras se aproxi-
mam em meio à treva densa e eterna. Suas mãos se encontrame
a luz jorra num dilúvio como se fossem centenas de urnas entor-
nadas do céu. (MILLER, 2021, p. 325, grifo da autora). Assim
os dois amantes se encontram naeternidade do Hades.

369
5 De Homero a Miller: do verso à prosa
As duas obras utilizadas como objeto de análise possuem
duas formas de escritas diferentes e dois tipos de conteúdo.
Ou seja, apresentam estéticas distintas, que ao mesmo tempo
se misturam e se complementam: o verso e a prosa; a poesia
e a prosa. Verso e prosa constituem expressões literárias dife-
rentes uma da outra; enquanto poesia e prosa, dizem respeito
ao conteúdo literário, nesse caso, um não é o oposto do outro,
mas sim um pendant (MOISÉS, 2012, p. 61).
A discussão que abrange essa área de estudo literário não
é recente, pois a poesia sempre esteve presente na cultura
ocidental, não apenas na escrita como também na oralidade,
exemplo disso é a própria obra homérica, material de estudo
da época, escritaem versos; tendo a estrutura da prosa apare-
cendo depois. Assim, o questionamento entre semelhanças e
diferenças entre versos x prosa e poesia x prosa já estava em
pauta desde Aristóteles na Poética. Segundo o estudioso grego:
[...] não é ofício do poeta narrar o que realmente acontece; é, sim o de
representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível, ve-
rossímil e necessariamente. Com efeito, não diferem o historiador e o
poeta por escreverem em verso ou prosa (pois que bem poderiam ser
postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser
história, se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em
que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder.
Por isso, a poesia é mais filosófica e mais elevada que a história, pois
refere aquela principalmente ao universal, e esta, o particular. Referir-
-se ao universal, quero eu dizer: atribuir a um indivíduo de determinada
natureza, pensamentos e ações que, por liame de necessidade everos-
similhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa
à poesia quando põe nomes aos seus personagens; particular, pelo con-
trário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu.” (ARISTÓTELES,
1951 apud MOISÉS, 2012, p. 66).

370
Aristóteles coloca o trabalho do poeta voltado principalmen-
te para a área da filosofia, como algo possível de acontecer, en-
quanto o prosador escreveria histórias que já aconteceram. Mas
o filósofo deixa claro que, se mudada a forma de escrita, ou
seja, passado uma prosa para verso, aquela não perderia sua
essência de prosa estando disposta em verso. Como isso é pos-
sível? E a prosa, carrega características da poesia?
Essas questões são passíveis de várias interpretações pos-
síveis entre os teóricos. No livro A criação literária: poesia e
prosa (2012), Moisés utiliza-se de um exemplo de Cohen
(1966) bastante interessante, que consiste em dispor em versos
uma notícia jornalística. Esse exercício rendeu opiniões, afinal:
era poesia ou não era? Alguns teóricos pontuaram já tratar-se
de poesia, para outros não, o autor do exemplo, entretanto, diz
que “isto já não é prosa” (MOISÉS, 2012, p. 63), mas não es-
pecifica se constitui uma poesia. Moisés então, faz o exercício
contrário transformando uma poesia em prosa, e conclui que
“o poema resiste à desconstrução em prosa, enquanto a notícia
de jornal continuará a ser prosa, qualquer que seja o artifício de
torná-la poesia.” (MOISÉS, 2012, p. 64).
O que há de semelhante entre as duas formas (a poesia e a
prosa) é o que se chama de “essência estética”, que são exata-
mente os traços, características que são nomeadas “à falta de
outro rótulo, ‘poéticos’” (MOISÉS, 2012, p. 67). Como pode ser
verificado em trechos citados acima da narrativa de Miller.
A poesia possui essa marca de ornamentação, elementos
escolhidos a dedo pelo poeta para que possa transmitir aquilo
que sente/quer. Por isso apresenta metáforas, sinestesia e ou-
tras figuras de linguagem para compor uma métrica e um ritmo
para aquele poema. E todos esses elementos juntos descrevem
musicalidade. Eles podem aparecer em textos de prosa, dando
essa característica poética à narrativa, a essência estética. Assim
371
como será possível encontrar elementos da narrativa em um
poema, como personagens, descrições de cenários, e inclusive
diálogos; esses são chamados de poemas narrativos, um bom
exemplo é o poema Romance sonâmbulo, do escritor espanhol
Federico GarcíaLorca. Outro elemento que une as duas for-
mas é o subjetivismo, marca universal daliteratura (MOISÉS,
2012).
Por isso durante a leitura de A canção de Aquiles, o leitor de-
parar-se-á com episódios poéticos, o que não quer dizer que
esses estarão em forma de versos, necessariamente, mas que
os elementos que os compõem remetem à estética tradicio-
nalmente poética, com figuras de linguagem e subjetividade,
como pode ser visualizado no seguinte trecho:
A cintilação rósea de seus lábios, a chama verde de seus olhos. Naquele
rosto não havia nenhuma marca de expressão, nenhum sinal de ruga
ou envelhecimento; tudo era mocidade, primavera, ouro e viço. A Morte
invejosa beberia seu sangue e rejuvenesceria. Ele me observava, seus
olhos eram profundos como a terra. (MILLER, 2021, p. 152, grifo meu).

Nos trechos destacados nota-se claramente o caráter poé-


tico utilizado por Miller para descrever a beleza de Aquiles. A
forma com que descreve os olhos e a boca do príncipe não
apenas colocando a coloração ou sua forma, mas buscando
artifícios para enaltecê-los, “cintilação rósea”; “chama verde”,
intensificando ainda mais sua beleza. Comparando sua joviali-
dade e virilidade com a estação primaveril, com a força vital ca-
racterística das plantas, o viço; ademais do metal mais precioso
de todas as tradições, o ouro, também personificando a figura
da morte. Madeline Miller joga com os elementos do verso na
prosa durante toda a sua narrativa, demostrando que a essên-
cia estética não está apenas nas escritas em verso, mas que é
possível encontrá-la na prosa também.

372
Além de a obra homérica ser passível de prosa, caso seja
transformada, não perde sua essência estética poética, como
os seguintes versos, por exemplo:
Deita-se o claro Pelida na praia do mar sonoroso,
Em lugar limpo, onde as ondas espúmeas na areia se quebram, [...]apro-
ximou-se-lhe o espectro do mísero Pátroclo, [...]
“Dormes, Aquiles, o amigo esquecendo? Zeloso eras antes,
quando me achava com vida; ora, morto, de mim te descuidas.
(HOMERO, 2015, p. 467).
O trecho traz inclusive a marcação de diálogo, recurso tipica-
mente utilizado na prosa. Ainda que fosse escrito em verso, sua
essência estética se manteria. Concluindo o complexo debate
sobre construção literária que envolve verso, poesia e prosa,
Moisés (2012) escreve:
Embora sejam complementares, duas cosmovisões diferenciadas ex-
primem-se em linhas descontínuas (os versos) e em linhas contínuas
(ou prosa, à falta de um termo mais adequado). Entretanto, a análise
evidencia que a linha descontínua se adapta mais à visão poética do
mundo, ao passo que a linha contínua, à visão prosística do mundo,in-
clusive pelo fato de ser a prosa a linguagem nossa de cada dia. (MOISÉS,
2012, p. 82).

Por isso, muitas vezes o entendimento de uma poesia torna-


-se mais difícil para uns do que para outros, pois estamos mais
afeiçoados à prosa do que à interpretação subjetiva dos versos
que remetem a um eu.
Dessa forma a poesia e sua forma cumprem papeis diferen-
tes, se pensamos na função que desempenhava nas obras clás-
sicas e na era moderna. Como é possível perceber, na obra
clássica, a poesia remete à aclamação de um povo através de
um herói e o peso das ações que se sucedem naquela nação;
enquanto na moderna, a poesia tem um efeito potencializador
de uma relação amorosa, não mais com um caráter belicoso,
mas romântico.
373
É possível concluir com o desenvolvimento da pesquisa, que
a interpretação de que a Grécia seria o berço da homossexu-
alidade está equivocada, pois se verificarmos seu contexto e
sua construção histórica percebemos que havia todo um sis-
tema educacional que rodeava as relações homoeróticas en-
tre os homens da sociedade. Porém, com o trabalho pode-se
concluir que houve de fato uma relação além de fraterna entre
os personagens da Ilíada, verificando os diálogos, as palavras
e as situações que os rodeiam: Aquiles e Pátroclo tinham uma
relação mais estreita que apenas educacional (pederástica) ou
homoerótica. Havia afago, delicadeza e atenção em suas ações
e falas, durante vários momentos do poema épico, vê-se esse
comportamento amoroso entre os dois personagens homéri-
cos, sugerindo ao leitor tal interpretação. Ou seja, Miller, em sua
releitura apenas explicita e ressalta a relação amorosa que ficou
encoberta, velada e disfarçada em Homero. Assim também é
possível concluir que Ilíada é homoeroticamente inclinada, ou
seja, traz em seus versos um desejo homoerótico; ao mesmo
tempo que A canção de Aquiles, pode ser considerada uma obra
gay, pois trabalha a homoafetividade o amor gay como princi-
pal foco narrativo, ou seja, trazendo representatividade homos-
sexual.
Evidencia-se também as formas narrativas distintas empre-
gadas nas duas obras: a prosa e a poesia. Miller em sua prosa na
releitura homérica, utiliza-se de recursos poéticos como orna-
mentação de sua narrativa, ou seja, lança mão à essência esté-
tica poética e da subjetividade, a autora brinca com elementos
da poesia, como a metáfora e a sinestesia, para fazer uma nar-
rativa poética, não perdendo assim sua essência original. Ho-
mero opta pela narrativa em versos pois essa era a forma tradi-
cional e aclamada da época para escrever uma narração épica,
374
ou seja, a epopeia, pois era a melhor forma de expressar os fei-
tos do herói grego e a exaltação do seu povo; já Miller utiliza-se
do gênero romance, para descrever o conteúdo biográfico dos
personagens essa forma é a mais eficaz, assim a autora foca na
subjetividade e a intimidade entre ambos, destacando-as.

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin.


1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007;
CARDOSO, Ciro Flamarion. Aquiles e Troilos: a intrusão de um sub-
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DURÃO, Fábio Akcelrud. Metodologia de pesquisa em literatura. 1ª
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376
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rastia-um-metodo- educacional-na-grecia-antiga/>. Acesso em: 23
JUL 2022.

377
ANEXOS

Anexo I: Exemplo de prato ateniense de 530-430 a.C.. Atualmente exposto no


Ashmolean Museum, Oxford. (Disponível em:
<https://hav120151.wordpress.com/ 2016/07/03/a-homossexualidade-na-gre-
cia-antiga-e-suas-representacoes-na-arte/.> Acesso em: 14 AGO2022.)

378
Anexo II: Cerâmica de 550 a.C.. (Disponível em:<https://hav120151.wordpress.c
om/2016/07/03/a- homossexualidade-na-grecia-antiga-e-suas-representacoes-
-na-arte/.>.
Acesso em: 14 AGO 2022.)

379
Anexo III: Detalhe em uma ânfora de Atenas, séc V a. C.. (Disponível em:<https://
hav120151. wordpress.com/2016/07/03/a-homossexualidade-na-grecia-antiga-
-e-suas- representacoes-na- arte/.> Acesso em: 14 AGO 2022.)

380
Anexo IV: Aquilescuidando de ferimentos em Pátroclo. Figura em um prato do séc
V a. C..
FONTE: CORINO,
2006, p. 22)

381
Literatura de Língua
Inglesa
Estratégias dramáticas shakespearianas: estudo
comparativo entre Rei Lear e O mercador de
Veneza

Cláudia de Geus Noernberg1

1 Introdução
“Totus mundus agit histrionem” (“O mundo é todo um pal-
co”). Esse era o emblemático lema do Globe Theatre, do qual
Shakespeare era sócio e onde foram encenados diversos de
seus dramas, entre eles Rei Lear. A partir dessa afirmativa, é pos-
sível delinear algumas peculiaridades que constituem o univer-
so de Shakespeare e que nos levam a entender por que pensar
o mundo como um palco é enxergar as peças de Shakespeare
como a própria invenção do humano, expressão que Harold
Bloom (2000) criou para definir a arte dramática do bardo.
Segundo Bloom (2000, p.26), Shakespeare nos ensinou a
compreender a natureza humana, pois foi “o autor que me-
lhor representou o universo concreto em todos os tempos”
(BLOOM, 2000, p. 42). Ele pretendeu nos edificar como seres
conscientes, ensinando-nos a pensar (BLOOM, 2000, p.34-
35).
Shakespeare era um observador da realidade e da multipli-
cidade de situações humanas, cuja complexidade ele revelava
através do teatro, deixando para o espectador a tarefa de che-
gar por si só a uma conclusão:
Ele tinha, a rigor, profunda consciência e grande interesse pelas ques-
tões intelectuais, que não foi de sua escolha simplificar, codificar, re-
conciliar ou solucionar, preferindo antes dramatizá-las de tal modo que
seu público se tornasse emocionantemente consciente de uma nova

1 Trabalho orientado por Deborah Scheidt.


383
dimensão, uma dimensão imaginativa, da vida cotidiana. (GREER, 1988,
p. 21)

Não havia nas peças uma posição ideológica definitiva a ser


defendida, mas vários aspectos da vida social que dialogavam
com os valores e convicções do público elisabetano, conforme
esclarece Frye (2011, p.15). Posição semelhante à de Frye assu-
me Greer ao afirmar:
A maior armadilha que ameaça toda e qualquer discussão do pensa-
mento de Shakespeare é a de se presumir, como é comumente feito,
que as opiniões de qualquer personagem de uma peça shakespeariana
sejam as do próprio dramaturgo. Shakespeare não foi um propagandis-
ta; não escreveu suas peças para veicular suas próprias ideias. Ele de-
senvolveu, antes, um teatro de conflito dialético, no qual ideia é oposta
a ideia e, do atrito entre elas, emerge uma compreensão mais profunda
do que está em questão. (GREER, 1988, p. 21-22)

Transpondo esse pensamento para os dias atuais, percebe-


-se que é justamente o jogo de oposição de ideias que confere
à obra shakespeariana um caráter universal e contemporâneo,
permitindo que ela continue a dialogar conosco, independen-
temente de questões temporais ou espaciais. Através dessa di-
mensão imaginativa, feita de percepções e sensações, “Shakes-
peare ensina-nos como e o que perceber, assim como nos
instrui quanto a como e o que sentir” (BLOOM, 2000, p.34).
Norteado por essas premissas, o presente estudo comparati-
vo entre as peças teatrais Rei Lear e O mercador de Veneza optou
por priorizar neste artigo a análise de determinadas estratégias
utilizadas por Shakespeare para a composição e dramatização
de ambas as peças nos palcos do teatro elisabetano, enfatizan-
do como essas estratégias conduzem o público à percepção e
compreensão do espetáculo que lhes é apresentado.
Conforme o Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis (1999), po-
de-se definir o termo estratégia como:

384
atitude e modo de proceder do autor, do encenador ante o assunto a ser
tratado ou da encenação a ser efetuada e, em última instância, da ação
simbólica a ser exercida sobre o espectador.
O trabalho dramatúrgico […] implica, para ser sistemático e eficaz, uma
reflexão sobre o sentido do texto encenado e sobre a finalidade de sua
representação nas circunstâncias concretas em que ele será apresen-
tado ao público. Portanto, é em função ao mesmo tempo da interpre-
tação interna do texto e de seu modo de recepção que se efetuam o
trabalho dramatúrgico e a estratégia apropriada à sua boa recepção. A
determinação destes parâmetros constitui a estratégia global do espe-
táculo. (PAVIS, 1999, p. 148)

Dentre as inúmeras estratégias passíveis de investigação nas


peças objeto de análise, foram selecionadas algumas, conside-
rando seu grau de recorrência em ambas as peças. Para tanto,
optou-se por elencar as estratégias a serem pesquisadas em
três grupos: estratégias de caracterização de personagens, es-
tratégias imagísticas e estratégias de linguagem. A metodologia
adotada envolveu essencialmente a pesquisa bibliográfica. A
apreciação comparativa dos efeitos produzidos pela utilização
das mesmas estratégias em gêneros dramáticos distintos resul-
tou tanto em aproximações como em distanciamentos entre a
tragédia Rei Lear e a comédia O mercador de Veneza.
Como não foram encontrados estudos específicos sobre as
relações que podem ser estabelecidas entre as estratégias uti-
lizadas em Rei Lear e O mercador de Veneza, este trabalho pre-
tende contribuir para o aprofundamento dos estudos shakes-
pearianos, como também suscitar novas discussões sobre o
tema e possibilitar relações com outras peças do bardo, seja
pela proximidade, seja pela oposição.
Passemos agora à análise das estratégias selecionadas.

385
Não há como falar em estratégias de caracterização de per-
sonagens sem definir primeiramente o que vem a ser o ter-
mo “caracterização” na linguagem do teatro. Segundo Pavis, a
caracterização se constitui em uma “técnica literária ou teatral
utilizada para fornecer informações sobre uma personagem ou
uma situação”.
Ela consiste em fornecer ao espectador os meios para ver e/ou imaginar
o universo dramático, portanto para recriar um efeito de real que prepara
a credibilidade e a verossimilhança da personagem e de suas aventuras.
Por conseguinte, esclarece as motivações e as ações dos caracteres. Ela
se estende ao longo de toda a peça, com os caracteres evoluindo sem-
pre levemente. É acentuada e fundamental na exposição e na instalação
das contradições e dos conflitos. Entretanto, nunca se conhece total-
mente a motivação e a caracterização de todas as personagens; o que
é ótimo, uma vez que o sentido da peça é a resultante sempre incerta
dessas caracterizações: cabe ao espectador definir as coisas e também
sua própria visão dos caracteres (perspectiva).[…] A caracterização da
personagem é sempre dada pela condução da fábula, pelo discurso dos
outros actantes, pelos silêncios e pelos sons, pelas ambiguidades e pe-
las ausências da cena. (PAVIS, 1999, p 38)

A partir dessa compreensão inicial, passemos à análise de


algumas estratégias utilizadas para a caracterização de deter-
minadas personagens das peças em estudo, no intuito de evi-
denciar as aproximações resultantes entre a tragédia Rei Lear e
a comédia O mercador de Veneza. Para tanto, a análise irá focar
as seguintes estratégias: a complexidade atribuída às persona-
gens, a mistura de gêneros dramáticos e o uso de disfarces.
No que diz respeito ao grau de complexidade, parece não ser
possível classificar as personagens shakespearianas simples-
mente como indivíduos bons ou maus. Elas são muito mais
complexas, embora o aparente maniqueísmo das peças sugira
o contrário. Talvez seja essa uma das razões pelas quais Bloom
(2000) insiste em atribuir a Shakespeare a própria invenção do
386
humano, que particularmente elide a noção de pessoas consti-
tuídas apenas de características boas ou más.
Na comédia O mercador de Veneza, Shakespeare parece evi-
tar uma caracterização maniqueísta ao retratar o suposto vilão
da trama, o judeu Shylock, como uma personalidade marcante
e ambivalente, ora causando desprezo e ódio, ora provocando
piedade e empatia. Assim, o tema do antissemitismo dá mar-
gem a diversas interpretações, pois, inversamente ao perverso
judeu de Malta, idealizado por Christopher Marlowe, o judeu de
Shakespeare é, “ao mesmo tempo, monstro fabuloso, encarna-
ção do judeu, e ser humano desconcertante” (BLOOM, 2000,
p 31).
É possível afirmar até mesmo que, na peça O mercador de
Veneza, Shakespeare tem a ousadia de revelar o que Heliodora
(2004b, p. 85) definiu como “um cristianismo preconceituoso
e cruel”, principalmente na humilhante cena do tribunal (ato IV,
cena i), em que o cristão Antonio exige a conversão de Shylock
ao cristianismo. Na verdade, desde o ato I, cena iii, o precon-
ceito de Antonio contra os judeus fica evidente, pois, mesmo
necessitando do empréstimo dos três mil ducados de Shylo-
ck, Antonio afirma que continuará a desprezá-lo e chamá-lo de
cão, embora alegue que o fará em razão da usura praticada pelo
judeu:
I am as like to call thee so again,
To spit on thee again, to spurn thee too”.
If thou wilt lend this money, lend it not
As to thy friends – for when did friendship take
A breed for barren metal of his friend?
But lend it rather to thine enemy,
Who if he break, thou mayst with better face
Exact the penalty. (SHAKESPEARE, 1997, I, iii, p. 293)2

2 Irei chamá-lo novamente assim,/Hei de cuspir e hei de desprezá-lo./Se emprestar


o dinheiro, não o faça/Como a amigos seus, pois que a amizade/Toma do amigo
cria de metal?/É melhor emprestá-lo a um inimigo,/Para que, se falhar, possa, feliz/
387
Não podemos deixar de citar aquela que é a fala mais famosa
de Shylock, e que se refere às razões para a cobrança da multa
de uma libra de carne de Antonio. Certamente, ela denuncia
muito mais do que o desejo de vingança. Ao descrever os ju-
deus como semelhantes aos cristãos, o próprio Shylock se re-
conhece como vítima de preconceito:
[…] He hath disgrac’d me and hind’red me half a million, laugh’d at my
losses, mock’d at my gains, scorn’d my nation, thwarted my bargains,
cool’d my friends, heated mine enemies – and what’s his reason? I am
a Jew. Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions,
senses, affections, passions; fed with the same food, hurt with the same
weapons, subject to the same diseases, heal’d by the same means,
warm’d and cool’d by the same winter and summer as a Christian is? If
you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you
poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge? If
we are like you in the rest, we will resemble you in that. If a Jew wrong
a Christian, what is his humility? Revenge. If a Christian wrong a Jew,
what should his sufferance be by Christian example? Why, revenge. The
villainy you teach me, I will execute, and it shall go hard but I will better
the instruction. (SHAKESPEARE, 1997, III, i, p. 302)3

Sem dúvida, Shakespeare foi além do previsível para seu


tempo. Deixou para seu colega Marlowe a singela adoção de
padrões de bom ou mau, certo ou errado, preto ou branco, e
criou outros matizes para seus personagens, o que possibili-
Cobrar-lhe a multa. (SHAKESPEARE, 1990, p. 158, tradução de Barbara Heliodora /
Obs.:Os demais trechos traduzidos são dessa mesma edição)
3 Ele me desgraçou, prejudicou-me em meio milhão; riu-se das minhas perdas, ca-
çoou dos meus lucros, escarneceu minha estirpe, atrapalhou meus negócios, esfriou
minhas amizades, afogueou meus inimigos; e por que razão? Eu sou judeu. Um judeu
não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, pai-
xões? Não é alimentado pela mesma comida, ferido pelas mesmas armas, sujeito às
mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, esquentado e regelado pelo mesmo
verão e inverno, tal como um cristão? Quando vós nos feris, não sangramos nós?
Quando nos divertis, não nos rimos nós? Quando nos envenenais, não morremos
nós? E se nos enganais, não haveremos nós de nos vingar? Se somos como vós em
todo o resto, nisto também seremos semelhantes. Se um judeu enganar um cris-
tão, qual é a humildade que encontra? A vingança. Se um cristão enganar um judeu,
qual deve ser seu sentimento, segundo o exemplo cristão? A vingança, pois. A vileza
que me ensinais eu executo; e, por mais difícil que seja, superarei meus mestres.
(SHAKESPEARE, 1990, p. 193-194)
388
tou novas leituras de sua obra e tornou perfeitamente possível
qualificar Shylock como “o primeiro dos heróis-vilões interna-
lizados da dramaturgia shakespeariana”. (BLOOM, 2000, p. 36)
Nas tragédias, Shakespeare também soube como transfor-
mar seus vilões em muito mais do que o público elisabetano
estava habituado a ver nas abordagens maniqueístas das mora-
lidades medievais. Nas palavras de Bloom (2000, p.628), esse
vem a ser “um dos segredos da tragédia shakespeariana: nela
estamos além do bem e do mal, porque não somos capazes
de estabelecer entre o bem e o mal uma distinção meramente
natural”.
Em Rei Lear, ato I, cena i, o vilão Edmund, filho bastardo de
Gloucester, é apresentado pelo pai a Kent com um certo or-
gulho, até mesmo sugerindo a predileção de Gloucester por
Edmund em relação a Edgar, filho legítimo, o qual Gloucester
afirma não estimar mais do que o bastardo. Para a sociedade
da época, bastardia era sinônimo de vergonha, mas Shakespe-
are parecia gostar de brincar com assuntos polêmicos e trans-
ferir para o público a responsabilidade de decidir entre o que
era certo ou errado. Desta forma, proporcionava a possibilidade
de diferentes leituras e interpretações por espectadores prove-
nientes das mais diversas camadas sociais. Provavelmente esse
foi um meio eficaz de agradar a todos e também contornar
eventuais problemas com a censura.
O bardo foi ainda mais longe com Rei Lear, pois, segundo
Bloom (2000, p. 628), reservou o maior intelecto não ao herói
trágico (Lear), e sim a Edmund, o vilão. Determinado a conse-
guir o poder de qualquer maneira, Edmund acaba por exercer
um fascínio inexplicável na plateia ao revelar a verdade sobre
si mesmo através dos solilóquios que faz em alguns momen-
tos da peça, como no início da cena ii do ato I. Os solilóquios
constituem um meio eficiente de caracterizar a complexidade
389
da personagem, pois é somente através dessas falas consigo
mesmo que Edmund demonstra aos espectadores quem ele
realmente é, bem como suas intenções, cuja perversidade não
fica visível para as demais personagens. Cria-se com o soliló-
quio uma espécie de vínculo secreto entre a personagem e a
plateia, que tem o privilégio de conhecer antecipadamente seu
caráter e o que está por acontecer:
A credulous father and a brother noble,
Whose nature is so far from doing harms
That he suspects none; on whose foolish honesty
My practices ride easy. I see the business.
Let me, if not by birth. have land by wit:
All with me’s meet that I can fashion fit. (SHAKESPEARE, 1997, I, ii, p.
1309)4

Outra característica que é possível observar na tragédia Rei


Lear é a presença de elementos que, teoricamente, são exclu-
sivos da comédia e que, em Lear, são revelados através da per-
sonagem do Bobo (licensed fool). Na tragédia grega, jamais en-
contraremos uma personagem como o Fool de Lear, pois, em
termos gerais, ele é caracterizado como risível e se contrapõe
ao efeito trágico que é pretendido. No entanto, Shakespeare
nos proporciona essa mistura de gêneros dramáticos ao tornar
praticamente inviável a caracterização de Lear como persona-
gem dissociada do Bobo. Este último, no dizer de Heliodora
(2004a, p. 128), representa “...exatamente a consciência da re-
alidade, dos valores na justa medida…”, cuja ausência em Lear
foi o fator determinante do cometimento de sua falha trágica.
Sendo assim, Bloom (2000, p. 608) considera o Bobo mais do
que uma simples personagem; ele é uma presença fascinante
4 Um pai mui crédulo, e um nobre irmão/De índole tão isenta de maldade/Que
nada suspeita; e sobre essa tola/Probidade é fácil montar um plano -/O plano todo
já está concebido./Se não for como herdeiro natural,/As terras, ganho-as porque
sou esperto:/Vale tudo p’ra meu plano dar certo. (SHAKESPEARE, 2000, p. 71, tra-
dução de Aíla de Oliveira Gomes / Obs.: Os demais trechos traduzidos são dessa
mesma edição)
390
que humaniza Lear. Sua função é córica (semelhante ao coro
das tragédias gregas), pois prevê situações e atua como media-
dor entre a plateia e Lear. E Bloom afirma ser essa mediação
fundamental para tornar Lear acessível ao público. Segundo
Heliodora, é por essa razão que
enquanto não se instaura o verdadeiro processo de autoconhecimen-
to, que exigirá sua humilhação ante a crueldade das filhas e o terror da
tempestade, uma outra voz aparece como a consciência de Lear: nessa
importante função é que aparece o Bobo, o implacável “licensed Fool”,
cujo privilégio lhe permite relembrar a Lear a todo momento o terrível
alcance de seu erro; se sua função é córica, ela tem o efeito dramático de
intensificar a dor de Lear e de precipitar seu processo de conscientiza-
ção. É preciso esquecer quaisquer ilusões de que um Bobo nasceu para
fazer rir: seu instrumento é antes a mais amarga das sátiras, e como sua
escala de valores é implacavelmente clara, ele é tão agressivo e violen-
to (com palavras e pensamentos) em relação ao autodesconhecimento
que levou Lear ao erro quanto Kent o é contra os outros inimigos do rei.
(HELIODORA, 2004a, p. 201)

Ainda em relação ao Bobo, Bloom faz uma consideração de-


veras curiosa, ao comparar o próprio público/leitor da peça a
essa figura tão interessante:
Sendo, ao mesmo tempo, a menos secular e a menos cristã das peças
shakespearianas, a tragédia de Lear mostra-nos a todos como ‘bobos’, no
sentido shakespeariano, exceto aqueles dentre nós que são inveterados
vilões. Em Shakespeare, ‘bobo’ quer dizer ‘tolo’, ‘querido’, ‘louco’, ‘bobo da
corte’ ou, principalmente, ‘vítima’. (BLOOM, 2000, p. 606 e 607)

A tragédia parece até mesmo insinuar que o maior tolo den-


tre todos é o próprio Lear, como a canção do Bobo denuncia ao
dizer que entre os bobos vai um rei, referindo-se à atitude im-
pensada de Lear no momento da divisão do reino, ao repudiar
Cordelia e subordinar-se a Goneril e Regan:
“Then they for sudden joy did weep,
And I for sorrow sung,
That such a king should play bo-peep,
391
And go the [fools] among.” (SHAKESPEARE, 1997, I. iv, p. 1311)5

Todavia, com o fim da tempestade, quando Lear, apesar de


toda a sua loucura, atinge “um novo e comovente nível de au-
toconhecimento, o Bobo passa a ser desnecessário e, portanto,
desaparece.” (HELIODORA, 2004a, p. 128)
Já na comédia O mercador de Veneza, o bobo é caracteri-
zado de modo diverso ao Fool de Lear e exerce a tradicional
função de clown, cujo objetivo principal é fazer a plateia rir. Na
pele de Launcelot Gobbo, o clown do Mercador de Veneza ora
brinca com as palavras, criando inúmeras confusões verbais e
impropriedades, ora parodia os dramas religiosos ou moralida-
des, como na abertura do ato II, cena ii, em que sua consciência
disputa com o demônio a alma do suposto herói: ele mesmo.
Essa é uma das convenções mais apreciadas nas comédias dos
palcos elisabetanos.
Entretanto, embora tenhamos Launcelot como típico clown
risível no Mercador de Veneza (lembrando que, a rigor, todas as
personagens são cômicas), temos também nessa comédia a
presença de elementos sombrios, próprios das tragédias, que
se misturam aos elementos cômicos. Não é à toa que Bloom
(2000, p. 229) a considera uma “comédia sombria”. Entenden-
do que a comédia de Shakespeare é mais do que uma simples
história com começo triste e final alegre, Heliodora completa:
Em Shakespeare, nem sempre as comédias são excepcionalmente tris-
tes no início, e nem delirantemente alegres no final (o índice varia de
peça para peça); nelas, o sorriso é, via de regra, mais adequado do que
o riso. Em todas as comédias, até mesmo nas mais poéticas e encan-
tadoras, está presente, de um modo ou de outro, o lado mais sombrio
da vida: o mal, a tristeza, a própria morte, sempre tocam, com maior ou
menor impacto, o processo da comédia, tornando-a mais rica e mais
complexa. (HELIODORA, 2004b, p. 69)

5 Então elas choraram de alegria/E eu de tristeza cantei,/Pois em jogo de cabra-ce-


ga eu via/Ir entre os bobos um Rei. (SHAKESPEARE, 2000, p. 89)
392
Finalmente, outra convenção do drama elisabetano é o uso
do disfarce impenetrável para caracterizar determinadas ações
das personagens. Nesse caso, embora o público tenha ciência
do uso do disfarce em determinado momento da peça, con-
venciona-se que as demais personagens não têm esse conhe-
cimento. De acordo com Pavis,
O disfarce é uma técnica empregada frequentemente, em particular na
comédia, para produzir toda espécie de situações dramaticamente in-
teressantes: menosprezes, quiproquós, golpes de teatro, teatro dentro do
teatro, voyeurismo. O disfarce “superteatraliza” o jogo dramático, que
já se baseia na noção de papel e de personagem que travestem o ator,
mostrando deste modo não apenas a cena, mas também o olhar diri-
gido à cena. O disfarce é apresentado como verossímil (na representa-
ção realista) ou como convenção dramática e uma técnica dramatúrgica,
necessárias ao dramaturgo para transmitir a informação de um a outro
caráter, para facilitar a progressão da intriga e desatar os fios no final da
peça. […] O travestimento se efetua, em geral, graças a uma troca de
figurino ou de máscara (portanto, de convenção própria de uma per-
sonagem). Porém, ele é também acompanhado por uma mudança de
linguagem ou de estilo, por uma modificação de comportamento ou
por uma interferência nos pensamentos ou sentimentos reais. (PAVIS,
1999, p. 104)

Na comédia O mercador de Veneza, são as mulheres que apa-


recem travestidas. Jessica se disfarça para fugir com o cristão
Lorenzo, enquanto Portia e Nerissa usam o disfarce para atua-
rem no tribunal como advogado e seu auxiliar, respectivamen-
te. Ao disfarçar-se de homem, Portia assume publicamente
uma posição social que era reservada apenas para os homens,
conquistando voz e poder que, até então, só possuía no âmbito
privado. É como se Shakespeare quisesse proporcionar às mu-
lheres alguns minutos de deleite através de suas personagens
femininas, realizando no palco o sonho de libertação de toda
housewife (dona de casa) elisabetana. O interessante é que, no
período elisabetano, somente homens podiam ser atores. En-
tão, sucedia-se algo bizarro: atores fingiam ser mulheres que, a
393
certa altura da peça, fingiam ser homens. Isso contribuía para
aumentar o potencial cômico da peça.
Além disso, esse tipo de disfarce é usado no tribunal não só
para conceder poder às personagens femininas, como também
para restabelecer a justiça, pelo menos um tipo de justiça em
que os cristãos, supostamente defensores da moral e da or-
dem, saem ganhando.
Embora o disfarce seja uma estratégia típica das comédias
shakespearianas, ele foi utilizado extensivamente em Rei Lear
com as personagens Kent e Edgar, que se disfarçam para tentar
sobreviver à quebra da harmonia e à inversão da ordem natural
das coisas. Kent, após ser banido do reino, só consegue se apro-
ximar novamente de Lear porque surge disfarçado como servo.
Já Edgar, o filho legítimo de Gloucester, assume uma identidade
que é familiar ao público elisabetano: torna-se Tom O’Bedlam,
ou Poor Tom, ao disfarçar-se de um dos loucos do manicômio
de Bedlam, que saíam do hospital para mendigar (Bedlam beg-
gars). Edgar justifica sua decisão do seguinte modo:
I heard myself proclaim’d,
And by the happy hollow of a tree
Escap’d the hunt. No port is free, no place
That guard and most unusual vigilance
Does not attend my taking. Whiles I may scape
I will preserve myself, and am bethought
To take the basest and most poorest shape
That ever penury, in contempt of man,
Brought near to beast. My face I’ll grime with filth,
Blanket my loins, elf all my hairs in knots,
And with presented nakedness outface
The winds and persecutions of the sky.
The country gives me proof and president
Of Bedlam beggars, who, with roaring voices,
Strike in their numb’d and mortified arms
Pins, wooden pricks, nails, sprigs of rosemary;
And with this horrible object, from low farms,
Poor pelting villages, sheep-cotes, and mills,
394
Sometimes with lunatic bans, sometime with prayers,
Enforce their charity. Poor Turlygod! poor Tom!
That’s something yet: Edgar I nothing am. (SHAKESPEARE, 1997, II iii, p.
1317-1318)6

Segundo Heliodora (2004a, p. 202), “o disfarce será crucial


na cena da tempestade, que marca a volta de Edgar à cena: é
o total desamparo físico do bicho homem que esgarça as últi-
mas ligações de Lear com a sanidade” e o conduz ao reconhe-
cimento da “essência de seu processo de aprendizado”. Edgar
também será terapeuta do pai, conduzindo-o e auxiliando-o
até seus últimos momentos de vida:
Edgar será, na segunda parte da tragédia, o guia dedicado de seu pai
cego: como Albany, porém com muito maior sofrimento, Edgar desco-
brirá dentro de si um potencial não pressentido em suas primeiras inter-
venções. A transformação e a promessa de uma personalidade mais rica
são pressentidas em seu período como Tom O’Bedlam e plenamente
realizadas quando ele se torna o campeão das forças do bem contra
Edmund. (HELIODORA, 2004a, p. 202)

Na tragédia Rei Lear, constatamos, pois, que, em momentos


de extrema crise e imoralidade, a paz e a ordem só sobrevi-
vem sob disfarce. E é disfarçado de cavaleiro que Edgar vence
Edmund e restaura a paz e a ordem anteriores. Assim como
acontece no Mercador de Veneza, somente através do disfarce é
possível restabelecer a justiça em Lear.

6 Ouvi-me posto a prêmio;/Pelo oco oportuno de uma árvore/Escapei à busca. Por-


tos vigiados;/Nem há lugar sem guardas, e incomum/Vigilância a postos p’ra me
prender./Enquanto isso escapulo, no esforço/De preservar-me; já tive a ideia/De
assumir a forma mais infame/Da miséria, quando aviltando um homem/ela o reduz
a não mais que um animal./Besunto todo o rosto de sujeira,/Cinjo minhas ancas
com alguma coberta,/Dou nós nos cabelos, tal como os elfos,/E, exposta minha
nudez, vou enfrentar/Os ventos e as perseguições do céu./Há precedentes fora da
cidade/Nos mendigos do manicômio, que,/Aos gritos, furam os braços insensíveis/
Com alfinetes, gravetos, com as unhas/Com lascas de rosmaninho, e assim,/Com
aspecto horripilante, eles surgem/Em humildes sítios, pobres vilarejos,/Nos redis
das ovelhas, nos moinhos;/Às vezes com um praguejar de lunáticos,/Outras vezes
com rezas, esmolando;/Olha Tom, o Maluco, pobre Tom!/Ser Tom é algo; ser Edgar
é nada. (SHAKESPEARE, 2000, p. 137)
395
3 Estratégias imagísticas
Se tivéssemos que definir o termo “imagem” a partir da primei-
ra impressão por ele suscitada, provavelmente faríamos a asso-
ciação dessa palavra com alguma experiência visual. No entanto,
em se tratando de Shakespeare e para que possamos compre-
ender a riqueza de sua imagística, Spurgeon (2006, p. 5) sugere
que “dispamos nossas mentes da lembrança de que o termo
carregue em si apenas imagens visuais” e pensemos a imagem
como “um pequeno quadro verbal usado por um poeta ou pro-
sador para iluminar, esclarecer e embelezar seu pensamento”
(SPURGEON, 2006, p. 8). A imagem
é uma descrição ou ideia que, por comparação ou analogia – verbalizada
ou compreendida – com outra coisa, transmite-nos, por meio das emo-
ções e associações que provoca, algo da “inteireza”, da profundidade e
da riqueza da maneira pela qual o escritor vê, concebe ou sente o que
nos está narrando. (SPURGEON, 2006, p. 9)

Norteado por essa concepção diferenciada do valor das ima-


gens no drama shakespeariano, este estudo elegeu, entre a
gama de estratégias imagísticas que afloram nas peças objeto
de análise, algumas que conduzem a uma aproximação, outras
que proporcionam um distanciamento entre a tragédia Rei Lear
e a comédia O mercador de Veneza.
Seguindo a orientação de Spurgeon (2006, p. 201), optou-
-se por distribuir as estratégias imagísticas a serem analisadas
em três grupos: as que são recorrentes na provocação e sus-
tentação da emoção, as que são recorrentes na criação de uma
atmosfera e as que são recorrentes na ênfase de determinado
tema.
Tanto no Mercador de Veneza quanto em Rei Lear, a provo-
cação e a sustentação da emoção são obtidas por meio de
imagens recorrentes de animais. Contudo, em Rei Lear, essas
imagens aparecem em diferentes contextos, com diferentes
396
sentidos. Ora revelam ferocidade, ora evidenciam relações de
servidão e obediência. Outras vezes remetem à sexualidade ou
ao instinto de sobrevivência.
Vejamos a fala de Edgar ao assumir e descrever a identidade
de Poor Tom:
Poor Tom, that eats the swimming frog, the toad, the todpole, the wall-
-newt, and the water; that in the fury of his heart, when the foul fiend
rages, eats cow-dung for sallets; swallows the old rat and the ditch-dog;
drinks the green mantle of the standing pool; who is whipt from tithing
to tithing , and [stock-] punish’d and imprison’d; who hath [had] three
suits to his back, six shirts to his body
Horse to ride, and weapon to wear;
But mice and rats, and such small deer,
Have been Tom’s food for seven long year. (SHAKESPEARE, 1997, III, iv,
p. 1325)7

Apresentando-se como o miserável Poor Tom, Edgar se equi-


para a um animal que, por instinto de sobrevivência, alimenta-
-se até do que é fétido e podre, que é capaz de acessos de fúria,
mas que também é subjugado ao ser açoitado no tronco. Poor
Tom reúne em si diferentes imagens relacionadas a animais, e
talvez seja por isso que sua personagem provoque no público
sentimentos e emoções tão conflitantes, como piedade, receio
e até mesmo repulsa.
As imagens de animais que implicam servidão e obediência
também aparecem no ato II, cena iv, quando o Bobo, ao en-
contrar Kent preso no tronco, associa a servidão humana à ser-
vidão animal: “Hah, ha, he wears cruel garters. Horses are tied
by the heads, dogs and bears by th’ neck, monkeys by th’ loins,

7 Eu sou o Pobre Tom; que se alimenta da rã do charco, do sapo, do girino, da lagarti-


xa – a de parede e a d’água; que nos acessos de fúria, quando o coisa-ruim esbraveja,
come bostas de vaca, como se fossem hortaliças de salada; engole rato velho e cão
morto da sarjeta; bebe a escuma verdosa do charco estagnado, e é açoitado de pa-
róquia em paróquia, posto no tronco e preso; ele já teve três fatiotas p’ra seu lombo,
seis camisas p’ra seu corpo./Cavalos para montar e armas para ostentar./Mas ratos
e camundongos/E vermes e pernilongos,/Já faz sete longos anos,/São seu único
manjar. (SHAKESPEARE, 2000, p. 195)
397
and men by th’ legs. When a man [‘s] overlusty at legs, then
he wears wooden nether-stocks” (SHAKESPEARE, 1997, II, iv,
p. 1318)8.
Quanto às imagens de animais que se referem à sexualidade,
cremos não haver exemplo melhor que o discurso de Lear no
ato IV, cena vi, caracterizado por uma demonstração de repul-
sa às mulheres em virtude de seu fracasso no relacionamento
com as próprias filhas. Lear parte da própria natureza, referin-
do-se ao furão bravo e ao cavalo fogoso, para demonstrar que
o apetite sexual feminino é ainda mais intenso e selvagem do
que o instinto daqueles animais. Essas imagens contribuem
para intensificar o sentimento de aversão que se apodera de
Lear:
Let copulation thrive; for Gloucester’s bastard son
Was kinder to his father than my daughters
Got’ tween the lawful sheets.
To’t, luxury, pell-mell, for I lack soldiers.
Behold yond simp’ring dame,
Whose face between her forks presages snow;
That minces virtue, and does shake the head

The fitchew nor the soiled horse goes to’t


With a more riotous appetite.
Down from the waist they are Centaurs,
Though women all above;
But to the girdle do the gods inherit,
Beneath is all the fiends’: there’s hell, there’s darkness,
There is the sulphurous pit, burning, scalding,
Stench, consumption. Fie, fie, fie! pah, pah! (SHAKESPEARE, 1997, IV,
vi, p. 1334)9
8 Ha, ha, ha! ele usa ligas cruéis. Cavalos são presos pela cabeça, cachorros e ur-
sos pelo pescoço, macacos pelos flancos, e os homens pelas pernas. Quando um
homem tem pernas por demais agitadas, ele usa meias de pau. (SHAKESPEARE,
2000, p. 139)
9 Viva a cópula! O filho bastardo/De Gloster foi melhor para seu pai/Que minhas
filhas geradas em lícitos/Lençóis. À luxúria, pois, e à vontade,/Que faltam-me solda-
dos. Olha só/Essa dama de sorriso afetado/Cuja face pressagia, entre os membros/
Inferiores, a pureza da neve;/Que finge virtude e abaixa a cabeça,/Se ouve sequer
o nome do prazer:/Nem furão bravo, ou cavalo fogoso/Avançam com mais ávido
398
Em Rei Lear, “nossa imaginação é saturada de quadros de fe-
rocidade ativa, de lobo, tigre, javali selvagem, abutre, serpente e
monstro marinho” (SPURGEON, 2006, p. 315). Essas imagens
de ferocidade particularmente remetem às características atri-
buídas por Lear às suas filhas. Um exemplo é o diálogo entre
Lear e Regan, em que Lear demonstra imensa decepção em
relação a Goneril, descrevendo metaforicamente a atitude da
filha, que é comparada a um abutre: “O Regan, she hath tied/
Sharp-tooth’d unkindness, like a vulture, here” (SHAKESPEARE,
1997, II, iv, p. 1319)10. Após a fala de Lear, há uma rubrica no texto
indicando que a personagem aponta para o coração. Esse gesto
torna ainda mais vívida a ferocidade que se pretende transmitir.
Lear continua, agora referindo-se à língua de serpente de Go-
neril: “Look’d black upon me, strook me with her tongue,/Most
serpent-like, upon the very heart” (SHAKESPEARE, 1997, II, iv,
p. 1319)11. Novamente, o coração do rei é ferido pela ingratidão
da filha. A referência repetida ao coração ferido por animais sel-
vagens é uma estratégia que contribui para intensificar perante
o público a emoção de um pai que se sente traído pela filha.
No Mercador de Veneza, as imagens recorrentes de animais
são as que se referem ao judeu Shylock como um cão, no sen-
tido mais abjeto possível dessa palavra. Em seu primeiro diá-
logo com o cristão Antonio, Shylock insiste em repetir a todo
instante o quão vil e humilhante é o tratamento que recebe por
parte do cristão que agora vem lhe pedir um empréstimo. Essa
vileza virá a ser relembrada por Shylock na cena do tribunal (ato
IV, cena i) ao afirmar que os cristãos usam os escravos que pos-
apetite./Da cintura p’ra baixo são centauros,/Embora acima, mulheres./Até a cintura
os Deuses governam;/Abaixo, só os demônios imperam./Lá é o inferno, lá a escuri-
dão,/Lá, o fosso sulfuroso, a escaldar,/Fétido, podre – que nojo! Arre! Hi! (SHAKES-
PEARE, 2000, p. 265)
10 Ó Regan, ela cravou-me/A crueldade de aguçadas presas,/Como um abutre,
aqui. (SHAKESPEARE, 2000, p. 149)
11 Olhou hostil para mim,feriu-me lá/No coração sua língua de serpente. (SHAKES-
PEARE, 2000, p. 151)
399
suem como se fossem cães ou mulas. Vejamos como se desen-
volve o discurso de Shylock na negociação inicial com Antonio:
Signior Antonio, many a time and oft
In the Rialto have rated me
About my moneys and my usances.
Still have I borne it with a patient shrug
(For suff’rance is the badge of all our tribe).
You call me misbeliever, cut-throat dog,
And spet upon my Jewish gabardine,
And all for use of that which is mine own.
Well then, it now appears you need my help.
Go to then, you come to me, and you say,

You, that did void your rheum upon my beard,


And foot me as you spurn a stranger cur
Over your threshold; money is your suit.
What should I say to you? Should I not say,
“Hath a dog money? Is it possible
A cur can lend three thousand ducats?” Or
Shall I bend low and in a bondman’s key,
With bated breath and whisp’ring humbleness,
Say this:
“Fair sir, you spet on me on Wednesday last,
You spurn’d me such a day, another time
You call’d me dog; and for these courtesies
I’ll lend you thus much moneys”? (SHAKESPEARE, 1997, I, iii, p. 293)12

A estratégia utilizada para provocar e sustentar a emoção que


a personagem deve transmitir ao público é justamente a ima-
gem recorrente de cão atribuída a Shylock, que faz transbordar
12 Signior Antonio; muita, muita vez/Buscou menosprezar-me no Rialto,/Por meus
dinheiros e minhas usuras./Aturei tudo só com um dar de ombros/(Pois suportar é
a lei da minha tribo)./Chamou-me de descrente, de cão vil,/Cuspiu na minha manta
de judeu,/Apenas porque eu uso do que é meu./Mas agora, parece, quer ajuda:/
Agora chega; vem a mim, e diz:/“Shylock, hoje preciso o seu dinheiro”,/O senhor,
que escarrou na minha barba,/Afastou-me com o pé, como a um cachorro,/Da sua
porta , agora quer dinheiro./Que devo dizer eu? Devo dizer/“Cão tem dinheiro?
Pode um vira-lata/Emprestar a alguém três mil ducados?”/Ou devo rastejar e, em
tom servil,/Quase sem voz, com um sussurro humilde,/Dizer apenas: “Na quarta-
-feira o senhor cuspiu-me,/Humilhou-me tal dia e, certa vez,/Chamou-me cão: por
tantas cortesias/Vou emprestar-lhe todo esse dinheiro”? (SHAKESPEARE, 1990, p.
157-158)
400
o seu ódio por Antonio, redundando em um obsessivo desejo
de obter a libra de carne de seu devedor.
Essa é uma das cinco imagens apenas em toda uma cena de 181 linhas,
e fica claro no modo pelo qual o judeu remói o assunto (5 vezes em
17 linhas) que ela é a expressão de seus mais profundos sentimentos,
e resume simbolicamente em si a verdadeira e única razão para todo
o comportamento de Shylock – um amargo rancor em relação ao tra-
tamento de desprezo que vinha recebendo, e seu desejo de vingança
(SPURGEON, 2006, p. 267).

