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BOYER, 1991, p. 152-54). Os títulos dos romances lidos pela personagem, como se vê,
remetem, em boa parte, a eclesiásticos e têm como cenário os conventos.
Em Histoire de Dom B..., portier des Chartreux, écrite par lui-même (1741) – de
que há uma versão brasileira, Saturnino, porteiro dos frades bentos, publicada em 1842,
estudada por Márcia Abreu (2008, p. 344-373) –, Saturnino, numa de suas peripécias
eróticas, encontra-se numa piscina do Convento. Ali, ele identifica uma moça,
Marianne, pela qual sente desejo. Ela lhe é concedida depois que Saturnino aceita
sujeitar-se a uma relação homossexual passiva com o padre Casimir: enquanto ele a
penetra, é sodomizado por Casimir (LATOUCHE, 1745, p. 117).
Os romances libertinos, ademais, tinham outra característica muito importante,
que amplificava sua mensagem, levando-a a um público que não era familiarizado com
a leitura e, no caso de Portugal, também com a língua francesa: eles traziam imagens,
que as imagens podiam ser “lidas” por gente que não sabia ler. Isto foi percebido pelos
censores da Inquisição e, depois de 1768, pelos censores dos tribunais censórios régios
lusitanos. Isto também não escapou à percepção de Diogo Inácio Pina Manique,
Intendente Geral de Polícia de Lisboa e Reino entre 1780 e 1805.
Em 1757-8, Lourenço Antônio Bonarbel, livreiro natural de Turim e
estabelecido em Lisboa, foi pego pela Inquisição por fazer com que livros, muitos deles
proibidos, entrassem na cidade sem passar pela alfândega, mandando-os, pelo contrário,
diretamente para a sua casa (IANTT-IL: Processo 6192, 1757-58, s/p). O livreiro vendia
uma ampla gama de livros, dentre eles clássicos da literatura libertina. Além dos já
citados Thérèse Philosophe, ou Mémoires pour servir à l’Histoire de D. Dirac, do
Marquês d’Argens, e Histoire de Gouberdom, portier des Chartreux, títulos como: e
Lettres Juives, do Marquês d’Argens; Nouvelle Traduction de Mursius ou Académie de
Dames; Le Sopha Conte Moral, de Crébillon Fils; La Paysanne parvenue e Le Paysan
parvenu, ambos de Restif de la Bretonne; Vie Voluptueuse entre les Capucins; Lettres
d’amour d’une Religieuse Portugaise, atribuídas à freira portuguesa Mariana
Alcoforado (1640-1723), mas, tudo indica, de autoria de Guilleragues etc. (IANTT-IL:
Processo 6192, 1757-58, DELOFFRE, 2007, p. 11-69). Ao examinar os livros
apreendidos com Bornabel, o padre frei Nicolau de Assunção Riquer (ou Biquer),
qualificador do Santo Ofício, concluiu que tais livros representavam uma ameaça à
religião católica, por serem “opostos aos bons costumes pela matéria de que tratam e
com estampas torpíssimas, provocativas à Luxúria” (IANTT-IL: Processo 6192, 1757-
58).
