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1 | Revista | Redescobertas Fluminenses

EXPEDIENTE EDITORIAL
A revista “Redescobertas Fluminenses” nasce da paixão de pessoas de va-
riadas atividades profissionais pela História, em especial pela do Estado do
Rio de Janeiro, com foco na Baixada Fluminense, cujo rico passado havia
sido relegado ao esquecimento, ao ostracismo, ao abandono de seus sítios
Revista Redescobertas Fluminenses arqueológicos e patrimônios históricos.
Edição: Ultimamente, muitos trabalhos inéditos de resgate de personalidades
Novembro / 2023 históricas, de localização de sítios arqueológicos perdidos nas brumas do
tempo, de revalorização de fatos do passado, têm sido publicados por mem-
Coordenador / Organizador: bros do grupo nas redes sociais. Porém, sentiu-se a necessidade de dar a
Hugo Delphim
essas pesquisas o caráter de perenidade que uma revista permite, nas suas
Jornalista Responsável / Texto Final: versões eletrônica e impressa. E daí surge o desafio da divulgação histórica,
Roberto Aires (MTb 16.714) em linguagem de fácil compreensão, mas com o compromisso de fidelidade
às fontes, pela credibilidade científica e acadêmica.
Projeto Gráfico / Diagramação:
A presente edição - dedicada à Baixada Fluminense - resgata a origem
Hebert Tomazine
do Centro do município de São João de Meriti, cujas raízes remontam ao
Capa: Hebert Tomazine Brasil Colônia; apresenta a redescoberta do sítio arqueológico da Olaria do
sobre fotografia, sem crédito, Salgado e expõe a antiga e desativada linha de captação de água de Alto
publicada no site franciscanos.org.br Suruí para a Ilha de Paquetá; retira do baú do esquecimento a grande
(aba São João de Meriti)
figura do abolicionista José Mariano Carneiro da Cunha e de sua próspera
Fazenda Santa Cruz. E passeia com o leitor por ângulos inusitados de
Acervo Iconográfico e Fontes: seculares monumentos ou resquícios históricos.
Créditos nas Matérias A revista deseja contribuir para o crescimento do acervo cultural, para a
Contato:
conscientização sobre a importância da preservação dos sítios arqueológicos
redescobertasfluminenses@gmail.com e proteção do patrimônio histórico (especialmente os da Baixada Flumi-
nense e regiões limítrofes) e para a educação preservacionista das novas
Colaboradores desta edição: gerações. Essa é a missão a que nos propomos. Boa leitura!
Antonio Alexandre Vaz Lopes
Antonio Carlos Maciel

SUMÁRIO
Delair Fraga Ramos
Hugo Delphim Borges
Jovane Vasconcelos Monteiro Filho
Luciano Firmino da Conceição
Roberto Aires Oliveira da Silva
3 A Fazenda Santa cruz, o abolocionista
e a vencedora do oscar
A reprodução do conteúdo da
Revista Redescobertas Fluminenses
é permitida, desde que citada a fonte. 7 Ilha de paquetá e a captação
As matérias e artigos publicados
dE água do alto suruí
são de inteira responsabilidade de seus
autores e não refletem necessariamente 8 Centro de são joão de meriti,
a linha editorial da revista. a história de uma formação
Agradecemos contribuições históricas
para definição de créditos de eventuais 13 redescoberta das ruínas da sede
imagens de autores ou fontes não
identificadas. As informações obtidas serão
da fazenda e da olaria do salgado
registradas na próxima edição da revista.
15 Álbum de fotos de patrimônios históricos
16 Foto aérea da estação de guia de pacobaíba
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Fonte: Arquivo Nacional

animais, e fazenda de café, com engenho, de socar e terreiro empedrado”. A


Hugo Delphim Borges Fazenda Santa Cruz também foi citada em um registro de 1856:
Não há nada melhor do que trazer à tona fatos desconhe- “José Pedro de Araújo Mattos possui na Freguesia do Pilar a Fazenda
cidos sobre a Baixada Fluminense, ressaltando que esta terra, Santa Cruz com mil trezentos e oitenta e quatro braças de testada (...)
de memória tão negligenciada, possui muito mais história do partindo por um lado com a Fazenda Saracuruna...” (Registro Paro-
que se imagina. Este artigo tem como objetivo resgatar a his- quial de Terras)
tória de um local que, com o passar do tempo, se tornou des- É possível notar nos trechos que José Pedro de Mattos pas-
conhecido da historiografia. Se, há muitas décadas, a Baixada sou a se chamar José Pedro de Araújo Mattos. Naquele tempo
tem sido vítima do apagamento proposital de sua história, não era tão incomum alterar o próprio nome ou fazer acrésci-
seguimos na contramão, em busca dos fragmentos perdidos. mos. Neste caso, um novo nome foi adotado após um homô-
Este trabalho é pela memória da Baixada e daqueles que um nimo contrair muitas dívidas em outras regiões da província.
dia habitaram esta terra. Avisos anunciando o novo nome adotado foram publicados
em diversos jornais da época, pois o bom nome era o maior
A origem bem que alguém poderia ter. Portanto, o sobrenome “Araújo”
A Fazenda Santa Cruz é uma das inúmeras do Recôncavo da não tem origem em seus pais e na sua esposa, como veremos
Guanabara que desapareceram e sua origem remonta ao início a seguir.
do séc. XIX, quando o sargento-mór José Rodrigues de Mattos, José Pedro de Araújo Mattos era descendente, por parte de
fazendeiro na Freguesia de São João de Meriti, expande seus sua mãe, D. Rosa Joaquina Correia de Sá, de João de Souza Pe-
negócios e adquire uma propriedade na Freguesia de N. Sra. do reira Botafogo, capitão de artilharia do famoso galeão São João
Pilar, nas proximidades do rio Saracuruna. Após sua morte, seu Baptista, utilizado pelos portugueses na conquista de Tunes.
filho, chamado José Pedro de Mattos, assumiu os negócios em Foi um dos conquistadores do Rio de Janeiro e deu nome ao
Saracuruna e, nas décadas seguintes, comprou e anexou outras local onde hoje é o bairro Botafogo, no Rio. Numa época onde
propriedades vizinhas, tornando-se um dos homens mais prós- os casamentos eram negócios, o capitão José Pedro de Araújo
peros desta freguesia, onde foi juiz de paz e subdelegado, ocu- Mattos contraiu matrimônio com Ignácia Antônia do Amaral,
pando também o cargo de vereador no município de Estrella. irmã do Barão de Guandu. Também casou suas duas filhas e
A maior parte das terras de sua propriedade de Saracuruna suas duas sobrinhas, as quais criou, com maridos franceses, ne-
se localizava no território da Freguesia de N. Sra. do Pilar, en- gociantes e comerciantes. Um deles era Adolphe Binoche, pre-
quanto uma pequena porção fazia parte da Freguesia de N. Sra. sidente da câmara de comércio franco-brasileira, que se casou
da Piedade do Inhomirim. Por este motivo, o Almanak Impe- com sua filha Úrsula Rosa de Araújo Mattos. O casamento, que
rial do Commercio e das Corporações Militares, de 1829, cita foi realizado na capela de sua fazenda em 1857, foi noticiado na
“José Pedro de Mattos, saracoruna, freguezia de Inhomerim”. Além da primeira página de um jornal da época:
aludida Fazenda Saracuruna, as outras propriedades adquiridas “Ha muito que não temos tido o prazer de contar tão bellas reuniões,
posteriormente eram uma casa no arraial da freguesia e as fa- como as que se deram (...) a do primeiro fazendeiro do município, José Pe-
zendas Paraíso, Campos de Dentro e Santa Cruz, sua principal, dro de Araújo Mattos, pelo consórcio de sua filha a exma. sra. D. Ursula,
que será objeto deste artigo. Sobre as outras trataremos em ar- com o sr. A. Binoche, sendo o celebrante o reverendo vigario geral, cuja
tigo futuro. reunião esteve muito concorrida e luzida, apezar da encommoda viagem
Embora a Fazenda Santa Cruz produzisse café, seu “carro pela arruinadissima estrada da Taquara...” (Jornal “A Pátria”).
chefe” era o açúcar e a aguardente, armazenando sua grande Tamanha sua importância, o trecho cita o personagem
produção em 120 tonéis. O Almanak Administrativo Mercantil como o “primeiro fazendeiro do município”. Ao falecer aos 68 anos,
e Industrial do Rio de Janeiro, de 1859, cita o “Capitão José Pedro de febre perniciosa, no ano de 1867, todas as suas fazendas
de Araújo Mattos, com engenho de canna, a vapor, dito de aguardente, por foram arroladas em seu testamento, entre elas, a Santa Cruz:

