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TÍTULO

A peleja dos homens na casa dos peixes: histórias do Mucuripe para além da risca.

APRESENTAÇÃO

As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou levar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar
(Belchior e Raimundo Fagner)

A proposta de pesquisa previamente intitulada A peleja dos homens na casa dos


peixes: histórias do Mucuripe para além da risca, aponta para uma reflexão crítica e
teórica em torno dos fazeres e saberes relacionados à pesca artesanal teimosamente
praticada na praia do Mucuripe, enseada hoje espremida entre luxuosos espigões
erguidos ao longo da avenida Beira Mar, área nobre da cidade de Fortaleza, cereja do
bolo da especulação imobiliária. Privilegiando as narrativas e a oralidade própria dos
homens e mulheres do mar, reconhecidos mestres na arte de contar histórias, tributários
de uma tradição oral também resistente, o “mergulho” nas águas profundas do cotidiano
praieiro e de um ofício que agoniza, mas não morre, busca dar registro a um ritual
secular (de vida e trabalho) que resiste e também se adapta ao sinal dos tempos.
Território referencial, a aldeia índia que se tornou porto de jangadas e vila de
pescadores, cuja feição original vem sendo desfigurada ao longo de décadas, tem na
origem do nome e da própria história controvérsias e simbologias. Para alguns
estudiosos, Mucuripe significa “rio dos mocós”, em alusão aos roedores que,
provavelmente, predominavam no lugar. Mas na pesquisa do escritor José de Alencar, a
etimologia apontou para algo mais poético, como “fazer alguém alegre”. Bem antes
destes, no entanto, há um curioso batismo em espanhol: Rostro Hermoso. Esse seria o
nome com que o navegador Vicente Pinzon teria dado à enseada ainda antes de 1500,
contrariando, portanto, a aparentemente intocável versão oficial de que o Brasil teria
sido descoberto pelo português Pedro Álvares Cabral.
Em seu Geografia Estética de Fortaleza, o historiador cearense Raimundo Girão
adere à tese, respaldado por mapas seculares, registros resguardados em museus e
diferentes fontes bibliográficas. Para ele, os espanhóis chegaram ao Brasil primeiro do
que os portugueses e só não tomaram posse das terras descobertas em respeito ao
Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, e que delimitava as áreas de expansão
marítima das duas grandes potências ultramarinas daquele período: Portugal e Espanha.
Portanto, reitera, o Brasil teria mesmo sido descoberto via Mucuripe e não pelas areias
de Porto Seguro, na Bahia.
A improvável comprovação do fato não diminui o valor simbólico do
acontecimento que ainda paira no ar, vivo na memória de cronistas locais e de muitos
pescadores nascidos no Mucuripe. Em rodas de conversa, entre veteranos e novatos do
mar, esse é um dos muitos relatos que remontam às primeiras décadas do século XX,
época em que, no Mucuripe, ainda se pescava em jangada de piúba e a avenida Beira
Mar era a Rua da Frente, tomada de palhoças e choupanas, as modestas moradas dos
jangadeiros, expulsos, com o tempo, para o alto dos morros circundantes, onde hoje
vivem às voltas com um agudo processo de favelização. Dessa época, é a saga da
jangada São Pedro que, em 1941, deixou Fortaleza em direção ao Rio de Janeiro,
levando a bordo quatro jangadeiros dispostos a cobrar direitos trabalhistas junto ao
então presidente Getúlio Vargas.
A aventura bem sucedida, que ganhou repercussão nas mídias nacional e