Passemos agora à análise das estratégias imagísticas respon-


sáveis pela criação de uma determinada atmosfera nas peças
em estudo. Enquanto em Rei Lear percebemos uma atmosfera
de contínuo sofrimento físico e mental, independentemente
do espaço em que as cenas acontecem, no Mercador de Veneza
a atmosfera é definida conforme o local em que as cenas se
desenvolvem. Nas cenas que ocorrem no Rialto, em Veneza,
e que caracterizam o mundo dos negócios, predomina a at-
mosfera de tensão e ameaça. Já nas cenas que se passam em
Belmonte, local da residência de Portia, prevalece a imagística
condutora do clima de romance entre os casais apaixonados, e
a música contribui generosamente para a caracterização dessa
atmosfera suave e romântica entre os pares Bassanio/Portia e
Lorenzo/Jessica.
Como exemplo de atmosfera, a presença constante da música em O
mercador de Veneza não pode passar aqui despercebida. Embora não
se possa dizer que as imagens propriamente a criem, mesmo assim
a atmosfera da peça é muito salientada por elas. Os dois grandes
momentos de emoção e romance são apresentados e acompanhados
por música, e a doçura de seu som ecoa nessas passagens, de modo
que no espaço de quarenta e cinco linhas a vemos mencionada mais
vezes do que no conjunto de qualquer outra peça. (SPURGEON, 2006,
p. 252-253)

No ato III, cena ii, temos o momento em que Bassanio se pre-


para para escolher uma dentre as três arcas à sua disposição.
401
Portia ordena que toquem música. A canção surge como um
meio de conduzir Bassanio à escolha da arca de chumbo, ga-
nhando o amor de Portia. Também no ato V, cena i, há música
e, segundo Kermode (2006, p. 114), Lorenzo estabelece uma
ligação entre o amor à música e a bondade humana, pois “o ho-
mem ‘que não tem música nele’ não merece jamais confiança”
(SPURGEON, 2006, p. 254). Kermode (2006, p.114) completa
que Shylock não gosta de música e, portanto, não é confiável.
Isso é revelado no ato II, cena v, quando Shylock recomenda à
filha Jessica que não permita que os fúteis sons da música pe-
netrem em seu sóbrio lar. Em Shakespeare, “música é ordem,
harmonia nas relações celestiais, tanto quanto nas humanas;
em verdade, a concórdia de toda espécie é um reflexo da or-
dem musical. A harmonia é relacionada com o amor, assim
como a discórdia com o ódio.” (KERMODE, 2006, p. 114)
Embora na tragédia Rei Lear tenhamos também a presen-
ça da música, e aqui nos referimos em especial ao reencontro
entre pai e filha no ato IV, cena vii, “aqui a intenção é a de ela
ser restauradora, sendo seguida pela bem-aventurada cena de
reconhecimento entre Lear e Cordelia”(KERMODE, 2006, p.
284). Nesse caso, a música é utilizada para criar uma atmos-
fera de “perdão e bênção mútua” (KERMODE, 2006, p. 285).
Contudo, o que realmente predomina na peça é a contínua
atmosfera de tortura, enfatizada por intensas imagens de dor
corporal, como, por exemplo, na cena em que Lear manifesta
seu remorso em relação a Cordelia:
O most small fault,
How ugly didst thou in Cordelia show!
Which, like an engine, wrench’d my frame of nature
From the fix’d place; drew from my heart all love,
And added to the gall. O Lear, Lear, Lear!
Beat at this gate, that let thy folly in
[Striking his head.]

402
And thy dear judgment out! (SHAKESPEARE, 1997, I, iv, p. 1312)13

O que confere a verdadeira dimensão do sofrimento de


Lear nessa cena é o fato de que, apesar dele estar se referindo
à angústia mental que está sofrendo, ele o faz através de ima-
gens de crueldade física que flagelam seu corpo.
Na peça temos a consciência o tempo todo da atmosfera de luta, ten-
são e rivalidade, bem como, em certos momentos, de tensão corporal
a ponto da agonia. Isso flui de modo tão natural das circunstâncias do
drama e do sofrimento mental de Lear, que mal nos damos conta de até
que ponto tal sensação é ampliada em nós pela imagem geral “flutuan-
te” – mantida a todo momento diante de nós, principalmente por meio
dos verbos, mas também das metáforas – de um corpo humano em an-
gustiado movimento, puxado, retorcido, surrado, perfurado, aferroado,
chicoteado, desconjuntado, espancado, retalhado, escaldado, torturado
e, finalmente, quebrado na roda.
É difícil abrir uma página qualquer da peça sem ser atingido por tais ima-
gens e verbos, pois toda espécie de movimento corporal, de modo ge-
ral incluindo dor, é usada para exprimir fatos mentais e abstratos, tanto
quanto físicos. (SPURGEON, 2006, p. 317)

As imagens criadoras dessa atmosfera de tortura, segundo


Spurgeon (2006, p. 320), acabam por transmitir a sensação
de que a humanidade está de fato deslizando para o bestial, a
ponto de devorar-se a si mesma como os monstros das pro-
fundezas: “Humanity must perforce prey on itself,/Like mons-
ters of the deep” (SHAKESPEARE, 1997, IV, ii, p. 1331).14
Em se tratando da comédia O mercador de Veneza, ainda que
se verifique a presença da atmosfera de tortura nas cenas que
se passam no Rialto, em Veneza, essa não se manifesta nas
mesmas condições da tragédia Rei Lear. No Mercador, é explíci-
13 Oh! que falta/Tão menor me pareceu tão disforme/Ao mostrar-se em Cordelia!
Falta que/Qual máquina de tortura, num arranco/Deslocou a estrutura de meu cor-
po/De sua posição natural; drenou-me/Do coração todo o amor, mergulhando-o/
Em fel. Ó Lear, Lear, Lear, Lear!/ (Esmurrando a cabeça.)/Bate a esta porta que deixou
entrar/A loucura e escapulir o teu são/Julgamento! (SHAKESPEARE, 2000, p. 95-
97)
14 Vai acontecer/Que os homens passem a entredevorar-se/Uns aos outros, como
os monstros do abismo. (SHAKESPEARE, 2000, p. 237)
403
ta a contínua tortura mental exercida por Shylock em relação a
Antonio e vice-versa. Contudo, a tortura física se revela apenas
como ameaça, pois Shylock não chega a receber a multa de
uma libra da carne de Antonio pelo descumprimento do con-
trato que havia sido celebrado entre ambos. Merece destaque
aqui a cena do tribunal (ato IV, cena i), na qual Antonio exige
que Shylock deixe de ser judeu e se torne cristão. A tortura
mental exercida sobre Shylock fica evidente, pois parece não
haver nada mais humilhante para ele do que a conversão ao
cristianismo. Shylock paga caro pelas constantes ameaças fei-
tas a Antonio quanto ao recebimento de sua libra de carne.
No que diz respeito à ênfase atribuída a determinados temas,
o número de imagens recorrentes é muito significativo tanto no
Mercador de Veneza quanto em Rei Lear. No entanto, para este
estudo selecionamos duas estratégias imagísticas que possibi-
litam uma singular aproximação entre as peças: a primeira re-
fere-se à temática do amor e a segunda, à temática da escolha.
Em relação à temática do amor, podemos afirmar que ambas
as peças se destacam pelas imagens que vinculam o amor ao
comércio. No Mercador de Veneza,
a ação se alterna entre o Rialto, o mundo dos negócios, onde se desen-
volve o obstáculo ao amor de Pórcia e Bassânio no empréstimo com
a libra de carne como garantia, e Belmonte, onde mora Pórcia, onde o
obstáculo a ser vencido são os desejos do pai morto, que só permitem
que ela se case com quem fizer a escolha certa entre três arcas, uma
de ouro, uma de prata, uma de chumbo. Tanto o empréstimo quanto a
escolha das arcas são motivações perfeitas para que Shakespeare use
aqui, mais do que em qualquer outra obra, a imagem do amor como
comércio. (HELIODORA, 2004a, p. 44)

Amor e dinheiro estão intimamente relacionados, como, por


exemplo, quando Bassanio fala de Portia para Antonio, men-
cionando antes de tudo que ela é rica para depois falar de sua
beleza e de suas virtudes: “In Belmont is a lady richly left,/ And
404
she is fair and, fairer than that word,/ Of wondrous virtues”
(SHAKESPEARE, 1997 I, i, p. 290)15.
Pode-se argumentar que por mais que Bassanio ame Porcia, seu prin-
cipal interesse é o dinheiro dela, e é verdade que tal motivo é apresen-
tado de forma proeminente. É bem do temperamento de Shakespe-
are permitir que o argumento oposto seja sombreado desse modo; A.

prioridades de amor e dinheiro, com o último marcando sua presença


até mesmo nas falas de amor. (KERMODE, 2006, p. 112)

Em Rei Lear, “vemos o hábito da pompa e a circunstância da


corte e da hierarquia fazerem um rei perder a noção da reali-
dade nas relações familiares, aceitando a forma pela essência”
(HELIODORA, 2004b, p. 143). O amor aparece como moeda
de troca por bens materiais, ou seja, a entrega às filhas de cada
quinhão do reino depende da prévia manifestação pública de
amor ao rei por parte delas, assim requerida por Lear: “Whi-
ch of you shall we say doth love us most, /That we our largest
bounty may extend/Where nature doth with merit challenge?”
(SHAKESPEARE, 1997, I, i, p. 1304)16. Essa imagem é discutida
por Northrop Frye da seguinte forma:
Qual é a causa do amor, da amizade, da boa-fé, da lealdade ou de qual-
quer virtude essencialmente humana? Nada. Não há um “porquê” para
isso: elas simplesmente existem. Ao criar a situação da prova de amor,
Lear está obcecado pela fórmula do “isto por aquilo”. Eu o amarei, se
você me amar; e se você me amar, receberá uma enorme parte da In-
glaterra. Quando Cordélia diz que o ama conforme seu dever (bond) lhe
impõe, ela evidentemente não está se referindo a nada semelhante à
letra (bond) no sentido de Shylock: essa palavra, nesse contexto, tem o
sentido moderno de “vínculo”, “laço” (bonding). O amor e a lealdade não
têm motivos, expectativas ou causas, e nem podem ser quantificados,
como quer Lear…(FRYE, 2011, p. 139)

15
/É virtuosa. (SHAKESPEARE, 1990, p. 147)
16 Qual de vós sereis capaz/De declarar maior amor por nós,/Para que a nossa libe-
ralidade/Venha ampliar-se aonde a afeição/Confronte-se com o mérito? (SHAKES-
PEARE, 2000, p. 37)
405
Além da utilização de estratégias imagísticas para enfatizar a
temática do amor, é possível também estabelecer uma relação
entre as peças quanto ao uso de imagens que remetem a anti-
gos mitos ou temas de contos de fadas. Tanto no Mercador de
Veneza quanto em Rei Lear, existe um momento em que uma
escolha é feita, entre três arcas ou entre três mulheres, respec-
tivamente. Freud interpreta essas imagens e entende que am-
bas as peças tratam de um mesmo tema humano: a escolha de
um homem entre três mulheres. Afirma o autor:
Duas cenas de Shakespeare, uma de uma comédia e a outra de uma
tragédia, proporcionaram-me ultimamente ocasião para colocar e solu-
cionar um pequeno problema. A primeira destas cenas é a escolha dos
pretendentes entre os três escrínios, em O Mercador de Veneza. A bela e
sábia Portia está comprometida, a pedido do pai, a tomar como marido
apenas aquele de seus pretendentes que escolha o escrínio certo entre
os três que se lhe acham à frente. Os três escrínios são de ouro, prata e
chumbo: o certo é aquele que contém o retrato dela. Dois pretendentes
já partiram sem sucesso; escolheram ouro e prata. Bassanio, o terceiro,
decide-se em favor do chumbo; assim ganha a noiva, cuja afeição já era
sua antes do julgamento da fortuna. (FREUD, 2006, p. 368)
Este mesmo conteúdo, porém, pode ser encontrado noutra cena de
Shakespeare, num de seus dramas mais poderosamente comoventes;
não a escolha de uma noiva desta vez, mas ligada por muitas semelhan-
ças ocultas à escolha do escrínio em O Mercador de Veneza. O velho Rei
Lear resolve dividir seu reino, enquanto ainda se acha vivo, entre as três
filhas, em proporção à quantidade de amor que cada uma delas expres-
sar por ele. As duas mais velhas, Goneril e Regan, exaurem-se em asse-
verações e louvores de seu amor por ele; a terceira, Cordélia, recusa-se
a fazê-lo. Ele deveria ter reconhecido o despretensioso e mudo amor da
terceira filha e o recompensado, mas não o faz. Repudia Cordélia e divi-
de o reino entre as outras duas, para sua própria ruína e ruína geral. Não
é esta, mais uma vez, a cena de uma escolha entre três mulheres, das
quais a mais jovem é a melhor, a mais excelsa? (FREUD, 2006, p.370)

Para efeito de aproximação, podemos equiparar Cordelia à


arca de chumbo, pois, ao permanecer muda, torna-se irreco-
nhecível e indistinguível como esse metal, enquanto que Go-
406
neril e Regan querem brilhar diante de Lear tanto quanto o ouro
e a prata. Vejamos as palavras de Freud em relação a tais ima-
gens:
Decidimos comparar Cordélia, com sua recusa obstinada, ao chumbo.
No breve discurso de Bassanio, enquanto está escolhendo o escrínio, diz
ele do chumbo (sem, de maneira alguma, conduzir a fala para a obser-
vação): ‘Tua palidez comove-me mais que a eloquência.’ Quer dizer: ‘Tua
simplicidade comove-me mais que a natureza espalhafatosa dos outros
dois.’ Ouro e prata são ‘gritantes’; o chumbo é mudo - na verdade, como
Cordélia, que ‘ama e cala’. (FREUD, 2006, p. 372)

Nesse caso, a ênfase à temática da escolha em ambas as pe-


ças é conseguida por meio de dois grupos de imagens contradi-
tórias: ostentação e falsidade (ouro/prata, Goneril/Regan) ver-
sus simplicidade e lealdade (chumbo, Cordelia). Mais uma vez
“a imagem empresta qualidade […] de um modo que nenhuma
descrição, por mais clara e exata que seja, jamais pode fazer”
(SPURGEON, 2006, p. 9).

4 Estratégias de linguagem
No período elisabetano, mais importante que assistir a uma
sequência de ações dramáticas era ouvir o desenrolar dessas
ações. As ações eram determinadas sobretudo pelo texto do
poeta dramático e, por isso, diferentes estratégias de lingua-
gem eram utilizadas na construção do enredo.
Como afirma o diretor de teatro Richard Eyre, citado por Ker-
mode:
A vida das peças está na linguagem, não paralela a ela, ou debaixo dela.
Sentimento e pensamento são liberados no momento da fala. Uma
plateia elisabetana reagiria ao pulsar, ao ritmo, às formas, sons e acima
de tudo significados, dentro da consistente linha de dez sílabas e cinco
acentuações do verso branco. Essa plateia era composta por um público
que ouvia. (EYRE, apud KERMODE, 2006, p. 16)

407
Tendo em vista a relevância da linguagem no drama shakes-
peariano, o presente estudo selecionou algumas dentre as inú-
meras estratégias que evidenciam o valor da palavra e possi-
bilitam significativas aproximações entre as peças objeto de
análise, O mercador de Veneza e Rei Lear. São elas: o uso do ce-
nário verbal, os jogos de palavras e a ironia dramática.
Comecemos pela estratégia do cenário verbal. Ao contrário
dos palcos da Renascença italiana, o teatro elisabetano dispen-
sava o uso de cenários e, por isso, dependia em grande parte do
poder imaginativo da plateia. Paralelamente, cabia às persona-
gens fornecer as indicações espaço-temporais necessárias para
propiciar a construção imaginária do espaço dramático pelo
público. Era por intermédio das falas das personagens que de-
lineava-se o cenário e obtinha-se a atmosfera pretendida para
cada momento da encenação. Conforme Pavis (1999, p. 44),
a técnica do cenário verbal só é possível em virtude de uma convenção
aceita pelo espectador: este tem que imaginar o lugar cênico, a transfor-
mação imediata do lugar a partir do momento em que ele é anunciado.
Em Shakespeare, deste modo, passa-se sem dificuldade de um local
exterior para outro interior, da floresta para o palácio. As cenas enca-
deiam-se sem que seja necessário oferecer algo além de uma simples
indicação espacial ou uma troca de palavras que evoque um lugar dife-
rente (indicações espaço-temporais). (PAVIS, 1999, p. 44)

Segundo Heliodora (2004a, p. 236), “Shakespeare acredita-


va no uso da palavra e da imaginação”. Dessa forma, convencio-
nava-se com a plateia o lugar e o tempo em que a cena acon-
tecia, se ao ar livre ou em um ambiente fechado, se durante o
dia ou à noite. Na comédia O mercador de Veneza, encontra-
mos um exemplo clássico de uso do cenário verbal numa cena
em Belmonte, em que Lorenzo inicia sua fala com a seguinte
expressão: “The moon shines bright. In such a night as this…”
(SHAKESPEARE, 1997, V, i, p. 314)17. Nesse caso, em um teatro
17 A lua brilha. Numa noite assim…(SHAKESPEARE, 1990, p. 241)
408
a céu aberto, cujas peças, via de regra, eram apresentadas em
plena luz do dia, era imprescindível deixar claro ao público que,
para aquela cena, seria necessário imaginar uma noite enluara-
da.
Na tragédia Rei Lear, também é possível constatar o uso da
estratégia do cenário verbal em vários momentos, como nas
cenas da tempestade (ato III, cena ii) e do penhasco em Dover
(ato IV, cena vi). Encontrando-se na charneca, Lear descreve já
no início da cena a terrível tempestade que enfrenta:
Blow, winds, and crack your cheeks! rage , blow!
You cataracts and hurricanoes, spout
Till you have drench’d our steeples, [drown’d] the cocks!
You sulph’rous and thought-executing fires,
Vaunt-couriers of oak-cleaving thunderbolts,
Singe my white head! And thou, all-shaking thunder,
Strike flat the thick rotundity o’ th’ world!
Crack nature’s moulds, all germains spill at once
That makes ingrateful man! (SHAKESPEARE, 1997, III, ii, p. 1322)18

A atmosfera de devastação criada por essa cenário verbal,


segundo Spurgeon (2006, p. 320), remete à fúria dos elemen-
tos da natureza, a qual é totalmente descrita em função do cor-
po humano. É como se houvesse uma personificação desses
fenômenos. A chuva, o vento, os raios e trovões se apresentam
em conflito, selvagens e inquietos, como uma espécie de alu-
são ao estado físico e mental de Lear. A imagem de Lear orde-
nando ao trovão que achate o globo rotundo da terra evoca um
“espetáculo de ação corporal devastadora em escala tão estu-
penda que as emoções que a ocasionam são elevadas a uma

18 Soprai ventos, rachai e arrebentai/As bochechas, esbravejai! bufai!/Furacões,


trombas d’água, esguichai/’Té encharcar os cataventos; e vós/Fogos sulfurosos, ve-
lozes, súbitos/Como os pensamentos, que sois arautos/De estrondos que ao meio
racham os carvalhos,/Minha cabeça branca chamuscai/E tu, trovão, que o mundo
todo abalas/Achata o globo rotundo da terra,/Arrebenta os moldes da Natureza,/
Cospe fora os germes todos que fazem/O homem ingrato! (SHAKESPEARE, 2000,
p. 173-175)
409
intensidade igualmente terrível e vasta” (SPURGEON, 2006, p.
320-321).
Do mesmo modo, Edgar, ao conduzir seu pai cego ao fictí-
cio penhasco em Dover, do qual este último pretende se atirar,
apresenta uma nítida descrição do despenhadeiro inexistente
diante dele:
Come on, sir, here’s the place; stand still.
How fearful
And dizzy ’tis , to cast one’s eyes so low!
The crows and choughs that wing the midway air
Show scarce so gross as beetles. Half way down
Hangs one that gathers sampire, dreadful trade!
Methinks he seems no bigger than his head.
The fishermen that [walk] upon the beach
Appear like mice; and yond tall anchoring bark,
Diminish’d to her cock; her cock, a buoy
Almost too small for sight. The murmuring surge,
That on th’ unnumb’red idle pebble chafes,
Cannot be heard so high. I’ll look no more,
Lest my brain turn, and the deficient sight
Topple down headlong. (SHAKESPEARE, 1997, IV, vi, p. 1333)19

De acordo com Teixeira (2001, p. 120), Dover é o lugar onde


o confronto final entre Edgar e Edmund vai ocorrer, onde Lear
e Cordelia vão se encontrar e morrer, onde Goneril e Regan vão
perder suas vidas, onde o exército francês vai desembarcar.
Segundo o autor, a cena do penhasco em Dover representaria
metaforicamente todos esses temidos eventos:
Most of the crucial events that occur near the end of the play take place
in the surroundings of Dover. However, the place is much more vividly
evoked in the Dover Cliff scene, which in my view is closely related to
those events. […] One thing that is surprising in this scene is the amount
19 Enfim, eis o lugar. Pára. Que tétrico,/Vertiginoso, é olhar lá p’ra tão fundo!/Corvos
e gralhas, voando a meia altura,/Mais parecem besouros; bem no meio/Da escarpa
há alguém colhendo funcho./Tarefa arriscada! Só se vê dele/A cabeça; e os pesca-
dores, na praia,/Parecem ratos;e a nave que ancora/Reduz-se a um escaler, e este
a uma boia/Quase invisível. O estrondo das vagas/Que se quebram lá nos seixos
de praia,/Mal se ouve, de tão fundo; nem mais quero/Olhar; se vertigem a vista me
turva,/Posso tombar. (SHAKESPEARE, 2000, p. 255-257)
410
of words that suggest menace, that suggest that something frightening
is lurking somewhere. (TEIXEIRA, 2001, p. 120)20

A atmosfera de pesadelo criada pela descrição de Edgar fun-


cionaria, então, como uma previsão do panorama final da peça,
preparando a plateia para o desenlace da trama, repleto de vio-
lência e mortes.
Além do cenário verbal, outra característica marcante do dra-
ma shakespeariano é a presença constante de jogos de pala-
vras, constituindo uma interessante estratégia de linguagem.
“O universo de Shakespeare é pleno de metáforas e imagens,
muitas delas construídas a partir de jogos de palavras que pro-
piciam duplos sentidos e trocadilhos espirituosos, ora irônicos,
ora obscenos, até mesmo nas maiores tragédias” (MARTINS,
2009, p. 318). Os trocadilhos são
jogos de palavras parecidas no som ou na forma, mas diferentes no
significado, e que dão margem a equívocos, em função da ambiguida-
de criada. Considerados uma demonstração de domínio verbal, são de
modo geral produzidos intencionalmente por personagens centrais e
de inteligência refinada (Offord, 1990:104), e também pelos sábios e sa-
gazes ‘bobos’ da dramaturgia shakespeariana. (MARTINS, 2004, p. 130)
Os trocadilhos são o tipo mais comum de jogos de palavras, explorando
identidades formais – completas ou parciais – e diferenças semânticas.
A relação de identidade formal pode ser de quatro tipos: homonímia
(pronúncia e grafia idênticas), homofonia (pronúnica idêntica e grafia
diferente), homografia (pronúncia diferente e grafia idêntica) e paroní-
mia (diferença ligeira tanto na pronúncia quanto na grafia). (MARTINS,
2009, p. 318)

20 A maioria dos eventos cruciais que ocorrem perto do fim da peça acontece nos
arredores de Dover. Contudo, o lugar é muito mais vividamente evocado na cena do
penhasco de Dover, a qual, na minha opinião, está intimamente relacionada àqueles
eventos. […] Algo que é surpreendente nessa cena é a quantidade de palavras que
sugerem ameaça, que sugerem que alguma coisa assustadora está à espreita em
algum lugar. (TEIXEIRA, 2001, p. 120, tradução nossa)
411
Em relação à comédia O mercador de Veneza, Kermode
(2006, p. 113) a considera “uma boa ilustração do crescente
poder de Shakespeare para produzir um texto impregnado de
ideias, e com palavras sempre questionadas pela própria lin-
guagem da peça”. Para o autor, o trocadilho ou equívoco básico
da peça ocorre com as palavras gentle e gentile (gentil e gentio).
Como exemplo, podemos citar a cena em que o cristão An-
tonio qualifica o judeu Shylock como gentil, insinuando esse
jogo de palavras, ao dizer: “Hie thee, gentle Jew. The Hebrew
will turn Christian, he grows kind.” (SHAKESPEARE, 1997, I, iii, p.
294)21. De acordo com Martins (2004, p. 145), a palavra gentle
fica com duplo sentido devido à sua homofonia com gentile,
além de criar uma oposição com Jew (judeu). Essa ambiguida-
de sugere então que, para ser um gentil-homem, é preciso ser
gentio ou cristão.
Além disso, o uso da palavra kind (traduzida por Heliodora
como bondoso) cria uma nova ambiguidade na cena, tendo em
vista a pluralidade semântica de seus homônimos. Quando a
personagem Antonio afirma que o hebreu se tornará cristão
por estar ficando kind, essa palavra pode assumir aqui mais de
um significado, sugerindo não apenas generoso ou bondoso,
mas também natural, em oposição a selvagem, como acentua
Kermode (2006, p. 110).
Da mesma forma, na tragédia Rei Lear são comuns os troca-
dilhos e ambiguidades relacionados à palavra kind. Um exem-
plo está na maneira do próprio Lear se referir às filhas Goneril e
Regan como unkind daughters (ato III, cena iv), por estas terem
quebrado a ordem natural das coisas ao trair a confiança de seu
pai. Conforme explica Heliodora:
Ser kind é ser não só bondoso como também fiel às características bá-
sicas da espécie, enquanto ser unkind é não ser bondoso mas também
21 Vai, judeu bondoso;/O hebreu está ficando bom cristão.(SHAKESPEARE, 1990,
p. 160)
412
trair a espécie, de modo que a unkindness de Goneril e Regan será a
expressão de sua desumanidade, de sua transgressão da lei natural que,
para o espectador, regia a estrutura familiar… (HELIODORA, 2004a, p.
181)

Assim também Lear merece o adjetivo de unkind, porque,


errando como pai, deixou de ser fiel à sua espécie. É só quando final-
mente, perdendo a condição de rei, Lear retoma a sua condição de ho-
mem, que ele se torna verdadeiramente kind, compreendendo e retri-
buindo o amor de Cordélia na medida justa. (HELIODORA, 2004a, p.
53)

Por fim, uma estratégia de construção da linguagem muito


utilizada por Shakespeare em suas peças é a ironia dramática,
através da qual,
abrindo mão de comentários explícitos a respeito de determinadas
ações, Shakespeare adota o hábito de oferecer ao espectador, em uma
linguagem compacta mas densa de implicações e evocações, dois pon-
tos de referência diversos, criando assim um contraponto de situações
essencialmente irônicas que permitem ao público fazer suas próprias
avaliações e tirar suas próprias conclusões.
Passam a ser frequentes as cenas contrastantes usadas para tal fim, po-
rém a forma preferida será a do desnível de informação entre o que dois
ou mais personagens sabem ou não, entre o que o público sabe mas
os personagens não, e entre o que um mesmo personagem diz e uma
realidade que ele mesmo ignora. (HELIODORA, 2004a, p. 116)

A ironia dramática é comumente observada quando alguma


personagem aparece disfarçada em cena. No entanto, existem
outras situações em que essa estratégia pode ocorrer. No último
ato do Mercador de Veneza, podemos afirmar que a ironia dra-
mática é utilizada durante todo o diálogo a respeito dos anéis
dados por Bassanio e Gratiano ao doutor em leis e seu auxiliar,
os quais são, respectivamente, Portia e Nerissa travestidas.
Tanto Portia quanto Nerissa fingem surpresa ao constatar a
ausência dos anéis nos dedos de seus noivos e dão início a uma
discussão temperada com muita malícia, que diverte o público,
413
pois este já tem conhecimento da dissimulação. Ao afirmarem
que recuperaram os anéis porque se deitaram com o advoga-
do e seu auxiliar, Portia e Nerissa acrescentam mais uma pitada
de dissimulação antes de revelar a verdade. A fala de Gratiano
demonstra claramente o desnível de informação em que ele e
Bassanio se encontram, caracterizando a ironia dramática des-
sa cena: “Why, this is like the mending of highways/ In summer,
where the ways are fair enough./ What, are we cuckolds ere
we have deserv’d it?” (SHAKESPEARE, 1997, V, i, p.316)22. Além
disso, esse contraponto que apresenta as mulheres como es-
pertas e ousadas e os homens como ingênuos não deixa de ser
uma provocação à austera sociedade da época.
Pavis (1999, p. 215) acrescenta que
muitas vezes a ironia dramática está ligada à situação dramática. Ela é
sentida pelo espectador quando ele percebe elementos da intriga que
ficam ocultos à personagem e impedem-na de agir com conhecimento
de causa. A ironia dramática sempre fica, em graus variados, sensível
ao espectador na medida que os egos das personagens, que parecem
autônomas e livres, são, na verdade, submetidas ao ego central do dra-
maturgo. Neste sentido, a ironia é uma situação dramática por excelên-
cia, já que o espectador sempre tem uma posição de superioridade em
relação ao que é mostrado em cena. (PAVIS, 1999, p. 215)

Em Rei Lear, a estratégia da ironia dramática também pode


ser encontrada nas falas de várias personagens. Gloucester é
uma delas, pois ele não percebe a intriga de Edmund e age de
maneira precipitada em relação a Edgar. Como exemplo da fal-
ta de percepção de Gloucester podemos citar a cena em que
Edmund, aparentemente relutante, apresenta ao pai uma car-
ta que ele mesmo escreveu no intuito de prejudicar seu irmão,
atribuindo a autoria a Edgar. A partir desse momento, o desen-
volvimento de toda a situação dramática ocorre por intermédio
dessa estratégia de construção da linguagem. Edmund finge
22 Saiu pior a emenda que o soneto?/Já somos cornos antes de casar? (SHAKES-
PEARE, 1990, p. 253)
414
querer proteger o irmão perante o pai, mas, na realidade, ma-
nipula a situação de tal forma, inclusive aparentando vulnera-
bilidade, que o pai cai na armadilha e acaba acreditando que
Edgar está tramando contra ele: “O villain, villain! his very opi-
nion in the letter! Abhorred villain! unnatural, detested, brutish
villain! worse than brutish! Go, sirrah, seek him; I’ll apprehend
him. Abominable villain! Where is he?” (SHAKESPEARE, 1997, I,
ii, p. 1307)23. Gloucester age, pois, sem conhecimento de causa.
Cumpre salientar que o recurso da ironia dramática é capaz
de proporcionar à plateia um alto nível de inferência em relação
ao desenrolar da trama, pois permite aos espectadores reco-
nhecer e compreender a motivação de determinadas atitudes
das personagens, preparando-os para as ações posteriores e
estimulando-os a chegar às suas próprias conclusões.

O universo shakespeariano seria demasiado reduzido se im-


pusesse ao seu espectador, leitor ou estudioso, uma determi-
nada leitura de sua obra. Shakespeare nos oferece muito mais.
Ele nos apresenta o mundo e sua multiplicidade de ideias, con-
ceitos e opiniões. Prefere os tons de cinza, como uma forma
de deixar suas peças em aberto para muitas leituras, inclusive
opostas. Ele nos quer conscientes. Ele nos dá liberdade para
perceber, sentir, compreender e, finalmente, escolher entre
esta ou aquela posição. Conforme Greer (1998, p. 43), Shakes-
peare deixa para o público e para os atores no teatro o encargo
de se chegar a conclusões. São eles que devem completar seu
discurso. Nós, leitores e estudiosos, também.
Entretanto, utilizando determinadas estratégias para a com-
posição e dramatização de suas peças, “Shakespeare ensina-
23 Ah! vilão, vilão! É exatamente a opinião na carta! Detestável vilão! Desnaturado,
detestado, vilão brutamontes! Vai, filho, procura-o. Vou mandar prendê-lo. Vilão
abominável. Onde está ele? (SHAKESPEARE, 2000, p. 65)
415
-nos como e o que perceber, assim como nos instrui quanto
a como e o que sentir” (BLOOM, 2000, p.34). Desta forma,
orienta-nos quanto à melhor fruição de sua arte dramática.
Mais importante do que chegarmos a conclusões é compreen-
dermos a dinâmica de sua arte e de seu modo de pensar.
Com base nessas considerações e diante de uma infinida-
de de estratégias passíveis de investigação, o presente estudo
comparativo entre a tragédia Rei Lear e a comédia O mercador
de Veneza elegeu para análise aquelas estratégias que apre-
sentam maior grau de recorrência em ambas as peças. A apre-
ciação comparativa dos efeitos produzidos pela utilização das
mesmas estratégias em gêneros dramáticos distintos resultou
muito superior na proximidade alcançada entre as peças do
que na sua oposição.
No que se refere às estratégias de caracterização de persona-
gens, verificou-se grande aproximação entre as peças. Ambas
as peças apresentam personagens extremamente complexas,
muito além de uma classificação fundada numa concepção
maniqueísta, mistura de gêneros dramáticos, com a tragédia
apresentando elementos característicos das comédias e vice-
-versa, e uso frequente do disfarce impenetrável.
Quanto às estratégias imagísticas utilizadas para intensificar
a emoção que se quer transmitir ao público, observaram-se
algumas aproximações entre as peças, pois em ambas a pro-
vocação e a sustentação da emoção são obtidas por meio de
imagens recorrentes de animais. Contudo, essas imagens são
mais variadas em Lear, aparecendo em diferentes situações e
com diferentes sentidos, ora relacionadas à sexualidade ou ao
instinto de sobrevivência, ora revelando ferocidade ou eviden-
ciando relações de servidão. Já no Mercador de Veneza, as ima-
gens recorrentes de animais preponderantes são aquelas que
se reduzem especificamente a Shylock como um cão.
416
Em relação às estratégias imagísticas responsáveis pela cria-
ção de uma determinada atmosfera, foram constatadas tan-
to aproximações quanto distanciamentos entre as peças. En-
quanto Rei Lear caracteriza-se por uma atmosfera de contínuo
sofrimento físico e mental, independentemente do espaço em
que as cenas acontecem, no Mercador de Veneza a atmosfera é
determinada de acordo com o local onde as cenas se desenvol-
vem. Nas cenas que ocorrem no Rialto, em Veneza, predomina
a atmosfera de tensão e ameaça. Já nas cenas que se passam
em Belmonte, prevalece a imagística condutora do clima de ro-
mance, enfatizada pela música.
Apesar da existência desse constraste entre as peças, a pos-
sibilidade de aproximações não foi eliminada. Pode ser estabe-
lecida uma relação de proximidade entre as cenas de tensão e
ameça do Mercador (que caracterizam o lado sombrio da co-
média shakesperiana) com as cenas de tortura mental em Lear,
pois no Mercador, ao contrário de Lear, a tortura física não chega
a se consumar.
Quanto à música, os contrastes entre as peças se sobrepu-
seram às aproximações. A presença da música é muito mais
evidenciada no Mercador, pois em Lear não há cenas que
caracterizem uma atmosfera de romance, embora ela esteja
presente na cena de reconhecimento entre Lear e Cordelia,
mas com o objetivo de criar uma atmosfera de perdão.
Em se tratando das estratégias imagísticas recorrentes na
ênfase de determinado tema, as imagens selecionadas revela-
ram intensa aproximação entre as peças. Tanto as imagens que
apresentam a temática do amor como comércio como as que
se referem à temática da escolha são recorrentes em ambas as
peças.
No que diz respeito à linguagem, as estratégias analisadas
demonstraram um nível elevado de aproximação entre as pe-
417
ças, pois ambas utilizam o cenário verbal, os jogos de palavras
e a ironia dramática como estratégias eficazes na construção
da linguagem dramática. No entanto, o uso do cenário verbal
é mais evidenciado em Rei Lear, pois é com a construção ima-
ginária do espaço dramático pelo público que se obtém uma
previsão do panorama final da peça.
Embora as estratégias selecionadas tenham sido agrupadas
em três categorias distintas, levando-se em conta suas espe-
cificidades, no decorrer do trabalho esboçaram-se algumas
associações entre estratégias de categorias diversas, as quais
mencionamos a seguir.
A ironia dramática e o uso do disfarce são estratégias que per-
mitem essa associação, apesar de terem sido analisadas neste
estudo em diferentes categorias (estratégias de linguagem e
estratégias de caracterização de personagens, respectivamen-
te). O uso do disfarce pode ser entendido como uma forma de
ironia dramática, pois também se caracteriza pelo desnível de
informação, nesse caso, entre o que o público sabe mas de-
terminadas personagens não. A caracterização de uma perso-
nagem através do disfarce pode gerar ainda uma mudança de
linguagem e estilo, o que não deixa de se constituir em uma
estratégia de linguagem.
É possível também associar os trocadilhos (estratégias de
linguagem) às imagens recorrentes de animais atribuídas às
personagens (estratégias imagísticas), pois muitas dessas ima-
gens são construídas a partir de jogos de palavras. Em ambas as
peças o termo kind

acordo com a ordem natural, em oposição a unkind, que cria a

418
Lembrando a afirmação de Spurgeon (2006, p. 317) sobre a
atmosfera de tortura mental em Rei Lear ser intensificada por
inúmeros verbos que revelam crueldade física e dor corporal,
é perfeitamente viável estabelecermos aqui também uma re-
lação entre as imagens criadoras dessa atmosfera de contínuo
sofrimento e a linguagem utilizada para engendrá-las.
Também o cenário verbal, estratégia de linguagem utilizada
para possibilitar a construção imaginária do espaço dramático
pelo público, inevitavelmente associa-se à estratégia imagística
criadora de uma determinada atmosfera para cada momento
da encenação, pois a imagem pretendida só emerge a partir da
fala das personagens.
Diante dessas ponderações, conclui-se que as estratégias
dramáticas selecionadas, apesar de suas peculiaridades, não se
limitam necessariamente a apenas uma categoria, mas asso-
ciam-se umas às outras e mutuamente se completam. Contu-
do, a divisão em grupos constitui-se em um meio eficaz para
assegurar a compreensão das especificidades de cada estraté-
gia em ambas as peças.
Os inúmeros liames que compõem a tessitura da arte dramá-
tica shakespeariana reverberam a superioridade do intelecto de
seu autor e comprovam a qualidade da obra de Shakespeare.
Tudo em sua arte está perfeitamente ordenado, relacionado,
enredado.
Somos meros aprendizes nesse grande palco que é o mun-
do, apresentado diante de nós. Como disse Caroline Spurgeon
(2006, p. XV), no prefácio de seu livro A imagística de Shakespe-
are, escrito em julho de 1934: “Ninguém pode estudar Shakes-
peare detidamente durante anos sem ficar reduzido à condição
da mais completa humildade”.
Reverência ao Bardo!

419
BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução de
José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
FREUD, Sigmund. O tema dos três escrínios. In:FREUD, Sigmund. O
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SHAKESPEARE, William. A comédia dos erros, e; O mercador de Vene-
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420
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Aíla de Oliveira Gomes. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000.
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TEIXEIRA, Antonio João. “Wherefore to Dover?”: Space and the cons-
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Tese (Doutorado em Literaturas de Língua Inglesa) – Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001.

421
Machado de Assis e Fernando Pessoa: a
melancolia de The raven, de Edgar Allan Poe, em

Natália Rodrigues

Introdução
Percebemos durante as aulas de Literaturas de Língua Ingle-
sa um tópico frequente: os impasses do processo de tradução
literária, no que se refere a priorização da tradução literal ou a
adaptação linguístico-cultural.
Com relação ao poema The Raven, de Edgar Allan Poe, por
exemplo, entre outros desafios do tradutor, destacamos a ne-
cessidade de tradução da expressão “nevermore”, a partir da
qual se estrutura a proposta estética do poema, uma vez que o
tom melancólico do vocabulário e o seu impacto sobre o eu-lí-
rico e o leitor contemplam também a sua proximidade sonora
com o grasnido de um corvo. Em vista disso, o objetivo desse
trabalho é abordar os problemas que envolvem a atividade tra-
dutória, bem como as soluções que o tradutor literário pode
encontrar, na literatura de forma geral e no poema de Poe, em
específico.
Ivo Barroso sintetiza a biografia de Edgar Allan Poe como
“uma vida marcada pela miséria, a desgraça e o alcoolismo;
uma tragédia lamentável, cujo desenlace é um horror aumen-
tado pela trivialidade” (1998, p. 33). Para Perna e Laitano
[...] seja por ter dado voz aos seus sentimentos mais profundos, ou por
ter vivido em uma época que não o compreendeu, produziu contos, po-
emas e ensaios que fascinam leitores e o consagram como um Clássico
da literatura universal. (2009, p. 10).

422
Edgar Allan Poe nasceu em Boston, Massachusetts, em 1809.
O autor iniciou seus estudos em Glasgow e, em 1820, voltou
para os Estados Unidos para frequentar uma escola particular,
onde escreveu seus primeiros versos. Aos dezessete anos, Poe
ingressou na Universidade de Virgínia. Em 1835, o autor se ca-
sou com a sua prima, Virginia Eliza Clemm Poe, que já apresen-
tou os primeiros sintomas de tuberculose em 1842 e, em 1847,
veio a falecer. Em 1844, Poe publicou, depois de outras obras,
seu poema “The Raven”, no qual trabalhou por dois anos.
Por um período de tempo, o autor apresentou o poema em
conferências, enquanto escrevia ensaios críticos e filosóficos,
incluindo “A filosofia da composição”, de 1845, e “O princípio
poético”, de 1850. Embora tenham sido suas obras em prosa
que atraíram maior público, outros de seus poemas de des-
taque são “Annabel Lee”, “For Annie”, “Ulalume” e “The Bells”
(POE, 1999). Edgar Allan Poe faleceu em 1849, depois de cri-
ses de alcoolismo e de um ataque de paralisia facial, de acordo
com Barroso (1998). Em uma primeira leitura, pode-se supor
que “The Raven” inclui aspectos da vida de Poe, porém, segun-
do “A filosofia da composição”, o autor teria seguido critérios
exclusivamente técnicos.
Conforme Barroso (1998), a obra de Poe influenciou a litera-
tura de todo o mundo e foi amplamente traduzida para dife-
rentes idiomas, incluindo as línguas francesa, alemã, espanhola,
italiana e portuguesa. Machado de Assis publicou a sua versão
do poema The Raven em 1883 e Fernando Pessoa, em 1924.
Buscamos realizar uma pesquisa comparativa das versões de
Machado de Assis e de Fernando Pessoa do poema “The Ra-
ven”, de Edgar Allan Poe, por meio da análise, em termos de
conteúdo, da obra original, a fim de delinear as problemáticas
do processo de tradução. Para isso, utilizamos os conceitos
apresentados nas obras “Teorias da tradução”, de José Pinhei-
423
ro de Souza, “Poética da Tradução: Do Sentido à Significância”,
de Mario Laranjeira e “A tradução literária”, de Paulo Henriques
Britto, que contribuem para a análise de modo que, a partir dos
princípios que envolvem o processo de tradução, é possível re-
fletir crítica e objetivamente sobre as escolhas dos autores.
Embora praticada desde a antiguidade, a tradução se cons-
tituiu como área de estudos autônoma a partir da década de
1970 (BRITTO, 2012). Dessa forma, a teorização e as discussões
a respeito desta atividade são relativamente recentes. O teórico
da tradução, segundo Britto, “é um investigador de uma práxis
social específica voltada para um determinado fim: a produção
de textos que possam substituir outros textos.” (BRITTO, 2012,
p. 41). Em vista disso, faz-se relevante, além de buscar contri-
buir com o campo de estudos da tradução, investigar como e se
esses objetivos podem ser alcançados.
A princípio, realizaremos uma análise do poema “The Raven”,
de Edgar Allan Poe. A seguir, delinearemos as teorias envolven-
do o processo de tradução, à luz de alguns conceitos apresen-
tados por Souza, Laranjeira e Britto. Em um terceiro momento,
abordaremos as versões de Machado de Assis e de Fernando
Pessoa da obra, sob uma perspectiva voltada mais especifica-
mente para o conteúdo, ainda que reconheçamos que algumas
questões de estrutura são relevantes para toda a obra e para
este trabalho. Nesse sentido, buscaremos identificar e discutir
aspectos lexicais e rítmicos, assim como perceber de que modo
os trajetos de Assis e de Pessoa refletem em suas escolhas
no processo de tradução. Por fim, retomaremos as principais
questões discutidas no trabalho, a fim de apresentar as consi-
derações finais.

424
O pensamento por trás de The raven
O poema “The Raven” é composto por dezoito estrofes de
seis versos e apresenta um esquema de rimas ABCBBB, sendo
que que a rima B é sempre um som de “or” (Lenore, door, more,
evermore, nevermore, etc.). Na primeira estrofe, é possível per-
ceber o uso da repetição, de modo a criar um efeito sonoro que
enfatiza o bater na porta, nos versos:
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
“This some visitor”, I muttered, ‘tapping at my chamber door–
Only this and nothing more.”1 (POE, 2017, p. 354).

Outro recurso utilizado na obra é a aliteração, com a repetição


de fonemas consonantais, nos versos: “Once upon a midnight
dreary, while I pondered, weak and weary,”2 (POE, 2017, p. 354)
(“weak and weary”), “Presently my soul grew stronger; hesita-
ting then no longer,”3 (POE, 2017, p. 355) (“soul” e “stronger”)
e “Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and
flutter,”4 (POE, 2017, p. 355) (“flirt and flutter”). Poe faz uso de
epístrofe, com a repetição de palavras no final de versos próxi-
mos, como em: “And the only word there spoken was the whis-
pered word, ‘Lenore!’ / This I whispered, and an echo murde-
red back the word, ‘Lenore!’”5 (POE, 2017, p. 355), “Let me see,
then, what thereat is, and this mystery explore– / Let my heart
1 “Ia pensando, quando ouvi à porta / Do meu quarto um soar devagarinho, / E disse
estas palavras tais: É alguém que me bate à porta de mansinho; / Há de ser isso e
nada mais’. (MACHADO, 2017, p. 359). “E já quase adormecia, ouvi o que parecia /
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais. / ‘Uma visita’, eu me disse,
‘está batendo a meus umbrais. / É só isto, e nada mais’ (PESSOA, 2017, p. 366).
2 “Em certo dia, à hora, à hora / Da meia-noite que apavora, / Eu, caindo de sono e
exausto de fadiga,” (MACHADO, 2017, p. 359). “Numa meia-noite agreste, quando
eu lia, lendo e triste,” (PESSOA, 2017, p. 366).
3 “Abro a janela, e de repente, / Vejo tumultuosamente” (MACHADO, 2017, p. 361).
“Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,” (PESSOA, 2017, p. 367).
4 Abro a janela, e de repente, / Vejo tumultuosamente” (MACHADO, 2017, p. 361).
“Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,” (PESSOA, 2017, p. 367).
5 “Só tu, palavra única e dileta, / Lenora, tu, como um suspiro escasso, / Da minha
triste boca sais; / E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;” (MACHADO, 2017,
425
be still a moment and this mystery explore;–”6 (POE, 2017, p.
355) e “Ghastly grim and ancient Raven wandering from the
Nightly shore– / Tell me what thy lordly name is on the Night’s
Plutonian shore!”7 (POE, 2017, p. 355). Além disso, notamos a
presença de cesura, isto é, pausa métrica ou “quebra do ver-
so”, como em: “While I nodded, nearly napping, suddenly there
came a tapping,”8 (POE, 2017, p. 354) e “Eagerly I wished the
morrow;–vainly I had sought to borrow”9 (POE, 2017, p. 354). O
ritmo repetitivo, portanto, contribui para com a sonoridade e
com o efeito hipnótico do poema.
No ensaio “A filosofia da composição”, Poe escreve sobre o
processo de composição de “The Raven”, o qual buscava essen-
cialmente a criação de um texto original.
Meu primeiro objetivo (como de costume) foi a originalidade10. Para
mim, o modo como este fator tem sido negligenciado em versificação
é uma das coisas mais inexplicáveis do mundo. Mesmo reconhecendo
que existe pouca possibilidade de variedade no ritmo, é evidente que as
variações possíveis em métrica e estrofes são absolutamente infinitas
e, no entanto, durante séculos, ninguém jamais fez ou julgou fazer algo
original em matéria de versos. (POE, 2019, p. 67).

p. 361). “E a única palavra dita foi um nome cheio de ais – / Eu o disse, o nome dela,
e o eco disse aos meus ais.” (PESSOA, 2017, p. 367).
6 “Eia, fora o temor, eia, vejamos / A explicação do caso misterioso / Dessas duas
pancadas tais. / Devolvamos a paz ao coração medroso,” (MACHADO, 2017, p.
361). “Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais’ / Meu coração se distraía
pesquisando estes sinais.” (PESSOA, 2017, p. 367).
7 “Vens, embora a cabeça nua tragas, / Sem topete, não és ave medrosa / Dize os
teus nomes senhorais / Como te chamas tu na grande noite umbrosa?” (MACHADO,
2017, p. 362). “Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! / Dize-me qual o teu
nome lá nas trevas infernais.” (PESSOA, 2017, p. 367).
8 “Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, / Ao pé de muita lauda antiga, / De uma
velha doutrina, agora morta / Ia pensando, quando ouvi à porta” (MACHADO, 2017,
p. 359). “E já quase adormecia, ouvi o que parecia” (PESSOA, 2017, p. 366).
9 “Eu, ansioso pelo sol, buscava / Sacar daqueles livros que estudava” (MACHADO,
2017, p. 360). “Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada / P’ra
esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –” (PESSOA, 2017, p. 366).
10 A ideia de “originalidade”, segundo Barros (2009), era um dos princípios
fundamentais do Romantismo.
426
Tendo em vista, pois, a originalidade, Poe começou por re-
fletir sobre um efeito específico de sua obra sobre seus leito-
res. A sua preocupação inicial se dirigia à extensão. Para o autor,
o grau de duração do poema é um aspecto importante para a
produção do efeito desejado.
Se uma obra literária é longa demais para ser lida numa única senta-
da, somos obrigados a abrir mão do efeito, cuja importância é imensa,
causado pela unidade de impressão– pois se duas sessões de leitura se
fizerem necessárias, os assuntos do mundo intervirão, e a impressão de
totalidade será destruída por completo. (POE, 2019, p. 60).

