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UMA ESTRATÉGIA DE COMBATE À DESIGUALDADE A PARTIR DA

URBANIZAÇÃO DAS FAVELAS E DE SEU ENTORNO.

Por Luiz Carlos Toledo

Sabemos que a desigualdade está presente nas cidades brasileiras e em grande parte
das cidades de todo o mundo, inclusive nos países desenvolvidos Entre as diversas
manifestações da desigualdade, uma desperta especial interesse nos arquitetos: a
apropriação desigual do espaço urbano e das vantagens da vida na cidade, expressa
no surgimento das favelas, dos loteamentos irregulares, da crescente população em
situação de rua, e em outras manifestações de menor visibilidade.

A favela como parte integrante da cidade não deve ser tratada separadamente, nem
ser problematizada sem se considerar sua potência. Nessa afirmativa estou bem
acompanhado, desde 1999 Jailson de Souza e Silva defendia, em sua tese de
doutorado, “uma percepção dos grupos sociais populares e de seus espaços de
moradia distinta da expressa no discurso da ausência” Isto é, uma visão da favela
limitada ao que nela faltava, sem levar em conta o “paradigma da potência”, outra das
contribuições de Jailson para o estudo desses assentamentos.

Isso posto, compartilho com nossos colegas do IAB algumas ideias que tenho
desenvolvido, incentivado pelos objetivos do Programa Comunidade Cidade, sobre a
formulação de uma estratégia de combate à desigualdade territorial a partir de um
investimento maciço em saneamento, urbanização, habitação de qualidade e,
principalmente, a presença permanente do Estado na favela através de equipamentos
e serviços públicos.

Em 2018, na Casa de Estudos Urbanos, desenvolvemos o conceito de “indisciplina


urbanística” ao estudar o potencial da atividade de “shopping-chão” no Bairro da
Glória, chegamos a alguns resultados interessantes, como a identificação da potência
desta atividade não só, para os que dela tiravam o sustento, mas também, para todos
os moradores do bairro e da cidade, malgrado a insatisfação de alguns moradores que
repudiavam a presença de “vendedores de bugigangas” nas calçadas.

Estudando o shopping chão deparei-me com o “paradigma da potência”, como diria


Jailson, ao descobrir a importância desta atividade para o meio ambiente, para o
circuito inferior da economia e, até mesmo, para a segurança das ruas. Eu mesmo,
presa fácil dos “trombadinhas”, fui salvo algumas vezes pela vigilância dos
“garimpeiros urbanos”, como gosta de ser chamada a turma do shopping chão.

A potência das favelas tem um poder de transformação do espaço urbano muito


superior, para o bem e para o mal. Nelas, a população sem recursos para morar nas
áreas formais da cidade, sobrevivem com orçamentos reduzidíssimos, economizando
em transporte, e graças à informalidade, zerando os gastos com a energia e
abastecimento de água, além de beneficiar-se com a presença de equipamentos e
serviços dentro da favela ou em áreas próximas. A proximidade às oportunidades de
trabalho, raras ou mesmo inexistentes nas periferias, aumenta a atratividade desses
assentamentos, apesar da baixa qualidade de vida, ausência do Estado e a presença
do crime organizado.
A dimensão da favela, o nível de consolidação da ocupação do solo, o ritmo e o tipo
crescimento (vertical/horizontal), os aspectos sociais e econômicos, a produção
cultural e principalmente, a localização desses assentamentos, são indicadores
preciosos para determinar a potência desses assentamentos para a construção de
uma cidade menos desigual. Utilizar este potencial para dar início a um processo de
democratização do espaço urbano parece-me uma melhor estratégia promissora para
combater a desigualdade na Cidade do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, diminuir a
imensa dívida social com a população de menor poder aquisitivo.

A ocupação do espaço urbano é regida basicamente pelo mercado imobiliário, é ele


que define o valor da terra, os vetores de crescimento e a distribuição da população,
ricos e remediados, de um lado e, os pobres o mais longe possível. As legislações
urbanísticas, nelas incluídas os planos diretores que, em teoria, funcionariam para
limitar o poder do mercado, corrigindo as disfunções, pelo contrário, trabalham quase
sempre a seu favor, respaldadas pelas Prefeituras e Câmaras de Vereadores,
instâncias responsáveis pelo controle do uso do solo urbano que, com poucas
exceções, são aliadas dos agentes do mercado.

