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Leituras de um Poema de Bocage em Portugal e no Brasil

Luiz Carlos Villalta

Em O Crime do Padre Amaro: scenas da vida devota, romance de Eça de


Queiroz publicado inicialmente em 1875, o protagonista, em diálogo com outro
personagem, rememora situações vividas por ambos nos tempos de seminário, dentre
elas o catarro do reitor e o deslize do mestre de canto-chão, que “deixara um dia cair do
bolso as poesias obscenas de Bocage” (1889/2010, posição 262-63); Amélia, a
personagem da moça seduzida por padre Amaro, por sua vez, também tivera uma
professora de canto-chão que reverenciava Bocage (1889/2010, posição 917). Recuando
no tempo, para a passagem do século XVIII para o século XIX, mas sem perder de vista
as representações romanescas ou a referência a Manuel Maria Barbosa du Bocage, este
texto tem por objetivo discutir as relações entre leitura e práticas sexuais, em Portugal e
no Brasil, ao final do Antigo Regime. Nele, será dado destaque para as relações
homoeróticas travadas entre dois frades no interior de um convento, sob a inspiração de
um texto poético libertino de Bocage, “Epístola à Marília ou Pavorosa Ilusão da
Eternidade”, que circulava à época clandestinamente em manuscrito.
Minha exposição, divide-se em quatro partes. Numa primeira, focalizo as
relações entre textos e práticas sexuais no período considerado, acompanhando
representações presentes em romances libertinos franceses, pareceres da censura
portuguesa e documentos da Intendência Geral de Polícia de Lisboa e Reino. Na
segunda parte, a partir de documentos inquisitoriais e da Intendência Geral de Polícia de
Lisboa e Reino, examino algumas práticas de leitura e sexuais protagonizadas por
frades, padres, monjas, recolhidas, seminaristas etc., com o concurso num ou noutro
caso de leigos e leigas. Em seguida, faço uma breve análise das ideias centrais contidas
no texto de Bocage, “Epístola à Marília ou Pavorosa Ilusão da Eternidade” e, além
disso, focalizo os registros que localizei da circulação do referido manuscrito em
Portugal e no Brasil, na virada do Setecentos para o Oitocentos. Por fim, detenho-me no
caso de dois frades que se deleitavam com a leitura do texto de Bocage em suas práticas
homoeróticas, nas quais procuraram envolver uma terceira pessoa, num caminho que foi
dos textos ao sexo, chegando, ao final, a crimes de morte, ocorridos em mosteiros
lusitanos.

Dos romances libertinos franceses aos livros espirituais,


da leitura às práticas libertinas
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Nos romances libertinos franceses do século XVIII é comum a associação entre


práticas de leitura e concupiscência, isto é, os personagens, dentre eles clérigos,
entregam-se à luxúria estimulados pela leitura de textos licenciosos: o contato com
romances libertinos abre as portas para a concupiscência. Há, além disso, uma
representação muito comum nesses romances, a de que os conventos são escolas dos
vícios, locais onde se desenvolvem relações hetero e homossexuais.
Em Tereza Filósofa, romance do Marquês d’Argens publicado em 1748, o
Abade T... instrui a Sra. C..., mulher viúva sua amante, em questões teológicas e
filosóficas. Ao mesmo tempo, ambos compartilham momentos de prazer. Essas
instruções e esses momentos contam com a participação da jovem Tereza, a
protagonista do romance, que a tudo assiste, como autêntica voyeuse.
A instrução filosófica da Sra. C... e, por conseguinte, de Tereza, no que se refere
aos cuidados com os prazeres, passa pela leitura de um romance libertino, Histoire de
Gouberdom, Portier de Chartreux (1741), provavelmente de Jean-Charles Gervaise de
Latouche (BOYER, s/d, p. 95; BOYER, 1991, p. 88-9), publicado também com outros
títulos: Histoire de Dom B..., portier des Chartreux e Mémoires de Saturnin.
Tereza, além disso, vive uma outra experiência em que se potencializa o poder
do livro como estímulo à luxúria. Em sua relação com o Conde D..., que a leva para
viver em suas terras e a sustenta, Tereza se vê interessada pelos livros do anfitrião
enamorado. Ao vê-la interessada pela biblioteca galante que havia trazido de Paris,
demonstrando o gosto pelos livros e pela pintura, o Conde propõe-lhe: “Je parie ma
bibliothèque et mes tableaux, contre votre pucelage, que vous n’observerez pas la
continence pendant quinze jours, ainsi que vous le promettez” (BOYER, s/d, p. 183-
185; BOYER, 1991, p. 151).
Tereza aceita a proposta. Ela não se contém diante dos efeitos da pintura e da
leitura galantes. Devora, durante quatro dias, com “os olhos”, romances libertinos
(“l’histoire du Portier des chartreux, celle de la Tourière des carmélites, l’Académie des
dames, Les Lauriers ecclésiastiques, Thémidore, Fertillon, etc., et nombre d’autres de
cette espèce”), delas se afastando apenas “examiner avec avidité des tableaux où les
postures les plus lascives” a lançavam na incandescência. No quinto dia, deitada na
cama, com a imaginação aquecida pelas posições representadas nos quadros, desiste de
resistir e clama pelo amante, convocando-o a penetrá-la (BOYER, s/d, p. 186-189;
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BOYER, 1991, p. 152-54). Os títulos dos romances lidos pela personagem, como se vê,
remetem, em boa parte, a eclesiásticos e têm como cenário os conventos.
Em Histoire de Dom B..., portier des Chartreux, écrite par lui-même (1741) – de
que há uma versão brasileira, Saturnino, porteiro dos frades bentos, publicada em 1842,
estudada por Márcia Abreu (2008, p. 344-373) –, Saturnino, numa de suas peripécias
eróticas, encontra-se numa piscina do Convento. Ali, ele identifica uma moça,
Marianne, pela qual sente desejo. Ela lhe é concedida depois que Saturnino aceita
sujeitar-se a uma relação homossexual passiva com o padre Casimir: enquanto ele a
penetra, é sodomizado por Casimir (LATOUCHE, 1745, p. 117).
Os romances libertinos, ademais, tinham outra característica muito importante,
que amplificava sua mensagem, levando-a a um público que não era familiarizado com
a leitura e, no caso de Portugal, também com a língua francesa: eles traziam imagens,
que as imagens podiam ser “lidas” por gente que não sabia ler. Isto foi percebido pelos
censores da Inquisição e, depois de 1768, pelos censores dos tribunais censórios régios
lusitanos. Isto também não escapou à percepção de Diogo Inácio Pina Manique,
Intendente Geral de Polícia de Lisboa e Reino entre 1780 e 1805.
Em 1757-8, Lourenço Antônio Bonarbel, livreiro natural de Turim e
estabelecido em Lisboa, foi pego pela Inquisição por fazer com que livros, muitos deles
proibidos, entrassem na cidade sem passar pela alfândega, mandando-os, pelo contrário,
diretamente para a sua casa (IANTT-IL: Processo 6192, 1757-58, s/p). O livreiro vendia
uma ampla gama de livros, dentre eles clássicos da literatura libertina. Além dos já
citados Thérèse Philosophe, ou Mémoires pour servir à l’Histoire de D. Dirac, do
Marquês d’Argens, e Histoire de Gouberdom, portier des Chartreux, títulos como: e
Lettres Juives, do Marquês d’Argens; Nouvelle Traduction de Mursius ou Académie de
Dames; Le Sopha Conte Moral, de Crébillon Fils; La Paysanne parvenue e Le Paysan
parvenu, ambos de Restif de la Bretonne; Vie Voluptueuse entre les Capucins; Lettres
d’amour d’une Religieuse Portugaise, atribuídas à freira portuguesa Mariana
Alcoforado (1640-1723), mas, tudo indica, de autoria de Guilleragues etc. (IANTT-IL:
Processo 6192, 1757-58, DELOFFRE, 2007, p. 11-69). Ao examinar os livros
apreendidos com Bornabel, o padre frei Nicolau de Assunção Riquer (ou Biquer),
qualificador do Santo Ofício, concluiu que tais livros representavam uma ameaça à
religião católica, por serem “opostos aos bons costumes pela matéria de que tratam e
com estampas torpíssimas, provocativas à Luxúria” (IANTT-IL: Processo 6192, 1757-
58).
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Décadas depois, Diogo Inácio Pina Manique, Intendente Geral de Polícia, expôs
parecer semelhante ao do qualificador Nicolau sobre determinados livros que tinha
retido, acrescentando apenas que, além ameaçarem a religião católica, punham em risco
também a monarquia. Em 1794, Pina Manique prendeu dois franceses, que eram donos
de uma casa de pasto (isto é, hospedagem) no Rato, em Lisboa. Um deles fora criado de
Antônio Darbot e o outro, cozinheiro do embaixador da Rússia. Lá ele pôde apreender
papéis sediciosos, em que se viam “estampas mais obscenas em atos pecaminosos,
figurando religiosos em ações torpes com mulheres, e alguns outros papéis manuscritos”
(IANTT-IGP: Livro 4, 1793-1795, p. 164-65). Manique, por trás da disseminação
desses papéis, identificou uma estratégia revolucionária comandada pelos estrangeiros
citados, que visava seduzir libertinos locais e operários, gentes do “baixo povo” e,
ainda, pessoas de outros níveis sociais. O processo que Manique descreveu como em
curso em Portugal apresenta algumas coincidências com as linhas vislumbradas por
Robert Darnton na França pré-revolucionária 1. As similitudes começam, primeiramente,
nos ambientes (constitutivos do que, sob a inspiração de Jürgen Habermas, poderia se
chamar esfera pública de poder)2: as hospedagens, os cafés, os bilhares, as assembléias,
além das fábricas e ruas. Em segundo lugar, o tipo de impresso e manuscrito de que se
valeram os franceses, devendo-se lembrar, dentre eles, as estampas obscenas de
clérigos, em ações libidinosas com mulheres, além de manuscritos (e não tratados
filosóficos). Esses papéis, somados com outros que Manique havia recolhido, faziam-no
suspeitar que existisse um plano dos revolucionários, que passava por conquistar os
libertinos para a sua causa (aqui, tomando libertinos, nos termos do Intendente, como
pessoas dadas à devassidão e/ou de baixa extração social): essas pessoas seriam as
presas fáceis dos revolucionários. Em outros documentos, Manique acrescentou outros
elementos visados pelos sediciosos: as mulheres e pessoas de “melhor qualidade”. Além
disso, ele viu similitudes entre o que sucedia em Portugal, nos anos 1790, e o que se
passara na França pré-revolucionária, em termos de livros, impressos, debates, espaços
e proposições irreligiosas e antimonárquicas (IANTT-IGP: Livro 4, 1793-1795, p. 234-
34v).

