Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MELO NETO
Resumo: O presente artigo pretende trazer à luz da análise a obra Morte e Vida Severina, de
João Cabral de Melo Neto, discutido as possibilidades acerca da construção de um
pensamento jurídico voltado à Decolonialidade – do poder, do ser e do saber – mensurando
seus possíveis contributos para essa nova perspectiva no que concerne ao Direito no contexto
agrário brasileiro. Para isso, a investigação será dividida da seguinte maneira: primeiramente,
será trazida à tona a discussão acerca da questão agrária presente na obra literária referida e o
que pode o Direito se aproveitar disso na sua forma de enxergar e lidar com a realidade; num
segundo momento, será feita uma reflexão acerca das possibilidades interdisciplinares entre
Direito e Literatura, e bem como isso pode ser feito dentro de uma perspectiva das
Epistemologias do Sul visando à emancipação dos sujeitos sobre as quais esse Direito incide;
num terceiro e último momento serão discutidas as possibilidades a partir da abordagem
Direito, Literatura e Deconialidade, no recorte da obra de João Cabral de Melo Neto, e quais
as possibilidades de contribuições para um novo Direito no contexto agrário. Trata-se de
pesquisa investigatória feita através de revisão bibliográfica, utilizando-se do método
hermenêutico ricoeuriano em conjugação com a hermenêutica diatópica boaventuriana onde
os resultados serão objetos de uma análise qualitativa a fim de verificar as possibilidades
hipotéticas.
Palavras-chaves: Direito; Literatura; Decolonialidade; João Cabral de Melo Neto; Questão
Agrária.
Abstract: This article intends to bring to the light of the analysis the work Morte e Vida
Severina, by João Cabral de Melo Neto, discussing the possibilities regarding the construction
of a legal thought focused on Decoloniality – of power, being and knowledge – measuring its
possible contributions to this new perspective regarding Law in the Brazilian agrarian context.
For this, the investigation will be divided as follows: first, the discussion about the agrarian
issue present in the aforementioned literary work will be brought to light and what the Law
can take advantage of in its way of seeing and dealing with reality; in a second moment, a
reflection will be made about the interdisciplinary possibilities between Law and Literature,
and how this can be done within a perspective of Southern Epistemologies aiming at the
emancipation of the subjects on which this Law focuses; in a third and last moment, the
possibilities will be discussed from the approach of Law, Literature and Deconiality, in the
clipping of the work of João Cabral de Melo Neto, and what are the possibilities of
contributions to a new Law in the agrarian context. This is an investigative research carried
out through a literature review, using the Ricoeurian hermeneutic method in conjunction with
the Boaventurian diatopic hermeneutics, where the results will be the object of a qualitative
analysis in order to verify the hypothetical possibilities.
Keywords: Law; Literature; Decoloniality; João Cabral de Melo Neto; Agrarian Question
INTRODUÇÃO
O ambiente agrário brasileiro é cenário dos mais variados dilemas envolvendo seus
atores; e o Direito, como um dos agentes responsáveis pela mediação e administração desses
dilemas, se encontra no cerne de qualquer discussão que se proponha a fazer sobre o tema,
pois discutir justiça, conflito, posse, propriedade, políticas públicas de afirmação e
emancipação, seja social, econômica ou de outra ordem, ou qualquer outro assunto dentro do
contexto agrário passa, necessariamente, por discutir, também, como o Direito, nas suas mais
variadas formas, se comporta dentro deste meio.
Nesse mesmo sentido, muitas são as perspectivas dentro do debate, dentre elas, a
proposta de uma abordagem decolonial, relativamente recente, mas que muito tem a
contribuir para a construção de uma nova forma de enxergar e repensar o campo jurídico:
fazê-lo sob a ótica do que, por exemplo, Boaventura de Santos (2010) chama de
Epistemologias do Sul, é voltar os olhares para novas formas de ser, de agir e de construir
realidades, que se confrontam, em posição de resistência, a preceitos hegemônicos e
dominantes num contexto de colonização no qual o Brasil e todo o restante da América Latina
de algum modo se encontram inseridos.
