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A matemática do abraço
No vasto âmbito dos abraços — burocrático, apressado, carente, contido, impaciente,
sufocante, afoito, grudento — a ânsia pelo enlace perfeito
21/11/2021
No começo, achei meio esquisito, fantasiar um negócio desses com uma amiga. Aos
quarenta e seis anos já fantasiei quilômetros de abraços raramente fraternos Vez ou
quarenta e seis anos, já fantasiei quilômetros de abraços, raramente fraternos. Vez ou
Enquanto esperava na fila de embarque, imaginava a cena. Minha amiga abrindo a porta,
trocando um sorriso comigo. Eu largando a mala na soleira, meus braços envolvendo seu
corpo tão menor que o meu, o cheiro de xampu de camomila que ela usa desde a
adolescência, o amor fluindo sem aquela preocupação de estar sendo inconveniente, de
estar abraçando de mais ou de menos. No vasto âmbito dos abraços — burocrático,
apressado, carente, contido, impaciente, desmesurado, sufocante, afoito, parco, frouxo,
grudento, desconjuntado — eu ansiava pelo enlace perfeito. A intensidade e a secundagem
mágica que atende a abraçantes em igual medida, como se num simpósio pregresso fosse
definido o ângulo de cada bíceps, a força depositada em cada falange, os segundos e os
décimos de segundo que riscam a linha tênue entre a saciedade e o fastio.
Ainda era noite quando o táxi me deixou na frente de um predinho amarelo na rua São
José. Lisboa ainda dormia profundamente, nem os caminhões de carga e os esportistas que
costumam rasgar a manhã estavam pelas ruas. Só a luz amarela dos postes refletindo na
calçada de pedra. O táxi partiu e eu fiquei na frente do prédio, considerando fazer hora ali
mesmo, de pé junto a minha bagagem, absorvendo a sensação de voltar à vida. Depois de
quase dois anos trancada no meu apartamento, sentir a lufada de possibilidades que se
sente ao chegar de viagem a uma cidade. Aquele momento que será lembrado ao irmos
embora, quando olhamos para trás e nos vemos inocentes a tudo o que viria.
Infelizmente, cabeça e olhos são sustentados por pares de pernas, e essas cansam. Depois de
divagar alguns minutos, concluí que passaria a odiar meu destino e suas possibilidades se
tivesse que ficar ali de pé por uma hora. Me aproximei da porta e toquei o interfone.
Minha amiga demorou a atender, certamente estava dormindo. Abriu?, finalmente
perguntou, e a porta descolou-se do batente, revelando um lance de escadas longo e
íngreme. Olhei para minha mala, um volume de brasileira acostumada a elevadores e (que
constrangedor) a bíceps de porteiros. Parti lance acima como quem carrega um cadáver
cultural, prometendo a mim mesma que pararia com a mania de trazer tantos sapatos e o
dispensável secador de cabelos. Tive que parar para tomar fôlego umas três vezes. Quando
cheguei ao andar, não consegui nem olhar nem sorrir para minha amiga, quanto mais
largar a mala no chão. Cambaleava com o cansaço, no esforço final de empurrar a bagagem
para dentro.
Só então me aprumei para abraçá-la, mas o gesto foi interrompido pela lembrança de que
eu estava com máscara e de que tinha acabado de passar a noite no avião, com a roupa suja
de mundo pandêmico. Titubeei, ela titubeou também, os quatro braços no ar sem saber o
que fazer, eu logo vendo que deveria tirar os sapatos, me abaixando para fazê-lo. Quando
levantei, a aura estava desfeita. Acho que trocamos um beijo rápido, nem tenho certeza,
pois o companheiro dela apareceu e já fomos para a sala, discutindo a possibilidade de
tomar ou não um café.
Alguns dias depois, enquanto falávamos alguma bobagem, viramos uma para a outra,
começamos a rir e, quando me dei conta, estávamos dentro de um abraço. Ou de um
amplexo, esse sinônimo tão bonito para a palavra abraço, que sugere de onde ele deve
partir: do plexo, que nada sabe mas sempre sabe a hora certa.
GIOVANA MADALOSSO
Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É autora de A teta racional (livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca
Nacional), e dos romances Tudo pode ser roubado (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio.
Ú LT I M AS E D I Ç Õ E S
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