4
Décadas depois, Diogo Inácio Pina Manique, Intendente Geral de Polícia, expôs
parecer semelhante ao do qualificador Nicolau sobre determinados livros que tinha
retido, acrescentando apenas que, além ameaçarem a religião católica, punham em risco
também a monarquia. Em 1794, Pina Manique prendeu dois franceses, que eram donos
de uma casa de pasto (isto é, hospedagem) no Rato, em Lisboa. Um deles fora criado de
Antônio Darbot e o outro, cozinheiro do embaixador da Rússia. Lá ele pôde apreender
papéis sediciosos, em que se viam “estampas mais obscenas em atos pecaminosos,
figurando religiosos em ações torpes com mulheres, e alguns outros papéis manuscritos”
(IANTT-IGP: Livro 4, 1793-1795, p. 164-65). Manique, por trás da disseminação
desses papéis, identificou uma estratégia revolucionária comandada pelos estrangeiros
citados, que visava seduzir libertinos locais e operários, gentes do “baixo povo” e,
ainda, pessoas de outros níveis sociais. O processo que Manique descreveu como em
curso em Portugal apresenta algumas coincidências com as linhas vislumbradas por
Robert Darnton na França pré-revolucionária 1. As similitudes começam, primeiramente,
nos ambientes (constitutivos do que, sob a inspiração de Jürgen Habermas, poderia se
chamar esfera pública de poder)2: as hospedagens, os cafés, os bilhares, as assembléias,
além das fábricas e ruas. Em segundo lugar, o tipo de impresso e manuscrito de que se
valeram os franceses, devendo-se lembrar, dentre eles, as estampas obscenas de
clérigos, em ações libidinosas com mulheres, além de manuscritos (e não tratados
filosóficos). Esses papéis, somados com outros que Manique havia recolhido, faziam-no
suspeitar que existisse um plano dos revolucionários, que passava por conquistar os
libertinos para a sua causa (aqui, tomando libertinos, nos termos do Intendente, como
pessoas dadas à devassidão e/ou de baixa extração social): essas pessoas seriam as
presas fáceis dos revolucionários. Em outros documentos, Manique acrescentou outros
elementos visados pelos sediciosos: as mulheres e pessoas de “melhor qualidade”. Além
disso, ele viu similitudes entre o que sucedia em Portugal, nos anos 1790, e o que se
passara na França pré-revolucionária, em termos de livros, impressos, debates, espaços
e proposições irreligiosas e antimonárquicas (IANTT-IGP: Livro 4, 1793-1795, p. 234-
34v).
1
Dentre os muitos trabalhos do autor, veja, sobretudo: DARNTON, 1998, p. 317-351; DARNTON, 1989;
DARNTON, 1992. Uma crítica muito bem fundamentada das interpretações de Darnton encontra-se em:
CHARTIER, 2008.
2
A respeito da esfera pública de poder, veja: HABERMAS, 1984; CHARTIER, 2008, p. 51-60 e 242-
272; KOSELLECK, 1999, p. 60-61; MUNCK, 2000, p. 15-17; MELTON, 2006; CALARESU, 2005,
p.135-176. Para o caso de Portugal, veja: ALVES, 1999 e ARAÚJO, 2003.
5
chamados favores edificação alguma, antes lhe excitam lembranças nada decentes.
Nem eu me poderei nunca persuadir que tal sucedesse (IANTT-RMC: Censuras,
Caixa 5, 1769, Parecer Nº 120, p. 6v) – itálicos meus.
Rosário Pereira. O padre José Marques, clérigo minorista (ele ainda não tinha recebido
as ordens sacras maiores), morador na referida freguesia, nos idos de 1801-1802, passou
ao estudante Manoel José, um menino de 13-14 anos, um suposto “sermão”, cujo teor
era o seguinte:
3
O trecho em latim foi traduzido por Bruno Tadeu Sales, doutorando em História pela UFMG, a quem
sou muito grato.