Isso posto, são várias as maneiras de propor tais reflexões. Uma delas, muito recente
e pouco explorada, mas não menos eficaz, é a interdisciplinaridade entre Direito e outras áreas
do saber, em especial a Literatura, visto que, no que tange às suas contribuições para as
reflexões no âmbito do Direito, ela (OST, 2004, p. 32), “suspende nossas evidências
cotidianas, coloca dados à distância, desfaz nossas certezas, rompe com os modos de
expressão convencionados. Entregando-se a toda espécie de variações imaginativas, ela cria
um efeito de deslocamento que tem a virtude de descerrar o olhar”, se tornando uma boa
aliada na reflexão e também ressaltando pontos de debate que, até então, não estavam ao
alcance deste campo estritamente jurídico.
Num primeiro momento, será trazida à discussão a obra Morte e Vida Severina, de
João Cabral de Melo Neto, onde se pretende ressaltar os elementos de agrariedade presentes
nos textos literários e como, a partir dessa análise, é possível extrair reflexões pertinentes à
compreensão da realidade agrária brasileira, mais especificamente dentro do contexto
apresentado nas obras. Em seguida, será feita uma discussão sobre as possibilidades
metodológicas possíveis a partir de uma releitura do Direito através da Literatura e quais os
contributos essa interseção pode trazer ao saber jurídico sob de uma perspectiva de
decolonialidade; por fim, a título de resultado, será apresentado um panorama das
possibilidades de reflexão acerca de um Direito decolonial no ambiente agrário brasileiro, nos
limites dos questionamentos trazidos através das obras literárias em questão, e suas
implicações práticas; e, igualmente, apresentados os horizontes de viabilidade desse tipo de
discussão para o campo do estudo e do fazer do Direito como ferramenta de emancipação
individual e coletiva.
1
O uso do termo paradigma nesta ocasião, num sentido próximo do kuhniano, conota uma estrutura comum,
social e coletivamente aceita: “Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham [...]”
(KUHN, 1998, p. 219). Contudo, é somente uma observação conceitual, visto que a pretensão é já tratar de um
paradigma epistemológico do Direito em crise (SANTOS, 2000) conforme será exposto posteriormente.
linguagem simples voltada à sensibilidade e ao zelo pelo conteúdo essencial do que almejava
passar. Trabalhou como diplomata e sofreu represálias do governo Getúlio Vargas, quando foi
acusado de professar a ideologia comunista no Ministério de relações exteriores. É
considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa, tendo nos seus escritos um forte
teor regionalista (CARVALHO, 2009) demonstrando principalmente nas expressivas
representações do Nordeste brasileiro nos seus poemas e na sua prosa.
Dessa forma, dada a sua sensibilidade, João Cabral de Melo Neto acaba por
conseguir descortinar a realidade nordestina esclarecendo como questões estruturais têm o
poder de reconstruir a vida desses sujeitos das mais variadas formas, trazendo à tona
problemas como o acesso à água, a pobreza, a exploração desumana do trabalho, a
concentração de terra e a fome (PINHEIRO NETO; PROENÇA, 2013). Não obstante, sua
obra também é capaz de figurar a percepção do espaço agrário nas suas múltiplas faces, seja
no âmbito social, econômico, político e ecológico, visto que, através de suas descrições
minuciosas apresenta uma narrativa original fazendo de sua obra uma boa ferramenta de
compreensão desse ambiente.
É válido salientar também que outro problema sofrido pelo trabalhador sertanejo
advém dos dilemas do processo migratório campo-cidade: frequentemente privado dos meios
de produção e do acesso à terra no ambiente rural e diante da falta de oportunidades de
sobrevivência, este trabalhador se vê forçado a procurar outros meios de vida nas grandes
capitais, essa, na verdade, é a sina de Severino, sob a qual é construído o enredo da obra.
Contudo, durante a narrativa é demonstrado que a busca por melhores condições de vida em
ambiente urbano é uma grande ilusão, pelas bocas de dois coveiros, sobre os retirantes João
Cabral reflete que essas pessoas “que vem buscar no Recife poder morrer de velhice,/
encontra só, aqui chegando,/ cemitérios esperando./ - Não é viagem o que fazem, /vindo por
essas caatingas, vargens;/ aí está o seu erro:/ vêm é seguindo o seu próprio enterro” (MELO
NETO, 2006, p. 74)3.
