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liberado, 

mariana ianelli

Os barcos da mãe
Anotações sobre um quadro de 1957, pintado pelo avô da cronista, no qual se vê uma
festa quieta de mastros e cordames entrecruzados

MARIANA IANELLI SÃO PAULO - SP

# CRÔNICAS, EXCLUSIVO SITE, MARIANA IANELLI

Ilustração: Barcos, de Arcangelo Ianelli

         

26/02/2022

Paro um pouco e me perco a olhar aqueles barcos estacionados na água, e é


aí que me dou conta de que do mesmo modo que guardamos memória dos
lugares onde lemos certos livros, assim, imagem dentro de imagem, também
há quadros cuja memória vem colada aos lugares onde os observamos com
demora. Os barcos que eu olhava agora há pouco, por exemplo. Sempre os vi
encimando a cabeceira da cama da mãe. Um quadro de 1957, época pródiga
em barcos e estaleiros na pintura do meu avô.

Mais de cinco casas diferentes ao longo dos últimos trinta anos e o mesmo
quadro, de mais de um metro de mar e quase isso de montanha ao fundo,
sobre a cama da mãe, como se já fizesse parte de sua existência de cais um
quarto em volta, e não qualquer quarto, mas o da mãe. Uma festa quieta de
mastros e cordames entrecruzados, com uma serra azul ao fundo, tudo ali
atracado, embalando, adormecendo o arrojo das viagens em proas meio
arrebitadas, uns de lado, outros de frente para quem vê, todos cuidando de
avolumar nesse encaixe flutuante aquele outro corpo imenso e cavo do
silêncio. Assim também em outros quadros de barcos pintados pelo avô, esses
mastros iludindo fincar-se numa espera sonolenta e, mesmo os de velas
enfunadas, já vogando, todos eles barcos sem sinal de gente.

Esses que acompanham a mãe há tanto tempo, imagino que ritmem seu sono
na vibração calma dos azuis que o cercam. É como os vejo: velhos viageiros
de guarda no cais de um quarto, absorvendo o sonho ambiente. Tudo em
vigília espelhada, barcos sobre sonhos e sonhos sobre águas, cais e quarto em
líquida contiguidade, sem sobressaltos nem pesadelos.

MARIANA
Nasceu em SãoIANELLI
Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia
em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É
também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho.
Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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