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QUESTÃO AGRÁRIA, DIREITO E DECOLONIALIDADE EM JOÃO CABRAL DE

MELO NETO

AGRICULTURAL ISSUE, LAW AND DECOLONIALITY IN JOÃO CABRAL DE MELO


NETO

Resumo: O presente artigo pretende trazer à luz da análise a obra Morte e Vida Severina, de
João Cabral de Melo Neto, discutido as possibilidades acerca da construção de um
pensamento jurídico voltado à Decolonialidade – do poder, do ser e do saber – mensurando
seus possíveis contributos para essa nova perspectiva no que concerne ao Direito no contexto
agrário brasileiro. Para isso, a investigação será dividida da seguinte maneira: primeiramente,
será trazida à tona a discussão acerca da questão agrária presente na obra literária referida e o
que pode o Direito se aproveitar disso na sua forma de enxergar e lidar com a realidade; num
segundo momento, será feita uma reflexão acerca das possibilidades interdisciplinares entre
Direito e Literatura, e bem como isso pode ser feito dentro de uma perspectiva das
Epistemologias do Sul visando à emancipação dos sujeitos sobre as quais esse Direito incide;
num terceiro e último momento serão discutidas as possibilidades a partir da abordagem
Direito, Literatura e Deconialidade, no recorte da obra de João Cabral de Melo Neto, e quais
as possibilidades de contribuições para um novo Direito no contexto agrário. Trata-se de
pesquisa investigatória feita através de revisão bibliográfica, utilizando-se do método
hermenêutico ricoeuriano em conjugação com a hermenêutica diatópica boaventuriana onde
os resultados serão objetos de uma análise qualitativa a fim de verificar as possibilidades
hipotéticas.
Palavras-chaves: Direito; Literatura; Decolonialidade; João Cabral de Melo Neto; Questão
Agrária.
Abstract: This article intends to bring to the light of the analysis the work Morte e Vida
Severina, by João Cabral de Melo Neto, discussing the possibilities regarding the construction
of a legal thought focused on Decoloniality – of power, being and knowledge – measuring its
possible contributions to this new perspective regarding Law in the Brazilian agrarian context.
For this, the investigation will be divided as follows: first, the discussion about the agrarian
issue present in the aforementioned literary work will be brought to light and what the Law
can take advantage of in its way of seeing and dealing with reality; in a second moment, a
reflection will be made about the interdisciplinary possibilities between Law and Literature,
and how this can be done within a perspective of Southern Epistemologies aiming at the
emancipation of the subjects on which this Law focuses; in a third and last moment, the
possibilities will be discussed from the approach of Law, Literature and Deconiality, in the
clipping of the work of João Cabral de Melo Neto, and what are the possibilities of
contributions to a new Law in the agrarian context. This is an investigative research carried
out through a literature review, using the Ricoeurian hermeneutic method in conjunction with
the Boaventurian diatopic hermeneutics, where the results will be the object of a qualitative
analysis in order to verify the hypothetical possibilities.
Keywords: Law; Literature; Decoloniality; João Cabral de Melo Neto; Agrarian Question
INTRODUÇÃO

O ambiente agrário brasileiro é cenário dos mais variados dilemas envolvendo seus
atores; e o Direito, como um dos agentes responsáveis pela mediação e administração desses
dilemas, se encontra no cerne de qualquer discussão que se proponha a fazer sobre o tema,
pois discutir justiça, conflito, posse, propriedade, políticas públicas de afirmação e
emancipação, seja social, econômica ou de outra ordem, ou qualquer outro assunto dentro do
contexto agrário passa, necessariamente, por discutir, também, como o Direito, nas suas mais
variadas formas, se comporta dentro deste meio.

Nesse mesmo sentido, muitas são as perspectivas dentro do debate, dentre elas, a
proposta de uma abordagem decolonial, relativamente recente, mas que muito tem a
contribuir para a construção de uma nova forma de enxergar e repensar o campo jurídico:
fazê-lo sob a ótica do que, por exemplo, Boaventura de Santos (2010) chama de
Epistemologias do Sul, é voltar os olhares para novas formas de ser, de agir e de construir
realidades, que se confrontam, em posição de resistência, a preceitos hegemônicos e
dominantes num contexto de colonização no qual o Brasil e todo o restante da América Latina
de algum modo se encontram inseridos.

Isso posto, são várias as maneiras de propor tais reflexões. Uma delas, muito recente
e pouco explorada, mas não menos eficaz, é a interdisciplinaridade entre Direito e outras áreas
do saber, em especial a Literatura, visto que, no que tange às suas contribuições para as
reflexões no âmbito do Direito, ela (OST, 2004, p. 32), “suspende nossas evidências
cotidianas, coloca dados à distância, desfaz nossas certezas, rompe com os modos de
expressão convencionados. Entregando-se a toda espécie de variações imaginativas, ela cria
um efeito de deslocamento que tem a virtude de descerrar o olhar”, se tornando uma boa
aliada na reflexão e também ressaltando pontos de debate que, até então, não estavam ao
alcance deste campo estritamente jurídico.

Feito o devido apontamento do campo de estudo e da abordagem escolhida, o


presente artigo propõe a se debruçar sobre a obra Morte e Vida Severina, de João Cabral de
Melo Neto, poeta modernista, sertanejo, pernambucano, foi embaixador e cônsul, é
considerado o maior poeta da língua portuguesa, e que cuja lírica valsa nos campos do
surrealismo à poesia popular, mas também da crítica e do engajamento social, onde as
narrativas têm como principal plano de fundo e pauta o cenário agrário brasileiro nas suas
mais variadas formas e nuances, sob o seguinte questionamento: de que forma a poética de
João Cabral de Melo pode contribuir, a partir de uma abordagem interdisciplinar entre Direito
e Literatura, numa perspectiva decolonial, para se refletir o paradigma 1 atual do Direito no
contexto agrário brasileiro?