Outro ponto é que, durante a história, Severino, personagem, se encontra com vários
tipos de morte enquanto segue o Rio Capibaribe até o Recife. Uma delas que vale ressaltar é a
morte matada, cujos motivos claramente se mostram por conflitos de terra, onde senhores
latifundiários, utilizando dos seus poderes e certeza da impunidade, alvejam posseiros com o
intuito de ter espaço para a expansão de suas propriedades. Problema esse que não é restrito à
realidade de Severino, hoje em dia (FACHIN; FACHIN e GONÇALVES, s.d., p. 01), no
cenário rural, mais de 800 mil pessoas lutam por um pedaço de terra que garanta sua
subsistência:
3
A reflexão trazida é de desmedida sensibilidade para a compreensão de como se dá a relação entre o homem do
campo e a terra sob seus pés, e como problemas tal qual a privação do acesso não é só uma violência física, mas
simbólica também; e como a cova, ainda que sendo o reduto da morte, significa ao mesmo tempo a terra e o
destino certo e cruel, mas muito emblemático de todos os severinos que passam a vida lutando: “-Essa cova em
que estás, com palmos medida, é a cota menor que tiraste em vida/ - É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é
a parte que te cabe neste latifúndio./ - Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. / - É
uma cova grande para teu pouco defunto, mas estará mais ancho que estavas no mundo./ - É uma cova grande
para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo. [...] Viverás, e para sempre na terra que aqui
aforas: e terá enfim tua roça./ Aí ficarás para sempre, livre do sol e da chuva, criando tuas saúvas. [...]
Trabalharás uma terra que, além de senhor, será homem de eito e trator. [...] Trabalhará numa terra que também
te abriga e te veste: embora com o brim do Nordeste. [...] Será de terra tua derradeira camisa: te veste, como
nunca em vida./ Será de terra a tua melhor camisa: te veste e ninguém cobiça” (MELO NETO, 2006, p. 74-75).
E sabeis quem era ele,/irmãos das almas,/sabeis como ele se chama/ou se
chamava?/Severino Lavrador,/irmão das almas,/Severino Lavrador,/mas já não
lavra. [...]— E foi morrida essa morte,/irmãos das almas,/essa foi morte morrida/ou
foi matada?/— Até que não foi morrida,/irmão das almas,/esta foi morte
matada,/numa emboscada. [...] /— E o que havia ele feito/irmãos das almas,/e o que
havia ele feito/contra a tal pássara?/— Ter um hectare de terra,/irmão das almas,/de
pedra e areia lavada/que cultivava./ — E agora o que passará,/irmãos das almas,/o
que é que acontecerá/contra a espingarda?/— Mais campo tem para soltar,/irmão das
almas,/tem mais onde fazer voar/as filhas-bala. (MELO NETO, 2006, p. 31)
Essa narrativa, apesar de ser construída numa obra de ficção, vai completamente ao
encontro da realidade material: acerca do tema, Vilas Boas (2017) mostra que na grande parte
dos casos, o imigrante originário do campo possui pouca qualificação profissional, tendo sua
mão de obra designada a subempregos e empregos de baixa remuneração. Além do mais,
tendo em vista que seus proventos são insuficientes para suprir as mínimas necessidades de
uma vida como moradia e alimentação, frequentemente acaba por residir em áreas periféricas,
“o êxodo rural não minorou a miséria dos migrantes, pois o cerne do problema está na
ausência de propriedade sobre os meios de produção” (VILAS BOAS; NOGUEIRA, 2017, p.
321). Em tese, muito pouco muda, a mesma morte severina que assola esse camponês no
ambiente rural o percebe até a cidade se mostrando presente de várias outras formas, com
várias outras faces mas ainda pelos mesmos motivos.
Dessa maneira, fica clara a postura dialética da obra Morte e vida severina quanto à
questão agrária brasileira, principalmente no nordeste. Remetendo aos escritos de Antônio
Cândido sobre o papel da literatura em desvelar a realidade nas mais variadas formas, “o
externo importa, não como causa nem significado, mas como elemento que desempenha certo
papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO, 2000, p. 6),
de modo que qualquer indivíduo, desde que inserido em determinado contexto, está suscetível
a sofrer influência deste. E assim acontece com João Cabral de Melo Neto, diretamente
relacionado à questão agrária de seu tempo, chegando, inclusive, a desempenhar papel de
chefe de gabinete do ministro da agricultura na década de 60, tem suas experiências pessoais
transportadas para o enredo de suas narrativas literárias tornando-as não só objetos de análise
crítica, mas também agentes transformadores dessa realidade com a qual dialoga.
