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LITERATURA BRASILEIRA 28 DE FEVEREIRO DE 2020

Cartografias da diferença: Ruídos do


mar, imagens da alteridade, por Stefania
Chiarelli

«Quando a pátria que temos não a temos/Perdida por


silêncio e por renúncia/Até a voz do mar se torna
exílio/E a luz que nos rodeia é como grades».
Os versos de Sophia de Mello Breyner Andresen [1] convocam imediatamente
à analogia entre mar e banimento. A força poética das águas surge como
mote para evocar esse espaço de desterro. Se, ao não termos pátria, até a
voz do mar se torna exílio, se essa luz é cárcere, pode-se a partir de tais
ausências indagar a respeito do oceano como ponto de partida para desdobrar
em nosso imaginário o espaço marítimo. Brasil e Portugal têm muito a dizer
sobre esse lugar que nos une-aparta.

Um antigo ditado português já dizia: “Se queres aprender a rezar, atira-te ao


mar”. Ou ainda: “Na água seus crimes não contam”. O medo diante do
desconhecido e os perigos além da compreensão há séculos povoam nossos
sonhos. Do mesmo modo, faz-se presente a ideia de que o mar é espaço em
suspenso, onde as regras funcionam em outro diapasão.

Navios, falucas, batéis, vapores, barcos e balsas – todo esse conjunto diz algo
importante sobre o nosso tempo. Como afirma Márcio Seligmann-Silva, é
possível entender a história da modernidade «como história do Unbehagen
(mal-estar, desabrigo)» pois ela se desdobra e se deixa narrar a partir de
muitos navios [2]. Historicamente, em nosso mar se banharam três etnias
fundadoras – indígenas, muitas vezes representados como aqueles que
habitavam as bordas do continente, a fronteira entre o mar e a terra; africanos,
trazidos à força pelo oceano no bojo do projeto colonialista; e portugueses,
conquistadores ultramarinos e supostos navegantes por vocação. Todos de
alguma forma se relacionando com as já referidas embarcações, esses
«pedaços de espaço flutuantes», como Foucault define os navios [3].

Desde o período compreendido entre os séculos XV e XVII se impõe a


discussão acerca da navegação ligada aos descobrimentos e à empresa
colonialista. Inocência, passagem, ameaça: palavras que adquirem um sentido
maior. Para tanto, uma das perguntas cabíveis seria: de quem é o mar? E,
sobretudo, quem são os sujeitos que cruzam esse espaço, compreendido em
sua dimensão política, hoje e sempre? Piratas, aventureiros, degredados,
errantes, viajantes, migrantes, refugiados, fugitivos, escravos, peregrinos. A
lista é interminável. Mas sua condição, bastante limitada. Alguns podem
realizar a travessia mais do que outros.

Diz-se que Agátocles, tirano de Siracusa, numa expedição marítima contra


Cartago, ao desembarcar, teria mandado queimar todos os seus navios e
marchar contra a cidade, cujos habitantes derrotou. Evitava, assim, qualquer
possibilidade de fuga ou retorno. Queimar as naus significaria ir em frente,
sem pensar na possibilidade de voltar. Ou desistir. Os exemplos se somam na
história, e alguns mencionam os conquistadores espanhóis Pizarro e Hernan
Cortés. Gente que avançou, cruzou oceanos e destruiu.

Sobre o mar e naufrágios, vale a pena voltar a um episódio. A história consta


de um relato quinhentista. Ronaldo Vainfas [4] afirma que, durante a iminência
da tragédia, sobreviventes optaram por lançar carga humana ao mar, para
aliviar o peso do batel. Escolheram, segundo o historiador, um negro, um
cristão novo e um louco. Relatos de tragédias nos dizem muito, e
curiosamente, hoje, continuam a fazê-lo. Das velas portuguesas aos dramas
contemporâneos, a relação entre alteridade e espaço marítimo navega
conjuntamente no imaginário coletivo. E fica a pergunta: em cada época,
quem são os primeiros a serem atirados aos perigos do mar?