Poe determinou então que a impressão, isto é, o efeito a ser


obtido deveria envolver a “Beleza”. O tom de sua mais eleva-
da manifestação é, segundo o autor, o de tristeza. “A Beleza
de qualquer tipo, quando desenvolvida ao máximo, invariavel-
mente excita a alma sensível a ponto de levá-la às lágrimas. A
melancolia, portanto, é o mais legítimo de todos os tons poéti-
cos.” (POE, 2019, p. 63). O autor continua:
De todos os temas melancólicos, qual, segundo a compreensão univer-
sal da humanidade, é o mais melancólico?”. A morte, foi a resposta ób-
via. “E quando”, insisti, “é mais poético esse tema, o mais melancólico de
todos?” Com base no que já expliquei de modo detalhado, a resposta
a essa pergunta é igualmente óbvia: “Quando está mais estreitamente
associado à Beleza: assim, a morte de uma mulher bela é, sem sombra
de dúvida, o tema mais poético do mundo – e também não pode haver
dúvida de que os lábios mais adequados para discorrer sobre esse tema
são os do amante que sofreu a perda. (POE, 2019, p. 65).

Uma vez estabelecido o caráter melancólico da obra, Poe se


preocupou com “um eixo em torno do qual toda a estrutura
pudesse girar” (POE, 2019, p. 63). De modo a definir um “efeito
artístico” para a construção do poema, o autor optou pelo uso
do refrão.
Decidi diversificar, e desse modo acentuar muitíssimo, o efeito, apegan-
do-me de modo geral à monotonia do som, porém variando constan-
427
temente a do pensamento: isto é, decidi produzir uma sequência de
efeitos novos, valendo-me da variação da aplicação do refrão – ao mes-
mo tempo que o refrão em si permanecesse, de modo geral, invariável.
(POE, 2019, p. 63).

Poe concluiu que, para que a aplicação fosse repetidamente


variada, o melhor refrão se constituiria por uma única palavra. A
consideração seguinte dizia respeito ao caráter da palavra. Esta
deveria conter o som do “o longo como a vogal mais sonora,
associada ao r, a consoante mais produzível” (POE, 2019, p.
64), além de ressaltar o tom melancólico predeterminado pelo
autor, o qual se deparou com a palavra “nevermore”. A fim de
encontrar uma razão plausível para a sua repetição contínua,
Poe determinou que a palavra deveria ser pronunciada por uma
criatura irracional que fosse capaz de falar – o corvo.
O autor combinou, portanto, as ideias de um homem que
lamenta a morte da mulher e um corvo repetindo a palavra
“nevermore”. De modo a alcançar o efeito da “variação da apli-
cação”, o corvo deveria, segundo Poe, proferir a palavra em
resposta a perguntas (cada vez mais desesperadas) feitas pelo
amante.
[...] perguntas cujas respostas ele guarda apaixonadamente no coração
– fá-las movido em parte pela superstição, em parte por aquela espé-
cie de desespero que encontra prazer em torturar-se – fá-las não por
acreditar realmente no caráter profético ou demoníaco da ave (a qual, a
razão lhe assegura, apenas repete uma lição decorada), mas por experi-
mentar um prazer mórbido ao formular perguntas que serão respondi-
das, tal como ele já espera, com nevermore, a mais deliciosa, por ser mais
intolerável, das dores. (POE, 2019, p. 66).

Dessa forma, o autor começou pelo fim – o clímax, isto é, a


pergunta final – e escreveu a estrofe:
“Prophet!”, said I, “thing of evil! – prophet still, if bird or devil!
By that Haven that bends above us – by that God we both adore –
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore –
428
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore”
Quoth the Raven, “Nevermore.”11 (POE, 2019, p. 66).

A partir disso, Poe foi capaz de primeiramente definir quais


seriam as perguntas anteriores e então determinar ritmo, mé-
trica, extensão e disposição geral da estrofe. De acordo com o
autor, “o que há de original em ‘O Corvo’ é o modo como [os
versos] são combinados na estrofe; nada sequer vagamente
semelhante foi jamais tentado” (POE, 2019, p. 68). Ademais,
Poe ressalta que o efeito dessa originalidade envolve outros
efeitos, incluindo aspectos de rima e de aliteração.
Enfatizamos novamente que o autor se interessou por ques-
tões de construção da atmosfera da diegese do texto. Den-
tre elas destacamos o “toque fantástico” dado à aparência do
corvo, que logo é substituída por uma profunda seriedade, no
verso: “But the Raven, sitting lonely on the placid bust, spoke
only”12 (POE, 2019, p. 71). A mudança radical de perspectiva visa,
segundo Poe, induzir uma experiência semelhante no leitor.
Como visto anteriormente, o eu-lírico questiona o corvo so-
bre um possível reencontro com Lenore depois da vida, pergun-
ta que a ave responde, mais uma vez, “nevermore”. Em termos
narrativos, o poema chega ao fim. Até esse momento, todos
os acontecimentos estão, conforme Poe, dentro dos limites do
explicável. O autor, então, acrescenta as duas estrofes finais, na
qual se dá a primeira expressão metafórica do poema: “from

11 “Profeta, ou o que quer que sejas! / Ave ou demônio que negrejas! / Profeta
sempre, escuta, atende, escuta, atende! / Por esse céu que além se estende, / Pelo
Deus que ambos adoramos, fala, / Dize a esta alma se é dado inda escutá-la / No
Éden celeste a virgem que ela chora / Nestes retiros sepulcrais, / Essa que ora nos
céus anjos chamam Lenora!” (MACHADO, 2017, p. 364). “‘Profeta’, disse eu, ‘profeta
– ou demônio ou ave preta! / Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais. /
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida / Verá essa hoje perdida entre
hostes celestiais, / Disse o corvo, ‘Nunca mais’.” (PESSOA, 2017, p. 369).
12 “No entanto, o corvo solitário / Não teve outro vocabulário,” (MACHADO, 2017,
p. 362). “Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,” (PESSOA, 2017, p.
368).
429
out my heart”, no verso “Take thy beak from out my heart, and
take thy form from off my door!”13 (POE, 2017, p. 357).
Elas [as palavras], juntamente com a resposta, nevermore, sugerem
à mente que procure uma moral em tudo que foi narrado até então.
O leitor começa agora a encarar o Corvo como um símbolo [...]. (POE,
2019, p. 73).

Finalmente, com o verso final da estrofe final, “And my soul


from out that shadow that lies floating on the floor / Shall be
lifted – nevermore.”14 (POE, 2019, p. 73), a simbologia envol-
vendo o corvo e a “Lembrança Dolorosa e Infindável”, de acor-
do com Poe, se faz mais evidente.

Alguns apontamentos sobre o processo de


tradução
Souza (1998) aborda as três espécies de tradução: intralin-
gual, interlingual e intersemiótica. De acordo com o autor, a
tradução intralingual se define como “interpretação dos signos
verbais por meio de outros signos da mesma língua” (SOUZA
apud JAKOBSON, 1998, p. 53). Já a tradução interlingual pode
ser definida como “interpretação dos signos verbais por meio
de alguma outra língua” (SOUZA apud JAKOBSON, 1998, p. 53).
Por fim, a tradução intersemiótica se caracteriza como “inter-
pretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos
não verbais” (JAKOBSON apud SOUZA, 1998, p. 53).
Diante disso, a análise das versões de Machado de Assis e de
Fernando Pessoa do poema “The Raven”, de Edgar Allan Poe,

13 “Tira-me ao peito essas fatais / Garras que abrindo vão a minha dor já crua.”
(MACHADO, 2017, p. 365). “Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
(PESSOA, 2017, p. 369).
14 “No chão espraia a triste sombra; e, fora / Daquelas linhas funerais / Que flutuam
no chão, a minha alma que chora / Não sai mais, nunca, nunca mais!” (MACHADO,
2017, p. 365). “E a minh’alma dessa sombra que no chão há mais e mais, / Libertar-
se-á... nunca mais!”. (PESSOA, 2017, p. 369).
430
enquadram-se na tradução interlingual, visto que consiste na
interpretação da língua inglesa para a língua portuguesa.
Em todos esses processos de tradução – intersemiótica, intralingual,
interlingual – o que se busca é a equivalência entre a mensagem I e a
mensagem II, não a identidade absoluta, que, por definição, é impossí-
vel. (LARANJEIRA, 2003, p. 18).

Em outras palavras, LARANJEIRA (2003) destaca a dificul-


dade em preservar o caráter do texto original, de modo a ser
necessário encontrar “equivalências”. Especificamente no que
se refere à tradução de poemas, o autor aponta que o tradutor
não deve abordar este da mesma maneira que outros textos.
Isto é, há outras características a serem consideradas, que mui-
tas vezes apresentam importância igual ou maior que o aspecto
semântico. Britto escreve:
A meu ver, um poema é um texto literário que pode ser traduzido como
qualquer outro texto literário. A diferença é que, quando se trata de um
poema, em princípio toda e qualquer característica do texto – o signi-
ficado das palavras, a divisão em versos, o agrupamento de versos em
estrofes, o número de sílabas por verso, a distribuição de acentos em
cada verso, as vogais, as consoantes, as rimas, as aliterações, a aparên-
cia visual das palavras no papel etc. – pode ser de importância crucial.
(BRITTO, 2012, p. 119).

A tradução de poema envolve, portanto, identificar e repro-


duzir os elementos que parecem mais relevantes ao tradutor.
Em A “filosofia da composição”, Poe ressalta:
Meu objetivo é deixar claro que nenhuma etapa de sua composição
pode ser atribuída ao acaso nem à intuição – que o trabalho foi sendo
levado a cabo, passo a passo, até chegar ao fim, com a precisão e a se-
quencialidade de um problema matemático. (POE, 2019, p. 60).

Isto é, como visto anteriormente, a poeticidade e o efeito de


literalidade do poema “The Raven” dependem muito de aspec-
tos técnicos.
431
The raven por Machado de Assis e Fernando
Pessoa
A tradução de Fernando Pessoa de “The Raven” é compos-
ta por dezoito estrofes de seis versos e um esquema de rimas
ABCBBB, que mantém aproximadamente o mesmo ritmo que
a versão original. Machado de Assis, em contrapartida, opta
por dezoito estrofes de dez versos, além de substituir as rimas
internas por rimas externas, com um esquema AABBCCDE-
DE. Esta disposição altera significativamente o ritmo da obra
de Poe. Segundo BRITTO (2019, p. 43), “esta é precisamente
a crítica geral que podemos levantar ao formato escolhido por
Machado: sua tradução ignora características formais que são
importantes para o efeito do poema sobre o leitor”.
Conforme visto anteriormente, Poe faz uso da repetição para
enfatizar o bater na porta, o qual Machado e Pessoa traduzem
para: “Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, / Ao pé da muita
lauda antiga, / De uma velha doutrina, agora morta, / Ia pen-
sando, quando ouvi à porta / Do meu quarto um soar devaga-
rinho” (MACHADO, 2017, p. 359) e “E já quase adormecia, ouvi
o que parecia / O som de alguém que batia levemente a meus
umbrais.” (PESSOA, 2017, p. 366).
De acordo com Britto:
no poema, tudo, em princípio, pode ser significativo; cabe ao tradutor
determinar, para cada poema, quais são os elementos mais relevantes,
que portanto devem necessariamente ser recriados na tradução, e quais
são menos importantes e podem ser sacrificados – pois, como já vimos,
todo ato de tradução implica perdas. (BRITTO, 2012, p. 120).

É possível perceber, pois, que perdemos esse efeito onoma-


topeico nas duas traduções, bem como a sonoridade causada
pela repetição de palavras que rimam com “Lenore”, incluindo
“nevermore”.

432
Pessoa se preocupa em reproduzir o uso de recursos alite-
rativos, presente, entre outros, nos versos: “Numa meia noite
agreste, quando eu lia, lento e triste”, “Como, a tremer frio e
frouxo, cada reposteiro roxo” (PESSOA, 2017, p. 366) e “A treva
enorme fitando, fiquei perdido receando,” (PESSOA, 2017, p.
367). Além disso, o autor faz uso de epístrofe, isto é, repetição
de palavras no final de versos próximos, como nos versos: “E a
única palavra dita foi um nome cheio de ais –” / Eu o disse, o
nome dela, e o eco disse aos meus ais–”, / “Eu o disse, o nome
dela, e o eco disse aos meus ais.”, “Vamos ver o que está nela, e
o que são estes sinais. / Meu coração de distraía pesquisando
estes sinais.” E “Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!”
/ Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.” (PESSOA,
2017, p. 367).
Por fim, notamos a presença de cesura em ambas as versões,
entre outros, nos versos “Em certo dia, à hora, à hora” (MACHA-
DO, 2017, p. 359) e “Falo: Imploro de vós,– ou senhor ou se-
nhora,” (MACHADO, 2017, p. 361) e “Numa meia-noite agreste,
quando eu lia, lento e triste,” e “E o fogo, morrendo negro, urdia
sombras desiguais.” (PESSOA, 2017, p. 366).
Assim como no texto original em Língua Inglesa, tanto na
tradução de Machado e quanto na de Pessoa, a primeira men-
ção da figura da mulher amada se dá na segunda estrofe, com
os versos: “Sacar daqueles livros que estudava / Repouso (em
vão!) à dor esmagadora / Destas saudades imortais / Pela que
ora nos céus anjos chamam Lenora. / E que ninguém chamará
mais.” (ASSIS, 2017, p. 360) e “P’ra esquecer (em vão!) a amada,
hoje entre hostes celestiais – / Essa cujo nome sabem as hos-
tes celestiais, / Mas sem nome aqui jamais!” (PESSOA, 2017,
p. 366). Em ambos os casos, é possível entender que a mulher
está morta. Da mesma forma, as duas versões reproduzem o

433
sentimento de esperança do narrador quanto ao retorno de Le-
nora:
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço; (MACHADO, 2017, p.
361).
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais. (PESSOA, 2017, p.
367).

O eu-lírico contempla a ausência física de Lenore, a qual Ma-


chado e Pessoa traduzem, respectivamente, para: “Com a ca-
beça no macio encosto / Onde os raios da lâmpada caíam, /
Onde as tranças angelicais / De outra cabeça outrora ali se des-
parziam, / E agora não se esparzem mais.” (MACHADO, 2017,
p. 363) e “No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
/ “Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais, / Re-
clinar-se-á nunca mais!” (PESSOA, 2017, p. 368).
E eu exclamei então: “Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora”.
E o corvo disse: “Nunca mais”. (MACHADO, 2017, p. 364).

“Maldito!”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te


O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”. (PESSOA, 2017, p. 369).

434
Os versos mencionam temas espirituais, assim como o dese-
jo do eu-lírico de esquecer Lenore.
Ao mesmo tempo, as duas versões retratam a aspiração do
eu-lírico em encontrar Lenore depois da vida, que Machado e
Pessoa traduzem para: “Dize a esta alma se é dado inda escu-
tá-la / No Éden celeste a virgem que ela chora / Nestes reti-
ros sepulcrais, / Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!’”
(MACHADO, 2017, p. 364) e “Dize a esta alma entristecida se
no Éden de outra vida / Verá essa hoje perdida entre hostes
celestiais, / Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!’” / Essa
cujo nome sabem as hostes celestiais!” (PESSOA, 2017, p. 369)
e para qual o corvo responde “Nunca mais”.
Em termos de narração, as duas traduções são capazes de
exprimir a dor e o desespero do eu-lírico. A simbologia do corvo
é retratada nas duas estrofes finais, com os versos, no poema
original: “Take thy beak from out my heart, and take thy form
from off my door!” (POE, 2017, p. 357) e “And my soul from out
that shadow that lies floating on the floor / Shall be lifted–ne-
vermore!” (POE, 2017, p. 357), os quais Machado e Pessoa tra-
duzem para “Tira-me ao peito essas fatais / Garras que abrindo
vão a minha dor já crua.” (MACHADO, 2017, p. 365), “Que flu-
tuam no chão, a minha alma que chora / Não sai mais, nunca,
nunca mais!” (MACHADO, 2017, p. 365), “Tira o vulto de meu
peito e a sombra de meus umbrais!” (PESSOA, 2017, p. 369)
e “E a minh’alma dessa sombra que no chão há mais e mais, /
Libertar-se-á... nunca mais!” (PESSOA, 2017, p. 369).
Britto (2019) ressalta o fato de que Pessoa não menciona, em
sua tradução, o nome de Lenore, no que se refere aos versos:
“From my books surcease of sorrow –sorrow for the lost Lenore
– / For the rare and radiant maiden whom the angels name Le-
nore – / Nameless here for evermore.” (POE, 2017, p. 354), que
Pessoa traduz para “P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre
435
hostes celestiais – / Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
/ Mas sem nome aqui jamais!” (PESSOA, 2017, p. 366). O tex-
to original conteria, pois, uma pequena contradição: “o eu lírico
revela o nome da amada, ‘Lenore’, dizendo que os anjos a cha-
mam de ‘Lenore’, mas logo em seguida afirma que no mundo
dos vivos ela permanecerá para sempre sem nome”. (BRITTO,
2019, p. 52). Para o autor, esta escolha de Pessoa acentua ainda
mais os padrões românticos de poeticidade utilizados por Poe:
“[...] se a morte de uma bela mulher é o tema mais poético que
existe, a morte de uma bela mulher cujo nome não pode mais
sequer ser pronunciado neste mundo caído é algo ainda mais
poético.” (BRITTO, 2019, p. 53).
Finalmente, destacamos a expressão “nevermore”, em que
“The Raven” se alicerça e a qual Machado e Pessoa traduzem
para “nunca mais”. Segundo Britto (2019, p. 35), “[...] a sonorida-
de da expressão inglesa se aproxima ao grasnido de um corvo
bem mais do que sua tradução para o português ou qualquer
outra língua neolatina”. Nas duas traduções, pois, perdemos
parte do efeito causado pela proximidade sonora entre “never-
more” e o grasnido de um corvo, que contribui com o tom me-
lancólico e o impacto sobre o eu-lírico e o leitor.
Machado e Pessoa traduzem o verso “Soon I heard again a
tapping somewhat louder than before.” (POE, 2017, p. 355) para
“Logo depois outra pancada / Soa um pouco mais forte; eu,
voltando-me a ela:” (MACHADO, 2017, p. 361) e “Não tardou
que ouvisse novo som batendo mais e mais.” (PESSOA, 2017,
p. 367). Notamos que uma “pancada” tem um impacto maior
que um “bater”, que se aproxima mais do significado de “ta-
pping”. No verso “To the fowl whose fiery eyes now burned into
my bosom’s core;” (POE, 2017, p. 356), Poe faz alusão a “quei-
mar”, a qual apenas Machado mantém: “Sentia o olhar que me

436
abrasava.” (MACHADO, 2017, p. 363); “À ave que na minha alma
cravava os olhos fatais,” (PESSOA, 2017, p. 368).
Destacamos ainda a tradução de Pessoa de “dreary” e “pon-
dered, weak and weary” para “agreste” e “lia, lento e triste”. Em
relação à tradução de poema, Britto (2012) ressalta a dificulda-
de em reproduzir todos os elementos da obra original. Cabe ao
tradutor, portanto, “sacrificar” um ou outro, de modo a alcançar
um equilíbrio. Em vista disso, “agreste” e “lia, lento e triste” não
apresentam o mesmo significado que “dreary” e “pondered,
weak and weary” precisamente, mas funcionam como corres-
pondentes, ao mesmo tempo em que preservam aspectos de
ritmo. Mafra e Schrull (2012, p. 12), ao discorrer sobre o texto de
Pessoa, apontam que “segundo o próprio autor, o objetivo des-
sa tradução era preservar ao máximo os componentes rítmicos
presentes no original”. Percebemos que Machado, no entanto,
não tem a mesma preocupação. “Em The Raven, por exemplo,
Machado desvia-se de modo sistemático do texto fonte, o que
torna difícil aceitar que sua postura não teria sido proposital.”
(MAFRA; SCHRULL, 2011, p. 12). Dessa forma, notamos que os
“desvios” do autor em relação ao poema original envolvem mé-
todo e objetivo.
Britto (2019, p. 47) escreve:
“O Corvo” de Machado de Assis é um poema bem-acabado, dentro dos
padrões parnasianos que pautam toda a poesia do autor; em termos
semânticos, é uma tradução bem fiel ao original; mas as opções formais
do tradutor fazem dele um poema muito diferente de “The Raven”, a
ponto de não poder ser considerado uma boa tradução, tal como en-
tendemos a expressão.

Para o autor, uma “boa tradução” de um poema pode ser


considerada “o mesmo poema que o original, só que escrito
em outro idioma” (BRITTO, 2019, p. 47). Com base em Britto
(2019), é possível considerar que a leitura do poema original e
da versão de Machado proporcionam experiências diferentes. A
437
tradução de Machado, de acordo com Mafra e Schrull (2011), se
deu a partir da versão de Charles Baudelaire (1856), em língua
francesa.
Pois é possível afirmar-se, sem sombra de dúvida, que a tradução do
escritor brasileiro é muito mais da versão francesa de Baudelaire do que
do poema original. Isso não se depende de similaridades vagas, mas [...]
das mesmas adições, das mesmas omissões e das mesmas palavras
nos mesmíssimos lugares das traduções de um e do outro. (MAFRA;
SCHRULL, 2011, p. 11).

É possível compreender, conforme Mafra e Schrull (2011),


que a postura de Machado ao traduzir The Raven envolve uma
adaptação da obra a um novo contexto, a fim de contribuir com
a formação de uma identidade literária nacional tendo como
prerrogativa uma concepção de recriação. “Crítico, Machado
debatia questões que ainda hoje geram calorosas discussões na
área tradutológica: a originalidade da tradução, apostando no
tradutor como autor e creditando ao texto traduzido autentici-
dade e autonomia face ao original.” (MAFRA; SCHRULL, 2011, p.
18). Em vista disso, percebemos a atividade tradutória sob uma
perspectiva de ato interpretativo. Em contrapartida, a tradução
de Pessoa parece tender para uma ideia de tradução atrelada à
fidelidade e à preservação do original.

É possível pensar sobre as traduções de Machado e de Pes-


soa do poema “The Raven” sob um olhar qualitativo. A esse res-
peito, Laranjeira ressalta: “[...] o que pretendemos colocar é que
o simples fato de existirem dezenas, centenas de traduções de
um mesmo poema não implica, de per si, detrimento qualita-
tivo.” (LARANJEIRA, 2003, p. 39). Em outras palavras, não cabe
definir se há uma tradução melhor do que a outra, mas sim

438
refletir acerca da unicidade do poema e perceber a tradução
como a escrita de uma das leituras do texto.
Britto escreve que “ao traduzir um poema composto em ver-
sos cuidadosamente medidos e rimados, o tradutor terá de pro-
duzir um texto poético tão regular quanto o original” (BRITTO,
2012, p. 54). Nessa concepção, melhor se encaixa a tradução de
Fernando Pessoa, visto que preserva, na medida do possível, os
aspectos formais do poema. Machado de Assis, por outro lado,
não tem a mesma preocupação. De acordo com Laranjeira:
[...] como é a poesia essencialmente aberta para uma infinidade de lei-
turas, a reescrita dessa infinitude de leituras dá ao poema uma gama
maior de possibilidades de realizações textuais pela via da tradução.
(LARANJEIRA, 2003, p. 38).

Em contrapartida, é possível perceber que a tradução de Ma-


chado busca contribuir com a construção de uma identidade
literária nacional, isto é, apresenta outra leitura do texto. “O
resultado é conhecido: The Raven e O Corvo, textos distintos,
cada um com a sua identidade própria, sem diminuir a aceita-
ção do público pela essência conceitual e poética da obra de
Poe.” (MAFRA; SCHRULL, 2011, p. 12).
Nessa perspectiva, consideramos que as duas versões evi-
denciam, além de concepções de tradução, características, mé-
todos e aspirações diferentes. Cada tradução é, como colocado
por Laranjeira, tão única quanto o poema original.

439
ASSIS, Machado de. O Corvo. In: Edgar Allan Poe: Medo Clássico. Tra-
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MAFRA, Adriano; SCHRULL, Munique. Análise de quatro traduções
do poema The Raven de Edgar Allan Poe. Translatio, n. 2. p. 10-10,
2011.
PERNA, Cristina; LAITANO, Paloma. O clássico Edgar Allan Poe. Le-
tras de hoje, v. 44, n. 2, 2009.
PESSOA, Fernando. O Corvo. In: POE, Edgar Allan Poe: Medo Clássi-
co. Tradução de Marcia Heloisa. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017.
POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: Edgar Allan Poe: O
Corvo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Globo Livros, 1999.
POE, Edgar Allan. The Raven. In: Edgar Allan Poe: Medo Clássico. Tra-
dução de Marcia Heloisa. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017.
SOUZA, José Pinheiro de. Teorias da tradução: uma visão integrada.
1998.

440
ANEXO A – “THE RAVEN”, DE EDGAR ALLAN POE

The Raven
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and
weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore—
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tap-
ping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door—
“’Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door—
Only this and nothing more.”

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December;


And each separate dying ember wrought its ghost upon the
floor.
Eagerly I wished the morrow;—vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow—sorrow for the lost Le-
nore—
For the rare and radiant maiden whom the angels name Le-
nore—
Nameless here for evermore.

And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain


Thrilled me—filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating,
“’Tis some visitor entreating entrance at my chamber door—
Some late visitor entreating entrance at my chamber door;—
This it is and nothing more.”

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,


“Sir,” said I, “or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
441
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber
door,
That I scarce was sure I heard you”—here I opened wide the
door;—
Darkness there and nothing more.

Deep into that darkness peering, long I stood there wonder-


ing, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream
before;
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word,
“Lenore?”
This I whispered, and an echo murmured back the word, “Le-
nore!”—
Merely this and nothing more.

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,


Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
“Surely,” said I, “surely that is something at my window lattice;
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore—
Let my heart be still a moment and this mystery explore;—
‘Tis the wind and nothing more!”

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and
flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or
stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber
door—
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door—
442
Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,


By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
“Though thy crest be shorn and shaven, thou,” I said, “art sure
no craven,
Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly
shore—
Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian
shore!”
Quoth the Raven “Nevermore.”

Much I marveled this ungainly fowl to hear discourse so


plainly,
Though its answer little meaning—little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blest with seeing bird above his chamber door—
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber
door,
With such name as “Nevermore.”

But the Raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered—not a feather then he flut-
tered—
Till I scarcely more than muttered “Other friends have flown
before—
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown
before.”
Then the bird said “Nevermore.”

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,


443
“Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store
Caught from some unhappy master whom unmerciful Disas-
ter
Followed fast and followed faster till his songs one burden
bore—
Till the dirges of his Hope that melancholy burden bore
Of ‘Never—nevermore.’”

But the Raven still beguiling my sad fancy into smiling,


Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust
and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore—
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt and ominous bird of
yore
Meant in croaking “Nevermore.”

This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing


To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom’s
core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion’s velvet lining that the lamp-light gloated o’er,
But whose velvet violet lining with the lamp-light gloating
o’er,
She shall press, ah, nevermore!

Then, methought, the air grew denser, perfumed from an un-


seen censer
Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted
floor.
“Wretch,” I cried, “thy God hath lent thee—by these angels he
hath sent thee
444
Respite—respite and nepenthe, from thy memories of Le-
nore;
Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Le-
nore!”
Quoth the Raven “Nevermore.”

“Prophet!” said I, “thing of evil!—prophet still, if bird or devil!—


Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here
ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted—
On this home by Horror haunted—tell me truly, I implore—
Is there—is there balm in Gilead?—tell me—tell me, I implore!”
Quoth the Raven “Nevermore.”

“Prophet!” said I, “thing of evil—prophet still, if bird or devil!


By that Heaven that bends above us—by that God we both
adore—
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Le-
nore—
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Le-
nore.”
Quoth the Raven “Nevermore.”

“Be that word our sign in parting, bird or fiend!” I shrieked,


upstarting—
“Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian
shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spo-
ken!
Leave my loneliness unbroken!—quit the bust above my door!

445
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off
my door!”
Quoth the Raven “Nevermore.”

And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting


On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dream-
ing,
And the lamp-light o’er him streaming throws his shadow on
the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the
floor
Shall be lifted—nevermore!15

15 Disponível em: <https://luradoslivros.wordpress.com/2007/05/23/the-raven-


por-edgar-allan-poe-e-sua-traducao-por-fernando-pessoa/>.
446
ANEXO B – “O CORVO”, DE MACHADO DE ASSIS

O Corvo
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
“É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais.”

Ah! bem me lembro! bem me lembro!


Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando


Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: “Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
447
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais.”

Minh’alma então sentiu-se forte;


Não mais vacilo e desta sorte
Falo: “Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais.”
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,


Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.


Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
“Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
448
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais.”

Abro a janela, e de repente,


Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,


Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: “O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

Vendo que o pássaro entendia


A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
449
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: “Nunca mais”.

No entanto, o corvo solitário


Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: “Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora.”
E o corvo disse: “Nunca mais!”

Estremeço. A resposta ouvida


É tão exata! é tão cabida!
“Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: “Nunca mais”.

Segunda vez, nesse momento,


Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
450
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: “Nunca mais”.

Assim posto, devaneando,


Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,


Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: “Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora.”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

“Profeta, ou o que quer que sejas!


Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
451
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

“Profeta, ou o que quer que sejas!


Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

“Ave ou demônio que negrejas!


Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua.”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

E o corvo aí fica; ei-lo trepado


No branco mármore lavrado
452
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!16

16 Disponível em: <https://contobrasileiro.com.br/o-corvo-poema-de-edgar-allan-


poe-traduzido-por-machado-de-assis/>.
453
ANEXO C – “O CORVO”, DE FERNANDO PESSOA

O Corvo
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,


E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo


Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais”.

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,


“Senhor”, eu disse, “ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,


454
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,


Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.”
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
“É o vento, e nada mais.”

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,


Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momen-
to,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura


Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousa-
do,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,


Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
455
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome “Nunca mais”.

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,


Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensa-
mento
Perdido, murmurei lento, “Amigos, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais”.
Disse o corvo, “Nunca mais”.

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,


“Por certo”, disse eu, “são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este “Nunca mais”.

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,


Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele “Nunca mais”.

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo


À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
456
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito!”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta - ou demônio ou ave preta!


Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta - ou demônio ou ave preta!


Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu disse. “Parte!


Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda


No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
457
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
E a minha alma dessa sombra que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!17

17 Disponível em <https://luradoslivros.wordpress.com/2007/05/23/the-raven-
por-edgar-allan-poe-e-sua-traducao-por-fernando-pessoa/>.
458
Questão de gênero
Queerbaiting
peça Harry Potter and the Cursed Child

Ana Paula Schardosin1

1 Introdução
Esse artigo pretende fazer uma análise da peça Harry Potter
and the Cursed Child (2016) como uma narrativa que faz uso da
aproximação entre dois personagens masculinos, mas que esse
relacionamento não se efetiva. A partir disso, visamos trazer
uma definição delimitada do fenômeno denominado queer-
baiting e as várias formas na qual ele pode se manifestar em
diferentes mídias. Com essa definição, pretendemos distinguir
como tal fenômeno se realiza na peça, analisando certa pro-
ximidade com o desdobramento das comédias românticas.
Além disso, a comparação entre as duas versões da peça torna-
-se um procedimento para aprofundarmos nossa análise, pois
acreditamos que, através de comparações entre o roteiro origi-
nal de quatro partes e a reescrita oficial de duas partes, possa-
mos identificar modificações que podem se configurar como
estratégias de queerbaiting, e, por fim, pretendemos avaliar a
recepção do público a essa narrativa por meio de publicações
em rede social.
O universo do Mundo Mágico, onde Harry Potter está inse-
rido, pode ser considerado um dos grandes pilares da cultura
pop mundial da atualidade, principalmente se levarmos em
consideração o número de cópias vendidas da série: mais de
500 milhões (WRADMIN, 2021). A série de sete livros sozinha
marcou gerações de uma forma que poucas obras conseguiram.
De acordo com Hanne Birk, Denise Burkhard e Marion Gym-
nich, em artigo intitulado “‘Harry – yer a wizard’: Exploring J.K.
1
460
Rowling’s Harry Potter Universe”, “the novels have played a vital
role in establishing the notion of ‘crossover/all-ages literature’
as one of the key terms within research in the thriving field of
children’s and young adult literature studies” [os romances têm
desempenhado um papel vital no estabelecimento da noção de
“literatura de crossover/para todas as idades” como um dos ter-
mos-chave dentro da pesquisa no próspero campo de estudos de
literatura infantil e de jovens adultos.] (2017 p. 7, tradução nossa).
Harry Potter and the Cursed Child (2016) se enquadra como
sequência da saga de sete livros, estabelecendo-se nesse uni-
verso como a continuidade da história do personagem principal,
porém trazendo como foco a próxima geração de personagens
e, como pilar central da narrativa, o relacionamento (ambíguo)
entre Albus Potter (filho de Harry Potter e Gina Weasley) e
Scorpius Malfoy (filho de Draco Malfoy e Astoria Greengrass).
Porém, por ser uma peça de teatro em vez de um romance tor-
na mais difícil nosso acesso ao espetáculo.
Por exemplo, os livros foram adaptados para o cinema, facili-
tando o acesso da comunidade a essa narrativa visual. Além dis-
so, na prosa, percebemos uma estrutura mais descritiva em que
a verdade dos sentimentos de uma pessoa se exprime através
do monólogo interno e fornece pormenores visuais através de
uma boa descrição. Por outro lado, a peça se apresenta através
dos atores e dos colaboradores criativos, que trabalham para
dar vida no palco aos elementos presentes no roteiro. Há uma
singularidade na recepção da peça, que fica, muitas vezes, res-
trita à leitura do roteiro, já que o espetáculo foi encenado, em
uma primeira versão, no Teatro de Londres e na Broadway e,
neste momento, encontra-se em cartaz, novamente, em uma
nova versão, em Nova Iorque. Esse problema relacionado à di-
ferença de consumo da obra é algo que fica claro a partir da

461
própria fala de um dos diretores da peça original, Jack Thorne,
em uma discussão introdutória no livro de roteiro da peça:
I remember in rehearsals we’d delete chunks of the script because the
actors were communicating something effortlessly with a look, so didn’t
need the lines I’d written.
[Lembro que nos ensaios apagávamos pedaços do roteiro porque os ato-
res comunicavam algo sem esforço com um olhar, então {o roteiro} não
precisaria das falas que eu havia escrito]. (THORNE, 2016, n.p., tradução
nossa)

Este recurso literário, dessa forma, se torna relativa-


mente instável da perspectiva de uma análise objetiva, a partir
do momento em que o próprio diretor da obra praticamente
requer o comparecimento daqueles que leram o roteiro na per-
formance ao vivo da peça, já que a escolha dos atores que dão
vida aos personagens, às vezes espontâneas na hora da cena,
é algo que pode influenciar a análise do espectador em relação
à obra. Com isso em mente, pretendemos fazer uma análise
fundamentada majoritariamente na escrita do roteiro, se base-
ando minimamente nas decisões teatrais da peça.
Além disso, a peça foi escrita em uma época em que a au-
tora J. K. Rowling, declarou, através do Twitter, suas opiniões –
excepcionalmente problemáticas e preconceituosas – sobre a
comunidade LGBTQ+, mais especificamente, sobre a comuni-
dade trans, desapontando grande parte dos fãs, tanto de seus
livros quanto de sua própria pessoa. Ademais, pelo fato de que
a peça não foi escrita apenas pela autora original, mas também
Jack Thorne e John Tiffany, grande parte do público não vê a
obra como algo que realmente faça parte desse universo mági-
co, levando em consideração, entre outros fatores, a caracteri-
zação divergente dos personagens que já eram conhecidos por
décadas
Todos esses fatores – a baixa acessibilidade dos especta-
dores, o acordo entre grande parte do público sobre a “baixa
462
qualidade” da narrativa da peça e as recentes falas e opiniões
problemáticas da autora em relação a minorias sociais – in-
fluenciaram bastante para uma recepção desconfortável da
peça e, consequentemente, criaram um ruído no universo de
Harry Potter. Muitas pessoas que se consideram fãs da saga
sentiram-se descontentes com a peça, o que levou a rejeitá-la
como parte de seu cânone. Além disso, outro fator importante
pesa sobre esse fenômeno: o queerbaiting, que pode ser iden-
tificado na narrativa.
Queerbaiting pode ser definido como uma estratégia de
marketing usada por companhias de criação de mídia para se
aproximar da comunidade LGBTQ+ e, ao mesmo tempo, não
“irritar” o público que teria algum problema com esse tipo de
representatividade. Esse fenômeno pode se manifestar das se-
guintes formas:
a. quando os escritores e promotores de uma obra dão a
entender que os personagens de um projeto vivem um
relacionamento homoafetivo através de piadas (dentro
ou fora da narrativa), insinuações entre os próprios per-
sonagens e/ou os promotores e, geralmente, através de
subtexto e paralelos entre casais heteroafetivos que já
existem na história, quando, na verdade, isso não se rea-
liza na narrativa;
b. quando há personagens gays na obra, mas que morrem,
normalmente de forma trágica, por fazerem parte espe-
cificamente da comunidade LGBTQ+, num fenômeno
que também é conhecido como “bury your gays” (enterre
seus gays, tradução nossa); e
c. quando se tem um casal homoafetivo numa narrativa,
que é utilizado como propaganda para chamar esse pú-
blico, mas que é um casal que aparece por muito pouco
tempo na tela e/ou no fundo das cenas, difíceis de serem
463
identificados, a não ser que o espectador esteja os procu-
rando, e que podem ser facilmente descartados (ao cor-
tar cenas específicas) se for entendido como necessário.
Essa estratégia se insere na peça de Harry Potter and the Cur-
sed Child através de subtexto e paralelos. Há, dentro da narrati-
va, inúmeras cenas que podem ser lidas como românticas caso
os personagens envolvidos fossem um homem e uma mulher,
porém, por se tratar o relacionamento entre Albus Potter e
Scorpius Malfoy, isso é somente insinuado.
Esse subtexto se mostra ainda mais presente na versão re-
escrita do roteiro, de 2021, que é mais curto do que o anterior.
Originalmente, a peça tinha 4 partes e a duração de 5 horas e 15
minutos, a segunda versão foi reduzida para 2 partes e aproxi-
madamente a 3 horas e 30 minutos (indicado no site de venda
de ingressos da peça). Antes haviam cenas que insistiam no su-
posto romance (ou ao menos interesse) entre Scorpius Malfoy
e Rose Granger-Weasley (filha de Hermione Granger e Ronald
Weasley), mas na reescrita essas cenas foram completamente
cortadas da narrativa.
Além disso, a reescrita também reforça o relacionamento
entre Albus e Scorpius, não cortando nenhuma das interações
originais da peça e ainda reforçando a percepção de que os dois
personagens têm uma conexão amorosa. Levando isso em
consideração, o queerbaiting se estabelece na história a partir
do momento em que não se é explícito na narrativa se o rela-
cionamento entre os dois se realiza ou não. No ano de 2021,
ano em que foi feita a reescrita, ficou claro que grande parte do
público que continua assistindo essa performance faz parte da
comunidade queer e busca identificação nessa representação.
Por conta da grande visibilidade publicitária sobre as mudanças,
veiculada, majoritariamente, nas redes sociais, fica óbvio qual

464
era o objetivo da reestruturação da peça, além do encurtamen-
to: atingir o público LGBTQ+ e cativar pink money.
Um fenômeno que ocorre com bastante intensidade no con-
texto da recepção da peça é o estabelecimento de comunidades
interpretativas, tal como encontrado no E-Dicionário de Termos
Literários definido por Almeida (2009):
aquele ponto de intersecção a partir do qual se constrói uma certa esta-
bilidade significativa, a partir do momento em que os indivíduos que ali
se agrupam compartilham regras e estratégias de leitura que emoldu-
ram a aceitabilidade interpretativa e que permitem a comunicabilidade,
o intercâmbio e a coincidência de interpretações. (ALMEIDA, 2009)

As redes sociais, dessa forma, servem como ferramenta es-


sencial para a facilitação da criação de comunidades interpre-
tativas de qualquer obra ou universo literário. A possibilidade
de expressão livre sobre qualquer aspecto de obras nas quais
os espectadores devotam seu tempo e atenção se tornou algo
orgânico com o passar dos anos e com o desenvolvimento da
tecnologia.
Esse processo se mostra extremamente intenso neste con-
texto. O desejo dos espectadores da possibilidade de proprie-
dade criativa em cima dos personagens e do universo é um pa-
drão evidente em relação a Harry Potter and the Cursed Child e
ao universo de Harry Potter em geral.
Na saga de sete livros de Harry Potter, o queerbaiting já era
algo estabelecido na narrativa. Em 2007, numa conferência em
Carnegie Hall, Nova Iorque, a autora confirmou para o público –
após ter sido perguntada sobre o assunto – que o personagem
de Dumbledore era gay. Esse tipo de estratégia se encaixa na
falta de confirmação efetiva do personagem na história em si,
mas ainda havendo “representatividade” sem ter o trabalho de
escrever o personagem como parte da comunidade LGBTQ+.

465
Além disso, os personagens de Remo Lupin e Sirius Black se
mostravam na narrativa como personagens fortemente codi-
ficados como LGBTQ+, através de subtextos e metáforas em
relação à descrição das personagens e suas vivências dentro da
narrativa. Remo Lupin sofria com a condição de licantropia, algo
que a própria autora explicitou, em outra entrevista, que havia a
intenção de ser uma metáfora para pessoas soropositivas, num
universo que se passa nos anos 80 e 90. O aspecto subtextual
da história está relacionado ao personagem de Sirius Black, que
fugiu de casa aos 16 anos por conta das crenças preconceituo-
sas de sua própria família. Ambos os personagens morreram no
decorrer dos livros, e um deles fora de tela.
Levando isso em consideração, a estratégia estabelecida
se mostra quase prevista pela comunidade consumidora das
obras na peça de Harry Potter and the Cursed Child.

2 Análise da peça
Na peça Harry Potter and the Cursed Child, o queerbaiting
se manifesta através de paralelos subtextuais, que serão veri-
ficadas mais profundamente a partir da análise do texto ori-
ginal, da comparação de sua reescrita a partir de duas versões
da peça, representadas na Broadway em 2016 e depois, com
algumas modificações em 2021, e sua recepção.
Para dar início na análise, partiremos de uma consideração
sobre os 10 elementos narrativos que constituem a comédia
romântica, pois tais elementos evidenciam a insinuação da re-
lação amorosa entre Albus e Scorpius.
Em um segundo momento, pretendemos demonstrar como
algumas mudanças efetuadas na versão de 2021 apontam para
uma adequação do relacionamento entre o par principal.
Para finalizar a análise, iremos verificar como se deu a recep-
ção da narrativa pelo público através das redes sociais, tornando
466
mais clara como a estratégia de queerbaiting se evidencia para
os leitores/espectadores que leram e/ou foram ver a peça, de
acordo com seus comentários.
2.1 Enredo
Para iniciar nosso estudo, devemos mencionar que há uma
relação de expectativa do leitor/espectador sobre as narrativas
ligadas ao universo Harry Potter, sejam elas literárias, teatrais
ou fílmicas. Nesse sentido, partimos para uma análise da orga-
nização narrativa das comédias românticas e como os elemen-
tos desse gênero podem ser encontrados na peça Harry Potter
and the Cursed Child, pois essa estrutura comporá a estratégia
do queerbaiting.
Sobre essa perspectiva, a comédia romântica possui ele-
mentos narrativos característicos em sua constituição e, como
gênero arquetípico no campo do cinema, apresenta-se como
dominante no imaginário dos espectadores. Assim, diferentes
tipos de elementos são estabelecidos numa ordem específica,
cuja disposição pode variar. Elementos como a introdução de
two lovable leads, que basicamente consiste na introdução de
dois protagonistas “amáveis”, na justificativa de que a audiência
deverá torcer pela dupla, e como há a necessidade de – por ser
uma comédia romântica – um final feliz.
Na peça, seja na versão original seja na versão reescrita, há
uma boa quantidade desses elementos narrativos, como, por
exemplo, two lovable leads (dois protagonistas amáveis, tradu-
ção literal), meet cute (apresentação fofa, tradução literal), trou-
blesome situation (situação única e difícil, tradução literal), rela-
tionship in Jeopardy (relacionamento em perigo, tradução literal),
the lightbulb moment (momento lâmpada, tradução literal), a

467
grand gesture or epic line (gesto grandioso ou fala épica, tradução
literal).2
No caso de two lovable leads (dois protagonistas amáveis, tra-
dução literal), os dois personagens principais se estabelecem
como amáveis de acordo com suas características, que podem
ser classificados como “relacionáveis” em relação ao especta-
dor e de acordo com a química entre eles. A caracterização de
Scorpius se mostra como um dos melhores aspectos da peça e
sua dinâmica com Albus – seja romântica ou não – se evidencia
como a base da narrativa.
Outro exemplo presente na narrativa de comédia romântica
é o meet cute (apresentação fofa, tradução literal), o momen-
to da narrativa em que os dois personagens se conhecem, que
normalmente contêm falas que se mostram com característi-
cas específicas que em geral insinuam um relacionamento ro-
mântico. Em Harry Potter and the Cursed Child, a cena em que
os personagens principais se apresentam pela primeira vez tem
características do meet cute:
ALBUS: Hi. Is this compartment . . .
SCORPIUS: It’s free. It’s just me.
ALBUS: Great. So we might just — come in — for a bit — if that’s okay?
SCORPIUS: That’s okay. Hi.
ALBUS: Albus. Al. I’m — my name is Albus…
SCORPIUS: Hi, Scorpius. I mean, I’m Scorpius. You’re Albus. I’m Scorpius.
[ALBUS: Oi. Este compartimento está…
SCORPIUS: Está livre. Só eu estou aqui.
ALBUS: Ótimo. Então nós podemos entrar... por um tempo, se estiver tudo
bem?
SCORPIUS: Tá bom. Oi.
ALBUS: Albus. Al. Eu sou... meu nome é Albus.
SCORPIUS: Oi, Scorpius. Quero dizer, eu sou Scorpius. Você é Albus. Eu sou
Scorpius.]
HPCC3 (2016, n.p.), Ato 1 cena 3, tradução nossa.
2 Elementos narrativos retirados do site Screencraft, escrito por Britton
Perelman (2021).
3 A partir daqui iremos referenciar o livro Harry Potter and the Cursed Child
como HPCC e a reescrita como HPCC1.
468
É possível identificar o fenômeno do meet cute desde a pri-
meira cena em que os dois personagens interagem: o nervosis-
mo e a timidez, que são comuns em apresentações de um casal
que eventualmente se tornam romântico, se mostram eviden-
tes, o que pode levar o leitor/espectador a encarar o relaciona-
mento entre Albus e Scorpius como amoroso.
Outro movimento da narrativa da peça que se aproxima da
comédia romântica é a unique, troublesome situation (situação
única e difícil, tradução literal), que é quando ocorre um conflito
essencial na narrativa que faz com que os personagens princi-
pais se encontrem: a) na mesma situação complicada; e b) for-
çados a lidarem com essa situação juntos. Nesse caso, tal mo-
mento pode ser encontrado quando, de uma forma impulsiva,
Albus convence Scorpius a roubar o Vira-Tempo do Ministério e
salvar Cedrico Diggory, antigo colega de seu pai. Assim, o con-
flito principal da peça se estabelece quando esses dois perso-
nagens voltam no tempo e devem consertar as discrepâncias
que eles causaram.
Mais um elemento essencial da ordem das comédias român-
ticas que se mostra muito presente na narrativa da peça é a
relationship in jeopardy (relacionamento em perigo, tradução li-
teral), que é o momento mais baixo na narrativa em relação ao
relacionamento das personagens:
Beat.
SCORPIUS: There was a moment I was excited, when I realized time
was different, a moment when I thought maybe my mum hadn’t got
sick. Maybe my mum wasn’t dead. But no, turns out, she was. I’m still
the child of Voldemort, without a mother, giving sympathy to the boy
who doesn’t ever give anything back. So I’m sorry if I’ve ruined your life
because I tell you — you
wouldn’t have a chance of ruining mine — it was already ruined. You just
didn’t make it
better. Because you’re a terrible — the most terrible — friend.
ALBUS digests this. He sees what he’s done to his friend.
[Baque.
469
SCORPIUS: Tem momentos que fiquei animado, quando percebi que o
tempo estava diferente. Por um momento pensei que, talvez, minha mãe
não tivesse adoecido, e que não estivesse morta. Mas não, ela está. E eu
ainda sou o filho de Voldemort, sem uma mãe, oferecendo simpatia a um
garoto que nunca retribui. Então me desculpe se arruinei sua vida, porque
não teria a chance de arruinar a minha. Já está toda arruinada. Você não a
faz melhor, porque é um terrível — o mais terrível — amigo.
ALBUS digere as palavras. Ele vê o que fez com SCORPIUS.]
HPCC (2016, n.p.), Ato 2 cena 16, tradução nossa.