Repensar o Direito nos últimos anos tem sido um dos maiores desafios dos juristas
deste tempo, e, dentre as incontáveis e mais variadas proposituras que se apresentam, o estudo
do Direito e Literatura tem assumido cada vez mais relevância. Para além da
interdisciplinaridade, por meio da qual o caminho do Direito vem se cruzando
progressivamente com o das mais diversas áreas do conhecimento, no intuito de construir um
espaço crítico, onde seja possível o questionamento de axiomas, fundamentos, efetividade e
etc.: a aproximação do campo jurídico à narrativa literária permite também que seus
operadores assimilem a capacidade criadora, crítica e reflexiva que a literatura respira,
podendo, então, superar alguns de seus limites intrínsecos, assim como aqueles impostos pelo
senso comum teórico pautado pelo tecnicismo, pelo positivismo engessado e pela dogmática
reducionista, que restringe a prática jurídica a um discurso lógico-pragmático voltado a
determinados interesses e tapa os olhos para toda a realidade material, desconsiderando a
importância constitutiva da linguagem na construção da intersubjetividade e intertextualidade
inerentes.
4
Vale pontuar, nesse caso, que a propositura de violação de algumas regras do método científico não significa,
necessariamente, que todo o saber produzido fora desses parâmetros não busca, à sua maneira, uma espécie de
rigor. Isso porque, mesmo dentro da diversidade de possibilidades de constituição de saberes fora do campo da
ciência moderna, esses também possuem suas formas de validação, verificação e de uso, para que não caia,
finalmente no campo do senso comum. Sobre a diferença e como o saber é produzido e validado fora do campo
científico, ver; ALMEIDA, Maria Conceição de. Complexidade, Saberes Científicos e Saberes da Tradição. São
Paulo: Livraria da Física, 2010.
valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm
produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre
conhecimentos.” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 7).
Uma última objeção que deve ser feita é a de que o referencial teórico e
metodológico acerca da abordagem Direito e Literatura majoritariamente parte de
pressupostos e discussões feitas dentro de um contexto europeu, que está acima da chamada
5
Contudo, vale pontuar que toda essa conjugação teórica só é possível uma vez que ambos os autores, François
Ost (2004), Paul Ricoeur (1989; 1990; 1994; 2008) e Boaventura de Sousa Santos (2010; 2018) admitem, ainda
que cada um sob pontos de vista particulares, a Arte –especificamente, nesse caso, o texto literário e suas
narrativas- como componente dessa amálgama de valores, ora tratados como elementos de um imaginário por
uns, ora como topoi por outros, dotado de um poder mobilizador e transformador da realidade material na qual se
insere.
linha abissal, diante disso, surge a oportunidade de uma crítica muito corriqueira quanto à
escolha dos referenciais, já que, partindo da premissa de que o intuito de uma abordagem
completamente decolonial é justamente não precisar recorrer a ferramentas de produção do
saber advindas do campo hegemônico, não faria sentido utilizar, por exemplo, de uma
hermenêutica francesa na propositura de um método. A resposta, entretanto, vem a partir dos
escritos do próprio Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2014) que, prevendo essa
situação, argumenta sobre a possibilidade de se utilizar saberes já constituídos na posição de
dominação, mas que, por meio de uma epistemologia transgressora venham a trabalhar a
serviço da emancipação.
Pelo Brasil todo há muitos Severinos que rogam, na sua vida ou na sua morte, pelo
Direito de existirem: em 2019 o Rio Doce, um dos principais rios da América do Sul se viu
dizimado numa parte em decorrência de uma grande irresponsabilidade por parte de
mineradoras no estado de Minas Gerais, e não houve o que se reivindicar sobre os direitos do
próprio rio; do mesmo modo, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2020),
foram registradas 1.833 ocorrências sobre conflitos por terra em todo o país, contando 32
assassinatos. Vê-se que essa existência não se trata de mero romantismo ou idealismo, mas de
emancipação, retomando este preceito cujo papel do Direito é atender (SANTOS, 2000),
visando uma efetividade que só se dará respeitando outras formas de ser, de saber e de existir,
garantidos os seus espaços frente a um paradigma moderno que os inviabiliza, bem como
aproveita dessa mesma inviabilidade para se sustentar, ainda que em crise:
Diante disso, “que expectativas se abrem aos povos injustiçados de todo o mundo?”
