Você está na página 1de 4

Revista Estudos Feministas

ISSN: 0104-026X
ref@cfh.ufsc.br
Universidade Federal de Santa Catarina
Brasil

Leite Moreira, Miriam Lifchitz


Reseña de "A Parisian in Brazil. The Travel Account of a Frenchwoman in Nineteenth-Century. Rio de
Janeiro" y "Uma parisiense no Brasil" de Adèle Toussaint-Samson
Revista Estudos Feministas, vol. 12, núm. 2, malo- agosto, 2004, pp. 251-253
Universidade Federal de Santa Catarina
Santa Catarina, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38112220

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
Adèle TToussaint-Samson
oussaint-Samson em dose dupla
A Parisian in Brazil. The Travel
Account of a Frenchwoman in Uma parisiense no Brasil.
Nineteenth-Century. Rio de
Janeiro. TOUSSAINT-SAMSON, Adèle.

TOUSSAINT-SAMSON, Adèle.
Tradução do original francês: Maria
Edited and introduced by June E. Hahner. Lucia Machado.
Translated by Emma Toussaint. Prefácio: Maria Inês Turazzi.
Wilington, Delaware: Scholarly Rio de Janeiro: Editora Capivara, 2003.
Resources, 2001. 121 p. 190 p.

Depois de esperar mais de século por Française, que se propôs a publicar um livro sobre
traduções para outras línguas, a escritora e a vida cotidiana, nos 12 anos em que viveu no
tradutora Adèle Toussaint-Samson é Rio de Janeiro, declarando ter vindo para fazer
homenageada no século XXI com duas fortuna.
traduções: uma para o inglês e outra para o A própria exclusão desse prefácio pelo
português, realizadas por profissionais tradutor brasileiro é muito significativa. O senhor
competentes e apreciadoras de seu texto, A. E. C. C., autor de livros didáticos para o ensino
publicado em francês, em 1883. primário, é muito severo em relação aos enganos
June Hahner, pioneira de estudos sobre a de geografia e de redação, como diversos
mulher na América Latina, freqüentadora assídua brasileiros que se sentiram agredidos pelas
dos arquivos paulistas e cariocas, com bagagem observações superficiais feitas por estrangeiros
bibliográfica sobre as jornalistas mulheres, desde sobre o que presenciaram no Brasil. A. E. C. C.
1978, ampliou os conhecimentos biográficos acrescenta a essa predisposição geral uma
sobre Mme. Toussaint embora tenha sido iludida arrogância marcante referente à autora. Para ele,
pelo nome da tradutora do livro para o inglês, os esforços feitos junto a editores franceses e à
Emma Toussaint, supondo-a filha da autora população brasileira na França não apresentam
estudada. o interesse e a atualidade que têm para
Maria Inês Turazzi, arquiteta e historiadora, estudiosos das relações de gênero.
que cuida do acervo Paulo Geyer, colocado hoje Quando li o livro, o que inicialmente chamou
no Museu Imperial de Petrópolis, onde existe o o meu interesse foi a contradição entre uma
único original português do livro de Mme. escritora que declarava ter vindo fazer fortuna e
Toussaint-Samson, teve o privilégio de estudar na o belo texto, as traduções apresentadas de
França tendo acesso, entre outros, aos arquivos poetas brasileiros e o prazer de ler José de
do Figaro e pôde aproveitar os conhecimentos Alencar. Em seguida, as observações feitas a
de June Hahner sobre a publicação no Jornal respeito das mulheres encontradas no Brasil, muito
de Commercio do Rio de Janeiro para comparar mais penetrantes que as de outros viajantes,
a tradução de 1883 com a atual do livro homens e mulheres.
recusado por quatro editores franceses. Em muitos trabalhos tive oportunidade de
Essa dificuldade de publicar em meados citar o trecho que mais me chamou a atenção,
do século XIX em um gênero eminentemente o que fala sobre sua percepção do trabalho
masculino, como os livros de viagem, não foi feminino contínuo e que pretende ser invisível
exclusiva de Mme. Toussaint-Samson. O que a para os de fora. Mesmo havendo mulheres livres,
singularizou, entre as demais mulheres viajantes brancas, mulatas e negras no Brasil daquela
que escreveram livros sobre o Brasil, foi ser já uma época, a maioria dos viajantes distinguiu a
escritora, dos círculos ligados à Comedie escrava como um burro de carga e a branca

Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2): 264, maio-agosto/2004 251


como preguiçosa e autoritária. É verdade que maior importância, mesmo para a família imperial.
Mme. Toussaint-Samson viveu no Rio de Janeiro Por isso, esses mal-entendidos lingüísticos e
durante 12 anos, tinha um marido nascido no culturais também são ridicularizados sem rancor
Brasil e que falava português como um habitante ou desprezo. Nesse aspecto Mme. Toussaint tem
da terra, e ela não passou pelo Brasil ignorando também a sensibilidade de apreciar o encanto
as línguas faladas e suas variações. Inspirada pela do português falado no Brasil, com sua entonação
penetração de Mme. Toussaint-Samson ao nasal modificada e o acréscimo de diminutivos.
perceber a atividade incessante da mulher é que Aliás, alguns de seus erros de grafia, que tanto
criei a categoria de intervalos cíclicos para a irritaram seu primeiro tradutor, provêm do fato de
condição feminina no século XIX, em vez de cair grafar palavras por sua eufonia.
na diacronia de falar de lazer. Outra diferença sensível de Mme. Toussaint
Tomei conhecimento de Mme. Toussaint foi o fato de ela se arriscar a uma viagem
quanto realizei os livros A mulher brasileira no Rio transatlântica em veleiro com um filho que ainda
de Janeiro, no Século XIX, um índice de amamentava. Ela assinala o respeito que essa
referências de livros de viajantes estrangeiros, situação impôs aos passageiros do navio. Embora
publicado em 1982 pela Fundação Carlos não se detenha muito a contar as ‘gracinhas’ dos
Chagas, e Condição feminina no Rio de Janeiro filhos, conta esta na primeira vinda ao Rio, muito
(Século XIX), uma antologia crítica de textos de expressiva: acordado pelo barulho e pelo
viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil que balanço do barco, Paul se queixa: “Não quero
já teve duas edições em 1984, publicado pela ficar numa cama que se mexe; quero dormir na
HUCITEC. Meus trabalhos eram intertextuais, minha caminha que não se mexe. Mamãe, vou
referindo-se às primeiras impressões causadas vomitar”.
pelo Rio de Janeiro nos visitantes, e seu objeto Ainda uma outra diferença, talvez atribuível
era dar visibilidade às mulheres que habitavam à longa permanência no Brasil, com viagens
o Brasil, e não aos autores dos livros de viagem. intercaladas à França, foi a decepção
Mesmo tendo tido contacto com a família apresentada ao voltar. Apesar da alegria de estar
real e sendo convidada para suas recepções, de volta, seu país lhe pareceu triste e cinzento
Adèle Toussaint-Samson não ignorou a população em comparação com o Brasil. Pareceu-lhe de
das demais camadas sociais e tentou até uma grande mesquinharia o aproveitamento e o
esclarecer à mulher de um administrador sobre cultivo de cada pedaço de terra. Lamentou a
o direito que tinha de fugir à situação humilhante perda dos imensos horizontes, que a natureza se
de ser preterida pelo marido, que preferia as encarregava de enriquecer e embelezar. Teve
escravas mulatas. dificuldade para se re-acostumar à vida
É também verdade que, vindo de Paris, parisiense, tão estreita, apertada, onde cada
então o centro da ‘civilização’, e de uma família bocado na mesa é contado, onde até o ar parece
de artistas, tinha uma perspectiva avançada medido. Teve a convicção de que, quando a
sobre a situação da mulher, podendo participar “alma impregnou-se fortemente da presença das
e pensar sobre inúmeras questões, impensáveis grandes obras de Deus, não se pode mais
mesmo entre mulheres de países europeus e até compreender a vida factícia (sic) de nossas
na própria França, fora de Paris. Essa segurança cidades” (p. 180).
permite que interfira no comportamento de uma A par dessas diferenças, Mme. Toussaint-
vizinha que açoitava as escravas por qualquer Samson tinha o conhecimento e os preconceitos
engano. Ela conta essas ‘interferências’ com muito de seu tempo. As limitações apontadas em quase
humor, ridicularizando os resultados: a vizinha todos os livros de viajantes também a atingem.
passa a amordaçar as escravas antes de açoitá- Registra dados exteriores da vida cotidiana, mas
las, para que os gritos não chegassem à esse registro torna-se vulnerável quando tenta
vizinhança. interpretar relações e instituições sociais. O
Os famosos mal-entendidos lingüísticos entre viajante, tanto o que pretendia transformar a terra
estrangeiros e brasileiros eram constantes e, visitada em mercado consumidor de seu país de
mesmo agora, ocorrem com freqüência, e fazer origem, quanto o que pretendia fugir dos aspectos
fortuna como professor de dança ou de línguas negativos do capitalismo industrial por uma
parece hoje um disparate, mesmo considerando aproximação com a natureza, tinha uma postura
fortuna como sinônimo de sorte. Ocorre que, na de ‘civilizado’ diante de uma população
capital de um país recém-independente e que ‘atrasada’. Mme. Toussaint-Samson identificava-
iniciava sua re-europeização, a dança nos salões se fundamentalmente com a cultura européia e
e a língua francesa eram itens educacionais da os padrões de avaliação dos homens e de sua

252 Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2): 237-253, maio-agosto/2004


produção de acordo com o êxito ou o fracasso. deixou de observar os preconceitos dos
No caso da avaliação de um grupo social brasileiros, em relação às mulheres que saiam à
diversificado, com maneiras de viver das quais o rua sozinhas, considerando-as ‘madames’. Reflete
observador tem apenas amostras concretas também que as ‘cocotes’ não são das menores
fragmentárias, nem sempre representativas, essa exportações francesas.
avaliação constitui uma fonte de preconceitos e Trata-se de um livro muito bem escrito e
mal-entendidos fatais. revelador de aspectos da vida do Rio de Janeiro
Mme. Toussaint-Samson demonstra diversas que nem todos dos mais diversos visitantes foram
vezes horror à escravidão e à crueldade que capazes de apreender. Foi um grande prazer
desencadeia, intercede a favor de uma escrava reencontrar Mme. Toussaint-Samson 20 anos após
fugida, chega a solicitar a um compadre que conhecê-la.
não açoite seus escravos, mas tem diversas
manifestações de preconceito racial e de atitudes Miriam Lifchitz Moreira Leite
de superioridade diante de negros, mulatos e Universidade de São Paulo
mesmo das mulheres que encontrou. Porém, não

Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2): 264, maio-agosto/2004 253

Você também pode gostar