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“...nesta freguesia do Pilar, município da Estrella, na fazenda chama-
da Santa Cruz, na casa do falecido capitão José Pedro de Araújo Mattos,
para onde foi o Juiz de Órfãos (...) uma Fazenda chamada Santa Cruz
compreendendo mil trezentos e oitenta e quatro braças...”.
No inventário também foram arrolados 111 escravizados,
117 cabeças degado, 18 bezerros, 7 bestas, 2 cavalos, 1 bar-
co de cargas, 2 canoas prancha de cargas, diversos móveis de
luxo, muita prataria, 32 apólices, 25 ações do Banco do Brasil,
engenhos de açúcar e mandioca em suas fazendas, uma ven-
da, 2 prazos de terra em Petrópolis no quarteirão “inglês” e
etc, totalizando uma fortuna de mais de 135 contos de réis.

José Pedro de Araújo Mattos - Ascendente de um


embaixador e de uma vencedora do Oscar
Sua filha Úrsula Rosa de Araújo Mattos se retirou para a Fran-
ça com o esposo Adolphe Binoche, em 1863. Lá se estabeleceram
e deixaram grande descendência. Passado mais de um século, um
dos descendentes, Jean André Binoche, foi nomeado embaixa-
dor da França no Brasil em 1965. Três anos antes, o genealogista
Carlos Rheingantz havia feito o levantamento do ramo francês
da família Botafogo e encontrou o francês, na época embaixador
na Iugoslávia. O trabalho foi publicado na revista Brasil Genealó-
gico e em diversas reportagens da época. Destes trabalhos foram
extraídos os dados que ligam o embaixador ao fazendeiro da lon-
gínqua Freguesia de N. Sra. do Pilar do séc. XIX. As revelações
não param por aí, pois entre os ilustres descendentes de sua fi-
lha Úrsula Rosa de Araújo Mattos, também está Juliette Binoche,
atriz francesa vencedora do Oscar, em 1997 e 2001. A atriz esteve
no Brasil em 2019 e fez questão de propagar, com muito orgulho,
sua origem. dona úrsula rosa de Araújo mattos
Fonte: larbredesbinoche.com
Fonte: buzzfeed.com
José Mariano Carneiro da Cunha
O grande abolicionista
A desconhecida Fazenda Santa Cruz, outrora movida pelo
braço escravo, também pertenceu, no início do século XX, ao
grande abolicionista pernambucano Dr. José Mariano Carneiro
da Cunha, chamado por Joaquim Nabuco de “o mais popular dos
pernambucanos vivos”, por ter sido pioneiro das causas abolicionis-
tas em Pernambuco. O abolicionista “caiu de paraquedas” em
Santa Cruz no final de sua vida, como veremos a seguir.
Uma notícia de 1910 cita a agora Fazenda “de” Santa Cruz
e o Dr. José Mariano:
“...do referido conflicto devem estar bem lembrados os leitores, resultou
a morte de Manoel Vicente de Arruda, empregado na Fazenda de Santa
Cruz do Dr. José Mariano, e ferimentos em Luiz Alves de tal, vulgo Luiz
juliette binoche, trineta de dona úrsula, oscar de 1997 e 2001
Serração...” (Jornal “A Capital”)
Fonte: larbredesbinoche.com De família da aristocracia canavieira, seu pai foi proprietário
do Engenho Jardim em Sirinhaém e dos Engenhos Caxangá,
onde nasceu, e Mangueira, ambos no município de Gameleira,
todos em Pernambuco. Sua mãe era descendente de combaten-
tes da revolução de 1817 e da revolução praieira. Na juventude,
estudou com outros ilustres, como Rui Barbosa, Joaquim Na-
buco e Herculano Bandeira. Formou-se em Direito em Recife
e viveu por muitos anos no Solar da Panela, palco de muitos
acontecimentos da luta abolicionista.
Foi o fundador do jornal abolicionista “A Província”, que tam-
bém foi instrumento contra o domínio da Igreja. Também foi o
criador da Sociedade Protetora da Infância Desvalida, entidade
que buscava fundos para alforriar filhos de escravizados e pro-
mover a educação destes, sendo também um dos fundadores do
dona úrsula e ADOLPHe Binoche, 1861
Club Relâmpago, também chamado Club do Cupim, que orga-