Num primeiro momento, será trazida à discussão a obra Morte e Vida Severina, de
João Cabral de Melo Neto, onde se pretende ressaltar os elementos de agrariedade presentes
nos textos literários e como, a partir dessa análise, é possível extrair reflexões pertinentes à
compreensão da realidade agrária brasileira, mais especificamente dentro do contexto
apresentado nas obras. Em seguida, será feita uma discussão sobre as possibilidades
metodológicas possíveis a partir de uma releitura do Direito através da Literatura e quais os
contributos essa interseção pode trazer ao saber jurídico sob de uma perspectiva de
decolonialidade; por fim, a título de resultado, será apresentado um panorama das
possibilidades de reflexão acerca de um Direito decolonial no ambiente agrário brasileiro, nos
limites dos questionamentos trazidos através das obras literárias em questão, e suas
implicações práticas; e, igualmente, apresentados os horizontes de viabilidade desse tipo de
discussão para o campo do estudo e do fazer do Direito como ferramenta de emancipação
individual e coletiva.

O caminho metodológico principal elegido de início passa pelo diálogo entre o


Direito e a Literatura a partir de um processo hermenêutico crítico e de distanciamento, cujo
referencial se fundamenta principalmente na Tríplice Mímese proposta por Paul Ricoeur
(1994) e demais escritos do mesmo autor (1990; 2008), conjugado às premissas de uma
hermenêutica diatópica proposta por Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2010), onde o
diferencial é que a criticidade hermenêutica e as lentes pelas quais o Direito enxergará o texto
literário se darão justamente voltadas aos preceitos das Epistemologias do Sul: tanto a
transfiguração quanto a refiguração ricoeourianas se darão a partir do diálogo intercultural
entre o Direito e o texto literário, transitando ambos ante e além da linha abissal conforme o
desenrolar do processo.

1 A QUESTÃO AGRÁRIA EM JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Nascido em 09 de janeiro de 1920, João Cabral de Melo Neto foi um poeta


modernista pernambucano e recifense, cujo um dos elementos mais presentes em sua obra
literária é a denúncia social sobre questões abordadas no seu cotidiano e o uso de uma

1
O uso do termo paradigma nesta ocasião, num sentido próximo do kuhniano, conota uma estrutura comum,
social e coletivamente aceita: “Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham [...]”
(KUHN, 1998, p. 219). Contudo, é somente uma observação conceitual, visto que a pretensão é já tratar de um
paradigma epistemológico do Direito em crise (SANTOS, 2000) conforme será exposto posteriormente.
linguagem simples voltada à sensibilidade e ao zelo pelo conteúdo essencial do que almejava
passar. Trabalhou como diplomata e sofreu represálias do governo Getúlio Vargas, quando foi
acusado de professar a ideologia comunista no Ministério de relações exteriores. É
considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa, tendo nos seus escritos um forte
teor regionalista (CARVALHO, 2009) demonstrando principalmente nas expressivas
representações do Nordeste brasileiro nos seus poemas e na sua prosa.

O uso de um vocábulo acessível pelo autor teve como objetivo, principalmente,


representar os nordestinos menos abastados, dando voz e vida a esses sujeitos muitas vezes
esquecidos pelas expressões artísticas: “numa linguagem líquida, espraiada, voz de rio
concretiza em poema, a ação da experiência produz a narrativa”, sintetiza Borsato (1998, p.
217), e continua “a seca, os engenhos transformados em usinas, tudo é apreendido pelo olhar
plano e rasteiro do relator rio, narrador-turista capaz de resgatar em imagens tudo o que
passa”, continua observando o autor sobre uma das mais célebres obras de João Cabral, onde
personagens se antropomorfizam e têm espaços para discorrer sobre seus dilemas, seus
dramas, suas dificuldades e anseios.

Dessa forma, dada a sua sensibilidade, João Cabral de Melo Neto acaba por
conseguir descortinar a realidade nordestina esclarecendo como questões estruturais têm o
poder de reconstruir a vida desses sujeitos das mais variadas formas, trazendo à tona
problemas como o acesso à água, a pobreza, a exploração desumana do trabalho, a
concentração de terra e a fome (PINHEIRO NETO; PROENÇA, 2013). Não obstante, sua
obra também é capaz de figurar a percepção do espaço agrário nas suas múltiplas faces, seja
no âmbito social, econômico, político e ecológico, visto que, através de suas descrições
minuciosas apresenta uma narrativa original fazendo de sua obra uma boa ferramenta de
compreensão desse ambiente.

Nesse sentido (CARVALHO, 2009), motivando especialmente por ideias marxistas e


pelo anseio de denúncia dos problemas que o cercavam no nordeste nas suas produções
literárias, mas sem que isso prejudicasse seu conteúdo estético, João Cabral de Melo Neto
escreveu seu primeiro poema voltando os olhos para a paisagem e para o homem nordestino,
chamado O cão sem plumas, trata-se de uma metáfora representativa do Rio Capibaribe de
Pernambuco. Mas é com o intuito de estreitar sua comunicação com seu público por meio de
uma linguagem um pouco mais prosaica que são publicados O Rio e Morte e Vida Severina,
cujas estruturas remetem à poesia espanhola medieval e ao mesmo tempo à literatura popular
nordestina; e sobre as quais se debruçará a análise do presente artigo, estabelecem de vez o
espaço e a condição agrária do nordestino na poesia cabralina.