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Em 1797, José de Nossa Senhora dos Mártires, frade professo na Sagrada Ordem
dos Pregadores, morador no convento de S. Domingos, de Lisboa, denunciou à
Inquisição José Máximo, alferes do Regimento de Infantaria de Minas. Na cela do padre
frei Francisco do Rosário, diante do denunciante e de outros clérigos, José Máximo
disse várias proposições, pondo em xeque o mistério da Santíssima Trindade, a
encarnação de Jesus Cristo, a fornicação simples como pecado, a existência do Inferno,
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dogmas da Igreja; ao mesmo tempo, faz referências às leis da natureza. Assim, afirma
que “a fornicação simples é contra a Lei Natural e [...] sempre foi ilícita e proibida por
sua natureza, antecedentemente a toda a Lei positiva, e isto prova a condenação de
Inocêncio 11 [(?)...], que a considerava sumamente má, por que proibida” (IANTT-IL,
CP Nº 129, 1765-1775, p. 480v). A finalidade procriativa do sexo implicaria que o
homem deveria arcar com o sustento da mulher e filhos e, por isso, a Lei natural
impunha o matrimônio, a união de um homem com uma só mulher, “dois em uma
Carne, e [que] não se dividisse com outras, comunicando-se carnalmente com elas”
(IANTT-IL, CP Nº 129, 1765-1775, p. 481). A conceituação utlizada por frei
Natividade vem de São Tomás, explicitamente mencionado e de quem se retiram as
seguintes categorias: de um lado, a lei eterna e, de outro, a lei natural, a lei divina (pelo
denunciante chamada “Lei da Graça”, que incorpora as prescrições feitas pela Igreja
Católica) e a lei positiva, ecos da primeira. Procurando compatibilizar o que dizem as
Escrituras, os dogmas da Igreja e as leis naturais, Natividade diz, ainda, que “as palavras
‘Crescite et multiplicamini’ e as autoridades confirmam o Consórcio entre o homem e a
mulher, em ordem à geração, para o que inclina a mesma Natureza, ainda no Estado da
inocência. As Leis humanas fizeram este Consórcio Contrato Civil, e, ultimamente, Leis
da Graça o santificaram como elevado por Jesus Cristo à razão de sacramento”
(IANTT-IL, CP Nº 129, 1765-1775, p. 481v).
No seu esforço de compatibilização, Natividade recorre a argumentos puramente
racionais – e não fundamentados na autoridade pura e simples – e histórico-culturais,
que teriam afetado até mesmo o juízo de Deus, além de justificarem determinadas
práticas dos homens. É certo que seus esforços trazem, aqui e acolá, contradições e
incoerências, que só são resolvidas com base na autoridade. Ao defrontar-se com os
casos de poligamia vistos no Antigo Testamento – que não se enquadram dentro do
modelo prescrito pela Igreja Católica –, o denunciante argumenta que eles só se deram
após o Dilúvio, para permitir a propagação da espécie e que eles seriam contrários à lei
natural. Porém, ao considerar a época em que se deram, julga que constituíriam
verdadeiros matrimônios. Arremata seu raciocínio afirmando que: “Deus, como Senhor,
pode dispensar o homem destas obrigações, pelos justos fins, que ele conhece, mudando
não tanto a Lei, mas sim a materia e o objeto de preceito; e compensando este tal, ou
qual dano, com outros bens, que intenta” (IANTT-IL, CP Nº 129, 1765-1775, p. 483). A
essa afirmação, soma considerações históricas, referentes aos costumes, afirmando que
alguns autores “entendem que, naquele tempo, era a poligamia autorizada pelo costume,
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e Deus a tolerava, talvez por não estar então claro que a monogamia era da instituição
do Matrimônio”. Além referências aos textos bíblicos e de Santo Agostinho e São
Tomás, padres da Igreja, na dissertação de Francisco da Natividade, veem-se menções
às determinações do Concílio de Trento, ao jusnaturalista Hugo Grocio e a Antoine
Augustin Calmet, teólogo, filósofo e comentador da Bíblia (IANTT-IL, CP Nº 129,
1765-1775, p. 483). Portanto, em torno da questão da fornicação e no interior de
conventos, os referidos clérigos desenvolveram uma discussão erudita e formal,
assentada em textos, controvérsia esta que saiu do domínio oral para chegar ao escrito,
uma vez que estimulou o denunciante a produzir uma dissertação. Malgrado toda a
roupagem intelectual da controvérsia que envolveu os dois clérigos, é impossível
dissociá-la dos debates populares travados sobre a fornicação simples, que, segundo
Ronaldo Vainfas, foi um dos temas mais debatidos no mundo luso-brasileiro da Época
Moderna, objeto de muitas discussões entre pessoas de diferentes origens sociais
(VAINFAS, 1989, p. 215-240). Os conventuais, desse modo, não estavam longe das
discussões mundanas, e vice-versa. São surpreendentes, porém, a iniciativa de
Natividade de compor e oferecer uma dissertação sobre o tema à Inquisição e,
sobretudo, o uso que faz de argumentos histórico-culturais na leitura da Bíblia e na
avaliação de temas morais, postura hoje em dia tão esquecida por cristãos
fundamentalistas.
