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ILHAS LITERÁRIAS: ESTUDOS DE TRANSÁREA

Ilhas literárias: estudos de transárea é um grande arquipélago formado por seis ilhas,
reunindo artigos de cunho comparatista e a partir da noção de transárea que, segundo Ottmar
Ette, funda-se em concepções móveis de espaços e territórios.1 A obra apresenta um conjunto
de investigações em torno de temas e abordagens que se abrem à pluralidade e à mobilidade
no modo de pensar a literatura. Através de atravessamentos, cruzamentos e deslizamentos que
se operam no espaço de diversas áreas, os trabalhos promovem o diálogo entre a literatura e
outros domínios como a tradução, o cinema, a música, a filosofia, a política e a história. Os
estudos aqui reunidos são resultado do avanço da Literatura Comparada, que tem transposto
os seus limites em direção a um debate não só inter- e transdisciplinar como transareal. Nesse
sentido, a obra estabelece profícuas relações com outras áreas artísticas e científicas do
conhecimento, promovendo a discussão teórica e crítica sobre os desafios de ser e viver no
presente caracterizado pela mobilidade espaço-temporal e identitária.
Na primeira Ilha, Pirataria! Apropriações e adaptações, deparamo-nos com o campo
dos piratas, falsários, traidores, ladrões, abigeatários, apátridas, infiéis, mercenários, mestiços,
impuros: na história da cultura, os agentes da adaptação e da tradução sempre precisaram
negociar naquele intermédio que causa repulsa aos gestores do centro. A palavra
“apropriação”, polissêmica e multidisciplinar, pode ser usada para designar práticas
predatórias, mas pode também se referir a posições de resistência — ou ainda, a diferentes
combinações desses dois polos éticos. Por outro lado, como bem recorda Evandro
Nascimento, é na apropriação, devida ou indevida, que reside a possibilidade da duração. “Na
vida como na arte, a mais perfeita mímesis faz ressaltar a diferença, a singularidade
irreproduzível. Disso sabem muito bem os ‘falsários’, quer dizer, os infiéis tradutores que,
como os bons escritores, colaboram ativamente para a supervivência de uma incomparável
literatura.” 2 A despeito do muito que avançamos no reconhecimento da natureza
intrinsecamente intersemiótica do fenômeno da intertextualidade, particularmente a partir dos
estudos de transmidialidade, as relações entre “originais” e “cópias” apresentam-se ainda mais
tensas quando envolvem, de um lado, obras canônicas e artes prestigiosas, e, de outro,
manifestações culturais massificadas e populares, tais como o cinema comercial, as séries
televisivas, os quadrinhos, videogames, entre outros. Nesse sentido, a ilha visa congregar
estudos acerca de adaptações, apropriações, traduções intersemióticas e diálogos inter- e
transmidiáticos que problematizam ou questionam tais preconceitos anacrônicos.
Literatura ao Sul, a segunda ilha, tem por objetivo responder o que têm em comum
autores como Mario Benedetti, Gabriela Mistral, Jorge Luis Borges, Alfonsina Storni, Gabriel
García Márquez, Patrick White, J. M. Coetzee, Janet Frame, Mia Couto e Erico Verissimo.
Certamente são escritores consagrados em seus próprios países. Mas, para além disso (e,
acima de tudo, reconhecendo suas diferenças linguísticas, históricas e culturais), seus locais
de origem convergem para um único ponto no nosso planisfério, o mesmo local no mundo, o
mesmo hemisfério: o Sul. É dali que seus pontos de vista emergem e, cada um a seu modo,
formam um retrato que nos últimos tempos tem recebido atenção. A ideia desta iha é olhar
para o Sul e além do Sul. Interessa o Ocidente no Sul, que não pode deixar de ter uma relação
desigual (de periferia) com os centros mais antigos e mais poderosos do Ocidente. Mas as
várias maneiras possíveis de se lidar com essa condição são um assunto rico para
comparações. O Sul pode se olhar sem fingir ser o centro do mundo. O Sul pode se olhar sem
se transformar em algo exótico. O Sul pode se olhar sem se reduzir a uma coisa só. Assim, a

1
ETTE, Otmar. Pensar o futuro: a poética do movimento nos estudos de transárea. ALEA, Rio de Janeiro,
v. 18/2, p. 192-209, mai.-ago. 2016.
2
NASCIMENTO, Evandro. A Tradução Incomparável. In: WEINHARDT, Marilene et al. (Org.). Ética e
Estética nos estudos literários. Curitiba: UFPR, 2013. p. 71-99.