internacional, encantou particularmente o cineasta norte-americano Orson Welles, que
escreveu um roteiro baseado na história real, onde os quatro jangadeiros iriam reviver, à
frente das câmeras, passagens daquela viagem. Mas um acidente fatal no decorrer das
filmagens vitimou um deles, Jacaré, e, por este e outros motivos de caráter político, a
obra não pôde, à época, ser finalizada. Depois da jangada São Pedro, pelo menos outras
quatro embarcações, guiadas por intrépidos jangadeiros, seguiram exemplo e
enfrentaram mares e tempestades chamando atenção para trabalhadores historicamente
desassistidos. Um dos aventureiros ainda vive. Em 1972, José Eremilson Severino Silva
navegou do Mucuripe até São Paulo para olhar nos olhos do ditador Emílio Garrastazzu
Médici, conquistando, por fim, o benefício da aposentadoria para ele e toda a classe.
Essa e outras histórias (oficiais ou não) fazem do Mucuripe, desde seus
primeiros habitantes, um ir e vir de memórias, um mar de histórias e invenções
narrativas sempre em movimento, entreposto para cruzamentos de tempos e espaços. De
areia e asfalto, o Mucuripe dos viajantes e atravessadores, do baixo meretrício e da
comunidade pesqueira que navega à deriva em meio à ferocidade do trade turístico e sob
a luz ofuscante da vista-mar mais cara da cidade, é um locus concentrado de uma
complexa experiência de cidade e convivência coletiva. Um meio que também é
mensagem, apontando para o que a jornalista e pesquisadora da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Consuelo Lins, chamou de “memória do presente”. “Partindo
da geografia, a história e a memória ganham uma outra substância, estão ligadas à terra,
às pessoas, a suas fabulações, aos encontros, misturam-se com o cotidiano. As marcas
de diferentes passados coexistem com o presente, sem que sejam estabelecidas relações
de causalidade ou de sucessão entre o que está sendo mostrado. Há uma superposição
não-cronológica das histórias (...)”, observou.
Ir ao encontro de substratos de memória inscritos nos gestos, no cotidiano e na
capacidade de contar (sobre si e sobre o Outro) dos hoje 3.500 pescadores associados à
Colônia de Pescadores Z-8, no Mucuripe, é compartilhar, no campo do sensível, e
refletir sobre as potencialidades e fragilidades de uma auto-intitulada comunidade “sem
patrão”, que sai para pescar com o nascer do sol, munida de não muito mais do que rede
e anzol, “domando” uma jangada de tábua. Em alto mar, flagrante e desleal
concorrência. Barcos a motor, arpão e compressor, instrumentais da pesca predatória,
arruinam não só a natureza como o ganha-pão de quem teima em não desaprender um
ofício marcado pela tradição de antepassados.
“Jangadeiro é filho de jangadeiro”, escreveu o pesquisador Luís da Câmara
Cascudo, no século passado, em seu Jangada – uma pesquisa etnográfica, reeditado em
2002. No Mucuripe, a premissa ainda pulsa, como atesta o atual presidente da colônia
Z-8, fundada em 1920. “Meu avô foi pescador e meu pai foi pescador, mas também
construiu a primeira jangada de tábua do Ceará, em 1944. Com ele aprendi esse ofício,
fizemos juntos dezenas de jangadas. E hoje me sinto orgulhoso de defender a minha
classe. Sou um grão de areia na beira da praia, uma gota d´água nesse oceano, mas
como diz o português Fernando Pessoa, navegar é preciso e viver também é preciso, né?
Pois vou viver nessa luta pelo pescador, que, é bom que se lembre, depois do índio é o
habitante mais antigo do Brasil”, dispara o carpinteiro naval Possidônio Soares Filho.
OBJETIVO