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nizava fugas de escravizados, levando-os para fora da província,

Fonte: poraqui.com
para o Ceará, onde a escravidão já havia sido abolida antes da Lei
Áurea. Devido à perseguição, os membros desta sociedade eram
conhecidos por pseudônimos e se comunicavam através de si-
nais, senhas e toques, se encontrando debaixo de pontes e outros
locais escondidos. Também teve participação no Club Popular,
onde se travava de outras lutas sociais.
José Mariano Carneiro da Cunha também foi chamado de “o
tribuno do povo”, quando se tornou vereador em 1876, com lutas
decisivas em várias questões socias, como segurança, impostos,
preços dos alimentos e salubridade. Seu primeiro projeto foi so-
bre o amparo financeiro dos que lutaram na Guerra do Paraguai.
Foi o deputado mais votado de Recife em 1878, ficando à frente
do seu amigo Joaquim Nabuco. No tempo do Império, foi de-
putado geral por duas vezes, provincial por duas e vereador por
uma. No período republicano foi deputado federal por três vezes.
Chegou a ser preso na Ilha das Cobras, correndo a notícia de que
estava morto, e, sendo desmentido o boato, inspirou muitos can-
tadores dos rincões pernambucanos, que entoavam:

“Eu estava em Beberibe,


quando a notícia chegou:
Mataram o Zé Marianno!
E o comércio se fechou.
Mas a notícia era falsa,
Graças ao Nosso Sinhô!”

Sua esposa Olegaria da Gama Duarte foi sua grande cúmplice


na causa abolicionista, chegando a empenhar suas joias pessoais
para ajudar na causa social, além de esconder escravizados em sua
residência em diversas ocasiões. Foi conhecida como “mãe dos es-
cravos”, “mãe dos pobres” e “mãe do povo”. Na ocasião do fale-
cimento de sua esposa em 1898, José Mariano se afastou da vida
pública por alguns anos. A essa altura já havia perdido toda sua
fortuna por conta da política militante e com gastos em prol da
causa abolicionista. Sua situação econômica só voltou a melhorar
em 1903, quando foi nomeado Oficial de Registros e Títulos pelo
Presidente Rodrigues Alves. Seu Cartório de Títulos e Documen-
tos se localizava na Rua do Rosário n. 36, no Rio. É desse período
a aquisição da Fazenda Santa Cruz.
Apesar do afastamento da vida pública e da distância de sua
terra natal, retornou à política em 1912, como deputado federal
por Pernambuco, com cerca de 10 mil votos. Passados alguns
meses, faleceu no Rio de Janeiro, onde viveu os últimos anos
de sua vida. Sua terra e seu povo reclamaram o seu retorno,
então seu corpo foi embalsamado e transportado para sua terra
natal. Os anos e a distância não foram suficientes para apagar
sua popularidade e foi realizado uma grandiosa procissão fúne-
bre, diante de representantes de todas as camadas sociais. Todos
queriam lhe prestar homenagem.
A tradição conta que um homem atirou sobre a urna fúnebre
o seu título de eleitor e, em seguida, outro arrancou da bainha sua
faca mateira. Tendo o primeiro gritado: “Não tenho mais em quem
votar”, completou o segundo: “E eu a quem defender!”. Após algumas
décadas a Câmara de Vereadores recebeu o nome de “Casa de José
Mariano”, assim como também existe o “Cais José Mariano”, no
rio Capibaribe. Posteriormente, um busto em sua homenagem foi
erguido no Largo do Poço da Panela, junto à estátua de um escra-
vizado livre. Várias ruas e logradouros de Pernambuco recebem o
nome daquele que é considerado um herói. Entretanto, no Rio de
monumento a josé mariano - poço da panela / recife
Janeiro e na Baixada Fluminense sua história é desconhecida.

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A localização
O casarão da Fazenda Santa Cruz se localizava onde hoje é a
entrada do bairro Santa Cruz da Serra, no município de Duque
de Caxias. Ficava na encosta de um morro que foi, em parte, des-
montado para a abertura da Estrada Rio-Petrópolis. Um registro
de 1926 descreve a mesma estrada, citando também o ilustre e
antigo proprietário:
“...passando nas proximidades da antiga igreja do Pilar, segue á esquer-
da, quasi em angulo recto, até a Fazenda de Santa Cruz, que foi propriedade
do Dr. José Mariano, o grande tribuno pernambucano, atravessa o Saracu-
runa, affluente do rio Estrella, segue pela encosta da serra, vai atravessar o
Fazenda santa cruz, início do século XX
canal da Taquara...” (“O Jornal”) Fonte: SPHAN
Com o pai já falecido, uma notícia de 1913, do jornal “Última
Hora”, cita José Mariano Carneiro da Cunha Filho numa lista de
fazendeiros que cederam terras para construção da estrada. Di-
versos outros registros, que por falta de espaço não serão citados,
também citam a Fazenda Santa Cruz no caminho das estradas
Rio Petrópolis e Automóvel Club.
Após a década de 30, a Fazenda Santa Cruz começou a ser
desmembrada e uma de suas glebas deu origem ao loteamento
Chácaras Arcampo, hoje nome de um bairro vizinho. Foi obra da
Companhia Incorporadora, Comercial e Agrícola Codora. Em
Santa Cruz da Serra existe a Avenida Arcampo e a Praça Codora.
Os documentos, planta e memorial dessa época foram deposita-
dos no Cartório do 5º Ofício da Comarca de Iguassú e serviram
como uma das fontes desta pesquisa.

Os filhos de José Mariano Carneiro da Cunha Mesmo local em 2021


Crédito: Hugo Delphim
Do casal nasceram dois filhos, também ilustres. O primeiro foi
José Mariano Carneiro da Cunha Filho, famoso escritor, arquite- que considerava de caráter internacionalizante. Foi quem edificou
to e crítico de arte. Foi diretor da Escola Nacional de Belas Artes o famoso Solar de Monjope, num terreno às margens da Lagoa
e um dos defensores da arquitetura nacional, combatendo aquela Rodrigo de Freitas, onde reuniu vários elementos da arquitetura co-
Fonte: Fundação Joaquim Nabuco lonial, que foram adquiridos de várias obras arruinadas pelo Brasil.
O solar possuía elementos até do século XVII. Conforme diversas
notícias do período da abertura da aludida estrada, fica evidente
que José Mariano Carneiro da Cunha Filho passou a ser dono da
Fazenda Santa Cruz após a morte do pai. O segundo filho do casal
foi Olegário Mariano, grande poeta e jornalista, conhecido como “o
príncipe dos poetas” e sucessor de Alberto de Oliveira e Olavo Bilac,
ocupando a cadeira n. 21 da Academia Brasileira de Letras. Tam-
bém foi deputado constituinte e diplomata.