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pergunta que vai guiar os trabalhos é: o que significa olhar o Sul na literatura? O caso
brasileiro é interessante. Tendo em vista as proporções continentais do país, conclamar o
leitor do Nordeste, por exemplo, a pensar nossa literatura brasileira vista como “sulista” em
termos de hemisfério é um exercício que imitará a experiência de Milton Hatoum, escritor do
Norte do Brasil, que, por meio da leitura de obras de Erico Verissimo, conseguiu se dar conta
de que o Rio Grande do Sul era tão diferente do Amazonas, apesar de a língua portuguesa ser
o elemento unificador. O mesmo se aplicaria a outros casos: toda a América Latina, com suas
inúmeras variantes de espanhol; o inglês dos diferentes países do Hemisfério Sul; a África
portuguesa e o Brasil, entre outros exemplos. Assim, as possibilidades de comparação entre os
mais diversos modos de produção artística (teatro, música, poesia, prosa) são enriquecedoras
e, sem dúvida, ajudam não só a compreender melhor nossas características estéticas, mas
também a identificar e refletir sobre aspectos até então não explorados.
A terceira ilha, intitulada Viagens, naufrágios, migrações e refugiados, abarca
estudos sobre as poéticas do movimento. Para essas poéticas, os espaços reais e imaginários,
somente surgem por meio de movimentos, que incluem cruzamentos e travessias. Nesse
sentido, os temas da viagem, do naufrágio, da migração e dos refugiados fomentam a
discussão sobre o dinamismo que envolve a configuração dos espaços na literatura, nas artes e
nas sociedades. Viajar pressupõe um deslocamento, uma saída do espaço em que se está para
outro, havendo sempre o risco de acidentes, interrupções, naufrágios. Desde a sua origem, o
ser humano se desloca pela necessidade de sobrevivência e, a partir de suas viagens, aprende a
não naufragar. Pelo mar, constrói-se o itinerário das clássicas narrativas homéricas e também
dos feitos heroicos dos viajantes chineses, vikings, entre outros. O período das grandes
navegações registra a inserção do homem moderno no mundo, realizada pela saída para o
desconhecido mar, pelos países da península ibérica, marcando o que se pode chamar de
primeiro movimento de globalização. Ette afirma que, nesse período, "as dimensões do
mundo eram cientificamente conhecidas do homem ocidental, o mundo na sua forma esférica,
por sua vez, era potencialmente domináve3". Contudo, dessa experiência de movimento, são
oriundas as primeiras assimetrias nas estruturas de poder entre o europeu e o não europeu: um
é civilizado e o outro é selvagem, um é cristão e o outro é pagão, um é europeu e o outro é o
outro. A partir do primeiro movimento de saída da Europa, as viagens passam por diferentes
fases: da caravela ao navio a vapor, da viagem calculada a partir da marcação do tempo pelo
relógio, das viagens de descobrimento, às viagens de aventuras, de recolhimento científico, de
emigração. São muitos os nomes de grandes viajantes (europeus na sua grande maioria) que
navegaram os mares do mundo; são muitos os relatos de naufrágios; o “novo mundo” é novo
devido às viagens de “descobrimento” e devido aos muitos (e)migrantes que deixaram a
Europa para “fazerem a América”. Atualmente, o uso do conceito de “refugiados” está em
voga e assistimos a diversos naufrágios, mesmo em meio a tanta tecnologia à disposição.
Como? Por quê? Muitos são os pontos que merecem nossa atenção, quando tratamos de
questões em torno dos temas da viagem, dos naufrágios, da migração e dos refugiados. Muitas
viagens levaram a narrativas hoje canônicas, e muitas dessas narrativas levaram, por sua vez,
a viagens. Tem-se aí um círculo que já é uma viagem em si e, nessa viagem, queremos entrar
nesta ilha.
Os cruzamentos entre literatura e política são o tema da quarta ilha, Ilhas políticas:
democracia e suas narrativas. Atualmente, o que se nota mundo afora é um recrudescimento
dos movimentos nacionalistas e da xenofobia e, portanto, uma intensificação das chamadas
“políticas de fronteira”. Cada vez mais os países buscam isolar-se das populações vizinhas a
fim de barrar as levas migratórias de trabalhadores e refugiados, assumindo os traços mais
pronunciados de um Estado policial. As democracias esfacelam-se face às crescentes e

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Vide ETTE, Ottmar. Op. Cit.