1
Dentre os muitos trabalhos do autor, veja, sobretudo: DARNTON, 1998, p. 317-351; DARNTON, 1989;
DARNTON, 1992. Uma crítica muito bem fundamentada das interpretações de Darnton encontra-se em:
CHARTIER, 2008.
2
A respeito da esfera pública de poder, veja: HABERMAS, 1984; CHARTIER, 2008, p. 51-60 e 242-
272; KOSELLECK, 1999, p. 60-61; MUNCK, 2000, p. 15-17; MELTON, 2006; CALARESU, 2005,
p.135-176. Para o caso de Portugal, veja: ALVES, 1999 e ARAÚJO, 2003.
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Outra estratégia também utilizada pelos libertinos luso-brasileiros – ao menos


por um deles, o mineiro José Joaquim Vieira Couto, nas venturas amorosas que teve em
Lisboa com Maria Magdalena Salvada, mulher casada, nos idos de 1803 – foi contratar
um professor particular de francês. Vieira Couto tirou das mãos de sua amásia um livro
religioso que ela lia (Manual Devoto) e pagou-lhe seis aulas particulares de francês,
dadas por um professor de nacionalidade francesa. Ele ainda leu e debateu com ela
livros libertinos: “um Livro de Novelas, em que se tratava da Firmeza e Amizade de
dois Amantes” e “dois Livros Franceses com Estampas de ações torpes e indecentes”
(IANTT-IL: Processo n. 9275, 1803, p. 2v e 8).
Aos olhos das autoridades portuguesas, porém, não apenas a leitura de romances
libertinos, com ou sem imagens, conduziam aos vícios e, dentre eles, à luxúria. Isso
poderia se dar também com outros textos. Segundo o censor frei Inácio São Caetano,
por exemplo, os livros espirituais incitariam os fiéis a se entregarem aos vícios, dos
quais poderiam obter perdão graças às simples rezas aos santos e à Nossa Senhora. Isso
era temido pelo censor em relação ao livro Affeição à Maria Santíssima, de Boaventura
Maciel Aranha. Os efeitos da confiança cega no poder de Maria, para o “povo rude” e
para os que não se encontravam nesta categoria, eram o esquecimento dos “infinitos
merecimentos” de Jesus Cristo e dos “mandamentos de Deus”, além da entrega aos
vícios (IANTT-RMC: Censuras, Caixa 5, 1769, Parecer Nº 120, p. 3). O livro de
Boaventura, além disso, teria algumas indecências e erros graves. No geral, o livro
apresentaria “doutrinas que não se podem compor com os Dogmas da Fé”, como
afirmar que “Deus tem determinado não conceder graça alguma aos homens senão por
meio de Maria Santíssima”, o que representaria “iludir aos símplices [sic] e ignorantes”
(IANTT-RMC: Censuras, Caixa 5, 1769, Parecer Nº 120, p. 6). O autor, ademais,
colocaria na boca de Maria palavras impróprias; o que ela “diz é pueril, indecente,
intolerável, indigno da gravidade da Senhora e só próprio para iludir aos símplices [sic]”
(IANTT-RMC: Censuras, Caixa 5, 1769, Parecer Nº 120, p. 6v). O livro usaria
metáforas (termo, advirto, não usado pelo censor) que gerariam mal-entendidos da parte
do leitor, particularmente os rudes, prisioneiros do sensível; tratar-se-ia de uma “ilusão”,
classificada pelo censor como “indecente” e que incitaria, igualmente, no leitor
lembranças indecentes”:
diz que Maria Santíssima meteu os seus celestiais peitos na boca de um servo de
Deus da Companhia [de Jesus?]. Sei, que isto mesmo anda escrito de outros, mas é
muito indecente que se escreva, porque alem de poder ser, como é, as mais das
vezes, uma ilusão, a gente rústica, que só percebe o que é sensível, não tira destes
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chamados favores edificação alguma, antes lhe excitam lembranças nada decentes.
Nem eu me poderei nunca persuadir que tal sucedesse (IANTT-RMC: Censuras,
Caixa 5, 1769, Parecer Nº 120, p. 6v) – itálicos meus.

Leituras e práticas sexuais em mosteiros e seminários

A circulação de textos manuscritos proibidos em mosteiros, seminários e


recolhimentos não era um fato incomum em Portugal e no Brasil, o mesmo podendo ser
dito a respeito de impressos. Dentro e fora dessas instituições, práticas sexuais e debates
também se davam, com mais ou menos frequência, entre monges, entre freiras, ou entre
padres e freiras, ou mesmo entre religiosos e leigos. A seguir, darei alguns exemplos
que atestam: a circulação de manuscritos, mesclada à incitação à luxúria; vários casos
de luxúria envolvendo freiras; a exposição de proposições heréticas; episódios
licenciosos protagonizados por um frade censor, que misturava práticas de voyeur e de
sádico ao sacramento da confissão; e, por fim, histórias de amores homoeróticos.

A primeira situação parece ter-se dado em um seminário na freguesia de

Alquerobim, no Bispado de Aveiro, conforme denunciou o comissário Francisco

Rosário Pereira. O padre José Marques, clérigo minorista (ele ainda não tinha recebido

as ordens sacras maiores), morador na referida freguesia, nos idos de 1801-1802, passou

ao estudante Manoel José, um menino de 13-14 anos, um suposto “sermão”, cujo teor

era o seguinte:

Defecarunt carnes mes, transierunt dees mei [= Minhas carnes se extinguiram,


meus dias se passaram]/ Este era o texto/ O homem, se te não resolves hoje, não sei
quando há de ser. Olha, que és pó, olha que os bichos hão comer a tua carne e,
então quando ja não tiveres remédio, te arependerás de não teres fodido, como o
nosso Psalmista, quando disse: Defecarunt carnes mao, transierunt dies máo. Ora,
eu, meus amadinhos, não digo que fodais sempre, fodei ao menos por três vezes
cada dia, isto não vos custa. Que Diabo tem essa vossa pica, ela não se vos
endireita? Ou então visto isto, sou o avesso dos outros/ (IANTT-IC: CP Nº 124 e
125, 1798-1802, p. 377)3.

No livro de Salmos, há duas expressões que podem ser a origem da citação: no


Salmo 39 v. 5, "Senhor, faze-me conhecer o meu fim, e qual é a duração medida dos
meus dias; que eu saiba quanto sou efêmero" e, no Salmo 102, v. 24, “Ele reduziu
minhas forças em plena corrida; Ele abreviou meus dias" (BÍBLIA SAGRADA, 2002).

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O trecho em latim foi traduzido por Bruno Tadeu Sales, doutorando em História pela UFMG, a quem
sou muito grato.
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Comparando-se a citação bíblica com a interpretação do bilhete, conclui-se que o aluno


fez uma exegese que deixaria qualquer doutor da Igreja de cabelos em pé.
No Convento de Pestojas do Lima, também em Portugal, nos idos de 1802,
opuseram-se, de um lado, Francisco José de Araújo Cerqueira, moço fidalgo, o
denunciado e, de outro, o padre Joaquim Manoel Gonçalves, Professor de Gramática,
clérigo in minoribus, ex-colegial no Seminário de Braga, o denunciante. O fidalgo foi
acusado de possuir livros proibidos de J.J. Rousseau e Voltaire. O padre João Marcos de
Abreu Camelo, comissário da Inquisição, por sua vez, desmereceu a denúncia,
julgando-a fruto das disputas existentes entre ambos os moços, movida pela paixão, que
pode ter levado um e outro a cometerem excessos. Além disso, assegurou que tais
excessos teriam se passado dentro do claustro, “sem respirar fora” (IANTT-IC: CP Nº
124 e 125, 1798-1802, p. 388v). Acrescentou, ademais, que “nem os Religiosos
assistentes no dito Convento são capazes de conservar dentro das suas partes sujeitos
que se oponham às verdades da nossa Religião, porque os tem com toda a cautela e,
para os obstarem-lhes, tiram uma Rigorosa Inquirição: eu me persuado que o delato terá
alguma lição das obras de Russeau e Voltaire, mas não usa das suas doutrinas, pelo
modo com que se porta e a todos é constante; tudo isto me informam pessoas de
timorata consciência e fidedignas [...]”(IANTT-IC: CP Nº 124 e 125, 1798-1802, p.
388v-9).
O terceiro conjunto de exemplos é dado por Raul Brandão, em seu livro El-Rei
Junot, de 1919. Reportando-se a medidas moralizadoras tomadas por D. Maria I, o autor
afirma que a mencionada soberana:
Não proíbe, nem pode, os escândalos nas grades dos conventos, cheias de
frades, de militares, de desembargadores, de poetas obscenos, que dedicam
sonetos às monjas: “À regente do recolhimento do Anjo, na cidade do Porto,
à mais endiabrada mulher que viram nossos tempos”; “A uma freira do Porto
com quem teve amores na sua mocidade”; “A outra endiabrada freira muito
conhecida pelas suas laboriosas proezas”; “A uma freira do convento de
Santa Clara, de Beja, por nome Euphrasia Margarida e ao seu caconço
namorado o capitão Freire Leite”, etc, etc (1919, p. 191).

Em 1797, José de Nossa Senhora dos Mártires, frade professo na Sagrada Ordem
dos Pregadores, morador no convento de S. Domingos, de Lisboa, denunciou à
Inquisição José Máximo, alferes do Regimento de Infantaria de Minas. Na cela do padre
frei Francisco do Rosário, diante do denunciante e de outros clérigos, José Máximo
disse várias proposições, pondo em xeque o mistério da Santíssima Trindade, a
encarnação de Jesus Cristo, a fornicação simples como pecado, a existência do Inferno,
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os princípios da religião revelada (para ele, só valeria a lei natural) e a confissão


auricular (IANTT-IL, CP Nº 133, 1792-1800, s/p). Se o denunciado não era um
conventual, sublinhe-se, suas proposições heréticas foram pronunciadas numa
instituição monástica e diante de clérigos.
Situação que envolveu apenas frades e que se revestiu de um caráter erudito,
desdobrando-se na elaboração de uma dissertação, foi denunciada em 1778 pelo frei
Francisco da Natividade, monge de S. Bento, doutor na Sagrada Teologia, examinador
sinodal, morador no Colégio de S. Bento, na Vila de Santarém. Segundo o denunciante,
o frei Joaquim de S. Tomás, religioso agostinho descalço, morador no Convento dos
Agostinhos, na mesma vila, esteve presente no Convento da Trindade, onde também ele
estava, quando se apresentaram algumas Conclusões, tendo ambos ficado em posições
opostas: o denunciante, contra, enquanto o denunciado colocou-se a favor. A
controvérsia entre ambos teve continuidade, num outro encontro, também ocorrido em
ambiente monástico, quando frei Joaquim de S. Tomás, com mais eloquência, defendeu
as seguintes proposições heréticas:
A fornicação simples não é contra a Lei Natural, antes foi lícita, ainda
mandada antigamente, conforme o Texto: Creciste et multiplicamini.
Os Patriarcas, que tiveram muitas mulheres, o fizeram assim por lhes ser
lícita a fornicação.
A fornicação somente foi proibida com as mulheres estrangeiras.
A fornicação somente é proibida pela má educação que se segue à prole, e
isto é o que quer dizer a proposição condenada de Inocencio 12 (IANTT-IL,
CP Nº 129, 1765-1775, p. 480).

O denunciado, percebe-se, para sustentar suas proposições, fez referências


implícitas a passagens do Velho e do Novo Testamento. O denunciante, por sua vez,
avaliando-o como um “ignorante religioso”, procurou demovê-lo dessas ideias
solicitando a alguns religiosos que tentassem convencê-lo do contrário, chamando-o “à
razão”. Percebendo-se fracassado nessa iniciativa, frei Francisco da Natividade, em
resposta à discussão e visando sustentar suas ortodoxas posições em defesa do sexo
unicamente no interior do matrimônio e para a reprodução da espécie, redigiu uma
dissertação teológica. Em seu texto, o denunciante tomou os vários textos da Bíblia
como pontos de partida, citando algumas de suas passagens em que se registram
proibições à fornicação, com destaque para o Decálogo, pelo qual se proíbem a
fornicação e, ademais, “todo o ato, todo o desejo e tudo o mais, que ofende a pureza,
ficando somente livre o que se ordena para a geração santificada pelo Matrimônio”
(IANTT-IL, CP Nº 129, 1765-1775, p. 481v-482). Obviamente, não se esquece dos
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dogmas da Igreja; ao mesmo tempo, faz referências às leis da natureza. Assim, afirma
que “a fornicação simples é contra a Lei Natural e [...] sempre foi ilícita e proibida por
sua natureza, antecedentemente a toda a Lei positiva, e isto prova a condenação de
Inocêncio 11 [(?)...], que a considerava sumamente má, por que proibida” (IANTT-IL,
CP Nº 129, 1765-1775, p. 480v). A finalidade procriativa do sexo implicaria que o
homem deveria arcar com o sustento da mulher e filhos e, por isso, a Lei natural
impunha o matrimônio, a união de um homem com uma só mulher, “dois em uma
Carne, e [que] não se dividisse com outras, comunicando-se carnalmente com elas”
(IANTT-IL, CP Nº 129, 1765-1775, p. 481). A conceituação utlizada por frei
Natividade vem de São Tomás, explicitamente mencionado e de quem se retiram as
seguintes categorias: de um lado, a lei eterna e, de outro, a lei natural, a lei divina (pelo
denunciante chamada “Lei da Graça”, que incorpora as prescrições feitas pela Igreja
Católica) e a lei positiva, ecos da primeira. Procurando compatibilizar o que dizem as
Escrituras, os dogmas da Igreja e as leis naturais, Natividade diz, ainda, que “as palavras
‘Crescite et multiplicamini’ e as autoridades confirmam o Consórcio entre o homem e a
mulher, em ordem à geração, para o que inclina a mesma Natureza, ainda no Estado da
inocência. As Leis humanas fizeram este Consórcio Contrato Civil, e, ultimamente, Leis
da Graça o santificaram como elevado por Jesus Cristo à razão de sacramento”
(IANTT-IL, CP Nº 129, 1765-1775, p. 481v).
No seu esforço de compatibilização, Natividade recorre a argumentos puramente
racionais – e não fundamentados na autoridade pura e simples – e histórico-culturais,
que teriam afetado até mesmo o juízo de Deus, além de justificarem determinadas
práticas dos homens. É certo que seus esforços trazem, aqui e acolá, contradições e
incoerências, que só são resolvidas com base na autoridade. Ao defrontar-se com os
casos de poligamia vistos no Antigo Testamento – que não se enquadram dentro do
modelo prescrito pela Igreja Católica –, o denunciante argumenta que eles só se deram
após o Dilúvio, para permitir a propagação da espécie e que eles seriam contrários à lei
natural. Porém, ao considerar a época em que se deram, julga que constituíriam
verdadeiros matrimônios. Arremata seu raciocínio afirmando que: “Deus, como Senhor,
pode dispensar o homem destas obrigações, pelos justos fins, que ele conhece, mudando
não tanto a Lei, mas sim a materia e o objeto de preceito; e compensando este tal, ou
qual dano, com outros bens, que intenta” (IANTT-IL, CP Nº 129, 1765-1775, p. 483). A
essa afirmação, soma considerações históricas, referentes aos costumes, afirmando que
alguns autores “entendem que, naquele tempo, era a poligamia autorizada pelo costume,
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e Deus a tolerava, talvez por não estar então claro que a monogamia era da instituição
do Matrimônio”. Além referências aos textos bíblicos e de Santo Agostinho e São
Tomás, padres da Igreja, na dissertação de Francisco da Natividade, veem-se menções
às determinações do Concílio de Trento, ao jusnaturalista Hugo Grocio e a Antoine
Augustin Calmet, teólogo, filósofo e comentador da Bíblia (IANTT-IL, CP Nº 129,
1765-1775, p. 483). Portanto, em torno da questão da fornicação e no interior de
conventos, os referidos clérigos desenvolveram uma discussão erudita e formal,
assentada em textos, controvérsia esta que saiu do domínio oral para chegar ao escrito,
uma vez que estimulou o denunciante a produzir uma dissertação. Malgrado toda a
roupagem intelectual da controvérsia que envolveu os dois clérigos, é impossível
dissociá-la dos debates populares travados sobre a fornicação simples, que, segundo
Ronaldo Vainfas, foi um dos temas mais debatidos no mundo luso-brasileiro da Época
Moderna, objeto de muitas discussões entre pessoas de diferentes origens sociais
(VAINFAS, 1989, p. 215-240). Os conventuais, desse modo, não estavam longe das
discussões mundanas, e vice-versa. São surpreendentes, porém, a iniciativa de
Natividade de compor e oferecer uma dissertação sobre o tema à Inquisição e,
sobretudo, o uso que faz de argumentos histórico-culturais na leitura da Bíblia e na
avaliação de temas morais, postura hoje em dia tão esquecida por cristãos
fundamentalistas.
Um penúltimo conjunto de situações envolve o frei Ricardo de Santa Coleta
Coelho. Censor do tribunal eclesiástico (ao que tudo indica, de Lisboa), e jubilado em
Teologia, tendo estudado e ensinado nos preparatórios “desta ciencia, no seu Colégio de
Coimbra e nos Conventos de Estremoz, Évora, Cascais e Xabregas”, além de ter
residido nos colégios de Alcoxeta, Messejana e outros”, aos 20 de março de 1800,
apresentou-se por escrito à Inquisição de Lisboa, confessando “liberdades sensuais”
cometidas com várias pessoas, de sexos diferentes (IANTT-IL, Processo No 5856, 1800-
1802, p. 15-15v). Declarou que, no convento da Encarnação, em Lisboa, com sua
confessante Dona Tereza Inácia de Lancastre, freira, teve várias “liberdades sensuais”.
Também com outra sua confessante, durante anos, ao que parece num convento, Dona
Antônia de Noronha, viúva de Antônio Laignez, tivera “algumas confianças, indignas
do Ministério sagrado”. No convento de Sacavem, ao confessar uma religiosa, Sóror
Ana Luduvina, no confessionário, mandou-lhe tocar as partes pudendas com cilício;
além disso, manteve com “esta Freira comunicação lasciva por cartas, que eram todas
Luxuriosas e torpes. Por três, até quatro vezes no ano [... quando] ia confessá-la”. Por
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fim, por muito tempo, confessou a “um moço, de 14 até 20 anos, chamado Domingos
José Alves da Costa”, algumas vezes açoitando-o na cela, dando-lhe em certas ocasiões
“abraço e ósculos na boca, de sorte que sentindo ele [Frei Santa Coleta] alguma
alteração não continuava” (IANTT-IL, Processo No. 5856, 1800-1802, p. 2)... Ao menos
em uma das situações luxuriosas protagonizadas por Santa Coleta, portanto, verificou-se
a circulação de escritos, no caso, manuscritos, trocados entre eles e uma de suas
parceiras.

Por fim, cito exemplos referentes ao Brasil, recolhidos de um dos vários estudos
de Luiz Mott, o maior pesquisador do mundo luso-brasileiro sobre a história das
práticas homoeróticas4. O cenário era o convento do Carmo do Rio de Janeiro, no século
XVII. Nele, em 1643, o frei Antônio Soares, sodomita contumaz, foi prior em 1643,
depois de ter sido preso em Lisboa, em 1630 e, então, degredado para o Brasil. Longe
de interromper suas práticas, no Rio de Janeiro, o frade continuou a desenvolvê-las,
sendo por isso denunciado e remetido para a Inquisição de Lisboa. No mesmo convento,
nos idos de 1686, Luiz Delgado, outro inveterado sodomita, buscou refúgio para si e
para seu amado, usando da imunidade que ali teria na qualidade de homiziado, de forma
a evitar uma detenção por oficiais de justiça, depois fugindo do Rio de Janeiro para o
Espírito Santo (MOTT, 2010, p. 135-6 e 168).

“Epístola à Marília ou Pavorosa Ilusão da Eternidade”:


o texto e sua circulação

Em 1797, ao tentar prender Manuel Maria Barbosa du Bocage, oficiais ligados à


Intendência Geral de Polícia acharam manuscritos de sua autoria julgados “ímpios e
sediciosos”, intitulados Epístola à Marília ou Pavorosa ilusão da Eternidade. Bocage,
então, vivia em Casa de um Cadete do Regimento de Primeira Armada, André da Ponte
Quental e Câmara, que foi preso. Tal papel “principia[va com:] ‘Pavorosa Ilusão da
Eternidade’ e acaba[va com] de ‘Oprimir seus iguais com o férreo Jugo’” (IANTT-IGP,
Livro 5, 1795-1799, p. 166v-167; BRAGA, 2005, p. 351). É um texto que bradava
contra a existência do Inferno, denunciando-o como crença enganosa das trevas que
atemorizaria os ignorantes, colocando-se contra a liberdade do homem e, inversamente,
pondo-se a serviço da política de opressão desenvolvida pelos déspotas e pelos
sacerdotes (denominados bonzos, sacerdotes orientais)5:

4
Dentre eles, destaco um artigo de grande erudição e enorme solidez teórico-conceitual: MOTT, 1988.
5
A ortografia, a pontuação e a acentuação do texto de Bocage foram mantidas conforme a edição de
12

Pavorosa illusão da eternidade,


Terror dos vivos, carcere dos mortos,
D'almas vãs sonho vão, chamado inferno;
Systema da politica oppressora,
Freio, que a mão dos déspotas, dos bonzos
Forjou para a boçal credulidade;
Dogma funesto, que o remorso arraigas
Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas;
Dogma funesto, detestavel crença
Que envenenas delicias innocentes,
Taes como aquellas que no céo se fingem.
Furias, cerastes, dragos, centimanos,
Perpetua escuridão, perpetua chamma;
Incompativeis producções do engano,
Do sempiterno horror terrivel quadro
(Só terrivel aos olhos da ignorancia) – BOCAGE, 1837, p. 2.

Contesta a ideia de um Deus vingativo e opressor, que condenaria os prazeres


carnais, propugnada pelo judaísmo e cristianismo, defendendo, pelo contrário, o direto
do homem ao prazer, às “venais delícias”, ao mesmo tempo em que classifica Moisés
como impostor, base sobre a qual se instituiria o “império dos tiranos”.

Involto em nuvens, em trovões, em raios,


D'Israel o tyranno omnipotente
Lá brama do Sinai, lá treme a terra.
O torvo executor dos seus decretos,
Hypocrita feroz, Moysés astuto
Ouve o terrivel Deus, que assim troveja
[...] Ah! barbaro impostor, monstro sedento
De crimes, de ais, de lagrimas, d'estragos,
Serêna o phrenesi, reprime as garras,
E a torrente de horrores que derramas
Para fundar o imperio dos tyrannos,
Para deixar-lhe o feio e duro exemplo
D'opprimir seus iguaes com ferreo jugo (BOCAGE, 1837, p. 3-4).

E, dirigindo-se à pessoa poética de sua musa, Marília, convida-a a escutar o


coração, tendo por ministro o “amor” e como “templo”, a terra, esta sim, o “templo do
Eterno”, desafogando os desejos:
A bem da tyrannia está o inferno:
Esse que pintam bárathro de angustias
Sería o galardão, sería o fructo
Das suas vexações, dos seus embustes,
E não pena de amor, se inferno houvesse.
Escuta o coração, Marilia bella,
Escuta o coração, que te não mente [...].

Seja ministro amor, a terra o templo,


1837.
13

Pois que o templo do Eterno he toda a terra.


Entrega-te depois aos teus transportes,
Os oppressos desejos desaffoga,
Mata o pejo importuno; incita, incita (BOCAGE, 1837, p. 5) - grifos meus

Amar, enfim, seria um dever, não um crime, neste mundo em que inexistiriam
céu e inferno, nem prêmios nem castigos. Logo, nem virtude nem vícios teriam outros
prêmios ou outros castigos senão eles próprios:

Amar he um dever além de um gosto;


Uma necessidade, não um crime
Qual a impostura horrisona pregoa.
Ceos não existem, não existe inferno.
O premio da virtude he a virtude;
He castigo do vicio o proprio vicio (BOCAGE, 1837, p. 5).

Trata-se, portanto, de um texto poético triplamente libertino, pois atacava, ao


mesmo tempo, a religião, a moral e a ordem política, defendendo o direito do homem de
viver as paixões e combatendo as opressões religiosas e políticas. Bocage foi capturado
pouco depois da apreensão deste seu texto, ainda em 1797, quando tentava embarcar
para a Bahia (IANTT-IGP, Livro 5, 1795-1799, p. 166v-167). Segundo avaliação da
Inquisição, o poema “se esforça a iludir [sic] o Dogma das Penas eternas, e o castigo
dos malvados e impenitentes” (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p.
182). Paulo Gomes Leite, reproduzindo avaliação de Teófilo Braga, considera que o
poema é “‘uma manifestação do filosofismo criticista da geração da Enciclopédia’”
(LEITE, 2007, p. 148; BRAGA, 2005, p. 352).
Esse texto de Bocage foi mencionado em denúncia encaminhada à Inquisição
pelo cônego João Luiz Saião, contumaz delator que vivia em Mariana, capitania de
Minas Gerais, em 1807. Saião “sabia da grande penetração de livros proibidos no
Palácio do Governador Pedro Maria, em Vila Rica, de tal modo que até um criado deste,
Joaquim José de Oliveira, tinha um texto considerado ímpio. Saião viu-o com um
famoso poema de Bocage, a ‘Pavorosa ilusão da Eternidade’”. O informante de Saião, o
padre João Caetano Martins, que morava no Palácio, avaliou que os versos de Bocage
eram “‘cheios de impiedade’”. O próprio Saião registrou que, tão logo “viu o primeiro
verso, tirou os olhos dos outros...” (LEITE, 2007, p. 148). E, pondo o colega clérigo em
má situação, afirmou que o padre Martins só poderia ter concluído que os versos eram
ímpios porque os tinha lido. Dessas manifestações de uma verdadeira cultura da delação
e da intriga, guardem-se apenas duas informações: primeiramente, que o escrito de
14

Bocage chegou a Minas, circulando no Palácio do Capitão General da Capitania; e, em


segundo lugar, que, dentre seus leitores, figuraram clérigos, no plural (mesmo que Saião
só tenha lido os primeiros versos).
Além de chegar ao Brasil, o texto circulou em Portugal: em Lisboa, em 1798 e
em 1802-3 (IANTT-IL: CP nº 133, 1792-1800, p. 20; IANTT-IL: Processo 11980,
Caixa 1461, 1802-1805); Lamego, em 1798 (IANTT-IC: CP nº. 123, 1775-1799, p. 88-
89); na região de Bragança, em 1801 (IANTT-IC: CP nº 125,1798-1802, p. 32); e em
localidade indefinida do interior de Portugal, em 1805 (IANTT-IL: Processo 17160,
Maço 1139, Caixa 1641, 1805). Seus leitores eram maçons, militares e padres, que, na
maioria dos casos, o apropriaram para legitimar o usufruto dos prazeres carnais e/ou
negar a religião católica e a monarquia absoluta. Há indicações, ainda, que alguns
leitores fizeram reproduções manuscritas do poema (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa
1461, 1802-1805).
Em 1798, o já citado André da Ponte Quental e Câmara – natural de Ponta
Delgada, Ilha de S. Miguel, com praça no primeiro Regimento da Armada, em cuja casa
Bocage morou e onde, em 1797, conforme já citado, foi apreendido o manuscrito de sua
autoria aqui em análise – apresentou-se à Inquisição, dizendo ter possuído e lido os
seguintes livros: Cartas Judaicas, ou correspondência filosófica entre judeus, do
Marques d’Argens; o Diabo Coxo, sátira escrita pelo Monsieur Alan René le Sage e que
esteve proibido durante certo tempo pela censura lusitana; Parnaso libertino e “uma
carta del Rei da Prússia, passada a versos portugueses, e [que] começa ‘Pavorosa ilusão
da eternidade’ [...], que contém alguns destes ridículos e fúteis princípios de
Materialismo e ataca [...] alguns dogmas” católicos (IANTT-IL: CP nº 133, 1792-1800,
p. 20). Da apresentação de André Quental, deduz-se que ele via uma conexão entre o
texto, em verso e em língua portuguesa, que começa com “Pavorosa ilusão da
eternidade” – certamente o de Bocage, aqui focalizado – e uma carta de Frederico II, rei
prussiano. Se não é possível assegurá-lo, pode-se ao menos tomar tal afirmação como
indício de que, também aos olhos dos contemporâneos, ideias similares circulavam em
distintos objetos e contextos culturais, passando da prosa à poesia, de uma língua
estrangeira ao português. Pode-se, ademais, estabelecer correlação entre as proposições
do poema de Bocage e um escrito poético de José Anastácio da Cunha, produzido como
glosa a um escrito de D. Joana Isabel Forjaz, em que se veem criticas e princípios
similares, com a única diferença de não se fazer um ataque frontal à crença no Inferno
(FERRO, 1987, p. 77-8 e 192).
15

Aos 30 de janeiro de 1803, o pescador Francisco Lobato apresentou denúncia


contra o espanhol Francisco de Assis Brun, então residente em Lisboa, ao Juízo do
Crime do Bairro da Ribeira, acusando-o de ser “um Homem Revoltoso”, acostumado a
afrontar pessoas sem causa, inclusive seus companheiros, ameaçando-os com “mortes, a
punhaladas, a tiro” (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 3). Ele
falava “com insolência e desaforo sobre o governo destes Reinos [de Portugal] e
Pessoas encarregadas dele, arrogando-se à soberba de julgar e decidir das suas ações”
(IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 3). Em matéria de religião, ele
era muito pouco correto, usando “expressões malsoantes e escandalosas, e comendo,
sem escrúpulo algum e sem precisão, carne nos dias de jejuns” (IANTT-IL: Processo
11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 3v). Iniciaram-se, então, interrogatórios de várias
testemunhas, dentre elas o frei Vicente do Coração de Jesus, religioso leigo do
Convento da Carreira dos Cavalos, ouvido em março de 1803 e segundo o qual Brun
falava “Blasfêmias contra a fé”, dizendo que “era melhor viver amancebado toda a vida
do que casado uma hora e que” se permitia “comer e beber tudo quanto o corpo
apetecia, sem respeito a preceito algum da Igreja” (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa
1461, 1802-1805p. 16). De acordo com o depoente José Dias, oficial da administração
da Siza do Pescado, Brun dissera que “a Pessoa do Príncipe Regente Nosso Senhor [D.
João] era um nome que a modéstia deve calar, que não sabia governar e só Bonaparte
nascera para governar o Mundo. Que o Estado não tinha presistência [sic] e, como mal
regido, iria pelo ar; semelhantemente, ele negava a pureza da Conceição de Nossa
Senhora” (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 17v-18).
Aos 11 de março de 1803, o próprio Brum admitiu ser maçom fazia trinta antos,
sendo introduzido na maçonaria por um espanhol chamado Dom João Arengo, vindo
depois a travar contatos com outros maçons emigrados franceses, os quais lhe “deram
Catecismos, Aventais e livros”, que lhe foram apreendidos pela Justiça, juntamente com
Dinheiro e várias peças de ouro e prata (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-
1805, p. 20v-21). Declarou que nunca usara a ordem dos “Pedreiros livres em Portugal
nem mesmo aqui entrara em loja alguma ou delas sabia, pois só recebera os Catecismos
em até o quarto grau, da mão do francês Pernolé” (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa
1461, 1802-1805p. 25v). Brun reconheceu, portanto, que era maçom, falando do
catecismo dos pedreiros-livres e de objetos ligados à maçonaria. Ele, porém, atribuiu a
outros as culpas de que era acusado (falar mal do Príncipe e sonhar com os franceses),
imputando-lhes também a posse de livros franceses, dentre eles um de autoria de
16

Rousseau. Em sua fala, veem-se aspectos que demonstram a constituição de uma esfera
pública de poder em Lisboa: ambientes (tais como as lojas de bebidas, os cafés e o Cais
do Sodré) e impressos (livros franceses, dentre eles o de Voltaire), frequentados e
usados por pessoas, ao expressarem posicionamentos políticos contra a monarquia.
José Joaquim Coucieiro – que, na cadeia, “fez a Deligência de encontrar-se”
com Brun, “familiarmente, a fim de extorquir-lhe os seus sentimentos e quem eram os
sócios necessários dos seus Delitos” –, por sua vez, aos 11 de março de 1803, revelou
que o supracitado maçom lhe contara que, dentre os Catecismos que lhe foram
apreendidos, havia um que “dizia que só era devida obediência aos Reis e ao Pastor da
Igreja enquanto eles governassem virtuosamente”, dizendo possuir, ainda, as seguintes
obras: “Questões de Zapata, uma Epístola de Manoel Maria Bocage” (IANTT-IL:
Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 31v-38v). Ele seguiria como juramento:
“em matar, ou deixar morrer” (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p.
38). Na verdade, na apreensão que lhe fora feita de seus bens, figuravam também outros
títulos: “Caderno manuscrito, em oitavo, em vinte e três laudas, em que se compreende
um Catecismo com várias perguntas e Respostas”; “Caderno que tem por título
‘Passagens de Cadeira ao Real Arco’, escrito em dez folhas de oitavo”; Catecismo do
terceiro grau; “um Livro em oitavo, com capa de Pergaminho, impresso em Língua
Espanhola, que tem por Título ‘Sentinela contra Franc-Masones’, traduzido do Italiano
por Frei José Torribia, impresso em Madrid no ano de mil setecentos e noventa e três”;
“um Caderno de quarto em que se acham manuscritas algumas poesias e, entre elas, a
Epístola intitulada ‘Verdades duras’, de Manoel Maria Barbosa de Bocage, que
principia ‘Pavorosa ilusão da Eternidade’ ”, caderno este com vinte e três folhas 6; e
“Mais outro Caderno [...], no qual se acham escritas duas quadras glosadas,
principiando a primeira no verso ‘Santas Leis da natureza” (IANTT-IL: Processo
11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 52-52v).
Em meados de 1803, Brun já fora transferido para a jurisdição da Inquisição.
Diante deste Tribunal, ao discorrer sobre sua Genealogia, declarou, dentre outras coisas,
ser batizado, filho de pais castelhanos, vivendo fazia 25 anos em Portugal, informando
ainda ter estudado “os princípios da Gramática Latina em Barcelona, [e] que não tinha
lido livros proibidos, nem papéis sediciosos e heréticos”, no que claramente mentia
(IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 132). Em julho de 1803, em

6
O texto do manuscrito de Bocage, encontrado em seu poder, tem poucas diferenças em relação
ao texto editado em Londres, em 1837, utilizado neste trabalho.
17

depoimento à Inquisição, Manoel Dias contou que Brum defendeu a proposição “que
Maria Santíssima Nossa Senhora era uma prostituta e que não podia conceber sem
varão”, (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 164). Já o Frei Antônio
de Jesus Maria José revelou que Brum, ao falar contra a pureza de Maria, disse “que na
sua Conceição não houvera diferença alguma da do resto do gênero humano, e que ela
tinha sentido as mesmas sensações a este respeito que outra qualquer mulher, e que
igualmente bla[s]femava contra os Santos” (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461,
1802-1805, p. 169). A Inquisição, em setembro de 1803, condenou Brun à Abjuração de
vehemente (IANTT-IL: Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805, p. 195). Enfim,
considerando as proposições defendidas e o envolvimento de Brun com a maçonaria,
conclui-se que havia grande congruência entre ele e Bocage, também um maçom; além
disso, fica claro que eles comungavam de princípios comuns, opondo-se à monarquia, à
religião e à moral vigentes.
Em 1801, Bento de Andrade Menezes, da Vila da Barca, encaminhou ao abade
João Marzir de Abreu Carello denúncia contra alguns militares que se encontravam em
regimentos no norte de Portugal: José Pedro, da Companhia de Felipe de Souza
Canabarro, e José Pinto, cadete da Companhia de Castro, ambos do Regimento dos
Dragões de Chaves; e Luís Vas, Tenente da Cavalaria de Bragança, então agregado ao
Regimento de Chaves. Segundo o denunciante, ele vira nas mãos dos primeiros
denunciados, quando estavam juntos na Companhia, em Chaves, “A Carta de José
Maria de Bocage, que principiava ‘Pavorosa Ilusão de Eternidade’, herética em todo o
seu contexto”. O denunciante falou ao abade que não supunha que eles abraçassem as
doutrinas dela, só, sim, admiravam o bom estilo do verso. Três anos antes, o
denunciante vira “a mesma Carta na mão de Luís Vas, Tenente da Cavalaria de
Bragança”, então agregado ao Regimento de Chaves, e também também não supunha
“que este aprov[ass]e a dita Doutrina” (IANTT-IC: CP nº. 123, 1775-1799, p. 32).
Conclui-se, portanto, que o poema de Bocage circulou entre militares, em localidades
distintas, ao norte de Portugal, aliás, meio e região que a época se notabilizaram pela
presença de livros proibidos. Coloca-se em dúvida, além disso, que todos os leitores
necessariamente louvassem os princípios contidos no texto de Bocage, uma vez que,
segundo o denunciante, os denunciados o apreciavam não pelas doutrinas que trazia,
mas pelo estilo dos versos. Esse caso indica como as obras (no caso, de belas letras,
mais precisamente poesia) poderiam ser lidas e avaliadas pelos leitores: ou melhor,
18

evidencia uma possibilidade de leitura das mesmas, dentre várias, uma leitura que
valorizava o estilo.
Por fim, há um último indício de circulação: conforme denúncia de João Paes de
Lima contra várias pessoas de Coimbra, datada de 1805, o bacharel legista José Bento
Duarte tinha em mãos um texto que começava com “Pavorosa Ilusão da Eternidade”
(IANTT-IL: Processo 17160, Maço 1139, Caixa 1641, 1805). O denunciante,
infelizmente, não dá nenhuma informação sobre o modo como o texto era lido e
apropriado.

O poema de Bocage: da leitura ao homoerotismo,


à heresia e a crimes de sangue em mosteiros portugueses

Aos 03 de maio de 1799, o frei João de Sá Coutinho, monge de S. Bernardo no


mosteiro de Salzedas, apresentou ao Abade Salvador Borges de Brito, ao que tudo
indica, comissário do Santo Ofício, uma grave denúncia, que envolvia monges e
autoridades superiores do Mosteiro de S. João de Tarouca, em Lamego (IANTT-IC, CP
Nº 123, 1775-1799, p. 88-90): os freis Rodrigo de Souza, do Douro, sobrinho de um
cônego de Lamego e Paulo de Serpa, natural de Torres Novas, e, implicitamente, como
cúmplices, o padre mestre frei Manoel de Souza Ramalho e o frei Antônio de
Vasconcelos, prelado do mosteiro. Os crimes combinavam sodomia, leitura de livros
proibidos e proposições heréticas (sobre a vida após a morte e sobre Moisés). O Poema
de Bocage, “Epístola à Marília ou Pavorosa Ilusão da Eternidade”, figurava como fonte
para as heresias e licenciosidades.
Segundo Sá Coutinho, ele, por ordem do prelado maior, passara a ser morador
do Mosteiro de S. João de Tarouca pouco distante do Mosteiro de Salzedas, em 1º de
Dezembro de 1798. Ali, ele encontrou e conheceu os dois religiosos, que eram o centro
de sua denúncia. A ele foi destinado um cubículo vizinho do de um deles. O
denunciante se auto-apresentava como “de um gênio e temperamento fácil, em não
desgostar alguém”; os referidos religiosos eram seus companheiros no coro. Por isso,
patenteou-lhes francamente a porta do seu cubículo, “para entrarem e saírem cada vez e
hora que lhes parecesse”. E eles, da mesma sorte, lhe permitiram entrar “em os seus
cubículos”. Acrescentava que, “por causa da Suma Relaxação do Silêncio naquela
Casa”, os três se frequentavam muito, de sorte que estiveram “muito unidos, coisa de
dois meses, com admiração de muitos dos circunstantes”. O “inocente” fradezinho,
19

portanto, tornou-se íntimo de outros dois monges, unindo-se aos mesmos, o que era
facilitado pelo fato das regras da instituição não serem seguidas à risca. Essa intimidade
e intensa convivência, que durou dois meses, geravam certa admiração nos demais
monges, o que me permite conjecturar que: a fama dos dois monges seria ruim e a
intimidade e convivência dos três seriam demasiadas, mesmo sob o clima de relaxação
em que ali se vivia.
Outra revelação feita pelo denunciante é bastante surpreendente: durante o
tempo em que compartilhou da intensa proximidade com os outros dois monges, ele
nunca pôde perceber “sinal algum de Católicos em ambos”, mais especialmente no frei
Rodrigo de Souza. Este último teria caído “em gravíssimos pecados perante” o
denunciante, ao que se somavam dois fatos: ele não se confessava e, mais ainda, sem
escrúpulo nenhum, comungava. O denunciante veio a saber, depois, em Salzedas, que o
mesmo denunciado fizera coisas similares em outro convento por onde ele tinha passado
anteriormente. Acrescentou, ademais, que ambos os frades, nas “Palestras, tanto de um
como do outro, não [se] respirava[m] senão impurezas contra a Castidade e Roubos”
feitos ao mosteiro. O denunciante diz tê-los advertidos sobre tais erros. Demonstrando
não ter limites em suas libertinagens, os frades, diante do denunciante, “não acautelaram
as suas fornicações”, permitindo-lhe “conhecer perfeitamente que andavam
amancebados um com o outro”. Segundo as próprias palavras do denunciante: “eu,
muitas vezes, os encontrei, ambos na mesma cama e, mostrando-me as partes, que eu
me envergonho de nomear, me convidavam para que eu os imitasse” (IANTT-IC, CP Nº
123, 1775-1799, p. 88). As práticas sexuais homoeróticas eram acompanhadas pela
leitura de textos poéticos – dentre eles o poema de Bocage, chegado fazia pouco tempo,
em manuscrito – e por proposições heréticas, como a de que Bíblia era uma fábula,
proposição tão recorrente, e outra, de acordo com a qual Moisés fora um impostor e
tirano. O denunciante, conforme suas próprias palavras, notou:
mais que sabiam de Memória uma imensidade de Sonetos, décimas e Cantigas
Luxuriosíssimos e heréticos, traduzindo como fábula toda a doutrina Cristã; [...]
que eles tinham um Cartapácio, por Letra de Mão, que lhes tinha vindo há pouco,
não sei de donde e, diante de mim, o leram e andavam estudando de cor, no qual
chamavam a Moisés impostor e autor do império dos tiranos, e chamando
Pavorosa ilusão à Eternidade e dizendo que nada mais havia que nascer e morrer;
ao padre frei Rodrigo Vaz, ainda, ouviu de uma ocasião Repetir algumas destas
heresias de cor. Repreendeu um [deles], porém isso pouco aproveitou (IANTT-IC,
CP Nº 123, 1775-1799, p. 88v).
20

Portanto, os amasiados conseguiram fazer com que entrasse no convento o


manuscrito de Bocage e, mais ainda, memorizaram-no, realizando, deduz-se, uma
leitura intensiva do mesmo texto. O poema, tudo indica, subsidiava-os na defesa de
proposições heréticas contra Moisés, tomado como impostor e tirano, representação
veiculada no referido texto e advogada, em termos similares, por outros libertinos à
época – como D. André de Morais Sarmento (IANTT-IC: CP Nº 125, 1798-1802, p.
110) – e que dava ao personagem da história sagrada uma conotação também política,
além de dessacralizá-lo. Com base no poema, eles punham em dúvida a vida após a
morte, fazendo fé num materialismo cru, espantoso quando se considera que se tratava
de dois religiosos. Essa certeza os deixava livres para experimentar os prazeres carnais:
não havendo vida após a morte, nem prêmios nem castigos eternos, cumpria liberar os
desejos e fruir os prazeres. Não havia profissão maior de libertinagem do que a que
protagonizavam: liberdade de espírito, afronta aos princípios religiosos e às verdades
bíblicas e, por fim, livre gozo dos prazeres!
Diante dessa situação, frei João de Sá Coutinho Coutinho, o denunciante,
recorreu ao Prelado Maior do Mosteiro “para sair dali sem dizer pelo que” o fazia: ou
seja, queria se retirar do mosteiro. Ao mesmo tempo, ele procurou o frei Manoel de
Souza Ramalho, padre mestre jubilado daquela instituição, pelo qual tinha “grande
veneração e respeito, tanto pelas virtudes como ainda pelas Letras”, considerando-o “o
mais inteligente do Mosteiro”. Ao referido professor, “debaixo de todo o segredo”,
revelou tudo o que sabia, para que se tomassem as “providências necessárias”, pedindo-
lhe “um Sumo segredo”. Mal chegou a contar ao mestre o que presenciara, os
denunciados começaram a ficar desconfiados. Nenhuma providência teria sido tomada
para apanhá-los. Não podendo se persuadir se o padre mestre tinha-lhes revelado o que
confidenciara, frei João de Sá continuou “a instar que fizesse com o Prelado da Casa as
diligências”, enquanto os dois delatados ficavam “cada vez mais enfurecidos contra”
ele. Por essa razão, frei João suspeitava que o padre mestre Souza fosse cúmplice dos
fradezinhos, tendo a mesma suspeição em relação ao “Prelado Frei Antônio de
Vasconcelos, pois a ele” chegara a falar, sem que nada fosse feito. Os freis Rodrigo de
Souza e Paulo de Serpa, segundo o denunciante, percebendo que não o atraíriam para o
“partido” e “sistema” deles, “mas, muito pelo contrário, que já se ia sabendo pelo
prelado e o Padre Manoel Souza” do seu zelo (IANTT-IC, CP Nº 123, 1775-1799, p.
88v), tentaram achá-lo “num lugar oculto”, para o mandarem “para a eternidade”,
durante a Semana Santa de 1798. Tentaram, por três vezes, sem sucesso, surpreendê-lo
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para o matarem, até que, numa quarta tentativa, à noite, depois do ofício divino, perto
do refeitório, o denunciante não conseguiu fugir deles, logrando apenas escapar de uma
facada. Frei João de Sá, em seguida, foi ao encontro de um seu condiscípulo, o frei
Rodrigo Vaz. Ambos, então, deram parte do ocorrido ao prelado, frei Antônio de
Vasconcelos. Novamente nada foi feito. O denunciante continuou a rogar ao prelado
para lhe permitisse retirar-se para Salzedas, expondo-lhe o que poderia acontecer se
permanecesse no Mosteiro de São João da Tarouca. O prelado negou-se a dar-lhe sua
autorização. Diante disso, o denunciante procurou o subterfúgio de estar sempre em
companhia de algum outro condiscípulo, até que, “na sexta-feira santa, ao entrar para o
Refeitório, o Frei Paulo” o alcançou. Então, frei João viu-se obrigado a afastá-lo com
um prego e, só depois, conseguiu mudar-se para Salzedas (IANTT-IC, CP Nº 123,
1775-1799, p. 88v).
Já em Salzedas, frei João começou a desconfiar que o padre mestre Manoel e o
Prelado Antônio fossem cúmplices dos dois frades libertinos. Na sua avaliação, o certo
é que ambos, padre mestre e prelado,
deixaram morrer o D. Abade daquele Mosteiro [de S. João da Tarouca] na
quaresma, sem sacramentos, depois de desenganado pelos dois Médicos de
Lamego, [chamados] o Santos e o Cardoso e, depois de uma intimidade dilatada e
sendo estes dois os que com mais particularidade lhe assistiam – um, o Souza,
como grande amigo, o outro, como Prelado imediato –; quando o ungiram e
absolveram, [o D. Abade] já estava sem sentidos, tendo tido nas vésperas muito
tempo [para impedir a sua morte] (IANTT-IC, CP Nº 123, 1775-1799, p. 89).

Avaliando todo o caso, o abade Salvador Borges de Brito, provavelmente


Comissário do Santo Ofício, em correspondência dirigida à Inquisição de Coimbra
datada de 15 de Maio de 1799, por sua vez, manifestou descrédito em relação ao
denunciante. Declarou que não fazia dele “o melhor conceito, pela razão de ter ouvido
dizer que ele, em um convento da própria ordem, que tem para as partes de Lamego, tais
dúvidas teve com outros companheiros na Semana Santa pretérita, de sorte que fez
causar efusão de sangue” – grifos meus (IANTT-IC, CP Nº 123, 1775-1799, p. 89). Ou
seja, saído do Mosteiro de S. João da Tarouca, já em Salzedas, o frei João ou continuou
em suas obsessões contra a libertinagem, ou observou novas experiências homoeróticas
entre condiscípulos seus, situação em que se chegou a um homicídio, ou a uma tentativa
de assassinato.
Considerando-se todo o conteúdo da denúncia, primeiramente, por todos os
detalhes que ela traz, conclui-se que os personagens, textos, feitos e proposições ali
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descritos dificilmente seriam meros frutos da imaginação de um clérigo obcecado.