Nessas falas, observamos que o relacionamento entre Albus


e Scorpius entra em crise, insinuando um afastamento entre
eles e configurando o momento mais delicado da relação.
Logo em seguida, o próximo elemento importante é the ligh-
tbulb moment (momento lâmpada, tradução literal), que usual-
mente se manifesta quando um dos personagens percebe seus
sentimentos e/ou decide fazer algo a respeito. Na peça, esse
momento pode ser identificado na seguinte cena:
ALBUS: And why was I so determined to do this? Cedric? Really? No. I
had something to prove. My dad’s right — he didn’t volunteer for adven-
ture — me, this, it’s all my fault — and if it wasn’t for you everything could
have gone Dark.
SCORPIUS: But it didn’t. And you’re to thank for that as much as me.
When the dementors were — inside my head — Severus Snape told me
to think of you. You may not have been there, Albus, but you were figh-
ting — fighting alongside me.
ALBUS nods. Touched by this.
[ALBUS: E por que eu estava tão determinado a fazer isso? Por Cedrico?
Sério? Não. Tinha que provar uma coisa. Meu pai está certo, não se volun-
tariou para a aventura. Foi tudo minha culpa. Se não fosse por você, tudo
poderia ter ido para as Trevas.
SCORPIUS: Mas não foi, e você é responsável por consertar tudo tanto
quanto eu. Quando os Dementadores estavam dentro da minha cabeça,
Severo Snape me disse para pensar em você. Pode não ter estado lá, Albus,
mas estava lutando – lutando ao meu lado.
ALBUS assente com a cabeça, tocado pelas palavras.]
HPCC (2016, n.p.), Ato 3 cena 14, tradução nossa.

470
O que temos nesse diálogo é a enunciação do reconheci-
mento da proximidade entre Albus e Scorpius, veiculada a par-
tir de uma afinidade quase espiritual, através do pensamento,
já que se trata da lembrança de um evento, e figurada como
física na cena como se, nesse momento, houvesse uma conso-
lidação do relacionamento nos campos imaginário e empírico.
Além disso, há o momento que se é denominado como a
grand gesture or epic line (gesto grandioso ou fala épica, tradução
literal), que é o momento da narrativa quando um dos perso-
nagens decide fazer uma descrição ou fala que se torna icôni-
ca para a obra. Na peça, ele pode ser reconhecido na seguinte
cena:
SCORPIUS: Your dad thinks the rumors are true — I am the son of Vol-
demort?
ALBUS (nods): His department is currently investigating it.
SCORPIUS: Good. Let them. Sometimes — sometimes I find myself
thinking — maybe they’re true too.
ALBUS: No. They’re not true. And I’ll tell you why. Because I don’t think
Voldemort is capable of having a kind son — and you’re kind, Scorpius.
From the depths of your belly, to the tips of your fingers. I truly believe
Voldemort — Voldemort couldn’t have a child like you.
Beat. SCORPIUS is moved by this.
SCORPIUS: That’s nice — that’s a nice thing to say.
ALBUS: And it’s something I should have said a long time ago. And you
don’t — you couldn’t — hold me back. You make me stronger — and when
Dad forced us apart — without you —
SCORPIUS: I didn’t much like my life without you in it either.
ALBUS: And I know I’ll always be Harry Potter’s son — and I will sort that
out in my head — and I know compared to you my life is pretty good,
really, and that he and I are comparatively lucky and —
SCORPIUS (interrupting): Albus, as apologies go this is wonderfully ful-
some, but you’re starting to talk more about you than me again, so pro-
bably better to quit while you’re ahead.
ALBUS smiles and stretches out a hand.
ALBUS: Friends?
SCORPIUS: Always.
SCORPIUS extends his hand, ALBUS pulls SCORPIUS up into a hug.

471
[SCORPIUS: Seu pai acha que os rumores são verdadeiros, e que sou o filho
de Voldemort?
ALBUS (concorda): O seu departamento está investigando.
SCORPIUS: Deixa eles. Às vezes penso que sejam verdadeiros, também.
ALBUS: Não, não são. Voldemort não era capaz de ter um filho tão gentil.
E você é gentil, Scorpius. Do fundo da sua barriga até as pontas dos dedos.
Voldemort não poderia ter um filho como você.
Baque. Scorpius se comoveu com isso.
SCORPIUS: Isso é uma boa coisa para se dizer.
ALBUS: E é algo que deveria ter dito muito tempo atrás. Na verdade, você é
a melhor pessoa que conheço. Você não me atrapalha, me faz sentir forte.
Quando meu pai forçou que nos afastássemos, sem você…
SCORPIUS: Não gostei da minha vida sem você também.
ALBUS: Sei que sempre serei filho de Harry Potter, e vou aceitar isso na
minha cabeça. E eu sei que comparado a você, minha vida é muito boa, e
que meu pai e eu somos relativamente sortudos, e…
SCORPIUS (interrompendo): ALBUS, por mais que as desculpas estejam
sendo maravilhosamente lisonjeadoras, mas você está falando mais de
você do que de mim, de novo, então provavelmente é melhor parar en-
quanto você pode.
ALBUS sorri e estende sua mão
ALBUS: Amigos?
SCORPIUS: Sempre.
SCORPIUS estende sua mão, ALBUS puxa SCORPIUS para um abraço.]
HPCC (2016, n.p.), Ato 2 cena 16, tradução nossa, destaque nosso.

Nesse caso, nós temos a fala que, nos livros originais do Harry
Potter, se tornou uma das mais marcantes da saga, marcando
a cultura pop de maneira expressiva. Originalmente, associada
ao amor (obsessivo) de Severo Snape por Lily Evans-Potter, a
expressão “always” é lida como uma fala romântica por grande
parte da recepção dos livros. Por conta disso, a análise na qual
confirma a interpretação romântica entre os protagonistas da
peça se torna mais transparente.

472
Harry Potter e a câmara secreta Harry Potter e a criança amaldi-
çoada
– Porque é isso que Mione faz – ALBUS/RONY: Como distrair Scor-
disse Rony sacudindo os ombros. pius de questões emocionais difí-
– Quando tiver uma dúvida, vá à ceis? Leve-o a uma biblioteca.
biblioteca. HPCC (2016, n.p.), Ato 1 cena 19,
Harry Potter e a Câmara Secreta tradução nossa
(1998), p. 108
A proximidade entre as falas demonstra como o mecanismo
do relacionamento amoroso entre os “casais” é muito pareci-
do. Nesse sentido, a contraposição das personagens de Scor-
pius Malfoy e Hermione Granger e como elas agem, ao mesmo
tempo a comparação das reações de Albus Potter e Rony We-
asley, através do subtexto, acaba por insinuar, quando compa-
ramos os trechos, a leitura dos protagonistas como casais even-
tualmente românticos.
Adicionalmente, há outras comparações, desta vez intra-
-narrativas, que sugerem paralelos que fortalecem o subtexto
romântico do “casal” principal, reforçando, ao mesmo tempo,
o diagnóstico de queerbaiting na peça. Draco Malfoy é casado
com Astoria Greengrass, que morre no primeiro ato. No terceiro
ato da peça, Scorpius está preso numa realidade em que a ma-
gia negra reina e Voldemort sobreviveu à batalha final, quando
ele tem uma conversa com seu pai, a peça traz outro tema, que
se torna constante na peça:
SCORPIUS: I don’t want to be who I am.
DRACO: And what’s brought that on?
SCORPIUS desperately thinks for a way of describing his story.
SCORPIUS: I’ve seen myself in a different way.

473
DRACO: You know what I loved most about your mother? She could
always help me find light in the darkness. She made the world — my
world, anyway — less — what was the word you used — “murky.”
SCORPIUS: Did she?
[SCORPIUS: Eu não quero ser o que eu sou.
DRACO: E o que causou isso?
SCORPIUS pensa desesperadamente em uma forma de explicar sua his-
tória.
SCORPIUS: Eu me vi de uma forma diferente.
DRACO: Sabe o que eu mais amava sobre sua mãe? Ela sempre me ajudou
a achar luz na escuridão. Ela fazia com que o mundo – o meu mundo, de
qualquer forma – menos – como foi a palavra que você usou – nebuloso.
SCORPIUS: Ela fazia?]
HPCC (2016, n.p.), Ato 3 cena 3, tradução nossa, destaque nosso

A partir da análise desta cena, percebemos que existe um pa-


ralelo entre a relação entre o Draco e sua companheira a partir
do termo “luz na escuridão”. Esse tema é retomado depois de
maneira subtextual relacionando os personagens de Scorpius e
Albus. Em primeiro lugar, porque o nome de Albus é derivado
do latim e significa branco ou brilho. Em segundo lugar, porque
Scorpius é instruído por Severo Snape a pensar no seu melhor
amigo para combater os Dementadores, seres que são descri-
tos como criaturas das trevas.
As cenas nas quais a relação entre Albus e Scorpius se insinua
tornam-se perceptíveis a partir da ambiguidade. Na peça origi-
nal, há, além das cenas já mencionadas, inúmeros momentos
em que esta performance se evidencia na narrativa. Como por
exemplo:
ALBUS walks up a staircase. Looking around as he does.
He doesn’t see anything. He exits. The staircases move in almost a dan-
ce.
SCORPIUS enters behind him. He thinks he’s seen ALBUS, he realizes
he isn’t there.
He slumps down to the floor as the staircase sweeps around.
MADAM HOOCH enters and walks up the staircase. At the top, she ges-
tures for SCORPIUS to move.
He does. And slopes off — his abject loneliness clear.
474
ALBUS enters and walks up one staircase.
SCORPIUS enters and walks up another.
The staircases meet. The two boys look at each other.
Lost and hopeful—all at once.
And then ALBUS looks away and the moment is broken—and with it,
possibly, the friendship.
And now the staircases part — the two look at each other — one full of
guilt — the other full of pain — both full of unhappiness.
[ALBUS sobe a escada. Ele olha ao redor enquanto isso.
Ele não vê nada, e sai. As escadas se movem em um movimento parecido
com uma dança.
SCORPIUS sobre atrás dele. Ele acha que viu ALBUS, mas percebe que não
está lá. Ele cai para o chão enquanto as escadas se movem ao seu redor.
MADAME HOOCH entra e sobre as escadas. No topo, ela gesticula para
que SCORPIUS se mexa.
Ele sai, e some — sua solidão extrema é clara.
ALBUS entra e sobe uma das escadas. SCORPIUS entra e sobe outra.
As escadas se encontram. Os dois garotos se encaram.
Perdidos e esperançosos — tudo de uma vez.
E então, ALBUS desvia o olhar e o momento é quebrado — e com ele,
possivelmente, a amizade.
E agora as escadas se separam — e os dois se encaram — um cheio de
culpa — o outro cheio de dor — ambos cheios de infelicidade.]
HPCC (2016, n.p.), Ato 2 cena 12, tradução nossa

A cena descreve o momento seguinte à cena em que os


garotos são obrigados a não interagirem entre si e serve para
representar como esse fator afeta ambos para o pior. Esta cena
é simbólica e serve como marco para o estabelecimento do
relacionamento dos protagonistas. A melancolia é intensa e a
descrição quase poética da narrativa remete a uma noção amo-
rosa sem ter a necessidade de algum diálogo, sendo baseada
completamente nas ações dos personagens, escolhas teatrais
dos atores envolvidos e trilha sonora que se manifesta ineren-
temente através de leitmotivs (LOPES, 2009) românticos.
Outro exemplo de momento em que a ambiguidade se
mostra pendendo para o lado amoroso é quando os persona-
gens estão no momento crítico de conflito da narrativa. Presos
475
40 anos no passado sem nenhuma forma de comunicação e
de como pedir ajuda, eles estão cogitando ideias e formas de
como prosseguir, até que chegam à conclusão de que não há
nada que possa ser feito:
SCORPIUS: So we hide in a hole?
ALBUS: As pleasurable as it will be to hide in a hole with you for the next
forty years... they’ll find us. And we’ll die and time will be stuck in the
wrong position. No. We need something we can control, something we
know he’ll get at exactly the right time. We need a —
SCORPIUS: There’s nothing. Still, if I had to choose a companion to be
at the return of eternal darkness with, I’d choose you.
ALBUS: No offense, but I’d choose someone massive and really good
at magic.
[SCORPIUS: Então nos escondemos num buraco?
ALBUS: Por mais agradável que seria se esconder num buraco com você
durante os próximos quarenta anos... eles vão nos encontrar. E nós morre-
remos e o tempo ficará preso na posição errada. Não. Precisamos de algo
que possamos controlar, algo que saibamos que ele vai receber exatamen-
te no momento certo. Precisamos de um —
SCORPIUS: Não há nada. Mesmo assim, se eu tivesse de escolher um
companheiro para estar no regresso da escuridão eterna, eu escolhe-
ria você.
ALBUS: Sem ofensa, mas eu escolheria alguém forte e realmente bom em
magia.]
HPCC (2016, n.p.), Ato 4 cena 5, tradução nossa

A naturalidade na qual esses comentários são feitos mostra


o nível de conforto entre os personagens e a sugestão de um
relacionamento amoroso se torna mais evidente. Ainda que
se dê de forma metafórica, sem menção direta à relação entre
Albus e Scorpius, o subtexto insinua justamente uma ligação
duradoura.
A partir de uma análise objetiva, notamos que, se o relacio-
namento entre os dois personagens principais – Albus Potter e
Scorpius Malfoy – fosse descrito como um relacionamento en-
tre um homem e uma mulher, as cenas que contêm esta am-
biguidade seriam lidas como texto, em vez de subtexto. Anali-
476
sando a escrita original da peça, lançada em 2016, já se mostra
evidente essa interpretação e, a partir da reescrita da peça em
2021, ela se torna ainda mais explícita.

Nesta reescrita ocorreu o processo de enxugamento no nú-


mero de cenas, o que anteriormente era uma peça com 2 par-
tes e 4 atos, agora passou a ter apenas 1 parte e 2 atos, com a
duração sendo reduzida em relação à peça original, passando
de aproximadamente 5 horas e 15 minutos para 3 horas e meia.
Esse processo mostra o estabelecimento de cenas que per-
maneceram nas duas versões e que anteriormente se exibiam
com certa ambiguidade e a intenção de reforçar os temas já
estabelecidos na escrita original.
Um dos exemplos que podemos destacar é o tema luz da
escuridão, estabelecido anteriormente somente como subtexto
– ligando Albus, lido como luz, à Scorpius –, agora se torna ex-
plícito no diálogo denominado Grand gesture or epic line, citado
previamente:
SCORPIUS: Harry Potter thinks the rumors are true – I am the son of
Voldemort?
ALBUS nods.
Good. Sometimes I find myself thinking – maybe they’re true too.
ALBUS: No. No! The rumors can’t be true. Because you’re kind, Scorpius.
To the depths of your belly, to the tips of your fingers. You’re a light in
the darkness. I truly believe that Voldemort couldn’t have a child like
you.
Beat. SCORPIUS is moved by this.
SCORPIUS: That’s nice – that’s a nice thing to say.
[...]
ALBUS smiles and stretches out a hand.
ALBUS: Friends?
SCORPIUS: Always.
SCORPIUS extends his hand, ALBUS pulls SCORPIUS up into a hug.
[SCORPIUS: Harry Potter acha que os rumores são verdadeiros, e que sou
o filho de Voldemort?
477
ALBUS (concorda): O seu departamento está investigando.
SCORPIUS: Deixa eles. Às vezes penso que sejam verdadeiros, também.
ALBUS: Não, não são. Voldemort não era capaz de ter um filho tão gentil.
E você é gentil, Scorpius. Do fundo da sua barriga até as pontas dos dedos.
Você é uma luz na escuridão. Eu sinceramente acredito que Voldemort
não poderia ter um filho como você.
Baque. Scorpius se comoveu com isso.
SCORPIUS: Isso é uma boa coisa para se dizer.
{...}
ALBUS sorri e estende sua mão
ALBUS: Amigos?
SCORPIUS: Sempre.
SCORPIUS estende sua mão, ALBUS puxa SCORPIUS para um abraço.]
HPCC (2021, n.p.), Ato 2 cena 27, tradução nossa, destaque nosso

A adição da fala destacada estabelece com mais determina-


ção o tema assentado previamente com uma instauração ques-
tionável. Assim, juntamente com a fala já estabelecida como
icônica, “always”, dentro do contexto da ficção de Harry Potter,
ela continua a constituir o grupo de elementos que possibilitam
a interpretação defendida de que há um relacionamento amo-
roso entre Albus e Scorpius.
A partir disso, também é possível analisar a forma na qual a
peça foi reescrita em 2021, com a ambiguidade pendendo para
o lado romântico dos protagonistas com ainda mais expressi-
vidade. Além da inclusão mencionada anteriormente, destaca-
mos também que ocorreram cortes de cenas que previamente
insinuavam um interesse romântico entre Scorpius Malfoy e
Rose Granger Weasley (única personagem feminina que con-
sistentemente interage com o garoto) como por exemplo:
SCORPIUS: When Rose came up to me today in Potions and called me
Bread Head, I almost hugged her. No, there’s no almost about it, I actu-
ally tried to hug her, and then she kicked me in the shin.
ALBUS: I’m not sure being fearless is going to be good for your health.
[SCORPIUS: Quando a Rose falou comigo durante Poções hoje e me
chamou de Cabeça de Pão, eu quase abracei ela. Não, não tem nada de
quase, eu realmente tentei abraçá-la, e então ela me chutou na canela.
478
ALBUS: Eu não tenho certeza se ser destemido vai fazer bem para sua
saúde.]
HPPC (2016, n.p.), Parte 2, Ato 3, Cena 14, tradução nossa

Esse corte em específico exemplifica a tentativa de re-


forçar a noção de romance entre Albus e Scorpius, tornando-a
um pouco mais transparente, ao anular qualquer tipo de incli-
nação amorosa que possa acontecer entre Scorpius e Rose.
Outro procedimento ligado à reescrita é a alteração de cenas,
mais especificamente, em relação aos diálogos entre os per-
sonagens, em que a insinuação sobre o relacionamento entre
Scorpius e Rose foi extraída. Por exemplo:
SCORPIUS: I can’t quite believe I SCORPIUS: I can’t quite believe I did
did that. that.
ALBUS: I can’t quite believe you ALBUS: I can’t quite believe you did
did that either. that either.
SCORPIUS: Rose Granger-We- SCORPIUS: Rose Granger-Weasley.
asley. I asked out Rose Granger- I asked Rose Granger-Weasley to be
-Weasley. my friend.
ALBUS: And she said no. ALBUS: And she said no.
SCORPIUS: But I asked her. I SCORPIUS: But I asked her! I planted
planted the acorn. The acorn that the acorn. The acorn that will grow
will grow into our eventual mar- into our eventual allegiance.
riage. [SCORPIUS: Eu não acredito que eu fiz
[SCORPIUS: Eu não acredito que isso
eu fiz isso ALBUS: Eu também não acredito que
ALBUS: Eu também não acredito você fez isso.
que você fez isso. SCORPIUS: Rose Granger-Weasley. Eu
SCORPIUS: Rose Granger-Weasley. pedi para Rose Granger-Weasley ser
Eu chamei Rose Granger-Weas- minha amiga.
ley para sair. ALBUS: E ela disse não.
ALBUS: E ela disse não. SCORPIUS: Mas eu pedi. Eu plantei
SCORPIUS: Mas eu pedi. Eu plantei a semente. A semente que eventual-
a semente. A semente que even- mente crescerá na nossa filiação.]
tualmente crescerá no nosso ca- HPCC1 (2021, n.p.), ato 2, Cena 24,
samento.] tradução nossa
HPPC (2016, n.p.), parte 2, Ato 4,
Cena 14, tradução nossa

479
As alterações, novamente, mostram um objetivo de instaura-
ção do não-interesse romântico de Scorpius em relação à Rose.
Dessa forma, fortalecendo o entendimento dos protagonistas
como um possível casal romântico com mais objetividade.
Além da extração dos diálogos insinuando o romance entre
Scorpius e Rose, há também a alteração de cenas para que surja
uma insinuação maior entre os protagonistas, seja tal insinua-
ção feita pelos próprios sobre eles mesmos, seja por persona-
gens terceiros. Por exemplo:
SNAPE: Think of something else,
Scorpius. Occupy your thoughts.
But SCORPIUS can’t occupy his
thoughts.
SCORPIUS: I feel cold. I can’t see.
There’s a fog inside me — around me.
SNAPE: You’re a king, and I’m a pro-
fessor. They’ll only attack with good
reason. Think about those you love,
think about why you’re doing this.
SCORPIUS (utterly consumed): I
can hear my mother. She wants me
— my help — but she knows I can’t
— help.
SNAPE: Listen to me, Scorpius.
Think about Albus. You’re giving up
your kingdom for Albus, right?
SCORPIUS is helpless. Consumed
by all the dementor is making him
feel. And SNAPE knows he needs to
open his heart to save him.
One person. All it takes is one per-
son. I couldn’t save Harry for Lily.
So now I give my allegiance to the
cause she believed in. And it’s pos-
sible — that along the way I started
believing in it myself.
SCORPIUS steps decisively away
from the dementor

480
[SCORPIUS: Eu não acredito que eu [SCORPIUS: Eu não acredito que eu
fiz isso fiz isso
ALBUS: Eu também não acredito ALBUS: Eu também não acredito
que você fez isso. que você fez isso.
SCORPIUS: Rose Granger-Weasley. SCORPIUS: Rose Granger-Weasley.
Eu chamei Rose Granger-Weasley Eu pedi para Rose Granger-Weasley
para sair. ser minha amiga.
ALBUS: E ela disse não. ALBUS: E ela disse não.
SCORPIUS: Mas eu pedi. Eu plantei SCORPIUS: Mas eu pedi. Eu plantei
a semente. A semente que even- a semente. A semente que eventu-
tualmente crescerá no nosso casa- almente crescerá na nossa filiação.]
mento.] HPCC1 (2021, n.p.), ato 2, Cena 24,
HPPC (2016, n.p.), parte 2, Ato 4, tradução noss
Cena 14, tradução nossa

Novamente, percebemos uma aproximação entre o afeto


que Severo Snape sentia por Lily Evans-Potter e o relaciona-
mento de Albus e Scorpius. Além disso, a adição da fala de
Scorpius (destacada) reforça para que o leitor/espectador in-
terprete a relação como amorosa na peça. Dessa forma, através
da reescrita dessa cena, demonstra-se com mais evidência a
aproximação amorosa entre os protagonistas, o que aumenta a
sua transparência.
Como podemos perceber e talvez fique mais claro a partir
da recepção, a primeira versão da peça apresentava esse rela-
cionamento de um modo mais opaco, ou seja, a aproximação
entre Albus e Scorpius era notada com mais dificuldade pelo
público. Na reescrita, com a alteração de alguns elementos, tal
relacionamento ganha ares mais claros, ainda que não se efeti-
va explicitamente.
Fora a alteração de cenas para tal objetivo, também houve a
adição de cenas nas quais favorecem essa interpretação amo-
rosa. Como por exemplo:
ALBUS: You do know, right? That Scorpius is the most important person
in my life? That he may always be the most important?
481
HARRY smiles.
HARRY: I know, and I like it. In fact, I like him. And if he is the most im-
portant person in your life, I think that’s a very good thing.
[ALBUS: Você sabe agora, não sabe? Que o Scorpius é a pessoa mais im-
portante da minha vida? Que é possível que ele sempre seja a mais impor-
tante?
HARRY sorri.
HARRY: Eu sei, e eu gosto disso. Na verdade, eu gosto dele. E se ele for a
pessoa mais importante na sua vida, eu acho que isso é uma coisa muito
boa.]
HPCC1 (2021, n.p.) Ato 2, Cena 25, tradução nossa.

Por mais que a leitura pareça indicar o relacionamento amo-


roso entre as personagens em análise, ainda há uma evasão em
explicitar tal relação na narrativa. Nesse sentido, não há uma
fala ou descrição que seja objetivamente clara da ligação entre
o “casal”. Percebemos que a reescrita encaminha para uma lei-
tura mais transparente da relação entre os personagens – que é,
afinal, a espinha dorsal da peça. Como no final da peça o casal
não se estabelece explicitamente, temos a constatação de que
a narrativa faz um jogo de afastamento/aproximação entre os
personagens, criando ambiguidade do relacionamento entre
Albus e Scorpius, o que confirma o uso evidente da estratégia
de queerbaiting.
2.3 Recepção
O roteiro de Harry Potter and the Cursed Child começou a ser
originalmente desenvolvido no ano de 2013 e foi lançado como
um livro isolado em 2016, antes da sua primeira performance
oficial, também em 2016, em Londres. A partir de sua publica-
ção, a recepção do público – seja em relação à obra escrita, seja
em relação à peça como espetáculo – se tornou um aspecto
bastante relevante.
Em um período em que a força cultural de Harry Potter no
mundo estava, talvez, em seu auge, enquanto a comunidade já
482
estabelecida de consumidores sentia a abstinência do conteú-
do depois que o último filme foi lançado em 2011 - Harry Potter
e as Relíquias da Morte parte 2 –, tal comunidade se mostrou
bastante ativa em relação ao queerbaiting.
O desenvolvimento de comunidades interpretativas é um
padrão identificável no universo mágico de Harry Potter e um
aspecto essencial no processo de consumo da obra. Em rela-
ção à peça Cursed Child, o processo não se mostrou diferente.
Entretanto, a comunidade que se estabeleceu é de uma di-
mensão significativamente menor, mas, mesmo assim, efetiva
em identificar os problemas que existem na narrativa da peça,
especialmente o queerbaiting: “Harry Potter and the Curse of
Heteronormativity. [Harry Potter e a Maldição da Heteronor-
matividade]” (BAKER-WHITELAW, 2016, tradução nossa).
O trocadilho do nome da peça com o conceito de heteronor-
matividade demonstra como a peça foi recebida pelo público,
principalmente pelo público LGBTQ+, e como a efetivação de
um casal homoafetivo era esperada. Nesse sentido, o termo
heteronormatividade surge como uma crítica ao queerbaiting,
pois sugere que a narrativa cumpria o papel da ordem estabe-
lecida. A presença da heteronormatividade é um fator essencial
para a compreensão do fenômeno de queerbaiting.
Em relação à escrita original da peça, de 2016, a interpreta-
ção amorosa se mostra mais perceptível, como podemos ver
no seguinte trecho:
Now that the hype is over, anyone notice how gay the bond between Al-
bus and Scorpius is?? Glitter flew out the page with every dialogue smh.
[Agora que a propaganda exagerada passou, alguém mais notou como o
vínculo entre o Albus e o Scorpius é gay?? Tinha glitter voando das páginas
em cada diálogo, eu juro]. (NANOR, 2016, tradução nossa)

Notamos que o leitor acima percebe o evidenciamento da


narrativa possivelmente amorosa, mas ainda falta a confirma-
483
ção explícita. Percebemos que a postagem contém uma per-
gunta sobre o teor do relacionamento entre Albus e Scorpius,
demonstrando que essa relação não está evidente na escrita,
mas ainda assim está implícita o suficiente para que um consu-
midor comum consiga identificar. Isso evidencia, novamente, a
presença da tentativa de engajamento da comunidade LGBTQ+
sem o objetivo de confirmação da representatividade em si.
Além das leituras de um público mais geral, houve tam-
bém leituras de pessoas especializadas, como podemos ver
abaixo, a partir dos tweets de Aja Romano, crítica cultural e re-
pórter da Vox, e de Lesli Margherita, atriz de musicais:
ALSO while i’m on the subject, the queerbaiting of Albus/Scorpius is
extra-insulting because like, it basically assumes that… [ALÉM DISSO
enquanto eu tô no assunto, o queerbaiting com o Albus/Scorpius é extra
insultante porque tipo, é basicamente assumido que…] (ROMANO, 2016,
tradução nossa)
...we don’t know what romance tropes look like when we see it. Like,
within the play, multiple textual romantic inferences are made between
Albus and Scorpius. [...nós não sabemos o que tropos românticos são,
quando enxergamos um. Tipo, dentro da peça, são estabelecidas múlti-
plas inferências textuais românticas entre Albus e Scorpius…] (ROMANO,
2016a, tradução nossa)

A agressividade justificada na reação analítica evidencia a


frustração sentida pela comunidade LGBTQ+ em relação à es-
tratégia utilizada na peça. Em primeiro lugar, devemos desta-
car que o queerbaiting não é apenas notado pelo perfil como
também é enunciado, como notamos no primeiro tweet. Em
segundo lugar, tweet seguinte apresenta uma carga de ironia
marcada pelo questionamento de que os leitores/espectadores
não perceberiam essa estratégia.
A partir disso podemos passar para outro exemplo dessa
frustração, que se mostra evidente no seguinte excerto:

484
Not gonna lie, supes bummed my Albus/Scorpius ship didn’t materia-
lize. [Não vou mentir, estou super chateada que meu casal Albus/Scorpius
não aconteceu]. (MARGHERITA, 2016, tradução nossa)

Nesse tweet se evidencia a estratégia do queerbaiting,


que se alicerça justamente na manutenção da expectativa do
relacionamento amoroso entre os protagonistas, que não se
efetiva ao final da narrativa.
Tal recepção se intensificou – desta vez, com uma energia
mais agradável – a partir do momento em que ocorreu a rees-
crita da peça para a Broadway, em 2021. A leitura dos protago-
nistas como um casal foi entendida como realidade pelos leito-
res/espectadores, principalmente por aqueles que fazem parte
da comunidade interpretativa aqui tratada. Podemos perceber
isso pela reação de Brian:
I did not expect for Albus and Scorpius to be explicitly gay in the shorte-
ned Cursed Child but here we are! [Eu não esperava que Albus e Scorpius
se tornassem explicitamente gay na reescrita encurtada de Criança Amal-
diçoada, mas aqui estamos nós!] (BRIAN, 2021, tradução nossa)

O fato do perfil referir que não esperava a mudança na for-


ma de tratamento do relacionamento expõe que a mesma ex-
pectativa estabelecida na primeira versão continua presente ao
consumir a segunda. A expressão here we are utilizada por Brian
conota uma noção de cumprimento dessa expectativa. Isso
pode ser assimilado a partir de nossa análise comparativa, em
que detectamos um esforço em tornar o relacionamento de Al-
bus e Scorpius mais transparente, ainda que ele não se efetive
no final. Por mais que as adaptações feitas para a versão en-
curtada não encaminharam o romance entre os protagonistas,
essas mudanças fizeram com que parte dos leitores/especta-
dores ficassem satisfeitos, o que não afeta o uso da estratégia
de queerbaiting, pelo contrário, reforça.

485
Ao fingir tornar o relacionamento amoroso homoafeti-
vo mais transparente, a narrativa encena uma conciliação com
a comunidade interpretativa, porém tal relação se mantém so-
mente como uma possibilidade implícita, pois continua a não
se realizar.
O perfil oficial da peça publica a última fala de Harry na peça.
O destaque vai para o comentário de Heather:

486
Figura 1

Precisamos levar em consideração o fato de que essa fala


vem logo após o diálogo em que Albus declara que Scorpius
“may always be the most important person” na sua vida. Nesse
enunciado percebemos a possibilidade somente de um rela-
cionamento duradouro entre Albus e Scorpius, porém tal re-
lacionamento ainda mantém-se no nível do discurso e não no
487
nível físico. Além disso, ele surge apenas como possibilidade e
não como efetividade.
Na resposta de Heather, percebemos que a reação da comu-
nidade interpretativa demonstra que a interpretação corrente é
de que essa relação se efetivou, o que pode ser notado pela
#scorbus. Scorbus é o nome utilizado pela comunidade para
denominar o relacionamento entre Scorpius e Albus.
Por fim, a publicação do perfil oficial se mostra como uma
ferramenta de marketing, que agencia os leitores/espectadores
da comunidade LGBTQ+ a consumirem seus produtos, reite-
rando o que determinamos ao longo de nossa análise: a pre-
sença da estratégia de queerbaiting.

Levando todos esses aspectos em consideração, a expli-


citude da estratégia de queerbaiting não se mostra apenas
presente na narrativa como se evidencia o suficiente para que o
espectador casual consiga identificá-la. Isso se dá, por exemplo,
a partir da estruturação do enredo e sua similaridade com a
comédia romântica. Esse aspecto sustenta a expectativa do
leitor/espectador em relação à efetivação do relacionamento
entre Albus e Scorpius. Também pudemos perceber que houve
um esforço em suavizar a heteronormatividade na versão
encurtada da peça. A partir disso, buscamos demonstrar como
a comunidade interpretativa recebeu e interpretou as duas ver-
sões da peça.
A estrutura narrativa da peça suporta a estratégia de queer-
baiting, utilizando ferramentas de marketing com o objetivo de
chamar a atenção da comunidade LGBTQ+ e angariar lucros
com seu consumo. A utilização de personagens de um univer-
so ficcional conhecido, como o de Harry Potter, apela para um

488
público já consolidado, do qual faz parte, também, a comuni-
dade LGBTQ+.
Nesse sentido, o queerbaiting pode ser definido como uma
forma explícita de tentativa de lucro em cima de uma comuni-
dade já desfavorecida numa contextualização cultural capitalis-
ta e se mostra como bastante prejudicial justamente pelo fato
de “se aproveitar” de uma comunidade que desde já sofre pre-
conceitos sociais evidentes. De acordo com Joseph Brennan:
(...) queerbaiting reveals itself as the latest example of “gay marketing.”
There is nothing particularly new about marketing to a niche audien-
ce, and such strategies have historically involved both “open” and more
“covert” tactics—such tactics that, when boiled down, are designed to
capture the loyalty and cash of queer audiences.
[queerbaiting se revela como o mais recente exemplo de “marketing gay”.
Não há nada de particularmente novo sobre marketing para um nicho
de audiência, e tais estratégias têm historicamente envolvido tanto táti-
cas “abertas” quanto mais “encobertas” - tais táticas que, quando cozidas,
são projetadas para capturar a lealdade e o dinheiro de audiências queer.]
(2019, tradução nossa.)

Por mais que o enredo se mostre frustrado, por conta da fal-


ta de consolidação do relacionamento amoroso entre Albus
e Scorpius, que fica somente em suspensão. Nossa leitura da
reescrita demonstra que a estratégia de queerbaiting foi utiliza-
da com mais intensidade, atingindo seu objetivo, que é atrair o
público que já procura esse tipo de representatividade na sua
premissa, nesse caso, o público LGBTQ+. Percebemos isso no
tweet de Brian, citado anteriormente, em que o autor reconhe-
ce a “efetivação” da relação como se fosse óbvia.
Contudo, este fenômeno se mostra prejudicial à própria obra,
pois limita o desenvolvimento da narrativa, que tende somente
a reproduzir a heteronormatividade. Isso vai contra o princípio
subversivo da literatura ou da arte em geral. Tal princípio sub-
versivo justifica a expectativa dos leitores/espectadores, em

489
relação à efetivação do relacionamento entre Albus e Scorpius,
o que o queerbaiting acaba por frustrar.

ALMEIDA, Tereza Virgínia De. Comunidade interpretativa. E-Dicioná-


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Não tem paginação.
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RE: Figura: “I think it’s going to be a nice day” We think so too. Which
extraordinary wizard does this line belong to? 13, nov. 2021. Twitter:
@CursedChildLDN. Disponível em: https://twitter.com/impossible_
cut/status/1459660370105167872. Acesso em: 21, nov. 2022.
ROMANO, Aja. ...we don’t know what romance tropes look like when
we see it. Like, within the play, multiple textual romantic inferences
are made between Albus and Scorpius. 23, set. 2016a Twitter: @aja-
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Albus/Scorpius is extra-insulting because like, it basically assumes
that… 23, set. 2016. Twitter: @ajaromano. Disponível em: https://
twitter.com/ajaromano/status/779415508584128512. Acesso em:
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ROWLING, J.K. Harry Potter e a Câmara Secreta. Rio de Janeiro: Roc-
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Cursed Child. Grã-Bretanha: Little, Brown, 2016. Não tem paginação.
SYD. Harry Potter and the Cursed Child Unofficial one part script.
Não publicado. A partir da peça de J.K. Rowling; John Tiffany; Jack
491
Thorne. Harry Potter and the Cursed Child. Encenada na Broadway,
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WRADMIN. Harry Potter books stats and facts. Wordsrated, 19, out.
2021. Disponível em: < https://wordsrated.com/harry-potter-s-
tats/>. Acesso em: 21 ago. 2022. Não tem paginação.

492
Úrsula e Insubmissas lágrimas de mulheres:
escrevivências em diálogo

Marta Ferreira Pinto1


Sou Marta Ferreira Pinto, brasileira, nascida no interior de
Ponta Grossa, no município de Palmeira, em uma Comunidade
Quilombola, a Colônia Sutil. Sou acadêmica do curso de Letras
Português-Espanhol e minha linha de pesquisa acompanha os
estudos da linguagem, mais especificamente, o campo da Lin-
guística Aplicada.
Essa temática surgiu quando eu estava no primeiro ano do
curso e resolvi pesquisar algum(a) autor(a) negro(a) brasileiro(a)
para pesquisar no TCC, encontrei o livro Literatura e Afrodescen-
dência no Brasil – Antologia Critica, volume I, de Eduardo de As-
sis Duarte, na biblioteca. Nele, encontrei uma pequena biogra-
fia da Maria Firmina dos Reis e pequenos fragmentos de seus
escritos. Gostei muito da descrição sobre a autora. Comecei a
pesquisar e ler alguns artigos sobre ela; a partir disso, decidi que
iria pesquisá-la. Para fazer contraponto com a obra Úrsula, da
Maria Firmina dos Reis, decidi analisa a obra Insubmissas Lágri-
mas de Mulheres, da Conceição Evaristo.
Como objetivo geral deste trabalho, propomos aproximar
as duas narrativas e as autoras através do estabelecimento de
relações dialógicas, e, nesse sentido, dar ênfase aos aspectos
sociocríticos da condição das mulheres negras brasileiras, per-
meados pelas condições culturais, políticas e sociais, à luz da
análise dialógica do discurso. As autoras cujas obras analisamos
são Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo. Com a análise
dialógica do discurso (BAKHTIN, 2003; VOLOCHINOV, 2017),
buscamos estabelecer relações dialógicas entre os romances
1 Trabalho orientado por Cloris Porto Torquato.
493
Insubmissas Lagrimas de Mulheres, de Conceição Evaristo, e
Úrsula, de Maria Firmina dos Reis.
Ao estabelecer essas relações dialógicas, buscamos na ma-
terialidade do texto aproximações entre as obras literárias e as
obras acadêmicas. Assim, evitamos que haja separação entre
teoria e análise. No decorrer do texto, articulamos os textos li-
terários a textos produzidos em diferentes campos do conheci-
mento por pensadoras negras. As relações de aproximações são
temáticas e valorativas: os textos tratam de temas semelhantes
(as condições das mulheres negras) e compartilham posições
valorativas/visões de mundo sobre eles. Relações dialógicas,
segundo Bakhtin (1979), são relações de sentidos:
As relações dialógicas são relações (de sentidos) entre toda espécie de
enunciados na comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que
sejam, se confrontados no plano do sentido (não como objetos e não
como exemplos linguísticos), acabam em relação dialógica (BAKHTIN,
1979, p. 92).

As relações dialógicas são as relações de sentidos, as quais


são estabelecidas entre os enunciados, que são produzidos
pelos interlocutores no processo comunicativo. Todavia, quan-
do os enunciados são analisados apenas sob uma perspectiva
restrita à estrutura/forma linguística, as relações dialógicas são
silenciadas, pois somente em ligação com o contexto extra ver-
bal é possível extrapolar o linguístico, e perceber a entonação
valorativa que recai sobre cada enunciado dito em condições
reais de uso (BAKHTIN, 1929).
As relações dialógicas estão presentes em qualquer discurso,
sendo uma característica inerente à linguagem. Bakhtin afirma
que “toda a linguagem, seja qual for seu campo de emprego (a
linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística etc.), está
impregnada de relações dialógicas” (BAKHTIN, 1929, p. 183).
Segundo o autor, são as relações dialógicas que proporcionam
494
esse caráter de vida à linguagem, ao tornar possível essa ca-
pacidade de retomada a outros discursos no processo comu-
nicativo, estabelecendo assim, relações de sentidos entre eles.
Isto é, relações entre discursos que são proferidos hoje, no pre-
sente, com outros já proferidos em um determinado momento
histórico, no passado, e que darão margens para o surgimento
de discursos outros no futuro. Em relação a isso, Bakhtin defen-
de que o falante sempre faz uso de uma palavra já dita antes
por outros, por assim dizer, já está ressalvado, contestado, elu-
cidado e avaliado de diferentes modos; nele se cruzam, conver-
gem e divergem diferentes pontos de vista, visões de mundo,
correntes. (BAKHTIN,1929).
Segundo Bakhtin (1979), as relações dialógicas proporcionam
dinamicidade, retomada de ideias, de concepções, presentes
nos discursos. Pois, o sujeito se constitui a partir de uma rela-
ção social e histórica, para com outros, para com as ideias do
outro, em que o falante assume uma atitude de resposta ao
já-dito, estabelecendo uma relação de alteridade, ou seja, de
alternância enunciativa. No momento em que o sujeito produz
seu enunciado, coloca-se no lugar do outro, pressupondo de-
terminadas respostas que orientam seu enunciado do começo
ao fim. O interlocutor exerce grande papel nas escolhas linguís-
tico-estilísticas do falante. O outro sempre faz parte do proces-
so de construção discursiva, o autor ainda ressalta que a palavra
é uma espécie de ponte lançada entre falante e interlocutor.
Podemos observar, a partir deste conceito de Bakhtin, que as
duas autoras Conceição Evaristo e Maria Firmina dos Reis uti-
lizam essas relações dialógicas entre os personagens em suas
obras, além disso, as autoras mostram e deixam explicito a im-
portância da linguagem dentro das obras. Deixa marcado esse
processo histórico da linguagem que os afro-brasileiros carre-
gam a partir de suas obras, a história que é narrada de mãe para
495
filha, pai e filho, e de avô para os netos, essa história ou passado
histórico que é rememorado em alguns momentos nas obras é
carregado de afeto, sentimento e valores familiares.
Neste estudo, buscamos também refletir sobre como o ra-
cismo assume tonalidades específicas quando observamos as
condições das mulheres negras. Assim, mobilizamos referên-
cias dos estudos do feminismo negro brasileiro e internacional,
marcados fortemente pela perspectiva da Interseccionalidade.
Com esta pesquisa, procuramos também contribuir para uma
educação linguística antirracista, uma vez que os resultados
desta investigação podem contribuir para a formação docente
e para o ensino de língua portuguesa na educação básica.
No sentido da educação antirracista, temos a implementação
da lei 10.639/2003 e da 11.645/08 (BRASIL, 2003; 2008),
que estabelecem, nas diretrizes e bases da educação nacional, a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira.
Essa obrigatoriedade ajudou no resgate histórico da população
Afro-Brasileira. Através dessa lei, tivemos uma ressignificação
que impulsionou nas literaturas de autorias de mulheres. Mui-
tas dessas autoras têm suas vivências próximas umas das ou-
tras. Por mais que tenham vivido/vivam em tempos distintos,
passado ou presente, as histórias delas têm proximidade, pois
estão marcadas pela escravização, pela diáspora, pela discrimi-
nação racial. Toda história e cultura do povo Afro-Brasileiro, que
até então era invisível nos espaços formais de educação, aos
poucos vai se tornando visível através da escrita de suas obras.
Temos os discursos das autoras negras em suas narrativas, po-
esias, músicas e etc.
Nós, mulheres negras, temos que encarar o mundo e situa-
ções difíceis que encontramos ao longo do percurso que esco-
lhemos trilhar, porém essa força vem dos nossos ancestrais; a
presentificação deles, o mundo desse passado influencia nos-
496
sas ações. Escritoras negras que conhecemos atualmente vêm
da luta das nossas ancestrais que nos influenciam nos dias atu-
ais.
Me identifico muito com essas mulheres, porque sou negra e
também por ser mulher. Como já citei acima, foi graças à for-
ça das mulheres nossas ancestrais que conseguimos ocupar
espaços. A partir do momento que comecei a ler e pesquisar
sobre essas mulheres negras, senti-me tão próxima delas, por-
que as vivências delas são próximas das minhas. Quando falo,
ouço, escrevo ou leio sobre elas, eu estou falando/lendo sobre
a minha pessoa, o que gera um sentimento de não estar só, de
não estar caminhando sozinha. A coragem dessas mulheres de
escrever sobre suas vivências me fortalece para eu escrever as
minhas, ou seja, elas me dão força e coragem para continuar,
para mudar a minha própria história, assim como elas mudaram
as suas histórias. Desse modo, a escolha dessas autoras e de
suas obras decorre de uma necessidade minha e também de
uma necessidade latente na contemporaneidade de um olhar
sobre as questões das vivências, das narrativas que elas trazem
em seu diálogo.
Nas duas obras, analisamos aspectos das condições das mu-
lheres negras no Brasil. Elas trazem as questões sociais que as
mulheres negras brasileiras sofrem no seu cotidiano. Como
descreve Conceição Evaristo em sua narrativa em Insubmissa
Lagrimas de Mulheres, temos relatos de vivências das mulhe-
res negras do século XX. Maria Firmina dos Reis, do século XIX,
descreve em sua obra Úrsula questões das vivências, experiên-
cias das personagens mulheres negras na época da escraviza-
ção; ela nos traz a temática abolicionista em sua obra. Apesar
de as autoras serem de períodos históricos diferentes, o que as
aproxima é a questão de luta das mulheres que elas trazem em
suas obras.
497
É a partir das obras dessas autoras e de outras pesquisado-
ras negras que busco pensar nas condições das mulheres ne-
gras brasileiras, onde a afirmação de uma identidade negra
e até mesmo o gênero podem trazer implicações na vida de
cada uma. Quando a mulher negra afirma a sua identidade, o
contexto a sua volta pode começar a piorar, porque ela está se
afirmando como mulher negra. O racismo pode se tornar mais
explícito, e o machismo pode se fortalecer. Apesar do racismo,
essa marcação de pertencimento racial se torna mais recorrente
e consistente a partir do momento que as intelectuais e escrito-
ras negras conquistam espaço na academia e na sociedade em
geral, ajudando muito na afirmação de outras mulheres negras.
Considerando que estamos tratando de vivências de mulhe-
res negras, temos aqui uma pequena biografia dessas autoras,
que são muito importantes nesta construção do pensar nas
condições das mulheres negras brasileiras. Entendendo que as
autoras refletiram sobre essa questão a partir das vivências do
racismo no seu corpo, trago também uma imagem delas, mar-
cando o lugar do corpo negro neste trabalho. Para isto, recorro
a biografias e fotos publicadas em diferentes sites:

498
Conceição Evaristo

Figura 1 – Conceição Evaristo. Fonte: Palmares (2013).