Pesquisar e compor um registro, de caráter crítico e teórico, em torno dos


saberes e fazeres da comunidade pesqueira da praia do Mucuripe, em Fortaleza,
valorizando a memória, o potencial criativo e a oralidade própria dos homens e
mulheres do mar.
Manter acesa e conectada a matéria narrativa dos pescadores do Mucuripe, seu
patrimônio cultural, bem como suas diversas formas de convivência e invenção, fazendo
emergir do esquecimento e do obscurantismo as tradições inerentes à pesca artesanal e
as transformações sócio-culturais absorvidas com o passar dos anos.
Com isso, valorizar a cultura tradicional popular e oferecer substratos para a
construção coletiva de uma memória social, sem a qual não há transmissão de
conhecimento e pleno desenvolvimento humano a partir do intercambiar de
experiências.

JUSTIFICATIVA

Ainda em 1936, o filósofo alemão Walter Benjamin lançou luz, em texto


intitulado O Narrador, sobre uma flagrante falência da arte de narrar diante do secular
empobrecimento da experiência coletiva no evoluir das forças produtivas. Para ele, a
perda do sentido de comunidade, a distância entre os grupos geracionais e a rapidez
mecanicista imposta pelo trabalho industrial, em contraponto à temporalidade mais
global do trabalho artesanal, roubaram o tempo para contar, comprometendo
profundamente a transmissão de experiência em sentido pleno. Textualmente, disparou:
“... a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que
sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa,
o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos
parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”.
Atento ao processo de consolidação da burguesia, representada e referendada
com o surgimento da imprensa, Benjamin também soube apontar para o esvaziamento
das relações sociais sob o ponto de vista dos então novos veículos de comunicação
massiva. Para ele, quando os fatos passaram a nos chegar carregados de explicações,
aspirando uma verificação imediata, “ficamos pobres em histórias surpreendentes, o
extraordinário e o miraculoso foram varridos e o homem passou a desprezar o que não
podia ser abreviado”. Sensível ao dom de ouvir e evocando a figura de Scherazade para
valorizar o recontar das histórias - ou o “coroamento das várias camadas constituídas
pelas narrações sucessivas” -, enfatizou: “A informação só tem valor no momento em
que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem
perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se
entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se
desenvolver”.
No Brasil, historicamente, os meios de comunicação de massa deram as costas
ao potencial narrativo de existências comuns ignoradas pela chamada história oficial e
soterradas em meio a estereótipos e clichês da contemporaneidade. Via de regra, a
informação venceu o acontecimento. E o mito da objetividade telegráfica seguiu
calando as subjetividades de possíveis narrativas, sobretudo as de uma maioria
economicamente desfavorecida, cujos valores e trocas simbólicas não pareciam
atraentes a uma indústria cultural de viés fortemente mercadológico, refém de fontes
consagradas ou oficiais. Portanto, a restrita visibilidade dada ao esplendor e a
fragilidade dos narradores de um Brasil profundo, pessoas tributárias de uma tradição
oral, é uma dívida que precisa ser saudada ou pelo menos revista.
Os homens e mulheres do mar são representantes natos desse Brasil profundo de
sintaxe própria e com uma flagrante qualidade de imaginário. Notadamente os de idade
mais avançada, que, isolados em um universo lingüístico e simbólico, não carregam
marcas profundas da cultura da televisão ou do ensino formal e tiveram praticamente
uma única forma de se relacionar com o mundo: a palavra. A busca é por sujeitos que se
apropriam de sua condição e são criativos porque sabem narrar-se, reconfigurando a arte
de contar/lembrar e a faculdade de intercambiar experiências. O desafio também passa
por um outro modo de escuta, que deve dar tempo para que o ato de contar se desenrole,
criando condições para que o momento se adense e seja expressivo, abrindo espaço para
hesitações, surpresas e acasos.
O pensamento crítico e teórico, quando encarado como dispositivo de encontro,
onde quem entrevista e quem é entrevistado são igualmente afetados quando atuam
dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, faz coro ao desejo de uma chamada “escuta
ativa”, capaz de apontar para a possibilidade de invenção e força ficcional própria do
humano. Portanto, o que virá à tona em termos de matéria narrativa será resultado de
um fazer junto, com o Outro, o que é diferente, em essência, de um relato de caráter
meramente jornalístico sobre o Outro. A oralidade encantatória da própria comunidade
pesqueira dará o tom essencial da pesquisa, considerando que a história é dinâmica,
porosa e polifônica. Em seu estado seminal, a obra proposta quer ser aberta e dizer um
pouco do muito que ainda não foi refletido sobre a pulsação das invenções narrativas
banhadas de água e sal.

CRONOGRAMA DAS AÇÕES

MÊS 1 MÊS 2 MÊS 3 MÊS 4 MÊS 5 MÊS 6 Mês 7


Pesquisa de
X X
campo
Elaboração
X X X
de texto
Entrega do
relatório X
parcial
Revisão do
X
texto

Entrega do
X
produto final
PRODUTO FINAL DA PROPOSTA A SER DESENVOLVIDA

O produto final previsto para o projeto é a finalização de uma pesquisa crítica e


teórica sobre os fazeres e saberes que evocam as tradições e garantem a resistência da
pesca artesanal na praia do Mucuripe, considerando as transformações culturais, sociais
e econômicas ocorridas à luz da contemporaneidade. Privilegiando a oralidade da
comunidade pesqueira e valorizando sua capacidade de narrar-se, a costura das histórias
prima por uma fluidez textual que se propõe a dialogar com conceitos e reflexões
ligados à antropologia, filosofia, história e sociologia, sem, no entanto, incorrer em
academicismos. O esforço é para que a pesquisa se torne acessível do ponto de vista da
recepção e prazerosa do ponto de vista da fruição estética.
A pesquisa pretende ser disponibilizada em formato digital, de forma que,
prioritariamente, os 3.500 pescadores artesanais associados à Colônia Z-8 tenham
acesso, assim como a comunidade escolar da rede pública de ensino fundamental e
médio do Grande Mucuripe. De forma correlata, a pesquisa também é um convite ao
encontro para fóruns informais de debates em comunidades interessadas no assunto ou
entre grupos sociais diversos, organizados ou não.
Assim, virá a contribuir com a valorização e difusão da cultura tradicional
popular e oferecer substratos para a construção coletiva de uma memória social, sem a
qual não há transmissão de conhecimento e pleno desenvolvimento humano, a partir do
intercambiar de experiências.

TEXTO DE AUTORIA DO PROPONENTE DO PROJETO

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