São as águas a grande promessa da carta de Caminha ao soberano de


Portugal, e não a terra, como via de regra se imagina: o lugar será proveitoso
por causa das águas que tem. Elas fertilizam, enriquecem, dão vida àquele
chão. Através delas chegam as caravelas portuguesas, nelas deslizam as
canoas dos nativos. E nessas águas muitos dramas e crimes irão acontecer. O
registro do encontro entre indígenas e portugueses se pauta pela ênfase na
suposta cordialidade dos primeiros e na convicção do colonizador da total falta
de crenças ou de lei que os organizasse. Portugal traria a ordem e, mais
importante, a semente da fé. No entanto, algo surge ali como um pequeno
chiste em meio ao relato tão convicto da superioridade lusa: índios e colonos
se encontram, mas não se efetiva inteiramente a comunicação porque “o ruído
do mar atrapalha” – palavras do escrivão. Deliciosa ironia da carta, cujo
objetivo era informar ao rei as potencialidades da nova terra, alcançada por
um perigoso mar, um mar (na visão dos portugueses) para sempre de
chegada, espaço de conquista e dominação. Mas as águas podem trair – é
possível afundar, naufragar… e o oceano aparece como elemento que, apesar
de facilitar o acesso dos portugueses ao novo lugar, pode também impedir
com seus ruídos a conversa entre os estranhos. Se barulho não houvesse, o
que diriam uns aos outros? Em que língua? Poderiam todos de fato exprimir
seus pensamentos mais escondidos?
Surge então esse mar como testemunha nada emudecida: ele produz ruídos,
emite barulhos, sussurra outras histórias. Uma parte delas se pode ainda
desvendar, indagando sobre o caráter mais dramático do oceano – quando ele
surge como lugar político, por onde podem ou não transitar os sujeitos.
Atravessando os séculos, é possível pensar em como o oceano surge como
arena de disputas e de grande simbologia. Sujeitos escravizados e
marginalizados são aqueles que em geral protagonizam essas terríveis
histórias ainda por contar. Quem atravessa o mar, como, porquê, e, sobretudo,
onde eles chegam – e se chegam. Tratam-se de perguntas que movem esta
pesquisa: errantes, degredados, párias, (i)migrantes e refugiados nos
convidam a problematizar esse tema incontornável do mundo contemporâneo.

Leila Danziger [5] lembra que à história do mar Mediterrâneo se acrescentam


hoje novas e terríveis camadas de sentido, uma vez que ele se encheu de
embarcações precárias, e lugares de nomes como Lesbos, Lampedusa e
Kalymnos habitam nossa mente como uma memória do desespero
contemporâneo, em um «fluxo migratório ininterrupto, em que inexistem
identificações dos refugiados, mas apenas nomes de praias e portos,
coordenadas geográficas, números e descrições aproximadas de corpos».

Os indivíduos se transformam em números, estimativas, papéis sem nome ou


fichas de identificação empilhadas. Como o corpo do menino sírio Aylan Kurdi
encontrado morto em uma praia da costa turca, não há palavra suficiente para
nomeá-los. Mas há que se empreender o gesto.

O assunto surge como pauta obrigatória A criança fora reportada com o nome de
nas discussões de hoje, em que Aylan Kurdi, mas depois identificado
nacionalismos se agudizam, o crescente como Alan Kurdi.
fechamento de fronteiras é preocupante,
e a atitude de exclusão contra migrantes e refugiados se torna visível em
discursos ensandecidos como os de Donald Trump, entre outros. Uma massa
de mais de 65 milhões de pessoas vive atualmente a situação de deriva e
desabrigo. É preciso dar visibilidade, convocar o olhar e a indignação diante
de tanta atrocidade. Porque tudo isso está muito perto, mas vem de longe.
São histórias de migrações forçadas, diásporas individuais e coletivas,
relações assimétricas entre colonizadores e colonizados. E o mar como
estrada líquida.
O limite é delicado, e consiste em pensar como figurar poeticamente essa
dura condição. Como toda crise humana, pode e deve ser contemplada pela
arte para que se possa ir além do mero documento ou da retórica da boa
vontade. Para que se evite que o Outro se torne o “dócil corpo da diferença”
nos discursos contemporâneos do multiculturalismo, como alerta o crítico
Homi Bhabha [6]. Para que não vire oportunismo midiático, mero assunto,
simples renovação de pauta. É preciso mais, é necessária antes de mais nada
uma postura ética diante dessas imagens.