A autora de Insubmissas Lágrimas de Mulheres, Conceição


Evaristo,
Nasceu em 29 de dezembro de 1946 numa favela da zona sul de Belo
Horizonte, Minas Gerais. Filha de uma lavadeira que, assim como Caro-
lina Maria de Jesus, matinha um diário onde anotava as dificuldades de
um cotidiano sofrido, Conceição cresceu rodeada por palavras. Teve que
conciliar os estudos com o trabalho como empregada doméstica, até
concluir o curso Normal, em 1971, já aos 25 anos.
Uma das principais expoentes da literatura Brasileira e Afro-brasileira
atualmente, Conceição Evaristo tornou-se também uma escritora ne-
gra de projeção internacional, com livros traduzidos em outros idiomas.
Publicou seu primeiro poema em 1990, no décimo terceiro volume dos
Cadernos Negros, editado pelo grupo Quilombo hoje, de São Paulo.
Desde então, publicou diversos poemas e contos nos Cadernos, além
de uma coletânea de poemas e dois romances.
A poeta traz em sua literatura profundas reflexões acerca das questões
de raça e de gênero, com o objetivo claro de revelar a desigualdade ve-
lada em nossa sociedade, de recuperar uma memória sofrida da popu-
lação afro-brasileira em toda sua riqueza e sua potencialidade de ação.
(PALMARES, 2013, online).

499
Maria Firmina dos Reis
A autora de Úrsula, apesar de não ter registros fotográficos,
tem a seguinte biografia disponível:
Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís do Maranhão, em 11 de ou-
tubro de 1825, ‘filha natural’ da escrava alforriada Leonor Felipa dos
Reis, tendo como avó a também escrava alforriada Engrácia Romana
da Paixão e, como tio, o professor, gramático e filólogo Sotero dos Reis,
pertencente ao ramo branco da família e com forte atuação nos círcu-
los letrados da capital maranhense. Em 1847, é aprovada em concur-
so público para a Cadeira de Instrução Primária na vila de São José de
Guimarães, no município de Viamão, situado no continente e separado
da capital pela baía de São Marcos, conforme registram seus biógrafos
Nascimento Morais Filho (1975) e Agenor Gomes (2022).
Segundo Morais Filho, ao se aposentar, no início da década de 1880, a
autora funda, na localidade de Maçaricó, a primeira escola mista e gra-
tuita do Maranhão e uma das primeiras do país. (...) A professora foi pre-
sença constante na imprensa local, publicando poesia, ficção, crônicas e
até enigmas e charadas. Segundo Zahidé Muzart (2000, p. 264), ‘Maria
Firmina dos Reis colaborou assiduamente com vários jornais literários,
tais como A Verdadeira Marmota, Semanário Maranhense, O Domingo,
O País, Pacotilha, O Federalista e outros’.
Além disso, teve participação relevante como cidadã e intelectual ao
longo dos noventa e dois anos de uma vida dedicada a ler, escrever,
pesquisar e ensinar. Atuou como folclorista, na recolha e preservação
de textos da cultura e da literatura oral e também como compositora,
sendo responsável, inclusive, pela composição de um hino em louvor à
abolição da escravatura. Firmina é autora de Úrsula, publicado em 1859,
mas com circulação somente a partir do ano seguinte. Livro revolucio-
nário para o seu tempo, figura como o primeiro romance abolicionista
de autoria feminina da língua portuguesa; e, possivelmente, o primeiro
romance publicado por uma mulher negra em toda a América Latina.
Maria Firmina dos Reis faleceu em 1917, pobre e cega, no município de
Guimarães. Infelizmente, muitos dos documentos de seu arquivo pes-
soal se perderam e até o momento não se tem notícia de nenhuma foto
sua daquela época (LITERAFRO, 2022).

500
Figura 2 – Lélia Gonzalez. Fonte: Palmares (2019).

Lélia Gonzalez foi uma ativista e intelectual negra; denunciou o racismo


e o sexismo como formas de violência que subalternizam as mulheres
negras. A intelectual nasceu em Belo Horizonte, no dia 1° de fevereiro
de 1935. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde graduou-se em História
e Geografia, fez mestrado em Comunicação e doutorado em Antropo-
logia Política. Atuou como professora em escolas de nível médio, facul-
dades e universidades.
Iniciou o primeiro curso de Cultura Negra na Escola de Artes Visuais do
Parque Lage (EAV). Para Lélia Gonzalez, o conceito de cultura deveria
ser pensado em pluralidade e servir como elemento de conscientização
política. Neste sentido, por meio do curso de Cultura Negra, propunha
uma análise da contribuição africana na formação histórica e cultural
brasileira, tendo incorporado ao currículo aulas práticas de dança afro-
-brasileira, capoeira e o conhecimento das religiões de matriz africana.
501
Foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado contra Discrimi-
nação e o Racismo (MNUCDR), em 1978, atualmente Movimento Negro
Unificado (MNU), principal organização na luta do povo negro no Bra-
sil e, integrou a Assessoria Política do Instituto de Pesquisa das Culturas
Negras. Lélia também ajudou a fundar o Grupo Nzinga, um coletivo de
mulheres negras e integrou o conselho consultivo da Diretoria do De-
partamento Feminino do Granes Quilombo.
Lélia faleceu em 10 de julho de 1994, seu legado através de sua obra
acadêmica e militância contribuíram para impulsionar não apenas a
problemática racial no Brasil, mas também o papel da mulher negra na
sociedade (PALMARES, 2019, grifos nossos).

Sueli Carneiro

Figura 3 – Sueli Carneiro. Fonte: Geledés (2013).

Sueli Carneiro é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo


(USP) e fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra – primeira
organização negra e feminista independente de São Paulo. Teórica da
questão da mulher negra criou o único programa brasileiro de orienta-
ção na área de saúde física e mental específico para mulheres negras,
onde mais de trinta mulheres são atendidas semanalmente por psicó-
logos e assistentes sociais.
Em 1988 foi convidada a integrar o Conselho Nacional da Condição Fe-
minina, em Brasília. Após denúncias de um grupo de cantores de rap
da cidade de São Paulo, que queriam proteção porque eram vítimas
502
frequentes de agressão policial. Ela decidiu criar em 1992 um plano es-
pecífico para a juventude negra, o Projeto Rappers, onde os jovens são
agentes de denúncia e também multiplicadores da consciência de cida-
dania dos demais jovens.
A filósofa também é autora da obra Racismo, sexismo e desigualdade no
Brasil que traz uma abordagem crítica dos comportamentos humanos e
apresenta os principais avanços na superação das desigualdades criadas
pela prática da discriminação racial – indicadores sociais, mercado de
trabalho, consciência negra, cotas, miscigenação racial no Brasil, racis-
mo no universo infantil, obrigatoriedade do ensino da História e Cultura
Africana e Afro-Brasileira nas escolas públicas do País, entre outros (Ge-
ledés, 2013, online, grifos nossos).

Grada Kilomba

Figura 4 – Grada Kilomba. Fonte: MNBT (2023).

Grada Kilomba é uma artista interdisciplinar, escritora e teórica, com raí-


zes em Angola e São Tomé e Príncipe, nascida em Lisboa, onde estudou
psicologia e psicanálise. Na esteira de Frantz Fanon e bell hooks, a auto-
503
ra reflecte sobre memória, raça, género, pós-colonialismo, e a sua obra
estende-se à performance, encenação, instalação e vídeo. Kilomba cria
intencionalmente um espaço híbrido entre as linguagens académica e
artística, dando voz, corpo e imagem aos seus próprios textos. Os seus
trabalhos foram apresentados na 32.ª Bienal de São Paulo, na 10.ª Bie-
nal de Berlim, na Documenta 14 e no MAAT, entre outros. Vive em Ber-
lim, onde se doutorou em filosofia na Freie Universität e foi professora
no Departamento de Género da Humboldt Universität. (MCBT, 2023,
online).
Como se observa por esses textos de caráter biográfico, em
diferentes espaços sociais, essas mulheres explicitaram e con-
frontaram o racismo e as distintas formas de opressão viven-
ciadas pelas mulheres negras. Produzindo em tempos e espa-
ços diferentes, essas mulheres articularam a escrita (literária ou
acadêmica) à luta antirracista e antimachista mais ampla.
As mulheres negras escritoras e pesquisadoras trazem em
suas vozes questões como as mulheres negras que foram es-
tupradas por seus senhores ou companheiros, mulheres que
foram desprovidas (inclusive de humanidade) pelo regime es-
cravista, mulheres que sofreram violência todos os dias. Vale
lembrar que Lélia Gonzalez (2018) fala exatamente sobre isso
em sua obra Por um Feminismo Afrolatinoamericano, uma cole-
tânea de textos da autora publicados em diferentes momentos
de sua carreira. Vivemos dentro de uma sociedade com valores
e padrões historicamente hegemônicos; as mulheres negras
estiveram e estão em situação mais vulnerável, vivenciando,
em seus tempos-lugares, opressões estruturais relacionadas à
lógica colonial, tais como o racismo, o sexismo e o classicismo
(KILOMBA, 2019).
Com suas vozes silenciadas pela estrutura da sociedade, as
mulheres negras sofrem opressão racista, de gênero e classista,
onde o trabalho não é valorizado, sendo sua mão-de-obra liga-
da aos afazeres domésticos, cozinheiras, arrumadeiras e babás.
A mulher negra no Brasil só conseguiu se inserir no mercado de
504
trabalho a partir destas tarefas que lhe eram impostas desde
o período de escravização. Vale lembrar que estas atividades
domésticas que elas exerciam estão ligadas ao período colonial
e à escravização no contexto brasileiro. De acordo com Lélia
Gonzalez, a compreensão da condição das mulheres negras no
Brasil passa por tratar da escravização:
Alguns aspectos de ordem histórica proporcionarão melhor inteligibili-
dade ao nosso trabalho e melhor entendimento da situação da mulher
negra em particular, e do povo negro em geral, em termos da sociedade
brasileira. Em outras palavras, embora esquematicamente, trataremos
da escravidão no Brasil (GONZALEZ, 2018, p. 55).

Lélia Gonzalez reflete sobre essa condição da mulher negra


e assinala:
Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discri-
minação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo
sexismo a colocam no nível mais alto de opressão. Enquanto seu ho-
mem é objeto da perseguição, repressão e violência policiais (para o ci-
dadão negro brasileiro, desemprego é sinônimo de vadiagem; é assim
que pensa e age a polícia brasileira), ela se volta para a prestação de ser-
viços domésticos junto às famílias das classes média e alta da formação
social brasileira. Enquanto empregada doméstica, ela sofre um processo
de reforço quanto à internalização da diferença, da subordinação e da
‘inferioridade’ que lhe seriam peculiares. Tudo isso acrescido pelo pro-
blema da dupla jornada que ela, mais do que ninguém, tem de enfrentar
(GONZALEZ, 2018, p. 65-66; destaques nossos).

Assim, a autora discute sobre o sexismo, buscando mos-


trar como a imagem da mulher negra é construída dentro de
outro lugar na estrutura social, diferente da mulher branca,

-
505
porque temos sido falados (...), que neste trabalho assu-

Essa resistência, que culminou com a tomada da palavra para


dizer-se, assumiu diferentes formas ao longo da história: no pe-
ríodo escravista, o povo negro resistiu por meio dos quilombos
– “E os quilombos existiram em todo o país como a contrapar-
tida, o modo de resistência organizada do povo negro contra a
superexploração de que era objeto” (GONZALEZ, 2018, p. 56);
no contexto urbano, a resistência assumiu historicamente a
forma da luta armada, como na Revolta dos Malês, bem como
a resistência na manutenção das religiões de matriz africana.
No interior do próprio escravismo, como uma resistência pas-
siva, destaca-se a resistência linguística da mãe preta, com o
pretuguês:
Mais precisamente, coube à mãe preta, enquanto sujeito suposto saber,
a africanização do português falado no Brasil (o ‘pretuguês’, como dizem
os africanos lusófonos) e, consequentemente, a própria africanização da
cultura brasileira.
E, se levamos em conta a teoria lacaniana, que considera a linguagem
como o fator de humanização ou de entrada na ordem da cultura do
pequeno animal humano, constatamos que é por essa razão que a cul-
tura brasileira é eminentemente negra. E isso apesar do racismo e de
suas práticas contra a população negra enquanto setor concretamente
presente na formação social brasileira (GONZALEZ, 2018).

Podemos entender, na obra de Maria Firmina do Reis, a per-


sonagem mãe Susana como essa resistência passiva, que assu-
me o lugar da mãe preta cuidadora não apenas da jovem Úrsu-
506
la, como também da sua mãe, a senhora Luísa B. Apresentadas
como bondosas, Úrsula e Luísa são vistas como mulheres que
precisam de cuidados, pois já não têm o homem branco para
protegê-las. E Susana é narrada como a cuidadora dessas duas
mulheres, chegando a morrer por tentar proteger a jovem Úr-
sula. Sua resistência passiva pode ser observada em sua afir-
mação:
O senhor Paulo B. morreu, e sua esposa e sua filha procuraram em sua
extrema bondade fazer-nos esquecer nossas passadas desditas! Túlio,
meu filho, eu as amo de todo o coração, e lhes agradeço, mas a dor que
tenho no coração, só a morte poderá apagar! – Meu marido, minha filha,
minha terra... Minha liberdade... (REIS, 2018, p. 81).

Apesar de amar Luísa e Úrsula, a mãe Susana carrega as do-


res das perdas: das relações familiares, do desterro forçado e,
sobretudo, da liberdade. Sua permanência com as mulheres
brancas parece ser motivada pelo fato de não lhe restar nada
mais a não ser cuidar dessas mulheres, como uma mãe.
O que a gente quer dizer é que ela não é esse exemplo extraordinário
de amor e dedicação totais como querem os brancos e nem tampouco
essa entreguista, essa traidora da raça como querem alguns negros mui-
to apressados em seu julgamento. Ela, simplesmente, é a mãe. É isso
mesmo, é a mãe (GONZALEZ, 2018, p. 101).

Essa “maternidade”, entretanto, é vista por Gonzalez como


uma resistência passiva:
Vale notar que tanto a mãe preta quanto o pai-joão têm sido explorados
pela ideologia oficial como exemplos de integração e harmonia raciais,
supostamente existentes no Brasil. Representariam o negro acomoda-
do, que passivamente aceitou a escravidão e a ela correspondeu segun-
do a maneira cristã, oferecendo a outra face ao inimigo. Entretanto, não
aceitamos tais estereótipos como reflexos ‘fiéis’ de uma realidade vivida
com tanta dor e humilhação. Não podemos deixar de levar em consi-
deração que existem variações quanto às formas de resistência. E uma
delas é a chamada ‘resistência passiva’. A nosso ver, a mãe preta e o pai-
-joão, com suas histórias, criaram uma espécie de ‘romance familiar’ que
507
teve uma importância fundamental na formação dos valores e crenças
do povo, do nosso Volksgeist. Conscientemente ou não, passaram para
o brasileiro ‘branco’ as categorias das culturas africanas de que eram re-
presentantes (GONZALEZ, 2018, p. 60).

Se, por um lado, a mãe preta é responsável pela formação


desses valores e crenças, pela formação cultural e linguísti-
ca do branco, este branco, por sua vez, na sua prática racista,
busca silenciar e negar essa língua e essa cultura que o forma.
Assim, Sueli Carneiro (2005) mobiliza os conceitos de biopo-
der e epIstemicídio para propor um entendimento das práticas
discursivas racistas no Brasil. A autora demonstra a existência
de um contrato social que sela um acordo de exclusão social
e subalternização dos negros, no qual o epistemicídio cumpre
uma função estratégica de tecnologia do biopoder:
É fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da auto-estima que o ra-
cismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação
aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da des-
valorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente
Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade;
pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fra-
casso e evasão escolar. A esses processos denominamos epistemicídio
(CARNEIRO, 2005, p. 97).

As desigualdades raciais estruturais presentes nas sociedades


ocidentais constituem privilégios na produção de conhecimen-
to, estabelecendo-se como pensamento hegemônico, o que
vem determinando quem pode e quem não pode produzir co-
nhecimento, ao longo do processo histórico, sobretudo o que é
considerado conhecimento e o que não é. Nesse sentido, a aca-
demia científica não é um espaço neutro, somente um espaço
de conhecimento, mas é também um espaço de violência (KI-
LOMBA, p.51, 2019). No pensamento acadêmico, encontramos
o resultado das relações desiguais de poder e raça existentes
nas sociedades
508
Como forma de resistência ao epistemicídio e modo de to-
mar a palavra para falar-nos, podemos recorrer à perspectiva
de escrevivência, que, para Conceição Evaristo (2005), significa
contar histórias de vida absolutamente particulares, mas que
remetem a outras experiências coletivizadas, uma vez que se
compreende existir um comum constituinte entre autora e pro-
tagonista, quer seja por características compartilhadas através
dos marcadores sociais, quer seja pela experiência vivenciada,
ainda que de posições distintas. Segundo Evaristo (2005), o
termo escrevivência traz essa ideia de um fundamento histórico,
que é esse processo de escravização dos povos africanos, e eu
estou pensando muito nas mulheres africanas e suas descen-
dentes escravizadas. Escrevivência, segundo a autora, é uma
ferramenta metodológica e uma ética de pesquisa que aposta
na escrita como uma forma de resistência, abordando a vida de
mulheres negras.
É exatamente isso que ocorre em Úrsula, de Maria Firmina
dos Reis, e Insubmissas Lagrimas de Mulheres, de Conceição
Evaristo. Temos as vozes das autoras negras trazendo narrati-
vas de trajetórias de mulheres negras. As autoras possibilitam
que as personagens mulheres negras sejam as narradoras de
suas próprias histórias. Não por acaso, a mãe Susana narra sua
história ao jovem Túlio: “Vou contar-te o meu cativeiro” (REIS,
2018, p. 79); e Maria, do conto intitulado Maria do Rosário Ima-
culada dos Santos, na obra de Evaristo, conta sua história à nar-
radora que abre o conto:
Insistindo sempre que de imaculada nada tinha, Maria do Rosário, ainda
fazendo troça, pediu licença à outra, a santa, e começou a narração de
um pouco de sua vida. Eis:
– Eu era bem menina ainda, tinha uns sete anos no máximo, mas tenho
na memória a nitidez da cena (EVARISTO, 2011, p. 39).

509
O ato de dizer faz com que a pessoa não se cale diante das
situações que oprimem. Isso as autoras Conceição Evaristo e
Maria Firmina fazem através de suas obras, possibilitando que
personagens narrem e questionem aquilo que lhes foi imposto.
Para Conceição Evaristo (2005), escrever é um modo de ferir
o silêncio imposto; ao escrever-se, “toma-se” o lugar da escrita
como direito, assim como se toma o lugar da vida.
A resistência promovida pelo dizer-se, não permitindo que ou-
tra/o pessoa branca/o diga a pessoa negra, também é tomada
como reflexão por Grada Kilomba (2019). Essa autora nos des-
creve as formas de silenciamento impostas pelo colonialismo,
dentre as quais destaca-se a máscara, que se tornou parte do
projeto colonial europeu.

Figura 5 – Anastácia Livre. Fonte: Projeto Afro (2022).

510
Tal máscara foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se
tornou parte do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos.
Ela era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca
do sujeito Negro, instalado entre a língua e a mandíbula e fixado por
detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra
em torno do nariz e da testa. Oficialmente, a máscara era usada pelos
senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/ as comes-
sem cana-de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações,
mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de
medo, visto que a boca era um lugar tanto de mudez quanto de tortura.
Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela
simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes
brutais de silenciamento dos(as) chamados(as) ‘Outros(as)’: Quem pode
falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?
(KILOMBA, 2019).

Se as perspectivas coloniais/dominadoras impõem o silen-


ciamento e o medo, quando as autoras negras se dizem – seja
na literatura, seja no texto acadêmico, seja em outras artes
(como faz Kilomba) – produzem resistências a essas perspec-
tivas de dominação e apagamento das mulheres negras. Não
é por coincidência que Conceição Evaristo (2017) afirma: “Nos-
sa voz estilhaça a máscara do silêncio”. Para Kilomba (2019), a
ideia de descolonização propõe, em linhas gerais, um tornar-se
sujeito; propõe que os sujeitos têm o direito de definir suas pró-
prias realidades, estabelecer suas próprias identidades e nome-
ar suas histórias. Portanto, a escrita é um ato de descolonização;
escreviver é um ato de descolonização no qual o sujeito que es-
creve se opõe a posições sociais impostas pela lógica colonial,
tornando-se escritora legitimada ao reinventar a si mesma.
A escrita literária das autoras negras é marcada pela expe-
riencia da coletividade negra, segundo Conceição Evaristo
(2017). Essa autora assinala que a crítica literária dominante não
acredita que as experiências das/os autoras/es negras/os se-
jam matéria de ficção. Ela ainda ressalta que isso é muito con-
traditório porque temos várias obras da literatura brasileira que
511
se inspiram na cultura africana e afro diaspórica para construir o
texto literário. Porém, quando se trata da autoria negra, quando
as/os autoras/es negras/os transformam as experiências em
textos literários, ocorre um discurso de questionamento da le-
gitimidade literária desses textos. Segundo a autora, escrever é
um exercício; é necessário pensar nas maneiras de como uma
observação do cotidiano pode se transformar em literatura. A
autora ainda ressalta que a nossa escrevivência é pra acordar
os da casa grande. Então esse conceito nasce justamente com
a tentativa de borrar parte dessa história, é o reverso. E é o re-
verso também por um outro aspecto, porque aí já tem escrita.
Se antes a fala da mulher negra ficou condicionada a uma ora-
lidade, hoje ela tem também a escrita. E tê-la é justamente se
apropriar das armas da casa grande. Além de suas produções
serem invisibilizadas, essas mulheres eram vistas sob uma ótica
colonizadora e estereotipada.
Conceição Evaristo (2009) descreve que a ficção ainda se
ancora nas imagens de um passado escravo, em que a mulher
negra era considerada só como um corpo que cumpria as fun-
ções da força de trabalho, de um corpo-procriação de novos
corpos para serem escravizados e/ou de um corpo-objeto de
prazer do macho senhor. (EVARISTO, 2009, p. 23) Essas visões
sobre a mulher negra são abordadas também por Lélia Gonza-
lez. Essa autora assinala que as mulheres negras no Brasil são
divididas em três principais grupos de trabalhadoras: a empre-
gada doméstica, que é aquela que representa a principal força
de trabalho; a mulata, que representa um “tipo exportação” de
mulher, cujo trabalho estaria associado à estética do corpo e à
sensualidade, ou seja, o corpo-objeto de prazer e procriação; e
a mãe preta, que representa o corpo que amamenta e cuida.
Conceição Evaristo (2016) traz, em sua obra Insubmissas La-
grimas de Mulheres, vivências das mulheres negras através das
512
memórias dessas mulheres que narram as suas próprias histó-
rias, abordando questões de exclusão, injustiça social e precon-
ceito racial nas periferias do nosso país. O livro é composto por
13 contos. Cada um deles narra a vivência de uma personagem
diferente e traz situações carregadas de sentimento e de cica-
trizes que se ligam a um contexto histórico que parece ainda
remontar a um período escravista. Cada conto leva como título
um nome de mulher, o nome daquela cuja história é narrada.
A maioria das mulheres são vítimas do racismo, de violência
sexual e abandono por parte de seus companheiros ou mari-
do, mulheres que sofrem no trabalho doméstico, sofrem por
não ter um salário digno, por estar em condições precárias. Al-
gumas das narrativas são sobre a maternidade. Porém, temos
as figuras dessas mulheres como forma de resistência, porque,
apesar de tudo o que elas sofreram, elas continuam trilhando
seu caminho.
Por outro lado, temos as mulheres como personagens que
narram a sua história de vida, são mulheres fortes que afirmam
a sua identidade. Evaristo (2016) traz isso em cada conto da sua
obra, a subjetividade de cada uma das personagens. A autora
fala como as famílias negras brasileiras são resistentes e que
isso está relacionado à questão histórica, colonial do país. A au-
tora mostra as realidades das mulheres através da sua escrita
literária ou poética com objetivo de dar visibilidade e voz para
as personagens negras. Conceição Evaristo relata que quando
falamos da condição das mulheres brancas e da condição das
mulheres negras, nós estamos falando de uma outra condição.
Quando nós estamos falando da condição das mulheres po-
bres, com certeza as mulheres pobres brancas têm mais pos-
sibilidade de vencerem a opressão social do que as mulheres
negras, porque a condição das mulheres negras é atravessada
pelo racismo.
513
Considerando as limitações deste Trabalho de Conclusão de
Curso, focalizamos aqui as aproximações entre o conto intitula-
do Maria do Rosário Imaculada dos Santos (EVARISTO, 2011) e a
narrativa da personagem Mãe Susana, da obra de Maria Firmi-
na (2018). O conto abre com a voz de Maria falando sobre seu
nome. Essa voz nos é apresentada pela narradora: “começou
assim a conversa de Maria do Rosário comigo”. A narradora, via-
jante em busca de história de mulheres, mostra-se desconfia-
da, mas assinala sua escuta atenta e a marcação da voz da per-
sonagem, que se torna, então, narradora de sua própria história:
Maria do Rosário Imaculada tinha a fala tão fácil, que até duvidei que
ela tivesse alguma história para contar, ou melhor, cheguei a pensar que
o seu relato não traria novidade alguma. A porta da casa dela sempre
aberta era um sinal visível da receptividade da dona para qualquer pes-
soa que por ali passasse. Mas resolvi arriscar. O sorriso dela foi tão en-
cantador e respondeu ao meu boa tarde de uma maneira tão efusiva,
que, para quem busca histórias, aquela atitude afiançava o desejo dela
de conversar comigo. E quando, embora brincando, revelou o seu des-
contentamento com o próprio nome, me lembrei da mulher que havia
criado um nome para si própria. Tive vontade de contar a história de Na-
talina Soledad, mas, naquele momento, o meu prazer era o da escuta.
Insistindo sempre que de imaculada nada tinha, Maria do Rosário, ainda
fazendo troça, pediu licença à outra, a santa, e começou a narração de
um pouco de sua vida. Eis: (EVARISTO, 2011, p. 39, grifos nossos).

Maria fora roubada quando ainda era criança (7 anos), da casa


de seus pais, por um casal do Sul do Brasil. A situação vivida é
narrada em comparação com a violência da escravização:
E foi preciso que passassem muitos dias e muitas noites de viagem nas
estradas, para que eu entendesse que a moça e o moço estrangeiros
tinham me tomado de meus pais. E, quando alcancei a gravidade da
situação, por muito tempo pensei que fosse acontecer comigo o que,
muitas vezes, escutei os mais velhos contar. As histórias de escravidão
de minha gente. Eu ia ser vendida como uma menina escrava (EVARIS-
TO, 2011, p. 40, grifos nossos).

514
Sofrida a violência da separação da família e da terra natal,
assim como a mãe Susana, do romance Úrsula, a personagem
vê-se privada também de seu nome, como se lhe negassem
sua própria existência: “Jamais perguntaram o meu nome, me
chamavam de ‘menina’” (EVARISTO, 2011, p. 41), sendo as-
sim despersonalizada. Para Maria, essas pessoas que a haviam
roubado negavam-lhe também sua história: “Eu tinha um de-
sejo enorme de falar de minha terra, de minha casa primeira,
de meus pais, de minha família, de minha vida e nunca pude”
(EVARISTO, 2011, p. 41).
Maria Firmina, em seu romance Úrsula, tem um capítulo in-
titulado “A preta Susana”, em que a personagem mulher negra
narra sua história de ser roubada de sua família, sua terra natal
e sua liberdade. Susana se identifica como uma mulher africa-
na escravizada, personagem secundária que narra sobre a sua
vivência, como era a sua vida em África, conta sobre seu matri-
monio e sobre sua filha e como ela foi trazida forçadamente ao
Brasil como escrava.
Ainda não tinha vencido cem braças do caminho, quando um assobio,
que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente,
que aí me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-
-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde
que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade:
os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem com-
paixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível...
a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram
daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e
liberdade! Meu Deus!. (REIS, 2018, p.122, grifos nossos).

Assim como Maria, Susana foi sequestrada, separada dos


seus familiares e de suas origens, privada de liberdade, explo-
rada em sua força de trabalho, silenciada de sua história. Ten-
do conhecido essa experiência nas narrativas dos mais velhos,
Maria acreditou reviver a história de seus antepassados – como
Susana – no processo de escravização.
515
Observemos que Firmina dá voz e visibilidade para a perso-
nagem negra que narra a sua história de vida ao personagem
Túlio, que também é um personagem negro que mora com Su-
sana. Ocorre um diálogo entre os dois personagens neste capi-
tulo, e Susana tenta alertar e fazer com que Túlio reflita sobre
as experiências que ela passou, as dificuldades que os negros
sofrem independente do lugar onde estiverem. Susana argu-
mentava sobre a importância de Túlio não deixar Luísa e Úrsula,
porque elas eram bondosas, diferentemente dos outros escra-
vagistas.
Nessa narrativa, como já indicamos anteriormente, Susana
mostra-se apegada às mulheres que a mantinham como es-
crava. Essa relação pode ser aproximada daquela que Maria,
do conto de Conceição Evaristo, mantinha com a moça que a
ensinara a ler: “Por força de não ter ninguém dos meus por
perto, eu tinha me afeiçoado a ela. A moça que trabalhava com
o casal e que se chamava Berta Calazans” (EVARISTO, 2011, p.
42, grifos nossos). Assim, além da resistência passiva que indi-
camos anteriormente, assinalamos o estabelecimento de laços
de afeto entre aquelas pessoas envolvidas no roubo e aprisio-
namento/escravização das mulheres negras. Na obra de Maria
Firmina dos Reis, Susana passa a desempenhar esse papel do
cuidado (maternal, da mãe preta) em relação às mulheres bran-
cas; na obra de Conceição Evaristo, Maria desenvolve afeição
pela sua cuidadora branca. Ambos os textos abordam relações
de afeto desenvolvidas entre mulheres brancas e negras em
meio aos processos de violência. Entretanto, nessas relações,
permanecem em ameaça as vidas das mulheres negras; e as
mulheres brancas não se consolidam como aliadas na liberta-
ção das mulheres negras.
Temos o discurso da Preta Susana que deixa explicito como
ela foi “capturada pelos bárbaros”, pelos colonizadores:
516
Materam-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e
de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cru-
éis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é necessário à vida
passamos nessa sepultura até que abordamos às praias brasileiras. Para
caber a mercadoria humana no porão, fomos amarrados pé e para que
não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes
de nossas matas, que se levam para dos potentados da Europa. Davam-
-nos a água imunda, podre e dada como mesquinhez, a comida má e
ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à
falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas hu-
manas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consci-
ência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos! (REIS, 2018, p.122)

A partir do relato anti-escravagista da Preta Susana podemos


observar que Firmina aborda as questões da vida colonial bra-
sileiro. Segundo Algemira de Macêdo Mendes (2016), a perso-
nagem Susana é a imagem da pessoa africana, que foi tirada à
força, de forma brutal, de sua terra natal, foi animalizada e clas-
sificada como objeto, coisa, mão de obra forçada e gratuita para
senhores inescrupulosos. É ela quem explica ao jovem Túlio,
escravo alforriado pelo branco Tancredo, o sentido da verda-
deira liberdade. (MENDES, 2016, p.106). Susana tem medo de
voltar a algum dono cruel, violento. E teme que Túlio entregue
sua vida a um senhor sanguinário. Firmina dá voz à personagem
Susana para denunciar a forma que as/os negras/os eram tira-
das/os da África. A personagem conta que sua captura foi re-
alizada por “bárbaros”, “sem compaixão”. É interessante obser-
var que os brancos colonizadores chamavam os africanos e os
ameríndios de bárbaros, selvagens. Mas Maria Firmina dos Reis
(2018, p.122-124, grifos nossos) atribui a barbárie e a atrocida-
de aos colonizadores escravizadores: “A dor da perda da pátria,
dos entes caros, da liberdade foi sufocada nessa viagem pelo
horror constante de tamanhas atrocidades”. Em oposição aos
atrozes, sem compaixão e bárbaros escravizadores, o coração
do homem escravizado é generoso:
517
E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embru-
tecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe im-
plantou no coração, permaneciam intactos e puros como a sua alma.
Era infeliz, mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em
presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista (REIS, 2018, p.
21, grifos nossos).

A partir da narrativa da personagem Susana, observamos


como Maria Firmina dá visibilidade às mulheres negras. A au-
tora dialoga com os obstáculos daquele momento em que ela
estava vivendo; está lutando contra seu próprio presente histó-
rico, desafiando um cenário que não reconhecia o povo negro.
Firmina – escrevendo para a classe letrada daquela época que
precisava ouvir a Susana, escrevendo para pessoas que preci-
savam ler sobre a experiência de Susana – escreve para nós do
futuro.
Firmina dá voz à personagem Susana, mulher negra, para
dizer sobre a sua vivência, enunciando uma história fratura-
da. Ao fazer isso, ela abre o caminho para a tradição narrativa
brasileira que existe hoje e está sendo elaborada por mulheres
negras. Ajudou a consolidar o gênero romance no Brasil e fez
isso criando uma comunidade narrativa para um povo que es-
tava destituído de sua própria história. O romance Úrsula abre
portas para que outras mulheres que têm timidez ou dificulda-
de em falar possam erguer suas vozes. E produziu um discurso
abolicionista. Firmina nos faz refletir, através da voz de Susana,
com seu discurso, sobre o colonialismo e como foi ter sido es-
cravizada/o na sociedade brasileira. Dessa forma, percebemos
que Maria Firmina dos Reis elabora os personagens negros do
romance como agentes da reivindicação e do posicionamento
de sujeito completo. Ela própria ergue sua voz como mulher
negra alfabetizada, agente de educação e da luta contra a lógica
colonial, contra o analfabetismo e contra a escravização.

518
Maria Firmina dos Reis abriu caminho para que novas mulhe-
res negras pudessem escrever ou ler, escreveu para um povo
que estava à margem da sociedade, criou uma narrativa com
esse povo negro que estava fora das literaturas, fora da socieda-
de. O romance Ùrsula abriu portas para que aquelas mulheres
que tinham timidez ou dificuldade de falar sobre as suas difi-
culdades, sobretudo em espaços públicos, pudessem ter força,
coragem para poder ultrapassar opressões que são impostas às
mulheres: “As palavras das mulheres clamam para ser ouvidas,
cada uma de nós devemos reconhecer a nossa responsabilida-
de de buscar essas palavras, de lê-las, de compartilhá-las e de
analisar a pertinência delas na nossa vida” (LORDE, 2019. p.55)
Os obras de Maria Firmina dos Reis e de Conceição Evaris-
to nos alertam para que escutemos aquilo que elas trazem,
compartilhemos essas narrativas, valorizemos as autorias das
mulheres negras e as identidades negras brasileiras. As autoras
também chamam a atenção para os processos de letramentos
vivenciados pelas mulheres negras (como leitoras e escritoras)
em diferentes espaços sociais.
Como assinala Lélia Gonzalez, devemos reconhecer essa co-
munidade negra que nos deu sentido, nos deu uma história de
luta e resistência. Através das narrativas literárias, Maria Firmina
e Conceição Evaristo nos possibilitam conhecer as vivências das
mulheres negras. Essas narrativas, no contexto escolar, possibi-
litam que sejam implementadas as leis 10.639/03 e 11.645/08,
que determinam o ensino de culturas africanas, afro-brasileiras
e indígenas. Com as leituras dessas obras, podemos tratar da
escravização como processo violento, que esfacelou famílias,
impôs sofrimento aos povos africanos e afro-brasileiros escra-
vizados, privou pessoas de suas origens e impôs novas relações
entre negras/os e brancos/as. Essas novas relações são mar-
cadas pela perda e pela dor das pessoas negras. Mesmo assim,
519
as mulheres negras – resistindo passivamente em alguns mo-
mentos e resistindo ativamente em outros momentos – foram
fundamentais na construção da nação brasileira. Assim, alian-
ças antirracistas precisam ser construídas. Além disto, as resis-
tências negras precisam romper as limitações impostas pelas
pessoas brancas dos grupos hegemônicos.
Audre Lorde, em sua obra intitulada Irmã Outsider, traz essa
importância que a linguagem tem para as mulheres e escritoras
negras; ela traz um diálogo de despertar e refletir a partir da lin-
guagem. Vale ressaltar aqui que Maria Firmina dos Reis e Con-
ceição Evaristo e tantas outras autoras negras utilizam a lingua-
gem e a escrita como instrumento, ferramenta para dizer aquilo
que os grupos hegemônicos pretendem silenciar. Segundo a
autora (EVARISTO, 2009; LORDE, 2019), nós compartilhamos
um compromisso com a linguagem, com o poder da linguagem
e com o ato de ressignificar essa linguagem que foi criada para
operar entre nós. Na transformação do silencio em linguagem e
em ação, é essencial que cada uma de nós estabeleça ou anali-
se o seu papel nessa transformação e reconheça que seu papel
é vital nesse processo.
Para aqueles que, entre nós, escrevem, é necessário esmiu-
çar não apenas a verdade do que dizemos, mas a verdade da
própria linguagem que usamos. Para as demais, é necessário
compartilhar e espalhar também as palavras que nos são signi-
ficativas. Mas o mais importante para todas nós é a necessidade
de ensinarmos a partir da vivência, de falarmos as verdades nas
quais acreditamos e conhecemos. Porque somente assim po-
demos sobreviver, participando de um processo de vida criati-
vo e contínuo (LORDE, 2019, p. 55).

520
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Janeiro: Cobogó, 2019. 4 v.

524
Pactos narcísicos da cisgeneridade e da

Fernando Abreu

Alifer Rafael Nascimento Leal1


Cheguei à teoria porque estava machucada – a dor den-
tro de mim era tão intensa que eu não conseguiria con-
tinuar vivendo. Cheguei à teoria desesperada, querendo
compreender – apreender o que estava acontecendo ao
redor e dentro de mim. Mais importante, queria fazer a
dor ir embora. Vi na teoria, na época, um local de cura.
(bell hooks)

Introdução
Minha jornada na construção deste trabalho de conclusão
de curso inicia ainda no ano de 2018, quando muito jovem in-
gressei no ensino superior. Estudante, LGBT, pobre e filho de
empregada doméstica, aspirava me tornar professor, nutria em
mim o sonho de concretizar a transformação da sociedade e a
superação das injustiças sociais por meio da prática educacio-
nal, isto é, inserido enquanto docente nos contextos de sala de
aula. Comecei a trilhar, ainda na época, meus primeiros passos
na pesquisa científica. De lá para cá, entre deslumbre, frustra-
ções e a pandemia de covid-19, atravessei quatro longos anos
de estudos sobre currículo, educação, ensino, literatura, gênero,
sexualidade e linguagem. Foi nessa longa e árdua trajetória que,
em algum momento, na interlocução com as epistemologias
subalternas, especialmente com bell hooks, tomei consciência
de onde emergia esse meu desejo por me inserir em discussões
comprometidas com o combate às opressões.

1 Trabalho orientado por Cloris Porto Torquato.


525
Viver nas precárias margens produzidas pela LGBTfobia e
pelo empobrecimento foi o que me convocou a buscar na te-
oria, as possibilidades de entender e formular, epistemologica-
mente, alternativas para reagir às violências que, não somente
experimentei desde a infância, mas que atravessaram minha
formação enquanto sujeito no mundo. Desse modo, meu tra-
balho de pesquisa é fruto, além de um ensejo individual, do
meu comprometimento coletivo, enquanto professor, com mi-
lhares de crianças e adolescentes que vivenciam no cotidiano
da escola, as mais diversas formas de violências, produzidas por
uma incansável tentativa coletiva de normatizar os corpos e as
identidades dissentes, ou não, à cis-heteronorma. Buscando
criar na prática educacional possibilidades de resistência ao tra-
dicional e engessado currículo escolar, encontrei no campo dos
estudos literários, alternativas contra hegemônicas, envolvidas,
especialmente, com o questionamento das cis-heteronorma-
tividades.
Mais particularmente, foi nos escritos de Caio Fernando
Abreu que descobri um volumoso arcabouço artístico-literário
que nos permite, professores-pesquisadores, elaborar alterna-
tivas críticas para as práticas sociais de letramento no trabalho
com linguagem. Tendo em vista esta minha perspectiva em
contribuir com a desobediência aos discursos hegemônicos
que operam na sociedade, produzi desde meados de 2019,
dois subprojetos de iniciação científica, nos quais investiguei,
de modo geral, questões sobre identidades de gênero e de se-
xualidade em alguns contos e obras de Abreu. Um dos meus
projetos resultou em uma publicação de artigo científico em
uma revista acadêmica brasileira, enquanto no segundo, ainda
em diálogo com a primeiro, procurei dar sequência de modo
aprofundado no presente trabalho de conclusão de curso. Os

526
estudos de gênero e de sexualidade, em intersecção com os
estudos literários, compreendem a composição deste estudo.
Evidenciadas e justificadas as motivações e a jornada que
me levaram a formular esse trabalho, posso proceder com a
exposição aprofundada das discussões dispostas e propostas
nas páginas seguintes. Buscando assimilar e apreender como
se elaboram as identidades de gênero e sexualidade nos escri-
tos de Caio Fernando Abreu, especialmente em relação ao con-
texto histórico, procurei mapear as trajetórias de gênero e de
sexualidade delineadas em dois contos de Abreu – “Dama da
Noite” (1982), e “Sargento Garcia” (1982) –; ao passo que propus
desnudar e caracterizar os pactos narcísicos da cisgeneridade e
da heterossexualidade nas relações dos personagens nos dois
contos do autor.
Nesse sentido, a realização deste estudo - compromissado
em investigar textos que fazem pulsar do interior das relações
entre as personagens: interdições, exclusões e violências, cujos
fios condutores são os pactos e os modelos identificatórios de
autoproteção - necessitou partir dos pressupostos de que as
identidades de gênero e de sexualidade são produções sociais
e discursivas da cultura, envolvidas e fabricadas no interior de
relações de poder hierarquizadas, as quais são responsáveis por
elaborar as engrenagens normalizadoras e classificatórias das
existências, conferindo a algumas identidades o status de nor-
malidade e naturalidade, na medida em que reduzem outras
posições-de-sujeito à anormalidade abjeta.
Procurei direcionar a análise a partir desta pergunta: Como
funcionam e se caracterizam os pactos narcísicos (BENTO,
2002) da cisgeneridade e da heterossexualidade nas relações
dos personagens nos contos de Abreu?, considerando, princi-
palmente, que os pactos narcísicos são movimentos discursivos
e performáticos das relações humanas. Ao passo que a cis-he-
527
terossexualidade se auto identifica e se auto posiciona em um
lugar de hegemonia e dominação social, criando estratégias de
autoproteção e manutenção de privilégios, cuja perpetuação
se desdobra através de violências e opressões a grupos mino-
ritários, ela configura os procedimentos dos chamados pactos
narcísicos.
É importante ressaltar que, embora o contexto da obra não
circunscreva o primeiro plano de análise, ele é bastante rele-
vante à composição do trabalho, e está presente em diversos
momentos da escrita, especialmente porque as relações de po-
der e disputa entre as personagens dos contos estão intrinse-
camente conectadas com a conjuntura histórica e política em
que viviam, ainda que em um pano de fundo ficcional.
Nessa perspectiva, a concepção geral de minha pesquisa é de
que fosse possível identificar, com e através do texto literário,
os modos de atuação dos sujeitos beneficiados pelas cis-hete-
ronormatividades no interior de relações de poder, cuja agência
contribui à perpetração de exclusões e marginalizações sociais
dos corpos e identidades desviantes a essas matrizes regula-
doras. Na análise do texto literário, eu mobilizo o conceito de
pacto narcísico, o qual implica, de acordo com Maria Aparecida
Silva Bento (2002), em um sistema de exclusões, opressões e
violências contra as existências que não participam deste pacto.
Dessa maneira, dividi por tópicos a sequência do estudo,
compondo três ao total. No primeiro, o qual está disposto a
seguir, discuto o percurso e o arcabouço teórico e bibliográfi-
co empreendido na pesquisa, enquanto os dois últimos tópicos
compreendem a análise dos contos, respectivamente. As con-
siderações finais, por sua vez, dão sequência logo após a última
obra analisada. Nesse momento, propus uma conclusão que,
na medida em deixa em aberto os caminhos e as possibilida-
des possíveis para o trabalho docente no campo dos estudos
528
literários, aponta para alternativas envolvidas e implicadas com
letramentos literários de reexistência (SOUZA, 2009).

Giro teórico
O material literário que compôs este trabalho de conclusão
de curso corresponde a análise de dois contos de Caio Fernan-
do Abreu, sendo, respectivamente, “Dama da Noite” (1982),
e “Sargento Garcia” (1982). O último pertence à obra Moran-
gos Mofados (1982), enquanto o primeiro pertence à obra Os
Dragões Não Conhecem o Paraíso (1988). O enfoque acerca das
relações de gênero e sexualidade das personagens me exigiu
lançar mão de alguns caminhos teóricos para empreender a
discussão. Os estudos de Kathryn Woodward (2014) e Tomas
Tadeu da Silva (2014) forneceram a este trabalho uma argu-
mentação consolidada a respeito das engrenagens sociais pro-
dutoras das identidades e suas hierarquias de poder, já que para
Woodward “a identidade é marcada pela diferença, mas parece
que algumas diferenças [...] são vistas como mais importantes
que outras, especialmente em lugares particulares e momen-
tos particulares.” (p. 11). Neste caso, as identidades desviantes às
matrizes normativas de gênero e sexo é que são demarcadas
pela diferença e pela sua condição de subordinação. A auto-
ra reitera que este procedimento social pelo qual a identidade
é produzida decorre da relação dela mesma com o simbólico,
isto é:
A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e
a relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é
incluído. É por meio da diferenciação social que essas classificações da
diferença são “vividas” nas relações sociais. (WOODWARD, 2014, p. 14).

Tal concepção desenvolvida por Woodward, além de dialo-


gar com a interpretação de Silva a respeito dessas avenidas de
poder e de disputa, onde as identidades são fabricadas, fornece
529
junto deste último, os aparatos que considerei necessários para
a construção de minha análise em meu trabalho de conclusão
de curso. Conforme formulou Silva, enquanto criações sociais
e culturais (SILVA, 2014, p. 76), “a identidade e a diferença se
traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre
quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está ex-
cluído” (SILVA, 2014, p. 82). O autor lembra que esta organiza-
ção hierarquizada das identidades, que se dá por meio de bina-
rismos opostos, em que um dos termos é sempre privilegiado
em detrimento do “outro” – tal qual branco e negro, hetero e
homo – forja a normalização, que além de se configurar como:
Um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no cam-
po da identidade e da diferença [...] significa atribuir a essa identidade
todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras
identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. (SILVA, 2014, p.
83).

Essas reflexões elaboradas no campo teórico cultural por


autores como Woodward e Silva, embora ofereçam a funda-
mentação teórica necessária para pensar a produção de iden-
tidades nos contos de Caio Fernando Abreu, necessitam do
aprofundamento específico no que concerne às identidades
sexuais e de gênero. Por sua vez, os estudos de gênero e de
sexualidade se ancoram, neste estudo, não apenas na vasta e
profunda literatura de Judith Butler (2017), mas também, nos
estudos brasileiros conduzidos por Viviane Vergueiro (2015). As
formulações que Butler realiza a respeito das experiências se-
xuais e de gênero, e de suas interdições, bem como em relação
ao entendimento de performatividade, foram especialmente
necessárias a este trabalho que construí. Para elaborar as in-
terpretações sobre as experiências das personagens na obra
de Abreu, é necessário considerar que “as ‘pessoas’ só se tor-
nam inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformidade com
530
padrões reconhecíveis de inteligibilidade do gênero” (BUTLER,
2017, p. 42). É nesse sentido que as análises caminharam, reco-
nhecendo que os gêneros inteligíveis, além de portar a marca
do natural e do bem aceito, “são aqueles que, em certo senti-
do, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade
entre sexo, gênero, prática sexual e desejo.” (BUTLER, 2017, p.
43). Na obra de Abreu, a “Dama da Noite” - ao não corroborar
com a acepção social e cultural que torna normal e inteligível
“a identidade de gênero daquelas pessoas cuja ‘experiência in-
terna e individual do gênero’ corresponda ao ‘sexo atribuído no
nascimento’ a elas” (VERGUEIRO, 2015, p. 44) - é empurrada
compulsoriamente à vivência solitária, delimitada pela abjeção
social. Este movimento de exclusão, a tentativa de silenciar e
apagar, se desdobra também em “Sargento Garcia”, principal-
mente porque o protagonista busca confirmar a matriz regu-
ladora da sexualidade e do gênero que, como informa Butler:
exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir” – isto é,
aqueles em que o gênero não decorre do sexo e aqueles em que as prá-
ticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo” nem do “gênero”. Nesse
contexto, “decorrer” seria uma relação política de direito instituído pelas
leis culturais que estabelecem e regulam a forma e o significado da se-
xualidade. (BUTLER, 2017, p. 44).