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distintas violações dos direitos humanos, e o princípio comunitário, libertário e igualitário,
que teoricamente impulsiona a democracia para a comunidade infinita 4, cede lugar a uma
renovada mitologia da seguridade 5 , que aprofunda a faceta biopolítica do estado liberal,
subordinando os dispositivos governamentais ao espaço geográfico do poder e sujeitando os
indivíduos ao arbítrio da violência física ou simbólica. Em vista disso, pode-se falar
metaforicamente em um processo de insularização, que repercute politicamente de diferentes
modos, em particular nas clivagens entre os distintos sujeitos capturados em um antagonismo
político ou ontológico qualquer, acirrando as diferenças e delimitando zonas de confluência
ideológica de acordo com características sociais, culturais, econômicas, raciais e de
gênero. Neste contexto, a literatura e o cinema apresentam-se ao mesmo tempo como sintoma
e como ruptura. Por um lado, as narrativas literárias e cinematográficas percorrem os
diferentes espaços, oferecendo enquadramentos tão diferentes quantas são diversas as
experiências de vida em qualquer um dos lados das fronteiras (ou até mesmo em seus
interstícios). Por outro lado, essas narrativas conjuram o princípio democrático da igualdade e
da emancipação, promovendo subjetividades e identificações mediante a potência poética do
fazer ver, fazer dizer e fazer sentir 6 . Em um caso, o esquadrinhamento ontológico das
diferenças em chave antagônica, num horizonte político de hegemonia e contra-hegemonia.
No outro caso, a ruptura com os ditames sociais e políticos de quem pode e quem não pode
fazer uso da palavra poética para fins de representação, subjetivação e reivindicação política.
Em ambos os casos, a literatura mostra-se como o ponto de convergência do político, na
medida em que restaura, temática ou operacionalmente, os princípios democráticos
subjugados pelo policiamento político praticado pelos Estados e grupos hegemônicos e
autoritários. Nesta ilha, são reunidos estudos que de alguma forma estabelecem as conexões
entre a literatura, o cinema e a democracia, sejam aqueles que abordam sob a ótica identitária
os diferentes processos de insularização e os diferentes confrontos deles decorrentes, sejam
ainda aqueles que entendem as narrativas literárias e cinematográficas como um
atravessamento de espaços e fronteiras, ou seja, como uma redefinição política do sensível
através de uma repartilha poética dos sujeitos e dos seus lugares de pertencimento na esfera
pública e no campo político.
Ilhas em devir: o pós-humanismo e suas voltagens teórico-críticas é a quinta ilha, a
qual parte da ideia de que a literatura comparada não só promoveu a ultrapassagem das
fronteiras da literatura como se tornou, na última década, um campo fértil para discussões
sobre desafios teóricos, críticos e éticos concernentes à produção de conhecimento sob as
injunções do presente e da complexidade do mundo real. Hoje, coloca-se em questão o
pensamento humanista como paradigma de conhecimento e valor calcado nas clássicas
divisões entre o eu e o outro, a mente e o corpo, a sociedade e a natureza, o humano e o
animal, o orgânico e o tecnológico. Assim, situar-se no horizonte do pensamento pós-
humanista é explorar as condições de novas subjetividades e textualidades, com atenção às
suas intensidades biológicas e tecnológicas, aos sistemas, redes e séries, às multiplicidades e
rupturas, às superfícies virtuais e aos corpos reais que rasuram o que a tradição do
pensamento ocidental convencionou definir como normativo, normal e natural. Ou seja, o
pós-humanismo desestabiliza concepções antropocêntricas e desafia a concepção de
humano/humanidade fundada, segundo Rosi Braidotti7, na suprema reivindicação de direito à
ontologia. Como uma ferramenta conceitual, o pós-humanismo permite repensar o legado de
referência para o humano em um tempo histórico de grandes avanços científicos, de

4
cf. NANCY, Jean-Luc. Finite and infinite democracy. In: AA.VV. Democracy in what state? Tradução inglesa
de William McCuaig. Nova York: Columbia University Press, 2011.
5
cf. CAVALLETTI, Andrea. La cittá biopolitica: mitologie della sicurezza. Milão: B. Mondadori, 2005.
6
cf. RANCIÈRE, Jacques. Le partage du sensible. Paris: La Fabrique, 2005.
7
BRAIDOTTI, Rosi. The posthuman. Cambridge, UK: Polity Press, 2013.