Somos todos viajantes e esse espaço de intervenção é no aqui e agora, como


nos fala Bhabha: “O passado-presente torna-se parte da necessidade, e não
da nostalgia, do viver” [7]. E é preciso escolher comprometer-se, não desviar o
nosso olhar. Se tais embarcações se encontram impedidas de lançar âncora –
navios que não atracam em

lugar algum e permanecem em espécie de limbo, – aqui a página e a tela as


acolhem. Como afirma Raphael Fonseca[8], «o tempo e o espaço podem
separar os botes e os navios, mas o medo de fugir e de chegar, além da
dúvida sobre a vitalidade do corpo nessa trajetória, é latente – e não pode ser
esquecido».

Rodeados pelo mar e suas representações, seguimos perplexos procurando


entender o nosso tempo a partir de projeções de um passado que não cessa
nunca de produzir sentidos. Náufragos também, porque sobreviventes de um
tempo penoso para a humanidade, em que sujeitos deslocados à força
sucumbiram.
Faz-se necessário, hoje, mergulhar de fato na experiência da escuta desses
ruídos e vozes que vêm do mar, pensando em suas ressonâncias arcaicas.
Essa é tarefa ética que se impõe.

Stefania Chiarelli  é Professora Adjunta de Literatura Brasileira na


Universidade Federal Fluminense, realizou os estudos de mestrado em Teoria
Literária pela Universidade de Brasília (1997) e doutorado em Estudos de
Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005).
Publicou os ensaios  O cavaleiro inexistente de Italo Calvino – uma alegoria
contemporânea (1999) e  Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e
Milton Hatoum (2007), e co-organizou as coletâneas Alguma prosa – ensaios
sobre literatura brasileira contemporânea  (2007),  O futuro pelo retrovisor:
inquietudes da literatura brasileira contemporânea  (2013),  Falando com
estranhos – o estrangeiro e a literatura brasileira (2016) e Atores em cena – o
público e o privado na literatura brasileira contemporânea (2017).

[1] Sophia de Mello Breyner Andresen, In Livro Sexto, p. 48. [2] SELIGMANN,


MARCIO.  Todos os navios?, in: Leila Danziger (org.),  Navio de Emigrantes,
Brasília/São Paulo (2018), v. 1, p. 31-37. [3] Conferência proferida no Cercle
d’Études architecturales em 14 de março de 1967, e publicada originalmente
em  Architecture, Mouvement, continuité, n.5, outubro 1984, p.46-9. Foucault
somente autorizou a publicação deste texto, escrito na Tunísia em 1967, na
primavera de 1984 [Nota do Editor do Original]. [4] Apresentação in Madeira,
Angélica.  Livro dos naufrágios: ensaio sobre a história trágico-marítima.
Brasília: UnB, 2005.  [5]  A professora, poeta e artista visual apresentou a
exposição “Navio de emigrantes” em 2018, sondando formas de
representação dos trágicos deslocamentos pelo Oceano Atlântico e o mar
Mediterrâneo. DANZIGER, Leila; FONSECA, R.; SELIGMANN-SILVA,
M.. Navio de Emigrantes. 1a. ed. Brasília – São Paulo: CAIXA CULTURAL A
DUPLA (2018). v. 01. 80p.  [6-7]BHABHA, Homi K.. O Local da Cultura. Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2010.

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