Em síntese, Morte e vida Severina, o Auto de Natal Pernambucano, de João Cabral


de Melo Neto conta a vida do retirante Severino, mas não somente isso. O enredo do livro,
especificamente, trata da ida do protagonista à capital, no litoral e o caminho percorrido às
margens do Rio Capibaribe. Contudo, logo de início, severino passa de substantivo próprio,
nome do eu lírico e protagonista da história, para um adjetivo capaz de qualificar um modo de
existência sertanejo, cercado de dilemas, desafios, dos quais toda a caminhada a única certeza
é a morte questão entorno da qual gira todo o drama da obra, às vezes vinda antes mesmo da
vida. E é o faz dessa morte – e vida – severinas a morte que se morre “de velhice antes dos
trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia” (MELO NETO, 2006, p.
46), que reflete a seca, os conflitos e contradições das sociedades agrárias, a fome, a falta de
justiça e tantos outros problemas que assolam a vida do sertanejo.

Na construção do penoso caminho do retirante, o autor desvela uma gama de


problemas que bem além da ficção, assolam a realidade de muitos sertanejos Brasil a fora
(VILAS BOAS; NOGUEIRA, 2017), que é percebido logo no início, quando João Cabral,
pela narrativa, põe Severino em encontro com dois homens carregando o cadáver de um
camponês morto para que suas posses fossem roubadas: o protagonista interroga esses
homens sobre as causas do assassinato ressaltando o fato de a vítima nem sequer possuir
grandes posses de terras: “- E o que havia ele feito/ irmãos das almas, /E o que havia ele feito/
contra a tal pássara?”, e o camponês responde “ - Ter um hectare de terra,/ Irmão das almas,/
De pedra e areia lavada/ Que cultivava.” (MELO NETO, 2006, p. 53), e Severino indaga “- E
era grande sua lavoura, irmão das almas [...] lavoura de muitas covas tão cobiçada?” (MELO
NETO, 2006, p. 53), portanto, a resposta que tem é que “-Tinha somente dez quadras, [...],
todas nos ombros da serra, nenhuma várzea”2 (MELO NETO, 2006, p. 53).

O trecho em questão é um retrato fiel dos conflitos associados à disputa de terra e


vividos pelos camponeses ainda nos dias de hoje (DATALUTA, 2017): segundo dados da
Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2020), foram registradas 1.833 ocorrências sobre conflitos
por terra em todo o país, envolvendo quase 900, mil pessoas e contando com 32 assassinatos.
Além disso, no mesmo relatório constam outros dados igualmente assustadores: dentre os
casos de ameaça, que contabilizaram o total de 201 oficializados, 58 ocorreram no Nordeste
2
A caracterização faz menção a terras localizadas em regiões montanhosas e pouco propícias ao cultivo e
produção agrícola em grande escala dadas as dificuldades geográficas e de manejo.
onde também, das mesmas 1833 ocorrências de violência, foi palco de 963 (CPT, 2020). Esse
um dos reflexos do latifúndio e da concentração de terra, frente aos grandes agropequaristas
os pequenos produtores pouco têm de recurso, tanto financeiro quanto político, já que, no que
excede às pressões econômicas e de inviabilidade de produção, esses camponeses ainda se
encontram sujeitos a todo tipo de violência por parte do próprio sistema de produção e suas
ramificações, seja na violência explícita ou simbólica.

É válido salientar também que outro problema sofrido pelo trabalhador sertanejo
advém dos dilemas do processo migratório campo-cidade: frequentemente privado dos meios
de produção e do acesso à terra no ambiente rural e diante da falta de oportunidades de
sobrevivência, este trabalhador se vê forçado a procurar outros meios de vida nas grandes
capitais, essa, na verdade, é a sina de Severino, sob a qual é construído o enredo da obra.
Contudo, durante a narrativa é demonstrado que a busca por melhores condições de vida em
ambiente urbano é uma grande ilusão, pelas bocas de dois coveiros, sobre os retirantes João
Cabral reflete que essas pessoas “que vem buscar no Recife poder morrer de velhice,/
encontra só, aqui chegando,/ cemitérios esperando./ - Não é viagem o que fazem, /vindo por
essas caatingas, vargens;/ aí está o seu erro:/ vêm é seguindo o seu próprio enterro” (MELO
NETO, 2006, p. 74)3.

Outro ponto é que, durante a história, Severino, personagem, se encontra com vários
tipos de morte enquanto segue o Rio Capibaribe até o Recife. Uma delas que vale ressaltar é a
morte matada, cujos motivos claramente se mostram por conflitos de terra, onde senhores
latifundiários, utilizando dos seus poderes e certeza da impunidade, alvejam posseiros com o
intuito de ter espaço para a expansão de suas propriedades. Problema esse que não é restrito à
realidade de Severino, hoje em dia (FACHIN; FACHIN e GONÇALVES, s.d., p. 01), no
cenário rural, mais de 800 mil pessoas lutam por um pedaço de terra que garanta sua
subsistência:

3
A reflexão trazida é de desmedida sensibilidade para a compreensão de como se dá a relação entre o homem do
campo e a terra sob seus pés, e como problemas tal qual a privação do acesso não é só uma violência física, mas
simbólica também; e como a cova, ainda que sendo o reduto da morte, significa ao mesmo tempo a terra e o
destino certo e cruel, mas muito emblemático de todos os severinos que passam a vida lutando: “-Essa cova em
que estás, com palmos medida, é a cota menor que tiraste em vida/ - É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é
a parte que te cabe neste latifúndio./ - Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. / - É
uma cova grande para teu pouco defunto, mas estará mais ancho que estavas no mundo./ - É uma cova grande
para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo. [...] Viverás, e para sempre na terra que aqui
aforas: e terá enfim tua roça./ Aí ficarás para sempre, livre do sol e da chuva, criando tuas saúvas. [...]
Trabalharás uma terra que, além de senhor, será homem de eito e trator. [...] Trabalhará numa terra que também
te abriga e te veste: embora com o brim do Nordeste. [...] Será de terra tua derradeira camisa: te veste, como
nunca em vida./ Será de terra a tua melhor camisa: te veste e ninguém cobiça” (MELO NETO, 2006, p. 74-75).
E sabeis quem era ele,/irmãos das almas,/sabeis como ele se chama/ou se
chamava?/Severino Lavrador,/irmão das almas,/Severino Lavrador,/mas já não
lavra. [...]— E foi morrida essa morte,/irmãos das almas,/essa foi morte morrida/ou
foi matada?/— Até que não foi morrida,/irmão das almas,/esta foi morte
matada,/numa emboscada. [...] /— E o que havia ele feito/irmãos das almas,/e o que
havia ele feito/contra a tal pássara?/— Ter um hectare de terra,/irmão das almas,/de
pedra e areia lavada/que cultivava./ — E agora o que passará,/irmãos das almas,/o
que é que acontecerá/contra a espingarda?/— Mais campo tem para soltar,/irmão das
almas,/tem mais onde fazer voar/as filhas-bala. (MELO NETO, 2006, p. 31)

Essa narrativa, apesar de ser construída numa obra de ficção, vai completamente ao
encontro da realidade material: acerca do tema, Vilas Boas (2017) mostra que na grande parte
dos casos, o imigrante originário do campo possui pouca qualificação profissional, tendo sua
mão de obra designada a subempregos e empregos de baixa remuneração. Além do mais,
tendo em vista que seus proventos são insuficientes para suprir as mínimas necessidades de
uma vida como moradia e alimentação, frequentemente acaba por residir em áreas periféricas,
“o êxodo rural não minorou a miséria dos migrantes, pois o cerne do problema está na
ausência de propriedade sobre os meios de produção” (VILAS BOAS; NOGUEIRA, 2017, p.
321). Em tese, muito pouco muda, a mesma morte severina que assola esse camponês no
ambiente rural o percebe até a cidade se mostrando presente de várias outras formas, com
várias outras faces mas ainda pelos mesmos motivos.

Dessa maneira, fica clara a postura dialética da obra Morte e vida severina quanto à
questão agrária brasileira, principalmente no nordeste. Remetendo aos escritos de Antônio
Cândido sobre o papel da literatura em desvelar a realidade nas mais variadas formas, “o
externo importa, não como causa nem significado, mas como elemento que desempenha certo
papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO, 2000, p. 6),
de modo que qualquer indivíduo, desde que inserido em determinado contexto, está suscetível
a sofrer influência deste. E assim acontece com João Cabral de Melo Neto, diretamente
relacionado à questão agrária de seu tempo, chegando, inclusive, a desempenhar papel de
chefe de gabinete do ministro da agricultura na década de 60, tem suas experiências pessoais
transportadas para o enredo de suas narrativas literárias tornando-as não só objetos de análise
crítica, mas também agentes transformadores dessa realidade com a qual dialoga.

2 DIREITO, LITERATURA E DECOLINIALIDADE FRENTE À CRISE


EPISTEMOLÓGICA DO DIREITO

Repensar o Direito nos últimos anos tem sido um dos maiores desafios dos juristas
deste tempo, e, dentre as incontáveis e mais variadas proposituras que se apresentam, o estudo
do Direito e Literatura tem assumido cada vez mais relevância. Para além da
interdisciplinaridade, por meio da qual o caminho do Direito vem se cruzando
progressivamente com o das mais diversas áreas do conhecimento, no intuito de construir um
espaço crítico, onde seja possível o questionamento de axiomas, fundamentos, efetividade e
etc.: a aproximação do campo jurídico à narrativa literária permite também que seus
operadores assimilem a capacidade criadora, crítica e reflexiva que a literatura respira,
podendo, então, superar alguns de seus limites intrínsecos, assim como aqueles impostos pelo
senso comum teórico pautado pelo tecnicismo, pelo positivismo engessado e pela dogmática
reducionista, que restringe a prática jurídica a um discurso lógico-pragmático voltado a
determinados interesses e tapa os olhos para toda a realidade material, desconsiderando a
importância constitutiva da linguagem na construção da intersubjetividade e intertextualidade
inerentes.

Nesse sentido, no que diz respeito à concepção de um paradigma da modernidade


epistemologicamente em crise e como essa questão se estende ao campo do Direito e do
agrário, é valido ressaltar o pensamento de Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2000,
p.50) que principia o qualificando como “muito rico e complexo, tão susceptível de variações
profundas como de desenvolvimentos contraditórios. Assenta em dois pilares, o da regulação
e o da emancipação”. Assim, o autor pontua que esse paradigma atravessa uma crise
epistemológica não só profunda, mas irreversível (SANTOS, 2000, p. 68), e a atribui a
motivos teóricos e sociais muito bem argumentados e faz alusão ao que chama de paradigma
emergente, especulativo, o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente,
de forma que um paradigma que emerja dessa crise não pode ser estritamente científico, mas
igualmente social.

Já no que tange ao Direito, a concepção trazida por Boaventura de Souza Santos é no


sentido de “as leis, as normas, os costumes, as instituições jurídicas [...] um conjunto de
representações sociais, um modo específico de imaginar a realidade” (SANTOS, 2000, p.
198) e que este, continua, fruto de uma sociedade pautada na racionalização desproporcional
das verdades e das formas de ser impostas voltadas a modelos produtivos capitalistas, se
tornou a principal ferramenta de regulação e manutenção da hegemonia dominante através de
uma cientifização do campo, legitimado perante o Estado como um instrumento de dominação
perdendo seu equilíbrio entre regulação e emancipação social (SANTOS, 2000). Se tornando,
por fim, “um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, considerados
justificáveis num dado grupo social”, e “contribuindo para a criação e prevenção de litígios, e
para a sua resolução através de um discurso argumentativo, articulado com a ameaça de
força” (SANTOS, 2000, p. 290).