Pesquisa de campo e conclusão


Apoiando-nos em diversos mapas antigos consultados, no
ano 2021 realizamos duas pesquisas de campo no local onde
existiu o casarão da Fazenda Santa Cruz, mas nenhum vestígio
arqueológico foi encontrado. Embora alguns moradores locais
tenham ficado surpresos, pois não tinham conhecimento de tais
fatos, chamou a atenção a entrevista realizada com um segurança
da empresa vizinha ao morro onde se localizava a casa grande,
que relatou que trabalhava no local há pouco mais de dois anos.
Segundo ele, ao assumir a função foi alertado pelos funcionários
mais antigos, que diziam que nas madrugadas ouviam barulhos
de correntes batendo e que teriam a informação de que no alto
daquele morro teria existido um cemitério de escravos. Ouvir
esse tipo de relato que sobrevive no imaginário popular é algo
comum em pesquisas orais e de campo e a experiência revela que,
mesmo destoando em alguns pontos com a realidade dos fatos,
são peças de um quebra-cabeça que não devem ser descartadas. É
a linguagem popular dizendo que ali existiu uma fazenda movida
josé mariano e seu filho, o poeta olegário mariano
pela mão de obra escrava.

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Infelizmente toda essa história se perdeu e a maioria dos
munícipes não sabem que ali existiu esta bela fazenda e, muito
menos, que pertenceu a pessoas tão importantes para a história
não só da Baixada e do Rio de Janeiro, mas sobretudo do Brasil.

*O autor é pesquisador da História do Estado do Rio de Janeiro


e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iguaçu
Referências bibliográficas:
A Capital, Niterói, ano IX, n. 3013, 29 de junho de 1910, p. 1. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocRe-
ader/docreader.aspx?bib=223085&pesq=&pagfis=9833. Acesso em: 20 abr. 2023.
Trecho de mapa, 1913
A Patria, Niterói, ano VI, n. 149, 05 de julho de 1857, p. 1. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocRea-
Fonte: Biblioteca Nacional
der/DocReader.aspx?bib=830330&pesq=&hf=memoria.bn.br&pagfis=2571. Acesso em: 20 abr. 2023.

Almanaque do Correio da Manhã, ano 1950, n. 01, p. 177. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocRea-
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BOULITREAU, Francisco Vieira. O Jornal, Rio de Janeiro, ano VIII, n. 2.275, 14 de maio de 1926, p. 5.
Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=110523_02&pesq=&hf=memoria.
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BRACHET, Jean-Luc. L’Arbre des Binoche: le site de la famille Binoche de Champs-sur-Yonne, 2016. Dispo-
nível em: https://larbredesbinoche.wordpress.com/. Acesso em: 20 abr. 2023.

Carioca, Rio de Janeiro, n. 775, 10 de setembro de 1950, p. 7 e 58. Disponível em: https://memoria.bn.br/Do-
cReader/DocReader.aspx?bib=830259&pesq=&hf=memoria.bn.br&pagfis=47263. Acesso em: 20 abr. 2023.

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em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&pesq=&hf=memoria.bn.br&pag-
fis=80337. Acesso em: 20 abr. 2023.

LAEMMERT, Eduardo. Almanak Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Provincia do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, ano 16, n. 1, 1859. Provincia do Rio de Janeiro, p. 171. Disponível em: https://memoria.bn.br/Do-
cReader/DocReader.aspx?bib=313394x&pesq=&hf=memoria.bn.br&pagfis=14244. Acesso em: 20 abr. 2023.

PLANCHER-SEIGNOT, Pedro. Almanak Imperial do Commercio e das Corporações Civis e Militares do


Imperio do Brasil, Rio de Janeiro, ano 1829, n. 2. Corpo Militar, p. 71. Disponível em: https://memoria.bn.br/ A fazenda em decadência, 1911
DocReader/DocReader.aspx?bib=706191&pesq=&hf=memoria.bn.br&pagfis=541. Acesso em: 20 abr. 2023.
Fonte: Arquivo Nacional

quilômetros de tubos submersos nas águas da Baía de Guanabara


e pela superação da corrosão provocada pela água do mar. Um
levantamento realizado pelo Inepac cita este e outros importantes
fatos técnicos dessa pouco conhecida história:
“... esses equipamentos são testemunhos da evolução tecnológica da engenha-
ria nacional, tanto no âmbito das teorias da hidráulica, como do cálculo estru-
tural e das técnicas construtivas. Até 1893, o abastecimento de água potável da
Ilha de Paquetá dependia de poços artesianos de água inadequada. A partir
desse ano a água passou a chegar em barris trazidos pelas barcas. Em 1907,
iniciou-se a construção de um reservatório no local hoje denominado morro do
Costallat. Para abastecer o reservatório foram realizadas obras de captação e
adução das águas do riacho da Cachoeira Pequena em Suruí, município de
Magé. A adutora percorria 21 km, sendo 4,4 km submersos, desde a captação
Obra desativada já foi um marco da engenharia nacional até o reservatório. O sistema de adução foi projetado pelo engenheiro João de
Crédito: Luciano Firmino da Conceição
Matos Travassos Filho, que utilizou dutos de chumbo com dupla proteção
Luciano Firmino da Conceição externa de cabos de aço e revestimento betuminoso contra a corrosão que consti-
tuiu, então, uma novidade tecnológica.”
Certo dia, fazendo uma das minhas caminhadas rotineiras no Embora tenha sido um projeto inovador de engenharia para
bairro Cachoeirinha, município de Magé, deparei-me com uma tu- o período em questão, os então avanços tecnológicos pararam no
bulação antiga, datada de 1907. O achado chamou minha atenção, tempo, tornaram-se obsoletos e não reverteram em benefícios
pois eu tinha conhecimento prévio de que uma antiga rede de tubos, para a população local. Ainda hoje, infelizmente, muitos bairros
desativada, que abasteceu a Ilha de Paquetá, passava pela região. de Magé - principalmente o distrito de Guia de Pacobaíba -, so-
Registrei o achado em fotos, busquei por informações que pu- frem com a falta de abastecimento de água potável, esperando
dessem explicar como havia se dado o processo de captação de que um dia o problema seja, enfim, contornado. Aqueles peda-
água naquela região e quais os desafios de engenharia transpostos, ços de tubo encontrados – quem sabe? - talvez um dia possam
pois o rio Cachoeirinha, que nasce na Serra dos Órgãos, foi res- inspirar a solução.
ponsável, no início do século XIX, pelo abastecimento de água
*O autor, professor da rede estadual de ensino, é graduado em História pela
potável da Ilha de Paquetá, com as dificuldades inerentes da trans- FEUDUC - Fundação Educacional de Duque de Caxias e pós-graduado em
posição da Baía de Guanabara e da densa mata mageense da época. História Contemporânea pela UFF - Universidade Federal Fluminense.
Analisando o período de sua realização,tomamos conhecimen- Referência biliográfica:
to de que aquela rede de abastecimento foi uma obra visionária e INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL – INEPAC. Inventário de Reservatórios da CE-
DAE: Reservatório de Paquetá. Disponível em: http://www.inepac.rj.gov.br/application/assets/img/site/20_fi-
tecnologicamente arrojada, com destaque para os mais de quatro cha_paqueta.pdf Acesso em: 19 abr. 2023.