Um penúltimo conjunto de situações envolve o frei Ricardo de Santa Coleta
Coelho. Censor do tribunal eclesiástico (ao que tudo indica, de Lisboa), e jubilado em
Teologia, tendo estudado e ensinado nos preparatórios “desta ciencia, no seu Colégio de
Coimbra e nos Conventos de Estremoz, Évora, Cascais e Xabregas”, além de ter
residido nos colégios de Alcoxeta, Messejana e outros”, aos 20 de março de 1800,
apresentou-se por escrito à Inquisição de Lisboa, confessando “liberdades sensuais”
cometidas com várias pessoas, de sexos diferentes (IANTT-IL, Processo No 5856, 1800-
1802, p. 15-15v). Declarou que, no convento da Encarnação, em Lisboa, com sua
confessante Dona Tereza Inácia de Lancastre, freira, teve várias “liberdades sensuais”.
Também com outra sua confessante, durante anos, ao que parece num convento, Dona
Antônia de Noronha, viúva de Antônio Laignez, tivera “algumas confianças, indignas
do Ministério sagrado”. No convento de Sacavem, ao confessar uma religiosa, Sóror
Ana Luduvina, no confessionário, mandou-lhe tocar as partes pudendas com cilício;
além disso, manteve com “esta Freira comunicação lasciva por cartas, que eram todas
Luxuriosas e torpes. Por três, até quatro vezes no ano [... quando] ia confessá-la”. Por
11
fim, por muito tempo, confessou a “um moço, de 14 até 20 anos, chamado Domingos
José Alves da Costa”, algumas vezes açoitando-o na cela, dando-lhe em certas ocasiões
“abraço e ósculos na boca, de sorte que sentindo ele [Frei Santa Coleta] alguma
alteração não continuava” (IANTT-IL, Processo No. 5856, 1800-1802, p. 2)... Ao menos
em uma das situações luxuriosas protagonizadas por Santa Coleta, portanto, verificou-se
a circulação de escritos, no caso, manuscritos, trocados entre eles e uma de suas
parceiras.
Por fim, cito exemplos referentes ao Brasil, recolhidos de um dos vários estudos
de Luiz Mott, o maior pesquisador do mundo luso-brasileiro sobre a história das
práticas homoeróticas4. O cenário era o convento do Carmo do Rio de Janeiro, no século
XVII. Nele, em 1643, o frei Antônio Soares, sodomita contumaz, foi prior em 1643,
depois de ter sido preso em Lisboa, em 1630 e, então, degredado para o Brasil. Longe
de interromper suas práticas, no Rio de Janeiro, o frade continuou a desenvolvê-las,
sendo por isso denunciado e remetido para a Inquisição de Lisboa. No mesmo convento,
nos idos de 1686, Luiz Delgado, outro inveterado sodomita, buscou refúgio para si e
para seu amado, usando da imunidade que ali teria na qualidade de homiziado, de forma
a evitar uma detenção por oficiais de justiça, depois fugindo do Rio de Janeiro para o
Espírito Santo (MOTT, 2010, p. 135-6 e 168).
4
Dentre eles, destaco um artigo de grande erudição e enorme solidez teórico-conceitual: MOTT, 1988.