As favelas são locais de resistência à ação do mercado imobiliário que trava um


combate incessante contra a sua permanência, pressionando o poder público à
erradicá-las, e a própria sociedade que através de campanhas midiáticas passa a
considerá-las responsáveis pela violência das ruas, pelos agravos ao meio ambiente,
a paisagem, e sobretudo culpadas pela desvalorização das áreas e edificações no
entorno desses assentamentos.

Nossa ideia, já apresentada no Grupo de Interlocutores da Revisão do Plano Diretor


da Cidade, e entre os técnicos da Secretaria de Urbanismo da Prefeitura, é a criação
de uma Zona De Especial Interesse Social nas franjas e proximidades das favelas.
Nessas Zonas (diferentes das Áreas de Especial Interesse Social-AEIS da legislação
atual) seriam estimuladas a construção de Habitações de Interesse Social (HIS) e de
Equipamentos Urbanos (inexistentes na favela e no entorno) pela revisão dos
parâmetros e índices urbanísticos, de modo a despertar o interesse das construtoras
em trabalhar em áreas com infraestrutura próximas ao mercado de trabalho.

Como exemplo do que a criação das Zonas de Especial Interesse Social poderia
proporcionar em termos construtivos, criando um espaço de transição entre a favela e
a cidade formal, cito o projeto do Residencial Emoções, um conjunto residencial que
vem sendo projetado pela equipe do Comunidade Cidade junto a AEIS da Rocinha.

O projeto busca resgatar algumas das particularidades do modo de vida na favela,


considerados importantes para a construção de uma cidade mais solidária e inclusiva,
entre as quais a sociabilidade existente entre moradores que se visitam e se ajudam
de diferentes maneiras, tomando conta das crianças, participando de mutirões,
levando vizinhos ao hospital nas emergências e, até mesmo, dividindo a pobreza com
os ainda mais necessitados.

O isolamento dos moradores em blocos de apartamentos sem ligação entre si,


característico da maioria dos conjuntos habitacionais existentes, dificultaria a
preservação dessas práticas, rompendo vizinhanças e compadrios, razão pela qual os
cinco blocos foram interligados pelas circulações horizontais e passarelas. Através
delas, dos elevadores e escadas, os moradores estarão aptos à circular por todos os
espaços do conjunto habitacional.
As circulações horizontais e verticais do conjunto reproduzem o papel dos becos e
escadarias da favela, onde formam um tecido para os pedestres extremamente
complexo, que oferece ao passante inúmeras alternativas de trajeto para deslocar-se
de um ponto a outro. A iluminação e ventilação natural, a proteção nos dias chuvosos,
a largura adequada, a regularidade do piso e dos degraus das escadas, e a ausência
de barreiras físicas são as principais diferenças entre os “becos-corredores” e as
escadas projetadas e seus similares na favela. Outro costume que a equipe tratou de
preservar é o cultivo de plantas e pequenas hortas, projetando jardineiras nos
corredores e varandas dos apartamentos.
Todos os blocos terão 10 pavimentos, com 37 apartamentos por andar, e um
embasamento composto por três pavimentos, Pavimento de Uso Público (PUP),
Pavimento Comercial e Meio Subsolo. O PUP terá como função principal remediar a
crônica falta de espaços livres e áreas para a implantação de equipamentos públicos
na Rocinha. Nele foi projetada uma grande praça cercada por equipamentos públicos
que servirão a toda a Rocinha. O pavimento comercial, foi reservado às lojas e ao
auditório do Museu Sankofa, Memória e História da Rocinha.
No Meio Subsolo foram projetados o estacionamento, portaria, vestiários, depósitos,
elevador de carga, subestação e gerador de emergência, bicicletários e o acervo e a
administração do Museu Sankofa, equipamento cultural de grande importância para a
Rocinha. Nos pavimentos de cobertura dos cinco blocos foram projetadas áreas de
recreação e convivência para os moradores do conjunto.
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