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DIREITO E

LITERATURA
PROFESSORA DOUTORA SOCORRO COÊLHO
DIREITO E LITERATURA
OBJETIVOS
• Aprofundar as interfaces existentes entre o Direito e a
Literatura, a partir da análise de obras literárias,
possibilitando a abertura de um novo campo para a
realização de estudos e pesquisas jurídicas
• Difundir, mediante o diálogo entre as comunidades
acadêmicas do Direito e da Literatura, a reflexão acerca da
capacidade da narrativa literária de auxiliar os juristas na
árdua tarefa de desvelar, através da ficção, a realidade social
e jurídica.
O QUE AFASTOU O DIREITO DA
LITERATURA?
• Abandono da humanidade no Direito.
• Distanciamento entre o texto e a praxis.
• O sentimento de descompasso entre a expectativa sobre a norma
positivada e a expectativa de seu (des)cumprimento gera um mecanismo
reflexivo de alta complexidade já denunciado por Luhmann: a
expectativa de expectativas.
DIREITO E LITERATURA

• “Para encontrar soluções bem integráveis, confiáveis, é


necessário que se possa ter expectativas não só sobre o
comportamento, mas sobre as próprias expectativas do outro”
(LUHMANN, Niklas, 1983, p. 47)

• O Direito funciona em um tempo distanciado do tempo social,


repetindo e entronizando o passado, esquecendo, dessa forma,
seu papel maior: a construção do futuro.
RELAÇÕES ENTRE DIREITO E
LITERATURA
• Conflitos advindos das relações processuais e das violações a
direitos, com suas consequentes cargas de justiça e injustiça.
• Percepção da sociedade sobre a atuação e postura dos profissionais
de Direito.
• Questionamento da validade de uma norma jurídica e o porquê de
sua (des)obediência.
• O tratamento literário do Direito é uma constante, tendo-se em vista
que este é um sistema social e que a literatura postula refletir acerca
dos fenômenos sociais.
POR QUE ESTUDAR O DIREITO A
PARTIR DA LITERATURA?
• O Direito não deve ser visto como um fenômeno isolado
das demais ciências, como pregava, por exemplo, a pureza
do Direito Kelsiana. O direito a partir da literatura favorece
uma conexão com os avanços sociais.
• Um Direito que se autocrie dia a dia, que se vincule a uma
noção biológica de redes de conexão, interligadas de tal
forma que o todo se construa a partir da parte e vice-versa.
POR QUE ESTUDAR O
DIREITO A PARTIR DA
 Um observador LITERATURA?
pode perceber o Direito dentro de sua lógica e ao
mesmo tempo, utilizar-se de outros parâmetros (Literatura) para
(re)influenciar a própria criação de um novo Direito, apto às
transformações do sistema social como já indicava Benjamin Cardoso,
juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos nos princípios do século
XX.
 A Literatura viabiliza uma reflexão social, ao produzir narrativas que
permitem se colocar no lugar do outro, através de suas narrativas e de
seus personagens, pode enviar o leitor para a vivência de outrem,
fazendo-o analisar e posicionar-se em relação ao caso posto.
 Ex: Processo – Kafka; Os que bebem como cães – Assis Brasil.
POR QUE ESTUDAR O
DIREITO A PARTIR DA

LITERATURA?
O positivismo jurídico criou a divinização da norma jurídica
e do formalismo processual e esqueceu-se de elementos
essenciais para a resolução do conflito, a psique e o
comportamento humano.
• Para Weisberg a Literatura pode ser considerada como uma
boa fonte de conhecimento do Direito, pois aborda
dimensões do fenômeno jurídico que não são tocadas pelos
métodos jurídicos – tradicionais, a saber:
A)COMO SE COMUNICAM OS
JURISTAS:
• A Literatura fornece uma boa resposta para se compreender
o porquê e a finalidade da construção dos discursos dos
jurisconsultos.
• Para Weisberg as histórias sobre Direito serão, sempre,
histórias como ostentar poder mediante a tradição repetida
dos contos sobre seus feitos judiciais (audiências,
julgamentos, tribunais...)
B) A FORMA DE TRATAMENTO DOS
JURISTAS EM RELAÇÃO AOS “OUTROS”:

• A Literatura oferece uma descrição acurada dos modos de


relação entre os juristas e os não-juristas (leigos no Direito)
C) COMO OS JURISTAS ESTRUTURAM SUAS
ARGUMENTAÇÕES:

• Weisberg ao analisar as obras de Dickens, Faulkner e John Barth


conclui que os advogados que NÃO têm êxito em suas ações possuem
as seguintes características:
• Capacidade para manipulação verbal;
• Elitismo e isolamento;
• Tendência a misantropia;
• Relativismo ético no exercício de sua profissão;
• Frugalidade e passividade
• Distância frente ao sofrimento alheio.
POR QUE ESTUDAR O
DIREITO A PARTIR DA

LITERATURA?
Direito e Literatura são textos, reclamam uma atividade
que apure o sentido de suas construções, evidenciando a
relação entre o construtor/ legislador e o destinatário/
cidadão da norma jurídica.
• Retirar o fulcro legalista da ciência do Direito. Este não é
apenas norma.
COMO ESTUDAR O DIREITO
COM BASE NA LITERATURA?
• O objetivo de estudar o Direito a partir da Literatura é
encontrar nesta, pontos de apoio que forneçam ao Direito
compreensões necessárias – a serem assemelhadas e (re)
processadas por sua lógica funcional – sobre o bem e o mal,
o justo e o injusto e o legal e o ilegal.
VISÃO TRIPLA DO DIREITO SEGUNDO O
LAW AND LITERATURE MOVEMENT:

• O Direito na Literatura
• Direito como Literatura
• Direito da Literatura
DIREITO NA LITERATURA

• O Direto na Literatura é o ramo da


disciplina Direito e Literatura que
estuda as formas sob as quais o Direito
é representado na Literatura. Cada
forma de tratamento poderá interessar
a um determinado campo jurídico.
DIREITO NA LITERATURA

• A) Recriações literárias de processos jurídicos, em especial


os denominados hard cases ou aqueles com elevado grau de
conotação acerca do justo/injusto, ou Direito/não Direito.
• Ex: Mercador de Veneza - Shakespeare
DIREITO NA LITERATURA

• B) O modo de ser e o caráter dos juristas, especialmente os


advogados, algumas vezes apresentados como heróis, outras
tantas, como vilões.
• Exemplo: O auto da barca do Inferno – Gil Vicente
VEM UM CORREGEDOR CARREGADO DE
FEITOS E CHEGANDO À BARCA DO
INFERNO, COM SUA VARA NA MÃO DIZ:
• Corregedor –Ó da barca! • Diabo – Ora, pois, entrai. Veremos
que diz aí nesse papel.
• Diabo – Que quereis?
• Corregedor – E onde vai o batel?
• Corregedor – Está aqui o senhor juiz.
• Diabo – No inferno vos poremos.
• Diabo – Oh, amador de perdiz,
• Corregedor – Como?! Á terra dos
• Corregedor – No meu ar conhecereis
demos há-de ir um corregedor?!
que não é ela do meu jeito.
• Diabo – Santo descorregedor,
• Diabo – Como vai lá o Direito?
embarcai e remaremos! Ora entrais,
• Corregedor – Nestes feitos o vereis. pois que viestes!
• Corregedor – Não é de regulae juris,
não!
VEM UM CORREGEDOR CARREGADO DE
FEITOS E CHEGANDO À BARCA DO
INFERNO, COM SUA VARA NA MÃO DIZ:
• Diabo – Ita, ita! Daí cá a mão! • Diabo – Não há cá tal costumagem.
Remarei um remo destes. • Corregedor – Não entendo esta
barcagem, nem hoc non potest esse.
Fazei conta que nascestes para
• Diabo – Se ora vos parecesse
nosso companheiro.
que não sei mais que linguagem...
- Que fazes tu, barzoneiro
Entrai, entrai, corregedor!
Faze-lhe essa prancha prestes!
Corregedor – Oh! Videtis qui petatis!
Super jure magestatis tem vosso mando
Corregedor – Oh! Renego da viagem e vigor?
de quem me há-de levar!
Há aqui meirinho do mar?
VEM UM CORREGEDOR CARREGADO DE FEITOS E
CHEGANDO À BARCA DO INFERNO, COM SUA VARA NA MÃO
DIZ:
 Diabo – Quando éreis ouvidor nonne  Corregedor - Semper ego justitia
accepistis rapina? Pois ireis pela fecit, Eu sempre obrei com justiça e
bolina onde nossa mercê for... equidade, e bem por nível!
Oh!que isca esse papel para um fogo  Diabo – E as peitas dos judeus que
que eu sei! vossa mulher levava?
 Corregedor – Isso eu não o tomava,
eram lá percalços seus.
Corregedor – Domine, memento mei!
(Senhor lembra-te de mim!)  Non sunt peccatus meus, peccavit
uxore mea. Não são pecados meu,
Diabo – Non es tempus, bacharel. minha mulher é que pecava.
Imbarquemini in batel quia judicatis  Diabo – Et vobis quoque cum ea,
malitia. não temuistis Deus?
VEM UM CORREGEDOR CARREGADO DE FEITOS E
CHEGANDO À BARCA DO INFERNO, COM SUA
VARA NA MÃO DIZ:
 Diabo – A largo modo adquiristis sanguinis  Diabo - Ora entrai nos negros fados! Ireis
laboraturm, ignorantes peccatorum, ut quid eos ao lago dos cães, e vereis os escrivães
non audistis? Enriquecestes a valer à custa do como estão tão prosperados.
sangue dos lavradores, ignorantes pecadores,  Corregedor – E na terra dos danados estão
sem atendê-los sequer. os evangelistas?
 Corregedor- Vós, arrais, nonne legistis que o (homens da lei)
dar quebra penedos? Os direitos estão quedos,
sed aliquid tradidistis...
Diabo – Os mestres das burlas (fraudes)
Vós arrais, nunca ouvistes que a lei se cala
vistas lá estão bem fraguados.
quando trazeis alguma coisa...
(atormentados)
ESTANDO O CORREGEDOR NESTA PRÁTICA COM O ARRAIS
INFERNAL, CHEGOU UM PROCURADOR, CARREGADO DE
LIVROS, E DIZ O CORREGEDOR AO PROCURADOR:

• Corregedor - Ó senhor procurador! • Procurador - Dix! Não vou eu para


lá! Outro navio está cá, muito melhor
• Procurador – Beijo-vo-las mãos, juiz!
assombrado.
Que diz esse Arrais? Que diz?
• Diabo – Ora estás bem aviado! Entra
• Diabo – Que sereis bom remador.
muitieramá! Em muita má hora!
Entrai, bacharel, doutor, e ireis dando
na bomba. • Corregedor – Confessas-te vos,
doutor?
• Procurador – E este barqueiro
zomba... Jogatais de zombador? Essa • Procurador – Bacharel sou... Dou-me
gente que aí está, para onde a levais? ao Demo! Não cuidei que era
extremo, nem de morte minha dor.E
• Diabo – Para as penas infernais.
vós, senhor Corregedor?
ESTANDO O CORREGEDOR NESTA PRÁTICA COM O ARRAIS
INFERNAL, CHEGOU UM PROCURADOR, CARREGADO DE
LIVROS, E DIZ O CORREGEDOR AO PROCURADOR:

 Corregedor –  Diabo - Imbarquemini in barco meo...


Para que esperatis mais?
 Eu mui bem me confessei, mas tudo
quanto roubei encobri ao
confessor...
Porque, se não o tornais,
Não vos querem absolver,
e é mui mal de volver
depois que o apanhais.

Diabo – Pois por que não embarcais?


Procurador – Quia esperamus in Deo.
VÃO-SE AMBOS AO BATEL DA GLÓRIA E,
CHEGANDO, DIZ O CORREGEDOR AO ANJO:

 Corregedor – Ó arrais dos gloriosos, passai-nos  Corregedor – oh! Não sejais contrários, pois
neste batel! não temos outra ponte!

 Anjo – Oh pragas para o papel, para as almas  Parvo – Beleguinis ubi sunto? Onde estão os
odiosos! beleguins (oficiais de justiça)

Como vindes preciosos, sendo filhos da ciência!  Anjo - A justiça divinal

Corregedor – Oh! Habeatis clemência e passai- vos manda vir carregados


nos como vossos!
porque vades embarcados
Parvo – Ó homens dos breviários rapinatis
coelhorum et pernis perdiguitorum. Recebestes neste batel infernal.
como propina coelhos e pernas de perdizes e
Corregedor – Oh! Não praza a São Marçal co’a
mijais nos campanários!
ribeira, nem co’o rio!