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Crédito: Antonio Alexandre Vaz Lopes

Instalada em terras do Engenho do Porto, a nova sede da


Antonio Alexandre Vaz Lopes Freguesia passaria a ser um templo feito de pedra e cal que já
A Freguesia de São João Baptista de Trairaponga, estava em funcionamento em 1666. Inclusive, essa mudança
autorizada a funcionar conforme o Alvará de 1647, possuía de localização dentro do território alterou o nome da própria
como primeira sede e Igreja Matriz um pequeno templo Freguesia: de São João Baptista do Trairaponga para São
localizado no alto de um outeiro às margens da Baía de João Baptista de Meriti. (ARAÚJO, 1820)
Guanabara. A segunda sede seria mais para o interior do Essa nova localização da sede da Freguesia permaneceria
território: um templo no atual bairro Parque Lafaiete; os dois nesse ponto do território até o século XIX. Nesse local,
locais situam-se atualmente no município duquecaxiense. A atualmente está instalada a Igreja Matriz de Santa Teresinha
terceira e definitiva seria o Arraial da Pavuna, povoado ainda do Menino Jesus, no Parque Lafaiete, bairro que integra o
mais distante do litoral e que daria origem ao futuro Centro município duquecaxiense. O templo, construído em 1666,
do município de São João de Meriti. Nesta resenha, faremos desabou em 1708 e a sede foi transferida para a capela de
a reconstituição desse itinerário histórico. Nossa Senhora da Conceição do Engenho do Porto. Em
1747, um novo templo foi construído no mesmo local do
As sedes da Freguesia anterior que havia desabado. Esse imóvel serviu de Matriz
O território daquela nova Freguesia abrangia o que hoje é para a Freguesia de São João Baptista de Meriti até 1855,
o território do primeiro distrito de Duque de Caxias e todas quando um surto de cólera devastou a Freguesia e o templo
as áreas que abrangem atualmente os municípios de São João novamente entraria em ruínas. Como consequência, a Matriz
de Meriti e Nilópolis. Na década de 1660, a primeira igreja, da Freguesia foi novamente transferida de local, desta vez
como já exposto, próxima à Baía de Guanabara, encontrava- para uma igreja dedicada à Nossa Senhora da Conceição;
se arruinada devido à fragilidade de sua construção diante contudo, sua localização é incerta, pois não se sabe ao certo
das intempéries climáticas, pois era de taipa. Então, a sede se foi a Capela de Nossa Senhora da Conceição da Pavuna
da Freguesia foi transferida para um local que adentrava ou até mesmo a Capela de Nossa Senhora da Conceição, da
o território por meio da hidrovia do rio Pavuna/Meriti. Fazenda dos Teles de Menezes.
Fonte: Imagem retirada da Internet, sem identificação de fonte e data

Mirada da Estação da Pavuna em direção à Igreja de São João de Meriti (à direita)

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Diante da ausência de referência para a sede da Freguesia, ao porto da Pavuna. Para Lewis Munford (1998), o primeiro
o Arraial da Pavuna com seus elementos técnicos instalados meio eficiente de transporte em massa foram as vias aquáticas
em seu território ao longo do tempo, despontou como ponto e, por isso, não é por acaso que o primeiro crescimento das
central dentro do território da Freguesia de São João Baptista cidades teve lugar em vales de rios. Somente depois disso,
de Meriti e, no período republicano, foi elevado à condição o burro, o cavalo, o camelo, o veículo de roda e finalmente a
de Sede, de Centro, do 4° Distrito do Município de Iguassú estrada calçada ampliaram os domínios do transporte e deram
(atual Nova Iguaçu). Como afirma Sposito (1991), o “Centro” à cidade comando sobre homens e recursos em áreas distantes.
não está necessariamente no centro geográfico, e nem sempre No caso de São João de Meriti também não foi diferente. As
ocupa o sítio histórico onde esta cidade se originou, ele é antes primeiras vias de acesso ao interior dos territórios da Baixada
de tudo um ponto de convergência/divergência, é o nó do Fluminense foram os rios e em São João de Meriti esta função
sistema de circulação, é o lugar para onde todos se deslocam coube ao rio Pavuna/Meriti. Diante disso, a antiga tapera da
para interação dessas atividades aí localizadas com outras que aldeia dos tupinambás da Pavuna serviu de referência para a
realizam no interior da cidade ou fora dela. criação do Engenho de N. Sra. do Desterro da Pavuna e seu
porto. Ao longo do tempo este porto cresceu em importância.
Vias de comunicação: rios e estradas Contudo, o momento decisivo dessa centralidade foi a
Os arraiais - ajuntamento de casas e pessoas -, eram construção de uma estrada em 1750.
escassos dentro da Freguesia de São João de Meriti e seguiam Com o ciclo do ouro, algumas estradas construídas com o
às margens das vias de comunicação; inicialmente as margens objetivo de ligar o Rio de Janeiro até Minas Gerais passavam
dos rios e, depois, as margens das estradas. O caso do Arraial pela Pavuna. Em 1750, foi aberta uma estrada chamada
da Pavuna não foi diferente, ele surgiu no entorno de um porto Caminho de Terra Firme, Estrada de Minas ou Caminho Novo
colonial que servia não só à Fazenda de N. Sra. do Desterro do Tinguá, construída pelo Mestre de Campo Estevão Pinto.
da Pavuna, mas também a outras fazendas no interior do Esse caminho se tornou uma alternativa ao trecho do Caminho
território da Freguesia onde os rios Pavuna e Sarapuí não Novo de Garcia Paes, até Pilar e seu porto, e o Caminho Novo
davam profundidade para a passagem das embarcações. Isso do Inhomirim ou do Proença, aberto por Bernardo Soares de
fica evidente quando analisamos o caso da Fazenda de São Proença, que chegava até ao porto de Estrela. Ao contrário
Matheus, uma das mais produtivas da Freguesia, e que no dessas duas estradas que tinham um trecho de barco até o
futuro daria origem ao território do Município de Nilópolis, porto do Rio de Janeiro, o Caminho de Terra Firme poderia
que exportava sua produção açucareira por meio de carros de ser percorrido todo por terra. Esse caminho saía do Rio de
boi ao longo da Estrada de São Matheus que ligava esta fazenda Janeiro passando por Irajá, Pavuna, pelos Engenhos de São
Crédito: Antonio Alexandre Vaz Lopes