5
A ortografia, a pontuação e a acentuação do texto de Bocage foram mantidas conforme a edição de
12
Amar, enfim, seria um dever, não um crime, neste mundo em que inexistiriam
céu e inferno, nem prêmios nem castigos. Logo, nem virtude nem vícios teriam outros
prêmios ou outros castigos senão eles próprios:
Rousseau. Em sua fala, veem-se aspectos que demonstram a constituição de uma esfera
pública de poder em Lisboa: ambientes (tais como as lojas de bebidas, os cafés e o Cais
do Sodré) e impressos (livros franceses, dentre eles o de Voltaire), frequentados e
usados por pessoas, ao expressarem posicionamentos políticos contra a monarquia.
José Joaquim Coucieiro – que, na cadeia, “fez a Deligência de encontrar-se”
com Brun, “familiarmente, a fim de extorquir-lhe os seus sentimentos e quem eram os
sócios necessários dos seus Delitos” –, por sua vez, aos 11 de março de 1803, revelou
que o supracitado maçom lhe contara que, dentre os Catecismos que lhe foram
apreendidos, havia um que “dizia que só era devida obediência aos Reis e ao Pastor da
Igreja enquanto eles governassem virtuosamente”, dizendo possuir, ainda, as seguintes
obras: “Questões de Zapata, uma Epístola de Manoel Maria Bocage” (IANTT-IL:
Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 31v-38v). Ele seguiria como juramento:
“em matar, ou deixar morrer” (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p.
38). Na verdade, na apreensão que lhe fora feita de seus bens, figuravam também outros
títulos: “Caderno manuscrito, em oitavo, em vinte e três laudas, em que se compreende
um Catecismo com várias perguntas e Respostas”; “Caderno que tem por título
‘Passagens de Cadeira ao Real Arco’, escrito em dez folhas de oitavo”; Catecismo do
terceiro grau; “um Livro em oitavo, com capa de Pergaminho, impresso em Língua
Espanhola, que tem por Título ‘Sentinela contra Franc-Masones’, traduzido do Italiano
por Frei José Torribia, impresso em Madrid no ano de mil setecentos e noventa e três”;
“um Caderno de quarto em que se acham manuscritas algumas poesias e, entre elas, a
Epístola intitulada ‘Verdades duras’, de Manoel Maria Barbosa de Bocage, que
principia ‘Pavorosa ilusão da Eternidade’ ”, caderno este com vinte e três folhas 6; e
“Mais outro Caderno [...], no qual se acham escritas duas quadras glosadas,
principiando a primeira no verso ‘Santas Leis da natureza” (IANTT-IL: Processo
11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 52-52v).
Em meados de 1803, Brun já fora transferido para a jurisdição da Inquisição.
Diante deste Tribunal, ao discorrer sobre sua Genealogia, declarou, dentre outras coisas,
ser batizado, filho de pais castelhanos, vivendo fazia 25 anos em Portugal, informando
ainda ter estudado “os princípios da Gramática Latina em Barcelona, [e] que não tinha
lido livros proibidos, nem papéis sediciosos e heréticos”, no que claramente mentia
(IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 132). Em julho de 1803, em
6
O texto do manuscrito de Bocage, encontrado em seu poder, tem poucas diferenças em relação
ao texto editado em Londres, em 1837, utilizado neste trabalho.
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depoimento à Inquisição, Manoel Dias contou que Brum defendeu a proposição “que
Maria Santíssima Nossa Senhora era uma prostituta e que não podia conceber sem
varão”, (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 164). Já o Frei Antônio
de Jesus Maria José revelou que Brum, ao falar contra a pureza de Maria, disse “que na
sua Conceição não houvera diferença alguma da do resto do gênero humano, e que ela
tinha sentido as mesmas sensações a este respeito que outra qualquer mulher, e que
igualmente bla[s]femava contra os Santos” (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461,
1802-1805, p. 169). A Inquisição, em setembro de 1803, condenou Brun à Abjuração de
vehemente (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 195). Enfim,
considerando as proposições defendidas e o envolvimento de Brun com a maçonaria,
conclui-se que havia grande congruência entre ele e Bocage, também um maçom; além
disso, fica claro que eles comungavam de princípios comuns, opondo-se à monarquia, à
religião e à moral vigentes.