Cuidam lá que é desvario haver cá tamanho mal.


VÃO-SE AMBOS AO BATEL DA GLÓRIA E,
CHEGANDO, DIZ O CORREGEDOR AO ANJO:

• Corregedor - Venha a
negra prancha cá! Vamos
ver este segredo.
• Procurador – Diz um
texto do Degredo...
• Diabo – Entrai, que se
dirá!
VÊM QUATRO FIDALGOS, CAVALEIROS DA
ORDEM DE CRISTO QUE POR MORREREM NAS
PARTES DA ÁFRICA. VÊM CANTANDO A LETRA
QUE SE SEGUE:
À barca, à barca segura, À barca, à barca mortais!

guardar da barca perdida: Porém na vida perdida

à barca, à barca da vida! Se perde a barca da vida.

Vigia-vos pecadores,

Senhores, que trabalhais Que depois da sepultura

pela vida transitória, Neste rio está a ventura

memórias, por Deus, De prazeres ou de dores!

memória deste temeroso

Cais! À barca, à barca segura,

guardar da barca perdida:

à barca, à barca da vida!


C) O USO SIMBÓLICO DO
DIREITO
• As representações que uma sociedade exterioriza a respeito
de suas normas jurídicas.
• Obras de Tolstoi e Dostoievski – A comunidade jurídica
baseava-se no amor e no afeto;
• Literatura francesa – A unidade política na obediências às
normas jurídicas, que se reportam aos valores de liberdade e
igualdade da Revolução Francesa.
D) O TRATAMENTO QUE O DIREITO E O ESTADO
DISPENSAM ÀS MINORIAS OU GRUPOS
OPRIMIDOS

• Mulheres, imigrantes, raça, religião, etc.


• Madame Bovary – Gustave Flaubert
• Estação Carandiru – Draúzio Varella
• Antígona de Sófocles – o debate que opõe o direito natural ao
direito positivo e a desobediência civil.
• Criton de Platão – desobediência civil
• Processo – Kafka – Joseph K, bancário, que é preso, julgado e
condenado por um misterioso tribunal, jamais conhecendo as
razões de tal ato.
DIREITO COMO LITERATURA

• Literatura e Direito são narrativas;


• Perceber o Direito e seu conjunto de atos e procedimentos
como peças capazes de serem observadas como atos literários;
• A sentença é uma peça com personagens, enredo, início, meio e
fim.
• A citação de jurisprudência e precedentes em uma petição é um
relato intercalado, adaptado à necessidade de um suporte
jurídico.
DIREITO COMO LITERATURA

 O literário deve enxergar-se como intrínseco ao Direito


enquanto o Direito, necessariamente, encerra a construção
de personagens, personalidades, sensibilidades, mitos e
tradições que compõem o mundo social.
 O Direito pode ser visto como exercício de retórica, ou
seja, uma forma de convencimento.
 Direito processual pode ser entendido como um universo
de histórias narradas pelas partes e que buscam o
convencimento de um terceiro (leitor): o juiz.
DIREITO COMO LITERATURA

• Um processo judicial é, além de conhecimento


(processo de conhecimento), um conjunto de histórias
contrapostas uma à outra.
• Sua lógica sequenciada permite ao juiz a compreensão
dos fatos, da mesma forma que uma obra literária
reporta o leitor ao entendimento linear de sua
marcação.
DIREITO DA LITERATURA

• É o ramo do sistema jurídico que já recebeu as informações


necessárias advindas do sistema da arte e do sistema
político. As leis e normas jurídicas que protegem a atividade
literária são o objeto central da observação nesse plano.
• O Direito na Literatura compreende:
• A) As relações jurídicas do exercício literário;
• B) As normas que regulam a criação e a difusão da obra
literária e os direitos por ela gerados.
BIBLIOGRAFIA

•  SCHWARTZ, Germano. Direito e Literatura: proposições iniciais para uma observação


de segundo grau do sistema jurídico.

• VICENTE, Gil. O auto da barca do inferno. Editora Klick, São Paulo.

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