Igreja de Santa Terezinha do Menino Jesus, em Parque LafaIete, antiga Matriz de São João Baptista de Meriti, Junho 2022

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Ponte do Arraial da Pavuna mostrando o Encanamento da Adutora
Fonte: Marc Ferrez. Biblioteca Nacional

Matheus, da Cachoeira, Maxambomba, Belém, contornava a A centralidade do Arraial da Pavuna estava dada pela
Serra do Tinguá, subindo a serra pelas atuais Paulo de Frontin, concentração de elementos técnicos - porto, canal, estradas,
Sacra Família do Tinguá e Morro Azul até se encontrar com o trapiches, ranchos e estalagens - que transformavam essa
Caminho Novo de Garcia Paes e segue por esse caminho até localidade em um nó dentro de um nascente sistema de
Minas Gerais. (DELPHIM, 2020) transporte intermodal de mercadorias. Com esse acúmulo de
Posteriormente, em 1817, foi aberta a Estrada da Polícia, elementos técnicos, utilizando as palavras de Sposito (1991)
pelo Intendente da Polícia Paulo Fernandes Vianna, uma das a Pavuna se transformou em um centro de convergência/
figuras mais proeminentes da Corte de Dom João VI. A Estrada divergência, em um nó do sistema de circulação, mesmo este
da Polícia tinha como objetivo ligar a Capital do Brasil ao Sul da arraial não sendo, ainda, o centro social, sede, da Freguesia de
Província de Minas Gerais. Seu percurso tinha mais de 20 léguas São João Baptista de Meriti.
de extensão e começava no rio Pavuna, no Arraial da Pavuna, Porém, até a fase final do século XIX, a sede administrativa/
e seguia por uma várzea de cinco léguas até iniciar a subida da religiosa da Freguesia – no atual Parque Lafaiete, em Duque
Serra do Mar, até chegar à Fazenda de José Rodrigues Alves, de Caxias - estava distante do que hoje é a Igreja da Matriz,
onde mais tarde foi fundada a Cidade de Vassouras, passando no centro do Município de São João de Meriti. Essa localidade
pela Aldeia de Valença, chegando a Vianna e daí até a Vila do estava sob a influência dos grandes senhores de terra de Meriti,
Presídio do Rio Preto. (NOVAES, 2008) na época: a família dos Teles de Menezes e Antônio Tavares
Guerra. Este último possuía na Pavuna duas propriedades: a
A centralidade do Arraial da Pavuna Fazenda do Carrapato, na margem esquerda do Rio Pavuna/
Conforme Delphim (2020), em 1829, começou a ser Meriti, atualmente, uma grande área do centro de São João
construído o Canal da Pavuna, um canal artificial ao longo de Meriti, e a Fazenda de N. Sra. da Conceição da Pavuna,
do leito natural do rio Pavuna/Meriti e que contribuiu para na margem direita, atualmente parte do município do Rio de
o desenvolvimento e consolidação do porto da Pavuna. A Janeiro. Este empresário e senhor de terras muito contribuiu
construção do Canal da Pavuna acrescentou mais peso e para o crescimento do Arraial da Pavuna, tendo em vista os
importância ao Arraial da Pavuna. No entorno do porto e seus benefícios que teria com seu desenvolvimento, uma vez que
trapiches surgiram estalagens e estabelecimentos que atendiam ele era dono dos trapiches localizados no Arraial e que se
aos tropeiros que chegavam até à Pavuna. beneficiava das estradas, do canal e do porto da Pavuna.
Crédito: Antonio Alexandre Vaz Lopes

Mapa Esquemático das Centralidades Formadas no Distrito de São João de Meriti – 4° Distrito de Iguassú – Segunda Metade do Século XIX

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Diante dessa situação, a construção de uma nova Igreja
Matriz foi idealizada. O Comendador Antonio Tavares Guerra,
um dos grandes proprietários e empreendedores do território
da freguesia, doou, em 1876, um terreno desmembrado de
sua propriedade, a Fazenda do Carrapato, na margem esquerda
do rio Pavuna, no Arraial de N. Sra. do Desterro da Pavuna.
A doação deste terreno contribuiu para a consolidação da
centralidade do Arraial da Pavuna dentro do território da
Freguesia de São João Baptista de Meriti, na época uma das
Freguesias que compunham a Vila de Iguassú (atual município
de Nova Iguaçu). Posteriormente, essa nova Igreja Matriz serviu
para confirmar o Arraial da Pavuna como sede – Centro - do
4° Distrito de São João de Meriti, pertencente ao município de
Iguassú, já no período republicano.