Dessa forma, importa questionar a possibilidade de um Direito que volte a ser


emancipatório, visando à transgressão e a concepção de formas de ser e de saber indo ao
encontro das formas plurais de conhecimento, como as artes, os conhecimentos resistentes e
revolucionários e outros mecanismos de transgressão da ordem hegemônica. Essa
epistemologia transgressora, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos funcionaria de
forma que se utilize o conhecimento obtido por meios de investigação sofisticados, inclusive
dentro do campo positivista pondo-o a favor de estratégias epistemológicas antipositivistas na
propositura de uma práxis alternativa, justificando nesses casos, inclusive “a inevitável
violação de algumas regras do método científico” (SANTOS, 2014, p. 173)4.

E nesse sentido, pensa-lo no contexto agrário sob a égide da decolonialidade é abrir


espaço na discussão para que outras vozes, que não essas dominantes, também falem, se
façam saber, ressaltem sua realidade e construam um Direito a partir disso: não é o dominante
falando pelo, para ou em favor do dominado; mas é na decolonialidade que ele admitirá
fontes até então distantes do seu alcance quando regido somente por preceitos
epistemológicos ocidentais e hegemônicos; é o direito rogado pelas seringueiras e
quebradeiras de coco, pelo retirante, pelo quilombola, pelo pajé e pela natureza, que também
assumem as mais variadas formas e papéis até o momento pouco cogitadas pelos meios
epistêmicos convencionais, mostrando que também têm algo a contribuir.

Assim, a proposta das Epistemologias do Sul parte do pressuposto de que o


colonialismo, sendo um dos pilares da hegemonia cujo paradigma epistemológico encontra-se
em crise, “foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual
de saber-poder” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 19), de forma que nasce como uma
denúncia à logica de soberania epistêmica tanto da Ciência quanto do Direito modernos, e
que, segundo os autores, entende-se como um:

“conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos saberes


levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante,

4
Vale pontuar, nesse caso, que a propositura de violação de algumas regras do método científico não significa,
necessariamente, que todo o saber produzido fora desses parâmetros não busca, à sua maneira, uma espécie de
rigor. Isso porque, mesmo dentro da diversidade de possibilidades de constituição de saberes fora do campo da
ciência moderna, esses também possuem suas formas de validação, verificação e de uso, para que não caia,
finalmente no campo do senso comum. Sobre a diferença e como o saber é produzido e validado fora do campo
científico, ver; ALMEIDA, Maria Conceição de. Complexidade, Saberes Científicos e Saberes da Tradição. São
Paulo: Livraria da Física, 2010.
valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm
produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre
conhecimentos.” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 7).

Se, por um lado, a Literatura tem a capacidade de propor novas realidades


impensadas, exceder os limites da lógica e da materialidade prática (OST, 2004), por outro,
com base nos escritos de Antônio Cândido (2006), uma obra literária tem igualmente o poder
de absorver para si realidades sociais e transformar o externo em interno: é através da sua
narrativa que, utilizando do social, encontra fundamentos para a constituição da sua estrutura.
É assim que João Cabral de Melo, muito relacionado às questões agrárias do seu tempo,
chegando inclusive a se tornar chefe de gabinete no Ministério da Agricultura em 1961,
encontra uma forma de adicionar no enredo dos seus escritos tais assuntos, tornando a obra
passível de discussão não somente no campo do lúdico, mas também da crítica literária, social
e, posteriormente, jurídica podendo lançar um novo olhar sobre o assunto a fim de
proporcionar reflexões até então impensadas.

Entretanto, o que se pode perceber é que em alguns momentos o referencial teórico


se mescla ao metodológico e isso pode ser demonstrado no que tange à discussão em torno da
viabilidade interdisciplinar entre o Direito e a Literatura: nos trabalhos de Francois Ost
(2004), que logo no prólogo de sua obra Contar a Lei: as fontes do imaginário jurídico é
muito bem exposta e justificada a pertinência da abordagem, bem como abre caminhos
metodológicos para tal. No que diz respeito à corrente Direito na Literatura, que será a
adotada nesta investigação, o autor parte do conceito de imaginário trazido por C. Castoriadis
(1982), em seguida passa por uma ideia de Direito que vai além das concepções meramente
positivistas e normativas, correlacionando-os a um processo hermenêutico dialógico.

Assim, o referencial hermenêutico adotado é o ricoeuriano, partindo do que o autor


chama de Triplice Mímese (RICOEUR, 1994) e também propondo uma hermenêutica crítica
e do distanciamento (RICOEUR, 1990; 2008): esta consiste na ideia de que, a obra literária,
como fruto de um contexto em que é produzida, é consumida pelo seu público e este, de
maneira crítica e distante dos seus dogmas pessoais, consegue se entender de outra maneira a
partir do contato com o texto e, consequentemente, estando suscetível a transformações no
mundo material advindas desse novo processo de auto compreensão. Destarte, como toda a
teorização parte do pressuposto de que o Direito enquanto agente social ocupa um lugar de
domínio que serve a propósitos hegemônicos, vale ressaltar o que Boaventura de Sousa
Santos propõe como uma hermenêutica diatópica (SANTOS, 2010), trazendo à tona o
conceito de topoi proposto pelo autor, como “lugares comuns retóricos mais abrangentes de
determinada cultura” (SANTOS, 2010, p. 447), que será aplicado no mapeamento do campo
do Direito e da Literatura, ora cada qual se posicionando acima ou abaixo da linha abissal.