Penso que foi possível, nesse aspecto, elaborar leituras da


obra de Abreu que estiveram comprometidas com a proposi-
ção de Butler, de que “não há identidade de gênero por trás
das expressões do gênero; essa identidade é performativamente
construída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resulta-
dos” (BUTLER, 2017, p. 56); cujo debate corrobora com as dis-
cussões propostas por Megg Rayara Gomes de Oliveira, que ao
falar das experiências e trajetórias de bichas pretas e pobres na
educação brasileira, assevera que “a bicha nasce do discurso”
(OLIVEIRA, 2018, p. 1), do discurso que interdita possibilidades,
531
reduz às margens insalubres, empurrando para as bordas pre-
cárias da vida social.
Os pactos narcísicos, termo que emerge neste trabalho, está
fundamentado, no relevante estudo de Maria Aparecida Silva
Bento (2002) a respeito das manifestações da branquitude
em ambientes de trabalho, como elementos de produção de
desigualdades raciais no interior dessas organizações (BENTO,
2002, p. 7). A proposta, nesse sentido, foi de tentar perceber,
identificar e caracterizar como, em relações de poder que en-
volvem gênero e sexualidade, se configuram os pactos e acor-
dos produtores de privilégios e exclusões na obra de Abreu, já
que conforme reitera Bento, o pacto narcísico da branquitude
no racismo é “um pacto silencioso de apoio e fortalecimento
aos iguais. Um pacto que visa preservar, conservar a manuten-
ção de privilégios e interesses.” (BENTO, 2002, 105-106). Um
pacto forjado no narcisismo, o qual “solicita a cumplicidade
narcísica do conjunto dos membros do grupo e do grupo em
seu conjunto” (KAES, 1997, p. 262, apud BENTO, 2002, p. 51).
A concepção desenvolvida por Cida Bento dialoga com ela-
boração teórica dos autores e autoras anteriormente discutidos
acerca da noção hierárquica de identidade e diferença, pois nas
palavras da autora, o pacto narcísico se caracteriza pelo forta-
lecimento do nós e a rejeição ao eles. Neste lócus da rejeição,
enquanto uma outridade anormal, é que se localizam diversas
das personagens nas obras de Caio Fernando Abreu.

“Dama da noite” e a vivência abjeta


ao”cistema”
Caio Fernando Abreu apresenta neste conto uma narra-
-

a margem social. Narrada em primeira pessoa, a obra trata


532
-

participação de todos. Apesar da multiplicidade de capturas


-
gica normalizadora e excludente da produção das identida-
des, o que gera a manutenção do descarte e do desprezo

Busco estabelecer esse percurso, especialmente porque


-

mas, sobretudo, ela desestabiliza a representação norma-

48 apud

paródia da ideia -

nos remeter a uma discussão não higienizadora, não nor-


-
demos denominar de queer.
Além disso, a protagonista reitera que o que ela busca na
mesa do bar, quase toda noite, nem mesmo todo o dinhei-
533
2018, p. 484). Penso que esteja impresso nesse interstí-
cio textual uma metáfora para a solidão, elemento que não

, -
as

Assim, quando compara o movimento da vida enquanto


uma “roda-gigante” girando por aí, a mulher assinala para o boy,
com quem ela dialoga na mesa de um bar, que ela está sempre
fora dessa roda “parada, sem saber a palavra certa, sem conse-
guir adivinhar. Olhando de fora [...] louca de vontade de estar
lá, rodando junto com eles nessa roda idiota”. (ABREU, 2018, p.
480). Por algum motivo, a roda é para a personagem, um lugar
censurado, interdito, restando a ela somente a experiência nas
margens desse lócus, considerando o fato de que, segundo a
Dama, “Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha,
um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exem-
plo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com
os outros” (ABREU, 2018, p. 480). Este passe, considero que
seja uma linguagem cuja senha pode ser lida sob a perspectiva
da “cisgeneridade” (VERGUEIRO, 2015), a qual Dama da Noite
afirma ter desaprendido pois:
A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu
aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse
desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para
se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gi-
gante. (ABREU, 2018, p. 480).

Tal qual a roda, a cisgeneridade exige um arcabouço de


linguagens e performances que impossibilita que os corpos
-
534
-

olho pra cara fodida deles e tá lá escrita escarrada a minha


própria cara de fodida também, igualzinha -

impossibilidade de existir de forma segura no interior da


roda.
Embora o enredo não nomeie explicitamente para as

– e especialmente sobre a roda e suas engrenagens – que


-
-

performances não reiteram os construtos sociais e normati-


-

do sexo biológico, reduzido a uma anatomia, associado,

-
-

-
535
acerca da cisgeneridade, que a autora caracteriza como a

os naturaliza e idealiza, em fantasias cis coloniais, como

Nesse aspecto, ao romper com a lógica permanente e biná-


ria da identidade de gênero, a qual ela desaprendeu a seguir,
a protagonista experimenta e vivência nas margens, como se
“ESTIVESSE por fora do movimento da vida.” (ABREU, 2018,
p. 480). Mais particularmente, o ato de “desaprender a seguir”
as normas de gênero significam, nesta análise e, sob a pers-
pectiva de Vergueiro, subverter com o gênero atribuído a todas
as existências no ato do nascimento. A concepção que Butler
empreende acerca das normatividades de gênero, enquanto
uma construção social e discursiva que busca estabelecer li-
nhas causais entre genitália e gênero, além de ser especialmen-
te relevante para a minha análise, dialoga diretamente com a
discussão desenvolvida por Vergueiro, já que para esta última,
a cisgeneridade funciona, resumidamente, através da ideia de
que o gênero binário – masculino e feminino – seria uma de-
corrência exclusiva da genitália.
Nesse sentido, a cisgeneridade projeta sobre os corpos e as
identidades de gênero, a ideia de “mulher/homem de verdade”
(VERGUEIRO, 2015), o que exige um inacabável conjunto de
performances e discursos próprios da cultura que, no contexto
brasileiro contemporâneo, podem significar modos de vestir-
-se e expressar-se muito específicos para o que se considera
masculino ou feminino. Quando a Dama da Noite diz que de-
saprendeu essa linguagem, pode-se depreender que sua iden-
tidade de gênero está inconforme às configurações normativas
da roda da cisgeneridade.
Além de ler a Dama da Noite enquanto uma identidade não-
-cis gênero-inconforme (VERGUEIRO, 2015), é extremamen-
536
te relevante discutir os questionamentos que, trazidos por ela,
desmontam a desfaçatez “normal” e “natural” da roda. A in-
terpelação da personagem ao rapaz, parece permitir a leitura
de sua identidade gênero-inconforme: “Olha bem: quem roda
nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de
grana pra comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder
e dólares, os casais de saco cheio um do outro, mas segurando
umas.” (ABREU, 2018, p. 484). A Dama, por sua vez, não cum-
pre esses protocolos e arquétipos: “Estar fora da roda é não se-
gurar nenhuma [...] Feito eu” (ABREU, 2018, p. 484).
Noutra reflexão, no diálogo dela com o rapaz, ela diz que a
roda “está por aí, rodando aqui mesmo. Olha em volta cara.
Bem do teu lado. Naquela mina ali, de preto, a de cabelo ar-
repiadinho”. (ABREU, 2018, p. 480-481). Ao expor a inscrição
da roda em todos e quaisquer espaços, a Dama ainda identifi-
ca na possível expressão de gênero, “mina de preto de cabelo
arrepiadinho”, uma espécie de captura representativa da roda,
confirmando de forma patente a suposição de que a cisgeneri-
dade seja “o passe, a senha” que permite rodar na roda. Assim,
“parada, bêbada, pateta e ridícula” a Dama tenta circular à mar-
gem desse “cistema” (VERGUEIRO, 2015), isto é, nessas con-
venções que supõe uma verdade sobre a identidade de gênero,
“no meio desse lixo todo” buscando possivelmente afetivida-
de e, sobretudo, “O Verdadeiro Amor” (ABREU, 2018, p. 484).
Contudo, a roda da vida com seus códigos e regras, varre a pro-
tagonista para uma borda social, afetivamente isolada e reclusa.
O percurso tecido revela, desse modo, a vivência precária
de pessoas desviantes às normas culturais dos gêneros. Po-
demos considerar como uma captura das identidades trans e/
ou travestis, no contexto brasileiro, considerando que, repeti-
damente, a protagonista denuncia as subalternizadas inscri-
ções sociais para as quais ela é reduzida, da “dama da noite que
537
vai te contaminar” (ABREU, 2018, p. 482), da “Mulher pirada
e meio coroa [...] tem mais é que ser roubada” (ABREU, 2018,
p. 484). Desse modo, essa roda, da cisgeneridade, opera sob
engrenagens discursivas encarregadas por caracterizar a Dama
em uma posição-de-sujeito impura, imoral, anormal e antina-
tural, enquanto os personagens – inclusive o boy – que giram
na roda, figuram o outro lado desse espectro, marcados pelos
traços da naturalidade e da normalidade, concedidas devido o
acesso à roda, pois “Quem roda na roda fica contente. Quem
não roda se fode” (ABREU, 2018, p. 481), tal qual a Dama, que
quando deu por si todo mundo já tinha decorado a “palavri-
nha-chave” e assegurado seu lugarzinho na roda, menos ela.
Além de tecer uma profunda discussão acerca das trajetórias de
gênero na figura crítica da Dama da Noite, o conto mobiliza as
questões de sexualidade através dos elementos intertextuais,
os quais evidenciam o contexto histórico que perpassa a obra.
As indagações e afirmações da protagonista ao “boy” sobre a
aids é que dialogam com o contexto brasileiro dos anos 80,
principalmente porque suas considerações refletem o momen-
to histórico em que a sociedade associava o surto do HIV com a
população LGBT enquanto uma ferramenta de opressão e pa-
tologização. A mulher assevera que o rapaz já havia “nascido
com camisinha no punho”:
morrendo de medo de pegar aids. Vírus que mata, neguinho, vírus do
amor. Deu a bundinha, comeu cuzinho, pronto: paranoia total. Sema-
na seguinte, nasce uma espinha na cara e salve-se quem puder: baixou
Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios generalizados. Ô boy, que
grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein? Você nem beija na
boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum
lugar. Você nem passa a mão em peito molhado sem ficar de cu na mão.
Transmite pelo suor, você leu algum lugar [...] Pega até de ficar do lado,
beber do mesmo copo. Já pensou se eu tivesse? (ABREU, 2018, p. 482).

538
Assim, ao lançar mão das referências intertextuais ao médico
sanitarista “Emílio Ribas” e aos estigmas e as desinformações
que se difundiam na sociedade acerca do vírus HIV e, especial-
mente, da AIDS – doença decorrente do HIV – o conto sinaliza
o seu pano de fundo, considerando que:
A aids foi construída culturalmente e houve uma decisão de delimitá-la
como DST. Uma epidemia que surge a partir de um vírus, que poderia
ter sido pensada como a hepatite B, ou seja, uma doença viral, acabou
sendo compreendida como uma doença sexualmente transmissível,
quase como um castigo para aqueles que não seguiam a ordem sexual
tradicional. Então, a aids foi um choque, e da forma como foi compre-
endida tornou-se uma resposta conservadora à Revolução Sexual, a
qual, no Brasil, foi vivenciada pela então conhecida ‘geração desbunde’.
(MISKOLCI, 2017, p. 23).

Desse modo, podemos dizer que a jornada da Dama da Noi-


te localiza-se nesse período histórico, o qual a atravessa de
inúmeras formas, inclusive descartando-a da “roda”, pois no
instante em que a Dama se metaforiza enquanto uma “flor car-
nívora” com “jardins pestilentos”, responsável por “contaminar”
o sangue do boy e matá-lo “com todos os vírus” (ABREU, 2018,
p. 482-483), a personagem revela estar igualmente submeti-
da aos estigmas e opressões da epidemia de HIV. Embora o
Brasil caminhasse para a redemocratização, a epidemia de HIV
serviu, sobretudo, como armamento discursivo que justificava
a violência, os silenciamentos e a repressão contra às pessoas
desviantes às normas sexuais e de gênero, já que se atrelava a
elas a origem do vírus e da doença causada por ele.
Especialmente significativos à análise que aqui busquei for-
mular são o mapeamento e a caracterização das relações de
gênero e de sexualidade entre as hierarquias de poder que
atravessam as personagens. Como afirmei anteriormente, a
roda em “Dama da noite” pode ser lida como um sinônimo
para a cisgeneridade, cuja normatividade promove processos
539
de opressão e de exclusão. Nesse aspecto, se nas fronteiras da
roda a Dama da noite experimenta a anulação da possibilidade
de nela entrar, há, entre aqueles que giram no interior da roda,
o gozo do acolhimento e da aceitação. Segundo a protagonista,
para ela não há sorriso algum, “cumplicidade zero”, enquanto
que o boy, mesmo que não o conheçam – afirma a Dama – é
bem recepcionado e convidado para participar e rodar na roda,
já que “você é igual a eles [...] Eu não sou igual a eles, eles sabem
disso” (ABREU, 2018, p. 482).
É, particularmente, esta relação de acolhimento entre aque-
les corpos e identidades pertencentes à roda que procurei dis-
cutir. Podemos afirmar que nessas relações no interior da roda
– uma alegoria para a cisgeneridade – estão presentes os no-
meados “pactos narcísicos”, termo utilizado por Maria Apareci-
da Silva Bento (2002) em seu estudo de doutoramento acerca
de relações raciais em ambientes de trabalho. A autora define o
“pacto narcísico no racismo” enquanto “um pacto silencioso de
apoio e fortalecimento aos iguais. Um pacto que visa preservar,
conservar a manutenção de privilégios e interesses.” (BENTO,
2002, 105-106). Penso que este movimento de cumplicidade
e identificação – o pacto narcísico, o qual fornece os privilé-
gios em detrimento de quem se oprime – revela-se também
presente em “Dama da Noite”, sob os aspectos particulares da
identidade de gênero.
Nesse sentido, me aproprio do termo utilizado por Cida Ben-
to, quando a escritora discutiu acerca das hierarquias de poder
nas relações raciais, para pensar as dinâmicas do gênero e da
sexualidade. A autora elenca e enumera em sua tese uma sé-
rie de “traços do pacto narcísico” (BENTO, 2002, p. 155), cujos
aspectos destacados por Bento, fornecem possibilidades de
analise ao presente trabalho. No caso específico do conto em
estudo, acredito que esse mecanismo – do “pacto narcísico” da
540
cisgeneridade na relação das personagens – opere, principal-
mente, através de três processos concomitantes: 1) da proteção
entre aqueles que reiteram, consciente ou inconscientemente,
os parâmetros normativos da cisgeneridade; 2) da prática dis-
criminatória sobre os corpos e as e identidades inconformes
para as matrizes hegemônicas da cisgeneridade, cuja atuação
se dá a partir da tentativa de eliminar e impossibilitar a existên-
cia das e dos sujeitos dissidentes e; 3) da negação e indiferença
em relação as violências perpetradas aos grupos minoritários.
Primeiro, ao afirmar para o boy que ele também participa das
engrenagens da roda, a Dama denuncia o pacto narcísico – au-
toproteção aos iguais e discriminação aos corpos desviantes –
existente entre eles:
você roda na roda também, quer uma prova? Todo esse pessoal de
preto e cabelo arrepiadinho sorri pra você por que você é igual a eles.
Se pintar uma festa, te dão um toque, mesmo sem te conhecer. Isso é
rodar na roda, meu bem. Pra mim nenhum sorriso, cumplicidade zero.
(ABREU, 2018, p. 482).

Há neste trecho a explicitação do pacto narcísico da cisgene-


ridade, cuja cumplicidade, identificação e acolhimento delimi-
tam quais corpos são permitidos a girar na roda e quais não são
legítimos de participar dela, além de assegurar por meio deste
movimento os privilégios que gozam os corpos conformes às
normatividades de gênero, isto é, à cisgeneridade. Por sua vez,
a indiferença para a opressão vivida pela Dama no conto, pode
ser lida sob a perspectiva do pacto narcísico de Cida Bento,
posto que a personagem ao revelar que “se bater o carro e arre-
bentar a cara toda saindo daqui, continua tudo certo” (ABREU,
2018, p. 485), ela denota a desimportância de sua vida para a
roda, “porque o rodar dela é o rodar de quem consegue fingir
que não viu o que viu.” (ABREU, 2018, p. 483). Dessa maneira,
ao evidenciar e desnudar os processos e operações sociais que
541
configuram as marginalizações, “Dama da Noite” explora, es-
pecialmente, como é sobreviver nessa fronteira precária e hos-
til da roda, noutras palavras, da vida.

“Sargento Garcia” e os “bons costumes”


Esta narrativa explora algumas experiências do jovem Her-
mes, que narra sua primeira apresentação em um quartel ge-
neral e sua primeira relação sexual. As experiências são, eviden-
temente, partilhadas; Hermes as vivencia com um personagem
central ao enredo – o Sargento Garcia. Se em um primeiro mo-
mento a captura do quartel anuncia o interior repressor, violen-
to e hostil da arquitetura militar brasileira, os acontecimentos
posteriores desnudam a configuração artificial e performativa
em que operam os corpos cis-heteronormativos, cujo pres-
suposto básico é o da naturalidade e do status pré-discursivo.
Sob a figura militaresca do sargento o conto revela como os
sujeitos que favorecem as “cis-heteronormatividades”, isto é,
as intersecções entre orientação sexual e identidade de gêne-
ro hegemônicas (VERGUEIRO, 2015, p. 57), podem igualmen-
te subverter esses sistemas de controle no interior de espaços
privados.
Composto por pouco mais de dez páginas, a depender de
sua edição, “Sargento Garcia” apresenta um enredo cheio de
descrições minuciosas e, principalmente, de diálogos operados
no discurso direto. Ainda na primeira parte do conto, nu tal qual
os outros rapazes, Hermes descreve o espaço à sua volta, dian-
te de Garcia, que operava uma espécie de alistamento no quar-
tel general. Na sala “só se ouvia o ruído das pás do ventilador
girando enferrujadas”, enquanto atrás do sargento havia uma
“parede de reboco descascando [...] E moscas amolecidas pelo
calor, tão tontas que se chocavam no ar, entre o cheiro de bosta
quente de cavalo e corpos sujos de machos.” (ABREU, 2018,
542
p. 364). O calor, a sujeira, os objetos enferrujados e as paredes
velhas provocam a sensação de mal-estar e medo que além
de tecer a hostilidade daquele ambiente militar, caracterizam
também a posição social do sargento, marcada pela agressivi-
dade como tentativa de assegurar seu domínio “cisheterosse-
xual” (SOUSA, 2018). Mais adiante, durante as interpelações de
Garcia para Hermes, o jovem narra detalhadamente os movi-
mentos do sargento:
Levantou-se e veio vindo na minha direção [...] cruzados sobre o pei-
to, a ponta do rebenque curto de montaria, ereto e tenso, batendo rit-
mado [...] Num salto, o rebenque enveredou em direção à minha cara,
desviou-se a menos de um palmo, zunindo, para estalar com força nas
botas. Estremeci [...]
Está com medo, moloide?
Não, meu sargento. É quê.
O rebenque estalou outra vez na bota. Couro contra couro. Seco. A sala
inteira pareceu estremecer comigo. Na parede, o retrato do Marechal
Castelo Branco oscilou. (ABREU, 2018, p. 365).

A descrição aqui disposta sugere o contexto de ditadura, pos-


to que o retrato do “Marechal Castelo Branco” espreitando na
parede, consolida uma das referências intertextuais mais pa-
tentes desta narrativa, encarregada por indicar o contexto his-
tórico da obra. Já as capturas do militar com seu chicote “ereto
e tenso”, servem para definir sua posição-de-sujeito autoritária
e hostil, pois como informa Osman Lins, estudioso do espaço,
“O delineamento do espaço, processado com cálculo, cumpre
a finalidade de apoiar as figuras e mesmo de as definir social-
mente” (LINS, 1976, p. 70).
A ambientação que caracteriza Garcia socialmente, também
opera a partir da sua “expressão” corporal, cuja ilustração reali-
zada pelo narrador Hermes indica os meandros da identidade
de gênero do militar. Com camiseta branca, suor embaixo dos
braços peludos, mamilos salientes, olhos de cobra, ouro no ca-
nino, cabelos quase raspados cheirando a brilhantina e cigarro
543
nos dentes, o tal general espartano parecia um “leão brincando
com a vítima, patas vadias no ar, antes de desferir o golpe mor-
tal” (ABREU, 2018, p. 365).
Pensando nas trajetórias de gênero do sargento, elas estão
colocadas no interior das masculinidades hegemônicas, asse-
guradas pela cisnormatividade (VERGUEIRO, 2015, p. 68). Nes-
te aspecto, cabe dizer que as atuações e as performances de
gênero de Garcia são o que produzem discursivamente o seu
gênero, dado que este último é “performativamente produzido
e imposto [...] não há identidade de gênero por trás das expres-
sões do gênero; essa identidade é performativamente cons-
truída, pelas próprias “expressões” tidas como seus resultados.
(BUTLER, 2017, p. 56).
Isto é, no interior destas expressões ou estereótipos não é
possível se localizar um gênero específico, são as expressões,
contudo e em conjunto, um processo precisamente social e
performático que elabora a trajetória de gênero do personagem
– um homem cis de masculinidade hegemônica. Já em Hermes
encontramos a performance frágil do “mocinho delicado [...]
bem-educado” (ABREU, 2018, p. 366), que pode ser situada no
espectro de uma “masculinidade cisgênera subalterna” (MAR-
CONI, 2017, p. 58). Decorre que o pé chato, a taquicardia e a
pressão baixa livram Hermes da ameaçadora seletiva. Porém, já
a caminho de casa o jovem é interceptado por Garcia que, num
tom impositivo, lhe oferece uma carona. O rapaz aceita e entra
no carro. No diálogo que se desdobra entre os dois, o militar
relata a Hermes:
Do teu tamanho andava por aí meio desnorteado, matando contraban-
dista na fronteira. O quartel é que me pôs nos eixos, senão tinha virado
bandido. A vida me ensinou a ser um cara aberto, admito tudo. Só não
aguento comunista. Mas graças a Deus a revolução já deu um jeito nesse
putedo todo. (ABREU, 2018, p. 370).

544
As referências intertextuais ao contexto ditatorial ficam ainda
mais contundentes. Apesar da palavra “ditadura” nunca apare-
cer, seu significado transcende a partir das experiências narra-
das no trecho anterior. A “revolução”, conforme Garcia, se refere
ao evento que culminou na instauração do regime de ditadura
civil-militar de 1964, enquanto o quartel opera como sinônimo
da instituição militar, a qual conduziu as duas décadas de dita-
dura do Brasil pós-64. Não por acaso, o sargento ainda reitera
não suportar os comunistas, que no jargão autoritário daquela
conjuntura servia àqueles que se insurgiam contra o regime.
O trajeto segue, a tensão sexual no ar quase explode e, en-
tão, entre mãos nas coxas, Garcia convida Hermes para que
chegassem a um lugar, uma “coisa fina”, para que ficassem
mais à vontade onde “Ninguém incomoda” (ABREU, 2018, p.
371), buscando manter em segredo sua relação homossexual,
resguardada ao âmbito privado: “tu sabe como é, tem sempre
gente espiando a vida alheia, melhor eu ir na frente, fica no por-
tão azul, vem vindo devagar, como se tu não me conhecesse,
como se nunca tivesse me visto em toda a tua vida.” (ABREU,
2018, p. 372). Brevemente eles adentram naquela espécie de
bordel, onde são recebidos por Isadora, que maliciava ao mili-
tar “– O de sempre, então? [...] – Esta é a sua vítima?” (ABREU,
2018, p. 372), os conduzindo a um quarto para que pudessem
ficar a sós. Detalhando sua relação com o militar, Hermes re-
vela: “Com os joelhos, lento, firme, ele abria caminho entre as
minhas coxas, procurando passagem. Punhal em brasa, farpa,
lança afiada. Quis gritar, mas as duas mãos se fecharam sobre
a minha boca. Ele empurrou, gemendo”. (ABREU, 2018, p. 373-
374). Evidentemente que a prática sexual de Hermes e Garcia
aponta para a contradição do militar, considerando que em um
primeiro momento sua performatividade de gênero máscula,
hostil e autoritária além de confirmar a expectativa cis-hete-
545
rossexual da inteligibilidade do gênero (BUTLER, 207), coadu-
nava com o sistema de opressão ao qual ele servia. O sargento
pertencia a instituição militaresca que, insuflada por valores
conservadores e cristãos, procurou na empreitada do regime
militar:
fundamentar e legitimar o seu discurso político com base na defesa
da moral e dos bons costumes. Durante esse período, as autoridades
governamentais empreenderam inúmeras campanhas para efetivar a
sistematização dos corpos e das sexualidades dos cidadãos. Corrobo-
rando, dessa maneira, para a perseguição e repressão dos indivíduos
que não se enquadravam nos paradigmas morais e comportamentais
impostos pela ditadura militar. (COSTA, 2018, p. 14).

Garcia transita, portanto, do lócus hegemônico da cis-hete-


rossexualidade, para a posição da ilegitimidade, isto é, o lugar
“em que as práticas do desejo não ‘decorrem’ nem do ‘sexo’
nem do ‘gênero’”. (BUTLER, 2017, p. 44). Em outras palavras, o
sargento vai de encontro às normas e noções existentes de “in-
teligibilidade do gênero”, as quais supõem e demarcam ligações
causais e expressivas “entre o sexo biológico, o gênero cultural-
mente constituído e a ‘expressão’ ou ‘efeito’ de ambos na mani-
festação do desejo por meio da prática sexual” (BUTLER, 2017,
p. 43-44).
Nesse aspecto, o militar rompe com a coerência e a conti-
nuidade do gênero que – no interior do par binário masculi-
no e feminino, ou ainda, macho e fêmea – “exigem assim uma
heterossexualidade estável e oposicional” (BUTLER, 2017, p.
52), expressada, precisamente, pelo desejo ao gênero oposto.
Portanto, encontramos em “Sargento Garcia” dois percursos no
que se refere às trajetórias de gênero e sexualidade. Primeiro
com Hermes, jovem de masculinidade subalterna, situa-se a vi-
vência demarcada pela auto descoberta e percepção enquanto
um rapaz possivelmente gay e, especialmente, as marcações
que o reduzem a posição do “Veadinho sujo. Bichinha louca”
546
(ABREU, 2018, p. 374). Já em Garcia, há uma captura mais pro-
fundamente detalhada acerca da artificialidade dos discursos
conservadores que buscam se auto naturalizar como legítimos
e normais na medida em que reduzem as experiências dissi-
dentes à cis-heterossexualidade no lugar do antinatural e do
anormal.
Segundo Butler (2017), “certas configurações culturais do gê-
nero assumem o lugar do ‘real’ e consolidam e incrementam
sua hegemonia por meio de uma auto naturalização apta e
bem sucedida” (p. 69). Nesse sentido, ao romper com o aparato
discursivo da matriz heteronormativa, sustentado e assegura-
do pelas instituições civis, militares e pelo imaginário social, o
sargento deixa escapar a não-naturalidade dos gêneros e das
sexualidades hegemônicas bem como seus processos discursi-
vos de produção, justamente porque as contradições informa-
das pelas práticas do sargento denotam ruptura com atos de
repetição – elementos fundamentais para a produção social do
gênero e da sexualidade, sejam hegemônicos ou não.
Considerando a elaboração teórica desnudada a respeito do
personagem Garcia, bem como o trânsito dele em distintos e
contraditórios papeis de gênero e de sexualidade, é possível
asseverar que o Sargento somente consegue manter reduzida
a sua experiência homossexual ao espaço privado – ao passo
que goza dos privilégios cis-heteronormativos nos espaços pú-
blicos – por pertencer a uma militaresca e inquisidora institui-
ção de Estado, responsável por sustentar o domínio social do
personagem nas hierarquias de gênero e de sexualidade. Em
outras palavras, os pactos narcísicos da cisgeneridade e da he-
terossexualidade são produzidos no diálogo de Garcia com o
interior dessa instituição pois, como lembra Cida Bento (2002),
o Exército é uma das principais instituições com condutas “pro-

547
fundamente intolerantes com as expressões individuais e/ou
subjetivas” (p. 42).
O discurso LGBTfóbico, na medida em que nomeia o “via-
do” – Hermes –, também o empurra para o lócus marginal e
desumanizado, do que é lido como “sujo”, impuro, imoral. Nes-
se sentido, aos rapazes que enfrentavam o alistamento junto a
Hermes, restava, por um lado, a subordinação a uma posição-
-de-sujeito disciplinada e previamente calculada, para corres-
ponder aos ideais cisgêneros e heteronormativos exigidos pelo
Sargento que, reiteradamente exigia não somente “– Sen-ti-
do!” (ABREU, 2018, p. 366), mas também docilidade e sujeição:
“– Limite-se a dizer sim, meu sargento ou não, meu sargento.
Correto?” (ABREU, 2018, p. 365). Além disso, a instituição em
que se desdobrava o alistamento foi responsável por operar:
mediante o uso indiscriminado de normas e de dispositivos proibitivos,
bem como da perpetração de violentas operações policiais, cujo intuito
foi promover uma ampla campanha a favor da moral e dos bons cos-
tumes contra os indivíduos que não se enquadravam nos paradigmas
comportamentais exigidos pelo regime militar, dentre eles, os dissiden-
tes sexuais. (COSTA, 2018, p.31-32).

Por outro lado, há entre os rapazes uma espécie de pacto.


Nus, eles riem baixinho, “cutucando-se excitados” (ABREU,
2018, p. 364), divertindo-se do constrangimento de Hermes.
Cabe relembrar que o pacto narcísico, forjado pelo narcisismo
– isto é, pela “expressão do amor a si mesmo [...] que trabalha
para a preservação do indivíduo e que gera aversões ao que é
estranho, diferente” (BENTO, 2002, p. 31-32) –, é caracterizado
pela violação e supressão dos comportamentos que desviam
da suposta naturalidade heterossexual: “É como se o diferente,
o estranho pusesse em questão o ‘normal’, o ‘universal’ exigindo
que se modifique.” (BENTO, 2002, p. 32). Assim, a masculinida-
de e sexualidade hegemônicas prevalecem em detrimento de
qualquer traço entendido como desviante. É o que parece se
548
desdobrar na narrativa em discussão. Para além da autoiden-
tificação e autoproteção entre “os iguais” presente em “Dama
da noite”, há, em “Sargento Garcia”, um pacto que discrimina e
oprime, caracterizado pelo processo psicossocial de “falsa pro-
jeção”, que Cida Bento (2002) definiu em sua tese de doutora-
mento como sendo:
um mecanismo por meio do qual o sujeito procura livrar-se dos impul-
sos que ele não admite como seus, depositando-os no outro. Aquilo,
portanto, que lhe é familiar, passa a ser visto como algo hostil e é proje-
tado para fora de si, ou seja, na “vítima em potencial”. (p. 43).

Este procedimento configurador do pacto narcísico é paten-


te em “Sargento Garcia”, posto que o protagonista porta como
principal traço de personalidade o discurso machista, “– Sen-
-tido! Estão pensando que isso aqui é o cu da mãe joana?”
(ABREU, 2018, p. 368), e homofóbico. Na tentativa de recalcar
seus impulsos homossexuais – visto que ele se relaciona sexu-
almente com Hemes – o Sargento os projeta para fora de si em
forma de agressividade e discriminação contra posições-de-
-sujeito supostamente não-heterossexuais. Este processo está
forjado, nesse sentido, em um sentimento de medo, sobretudo
porque Garcia:
Ao projetar os impulsos, consegue livrar-se deles e, ao mesmo tempo,
reagir a eles, como algo que pertence ao mundo exterior. É um tipo de
paranóia que caracteriza freqüentemente quem está no poder e tem
medo de perder seus privilégios. Assim, projeta seu medo e se transfor-
ma em caçador de cabeças. (BENTO, 2002, p. 42)

Nessa perspectiva, ao utilizar das arquiteturas militares para


operar a manutenção das hierarquias sexuais e de gênero que
o beneficiam, o Sargento propicia que uma certa “intolerância
generalizada contra tudo o que possa representar a diferença.”
(BENTO, 2002, p. 44) exista concretamente. Essa intolerância

549
generalizada que figura como uma espécie de ódio coletivo de-
corre, particularmente, do fato de que:
O amor narcísico está relacionado com a identificação, tanto quanto o
ódio narcísico com a desidentificação [...] A escolha narcísica de objeto
se faz a partir do modelo de si mesmo, ou melhor, de seu ego ideal:
ama-se o que se é, ou o que se foi, mas ama-se principalmente o que se
gostaria de ser, ou mesmo a pessoa que foi parte de si, enquanto vista
como ideal do ego, nos processos de indiferenciação.
Por outro lado, o alvo de nosso ódio narcísico é o outro, o “diferente”, de-
positário do que consideramos nosso lado ruim. (BENTO, 2002, p. 44).

Esse é, precisamente, um dos movimentos que compõe os


pactos narcísicos engendrados no conto em discussão. É im-
portante ressaltar que estes pactos produzidos no interior das
arquiteturas do exército – no território ficcional de “Sargento
Garcia” – cumprem uma função de desnudar as contradições
subjacentes às instituições militares, principalmente pelo fato
de que a performatividade de Garcia confirma que “Os alvos
preferenciais de descargas pulsionais violentas são então os
grupos politicamente minoritários, as etnias e as nacionalida-
des construídos como objetos de preconceito e discriminação.”
(BENTO, 2002, p. 45). Dessa maneira, revela-se em Sargento
Garcia, a desfaçatez desse cistema binário artificial, forjado por
pactos narcísicos e, responsável, em última instância, por ope-
rar as matrizes normativas reguladoras do gênero e da sexua-
lidade.

As trajetórias traçadas nos dois contos analisados que, ora


transitam entre a solidão produzida pelas cisnormatividades
em “Dama da Noite”, ora pelas contradições no processo de
produção das identidades hegemônicas, em “Sargento Garcia”,
parecem encontrar possibilidades interpretativas na argumen-
tação de Cida Bento (2002), de que “A preocupação em pre-
550
servar, isentar, proteger os interesses do grupo branco, convive
nos discursos com uma culpabilização e desvalorização dos ne-
gros, e por vezes, com uma indiferença em relação à violação
de seus direitos.” (p. 155). A elaboração proposta pela autora,
ainda que discuta questões de desigualdade racial no Brasil, me
forneceu um arcabouço teórico que permitiu circunscrever a
ideia de “pacto narcísico” no interior das relações de gênero e
sexualidade.
Nesse sentido, foi possível classificar a cisgeneridade e a he-
teronormatividade, a partir das caracterizações empreendidas
por Vergueiro (2015) e Butler (2017), enquanto sistemas clas-
sificatórios (WOODWARD, 2014) que buscam criar nomencla-
turas, na medida em que estabelece hierarquias. Sob um viés
dualista e binário, as personagens dos contos estudados transi-
tam em distintas e desiguais posições-de-sujeito. Para a Dama
da noite resta a solidão, há a explicitação do caráter excludente
dos pactos narcísicos da cisgeneridade que são engendrados
pelos que giram na roda. Por sua vez, em Sargento Garcia, a
desfaçatez dos pactos narcísicos da heterossexualidade, mas
também cisgêneros, são descortinados na medida em que as
contradições e as performatividades do que se entende como
natural, fixo e estanque – a (hetero) sexualidade – são expostas
na figura do militar.
Penso e espero ter conseguido contribuir neste trabalho com
a elaboração crítica da pesquisa científica, incentivando práti-
cas emancipatórias no trabalho com os textos literários, criando
um território de alternativas aliadas aos letramentos de reexis-
tência.

551
ABREU, C. F. Dama da noite. In: ABREU, C. F. Contos Completos: Caio
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Caio Fernando de Abreu. ed. 1, São Paulo: Companhia das Letras,
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Ensinando a transgredir
-

KAES, R. O grupo e o sujeito do grupo elementos para uma


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Lima Barreto e o espaço romanesco -

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553
Literatura e cinema
Quando a tragédia se torna uma vingança:
Oldboy (2003) como releitura de Édipo Rei (429 a.
C.)

Rodrigo Paes
Jane Kelly de Oliveira

Introdução
Apontado pelo filósofo Aristóteles como a maior tragédia do
teatro grego, Édipo Rei (429~425 a.C.) de Sófocles é uma das
obras mais influentes, não somente para a literatura, como
também para outros aspectos de nossa cultura. É impressio-
nante a vitalidade do mito grego de Édipo e como a obra de Só-
focles demonstra-se ainda muito produtiva e desperta, através
do filme do diretor sul-coreano dirigido por Park Chan Wook,
OldBoy (2003), uma releitura contemporânea que revisita a
obra antiga, e ao mesmo tempo desenvolve uma narrativa úni-
ca. Justamente essa relação existente entre a obra cinemato-
gráfica do diretor Sul-Coreano e a tragédia grega clássica será
explicitada nesse artigo.
A obra de Park Chan Wook é o segundo filme de uma tri-
logia do diretor, conhecida como trilogia da vingança. O filme
apresenta a jornada de vingança de Oh Dae-Su, um homem
comum, com esposa e uma filha de 3 anos, que certa noite é
levado para a delegacia por estar alcoolizado. Ao sair da dele-
gacia é sequestrado e mantido em cativeiro por 15 longos anos,
durante os quais descobre que sua esposa foi assassinada e que
ele se tornou o único suspeito do crime. Quando enfim liberto,
ele investiga juntamente com Mi-Do, uma mulher que conhece
em um restaurante e com quem se envolve romanticamente, a
razão de seu sequestro.
555
O enredo tem seu desenrolar trágico com a revelação de que
Dae-Su foi sequestrado e mantido em cativeiro por presenciar
a relação incestuosa que Lee Woo-Jin mantinha com sua pró-
pria irmã. O irmão culpou Dae-Su pelo suicídio da irmã, uma
vez que a revelação de tal relação impeliu a moça a se matar.
Além disso, o próprio protagonista vive em uma relação de in-
cesto com Mi-Do que descobrimos ser filha do personagem
principal do filme.
Como estamos trabalhando com a premissa de que o filme
está adequado no processo de recepção da herança literária
clássica, assim sendo, temos que ter em mente que:
A teoria da recepção rejeita a existência de um texto único, original, ob-
jetivo e fixo que tem de ser examinado como uma forma de arte pura
[...] na recepção, nós falamos em ‘textos’, no plural, porque, a cada vez
que um texto é lido, ele está sendo recebido e interpretado de uma nova
maneira. [...] Textos clássicos são em geral incompletos, controversos,
recuperados de uma variedade de fontes e reinterpretados por cada ge-
ração de estudiosos de Clássicas. A recepção dos clássicos concentra-se
na forma como o mundo clássico é recebido nos séculos subsequentes
e, em particular, nos aspectos das fontes clássicas que são alterados,
marginalizados ou negligenciados. (BAKOGIANNI, 2016, p.115)

Ou seja, a teoria da recepção dos clássicos irá abordar as di-


versas leituras e releituras que podemos fazer de uma mesma
obra, abraçando todo o valor, importância e influência que es-
ses textos provocam, mas não excluindo as diversas interpreta-
ções e adaptações adjacentes que poderão surgir com o passar
do tempo.
OldBoy é um exemplo de obra que adapta alguns aspectos
que Édipo Rei tem a oferecer. O primeiro deles é a estrutura nar-
rativa que, assim como a tragédia, apresenta um personagem
atormentado por diversas questões a serem respondidas sobre
sua própria vida, com uma jornada conduzindo-o a busca de
respostas. Temos a peripécia, marcada pela guinada do enredo,
e uma narrativa que culmina em um momento decisivo de re-
556
velações, que podemos indicar como o reconhecimento. Além
de um desfecho com certos elementos didáticos e moralistas,
com o objetivo de ensinar o protagonista a dominar suas pai-
xões que conduzem ao sofrimento, tal como Pereira apontou
como sendo características constitutivas da tragédia grega an-
tiga (PEREIRA, 1970 p. 396).
Outros pontos que valem destaque são o dilema que os
protagonistas vivem por estarem em uma relação incestuosa
e como isso afeta a vida e o desenvolvimento desses perso-
nagens, além da solução final de expiar seus crimes através da
automutilação – elementos também presentes na tragédia de
Sófocles. Por fim, há a Hybris presente no âmago dos persona-
gens, que em OldBoy se faz presente pelo excessivo desejo de
vingança do protagonista, fazendo-o desrespeitar os códigos
de conduta sociais para atingir seu objetivo.
Entretanto, como mencionado anteriormente, a leitura dos
textos clássicos não impede o diretor de adicionar elementos
próprios para a construção de sua narrativa. O principal des-
ses elementos é possivelmente a motivação dos protagonistas,
pois, enquanto Édipo busca descobrir a verdade para salvar seu
reino, Dae-Su busca a verdade motivado por vingança.
A seguir, apresentaremos elementos decisivos para estabe-
lecer os principais aspectos que serão analisados como pontos
de contato entre ambas as obras para, em um primeiro mo-
mento, analisar as semelhanças narrativas entre elas, e em se-
guida analisar as semelhanças dos personagens, para assim,
definir OldBoy como uma releitura de Édipo Rei.

557
A primeira definição do que conhecemos por tragédia e os
elementos que a compõem foi desenvolvida pelo filósofo gre-
go Aristóteles em sua obra Poética. Para ele,
A tragédia é a imitação (mimesis) de uma acção elevada e completa, do-
tada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes
em cada uma das suas partes, que se serve da acção e não da narração
e que, por meio da compaixão (eleos) e do temor (phobos), provoca a
purificação (katharsis) de tais paixões. (POÉTICA, 1449b 24).

Em relação a tais conceitos aristotélicos, Santos aponta que,


como não temos um narrador propriamente dito descrevendo
os acontecimentos, a representação narrativa se fará presente
através da ação, e através dessas ações a narrativa despertará
emoções no espectador. O autor complementa que essa ação
está muito mais ligada à ação e organização dos fatos presentes
na narrativa do que à imitação dos personagens propriamente
ditos. Dessa forma, o caráter da trama e dos personagens é de-
finido através do relato de suas ações e desventuras. (SANTOS,
2005, p.46)
O conceito trágico da mimesis é um elemento presente nas
artes cênicas, visto que, tanto no teatro quanto no cinema te-
mos a representação visual dos atores encenando. No filme de
Park Chan Wook é através da representação das ações dos per-
sonagens que o espectador percebe as nuances tanto da nar-
rativa, quanto do caráter das personagens. Como exemplo, te-
mos a cena a seguir, na qual temos o proprietário do local onde
Oh Dae-Su ficou cativo sendo torturado pelo protagonista. É
através dessa cena que percebemos o tom brutal que o desen-
volvimento das ações irá tomar, que o protagonista possui uma
hybris e está disposto a tomar qualquer medida para encontrar
as respostas que procura e cumprir sua vingança.

558
(OldBoy, 2003 41min 36’)1

Outra cena a ser discutida é a decisão final do antagonista


Lee Woo-Jin de aceitar o pedido de Oh Dae-Su para não re-
velar a Mi-Do que ela e o protagonista estão em uma relação
incestuosa, pois como Woo-Jin teve sucesso em vingar-se do
personagem principal, não tinha mais motivos para continuar
punindo-o. Todavia, Lee Woo-Jin ao consumar sua vingança
também acabou com seu único objetivo de vida, percebendo
que isso não mudou o fato da morte da sua irmã e, sem mais
motivações para viver, decidiu tirar sua própria vida.

1 Fotograma da cena de Oh Dae-Su torturando o proprietário do prédio no qual foi


mantido cativo por 15 anos. O protagonista com um martelo arranca 15 dentes do
homem. (OldBoy, 2003 41min 36’)
559
(OldBoy, 2003 1h 51min 14’)2

O desfecho do vilão demonstra tanto o amor que ele ainda


sentia pela irmã, fator central no arco do personagem, quanto
o vazio que sentiu ao concluir o que planejou por tantos anos.
Outro aspecto apontado por Aristóteles em sua obra e que nos

que
De todos estes elementos, aqueles em que a tragédia exerce maior
atracção são as partes do enredo, isto é, as peripécias e os reconheci-
mentos. Mais uma prova disso é que os autores principiantes conse-
guem, em primeiro lugar, aperfeiçoar-se na elocução e nos caracteres e,
só depois, estruturar as acções; e o mesmo acontece com quase todos
os poetas antigos. (POÉTICA, 1450a 32).

Para o enredo da tragédia, o elemento que marcará a mu-


dança do rumo narrativo, a peripécia, é muito característico do
gênero. Édipo Rei, a peripécia acontece quando Édipo, encami-
nhando sua investigação para descobrir o assassino de Laio e,
assim, livrar Tebas da peste, acaba por desenterrar sua própria
desgraça. Consequentemente, o caminho que supostamente

2 Fotograma da cena de suicídio de Lee Woo-Jin no elevador. (OldBoy, 2003 1h


51min 14’)
560
levaria o protagonista para a felicidade acabou por lançá-lo à
infelicidade.
Outro elemento muito característico da tragédia grega são
as revelações de elementos ocultos para os personagens que
alteram seus cursos narrativos - a Anagnórise. Novamente to-
mamos Édipo Rei como exemplo. Em determinado ponto da
trama será revelado que o rei não somente é o verdadeiro as-
sassino de Laio, criminoso esse que o motivava a investigar seu
passado, como também acabou casando com a própria mãe.
Essas revelações mudam o destino de Jocasta que acaba por
cometer suicídio após constatar a verdade bem como levam
Édipo a ter seu fim trágico.
SERVO: Me condoí. Pensei ao seu país
de origem levar o menino. Para
um mal maior, salvou-o. Se és quem ele
diz, crê: nasceste para a desventura.
ÉDIPO: Tristeza! Tudo agora transparece!
Recebe, luz, meu derradeiro olhar!
De quem, com quem, a quem - sou triplo equívoco:
ao nascer, desposar-me, assassinar! (SÓFOCLES, 2011 v. 1178 – 1185,
p.97)

Aristóteles ainda aponta que a “há enredos simples e com-


plexos (...). [a ação] será complexa quando a mudança for acom-
panhada de reconhecimento ou peripécia ou ambas as coisas”
(POÉTICA, 1452a 11- 18). No caso da tragédia de Sófocles, é
justamente o que acontece, pois a mudança de fortuna é con-
comitante à peripécia e ao reconhecimento, tornando a fábula
complexa.
Temos nesse elemento mais uma semelhança entre a tra-
gédia e o filme. Em OldBoy a estrutura é parecida pois há uma
virada de eventos abrupta, coincidindo com a peripécia e com
o reconhecimento.

561
Com suas investigações tendo importantes avanços e o nas-
cimento de um romance com Mi-Do, a trama parece se enca-
minhar para uma resolução positiva para Oh Dae-Su. Mas, com
uma sucessão de revelações que podemos categorizar como
a anagnórise presente no filme, o protagonista descobre não
somente que é o principal agente causador de sua própria des-
graça, mas também que mantém relações incestuosas com sua
filha. Essas revelações sucessivas levam o desenrolar da trama
a terminar com o protagonista em dois estados de infortúnio.
O primeiro pode ser caracterizado como uma cena de Pathos,
ou seja, uma cena de grande impacto simbolizando a emoção e
sofrimento do protagonista de forma dramática, quando, para
proteger Mi-Do da verdade, Oh Dae-Su corta sua própria lín-
gua.

(OldBoy, 2003 1h 45min 36’)3

Algo notável dessa cena é que o ato do protagonista se au-


tomutilar pode simbolizar a tentativa de expiação dos próprios
pecados, visto que o antagonista desejava punir Oh Dae-Su por
este ter espalhado o boato sobre a irmã de Woo-Jin. Então, o
ato de arrancar a língua e entregar ao rival tem um simbolismo

3 Fotograma da cena na qual Oh Dae-Su corta sua própria língua com uma tesoura.
(OldBoy, 2003 1h 45min 36’)
562
semelhante ao de eliminar a arma causadora da dor do antago-
nista e demonstrar a mudança de perspectiva do protagonista.
Já o segundo estado trágico no final da jornada do protago-
nista é a sua perda de identidade, visto que assombrado pela
revelação de toda a verdade, decide recorrer à hipnose apa-
gando sua memória e esquecendo-se de tudo o que ocorreu. A
cena da hipnose leva a crer que a identidade do Oh Dae-Su que
sabia de tudo “morre” juntamente com o lamentável segredo.
Essa escolha do protagonista é dimetralmente oposta da apre-
sentada na tragédia de Sófocles, pois enquanto Édipo, a todo
momento, busca conhecer mais de seu próprio passado, seja
ele qual for, como pode ser percebido na citação a seguir,
ÉDIPO: Tem brio! Mesmo se eu for escravo ao triplo
- de mãe da mãe da mãe -, o mal é meu
JOCASTA: Mas eu, contudo, insisto: encerra a busca!
ÉDIPO: Só encerro quando tudo esclarecer. (SÓFOCLES, 2011 v.1062 –
1065, p.90)

Dae-Su escolhe o oposto, buscando o esquecimento de seu


passado, achando melhor manter-se ignorante como forma de
autopreservação.
Por fim, os elementos dolorosos que ocorrem ao final da tra-
ma, como a mutilação, a morte de vários personagens, as cenas
de luta e tortura etc. Podem ser classificadas como cenas de
Catastrophe, que, segundo Aristóteles, “é um acto destruidor ou
doloroso, tal como as mortes em cena, grandes dores e feri-
mentos e coisas deste gênero” (POÉTICA, 1452b9), sendo este
o elemento perturbador que precede o desfecho, correspon-
dendo à peripécia derradeira.
Os aspectos da tragédia e do filme comparados até este
ponto indicam que a narrativa do filme foi estruturada nos mol-
des da tragédia clássica. É possível reconhecer os elementos do

563
enredo apontados por Aristóteles como próprios das composi-
ções dos tragediógrafos gregos em Old Boy.
Além dos aspectos da estrutura narrativa há outros pontos
de contato entre as duas obras aqui analisadas sobre os quais
passaremos a tratar.

A inscrição conhecida como máxima délfica - conhece-te a ti


mesmo - é uma dentre os 147 aforismos inscritos nas paredes
do templo dedicado ao deus Apolo na cidade de Delfos. Essa
máxima levanta, até os dias de hoje, diversas interpretações do
seu significado, dentre as quais, a busca do indivíduo por co-
nhecer mais sobre si mesmo, refletindo os elementos causais
presentes em si e o que o define como ser atual; outra que ex-
trapola o elemento causal é a busca do indivíduo em conhecer
seu lugar perante a divindade e perante os outros homens, ou
seja, seu lugar perante o mundo exterior. (BRAZIL, 2012, p.34)
Édipo Rei tem como temática central de seu enredo justa-
mente essa busca pelo autoconhecimento, como mencionado
pelo tradutor Trajano Vieira ao citar a análise de Bernard Knox
sobre a temática da tragédia:
Para Knox, a questão central do Édipo Rei não é o parricídio nem o in-
cesto – cometidos antes do início do drama –, mas a investigação leva-
da a cabo pelo personagem com o intuito de descobrir, num primeiro
momento, o assassino de Laio, e, num segundo, sua própria identidade.
(VIEIRA, 2011, p.21).

O conhecimento do rei tebano sobre seu próprio passado


e suas origens possuem diversas lacunas que vão sendo pre-
enchidas aos poucos pelos relatos de outros personagens de-
tentores de informações tanto do passado do reino, quanto do
próprio Édipo.

564
A maior dessas lacunas que permeia grande parte da narrativa
influenciando a maioria das grandes cenas da tragédia é o fato
de Édipo não conhecer sua origem parental. Não saber quem
são seus verdadeiros pais o leva a interpretar erroneamente a
profecia que o indicava como assassino de seu pai e esposo de
sua mãe. Ao decidir pelo exílio de Corinto, sem saber que fora
adotado pelos soberanos daquele lugar, Édipo sente-se seguro
e confiante de ter conseguido fugir do destino profetizado.
ÉDIPO: É lícito. Meu fado - Apolo disse -
seria fazer amor com minha mãe,
das mãos vertendo o sangue de meu pai.
Eis o motivo pelo qual Corinto
virou lugar longínquo. Tive o bem
do acaso, mas rever meus pais, quem me dera!
MENSAGEIRO: O exílio decorreu desse pavor?
ÉDIPO: Quis evitar também matar meu pai. (SÓFOCLES, 2011, v.994 –
1001, p.85)

Como mencionado, essas informações são fornecidas tanto


ao protagonista quanto ao público através da narrativa de ou-
tros personagens da trama. Valendo-se do conjunto de infor-
mações dispersas, o protagonista vai aos poucos montando o
quebra cabeça de seu passado.
MENSAGEIRO: Pois não tem fundamento teu pavor
ÉDIPO: Mas como, se eles são meus genitores?
MENSAGEIRO: Não tinhas parentesco com Políbio.
ÉDIPO: Como Políbio não me deu a vida?
MENSAGEIRO: Nem mais nem menos que este com quem falas. (SÓ-
FOCLES, 2011, v.1014 – 1018, p.86)

Aos poucos, as investigações de Édipo sobre seu passado


resultam na Anagnórise, o reconhecimento por Édipo de sua
própria ignorância e impotência. Ao julgar fugir de seu destino,
acaba por decretá-lo como certo.
SERVO: Estou a ponto de falar o horror.
565
ÉDIPO: E eu de ouvi-lo; mas é preciso ouvir.
SERVO: Filho do rei, diziam. Lá dentro está
quem pode dar detalhes: tua mulher.
ÉDIPO: Foi ela quem te deu a criança?
SERVO: Exatamente, rei
ÉDIPO: Com que finalidade?
SERVO: Para dar cabo dele.
ÉDIPO: A própria mãe? Incrível!
SERVO: Temia um mau oráculo.
ÉDIPO: Qual?
SERVO: Seria matador dos pais diziam. (SÓFOCLES, 2011, v.1169 – 1177,
p.96)

Da mesma forma o tema central da tragédia sofocliana é a


busca de Édipo por conhecer mais sobre si mesmo.
Analogamente, o enredo central de OldBoy tem foco na in-
vestigação de Oh Dae-Su, o que, por consequência, o leva a
descobrir mais sobre seu próprio passado. De maneira seme-
lhante, como as informações incompletas de Édipo o levam a
tomar decisões precipitadas, o protagonista do filme também
não aprofunda as pistas que podem evitar o desfecho fatídi-
co da narrativa. No decorrer das investigações de Dae-Su, há
oportunidades que o livrariam da relação incestuosa com sua
filha, mas são deliberadamente ignoradas.
Mi-Do: O endereço da sua filha está na frente e atrás tem um mapa do
túmulo da sua mulher.
Oh Dae-Su: Eva, Estocolmo. Eva...
Mi-Do: Quer ligar pra ela? Você quer que eu ligue? Quer que eu vá com
você até o túmulo?
Oh Dae-Su: Não! Só depois que eu matar aquele desgraçado. (OldBoy,
34min 35’)

No diálogo citado, a própria filha, Mi-Do, sem saber que o


era, sugere um caminho de investigação que poderia levar ao
reconhecimento das relações de parentesco entre eles, mas a
opção foi negada por Oh Dae-Su. Assim como em Édipo Rei,

566
em Old Boy há vários sinais negados que poderiam antecipar o
reconhecimento de si mesmo.
Semelhante à tragédia grega, a grande maioria de informa-
ções obtidas por Oh Dae-Su em suas investigações vêm através
de diálogos com outros personagens. Como exemplo, temos
durante as investigações do passado do antagonista o diálogo
entre Oh Dae-Su e sua ex-colega de classe que, ao pesquisar
com uma amiga sobre a pessoa com quem Lee Soo-Ah, irmã
de Lee Woo-Jin, estava mantendo um caso amoroso, revela
que o próprio protagonista sabe a resposta em sua memória.
Esse diálogo ativa uma memória em forma de flashback, por
meio da qual o espectador presencia visualmente a lembrança
do passado esquecida por Oh Dae-Su, descobrindo que Woo-
-Jin, o próprio irmão, era o amante da jovem.

(OldBoy, 2003 1h 22min 56’)4

No final do filme, Woo-Jin, ao perceber que Dae-Su não ha-


via obtido todas as respostas para os mistérios propostos por
ele, decide revelar as informações que faltam sobre a conexão
entre si e sua irmã. Ele revela seus motivos para sequestrar o
protagonista, sua motivação para considerar Oh Dae-Su culpa-

4 Fotograma do flashback de Oh Dae-Su, no qual ele se lembra que presenciou Lee


Woo-Jin e Lee Soo-Ah mantendo relações sexuais escondidos em uma sala de aula.
(OldBoy, 1h 22min 56’)
567
do pela morte de Soo-Ah, e como manipulou a vida de Mi-Do
para que ela e Dae-Su se envolvessem romanticamente. O di-
álogo e as cenas a seguir exemplificam esses momentos finais
da trama trágica:
Lee Woo-Jin: Eu vou te dizer. Simplesmente esqueceu! [...] E por que?
Porque não era da sua conta! O boato aumentou tanto que disseram
que Soo-Ah estava grávida. Minha irmã foi tragada pelo boato e acabou
acreditando nele [...] foi a sua língua que engravidou a minha irmã. Não
foi meu pinto! Foi a sua língua Dae-Su. (OldBoy, 1h31min12’)
Lee Woo-Jin: Eu vou terminar a história. Escuta que a história é engraça-
da. Já ouviu falar de sugestão hipnótica? [...] Hipnotizamos os dois. [...]
Uma palavra engravida e outra apaixona. [...] “Por que Woo-Jin soltou
Dae-Su depois de quinze anos?” (1h33min04’)

Concomitante a esse diálogo, Woo-Jin entrega uma caixa


com a foto familiar que revela informação que faltava: Mi-Do é
filha de Oh Dae-Su.

(OldBoy, 2003 1h36min41’)5

Em resumo, podemos concluir que, semelhantemente à tra-


gédia grega clássica, OldBoy tem sua temática pautada na jor-
nada de autoconhecimento do protagonista. E como a ausên-

5 Fotograma da foto da família de Oh Dae-Su que estava na caixa entregue por Lee
Woo-Jin. (OldBoy, 1h36min41’)
568
cia desse conhecimento de si mesmo leva Oh Dae-Su (assim
como Édipo) em direção à sua ruína.
Contudo, apesar de ambos protagonistas, o do filme e o da
tragédia, trilharem caminhos equivocados e tomarem decisões
precipitadas na busca por saber mais de si, no filme, Oh Dae-Su
opta por um desfecho muito diferente do desenredo da histó-
ria de Édipo. Enquanto esse enfrenta as consequências de sua
tragédia, mergulhando na verdade descoberta, aquele opta por
apagar suas memórias e viver uma vida mergulhada na sombra
do ignorar-se.
Analisaremos a seguir como todo esse processo no enredo
acaba por ser influenciado pela personalidade do protagonista,
sendo novamente um ponto de contato entre a obra clássica e
o filme sul-coreano.

A hybris de Oh Dae Su
A Hybris, como apontado por Fábio Cândido dos Santos, se
caracteriza como o desrespeito humano à sua própria estrutura
ontológica, sucumbindo ao próprio poder e à sedução dos pra-
zeres. Quando o homem deixa de se corrigir e ordenar certos
desejos para si mesmo enquanto leva outros à desgraça, moti-
vado por grandes paixões como o ódio, a cólera ou a soberba,
os homens se deixam ser arrebatados por ela. (SANTOS, 2019
p. 17).
O estudioso aponta que por mais que Aristóteles não faça
uso da palavra Hybris em seus estudos, aponta que a quebra de
algum tipo de medida é prejudicial ao exercício da Areté, bem
como impede o homem realizar de forma adequada a medi-
da do ser. Ele também sugere que sucumbir aos vícios repre-
sentaria cair em extremos que levariam a uma vida desmedida.
(SANTOS, 2019 p.19)

569
Dessa forma, como já mencionado anteriormente, uma ca-
racterística muito proeminente na personalidade de Édipo é
sua propensão aos excessos frente ao poder e imponência dos
deuses, pois o personagem trágico acaba embebedado por seu
próprio poder e influência, demonstrando por diversas vezes
grande insolência em relação à veracidade e credibilidade dos
deuses quanto ao que se refere a profecia do oráculo, questio-
nando se os deuses não estavam enganados sobre seu destino.
(FILHO, 2018)
ÉDIPO:
[...] A pólis concedeu-me o dom do reino;
sem meu empenho o pôs em minhas mãos;
[...] Não de um desavisado a solução
do enigma dependia, mas de um profeta.
Ficou patente: nem as aves, nem
os deuses te inspiravam. E eu cheguei;
dei cabo dela, alguém sem crédito, Édipo;
vali-me do pensar e não dos pássaros.
A mim pretendes expulsar agora,
sonhando secundar Creon no cargo?
Lamentareis querer purgar a pólis. (SÓFOCLES, 2011, v.383 – 401, p.103)

Semelhantemente, Oh Dae-Su, o protagonista de OldBoy,


apresenta certas ações e características que podemos classi-
ficar como algo semelhante ao conceito de Hybris discutido
anteriormente, pois o protagonista por diversas vezes realiza
quebras do que podem ser consideradas normas para o ser hu-
mano, tomando ações extremas para atingir o que deseja.
Desde sua primeira cena em tela, ele demonstra ter um
modo de vida extremamente desregrado e se deixa entregar
facilmente por seus sentimentos. Oh Dae-Su inicia o filme de-
tido em uma delegacia após causar um tumulto por estar bêba-
do, demonstrando que desde sempre utiliza a bebida como um
modo de escape de seus problemas e falhas.

570
Durante o período em que esteve cativo, o que o motivava
a continuar vivo sempre foi o sentimento de vingança, dese-
jando sair e encontrar o responsável por sua desgraça para que
este tivesse sua devida punição. Após sua libertação, uma de
suas primeiras ações é entrar em uma luta corporal com certos
jovens que fizeram provocações na rua. Sua atitude violenta se
justifica tanto no desejo de extravasar toda a raiva e rancor con-
tidos todos esses anos que passou preso, como no desejo de
testar suas habilidades após seu treinamento intensivo. Dae-
-Su demonstra, assim como na cena de tortura citada anterior-
mente, ações intensas e desmedidas, baseadas em seus fortes
sentimentos.
Outro aspecto das medidas extremas do personagem é a seu
relacionamento com Mi-Do. Durante o filme Dae-Su se deixa
levar por sua intensidade de desejos e sentimentos, chegando
ao ponto de quase estuprar a moça, simplesmente para satis-
fazer sua abstinência sexual.

(OldBoy, 30min29’)6

Podemos perceber os excessos do personagem em diversas


cenas como em sua ação violenta com Mi-Do diante da des-
confiança que ela o tenha traído ou atrapalhado seus planos de

6 Fotograma da cena na qual Oh Dae-Su tenta estuprar Mi-Do no banheiro da casa


dela. (OldBoy, 30min29’)
571
vingança; ou na decisão unilateral de ocultar a verdade da moça
sobre sua relação familiar apagando sua própria memória e não
revelando a verdade para ela; ou na ação final do personagem
em apagar sua própria memória para manter a relação incestu-
osa sem sentir-se culpado.
Assim sendo, notamos que o protagonista de OldBoy é um
homem movido por seus próprios desejos e, inebriado por seus
sentimentos, realiza suas ações, não importando quem preju-
dique em seu caminho, desde que o final lhe seja benéfico.
Contudo, a postura final de Dae-Su é antagônica àquela to-
mada por Édipo, pois o rei tebano reconhece sua própria inso-
lência e tenta redimir seus pecados. Já Oh Dae-Su, ao decidir
simplesmente apagar sua memória demonstra querer se man-
ter cego aos seus próprios pecados, evoluindo como persona-
gem em direção contrária a aceitação de sua responsabilidade.
Passaremos na sequência do texto para o tópico final, abor-
dando uma das características mais notáveis em ambas as nar-
rativas: a questão do incesto.

A questão do incesto
Uma característica muito marcante na tragédia de Sófocles e
comumente colocado em posição de proeminência na análise
de Édipo Rei é a relação incestuosa vivida por Édipo e sua mãe
Jocasta. Esse estado peculiar da vida dos personagens centrais
da trama é tão marcante que Sigmund Freud, em seus estu-
dos de psicanálise, propôs o estudo do complexo de Édipo, que
aborda a relação afetiva de filhos e seus progenitores, toman-
do por base elementos da peça para exemplificar seus estudos.
Demonstrando assim a grande importância do incesto na tra-
ma. (VIEIRA, 2017)
No enredo de Édipo Rei, existe o pressuposto da profecia que
atestava que Édipo irá matar o próprio pai e desposar a própria
572
mãe. Saber desse destino é o que leva Édipo a fugir de Corinto
e da própria profecia. Mais tarde, ao descobrir que seu empe-
nho não o livrou de cometer o que estava predestinado, ele fura
seus próprios olhos e opta pelo exílio como forma de expiar
os pecados. Já Jocasta, sua mãe, é a primeira a perceber que
estavam em tal relação incestuosa e por diversas vezes tenta
dissuadir Édipo de continuar as investigações, Ao falhar com a
persuasão, comete suicídio. Ou seja, ambos, mãe e filho, aca-
bam assombrados pelo fato de terem consumado uma relação
de incesto.
Em OldBoy, a temática do incesto é um elemento muito pre-
sente na narrativa do filme, no qual há duas relações incestu-
osas. A primeira, entre o protagonista Oh Dae-Su e sua filha
Mi-Do e a segunda entre Lee Woo-Jin e sua irmã Lee Soo-Ah.
A revelação das relações entre os personagens causa efeitos e
decisões variadas, e um desfecho único para cada casal.
No romance entre Woo-Jin e sua irmã, ambos aceitaram o
amor que sentiam um pelo outro, mas ao se deparar com seu
nome envolvido em diversos boatos, Soo-Ah acuada e sem ver
outra alternativa opta pelo suícidio. Woo-Jin amargurado pela
perda da pessoa que mais lhe era importante decide se vingar
da pessoa que julga ser a culpada por sua desgraça, causando-
-lhe a mesma dor que sofrera. Uma vez que teve sucesso em
sua empreitada, decide por também tirar sua própria vida, mas
não antes de colocar em dúvida a convicção do protagonista
com sua própria relação amorosa.
Com a semente de dúvida plantada por Woo-Jin na mente
de Oh Dae-Su, ele percebe que não conseguirá conviver sa-
bendo ser pai e amante de Mi-Do. Com uma surpreendente
decisão, opta por manter Mi-Do ignorante de tal informação e,
ao mesmo tempo, não desejando sentir-se atormentado pelo
fato, decide apagar suas memórias através do hipnotismo. Ter-
573
minando sua história sem suas memórias, mas ainda manten-
do sua relação incestuosa com a filha.
É notável, que os três casais têm plena consciência dos pro-
blemas acarretados pela relação incestuosa e como essa rela-
ção é um tabu. Mas, ao mesmo tempo, cada casal toma dife-
rentes decisões frente ao relacionamento. Édipo e Jocasta, ao
se depararem com a verdade, tratam a questão como extrema-
mente grave e buscam com suas decisões finais expiar a culpa
que sentem pelos crimes cometidos. Já Dae-Su, apesar de sa-
ber que Mi-Do é sua filha, decide fugir da verdade e manter-se
na relação, sabendo que ao apagar suas memórias não restaria
mais ninguém que conhecesse sua condição incestuosa. O des-
fecho do personagem parece propor que ‘se ninguém souber
do problema, o problema não existe’. Apesar de ter um trági-
co fim, a relação de Woo-Jin e Soo-Ah segue por um caminho
mais romântico, pois mesmo tendo consciência do tabu que
os cerca, eles não negam seus sentimentos e morrem ainda se
amando.
Desta maneira, apesar de ambas as obras, Édipo Rei e Ol-
dBoy, trabalharem a relação do incesto e o tabu social envol-
vido nisso, percebemos diversas perspectivas e abordagens de
como cada personagem encara tal tabu no desenrolar de suas
respectivas tramas.

O cimento cultural da literatura clássica transparece em dife-


rentes gêneros e épocas e com o cinema, forma de expressão
artística mais recente e correlata ao teatro, não é diferente.
Édipo Rei é reconhecido pacificamente como a obra de Sófo-
cles que criou uma sólida influência capaz de perpassar o tem-
po e mobilizar diversas outras obras até os dias de hoje.

574
Mesmo quando a relação parece pouco evidente, é possível,
a partir de uma investigação mais atenta, revelar o processo de
releitura e recepção entre obras da antiguidade clássica e da
modernidade. Esse olhar bilateral, que leva em consideração a
retomada de elementos narrativos dos textos da antiguidade
clássica, mesmo que para contrapô-los, ganhou importância
com os estudos de recepção dos clássicos fortalecidos por Ha-
rwick (2003), Hardwick e Stray (2008), Martindale e Thomas
(2006) entre outro, e foi um ganho definitivo para a área de
estudos clássicos.
O estudo comparativo entre o filme OldBoy e a tragédia gre-
ga Édipo Rei revela relações importantes que subjazem tanto
a camada narrativa das obras, bem como suas semioses - um
fílmica, outra teatral.
Park Chan Wook deixou-se ser influenciado pela obra de Só-
focles ao dirigir seu filme, aplicando diversos elementos narra-
tivos que acabam sendo pontos de contato muito fortes entre
as obras, como uma estrutura aos moldes da tragédia clássica,
uma narrativa que trabalha no entorno do autoconhecimento,
um protagonista que ao mesmo tempo se aproxima e se afasta
do herói da tragédia grega e por fim o trabalho com um ele-
mento tão conhecido na obra sofocliana, o incesto.
Todavia, sendo uma mídia voltada para um público atual,
Park Chan Wook toma liberdade de aplicar sua própria visão
artística em seu filme, desenvolvendo uma narrativa em tor-
no da vingança. Dessa forma, notamos como uma obra pode
revisitar, para homenagear ou criticar outra, mas sem tirar sua
própria particularidade como obra isolada. Por isso, ao analisar
esse tipo de obra, o conceito de inferioridade devido a tempo-
ralidade ou ao fato de ser uma releitura são entendidos como
preconceitos sem fundamentos teóricos ou estéticos. Não há
aqui relação de inferioridade da obra moderna em relação à an-
575
tiga, mas sim uma visão diferente de artistas que emergem de
sociedades diferentes, mas que, ainda assim, comunicam-se
pelo fato de carregarem algumas angústias humanas que são
universais.

ARISTÓTELES. Poética. Tradução Ana Maria Valente. Edição da Fun-


dação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 2004
BAKOGIANNI, Anastasia. O que há de tão ‘clássico’ na recepção dos
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576
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Grega Antiga. Faculdades Integradas Hélio Alonso. Rio de Janeiro,
2019
SÓFOCLES. Édipo Rei. Tradução Trajano Vieira. Editora Perspectiva.
2° Edição. São Paulo, 2011.
VIEIRA, Paulo. Conceito Psicanalítico: complexo de Édipo. Psicaná-
lise Clínica. 2017. Disponível em: <https://www.psicanaliseclinica.
com/conceito-complexo-de-edipo/>

577
A criação da tragédia em Lavoura Arcaica de

Mariana de Bona Santos


Jane Kelly de Oliveira

Introdução
Esse artigo analisa o romance Lavoura Arcaica, de Raduan
Nassar, e o filme de mesmo nome de Luiz Fernando carvalho a
partir da Teoria da Recepção dos Clássicos, compreendendo e
indicando elementos das tragédias gregas clássicas que são en-
contrados no romance e no filme, tais quais o reconhecimento,
a peripécia e o pathos, descritos por Aristóteles na Poética. Os
principais pontos de análise são as características que contem-
plam a estrutura da tragédia, e como podemos notar uma tra-
dução disso para tal romance moderno e para o cinema.
Na obra de Nassar, André narra sua oposição contra a autori-
dade do pai e suas regras morais impostas ao resto da família,
além de explicar os motivos pelos quais saiu de casa. Lavoura
Arcaica é dividido em duas partes, e se inicia com o protagonis-
ta narrador longe de casa até ser encontrado pelo irmão mais
velho, Pedro, que o convence a retornar. Na segunda parte, há a
volta do protagonista para a fazenda da família, e a descoberta
do pai a respeito da relação incestuosa entre André e sua irmã
Ana. Após isso, o pai ataca sua filha, resultando em sua morte.
No romance, há uma releitura da parábola do filho pródigo,
mas com uma ruptura da ideia de que felicidade e paz estão
diretamente atadas à união familiar. Nassar explicita como as
relações entre parentes são complicadas e podem resultar em
desfechos catastróficos. Além disso, a relação entre os irmãos
André e Ana contribui para a construção de temas trágicos em
578
Lavoura Arcaica, e, por esses aspectos, torna-se possível anali-
sar a obra pela ótica de uma releitura da tragédia clássica.
Aristóteles define a tragédia da seguinte forma:
A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa, dotada de
extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada
uma das suas partes, que se serve da acção e não da narração e que, por
meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões.
(ARISTÓTELES, PO. 1449b 24-28)

O filósofo também afirma que as tragédias são compostas


por seis elementos: enredo, caracteres, elocução, pensamento,
espetáculo e música.
Para compreender o resgate da estrutura da tragédia grega,
utilizamos a Recepção dos Clássicos, que deriva da teoria da
Estética da Recepção, originada nos anos 1960. A partir partir
de tais bases, estudiosos repensam a relação dos clássicos com
obras modernas, do passado com o presente, de forma que
ambas tenham a mesma importância nos estudos literários.
Exemplos de autores que fazem essa abordagem são Anas-
tasia Bakogiani, autora da obra Locating Classical Receptions on
Screen: Masks, Echoes, Shadows (The New Antiquity), de 2018, e
Charles Martindale, autor de livros como Classics and the Uses
of Receptions, de 2006.
Martindale, na introdução do livro Classics and the Uses of
Reception, afirma que os leitores têm papel ativo na recepção
de clássicos em novas obras, já que por conta de experiências
diversas e visões de mundo distintas, é possível que um texto
tenha mais de uma interpretação. Ele define a Recepção dos
Clássicos da seguinte forma:
Recepção nos clássicos abrange todo trabalho referente ao material pós
clássico e grande parte dele em outros departamentos de humanida-
des podem ser descritos sob diferentes rubricas: por exemplo, história
da erudição, história do livro, estudos fílmicos e midiáticos, história da
performance, estudos de tradução, crítica da estética da recepção, estu-
579
dos pós-coloniais, latim medieval e novilatino e muito mais além disso...
(MARTINDALE, 2006, p. 5).

Lorna Hardwick e Christopher Stray, em A Companion de Clas-


sical Receptions entendem que a Recepção dos Clássicos pode
ser entendida como “as formas em que os materiais gregos e
romanos são transmitidos, traduzidos, extraídos, interpretados,
reescritos, repensados e representados.” (2008, p. 1, tradução
nossa). Tendo em vista as explicações e definições apresenta-
das, entendemos que a presença de clássicos em outras obras
não se mostra, necessariamente, de forma direta, com perso-
nagens, nomes e enredos iguais aos da obra antiga. É possível
que ocorra uma referência ou característica de um clássico de
forma indireta. Assim, como foco desse artigo, iremos analisar
e entender pela ótica dessa teoria, como a estrutura da tragédia
grega clássica está presente em Lavoura Arcaica.

Na Poética, Aristóteles explana dois motivos pelos quais a mí-


mesis existe, e porque é tão presente na sociedade. Primeiro,
afirma que a imitação é algo natural ao ser humano – e isso
faz com que se diferencie de outros animais. Além disso, tam-
bém assegura que há um prazer estético na imitação, trazendo
como exemplo dessa afirmação as imitações de imagens “dos
mais repugnantes animais e de cadáveres”.
Como mencionado anteriormente, há uma definição a res-
peito da tragédia, na qual há apontamentos a respeito da lin-
guagem, imitação, narração, extensão, temor e compaixão. A
presença de harmonia e ritmo é o que faz a tragédia ter uma
linguagem embelezada, podendo ter a presença de canto ou
metros. A imitação carrega os conceitos do espetáculo em si, a
elocução e a música, já que a imitação ocorre através de atores
no palco. Porém, Aristóteles afirma que o aspecto mais impor-
580
tante da tragédia é a estruturação dos acontecimentos, já que
ela é a imitação da vida e das ações, não do homem: “tanto a
felicidade como a infelicidade estão na acção, e a sua finalidade
é uma acção e não uma qualidade: os homens são classificados
pelo seu carácter, mas é pelas suas acções que são infelizes ou
o contrário” (Po 1450a, 10, 15).
Constituindo a estrutura dos acontecimentos e o enredo da
tragédia, há dois elementos que Aristóteles destaca: a peripécia
e o reconhecimento, por serem essenciais para a distinção dos
enredos simples e complexos. Os enredos simples são aqueles
em que as mudanças no enredo não são acompanhadas de pe-
ripécia ou reconhecimento, enquanto no enredo complexo, há
a presença desses elementos.
A descrição do enredo da tragédia apresentada por Aristóte-
les na poética clássica é um trabalho crítico do filósofo feito no
século IV a.C. a partir da análise dos textos teatrais do século V
a.C. O exemplo citado explicitamente por ele é a estrutura de
Édipo Rei, de Sófocles, obra em que o dramaturgo faz coinci-
dir peripécia e reconhecimento constituindo, assim, um enre-
do complexo aos olhos do analista. Acontece que esse modelo
que ficou cristalizado depois do trabalho de Aristóteles sobre a
poética clássica pode ser reconhecido em obras mais atuais e
de gênero diverso.
Para analisar e entender como um gênero clássico antigo
pode estar presente em duas obras da modernidade, como
o romance Lavoura Arcaica de 1975 e o filme homônimo de
2001, a teoria da Recepção dos Clássicos e a Teoria da Adapta-
ção serão muito importantes.
Segundo estudos da recente área conhecida como Recepção
dos Clássicos, a influência de textos antigos e clássicos na mo-
dernidade não ocorre sempre de forma direta e literal. É possível
que ocorra a recepção de um enredo, personagens e até mesmo
581
da própria estrutura narrativa da tragédia. Assim, há algumas
décadas, estudiosos1 vêm repensando os clássicos e sua recep-
ção a partir de um olhar que valoriza tanto o presente quanto o
passado para se pensar as obras narrativas literárias e cinema-
tográficas.
Segundo Bakogiani, em seu texto O que há de tão ‘clássico’
na recepção dos clássicos? Teorias, metodologias e perspectivas
futuras, a recepção dos clássicos “concentra-se na forma como
o mundo clássico é recebido nos séculos subsequentes e, em
particular, nos aspectos das fontes clássicas que são alterados,
marginalizados ou negligenciados” (BAKOGIANI, 2016, p. 115).
Outra caracteristica a respeito da Recepção dos Clássicos, é o
papel importante do leitor. Bakogiani utiliza a palavra “textos”,
no plural, para destacar a ideia de que, cada vez que um texto
é lido, é recebido de diferentes formas por diferentes sujeitos.
Evidencia, também, que essa ação direta do leitor tem signi-
ficados especiais nos textos clássicos já que muitas vezes são
textos incompletos, fazendo com que o leitor preencha certas
lacunas presentes na obra.
Levando essa descrição em consideração, compreendemos
que Lavoura Arcaica se encaixa nas características de uma obra
na qual há a presença da recepção de uma estrutura clássica,
mais especificamente, a estrutura da tragédia clássica, tal qual
descrita por Aristóteles na Poética. Com uma leitura mais atenta
do romance de Nassar, é possível apontar semelhanças, tanto
narrativas, quanto estruturais com a tragédia clássica Édipo Rei,
por exemplo.
Na tragédia de Sófocles, a peripécia – que consiste na mu-
dança dos acontecimentos dentro do enredo – coincide com a
chegada do mensageiro, que chega com a pretensão de trazer
1 Dentre eles, podemos citar Charles Martindale, autor de livros como Classics and
the Uses of Receptions, de 2006, e Anastasia Bakogiani, autora da obra Locating
Classical Receptions on Screen: Masks, Echoes, Shadows (The New Antiquity), de
2018.
582
paz ao protagonista, porém suas palavras causam o efeito con-
trário e invertem o rumo da narrativa. Em Lavoura Arcaica, o
agente da peripécia é Pedro, o irmão mais velho de André, que
o procura a fim de fazê-lo retornar para casa julgando que esse
retorno traria paz a família, mas acontece o inverso: justamente
o retorno de Andre ao lar desemboca na tragédia familiar.
Junto com a peripécia, há o reconhecimento (anagnorisis),
que representa a passagem de um estado de ignorância, para
o reconhecimento. Em Lavoura Arcaica a anagnorisis acontece
em relação ao pai, que descobre o relacionamento entre seus
filhos. Em Édipo Rei, isso ocorre quando Édipo compreende que
sua esposa é sua mãe biológica, e que havia matado seu pai na
encruzilhada.
Por fim, juntamente com a anagnorisis e a peripeteia, há o
acontecimento do pathos, que faz referência a um ato que traz
dor física ou psicológica, morte em cena ou ferimentos. Em Édi-
po Rei, o páthos é a cena em que o protagonista perfura os pró-
prios olhos. Já em Lavoura Arcaica, logo depois que o patriarca
da família toma conhecimento sobre o que ocorre com sua fa-
mília, ele ataca e mata sua filha.
Além das semelhanças em relação à estrutura dos aconte-
cimentos, os temas abordados em ambas as obras se aproxi-
mam: um embate – físico ou da mente – com a figura paterna,
relações incestuosas dos protagonistas; e a vontade dos prota-
gonistas, tanto da tragédia, quanto do romance, de trilharem
o próprio destino, já que Édipo sai do reino de seu pai adotivo
para fugir a profecia, e André expõe que deseja ter um lugar
que não seja lapidado pelo próprio pai: “(...) e muita coisa estava
acontecendo comigo pois me senti num momento profeta da
minha própria história”. (NASSAR, 1989, p. 87).

583
Lavoura arcaica
Em Lavoura Arcaica, o leitor acompanha a trajetória de An-
dré, o narrador protagonista, e sua relação com sua família,
principalmente com a sua irmã Ana e com seu pai, uma figura
autoritária que representa todo o patriarcado rígido através de
suas regras morais impostas a toda família. Ao fazer referên-
cia à parábola bíblica do filho pródigo, Lavoura Arcaica constrói
uma visão mais contrubada, já que André retorna não por en-
tender que está seguro e protegido por conta da união familiar,
mas porque seu irmão mais velho o busca, e o protagonista
não deseja compactuar ou consentir com a orientação moral
que seu pai sempre expressa e exige que os filhos sigam.
A narrativa do romance é algo que constrói os sentimentos,
angústias, culpas e desejos de André através de um fluxo de
consciencia, no qual, na estrutura do texto, pontos finais não
são usados com frequência, traduzindo certa anseidade do
protagonista, despejando todos os seus sentimentos na nar-
ração.
Como mencionado anteriormente, o romance é dividido em
duas partes: O Retorno e A Partida. Na primeira parte, André é
encontrado pelo irmão mais velho no quarto de uma pensão,
e logo no primeiro encontro dos dois é possível notar como a
instituição familiar carrega uma força da qual André não con-
seguiu escapar: ‘“não te esperava’ foi isso o que eu disse mais
uma vez e eu senti a força poderosa da família desabando so-
bre mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia ‘nós te
amamos muito, nós te amamos muito’” (NASSAR, 1989, p. 9).
Além disso, a autoridade da figura paterna e da própria ins-
tituição familiar, da qual André anseia fugir, aparece na ordem
de Pedro, que acabara de reencontrar o irmão: “(...) mostrei-lhe
a cadeira do canto, mas ele nem se mexeu e tirando o lenço
584
do bolso ele disse ‘abotoe a camisa, André” (NASSAR, 1989, p.
10). A movimentação de André ao, rapidamente, abrir as ve-
nezianas quando Pedro comenta sobre elas estarem fechadas,
também demonstra como obediência e resignação à família
são fatores enraizados no protagonista, apesar de querer – e
não conseguir – fugir disso.
André narra, após pensar em confessar para Pedro alguns de
seus sentimentos, que entende que o irmão mais velho estava
ali para realizar uma tarefa: “ele cumprira a missão de devolver
o filho tresmalhado ao seio de família” (NASSAR, 1989, p. 16).
Pedro, naquele momento, considera estar fazendo algo bom,
uma ação que faria a família se reunir novamente, e explica
isso para o irmão mais novo, ao sugerir uma certa imaturidade
de André, mas compreender que erros como o dele podem
existir, mas que era importante não deixar de lado todos os
laços que uniam a família: “pois bastava que um de nós pisasse
em falso para que toda a família caísse atrás; e ele falou que
estando a casa de pé, cada um de nós estaria também de pé
(...)” (NASSAR, 1989, p. 21).
Pedro, ao realizar uma ação que tem como intuito fortale-
cer a união famíliar e trazer felicidade a esse núcleo, induz a
uma consequência contrária, da mesma forma como Aristó-
teles descreveu a peripécia na Poética: “Peripécia é, como foi
dito, a mudança dos acontecimentos para o seu reverso, mas
isto, como costumamos dizer, de acordo com o princípio da
verosimilhança e da necessidade” (Po. 1452a 25). Quando An-
dré retorna para a fazenda, após confessar para Pedro a pai-
xão incesutosa que sente pela irmã, Pedro informa isso para o
pai, resultando em um ataque do pai à filha, que causa a morte
da moça. No romance, os principios da verossimilhança e ne-
cessidade descritos por Aristóteles são cumpridos, já que essa
mudança dos acontecimentos do enredo começa a ocorrer por
585
uma vontade da família de estar reunida de volta. Pedro não
procura por André sem uma justificativa coerente para a nar-
rativa.
Após o reencontro, André narra suas memórias na fazenda,
sobre como “escapava dos olhos apreensivos da família”, sua
conexão com a natureza, sobre os sermões do pai e, em uma
passagem, explica que, mesmo que tivesse o carinho e afeto de
sua mãe, ela não o conhecia de fato:
quando fui procurar por ela, eu quis dizer a senhora se despede de mim
agora sem me conhecer, e me ocorreu que eu pudesse também dizer
não aconteceu mais do que eu ter sido aninhado na palha do teu útero
por nove meses e ter recebido por muitos anos o toque doce das tuas
mãos e da tua boca; eu quis dizer é por isso que deixo a casa, por isso é
que parto (...) (NASSAR, 1989, p.64).

Com essa passagem, fica mais claro para o leitor que os mo-
tivos que fizeram André sair de casa eram mais que sua relação
sem afeto com o pai e suas discordancias ideológicas, ou os
sentimentos que nutria pela irmã. André não se sentia visto na
família, nem pertencente.
Enquanto queixa-se para Pedro a respeito da sua vida na fa-
zenda, compartilha com o irmão seus sentimentos a respeito
de uma das histórias que o pai sempre contava à família, e esse
fragmento do romance expressa as opiniões de André sobre o
patriarca e suas ações.
Na história, um faminto busca comida em um palácio e é
direcionado ao ancião que mora no local. Ao pedir alimento, o
ancião lhe oferece pratos e copos vazios, e encena que está se
alimentando. O faminto, após também simular que estava co-
mendo, é elogiado pelo ancião por ser um homem com muita
paciência, e, por isso, é convidado a morar no palácio e nunca
mais passar fome. André, porém, conta que o pai não concluia
a história, deixando de narrar o momento em que o faminto,
após encenar beber vinho, soca o ancião, impaciente e com
586
fome, e diz que suas ações agressivas eram efeito da bebida –
que não havia tomado de verdade.
Dessa forma, André questiona a hipocrisia do pai ao contar
a história de um homem faminto, enquanto ele “tem o pão na
mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho (NASSAR, 1989, p.
84). O faminto, após agredir o ancião, diz: “Senhor meu e lou-
ro da minha fronte, bem sabes que sou teu escravo, o teu es-
cravo submisso, o homem que recebestes à tua mesa e quem
banqueteastes com iguarias dignas do maior rei, e a quem por
fim mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que que-
res, senhor, o espírito do vinho subiu-me a cabeça e não posso
responder pelo que fiz quando ergui a mão contra o meu ben-
feitor” (NASSAR, 1989, p. 84).
É possível compreender pela forma intensa com que André
narra esse episódio que, além de criticar a hipocrisia que diz
ter o pai, enxerga-se naquele personagem que, tendo que ser
submisso, escravo, ainda tem um desejo de agredir, fisica ou
psicologicamente, seu pai.
A imagem do faminto pregada na história é retomada de-
pois, quando André confessa seus sentimentos por Ana para
Pedro, no capítulo 19, colocando Ana como uma doença, e a si
mesmo como o faminto, que, assim como na parábola, man-
teve-se submisso até o limite de sua dor e sua fome:
Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodi de repente num
momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro
e pestilento, “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o
meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio imper-
tinente dos meus testículos [...] consumindo neste pasto um grão de
trigo e uma gorda fatia de cólera embebida em vinho, eu, o epilético, o
possuído, o tomado, eu, o faminto (NASSAR, 1989, p. 107)

A partir desse momento, Pedro sabe da relação entre dois de


seus irmãos, assim como em Édipo Rei, Édipo passou a conhe-
cer a verdade de sua origem, quando o mensageiro confirma
587
que ele fora adotado. Essa característica se configura como o
reconhecimento – anagnorisis – tal qual Aristóteles descreveu
na Poética: “Reconhecimento, como o nome indica, é a pas-
sagem da ignorância para o conhecimento, para a amizade ou
para o ódio entre aqueles que estão destinadas à felicidade ou
à infelicidade.” (Po. 1452a, 11, 30). Além disso, Aristóteles apon-
ta que o melhor tipo de reconhecimento é como acontece em
Édipo Rei, acompanhado da peripécia.
O reconhecimento pode se dar de diversas formas e Aristó-
teles afirma que pode ser saber que alguém fez ou não fez algo.
São explicados quatro tipos de reconhecimento: um por sinais;
outro, “forjado pelo poeta”, no qual os personagens têm falas
que expressam o que virá a ser o reconhecimento; um terceiro
por recordações e o último por um raciocínio lógico.
Em Lavoura Arcaica, assim como na tragédia de Sófo-
cles, o reconhecimento ocorre juntamente com a peripécia, já
que é pela escolha de Pedro de ir buscar André, que ocorre a
revelação do relacionamento dele com Ana, tanto para o ir-
mão mais velho, quanto para o pai. Dessa forma, das quatro
categorias mencionadas, o reconhecimento no romance se dá
através de algo “forjado pelo poeta”, já que é André quem conta
a Pedro, como visto anteriormente.
A paciência pregada na história do faminto também é reto-
mada quando, antes de sair de casa, André busca por Ana na
capela – para onde ela foge após a relação entre os dois, e onde
permanece, rezando e pedindo perdão – e, enquanto implora
por uma resposta, diz que deve exercer a paciência. André tenta
convencer Ana de que irá mudar, para que permançam juntos,
e utiliza falas de sermões de seu pai a seu favor. Diz que, de
fato, a união familair traz felicidade, pois é essa instituição que
os une:

588
(...) foi um milagre o que aconteceu entre nós, querida irmã, o mesmo
tronco, o mesmo teto, nenhuma traição, nenhuma deslealdade, e a cer-
teza supérflua e tão fundamental de um contar sempre com o outro no
instante de alegria e nas horas de adversidade; foi um milagre, querida
irmã, descobrirmos que somos tão conformes em nossos corpos, e que
vamos com nossa união continuar a infância comum, sem mágoa para
nossos brinquedos, sem corte em nossas memórias, sem trauma para a
nossa história; foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bas-
tamos dentro dos limites da nossa própria casa, confirmando a palavra
do pai de que a felicidade só pode ser encontrada no seio da família (...)
(NASSAR, 1989, p.118)

A segunda parte do romance, O Retorno, é aberta por um dos


sermões do pai:
a sabedoria está precisamente em não se fechar nesse mundo menor:
humilde, o homem abandona sua individualidade para fazer parte de
uma unidade maior, que é de onde retira sua grandeza; só através da
família é que cada um em casa há de aumentar sua existência, é se en-
tregando a ela que cada um em casa há de sossegar os próprios proble-
mas, é preservando sua união que cada um em casa há de fruir as mais
sublimes recompensas (NASSAR, 1989, p. 146)

Com esse trecho, compreende-se que o “homem abando-


nar sua individalidade”, faz referência ao ato de André deixar
seu quarto na pensão e retornar para casa, voltando a fazer
parte de “uma unidade maior”.
O capítulo seguinte abre com a frase “Pedro cumprira sua
missão me devolvendo para o seio da família” (NASSAR, 1989,
p. 147), completando a ação da peripécia, pois todos os fami-
liares estão felizes, acreditando que a volta de André traria uma
união imutável para a família. Novamente, junto com a peripé-
cia, o segundo reconhecimento do romance acontece, já que a
volta de André é acompanhada da descoberta do pai a respeito
da relação de dois de seus filhos.
Na festa de recepção de André, Ana surge dançando e, de
acordo com o narrador, com roupas e movimentos provocado-
res, contradizendo suas ações anteriores, de sempre permane-
589
cer na capela. Além disso, Ana pega a taça de um dos convida-
dos da festa e despeja sob si, ação que antecede a descoberta
do pai a respeito de seu relacionamento incestuoso com André.
Provavelmente foi a ação tumultuosa de Ana na festa em que
se encontravam membros e amigos da família que fez com que
Pedro decidice, naquele momento, contar tudo ao pai:
(...) e eu nessa senda oculta mal percebi de início o que se passava, notei
confusa-mente Pedro, sempre taciturno até ali, buscando agora por to-
dos os lados com os olhos alucinados, descrevendo passos cegos entre
o povo imantado daquele mercado — a flauta desvairava freneticamen-
te, a serpente desvairava no próprio ventre, e eu de. pé vi meu irmão
mais tresloucado ainda ao descobrir o pai, disparando até ele, agarran-
do-lhe o braço, puxando-o num arranco, sacudindo-o pelos ombros,
vociferando uma sombria revelação, semeando nas suas ouças uma
semente insana, era a ferida de tão doída, era o grito, era sua dor que
supurava (pobre irmão!) (...) (NASSAR, 1989, p. 101)

É acompanhado do reconhecimento que o elemento pathos


é identificado. Na Poética, Aristóteles a define como um ato que
traz dor, física ou psicológica, ou morte em cena. Em Lavoura
Arcaica, a cena de pathos ocorre quando o patriarca da família,
transtornado ao descobrir que a união de seu núcleo familiar
estava desestabilizada pelo amor entre seus filhos, ataca sua
filha durante a festa, durante sua dança, e a mata:
(...) a testa nobre de meu pai, ele próprio ainda úmido de vinho, brilhou
um instante à luz morna do sol enquanto o rosto inteiro se cobriu de
um branco súbito e tenebroso, e a partir daí todas as rédeas cederam,
desencadeando-se o raio numa velocidade fatal: o alfanje estava ao al-
cance de sua mão e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai
atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais pres-
suposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais rote nos meus olhos!),
não teria a mesma gravidade se uma ovelha se inflamasse, ou se ou-
tro membro qualquer do rebanho caísse exasperado, mas era o próprio
patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina
(pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava –
essa matéria fibrosa, palpável, tão concreta, não era descarnada como
eu pensava, tinha substância, corria nela um vinho tinto, era sanguínea,
590
resinosa, reinava drasticamente as nossas dores (pobre família nossa,
era prisioneira de fantasmas tão consistentes!), e do silêncio fúnebre
que desabara atrás daquele gesto, surgiu primeiro, como de um parto,
um vagido primitivo
Pai!
e de ou-
tra voz, um uivo cavernoso, cheio de desespero
Pai!
e de todos os lados, de Rosa, de Zuleika e de Huda, o mesmo gemido
desamparado
Pai!
eram balidos estrangulados
Pai! Pai!
onde a nossa segurança? onde a nossa prote-
ção?
Pai!
e de Pedro, prosternado na terra
Pai!
e vi Lula, essa criança tão cedo transtornada,
rolando no chão
Pai! Pai!
onde a união da fa-
mília?

Pai!
e vi a mãe, perdida no seu juízo, arrancando punhados de cabelo, des-
cobrindo grotescamente as coxas, expondo as cordas roxas das varizes,
batendo a pedra do punho contra o peito
Iohána! Iohána! Iohána!
e foram inúteis todos os socorros, e recusando qualquer consolo, an-
dando entre aqueles grupos comprimidos em murmúrio como se va-
gasse entre escombros, a mãe passou a carpir em sua própria língua,
puxando um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do
Mediterrâneo: tinha cal, tinha sal, tinha naquele verbo áspero a dor are-
nosa do deserto. (NASSAR, 1989, p. 190-192)

A citação acima é longa mas importante para para pensarmos


nas estratégias gráficas do romance para explicitar o transbor-
damento de emoções contidas na cena de pathos. Os desloca-
mentos das palavras estão também presentes nas do livro, mas
não ocorrem em outros trechos do romance. Nessas páginas, a
591
repetição da palavra ‘pai’, por vozes dos membros da família –
Ana com com vagido primitivo; as irmãs Rosa, Zuleica e Huda
com gemido desamparado; Pedro, o filho mais velho, proster-
nado na terra; o filho mais novo Lula transtornado, rolando no
chão; vozes estranguladas questionando a segurança paterna e
a união familiar defendida pelo pai – ressalta o horror e o entor-
pecimento causado pelo pathos.
A Mãe, que não aparece nomeada no romance, repete por três
vezes ‘Iohána!’, uma pavavra que remete a muitos significados
provindos da tradição judaico-cristã2, podendo remeter a uma
oração invocatória da graça e da misericórdia divinas, mas a pro-
sódia de tal clamor materno remete ao choro inconsolável da
mãe chamando pela filha: Ió Ana! Ió Ana! Ió Ana!
A comoção da cena transparece para o leitor por meio da
performance da posição das palavras na página, pela reação
dos irmãos de ana questionando estupefados a ação violenta
do pai, pelas palavras da mãe que, se pronunciadas em voz alta,
simulam o choro materno diante do assassinato da filha pelo
próprio pai.
Ler o romance Lavoura Arcaica nas perspectivas e lentes da
teoria da Recepção dos Clássicos torna possível entender a obra
como herdeira da influencia de tragédias gregas. É possível, en-
tão, identificar elementos como anagnorsis, pathos, katharsis,
peripeteia.

2 Os nomes dos personagens têm forte simbologia no romance. André deriva das
palavras gregas anér (que significa homem, do ponto de vista de sua virilidade e do
que o difere da mulher) e andreía (que significa coragem); Pedro vem da palavra latina
petrus (que significa pedra). Pedro, André, Ana são nomes constantes na tradição
bíblica e as mitologias envoltas em suas narrativas são muito significativas para a
análise do romance. A palavra Iohana também tem uma forte simbologia aqui. Mas
esses aspectos não serão enfocados nesse artigo.
592
Adaptação da tragédia em Lavoura arcaica de

A adaptação do livro em um longa-metragem ocorreu em


2001, dirigido por Luíz Fernando Carvalho. A trama não foi
alterada, todo o enredo existente no romance de Nassar está
presente no filme de Carvalho, bem como a ordem cronológica
utilizada no romance – portanto o filme intercala cenas do pre-
sente e do passado de André.
Em uma entrevista para o Canal Arte 1, Luiz Fernando Car-
valho fala sobre a proximidade com Raduan Nassar durante a
produção e filmagem de Lavoura Arcaica, tendo um interlocu-
tor privilegiado e o próprio autor do romance como conselheiro
artístico.
Com isso, percebemos que o filme não teve intenção de alte-
rar os sentimentos, mensagens e significados que o livro carre-
ga, mas sim traduzi-lo para outra linguagem artística. Portanto,
ao realizar a comparação entre o romance e o filme, não houve
intenção se apontar qual das duas obras obteve mais sucesso
em produzir o trágico em sua narrativa, mas sim compreender
as diferenças em cada uma delas, e perceber de que maneiras
se iluminam mutualmente.
Cláudia Rodrigues Dias – pesquisadora nas áreas de literatura,
cinema, intersemiótica e dialogismo –, em seu artigo Análise
Intersemiótica Cinema e Literatura aponta que, ao analisar uma
adaptação cinematográfica “(...) é necessário considerar que o
cinema mais que um suporte, é uma nova linguagem, infinita-
mente diferente da linguagem verbal. Entramos então, em dois
campos com significados múltiplos, porém de diálogo perma-
nente.”
Tendo em vista o apontado por Claudia Dias, aqui serão feitas
comparações de cenas similares presentes no romance e no

593
filme e que remetem às partes do enredo trágico previstas por
Aristóteles na Poética.
Iniciando com a primeira cena do filme, quando Pedro vai
em busca de André, percebe-se que a estrutura é a mesma do
romance: André, no quarto de pensão após fugir de casa, en-
contra Pedro à porta, com o objetivo de fazê-lo retornar para
casa. No longa-metragem, é possível perceber de forma mais
clara como André é retirado de seu estado de letargia de forma
brusca, se assustando. É pelo audiovisual, juntamente com os
movimentos de câmera que acompanham o ator se preparan-
do para ir até a porta que o expectador identifica a surpresa
do protagonista. A impaciência de Pedro também é mais clara
no filme, já que os recursos sonoros trazem essa ideia de for-
ma mais simples – quando o silêncio que preenche o quarto de
André é bruscamente interrompido pelas batidas altas e impa-
cientes na porta.
Além disso, quando André percebe que é seu irmão mais ve-
lho à porta, não há uma narração que explica seus sentimentos,
mas o silêncio entre os personagens, e o tempo que ambos se
olham, demonstram a hesitação, a surpresa e, talvez, a frustra-
ção de André ao ver um membro da família à sua frente. Quem
se aproxima do irmão primeiro é Pedro, mas é André quem
apoia a cabeça no ombro do irmão, parecendo cansado.
Assim como no romance, Pedro também faz uma ordem a
André assim que chega, sem demonstrar muito afeto pelo ir-
mão.

594
Figura 1 – LAVOURA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: Europa
Filmes, 2001. DVD (6min 55’).

Após essa cena, André passa a relembrar e repassar alguns de


seus momentos enquanto morava na fazenda da família.
Como aponta Dias, “várias maneiras de situar o narrador no
romance são válidas também para um filme, seja na narração
objetiva dos acontecimentos ou na adoção pelo narrador do
ponto de vista de uma ou mais personagens.”. (DIAS, 2007, p.
4). Assim como no romance em que André toma a frente da
narrativa para situar o leitor a respeito de seus sentimentos e
experiências passadas, o mesmo acontece na adaptação de
Carvalho: o ator que interpreta o personagem de André nar-
ra, praticamente com o mesmo texto presente no romance de
Nassar, as cenas sobre seu passado na família. Dessa forma,
André também assume a posição de narrador na adaptação de
2001.
Ao recriar a narração sobre a história do faminto, Luiz Fer-
nando Carvalho coloca o ator de André como o faminto e o do
pai como o ancião. Assim, também por meio do audiovisual,
fica mais claro que André coloca a si mesmo e o pai, como os
personagens principais do sermão sempre repetido. Com essa
595
cena, a ideia de que a adaptação cinematográfica auxilia o en-
tendimento do romance e vice-versa é confirmada, já que o ar-
ranjo cênico explicita interpretações que ficam subentendidas
no texto.
Quando o primeiro reconhecimento ocorre, André confessa
para Pedro seus sentimentos após um longo período em reto-
ma memórias a respeito de sua irmã. Ao contrário do que se é
narrado no romance, em que André “explode” e grita sua con-
fissão, na adaptação suas palavras são suaves, e sua elocução é
baixa, como uma quebra da interação intensa que ocorria entre
os irmãos.
Ao descobrir isso, Pedro sai das sombras para uma posição
em que é possível vê-lo, como se estivesse literalmente sendo
esclarecido por uma informação, como pode ser notado nos
dois fotogramas abaixo:

Figura 2 – LAVOURA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: Europa


Filmes, 2001. DVD (107min 38’).

596
Figura 3 – LAVOURA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: Europa
Filmes, 2001. DVD (107min 39’).

André, enquanto declara para Pedro seus sentimentos, per-


manece deitado, dizendo:
“Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome. Era Ana a minha enfer-
midade, era Ana minha loucura, ela o meu respiro. Era Ana minha lâmi-
na, ela meu arrepio, meu sopro, meu assédio. Era eu o irmão acometido,
era eu o irmão exasperado, era eu, o irmão de cheiro virulento, era eu...
Me traga logo, Pedro me traga logo a bacia dos nossos banhos de me-
ninos, a água morna, o sabão de cinza, a bucha crespa, a toalha branca
e felpuda (...)” (LAVOURA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho.
Brasil: Europa Filmes, 2001. DVD, 1h 49min 24’)

Ao fim da fala de André, uma trilha sonora suave começa e


Pedro passa a cuidar do irmão mais novo, passando um pano
umido nele, como se para tratar uma febre. Com esses dois re-
cursos narrativos, é possível interpretar a ação de Pedro como
uma compaixão pelo irmão, como se entendesse que ele está
doente – e talvez por isso falasse certas coisas – e que precisa
de cuidados.
Quando o segundo reconhecimento ocorre, Pedro encon-
tra-se visivelmente perturbado na festa de recepção de André,
597
principalmente depois que Ana chega dançando na festa. A dan-
ça de Ana, acompanhada de uma trilha sonora de uma canção
libanesa, Ya Babour, tem diversos elementos misturados, como
dança espanhola, dança do ventre e, como Luiz Fernando Car-
valho define em sua entrevista para o canal Arte 1, “a referência
da rosa vermelha é uma coisa aciganada”, assim como André a
chamou no romance ao descrevê-la entrando na roda de dança
com “seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da
roda” (NASSAR, 1989, p. 100).
Quando a câmera foca em Pedro, encontra-se em Contra
Plongé – a função narrativa desse tipo de posição de câmera é
trazer a sensação de poder, superioridade, traduzindo a ideia de
que Pedro teria a capacidade de delatar os irmãos – e a trilha so-
nora já não está tão alta, tendo como fundo a música libanesa.
Nesse momento a música é mais calma, o que não condiz com
os movimentos da câmera, que começam a ficar mais instáveis,
acompanhando os movimentos rápidos de Pedro, que caminha
até o pai e o segura.

Figura 4 – LAVOURA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: Europa


Filmes, 2001. DVD (163 min 20’).
598
Quando Pedro encontra o patriarca da família, a câmera per-
manece em um plano médio, que enquadra, principalmente,
os atores da cena do peito até o topo da cabeça. O foco prin-
cipal são as falas das personagens nesse tipo de plano, o que
condiz com a cena, já que será o momento em que Pedro dirá
ao pai sobre o relacionamento de dois de seus filhos. Entre-
tanto, em Lavoura Arcaica, não é possível ouvir as falas, já que,
mesmo que a trilha sonora esteja baixa e calma, é o foco au-
ditivo principal. É pela junção de outros elementos narrativos
– como o foco na dança da Ana, o olhar de André, alternância
de cenas para acontecimentos do passado, e as expressões e
linguagem corporal de Pedro – que é possível entender o diálo-
go que ocorre entre pai e filho.

Figura 5 – LAVOURA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: Europa


Filmes, 2001. DVD (163 min 45’).

Dessa forma, o segundo e último reconhecimento ocorre em


Lavoura Arcaica de Luiz Fernando Carvalho e, assim como no
romance, esse reconhecimento é acompanhado da cena de
pathos.

599
Assim que o pai reage à informação e empurra Pedro a tri-
lha sonora é cortada abruptamente, dando espaço para gritos
e chamados das personagens presentes na festa, mesmo que
a cena não esteja condizendo com os sons. Depois que o pai
pega a arma com a qual matará Ana, a cena seguinte é o ataque,
e não há imagens explicitas da morte da personagem. O que se
mostra são as pétalas da rosa que Ana usava no cabelo no chão,
e o olhar perturbado do pai, enquanto tentam o conter.
Como na obra de Nassar, o filme termina com um dos ser-
mões do pai, mas não o mesmo que encerra o romance, mas
que está presente, com algumas pequenas diferenças, no ca-
pítulo 9:
O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor embora
inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o
conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem
começo, não tem fim; rico não é o homem que coleciona e se pesa no
amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos
e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e
humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura,
não se rebelando contra o seu curso, brindando-o antes com sabedoria
para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida está es-
sencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quan-
tidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre
nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é, pois
só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas (LAVOU-
RA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: Europa Filmes,
2001.)

Esse artigo partiu da premissa de que Lavoura Arcaica conser-


va elementos narrativos similares aos descritos por Aristóteles
na Poética, tais quais, peripécia, reconhecimento e pathos. Para
fazer tal investigação, utilizamos referencial bibliográfico vincu-
lado à recepção dos clássicos, pois essa abordagem permite a
600
investigação de recepções não explícitas da literatura grega na
atualidade.
Ao analisar Lavoura Arcaica sob a perspectiva e lentes
da Estética da Recepção, compreende-se que o romance pode
ser lido e interpretado por novas perspectivas, como uma obra
que carrega estruturas e características do trágico grego. Mes-
mo que esses elementos não apareçam de forma direta – tanto
na adaptação cinematográfica, quanto no romance de Nassar
–, ainda é possível identificar estruturas da narrativa que condi-
zem com as definições de Aristóteles na Poética a respeito das
narrativas trágicas clássicas.
Há, portanto, a presença da peripécia – a ação de Pedro ao
fazer com que André retorne para casa, o que acarreta na morte
de Ana pelo pai, assim como a desestruturação efetiva do nú-
cleo familiar; do reconhecimento – quando Pedro e o pai des-
cobrem sobre o relacionamento incestuoso de André e Ana; do
pathos – a morte de Ana; da elocução – como as mudanças na
forma com que André assume para Pedro seus sentimentos, no
romance e na adaptação fílmica; do pensamento – já que hou-
ve mudança na forma como essas falas de André foram per-
cebidas pelo público leitor e pelo público que assistiu ao filme;
o ato teatral – como a produção cinematográfica; e a música,
que durante todo o filme carregou e auxiliou na construção de
sentimentos e narrativas.
A recepção de textos clássicos pode se dar de diferentes for-
mas e, muitas vezes, o olhar curioso e investigativo é capaz de
encontrar vestígios da antiguidade não apenas na superfície
narrativa, mas também na estrutura do enredo.
Ao perceber as semelhanças do que Aristóteles aponta como
sendo partes constitutivas do mythos (enredo) da tragédia grega
antiga, e a estruturação do romance Lavoura Arcaica, de Radu-
an Nassar, é possível entender melhor as estratégias discursivas
601
e textuais de construção de sentidos e sensações empregadas
por Nassar.

CALVINO, I. Por que ler os Clássicos. 2. ed. São Paulo: Companhia


das Letras, 1993. EINSENSTEIN, S. A forma do filme. 1. ed. Rio de
Janeiro: Editora Zahar, 2002.
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Lavour’Arcaica. Dir. Luiz Fernando Carvalho. Brasil. Europa Filmes. Rio
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za. Porto Alegre: Globo, 1966.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. Editora Companhia das Letras,
1989.

602
Teoria literária
Compagnon

Pedro Henrique Hara Matoso

Introdução
O presente trabalho nasce de uma dúvida e de uma inquie-
tação. A dúvida vem da incerteza quanto ao poder da literatu-
ra. Que é a literatura? de Jean-Paul Sartre tenta responder esta
questão ao longo de suas 264 páginas, porém não consegue
defini-la por completo, como também não o conseguiremos.
Enquanto objeto vivo, a literatura muda e enquanto conseguir
existir sempre mudará.
Já a inquietação é resultado de tempos de realismo capita-
lista (usando o termo de Mark Fisher). Colocamos então uma
das perguntas que Antoine Compagnon discute em Literatura
para quê?: Qual o papel da literatura hoje? Por que defender sua
permanência no mundo contemporâneo? E não encontramos
melhor resposta do que o vaticínio de Georges Bataille, citado
na epígrafe deste trabalho: “A literatura é o essencial, ou não é
nada”.
Para problematizar as tantas respostas possíveis para estas
perguntas essenciais, escolhemos dividir o trabalho em três
momentos, sempre tentando trazer o texto já mencionado
de Sartre, pois é ele quem dá origem a este trabalho. Primei-
ramente, voltamos às origens da teoria literária, analisamos
como Aristóteles, em sua célebre A poética, trata as questões
aqui colocadas e quais suas contribuições para o debate. En-
tão, olhamos diretamente para Sartre e discutimos o porquê da
importância do engajamento do escritor. Finalmente, Antoine
604
Compagnon entra em cena e discutimos como defender a per-
manência da literatura no mundo atual.
E, antes de mais anda, é importante mencionar que este tra-
balho começou a ser concebido quando o governo brasileiro
ainda vigente estava em um de seus auges de desmonte de
todos os sistemas da Federação. Quando milhares de pessoas
morriam todos os dias por negligência e falta de humanismo
por parte do governo e seus apoiadores. Quando ficar em casa
era difícil e sair dela era mais ainda pois se tinha medo de retor-
nar e contaminar parentes e familiares, a literatura, mais do que
qualquer outra coisa, ajudou-nos a sobreviver este momento
horrendo e sofrível da história brasileira e mundial. Enquanto
não havia cura, a literatura era acalento.
Agora, este trabalho é finalizado em tempos muito mais es-
perançosos. Uma das cabeças da Hidra foram cortadas, mas é
preciso que pensemos, assim como Hércules, um meio de cor-
tar todas, até a última, e como enterrá-la. Que refletir sobre a
importância da literatura auxilie-nos em nossa luta, pois é atra-
vés e por ela que resistimos.

A Poética1, de
Aristóteles)
Refletir sobre a arte de escrever, os motivos que a impulsio-
nam e o que ela realmente é, se configuram como as preocu-
pações centrais para a formação de um pesquisador da área de
Letras. Nesse sentido é que destacamos A Poética de Aristóte-
les como o momento chave para o início de uma tradição vol-
tada aos estudos literários. Grande pilar no assunto, a presença
da obra de Aristóteles em trabalhos de teoria literária parece
quase obrigatória, isto devido ao fato de inúmeros conceitos

1 A edição utilizada será da Editora 34, com tradução de Paulo Pinheiro.


605
introduzidos n’A Poética serem pertinentes até hoje, tais quais:
mimese, catarse e verossimilhança.
Apesar de Aristóteles prescrever minuciosamente cada parte
da tragédia e separar o que seria uma boa peça de uma má, di-
vidindo então o que seria literatura boa e ruim, os conceitos ali
presentes nos ajudam a pensar nas origens e nas funções que
a literatura pode assumir ao longo da história humana. Segun-
do o filósofo, “[...] a ação de mimetizar [i. e. imitar] se constitui
nos homens desde a infância, e eles se distinguem de outras
criaturas porque são os mais miméticos e porque recorrem à
mimese para efetuar suas primeiras formas de aprendizagem
[...]” (ARISTÓTELES, 2017, p. 57). Esta é uma das razões que o
pensador propõe para a origem da arte poética2, uma vez que
a ação de imitar culminará nas três principais formas de poesia
da época: a epopeia, a tragédia e a comédia.
E, como nenhum homem nunca pôde ser igual a outro no
decorrer da história, a mimese de cada um é, naturalmente, di-
ferente da outra, daí vem a divisão da literatura em três formas.
A epopeia, diz Aristóteles, representaria a mimese de homens
melhores do que nós, a tragédia de homens melhores ou iguais
e a comédia de homens piores ou inferiores, não é à toa que o
pensador, de certa forma, julga a comédia como a menos im-
portante de todas, apesar de um escrito inteiro sobre ela ter
sido perdido (ARISTÓTELES, 2017, p. 57-61).
Da origem poética (literária) de Aristóteles, vemos uma clara
hierarquização, não só dos tipos, como também dos homens.
Engana-se quem pensa que A Poética é pura teoria literária e
que não tentava impactar o meio político da época, afinal, o
objeto de estudo aqui é a poesia e, como veremos mais tarde
em Sartre, sua finalidade é o engajamento3. Portanto, há nes-
2 Por “arte poética” e “poesia” Aristóteles quer dizer “literatura”, faltava-lhe a palavra
na época, já que esta tem origem latina.
3 Aliás esse é um dos motivos pelos quais vale a pena trazer Sartre novamente às
discussões contemporâneas, mesmo que no âmbito acadêmico. Parece que nos es-
606
sa separação entre os tipos de poesia e os tipos de homem,
talvez reminiscência do pensamento platônico, uma tentativa
de manter a hierarquia vigente. Não podemos identificar indivi-
dualmente os “homens inferiores” de que fala Aristóteles, mas
sabemos de uma coisa: ele não estaria nessa lista.
Outra questão posta pelo pensador, que retomaremos de-
pois ao trazermos Antoine Compagnon ao debate, é a diferen-
ciação entre poesia e história. Neste ponto, não é preciso muito
esforço para dizer qual delas Aristóteles julga superior: a poesia.
Segundo ele: “[...] o historiador e o poeta diferem entre si não
por descreverem os eventos em versos ou em prosa [...], mas
porque um se refere aos eventos que de fato ocorreram, en-
quanto o outro aos que poderiam ter ocorrido” (ARISTÓTELES,
2017, p. 71-72). De fato. Entretanto, vejamos o que traz Jacques
Rancière em A partilha do sensível (2005):
Outra consequência tirada por Aristóteles é a da superioridade da poe-
sia, que confere uma lógica causal a uma ordenação de acontecimen-
tos, sobre a história, condenada a apresentar acontecimentos segundo
a desordem empírica deles. Dito de outro modo [...], a nítida separação
entre realidade e ficção apresenta também a impossibilidade de uma
racionalidade da história e da ciência (RANCIÈRE, 2005, p. 54).

Colocando desta forma, Aristóteles parece dizer que a poesia


merece mais atenção, tanto faz se a épica ou o drama. A pres-
crição d’A Poética não busca senão estabelecer um código, o
regime poético/mimético do qual trata Rancière, para manter
aquela estrutura hierarquizada da qual falávamos. Não sabe-
mos como o grego comum entendia essa relação entre história
e poesia, mas pelas palavras metódicas de Aristóteles, que pou-
co parece serem dirigidas à população em geral, podemos vir a
quecemos como engajar nossa fala e nossa escrita. Vimos no últimos anos um certo
comodismo por grande parte da oposição, o que permitiu que uma grande ameaça
chegasse anunciando com todas as letras exatamente como seriam as coisas e, ain-
da assim, tomasse conta do país. O apelo pelo engajamento de todos é necessário,
o apelo pela luta é necessário, urgentemente.
607
entender que a preocupação não fosse unicamente a questão
estética da arte.
Porém, muito mais do que a origem ou a política4 por trás
d’A Poética, queremos saber o motivo, a razão da existência da
mimese. Considerando o contexto histórico e político no qual
produz a sua reflexão, destacamos que, nas palavras do teórico,
“sentem (os homens) prazer [...] e, uma vez reunidos, apren-
dem a elaborar raciocínios sobre o que é cada coisa [...]” (ARIS-
TÓTELES, 2017, p. 57), ou seja, além da função didática, e talvez
moral, já citada, obtém-se prazer como resultado da mimese.
Talvez este seja o mais perceptível dos conceitos. É fato que,
lendo um livro ou assistindo a um filme, vibramos com a vitória
do herói, quando o assassino é punido ou quando o par român-
tico finalmente dá aquele esperado beijo. Mas, por quê? E será
o prazer suficiente para a existência da literatura? Será esta sua
função final?
Segundo Aristóteles, a mimese “se efetua por meio de ações
dramatizadas e não por meio de uma narração, e que, em fun-
ção da compaixão e do pavor, realiza a catarse de tais emoções”
(ARISTÓTELES, 2017, p. 71-72). No entanto, se tratamos de uma
narração, como o próprio filósofo dirá mais adiante, na parte 14
(A origem das emoções dramáticas: pavor e compaixão): “é pre-
ciso compor o enredo de tal modo que, mesmo sem o assistir,
aquele que escuta o desenrolar dos acontecimentos efetuados
possa ser tomado pelo pavor e pelo compadecimento”5 (ARIS-
TÓTELES,2017, p. 118-119). Interessante é notar como hoje em
dia, lendo as mesmas tragédias das quais tratava o pensador,
somos capazes de sentir todo o drama contido no texto. Há
algo efetivamente mágico na literatura, no poder das palavras.
Dito isso, tratemos da catarse.

4 Não deixemos esta questão de lado, pois voltaremos a ela.


5 Isto é, possa sentir a catarse.
608
A catarse é a purificação das emoções e, segundo o filósofo,
não é nada sem a reviravolta (ou peripécia) e o reconhecimen-
to. A reviravolta “é a modificação que determina a inversão das
ações” (ARISTÓTELES, 2017, p. 150), basicamente o que o ci-
nema chama de plot twist. Exemplos disso são a cena em que
o anel cai do dedo do Doutor Crowe em O sexto sentido6, ou,
na literatura, como quando descobrimos quem Muidinga real-
mente é em Terra Sonâmbula (1992), de Mia Couto. Isso, em
verdade, são exemplos também de reconhecimento, ou seja,
a passagem da ignorância ao conhecimento, que, segundo o
pensador, são o melhor tipo de reconhecimento, uma vez que
vêm acompanhado da reviravolta (ARISTÓTELES, 2017, p. 107).
Tudo isso resulta na comoção emocional, o que junto com o
prazer, entendemos como as funções da arte poética postu-
ladas por Aristóteles. Reconhecemos, talvez de forma inata e
sem conhecer necessariamente o nome, todas estes conceitos
em obras literárias, já que boa parte delas tem esses elementos
presentes. Além disso, os conceitos aristotélicos perpassam a
literatura e podem acompanhar toda forma de arte que carrega
uma narrativa. Mas como tudo isso nos ajuda a tentar definir o
que é a literatura? E a pensar em sua função no mundo con-
temporâneo?
Em O demônio da Teoria (1999), Antoine Compagnon dialoga
com A Poética de modo a retomar seus principais conceitos e
refletir sobre as mudanças e alterações dos temas aristotélicos
ao longo do tempo. Enquanto Aristóteles tomava por arte po-
ética somente o gênero épico e o gênero dramático, ao longo
do século XIX “com o nome de poesia, muito em breve não
se conheceu senão, ironia da história, o gênero que Aristóteles
excluía da poética, ou seja, a poesia lírica a qual, em revanche,
tornou-se sinônimo de toda poesia” (COMPAGNON, 1999, p.
6 O SEXTO SENTIDO. Direção: M. Night Shyamalan. Produção: Sam Mercer. EUA:
Buena Vista Pictures Distribution, 1999.
609
32). E os gêneros narrativos e dramáticos gradualmente aban-
donaram os versos em prol da prosa.
A partir disso, podemos entender como a definição de litera-
tura, assim como boa parte das questões filosóficas sobre a arte,
mudam de época em época. Aristóteles não conheceu Voltaire,
Dostoievski, Sartre, o romantismo e muito menos a ficção cien-
tífica, assim como não podemos nem imaginar como serão os
estudos literários e a literatura de 2082, por exemplo. O grego
estudava, n’A Poética, aquilo que em dado momento e contex-
to entendia por literatura, mesmo que essa palavra ainda não
existisse. Era o que havia em mãos. Dito isso, Compagnon, ao
discordar de Aristóteles, talvez deixe de lado os conceitos que
nos ajudam a pensar nos efeitos que a literatura causa na hu-
manidade, embora alguns levantamentos sejam pertinentes.
A Poética é, efetivamente, um manual para que quem a lesse,
ou escutasse7, pudesse atingir a “excelência” da tragédia, como
diz Aristóteles, reproduzindo e perpetuando aquela hierarquia
discutida. Não há efetivamente uma problematização da pro-
dução da arte poética, da literatura. Isto é um posicionamento
político, não é um texto arbitrário. Ainda assim, conceitos como
a mimese e a catarse, por exemplo, perpetuam e são muito
importantes para os estudos literários. Em Aristóteles, a poesia
diverte, emociona e educa.8
A discussão que pretendemos trazer na sequência avança
em relação às funções propostas por Aristóteles, na medida
em que, a partir de Sartre, se propõe uma literatura engajada,

7 Paulo Pinheiro, ao falar sobre a vida de Aristóteles na introdução da edição utiliza-


da, fala sobre o apelido que Platão deu ao autor d’A Poética: “Platão [...] o chamava,
alguns dizem que com certa dose de ironia, de “o leitor” [...]. A ironia platônica talvez
se deva ao fato de que os gregos não tinham o hábito de ler, mas sim de ouvir a lei-
tura, via de regra feita, como podemos observar em vários relatos, por um escravo.”
(ARISTÓTELES, 2017, p. 22).
8 Além disso, ela parece funcionar como “um aparelho ideológico do Estado”, ou
melhor dizendo, das Cidades-Estados, ditando o que é bom e ruim. Além de, como
dito, parecer afirmar certa hierarquia social.
610
que traz a liberdade do indivíduo e tem por propósito preparar
a revolução.

A Literatura Engajada (Que é a literatura?9, de

Jean-Paul Sartre é, talvez, um dos maiores e mais conhecidos


filósofos franceses do século XX. Marcado pelo Entre Guerras,
pela horrenda 2ª Guerra Mundial, pela Ocupação, pela Libera-
ção, pela Guerra Fria, por Maio de 68, pela Crise dos Mísseis
Cubanos e tantos outros eventos que quase fizeram o Relógio
do Juízo Final bater meia noite. O filósofo, então, decide centrar
seu estudos na causa de tudo isso: o Homem. Como Sartre diz
ao fim do livro que aqui utilizamos: “[...] o mundo pode mui-
to bem passar sem a literatura. Mas pode passar ainda melhor
sem o homem.” (SARTRE, 2019, p. 264). Uma vez que ainda
estamos aqui, olhemos para a teoria de Sartre para tentar en-
tender como a literatura pode nos ajudar.
Em Que é a literatura? (1947) temos uma resposta. Assim
como diz Arlette Elkaïm-Sartre, no prefácio da edição utiliza-
da, o autor rebate críticas ao seu princípio do engajamento. A
verdade é que qualquer leitor mais atento percebe esse tom de
“revolta” ao longo do ensaio, não é à toa que, anos mais tarde,
Sartre percebe seu tom na época e atribui isso em parte ao mo-
mento em que vivia - fim da Segunda Guerra Mundial e início
da Guerra Fria (SARTRE, 2019b, p. 9-23). Portanto, por vezes, o
tom é parecido com o de Aristóteles: rígido, prescritivo. Mesmo
com mais de 2000 anos de diferença, é interessante ver como
ambos defendem suas teorias usando um tom relativamente
similar.
Obviamente, Sartre está longe de defender a preservação da
hierarquia vigente, ao contrário, propõe a revolução como re-
9 SARTRE, J-P. Que é a literatura? Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
611
sultado do engajamento consciente da literatura com as ques-
tões sociais e políticas de seu tempo. Tentando encontrar seu
lugar no marxismo, é nesse contexto em que ele vê na figura
do autor uma espécie de “éveilleur de consicence”, que deveria,
por meio da literatura engajada, auxiliar o leitor na conquista de
sua liberdade. Porém, não tomemos a literatura, o livro, como
ferramenta, instrumento para alcançar a liberdade. A obra lite-
rária10 é um apelo do autor à liberdade do leitor, uma vez que,
tratando a obra como “criação dirigida” ela só se torna completa
quando o leitor a lê e a dá um sentido (SARTRE, 2019b, p. 47-
49). Não é, portanto, instrumento, pois o livro “se propõe como
fim para a liberdade do leitor” (SARTRE, 2019b, p. 49).
A leitura, para Sartre, é esperar, criar hipóteses, deduzir. Logo,
ao ler o leitor vai criando expectativas em relação aos acon-
tecimentos seguintes, perfeito exemplo disso são os contos
policiais, a cada linha novas pistas são apresentadas ao leitor e
este formula em sua mente a identidade do assassino. Poste-
riormente, suas hipóteses são confirmadas ou negadas (o que é
mais interessante). A leitura, como já dito, é um apelo, é relação
direta entre o leitor e o escritor. O autor não pode ler, uma vez
que sabe os acontecimentos vindouros, sabe o que acontece, e
como ler é esperar, deduzir, apenas o leitor pode efetivamente
ler. Portanto, a obra literária é um ato conjunto, o escritor dá um
mundo, o leitor o concretiza lendo e o atribuindo significado. A
obra é apelo porque sem o leitor ela não existiria. De que adian-
ta um livro não lido?
Esse apelo da parte do autor é, então, para que o leitor finali-
ze sua criação. (SARTRE, 2019b, p. 48). Sartre diz:
Caso se pergunte a quê apela o escritor, a resposta é simples. Como
nunca se encontra no livro a razão suficiente para que o objeto esté-
10 Em verdade, qualquer obra artística que não vise apenas o lucro e que preze pela
catarse e pela liberdade do consumidor. Sartre fala apenas da obra narrativa, excluin-
do assim como Aristóteles a poesia, porém, como veremos, parece presunçoso do
autor excluir outras formas de arte quando trata do engajamento.
612
tico apareça, mas apenas estímulos à sua produção; como tampouco
há razão suficiente no espírito do autor, e como sua subjetividade, da
qual ele não pode escapar, não consegue esclarecer a passagem para a
objetividade, a aparição da obra de arte é um acontecimento novo, que
não poderia explicar-se pelos dados anteriores. E como é um começo
absoluto, essa criação dirigida é operada pela liberdade do leitor, naquilo
que essa liberdade tem de mais puro. Assim, o escritor apela à liberda-
de do leitor para que esta colabore na produção da sua obra. (SARTRE,
2019b, p. 48-49).

Ler é um ato conjunto. Do escritor parte o bruto, a organiza-


ção das palavras com seu sentido escondido nas entrelinhas,
um caminho para um referente. Do leitor é exigida a liberdade,
segue o caminho proposto pelo autor e no fim atribui a tudo
aquilo sentido, percebe sua liberdade11. Daí a função de “éveil-
leur de consicence” do escritor.
Figura extremamente engajada politicamente, Sartre coloca
que “Falar é agir” (SARTRE, 2019b, p.28). Quando trata disso,
Sartre fala somente da prosa, uma vez que a julga como utili-
tária, assim como Aristóteles com a tragédia. Para Sartre, não
poderíamos nunca exigir do poeta, do pintor ou do músico que
se engajem. O existencialista, como Aristóteles, coloca a prosa
em um certo altar em relação às outras artes. Apenas o pro-
sador poderia se engajar porque é ele quem utiliza da palavra
para transmitir uma mensagem. A poesia trata a palavra como
coisa, olha para ela além de seu significado, o poeta vê numa
frase gosto e cor. Assim, “[...] a emoção, a própria paixão [...]
estão na origem do poema. Mas não se exprimem nele, como
num panfleto ou numa confissão” (SARTRE, 2019b, p. 25). O
autor diz quase o mesmo sobre a pintura e a música. Penso que
não seja este o caso. A maneira como Sartre descreve, com um
olhar reflexivo e poético, ao contrário do olhar prescritivo de
Aristóteles, a poesia, é muito bela. Porém, é de se discordar que
11 Sartre chama isto de “paradoxo dialético da leitura”, uma vez que quanto mais
reconheço e experimento minha liberdade, mais a percebo no outro. Por consequ-
ência, mais ele exige de nós e mais exigimos dele (SARTRE, 2019b, p. 53).
613
a pintura e a poesia não possam se engajar. Toda arte pode. E
apesar da afirmação de que olho um quadro e vejo o que quero,
como Sartre coloca, ou escuto uma música e decido o que ela
significa, ainda assim essas artes são “engajáveis”. Tudo que se
faz necessário é o contexto.
Portanto, se falar é agir, se o intuito de adquirir consciência
da liberdade é mudar os meios, mudar a sociedade, não deve-
ríamos separar uma arte da outra. Afinal, todas são literatura. A
poesia o é. A prosa o é. A música, enquanto poesia cantada, o
é. Ensaios, teoria, artigos, ficção, história. Tudo isto é literatura.
Todas, se não contribuem para adquirir a liberdade, contribuem
para entendê-la.
O ponto central da literatura para Sartre isto já está mais do
que claro, é a liberdade. Alguns podem pensar que isto soa in-
dividualista, mas como traz J. L. Rodríguez García em Sartre – O
maravilhoso orgulho de ser Livre (2015), o filósofo já respondeu
esta questão: “Sartre vai surpreender-nos porque escreve que,
‘quando dizemos que o homem é responsável por si próprio,
não queremos dizer que o homem é responsável pela sua es-
trita individualidade, mas sim que é responsável por todos os
homens’” (GARCÍA, 2015, p. 78-79). Quando se “acorda”, se
acorda para um mal-estar geral. É sobre isso que o escritor nos
alerta. Nossa liberdade é acompanhada da responsabilidade
que García relembra na fala de Sartre. Semelhante à Partilha do
sensível de Rancière12, Sartre não nos dá escolha a não ser es-
colhermos de que forma agir. “A escolha é possível em um sen-
tido, mas o que não é possível é não escolher” (SATRE, 2019a,
p.36). A responsabilidade de pegar o livro é do leitor, uma vez
que lê a primeira página sua sentença está dada, e agora tem
12 “Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado
e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha
de espaços, tempos e tipos de atividades que determina propriamente a maneira
como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa
partilha.” (RANCIÈRE, 2005, p. 15).
614
uma escolha: ou luta para melhorar as coisas para ele e para
todos ou se entrega, escolhendo não escolher, e se tornando
responsável pelas consequências de sua inação. Se não ajudar-
mos ninguém, ninguém nos ajudará.
É claro que tudo isso soa um pouco panglossiano13, e que a
revolução nos dias de hoje parece um sonho um tanto quanto
impossível. Isso decorre do fato de que, talvez, a situação de
2022 não tenha mudado tanto quanto a de 1947, como trazia
Sartre:
Hoje o público se encontra, em relação ao escritor, em estado de passi-
vidade: espera que lhe imponham ideias ou uma nova forma de arte. É a
massa inerte na qual a ideia vai tomar corpo. Seu meio de controle é in-
direto e negativo; seria difícil dizer que ele dá sua opinião: simplesmente
compra ou não compra o livro; [...] é que a leitura se tornou simples
meio de informação, e a escrita, um meio muito geral de comunicação.
(SARTRE, 2019b, p.85).

Quer dizer, o que estamos fazendo para estarmos tão ocu-


pados para reivindicar nossa liberdade? Onde está o escritor14,
que assim como Sartre fazia, se coloca à frente da sociedade
e usa da arte para engajar?15 Prenunciando Antoine Compag-
non, a sociedade parece exigir mais do que nunca uma função
da literatura. Ainda que as vendas de livros venham crescendo
nos últimos tempos, como indica reportagem do Metrópoles
de agosto deste ano (2022)16, os índices estão muito abaixo do
esperado. Não é raro chegar em uma roda de amigos querendo

13 O termo se refere a Dr. Pangloss, de Cândido, ou o Otimismo (1759), de Voltaire,


personagem dotado de otimismo exagerado.
14 Não apenas o escritor, mas todos das artes, do entretenimento, da filosofia.
15 Fato é que durante a escrita do presente artigo inúmeros artistas e figuras públicas
decidiram se politizar. Porém não me refiro a mera declaração de voto, é preciso
mais do que isso. As famosas “notas de repúdio” são o mínimo do mínimo, é preciso
levantar.
16 Cf. Venda de livros cresce, mas ainda está abaixo do período pré-pan-
demia. Metrópoles, 11 de ago. de 2022. Disponível em: <https://www.metropoles.
com/brasil/venda-de-livros-cresce-mas-ainda-esta-abaixo-do-periodo-pre-pan-
demia>.
615
falar sobre livros e literatura recebendo olhares estranhos, in-
clusive entre colegas das Letras.
Há urgência em demonstrar a relevância, a utilidade e as
maravilhas da literatura. Além disso, são sombrios os tempos
em que vivemos: desastres ambientes se mostram cada vez
mais frequentes, regimes totalitários assumem o governo de
inúmeros países e uma possível guerra nuclear parece bater à
porta. Portanto, a literatura proposta por Sartre é mais do que
interessante ou aprazível, é necessária. Como traz Ursula K. Le
Guin em A ficção como uma cesta: “[...] the natural, proper, fit-
ting shape of the novel might be that of a sack, a bag. A book
holds words. Words holds things They bear meanings. A novel
is a medicine bundle, holding things in a particular, powerful re-
lation to one another and to us” (LE GUIN, 1996, p. 152-153).
De fato, não somente o romance, mas toda arte carrega sen-
tido, carrega posicionamento, carrega uma ideia. Por isso dis-
cordamos quando Sartre coloca que a poesia ou a pintura não
podem se engajar. É seu caminho natural. Não acreditamos na
premissa da arte pela arte, tal colocação nem faz sentido. Pois
como Sartre mesmo coloca: “Só existe arte por e para outrem”
(SARTRE, 2019b, p. 45).

Literatura para quê?17, de


Antoine Compagnon)
E chegamos a Antoine Compagnon e à teoria contemporâ-
nea. Deixemos claro que: as perguntas continuam as mesmas,
mas o dever muda. Se Aristóteles buscava definir a poesia, bus-
cando manter certa hierarquia social, e Sartre, além de definir
a literatura, defendia o engajamento como sua função primor-
dial, Compagnon nos dá outro dever: “É tempo de se fazer no-

17 Este texto é uma conferência dada em 2006 por Compagnon no Collège de Fran-
ce. Além dele, usamos também seu O Demônio da Teoria (1999).
616
vamente o elogio da literatura, de protegê-la da depreciação na
escola e no mundo” (COMPAGNON, 2009, p. 45).
No mundo atual tudo está a um toque. Não é necessário ir a
uma livraria ou a uma biblioteca perguntar se tal livro está dis-
ponível e quando ele estará. Com a internet, são raras as situ-
ações em que não conseguimos encontrar determinada obra
literária. A literatura então pode parecer ter perdido sua força. O
livro físico não é mais necessário, hoje é possível ler em celula-
res, computadores e em aparelhos projetados especificamen-
te para se parecerem com um livro real. Uma distopia absurda
para os amantes do cheiro de folhas recém adquiridas.
Ainda que haja certo distanciamento entre leitor e obra, uma
vez que a “aceleração digital”, como coloca Compagnon, ou
seja, um mundo cada vez mais conectado com mais editoras,
mais autores e mais “centenas de primeiros romances”, apesar
disso tudo a literatura ainda tem algo de extrema importância
a nos dizer e incitar. O palco pode ter mudado, espectadores
podem ter nascido e morrido, ido e vindo, mas a literatura con-
tinua lá, e seu ato parece não ter fim.
Para que literatura? O que ela pode fazer? Qual sua força?
Ela ainda tem algo a dizer? Postulando 4 poderes da literatura,
Compagnon não tem tanta preocupação em definir a literatura
em si, em entender o que ela é. Compagnon vê uma neces-
sidade em defender a presença da literatura nos dias atuais,
tentando, por meio de tais poderes, mostrar a relevância desta
arte (ainda que acabe por a definir no processo). Um de seus ar-
gumentos iniciais é que “a vida é mais cômoda, mais clara, mais
ampla para aqueles que leem que para aqueles que não leem”
(COMPAGNON, 2009, p. 29).
Sim e não. Realmente a vida é mais ampla para quem lê,
é mais bela, mais colorida. Aprendemos com a leitura o pra-
zer das pequenas coisas, como encontrar nossa Madeleine de
617
Proust18, ver a beleza de uma paisagem ou do voo dos pássaros
ao anoitecer. Porém também assumimos uma responsabilida-
de, como coloca Sartre: “Você é perfeitamente livre para deixar
esse livro sobre a mesa. Mas uma vez que o abra, você assume
a responsabilidade” (SARTRE, 2019b, p.50). A tomada de cons-
ciência de que o mundo é um lugar lindo e ao mesmo tempo
cruel é, talvez, a maior força da literatura. Como Compagnon
mesmo coloca: “Assim, a literatura, ao mesmo tempo sintoma
e solução do mal-estar na civilização, dota o homem moderno
de uma visão que o leva para além das restrições do mundo
cotidiano” (COMPAGNON, 2009, p. 35-36).
E por que quereria o homem adquirir tal benção, e ao mes-
mo tempo maldição, por parte da literatura? Voltemos a Aris-
tóteles, como Compagnon coloca ao citar o grego “é graças à
mimesis [...] que o homem aprende, ou seja, pelo intermédio
da literatura entendida como ficção” (COMPAGNON, 2009, p.
30). Não é à toa que “aprender brincando” é sempre melhor,
ou que fábulas de Esopo e La Fontaine ainda sejam usadas no
ensino fundamental. “A literatura deleita e instrui” (COMPAG-
NON, 2009, p. 30). Tem poder fundamental no ensino da ética
e da moral na sociedade ocidental, como coloca o estudioso
contemporâneo.
De acordo com o terceiro poder da literatura colocado por
Compagnon, a literatura ultrapassa os limites da linguagem,
ainda corrigindo seus defeitos, e se torna filosofia, formando
uma tênue linha entre ficção e não-ficção (ou história e poesia,
como trazia Aristóteles). Podemos pensar no que Alfredo Bosi
coloca em seu ensaio As fronteiras da literatura: “Falar em ‘fron-
teiras’ da literatura dentro desse campo de interações é sempre
recuar um pouco, é no fundo pensar as diferenças entre ficção
18 Marcel Proust traz em seu Magnum opus, Em busca do tempo perdido (1913-1927),
o conceito da madeleine. Determinado personagem molha uma Madeleine (bolinho
doce francês) no chá e se lembra de seu passado. Desde então o termo é usado na
língua francesa para qualquer coisa que nos faça lembrar imediatamente do passado.
618
e não-ficção” (BOSI, 2015, p. 223). Compagnon também trata
disso em seu O demônio da Teoria (1999). Mera comunicação,
como um bilhete, um panfleto de uma loja qualquer ou um car-
tão de visita, tudo isso é literatura? Notas esquecidas de escrito-
res conhecidos também? Tudo se complica quando vemos a li-
teratura, ficção e não-ficção, quebrarem padrões do romance e
se tornando quase puramente um ensaio filosófico. Como, por
exemplo, a segunda parte de O Estrangeiro, de Albert Camus:
“Mas todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida. No
fundo, não ignorava que morrer aos trinta ou aos setenta anos
tanto faz, pois em qualquer dos casos outros homens e mu-
lheres viverão, e isso durante milhares de anos” (CAMUS, 1972,
p.144). As bases do existencialismo e do niilismo estão aqui!
A relevância se constrói, aos poucos, conforme analisamos
melhor a literatura. Outra prova é sua própria existência. Discos
de vinil, por exemplo, foram substituídos por fitas, então pelos
CDS, depois os MP3 e hoje a música acontece no streaming. A
fotografia analógica deu lugar à digital, com uns poucos entu-
siastas ainda por aí. Já o livro não. A forma digital existe, há pelo
menos uns 20 anos, porém volumes e volumes em papel con-
tinuam sendo vendidos. Isto com certeza nos diz algo.
Lembremos a fala de Sartre: a literatura é um apelo. Um ape-
lo à emoção de quem a consome. Assim como toda arte o é. Se
ninguém consome a arte ela não tem sentido, ela é vã. Sartre
colocará: “Uma vez que a criação só pode encontrar sua realiza-
ção final na leitura, uma vez que o artista deve confiar a outrem
a tarefa de completar aquilo que iniciou, uma vez que é só atra-
vés da consciência do leitor que ele pode perceber-se como
essencial à sua obra, toda obra literária é um apelo” (SARTRE,
2019b, p. 48). A obra se mostra aqui como inacabada, atingindo
seu ápice pela leitura.

619
A literatura não é senão emoção. Não é à toa que, como
Compagnon relembra citando Proust, “na literatura saímos de
nós”. Quando lemos colocamos máscaras, assumimos diversos
personagens que não somos, conhecemos seus pensamentos,
seus desejos, suas invejas. A literatura é, então, uma e-moção.
Como coloca Georges Didi-Huberman, em Que emoção! Que
emoção? (2016), as emoções são gestos vivos “que, aliás, reafir-
mam muito bem o próprio sentido da palavra: uma emoção não
seria uma e-moção, quer dizer uma moção, um movimento que
consiste em nos pôr para fora (e-, ex) de nós mesmos?” (DIDI-
-HUBERMAN, 2016, p. 24-26). Que melhor forma de estarmos
fora de nós mesmos que não na literatura? De ver o mundo
pelos olhos do outro, que nos pode ensinar tanto e que, fisica-
mente, nem existe?
Sartre certa vez disse: “o inferno são os outros”. Célebre frase
que nos lembra que o eu não existe sem o outro. Somos seres
sociáveis, políticos (como diz Aristóteles), e viver em sociedade
requer ação. Aí entra o papel da responsabilidade de Sartre. Ser
responsável é tomar consciência de que para mudar as coisas
é preciso agir. O existencialismo, que é um humanismo, “não
pode ser considerado uma filosofia do quietismo, uma vez que
define o homem pela ação [...]” (SARTRE, 2019a, p. 33). Está ai
o papel do escritor engajado, conscientizar o leitor, incitá-lo à
mudança. E, mesmo que a grande mudança da época de Sar-
tre, o famoso Maio de 68, não tenha atendido às expectativas
da época, como colocam Deleuze e Guattari em Maio de 68
não ocorreu, a teoria de Sartre ainda pode ser muito proveitosa,
principalmente em tempos como os nossos.

620
Conclusão
A literatura é viva, está em constante mudança, e por isso é
quase impossível tentar defini-la de maneira absoluta, como
tentava Aristóteles. O foco deste trabalho foi, portanto, le-
vantar a questão novamente, como o fez Sartre, e defender
a presença da literatura em tempos de capitalismo selvagem.
Pois, como coloca Mark Fisher em Realismo Capitalista (2020):
“Nenhum objeto cultural pode preservar seu poder quando não
existem mais olhos para vê-lo” (FISHER, 2020, p. 12). É preciso,
portanto, fazer a literatura ser vista, problematiza-la, coloca-la
em jogo. É preciso continuar a discutir literatura.
No século IV a. C. Aristóteles já nos dava uma das funções
mais importantes da literatura: ensinar e proporcionar prazer.
Como Compagnon mesmo o coloca: “A literatura deleita e ins-
trui” (COMPAGNON, 2009, p. 30). Ensina-nos cores novas,
sentimentos e paisagens que só podem acontecer ali, em pági-
nas de preto e branco. Além disso, lembremos Sartre: “[...] toda
obra literária é um apelo” (SARTRE, 2019b, p. 48). Um apelo
à liberdade do leitor para que torne a obra que tem em mãos
viva. E a mensagem transmitida ali, uma vez que seja o autor
engajado, busca engajar também o leitor. Busca colocá-lo em
ação.
Portanto, ainda que seja difícil definir a literatura de uma vez
por todas, sendo ela objeto vivo, em constante mudança, é
possível observá-la e admirá-la enquanto muda de forma. E,
além de bela, ela instrui, instiga, deleita, amedronta e emocio-
na. A esse nosso mundo problemático ela nos ensina uma saí-
da. Pois, como traz Sartre: “Uma saída é algo que se inventa. E
cada um, inventando sua própria saída, inventa-se a si mesmo.
O homem é para ser inventado a cada dia” (SARTRE, 2019b, p.
261). Se a literatura auxilia-nos a construir nossa essência, está
aí mais um motivo para defendê-la.
621
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