Novas centralidades em
Duque de Caxias e Nilópolis
Na Freguesia e, posteriormente, Distrito de São João de
Meriti, o Arraial da Pavuna – atual Centro de São João de Meriti,
como já vimos - já se destacava como sede do 4º Distrito e teve
sua confirmação assegurada pela passagem da Estrada de Ferro
Rio D’Ouro. Em 1883, esta estrada de ferro teve seu tráfego
aberto ao transporte de passageiros. Essa ferrovia passou pela
Pavuna, seguindo o leito das antigas Estrada de Terra Firme e
Estrada da Polícia. A instalação da estação ferroviária da Pavuna
serviu para confirmar a centralidade desse povoado diante das
alterações proporcionadas pelas ferrovias que passavam pela
Baixada Fluminense. Porém, também provocadas por ferrovias
que cortaram seu território, surgiriam duas novas centralidades
no 4º Distrito, no entorno de duas novas estações ferroviárias.
Em primeiro lugar, a instalação da estação ferroviária de
Merity (não confundir com São João de Meriti), atual Centro
de Duque de Caxias, em 1886, da Estrada de Ferro do Norte,
posteriormente Leopoldina Railway, no território da Freguesia
de São João Baptista de Meriti. Por isso, ela recebeu o nome
de Estação de Merity. Essa nova centralidade proporcionada
Fontes: NEIVA, Luciana. Redescobrindo São João de Meriti. 1° Edição, Appris, Curitiba. 2017

Colocação do Sino da atual matriz, Década de 1930 Colocação do Sino da Matriz de são joão de meriti

Redescobertas Fluminenses | Revista | 11


Parque lafaiete: Antiga matriz de São João Batista de Meriti. em RuÍnas, 1919
Fonte: Acervo Paróquia Santa Terezinha, Parque Lafaiete

pela possibilidade de deslocamento rápido entre a estação de em 1931, que, acrescido de outros territórios, foi elevado a
trem e a capital provocou um deslocamento populacional para 8° Distrito de Iguassú. (CÂMARA MUNICIPAL DE NOVA
o entorno dessa estação ferroviária, esvaziando, inclusive, a ex- IGUAÇU, 2000)
sede colonial da Freguesia, no entorno da antiga Igreja Matriz Dessa forma, o Arraial da Pavuna se configurou e se
de São João de Baptista de Meriti (atual Santa Terezinha do consolidou como o centro econômico e político do 4° Distrito do
Menino Jesus), no já citado Parque Lafaiete. Assim, ao redor da município de Nova Iguaçu. Logo, essa centralidade econômica e
Estação de Merity surgiria um povoado. política contribuiu para a formação do futuro Município de São
Em segundo, em 1915, no curso da Estrada de Ferro D. João de Meriti e o Arraial da Pavuna, que perderia esse nome,
Pedro II - nesta época já denominada Estrada de Ferro Central seria o Centro meritiense. As duas novas centralidades citadas
do Brasil -, na Estação de Engenheiro Neiva, posteriormente – Nilópolis e Duque de Caxias -, que surgiram em função das
renomeada para Nilópolis, ocorreu o loteamento da antiga novas estações ferroviárias, foram atendidas com a conquista
Fazenda de São Matheus. Esse loteamento atraiu população progressiva da autonomia política em dois outros distritos. Mas,
para o entorno dessa estação e formou um novo povoado isso não foi um processo pacífico quando da criação dos três
dentro do Distrito de São João de Meriti, formando uma municípios aos quais esses centros/povoados deram origem.
nova centralidade.
*O autor é graduado em Geografia pela UFF,
De Arraial da Pavuna a Centro de São João de Meriti professor dessa disciplina na rede estadual de ensino
Essas novas centralidades não comprometeram a e pesquisador da História da Baixada Fluminense
transformação e consolidação do Arraial da Pavuna em
sede do 4° Distrito de Iguassú. A centralidade da Pavuna foi Referências biliográficas::
CÂMARA MUNICIPAL DE NOVA IGUAÇU. Memórias da Câmara Municipal de Nova Iguaçu, Nova Iguaçu:
confirmada em 1919, quando a legislação municipal de Nova CMNI, 2000. Nova Iguaçu. Disponível em: <https://www.cmni.rj.gov.br/site/historia/livro-memoria-da-
camara-municipal-de-novaiguacu.pdf> Acessado em: 03/08/2021.
Iguaçu reconhecia a sede do 4° Distrito no povoado do Arraial DELPHIM, Hugo. Pavuna e os portos da região. O Belo e Histórico Rio de Janeiro. In: Revista Eletrônica Saiba
da Pavuna. Assim, o 4º Distrito, por volta da década de 1920, História. Agosto de 2020. Disponível em: < https://saibahistoria.blogspot.com/2020/08/pavuna-e-os-portos-
da-regiao.html> Acessado em: 10/04/2021.
possuía três povoados que centralizavam os fluxos de pessoas MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
e mercadorias dentro de seu território: Arraial da Pavuna (atual NOVAES, Adriano. Os Caminho Antigos nos Território Fluminense. 2008. Disponível em:<http://www.
institutocidadeviva.org.br/inventarios/sistema/wp-content/uploads/2008/06/oscaminhosantigos.pdf>
Centro de São João de Meriti), Meriti e Engenheiro Neiva. Acessado em: 03/04/2021.
Em 1916, o povoado de Engenheiro Neiva, atual Centro de PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. Memórias Históricas do Rio de Janeiro: e das províncias anexas à
jurisdição do Estado do Brasil. Tomo III. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820. p.13.
Nilópolis, e bairros adjacentes tornaram-se o 7° Distrito de SANTOS, Noronha. Memória acerca dos limites do Distrito Federal com o Estado do Rio de Janeiro. In:
Revista da Sociedade Brasileira de Geographya. Tomo XXII – XXIV. 1909.
Iguassú, sendo seu território desmembrado do território do SPOSITO, M. E. B. O centro e as formas de expressão da centralidade urbana. Revista de Geografia, UNESP.
4° Distrito, então São João de Meriti com sede na Pavuna. São Paulo p. 1-18, 1991.
TORRES, Gênesis (org.). Baixada Fluminense – A construção de uma história. Rio de Janeiro: IPAHB, 2004.
O mesmo aconteceu com o povoado no entorno da antiga TORRES, Gênesis. Histórias da Baixada Fluminense – O Contestado da Pavuna. 2010. Disponível em:
<http://historiasdabaixadafluminense.blogspot.com/2010/09/o-contestado-da-pavuna.html> Acessado em:
Estação de Merity, posteriormente Centro de Duque de Caxias, 03/08/2021.