Em 1801, Bento de Andrade Menezes, da Vila da Barca, encaminhou ao abade
João Marzir de Abreu Carello denúncia contra alguns militares que se encontravam em
regimentos no norte de Portugal: José Pedro, da Companhia de Felipe de Souza
Canabarro, e José Pinto, cadete da Companhia de Castro, ambos do Regimento dos
Dragões de Chaves; e Luís Vas, Tenente da Cavalaria de Bragança, então agregado ao
Regimento de Chaves. Segundo o denunciante, ele vira nas mãos dos primeiros
denunciados, quando estavam juntos na Companhia, em Chaves, “A Carta de José
Maria de Bocage, que principiava ‘Pavorosa Ilusão de Eternidade’, herética em todo o
seu contexto”. O denunciante falou ao abade que não supunha que eles abraçassem as
doutrinas dela, só, sim, admiravam o bom estilo do verso. Três anos antes, o
denunciante vira “a mesma Carta na mão de Luís Vas, Tenente da Cavalaria de
Bragança”, então agregado ao Regimento de Chaves, e também também não supunha
“que este aprov[ass]e a dita Doutrina” (IANTT-IC: CP nº. 123, 1775-1799, p. 32).
Conclui-se, portanto, que o poema de Bocage circulou entre militares, em localidades
distintas, ao norte de Portugal, aliás, meio e região que a época se notabilizaram pela
presença de livros proibidos. Coloca-se em dúvida, além disso, que todos os leitores
necessariamente louvassem os princípios contidos no texto de Bocage, uma vez que,
segundo o denunciante, os denunciados o apreciavam não pelas doutrinas que trazia,
mas pelo estilo dos versos. Esse caso indica como as obras (no caso, de belas letras,
mais precisamente poesia) poderiam ser lidas e avaliadas pelos leitores: ou melhor,
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evidencia uma possibilidade de leitura das mesmas, dentre várias, uma leitura que
valorizava o estilo.
Por fim, há um último indício de circulação: conforme denúncia de João Paes de
Lima contra várias pessoas de Coimbra, datada de 1805, o bacharel legista José Bento
Duarte tinha em mãos um texto que começava com “Pavorosa Ilusão da Eternidade”
(IANTT-IL: Processo 17160, Maço 1139, Caixa 1641, 1805). O denunciante,
infelizmente, não dá nenhuma informação sobre o modo como o texto era lido e
apropriado.
portanto, tornou-se íntimo de outros dois monges, unindo-se aos mesmos, o que era
facilitado pelo fato das regras da instituição não serem seguidas à risca. Essa intimidade
e intensa convivência, que durou dois meses, geravam certa admiração nos demais
monges, o que me permite conjecturar que: a fama dos dois monges seria ruim e a
intimidade e convivência dos três seriam demasiadas, mesmo sob o clima de relaxação
em que ali se vivia.
Outra revelação feita pelo denunciante é bastante surpreendente: durante o
tempo em que compartilhou da intensa proximidade com os outros dois monges, ele
nunca pôde perceber “sinal algum de Católicos em ambos”, mais especialmente no frei
Rodrigo de Souza. Este último teria caído “em gravíssimos pecados perante” o
denunciante, ao que se somavam dois fatos: ele não se confessava e, mais ainda, sem
escrúpulo nenhum, comungava. O denunciante veio a saber, depois, em Salzedas, que o
mesmo denunciado fizera coisas similares em outro convento por onde ele tinha passado
anteriormente. Acrescentou, ademais, que ambos os frades, nas “Palestras, tanto de um
como do outro, não [se] respirava[m] senão impurezas contra a Castidade e Roubos”
feitos ao mosteiro. O denunciante diz tê-los advertidos sobre tais erros. Demonstrando
não ter limites em suas libertinagens, os frades, diante do denunciante, “não acautelaram
as suas fornicações”, permitindo-lhe “conhecer perfeitamente que andavam
amancebados um com o outro”. Segundo as próprias palavras do denunciante: “eu,
muitas vezes, os encontrei, ambos na mesma cama e, mostrando-me as partes, que eu
me envergonho de nomear, me convidavam para que eu os imitasse” (IANTT-IC, CP Nº
123, 1775-1799, p. 88). As práticas sexuais homoeróticas eram acompanhadas pela
leitura de textos poéticos – dentre eles o poema de Bocage, chegado fazia pouco tempo,
em manuscrito – e por proposições heréticas, como a de que Bíblia era uma fábula,
proposição tão recorrente, e outra, de acordo com a qual Moisés fora um impostor e
tirano. O denunciante, conforme suas próprias palavras, notou:
mais que sabiam de Memória uma imensidade de Sonetos, décimas e Cantigas
Luxuriosíssimos e heréticos, traduzindo como fábula toda a doutrina Cristã; [...]