A conexão cabe na medida em que -respeitados os limites das diretrizes teóricas de


cada autor- se dentro do processo hermenêutico ricoeuriano a prefiguração e a refiguração
ocorrem necessariamente a partir de elementos já existentes no universo do sujeito (a
primeira, sobre os componentes do imaginário do sujeito que produz o texto literário; a
última, com o distanciamento de preceitos pessoais do sujeito que se expõe a e recebe este
texto), ambos os elementos, nos dois momentos, podem assumir papéis de topois
boaventurianos, tendo em conta que estes, nesse caso, também comporiam o campo do
imaginário; consequentemente, deste modo, podendo admitir a possibilidade da assunção de
um posicionamento ora hegemônico, ora contra hegemônico por parte desses sujeitos no
processo hermenêutico, atendendo, assim, às demandas de uma proposta decolonial de
produção do saber jurídico. O intuito é que as teorias não se sobreponham ou disputem um
mesmo espaço, mas que se complementem, concebendo, por fim, uma hermenêutica que seja
crítica nas suas intenções, dialógica na sua dinâmica e diatópica no seu exercício5.

É esse o ponto chave da hermenêutica crítica atrelada à metodologia proposta: saber


manipular e administrar o texto literário, dentro da sua magnitude e multidimensionalidade, a
fim de extrair dele o tão almejado saber jurídico: ora sem reduzir o texto literário a um mero
elemento sociológico incumbindo a este um papel que não lhe é seu, de traduzir, representar
retratar e reproduzir a realidade; ora romantizando-o e atribuindo-lhe um papel iluminador e
responsabilidades de iluminação e esclarecimento que vão muito além de suas proposições e
compromissos originários. Mas que tal ponderação não seja desmotivadora para quem se
aventura pelo terreno do direito e literatura: a dúvida, a incerteza e as possibilidades
hipotéticas fazem parte de qualquer investigação que se valha ao benefício da dúvida e do
novo.

Uma última objeção que deve ser feita é a de que o referencial teórico e
metodológico acerca da abordagem Direito e Literatura majoritariamente parte de
pressupostos e discussões feitas dentro de um contexto europeu, que está acima da chamada
5
Contudo, vale pontuar que toda essa conjugação teórica só é possível uma vez que ambos os autores, François
Ost (2004), Paul Ricoeur (1989; 1990; 1994; 2008) e Boaventura de Sousa Santos (2010; 2018) admitem, ainda
que cada um sob pontos de vista particulares, a Arte –especificamente, nesse caso, o texto literário e suas
narrativas- como componente dessa amálgama de valores, ora tratados como elementos de um imaginário por
uns, ora como topoi por outros, dotado de um poder mobilizador e transformador da realidade material na qual se
insere.
linha abissal, diante disso, surge a oportunidade de uma crítica muito corriqueira quanto à
escolha dos referenciais, já que, partindo da premissa de que o intuito de uma abordagem
completamente decolonial é justamente não precisar recorrer a ferramentas de produção do
saber advindas do campo hegemônico, não faria sentido utilizar, por exemplo, de uma
hermenêutica francesa na propositura de um método. A resposta, entretanto, vem a partir dos
escritos do próprio Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2014) que, prevendo essa
situação, argumenta sobre a possibilidade de se utilizar saberes já constituídos na posição de
dominação, mas que, por meio de uma epistemologia transgressora venham a trabalhar a
serviço da emancipação.

3 POR UMA VIDA SEVERINA VIVIDA: PODERÁ O DIREITO NO AGRARIO SER


EMANCIPATÓRIO?

Considerando como se deu o processo de ocupação no Brasil, bem como também a


forma como a questão agrária, nos seus agentes, conflitos e contradições, se desdobrou no
decorrer da histórica, sempre baseada na exportação, priorizando a atividade de monocultura
visando atender a demanda da exportação (PRADO JÚNIOR, 1979), e que essa questão foi se
intensificando com o passar do tempo tendo em vista as transformações e novas demandas do
mercado, os dilemas apontados, dentro do recorte trazido nas obras literárias, é um grande
exemplo de como a crise epistemológica da qual fala Santos (2000) assola o meio agrário
brasileiro e, consequentemente, como o Direito pode e acaba contribuindo para que ela se
enrijeça cada vez mais. A saída que a Literatura pode oferecer, então, é a de que, cogitando
essas realidades, problematizando e dando voz a esses sujeitos subalternizados na realidade
literal, ganhem espaço para falar sobre seus problemas.

Levando em consideração, primeiramente, que o grande setor latifundiário brasileiro


se consolidou em decorrência do processo de colonização irracional do território, bem como
com a promulgação da Lei de Terras de 1850 legitimando a terra como uma mercadoria, e
sempre viabilizou a expropriação do campesinato brasileiro em decorrência das formas de
produção dentro de um modelo capitalista (MARTINS, 2004) e; que, segundo Boaventura de
Sousa Santos (2020), tanto o capitalismo quanto o colonialismo estão no cerne da crise
epistemológica que assola a modernidade, tanto a reflexão trazida pela obra literária quanto a
proposta teórico-metodológica mostra que os caminhos que devem ser trilhados para se
repensar a forma a enxergar a questão agrária, principalmente do ponto de vista do Direito e,
de uma perspectiva decolonial, passam por pensa-lo de forma emancipatória a fim de
reconhecer essa estrutura cristalizada e por quantas mortes severinas ele é responsável ainda
nos dias de hoje.

