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“A Viagem do Elefante” de José Saramago

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“A Viagem do Elefante” de José Saramago 


por: Viegas Fernandes da Costa

 
Há quem diga que a carícia da morte devolve-nos uma leveza e um certo humor que perdemos
com o transcorrer dos anos. Há quem diga, claro, ser isto pura bobagem. Bobagem ou
verdade, no final de 2007 o escritor português José Saramago (Prêmio Nobel de Literatura em
1998) enfrentou problemas respiratórios gravíssimos que por pouco não o levaram a óbito.
Recuperado, tratou de concluir seu mais novo livro, “A Viagem do Elefante” (Ed. Companhia
das Letras, 2008), uma novela teimosamente referenciada de conto pelo próprio autor.
“A Viagem do Elefante” ambienta-se em meados do século XVI, e conta a história do elefante
Solimão (ou Salomão, como é chamado depois de passar à propriedade austríaca) e seu
cornaca Subhro (ou Fritz, cujo nome também é modificado, pois, enquanto tratador e guia,
acompanha o elefante e os desígnios aos quais este é submetido). Solimão era propriedade do
império português, e vivia um tanto quanto esquecido em Lisboa, sob os cuidados de Subhro.
De pouca ou nenhuma serventia aos interesses do rei D. João III, o elefante é presenteado ao
arquiduque austríaco Maximiliano II, recém casado com a filha do imperador Carlos V, que
aceita o presente e imediatamente procede a mudança dos nomes de Solimão e Subhro para
Salomão e Fritz. A partir de então, o narrador passará a contar a história da longa viagem
empreendida por Salomão e Fritz, primeiramente de Portugal a Espanha, onde se detinha a
comitiva de Maximiliano II, e de Espanha a Áustria, incluindo-se aí uma perigosa viagem
marítima pelo Mediterrâneo e uma quase suicida travessia dos Alpes.
Para quem se acostumara à densidade de livros como “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”,
“Ensaio Sobre a Cegueira”, “Memorial do Convento” entre outros, este “A Viagem do Elefante”
aparenta uma simplicidade e uma linearidade que parecem destoar da obra do autor;
entretanto, é nas tergiversações dos personagens e do narrador que reside a maior qualidade
da obra. A história serve apenas como pano de fundo para que José Saramago exercite seu
mais fino humor e sua mordaz ironia à burocracia de Estado e à corrupção intrínseca dos

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“A Viagem do Elefante” de José Saramago

indivíduos. Assim, não foi casual a escolha de um elefante como personagem central do livro.
É Solimão (ou Salomão) que move a burocracia de um Estado inoperante, muito mais
preocupado com sua perpetuação e imagem, do que com sua eficiência junto às necessidades
de seu povo, e é em torno e em função dele que se destacará toda uma comitiva e para qual
se contratarão funcionários que possam surprir suas necessidades particulares e tornar
possível e segura sua viagem. Solimão é, desta feita, o próprio Estado, cuja ineficácia
burocrática José Saramago discutiu em livros como “Todos os Nomes” e “Ensaio sobre a
Lucidez”, dentre outros.  Subhro (ou Fritz), o cornaca, por sua vez, constitui-se como
personagem complexo: indiano de origem, emigrou para Portugal acompanhando Solimão, a
quem trata, treina e guia. Apesar de servir a seu soberano, seja este o rei português ou o
arquiduque austríaco, é dado a arroubos de autonomia, e chega a contestar e ironizar seus
superiores hierárquicos. Sabendo-se fundamental aos interesses do seu governo,
considerando ser o único a conhecer as manhas e artimanhas de Solimão, Subhro emite suas
opiniões próprias e, em nome do bem-estar do elefante (e, consecutivamente, dos interesses
de Estado), chega a impor condições para a viagem. Entretanto, como todo ser humano,
deixa-se levar também por seus interesses próprios e, sempre que pode, usa do Estado (no
caso, Solimão) para obter lucros e benefícios pessoais, como no episódio em que passa a
vender pelos do animal a uma população crédula, depois de ter usado o paquiderme para forjar
um milagre – uma clara referência ao momento em que a história é ambientada, quando na
Europa eclodiram os movimentos da Reforma Protestante e da Contra-Reforma Católica.
   Como já dissemos aqui, há quem diga que a carícia da morte devolve-nos uma leveza e um
certo humor que perdemos com o transcorrer dos anos. Fato é que em “A Viagem do Elefante”
encontramos um Saramago mais leve, consciente da importância da sua literatura, porém
ciente, também, de que talvez já tenha dito o que havia para se dizer, e que a esta altura de
sua vida e carreira importa mesmo o prazer de escrever uma boa história.
Por isso, talvez, a impressão de um Saramago sorridente que nos acomete quando fechamos o
livro.
 
* Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor, autor de “Sob a luz do farol” (2005) e “De
espantalhos e pedras tambémm se faz um poema”. © Permitida a reprodução desde que citado
o autor e o texto mantido na íntegra. http://viegasdacosta.blogspot.com
 
** Texto originalmente publicado no site www.bc.furb.br/saraueletronico

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