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experimentações e conquistas, mas também, de profundo ceticismo diante da racionalidade
científica na qual a ciência e a técnica se colocam a serviço do capital, pelos vieses da
chamada antropotécnica (mecanismos de produção do humano), e da biopolítica (modos de
administração da vida). Nesse contexto, o pós-humanismo se configura como um campo de
inovação nos discursos disciplinares ao abrir caminhos para articular o que não foi pensado,
não foi dito, não foi teorizado, incluindo a própria obsolescência da categoria de sujeito, tal
como formulado pela tradição ocidental. A ilha em questão contempla a reflexão e a discussão
da literatura, das artes e das ciências humanas, a partir da dicotomia natureza x cultura e
o continuum entre o dado e o construído; passando pelas relações do humano, do des-humano
e do pós-humano; zoe x bios: direitos humanos/direitos dos animais; manifestações do abjeto,
do monstruoso e do cyborg; sistemas sociais, hibridização e contaminação; subjetividades
nômades e performatividades pós-humanistas; categorias identitárias e hierarquias de
normalização, tais como gênero, sexualidade, classe, raça, etnia, e nacionalidade; novas
sociabilidades e novas materialidades; interseccionalidades entre o corpo humano e a máquina
à luz da ciência cognitiva e da neurobiologia; estudos de animal (animal studies) e suas
contribuições no campo da teoria e crítica literária; linguagem e comunicação trans-espécie; o
fantasma da crise ecológica; o humano e o animal na perspectiva da bioética; a literatura e a
ecologia cultural; visões distópicas e pós-utópicas; questões filosóficas em torno de valores,
ética, violência, lei e justiça.
A sexta ilha, Faróis e faroleiros: mapas, portos, rotas e travessias, considera que,
no contexto do arquipélago e dos trânsitos pós-coloniais, o farol, símbolo da determinação
humana de conquistar os espaços mais inóspitos, é a luz que orienta para o caminho seguro,
para a direção certa, para o destino pretendido. Arquitetura contumaz de toda ilha, o farol
expressa, manifesta, tem linguagem própria – uma linguagem luminosa universal de refrações
sincronizadas em conjuntos de prismas. Numa perspectiva mais ampla de intertextualidade e
de interdisciplinaridade, o arquipélago literário amplamente navegável tem na torre resiliente
uma autoridade sobre as travessias que, mesmo quando dentro das rotas, são sempre perigosas
e imprevisíveis. Esse luzeiro orientador e mediador possui toda uma mecânica de
funcionamento que evoluiu com o curso da história e com a introdução das lentes de Fresnel,
do rádio e, mais recentemente, da automação completa. A participação humana
gradativamente tornou-se desnecessária, e o farol, antigo monastério do faroleiro, deixou de
ser guarnecido, e passou a contar com manutenções esporádicas e, em algumas nações, com o
apoio coadjuvante das guardas-costeiras, como Estados Unidos, Canadá, Argentina etc.,
alguns faróis tornaram-se monumentos, como é o caso da Estátua da Liberdade, e outros,
tormentos, como o da Ilha de Flannan. Esta ilha aborda a temática do farol nas manifestações
literárias e artísticas como metáfora da expansão global em suas variadas historicidades e
perspectivas – a de faroleiros, marinheiros, navegadores e embarcados, a de visitantes, turistas
e curiosos – ou em seus múltiplos significados – temática universal, trânsitos e rotas – ou em
suas materialidades – estrutura inanimada, torre de vigia, mas que possui uma silhueta
dramática e humana instigante – ou ainda em suas ambivalências – confinamento e
aprisionamento de uns, liberdade e espírito expedicionário de outros.
Certos de que o passeio pelas diferentes ilhas deste arquipélago contribuirá para os
estudos de Literatura Comparada, finalizamos esta apresentação deixando o convite ao
mergulho nessas águas interpretativas e ao transbordamento das reflexões para a geração de
novos olhares para a literatura na perspectiva da transárea.

As organizadoras e os organizadores

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