Esta ideologia dominante, voltada aos interesses produtivistas e totalmente alinhada


com o modelo de produção capitalista, acaba por não só deslegitimar as várias formas de ser e
de viver que compõem o cenário agrário brasileiro como também, através de suas políticas, as
dizima e as inviabiliza. Isso, por consequência, resulta na hegemonia econômica do latifúndio,
cuja ideia está enraizada na cultura brasileira, como se, dentro de uma perspectiva neoliberal,
as grandes quantidades de terra fossem a forma mais eficiente para responder às expectativas
em torno de um desenvolvimento rural que atenda ao interesses desse capital e seus preceitos
dominantes, e na causa de impactos negativos muito fortes diante do processo contínuo de
democratização real da renda e das riquezas rurais, além da afirmação da soberania real do
país, seja em sentido amplo ou um pouco mais estrito, como é o caso da soberania alimentar,
por exemplo.

Nesse mesmo sentido, um exemplo que se percebe é que historicamente, as políticas


agrícolas têm priorizado a agricultura patronal e a agroindústria, em detrimento do fomento à
agricultura familiar, que foi negligenciado A Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG) comprova isso, com a desigualdade da alocação dos fundos:
enquanto R$ 4 bilhões (20%) do fomento público à produção foram prometidos aos 4 milhões
de produtores familiares, e menos da metade colocados à disposição na última década
(CARVALHO, 2005). Dessa forma, o Direito acaba por, retomando o pensamento de Santos
(SANTOS, 2000), cumprir seu papel meramente regulador, isso porque, estando também
sujeito a toda essa estrutura que funciona de modo a privilegiar determinados interesses em
detrimento de outros, cristaliza, através da sua legitimidade e do seu poder legitimador, que
esse tipo de política seja impassível de resistência dentro do modelo democrático instituído e
vigente, de forma que, nessa lógica, o que é legal é tido como legítimo e tudo o que excede a
isso é impassível de apreciação (SANTOS, 2009).

Pelo Brasil todo há muitos Severinos que rogam, na sua vida ou na sua morte, pelo
Direito de existirem: em 2019 o Rio Doce, um dos principais rios da América do Sul se viu
dizimado numa parte em decorrência de uma grande irresponsabilidade por parte de
mineradoras no estado de Minas Gerais, e não houve o que se reivindicar sobre os direitos do
próprio rio; do mesmo modo, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2020),
foram registradas 1.833 ocorrências sobre conflitos por terra em todo o país, contando 32
assassinatos. Vê-se que essa existência não se trata de mero romantismo ou idealismo, mas de
emancipação, retomando este preceito cujo papel do Direito é atender (SANTOS, 2000),
visando uma efetividade que só se dará respeitando outras formas de ser, de saber e de existir,
garantidos os seus espaços frente a um paradigma moderno que os inviabiliza, bem como
aproveita dessa mesma inviabilidade para se sustentar, ainda que em crise:

— Seu José, mestre carpina,


e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho
que é cada dia adquirida?
espera poder um dia
comprá-la em grandes partidas?
— Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga:
não é que espere comprar
em grosso tais partidas,
mas o que compro a retalho é,
de qualquer forma, vida.
— Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida? (MELO NETO, 2006, p. 22)

É explícito, por exemplo, como no decorrer do poema o autor descreve as paisagens


nordestinas salientando o pauperismo da população e as mazelas em decorrência da
concentração fundiária e da falta de oportunidades de trabalho, “e que interesse, me diga, há
nessa vida a retalho que é cada dia adquirida? espera poder um dia comprá-la em grandes
partidas?” (MELO NETO, 2009, p. 22), remetendo, inclusive, à dificuldade dos indivíduos
que são condicionados a conviver com a fome e com doenças primitivas. Além do mais, a
questão da má distribuição de terra, como apontado outrora, se encontra historicamente no
cerne de toda a discussão que gira em torno das violências sofridas pelos sertanejos
brasileiros. Dessa forma, a literatura vem mostrar uma realidade hostil que assombra a vida de
uma gama de brasileiros, mas que cuja solução perpassa pela reforma das estruturas sociais,
econômicas e políticas do país.
Num outro momento, em sentido próximo é possível perceber como a narrativa
pontua a falta de oportunidades e a labuta contínua do trabalhador rural frente ao poder do
latifúndio: deixados ao descaso do Estado e refém das mais truculentas autoridades paralelas,
as mortes severinas são advindas da miséria constante e não solucionada, como bem lembra
um homem ao satirizar os cânticos do funeral de um camponês “Dize que levas somente/
coisas de não:/ fome, sede, privação” (MELO NETO, 2006, p. 56); mostra, também, a
importância desta luta para o sertanejo e como sua ligação e o seu valor atribuído à terra são
questões de sobrevivência e de existência quando, num outro diálogo entre amigos de um
outro morto, um diz sobre a cova “é de bom tamanho/ nem largo nem fundo/ é a parte que te
cabe deste latifúndio/ - Não é cova grande, é cova média,/ é a terra que querias ver dividida”
(MELO NETO, 2006, p. 64), e na sequência dizem “agora trabalharás só para ti,/ não às meias
como antes em terra alheia,/ - Trabalharás uma terra da qual, além de senhor,/ será homem de
eito e trator” (MELO NETO, 2006, p. 65).