Exageros, talvez, tenham sido cometidos. Mas não é crível que frei João inventasse
todos os detalhes que expôs. Ainda que ele tenha fantasiado parte do que relatou, sua
denúncia evidencia que o texto de Bocage circulou entre eclesiásticos regulares, que
legitimou e/ou estimulou, ao lado de outros textos, práticas eróticas e proposições
heréticas. Não me parece ser uma leviandade concluir que o Mosteiro de São João de
Tarouca estava à altura do mosteiro ficcional retratado em Saturnino, o porteiro dos
cartuchos, romance libertino do século XVIII já citado, e também daquele que se vê em
O Nome da Rosa, de Umberto Eco, romance do século XX. A combinação de sodomia,
heresia e homicídios, tudo isso protagonizado por dois conventuais, com a cumplicidade
do prelado e de um professor do mosteiro, em Portugal de fim dos Setecentos, converge
com a representação romanesca francesa coeva. A morte do abade e o outro crime de
sangue relatado constituem um epílogo presumível para todo o enredo, convergindo
também com o que se observa em romances libertinos.
O denunciante demorou dois meses para perceber que Rodrigo e Paulo eram
licenciosos. Isso me permite conjecturar que ele era mais do que um pacóvio: sua
perturbação talvez se originasse no fato de ele não ser insensível àqueles amores
homoeróticos e àquelas proposições, que, por certo, lhe inspiravam reações
contraditórias. O fato de ter vivido problemas semelhantes em outro convento sugere
possibilidades de interpretação distintas, mas não excludentes: primeiramente, que ele
era doido; em segundo lugar, que tinha gente graúda implicada nas licenciosidades;
e/ou, por fim, que no outro convento, práticas semelhantes eram encontradas e que frei
João não era apenas um objeto de erotismo alheio, tendo, sim, alguma atividade erótica
que fosse além de um voyeurismo culpado, o que não é de se estranhar.

Conclusões

Neste texto, parti de O Crime do Padre Amaro, um clássico da literatura


portuguesa, onde encontrei referências à presença de escritos de Bocage, em um
seminário, em Portugal de meados do século XIX.
Em seguida, procurei mostrar que, nos romances libertinos franceses do século
XVIII, havia a representação segundo a qual os conventos, seminários etc. eram espaços
de vivências sexuais, homo e heteroeróticas, e que, em tais instituições, havia a
circulação e leitura de textos, impressos e manuscritos proibidos. Essa representação,
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por sua vez, encontrava eco na realidade do mundo luso-brasileiro, onde instituições
congêneres figuraram como cenários de discussões sobre a fornicação, quando não de
experiências sexuais.
Evidenciei, além disso, que, para as autoridades portuguesas, não apenas os
romances franceses libertinos, clandestinos no período, conduziam à concupiscência,
mas também textos religiosos de circulação mais ampla e consentida pela censura.
O próprio poema de Bocage, por seu turno, segundo pessoa que privou de
convivência com o autor, seria uma espécie de apropriação poética em língua
portuguesa, de um texto escrito em prosa por Frederico II, rei da Prússia. O poema,
ademais, guarda grandes afinidades com outros de sua época, dentre eles um escrito de
José Anastácio da Cunha, lente da Universidade de Coimbra perseguido pela Inquisição
em 1778. Esses elementos mostram a intensa circulação que então se verificava das
ideias, transitando por imagens, textos impressos e manuscritos, em línguas, suportes e
gêneros distintos, atingindo o domínio da oralidade.
A circulação do poema de Bocage, ao mesmo tempo, embora fosse ele um
manuscrito e, mais ainda, visado pelas autoridades portuguesas, deu-se nos dois lados
do Atlântico, indo de Portugal ao interior do Brasil, mais precisamente a Minas Gerais.
Seus leitores, por fim, dentre os quais se destacavam padres e militares, usaram-no de
modos diferenciados: alugns, para fins mais ou menos contestatórios da ordem
estabelecida, enquanto outros somente porque apreciavam seu estilo. Dentre os que o
utilizaram como instrumento de contestação, destacaram-se dois frades sodomitas, que
misturaram a leitura à fruição dos prazeres carnais, levando ao paroxismo a própria tese
defendida no texto: ao refutarem as ideias de virtude e de vício e entregarem-se à
luxúria, até mesmo para se saciarem, ao que parece, não hesitaram em envolver-se em
ameaças de morte, talvez em assassinatos.
Nesse sentido, esses leitores, com suas condutas, talvez tenham endossado a tese
defendida em Tereza Filósofa, do Marquês d’Argens, aquela segundo a qual apenas a
alguns poucos poderia difundir-se a descrença no Inferno, posto que, sem este freio, os
homens, em sua maioria, não teriam limites e, por conseguinte, fariam o mal a seus
semelhantes.
A tese de que a religião constituiria um freio, por sua vez, apareceria em O
Crime do Padre Amaro, romance português aqui citado, de 1875. Na mesma obra,
ademais, também se vê a compreensão de que textos religiosos poderiam conter a
“linguagem da luxúria” – quase do mesmo modo como acusavam os censores lusitanos
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da segunda metade do século XVIII –, sendo um deles usado por Amaro para estimular
o desejo em Amélia (1889/2010, posições 561 e 1287). Nesse cruzamento de tempos, de
ficções e realidades, de textos distintos em sua materialidade (manuscritos e impressos)
e gêneros, enfim, percebe-se a persistência de representações e práticas referentes ao
sexo, às leituras e ao mundo eclesiástico – ainda que não tenha sido objeto de análise
neste trabalho, essa permanência deve ser sublinhada, tendo em vista estudos futuros.

Fontes primárias:

Manuscritos:

Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT)


IANTT-IC: Inquisição de Coimbra, Caderno do Promotor nº 125,1798-1802.
IANTT-IC: Inquisição de Coimbra, Caderno do Promotor nº. 123, 1775-1799.
IANTT-IC-CP: Inquisição de Coimbra, Caderno do Promotor Nº123, 1775-1799.
IANTT-IC-CP: Inquisição de Coimbra, Cadernos do Promotor Nº 124 (1784-1802), Livro 416
IANTT-IC-CP: Inquisição de Coimbra, Cadernos do Promotor Nº 125 (1798-1802), Livro 417.
IANTT-IGP: Intendência Geral de Polícia, Livro 4, 1793-1795.
IANTT-IGP: Intendência Geral de Polícia, Livro 5, , 1795-1799.
IANTT-IL, CP: Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor Nº 129, 1765-1775.
IANTT-IL: Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor nº 133, 1792-1800.
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IANTT-IL: Inquisição de Lisboa,Processo 11980, Caixa 1461, 1802-1805.
IANTT-IL: Inquisição de Coimbra, Cadernos do Promotor No. 125, Livro 417 (1798-1802).
IANTT-IL: Inquisição de Lisboa, Processo 6192, 1757-58.
IANTT-IL: Inquisição de Lisboa, Processo n. 9275, 1803.
IANTT-Il: Inquisição de Lisboa, Processo Nº 5856 (1800-1802), Frei Ricardo de Santa Coleta
Coelho.
IANTT-IL-CP: Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor Nº 133, 1792-1800.
IANTT-RMC: Real Mesa Censória/ Real Mesa da Comissão Geral/ Desembargo do Paço,
Censuras, Caixa 5, 1769, Parecer Nº 120.

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em: http://beq.ebooksgratuits.com/libertinage/DArgens_Therese_philosophe.pdf].
[BOYER, Jean-Baptiste de, Marquis d´Argens]. Tereza Filósofa ou memórias. trad. de Carlota
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LATOUCHE, Jean-Charles Gervaise de. Histoire de Dom B..., portier des Chartreux, écrite par
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Resumo: O objetivo desta comunicação é discutir as relações entre leitura e práticas sexuais, em
Portugal e no Brasil, ao final do Antigo Regime, passagem do século XVIII para o século XIX,
sobretudo no interior dos conventos, com destaque para as relações homoeróticas travadas entre
dois frades lusitanos, sob a inspiração de um texto poético libertino de Manuel Maria Barbosa
du Bocage, “Epístola à Marília ou Pavorosa Ilusão da Eternidade”, que circulava à época
clandestinamente em manuscrito.
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Resumé: L’objectif de ce texte est analyzer les rapports entre lecture et les practiques sexuelles
au Portugal et au Brésil à la fin de l’Ancien Régime, surtout dans les monastères, en soulignant
les liaisons érotiques homosexuelles établies entre deux frères portugaises, sous l’inspiration de
un poème libertin écrit par Manuel Maria Barbosa du Bocage, “Lettre à Marília ou Terrible
Illusion de l’Eternité”, qui circulait clandestinement en manuscrite à cette époque.

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