que eles tinham um Cartapácio, por Letra de Mão, que lhes tinha vindo há pouco,
não sei de donde e, diante de mim, o leram e andavam estudando de cor, no qual
chamavam a Moisés impostor e autor do império dos tiranos, e chamando
Pavorosa ilusão à Eternidade e dizendo que nada mais havia que nascer e morrer;
ao padre frei Rodrigo Vaz, ainda, ouviu de uma ocasião Repetir algumas destas
heresias de cor. Repreendeu um [deles], porém isso pouco aproveitou (IANTT-IC,
CP Nº 123, 1775-1799, p. 88v).
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para o matarem, até que, numa quarta tentativa, à noite, depois do ofício divino, perto
do refeitório, o denunciante não conseguiu fugir deles, logrando apenas escapar de uma
facada. Frei João de Sá, em seguida, foi ao encontro de um seu condiscípulo, o frei
Rodrigo Vaz. Ambos, então, deram parte do ocorrido ao prelado, frei Antônio de
Vasconcelos. Novamente nada foi feito. O denunciante continuou a rogar ao prelado
para lhe permitisse retirar-se para Salzedas, expondo-lhe o que poderia acontecer se
permanecesse no Mosteiro de São João da Tarouca. O prelado negou-se a dar-lhe sua
autorização. Diante disso, o denunciante procurou o subterfúgio de estar sempre em
companhia de algum outro condiscípulo, até que, “na sexta-feira santa, ao entrar para o
Refeitório, o Frei Paulo” o alcançou. Então, frei João viu-se obrigado a afastá-lo com
um prego e, só depois, conseguiu mudar-se para Salzedas (IANTT-IC, CP Nº 123,
1775-1799, p. 88v).
Já em Salzedas, frei João começou a desconfiar que o padre mestre Manoel e o
Prelado Antônio fossem cúmplices dos dois frades libertinos. Na sua avaliação, o certo
é que ambos, padre mestre e prelado,
deixaram morrer o D. Abade daquele Mosteiro [de S. João da Tarouca] na
quaresma, sem sacramentos, depois de desenganado pelos dois Médicos de
Lamego, [chamados] o Santos e o Cardoso e, depois de uma intimidade dilatada e
sendo estes dois os que com mais particularidade lhe assistiam – um, o Souza,
como grande amigo, o outro, como Prelado imediato –; quando o ungiram e
absolveram, [o D. Abade] já estava sem sentidos, tendo tido nas vésperas muito
tempo [para impedir a sua morte] (IANTT-IC, CP Nº 123, 1775-1799, p. 89).
Conclusões
por sua vez, encontrava eco na realidade do mundo luso-brasileiro, onde instituições
congêneres figuraram como cenários de discussões sobre a fornicação, quando não de
experiências sexuais.
Evidenciei, além disso, que, para as autoridades portuguesas, não apenas os
romances franceses libertinos, clandestinos no período, conduziam à concupiscência,
mas também textos religiosos de circulação mais ampla e consentida pela censura.