Diante disso, “que expectativas se abrem aos povos injustiçados de todo o mundo?”
(NUNES, 2003, p. 118). Boaventura, um pouco distante do autor da pergunta, propõe a
necessidade de se reinventar a ideia de emancipação visando novos horizontes. É a
idealização de uma nova concepção de Direito, que reconheça a diferença, confronte os falsos
universalismos e a colonialidade do poder. Trata-se, portanto, de voltar os olhares a outras
formas de saber que não são valorizados. Alguns fatores podem ser levantados ao se repensar
o ser e o viver, principalmente no que concerne à organização das sociedades e suas formas de
produção no ambiente agrário (CARVALHO, 2005) tais quais: a) a equidade enquanto um
indicador fundamental da sustentabilidade dos agroecossistemas; b) a diversitade e a
compatibilidade cultural como base de construção de agroecossistemas biodiversificados e
includentes e de uma pedagogia de troca de saberes; c) a relação entre território disponível e
capacidade de suporte dos ecossistemas e a organização espacial/territorial necessária o
desenvolvimento de sistemas agroecológicos de produção.

Na práxis, estes ideais dizem respeito ao reconhecimento de uma nova classe


camponesa, por exemplo, dando o seu respectivo valor e encontrando o seu lugar num modelo
de construção de sociedade que valorize outras formas de produção que não a do capitalismo
selvagem. Num sentido próximo, Silva (2002) observa que a abordagem agroecológica
propõe mudanças profundas nos sistemas e nas formas de produção, de forma que seja
possível viabilizar práticas como a produção de alimentos de qualidade nutricional garantida,
utilizar ao máximo de recursos renováveis nos processos produtivos, dar condições de vida
aos cidadãos de forma que se permita o desenvolvimento de todos os seus aspectos de vida,
permitir aos produtores retorno econômico considerável diante da sua participação na cadeia
produtiva, democratização do espaço rural de modo a fragilizar a relação de dependência
existente entre sujeito e capital.

CONCLUSÃO
Diante do exposto, o que se percebe é que o Direito se encontra atualmente numa
grande crise epistemológica cujas raízes são bastante profundas. No caso de como este atua no
contexto agrário brasileiro, essas raízes estão diretamente ligadas a sua própria constituição no
decorrer da história: sendo o Brasil um país com um histórico de colonialismo europeu que
até os dias de hoje deixa marcas latentes na configuração política, social e econômica, era de
se esperar que o campo jurídico também sofresse essa repercussão. E os exemplos são muitos:
desde a configuração fundiária do país, voltada à concentração de terras improdutivas, a
inviabilização de modos de ser e de viver que contrapõem a lógica capitalista, até o trato com
as populações tradicionais e o não reconhecimento de sua legitimidade e autonomia frente o
poder instituidor do Estado, a regra é a de que este projeto de hegemonia – política,
econômica e, por fim, jurídica – acaba sendo cristalizado e se desenrolando em consequências
devastadoras por onde passa e sobre quem não se encontra em condição de privilégio e de
poder.

A Literatura, nesse sentido, se mostra – não como a única, mas – como uma
ferramenta de reflexão e contestação deste status quo em que o social e o jurídico se
encontram. Isso porque, além de, em consonância com os escritos de François Ost discutidos
no decorrer do texto e o seu poder questionador e recriador frente a realidade material, ela tem
também a capacidade de se colocar como um agente transformador da realidade, instigando a
crítica, a mobilização e, em consequência, o movimento dessas estruturas. Entretanto, a esta
altura, vale pontuar que se trata de uma possibilidade: a Literatura pode questionar, pode
refletir e pode questionar; o que não significa que ela necessariamente vá sempre
desempenhar esse papel, e mais, que o resultado dessa mobilização vai ser o esperado no
contexto em que ela se coloca e age. E essa incógnita se dá justamente em decorrência da sua
liberdade criativa, do seu não compromisso com nada além de si mesma e a sua capacidade
lúdica de romper limites que vão muito além das convenções racionais fora do campo das
possibilidades artísticas.

Contudo, no que se trata da obra analisada, Morte e Vida Severina, de João Cabral de
Melo, o que se percebe é que a obra em si é uma ótima ferramenta de compreensão e reflexão
do Direito agrário dada a fertilidade da sua ambientação e a conexão constante com temas que
assolam a vida do camponês brasileiro. Desde a violência no campo, as estruturas de poder, o
coronelismo, a falta de oportunidades no meio rural, o êxodo para a cidade em busca de uma
vida melhor em decorrência das más condições de (sobre)vivência no campo, Morte e Vida
Severina traz nas suas narrativas um retrato bastante fiel dessa realidade trazendo a luz temas
que o Direito normativo, positivista e hegemônico no seu operar ou fecha completamente os
olhos ou ainda que trate, trata com desdém, como é o caso, por exemplo, das políticas de
redistribuição de terra e de renda no meio rural.

Dessa forma, a saída proposta é através de uma guinada decolonial do Direito, que
deixa de assumir um caráter simplesmente regulatório tendo como referência suas normas e
seu modo de agir estão pautados numa racionalidade exacerbada e seus preceitos em valores
que não são os desses sujeitos constantemente violados, e passa a assumir um papel
emancipatório, se voltando, finalmente aos novos valores (novos aos olhos do Direito
hegemônico, somente, já que esses valores sempre existiram), novas formas de ser e de existir
no mundo, com novas noções de justiça, de igualdade e de liberdade que contemple esses
povos não só de maneira romântica, dando a eles visibilidade formal, mas sim que possibilite
o exercício de sua existência em toda a sua plenitude, garantido sua integridade, sua
autonomia sobre seus corpos, suas ideias e seu tempo de vida.

Neste caminho, a Literatura, e em especial Morte e Vida Severina emerge como um


manifesto pela resistência e pelo direito de viver. E esse é o papel do Direito emancipatório:
garantir que os Severinos de todo o Brasil tenham um pedaço de terra além da cova que lhes
servem de berço, que os rios de suas vidas não sequem no meio do caminho, e que as únicas
asas a serem podadas sejam as das aves-balas.

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