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Créditos: Jovane Monteiro

Permissão dada, uma semana depois daquele encontro


Jovane Monteiro montamos uma expedição - eu, o Idanir Rodrigues e o Mário
Tudo começou na conversa ocasional com um amigo cha- Silva - e, partimos, mata a dentro, à procura do misterioso lo-
mado Idanir Rodrigues. Em certo momento, ele me contou que cal, que estaria envolto em vegetação espessa. E, assim, depois
havia passado, quando criança, décadas atrás, por um local do de muito procurar sem nada encontrar, quando já estávamos
município de Magé, e que naquela ocasião havia se deparado no limiar da desistência, avistamos alguns tijolos com a marca
com ruínas de construções de aspecto bem antigo e que se Viúva Guedes & Filho e outros mínimos fragmentos. Teve iní-
encontravam ocultas pela vegetação. Naquela época, ele e sua cio, então, o trabalho de investigação seguindo essas pequenas
família moravam e trabalhavam em uma fazenda daquela loca- pistas no meio da densa floresta. Aos poucos, os resíduos nos
lidade, que ainda hoje é conhecida como a região do Salgado, levaram a uma visão vislumbrante: aos nossos olhos se descor-
localizada no distrito de Praia de Mauá, no município de Magé. tinava um grande paredão de contenção na encosta do morro!
Subindo uma elevação, nós encontramos um piso com degraus
A expedição nos quatro lados, sugerindo a hipótese de que ali talvez ficasse a
Fiquei muito interessado por aqueles relatos e fui pedindo igreja que o Idanir havia visto de pé há décadas, posteriormente
mais informações. Durante a conversa, o Idanir foi dando de- identificada como o oratório dedicado à Sant’Anna. Havíamos
talhes e descreveu ter visto, na ocasião, uma grande área, co- descoberto um importante sítio arqueológico!
berta pela mata, com paredes de pedra e que contava com uma
igreja em ruínas. Eu fiquei fascinado por aquela história e per- Identificação
guntei se ele ainda conseguiria chegar ao local, a resposta foi de Era o dia 27 de março de 2021, voltamos pra casa felizes e can-
que seria possível. No entanto, por se localizar em propriedade sados, mas muito curiosos para saber que ruínas seriam aquelas!
particular, sabia que o acesso seria dificultado. Posteriormente, Precisávamos passar, com urgência, para a fase de identificação
fui à procura do dono daquelas matas e descobri que, por coin- do importante achado. Com as fotografias tiradas na pesquisa e
cidência, ele era padrinho de uma das minhas sobrinhas, o que com as coordenadas, foi possível identificar, através de um mapa
facilitou a entrada. do século XIX cedido por um companheiro, que se tratava da

DEGRAUS das ruínas do oratório de sant’anna Tijolo marca viúva guedes & Filho

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Parte de mapa de 1912
Fonte: Arquivo Nacional

perdida sede da histórica Fazenda e Olaria do Salgado. O mapa


indicava os morros e suas denominações, todas reconhecidas por
Mario Silva, companheiro de pesquisa de longa data. Levando em
consideração a retificação dos rios, a área foi reconhecida.
Paredão com cerca de 4 metros de altura
Créditos: Jovane Monteiro
Pronto! Confirmado de qual local se tratava, meses depois,
decidi que era hora de convidar e formar um grupo de pesqui-
sadores para que fossem feitas maiores e melhores explorações
na área, contabilizando-se dezessete pessoas no dia 3 de julho de
2021 e que seguiram a passo firme, entre charcos e grotões, nos
caminhos de nossa antiga e histórica Freguesia de Guia de Paco-
baíba, onde vestígios históricos afloram sobre a terra. Aquele foi
um dia memorável para a história da Praia de Mauá, de Magé e da
Baixada Fluminense!

Apogeu, falência e desaparecimento


A Fazenda e Olaria do Salgado, com suas ruínas agora re-
descobertas, teve sua origem na sesmaria da família Brito, no
século XVI. Essas terras passaram por vários proprietários ao
longo dos séculos. Durante o século XIX ali funcionou uma
olaria. No entanto, o sobrenome que até hoje denomina a re-
gião onde ficavam as terras da antiga fazenda é o do ilustre ca-
feicultor Ignácio Xavier Salgado (o “Salgado”). O personagem
foi citado por Monsenhor Pizarro como um dos pioneiros no
plantio do café e também foi mencionado no conhecido relató-
rio do Marquês do Lavradio, como proprietário de uma lancha
Muro de contenção na Freguesia de N. Sra. da Guia de Pacobaíba.
A última proprietária de relevância seria a Sra. Emília Rosa
Corrêa Guedes, que herdara de seu falecido marido uma olaria
nesse local na segunda metade do século XIX, empreendimen-
to que passou a se chamar Olaria Viúva Guedes & Filho. Essa
olaria tinha um duplo e triste diferencial: o uso de mão de obra
de crianças oriundas das colônias de órfãos de Vila Estrela, além
do trabalho escravo. Como tantas outras da Baixada Fluminense,
também a Fazenda do Salgado experimentaria, após longo apo-
geu, o ciclo da decadência, abandono e esquecimento ao falir e
ser inteiramente engolida pela floresta. Isto, até suas ruínas serem
reencontradas em 2021, por mero acaso, a partir de antigas lem-
branças de infância partilhadas em uma simples conversa...

* O autor, divulgador da História de Magé nas redes sociais,


é pesquisador especialista em trabalhos de campo e sítios arqueológicos
Referências bibliográficas:
DELPHIM, Hugo. A Fazenda e Olaria do Salgado. Rio de Janeiro, 03 mar. 2020. Facebook: O belo e histórico
Rio de Janeiro. Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid0fB9rxDfdsGgRq6goJL-
3Rh8ifJZemw5gC7NcVqFQEBMEWV49ok1hcJj6DyzcT94DQl&id=101137991930308&mibextid=Nif5oz
Acesso em: 05 abr./2023.
SANTOS, Beatriz Souza dos. Um projeto para educar órfãos, desvalidos, ingênuos e libertos no recôncavo
da Guanabara: uma análise do regimento das colônias orfanológicas de Estrela (1876-1882). 31° Simpósio
Nacional de História. ANPUH, Brasil, jul. 2021. Disponível em: https://www.snh2021.anpuh.org/arquivo/
downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOj-
Fragmentos de cerâmica Q6IjM3ODkiO30iO3M6MToiaCI7czozMjoiNDk5MmNmNjNmNDNjOTE0NzRjZTM1ZmQ3ODkxZ
RmN2MiO30%3D Acesso em: 19 abr./2023.

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Álbum de fotos

Igreja de São José da Boa Morte - Cachoeiras de Macacu


Crédito: Delair Fraga

VestÍgios da Igreja de São João Marcos Interior da capela de N. Sra. da Estrela Ruínas da Igreja da Santíssima Trindade
rio claro Magé Cachoeiras de Macacu
Crédito: Antonio Carlos Maciel Crédito: Antonio Carlos Maciel Crédito: Antonio Carlos Maciel

capela de São Joaquim da Grama - Rio Claro


Crédito: Delair Fraga

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