(NUNES, 2003, p. 118). Boaventura, um pouco distante do autor da pergunta, propõe a
necessidade de se reinventar a ideia de emancipação visando novos horizontes. É a
idealização de uma nova concepção de Direito, que reconheça a diferença, confronte os falsos
universalismos e a colonialidade do poder. Trata-se, portanto, de voltar os olhares a outras
formas de saber que não são valorizados. Alguns fatores podem ser levantados ao se repensar
o ser e o viver, principalmente no que concerne à organização das sociedades e suas formas de
produção no ambiente agrário (CARVALHO, 2005) tais quais: a) a equidade enquanto um
indicador fundamental da sustentabilidade dos agroecossistemas; b) a diversitade e a
compatibilidade cultural como base de construção de agroecossistemas biodiversificados e
includentes e de uma pedagogia de troca de saberes; c) a relação entre território disponível e
capacidade de suporte dos ecossistemas e a organização espacial/territorial necessária o
desenvolvimento de sistemas agroecológicos de produção.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, o que se percebe é que o Direito se encontra atualmente numa
grande crise epistemológica cujas raízes são bastante profundas. No caso de como este atua no
contexto agrário brasileiro, essas raízes estão diretamente ligadas a sua própria constituição no
decorrer da história: sendo o Brasil um país com um histórico de colonialismo europeu que
até os dias de hoje deixa marcas latentes na configuração política, social e econômica, era de
se esperar que o campo jurídico também sofresse essa repercussão. E os exemplos são muitos:
desde a configuração fundiária do país, voltada à concentração de terras improdutivas, a
inviabilização de modos de ser e de viver que contrapõem a lógica capitalista, até o trato com
as populações tradicionais e o não reconhecimento de sua legitimidade e autonomia frente o
poder instituidor do Estado, a regra é a de que este projeto de hegemonia – política,
econômica e, por fim, jurídica – acaba sendo cristalizado e se desenrolando em consequências
devastadoras por onde passa e sobre quem não se encontra em condição de privilégio e de
poder.
A Literatura, nesse sentido, se mostra – não como a única, mas – como uma
ferramenta de reflexão e contestação deste status quo em que o social e o jurídico se
encontram. Isso porque, além de, em consonância com os escritos de François Ost discutidos
no decorrer do texto e o seu poder questionador e recriador frente a realidade material, ela tem
também a capacidade de se colocar como um agente transformador da realidade, instigando a
crítica, a mobilização e, em consequência, o movimento dessas estruturas. Entretanto, a esta
altura, vale pontuar que se trata de uma possibilidade: a Literatura pode questionar, pode
refletir e pode questionar; o que não significa que ela necessariamente vá sempre
desempenhar esse papel, e mais, que o resultado dessa mobilização vai ser o esperado no
contexto em que ela se coloca e age. E essa incógnita se dá justamente em decorrência da sua
liberdade criativa, do seu não compromisso com nada além de si mesma e a sua capacidade
lúdica de romper limites que vão muito além das convenções racionais fora do campo das
possibilidades artísticas.
Contudo, no que se trata da obra analisada, Morte e Vida Severina, de João Cabral de
Melo, o que se percebe é que a obra em si é uma ótima ferramenta de compreensão e reflexão
do Direito agrário dada a fertilidade da sua ambientação e a conexão constante com temas que
assolam a vida do camponês brasileiro. Desde a violência no campo, as estruturas de poder, o
coronelismo, a falta de oportunidades no meio rural, o êxodo para a cidade em busca de uma
vida melhor em decorrência das más condições de (sobre)vivência no campo, Morte e Vida
Severina traz nas suas narrativas um retrato bastante fiel dessa realidade trazendo a luz temas
que o Direito normativo, positivista e hegemônico no seu operar ou fecha completamente os
olhos ou ainda que trate, trata com desdém, como é o caso, por exemplo, das políticas de
redistribuição de terra e de renda no meio rural.
Dessa forma, a saída proposta é através de uma guinada decolonial do Direito, que
deixa de assumir um caráter simplesmente regulatório tendo como referência suas normas e
seu modo de agir estão pautados numa racionalidade exacerbada e seus preceitos em valores
que não são os desses sujeitos constantemente violados, e passa a assumir um papel
emancipatório, se voltando, finalmente aos novos valores (novos aos olhos do Direito
hegemônico, somente, já que esses valores sempre existiram), novas formas de ser e de existir
no mundo, com novas noções de justiça, de igualdade e de liberdade que contemple esses
povos não só de maneira romântica, dando a eles visibilidade formal, mas sim que possibilite
o exercício de sua existência em toda a sua plenitude, garantido sua integridade, sua
autonomia sobre seus corpos, suas ideias e seu tempo de vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS