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itamar vieira junior, 

liberado

O missal de Clarice
Neste ano que tudo parece fora de lugar, o Natal ganhou um significado ainda mais
triste. Há milhões de famílias enlutadas ao redor do mundo

ITAMAR VIEIRA JUNIOR SALVADOR - BA

# EXCLUSIVO SITE

         

27/12/2020

Costumo passar as festas de fim de ano em casa: telefono para amigos e


parentes mais velhos e que vivem sozinhos; recordo dos que têm passado
dificuldades e procuro saber como estão. Mas não gosto do Natal. Sempre me
pareceu uma celebração triste. O evento da Natividade, contado todos os anos
por minha avó materna, parecia estar restrito apenas ao presépio de sua casa.
Nas ruas, eu encontrava desigualdade e diferenças imensas dos que podiam
celebrar consumindo e dos que nada podiam ter. Muitas vezes ao acompanhar
minha mãe nas compras, eu via crianças chorarem por não poderem ter os
presentes que gostariam. Também via meus primos chorarem desapontados
ao abrirem os embrulhos deixados no pinheiro de plástico com chumaços de
algodão fazendo-se da neve, porque quase sempre o que ganhavam não
correspondia às propagandas veiculadas dia e noite na TV. Não raro tudo
acabava numa enorme confusão com crianças e pais chateados.

Depois trabalhei no comércio durante os primeiros anos da vida adulta e, além


de ser um período em que trabalhava exaustivamente, era também o que mais
via consumidores agressivos, maltratando pessoas, brigando por objetos e se
aproveitando de sua posição para humilhar os que lhes serviam. Famílias
carregando as empregadas domésticas e babás para as compras como se elas
não tivessem as suas próprias famílias ou coisas mais interessantes a fazer.
Assim como via pessoas correndo de um lado a outro; ruas e transportes
públicos lotados. Era cansativo demais tudo isso, de forma que foi libertador ir
na contramão e não celebrar as festas de fim de ano.

Uma vez meu pai fez um grande sacrifício – aliás sua vida toda foi de grandes
sacrifícios – e comprou presentes para mim e meus irmãos em suaves
prestações. Eu tinha 11 anos e foi um dos últimos presentes que ele pôde me
dar, depois a situação financeira da família só fez piorar: uma máquina de
escrever Olivetti Lettera 82. Era verde e virava uma pequena maleta. Foi um
dos presentes mais preciosos que ganhei e a máquina foi minha companheira
nos dez anos seguintes. Escrevi contos, iniciei romances – As primeiras 80
páginas de uma versão perdida de Torto arado nasceram nela – tudo
datilografado com os dois dedos indicadores porque nunca pude fazer um
curso de datilografia. Depois descobri que Jorge Amado escrevia do mesmo
jeito.

Mas neste ano que tudo parece fora de lugar o Natal ganhou um significado
ainda mais triste. Há milhões de famílias enlutadas ao redor do mundo por
conta da pandemia do coronavírus. Lembro-me de como foi o meu primeiro
Natal sem minha avó, sem seus presépios. De como esse vazio, por mais que
o tempo passe, continua a ser um vazio pelo simples fato de que as pessoas
são únicas. Ao olhar para os lados percebemos que as pessoas continuam a
sofrer com familiares internados ou que não resistiram, tudo numa escala
talvez nunca imaginada por nenhum de nós. Como os sobreviventes de 2020
recordarão deste ano no futuro?

Quando comecei a escrever esse texto pensei em contar um pouco da minha


experiência pessoal com Clarice Lispector, que acaba de completar um século.
Mas assim como seus textos seguiam por caminhos não planejados, terminei
aqui. Recordei de uma crônica sua, especial, publicada no Jornal do Brasil no
ano de 1968 e intitulada Meu Natal.  Nela, Clarice conta que os filhos pequenos
dormiam cedo e não conseguiam acompanhar as ceias natalinas. Ao descobrir
que uma amiga havia perdido os pais e passava a noite de 24 de dezembro
dormindo depois de uma boa dose de ansiolíticos, ela combinou que as duas
jantariam todos os anos num restaurante. Lá veriam muitas pessoas solitárias
que faziam o mesmo. Clarice ainda conta que havia um trato: “Nós
combinamos que cada uma paga a sua parte no jantar e que trocaremos
presentes: o presente é a presença de uma para a outra”.

Mas teve um Natal que a amiga rompeu o trato e lhe deu de presente, a ela
que não era religiosa, um missal com o pedido: “reze por mim”. No ano
seguinte, Clarice sofreu um acidente enquanto dormia: um incêndio de grandes
proporções destruiu seu quarto, móveis e livros. As queimaduras pelo corpo lhe
deixaram entre a vida e a morte por alguns dias, e outros tantos foram
necessários para poder deixar o hospital. Depois ela realizou muitas cirurgias
reparadoras nas pernas e no braço direito, que nunca mais foi o mesmo;
terminou a vida ostentando esse braço como um galho retorcido e um cigarro
entre os dedos. Do quarto destruído só restou intacto o missal que não queria.

2020 foi o ano em que a constatação da fragilidade da vida me remeteu às


palavras finais de Água viva: “Aliás não quero morrer. Recuso-me contra
‘Deus’. Vamos não morrer como desafio?”. A recordação dessa batalha, do
desafio de não morrer – de doença, de indiferença, de falta de democracia –
será como o missal que Clarice não queria, e por triste ironia resistiu ao
incêndio que lhe tirou muito.
ITAMAR VIEIRA
Nasceu em Salvador JUNIOR
(BA), em 1979. É escritor, geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela
Universidade Federal da Bahia. Publicou os livros de contos Dias (2012) e A oração do carrasco (2017) e o
romance Torto arado (2019), vencedor do Prêmio Leya.

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