O próprio poema de Bocage, por seu turno, segundo pessoa que privou de
convivência com o autor, seria uma espécie de apropriação poética em língua
portuguesa, de um texto escrito em prosa por Frederico II, rei da Prússia. O poema,
ademais, guarda grandes afinidades com outros de sua época, dentre eles um escrito de
José Anastácio da Cunha, lente da Universidade de Coimbra perseguido pela Inquisição
em 1778. Esses elementos mostram a intensa circulação que então se verificava das
ideias, transitando por imagens, textos impressos e manuscritos, em línguas, suportes e
gêneros distintos, atingindo o domínio da oralidade.
A circulação do poema de Bocage, ao mesmo tempo, embora fosse ele um
manuscrito e, mais ainda, visado pelas autoridades portuguesas, deu-se nos dois lados
do Atlântico, indo de Portugal ao interior do Brasil, mais precisamente a Minas Gerais.
Seus leitores, por fim, dentre os quais se destacavam padres e militares, usaram-no de
modos diferenciados: alugns, para fins mais ou menos contestatórios da ordem
estabelecida, enquanto outros somente porque apreciavam seu estilo. Dentre os que o
utilizaram como instrumento de contestação, destacaram-se dois frades sodomitas, que
misturaram a leitura à fruição dos prazeres carnais, levando ao paroxismo a própria tese
defendida no texto: ao refutarem as ideias de virtude e de vício e entregarem-se à
luxúria, até mesmo para se saciarem, ao que parece, não hesitaram em envolver-se em
ameaças de morte, talvez em assassinatos.
Nesse sentido, esses leitores, com suas condutas, talvez tenham endossado a tese
defendida em Tereza Filósofa, do Marquês d’Argens, aquela segundo a qual apenas a
alguns poucos poderia difundir-se a descrença no Inferno, posto que, sem este freio, os
homens, em sua maioria, não teriam limites e, por conseguinte, fariam o mal a seus
semelhantes.
A tese de que a religião constituiria um freio, por sua vez, apareceria em O
Crime do Padre Amaro, romance português aqui citado, de 1875. Na mesma obra,
ademais, também se vê a compreensão de que textos religiosos poderiam conter a
“linguagem da luxúria” – quase do mesmo modo como acusavam os censores lusitanos
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da segunda metade do século XVIII –, sendo um deles usado por Amaro para estimular
o desejo em Amélia (1889/2010, posições 561 e 1287). Nesse cruzamento de tempos, de
ficções e realidades, de textos distintos em sua materialidade (manuscritos e impressos)
e gêneros, enfim, percebe-se a persistência de representações e práticas referentes ao
sexo, às leituras e ao mundo eclesiástico – ainda que não tenha sido objeto de análise
neste trabalho, essa permanência deve ser sublinhada, tendo em vista estudos futuros.
Fontes primárias:
Manuscritos:
Impressos:
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Resumo: O objetivo desta comunicação é discutir as relações entre leitura e práticas sexuais, em
Portugal e no Brasil, ao final do Antigo Regime, passagem do século XVIII para o século XIX,
sobretudo no interior dos conventos, com destaque para as relações homoeróticas travadas entre
dois frades lusitanos, sob a inspiração de um texto poético libertino de Manuel Maria Barbosa
du Bocage, “Epístola à Marília ou Pavorosa Ilusão da Eternidade”, que circulava à época
clandestinamente em manuscrito.
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Resumé: L’objectif de ce texte est analyzer les rapports entre lecture et les practiques sexuelles
au Portugal et au Brésil à la fin de l’Ancien Régime, surtout dans les monastères, en soulignant
les liaisons érotiques homosexuelles établies entre deux frères portugaises, sous l’inspiration de
un poème libertin écrit par Manuel Maria Barbosa du Bocage, “Lettre à Marília ou Terrible
Illusion de l’Eternité”, qui circulait clandestinement en manuscrite à cette époque.