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Quando a rua vira casa: a apropriação de

espaços de uso coletivo em um centro


de bairro

Mello, Marco Antônio da Silva; Vogel, Arno;


Mollica, Orlando
4 ed. Rio de Janeiro: Eduff, 2017[1980, 174p.

Rafael Vidal Assaf e Stephanie Mesquita Assaf

Orlando Mollica, Mapa de referências do Catumbi, s.d., s.d. Fonte:


O livro Quando a rua vira casa, de Marco Antônio Mello, Marco Antônio da Silva; Vogel, Arno; Mollica, Orlando. Quando
a rua vira casa: a apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de
da Silva Mello e Arno Vogel, com ilustrações de bairro. 4a edição. Rio de Janeiro: EDUFF, 2017

Orlando Mollica – originalmente publicado em


Conjunto Selva de Pedra, planejado, implantado
1980 – chega em sua quarta edição pela Editora
no Leblon e composto por 40 prédios, é remetido
Eduff. Tal obra é resultado da compilação do
como um expoente do “urbanismo modernista”
trabalho etnográfico e pesquisa arquitetônica
brasileiro. A pesquisa é realizada tanto sobre esse
feitos no bairro Catumbi e no conjunto Selva de
bairro ocupado em sua maioria por casas unifami-
Pedra, ambos no Rio de Janeiro, durante 1979,
liares em “testada de lote”, com diferentes usos e
financiados pelo Ibam (Instituto Brasileiro de Ad-
considerado modelo urbano obsoleto pelo poder
ministração Municipal). Ao contrário de outras
público, em contraste com o outro contexto, que
pesquisas alicerçadas pelo mesmo Instituto, essa abriga grandes conjuntos habitacionais mono-
foi encomendada pela Associação de Moradores funcionais, resultante da aplicação do modelo da
do Catumbi e apresenta importantes inflexões “boa forma urbana” da arquitetura moderna, que
teóricas e metodológicas em diversos aspectos compõe o Selva de Pedra.
e áreas. Nesse sentido, desde sua publicação, se
tornou referência para ensino e pesquisa, espe- Os autores apresentam ampla discussão sobre o

cialmente para estudos vinculados ao planeja- método adotado, uma vez em que no Catumbi
ocorreu um estudo de intensiva aproximação e
mento, antropologia e sociologia urbanas devido
que o Selva de Pedra foi, em primeira instância,
ao método de pesquisa, assim como abordagem
um referencial para contraste de modelos mobili-
socioespacial para além do racionalismo técnico-es-
zados para a construção de espaços urbanos – em
pacial e suas possíveis correspondências entre
busca de explorar os possíveis tensionamentos entre
delimitações de público e privado.
a vida arquitetada pela apropriação de modelos
Na introdução, os autores anunciam que os bairros canônicos, materializados no Selva de Pedra, e a
estudados representam dois casos ilustrativos de vivência no Catumbi. Nessa intenção, os autores
uma polaridade típica nas cidades brasileiras: o aproximaram discussões de morfologia urbana à
Catumbi é apresentado como um bairro popular pesquisa etnográfica, além de produzir vasto mate-
adjacente ao Centro do município do Rio de Janeiro, rial audiovisual com foco nas formas de apropriação
ocupado em meados do século 19, cuja urbani- e experiências cotidianas. A pesquisa se direcionou
zação ocorreu espontaneamente; ao passo que o para as diferenças entre as relações de apropriação

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no Catumbi que se opunham às concepções de no âmbito do “concebido” e são constantemente
ordenamento do projeto modernista no Selva de ressignificadas na experiência do “vivido”, o espaço é
Pedra. A proposta dos autores para o método produzido. Assim, algumas polaridades apresentadas
comparativo das formas racionais, hipoteticamente pela razão do planejamento urbano operariam como
insuficientes, com as apropriações espontâneas oposições relativas, uma vez que não são contem-
parte, portanto, da suposição de que as formas pladas no contexto do Catumbi.
de apropriação dos espaços não planejados e de
O capítulo seguinte, “Caso de controle: a ‘Selva
uso comum deveriam ser distintas. de Pedra’”, sob a hipótese da diferença oposicional
É importante ressaltar que tal método não se entre os processos de apropriação dos espaços
esgota em análises a princípio comparativo-dua- de uso coletivo, explora exatamente o controle.
listas. O resultado do empenho metodológico da pontuando que o que era espontâneo no Catumbi,
pesquisa fez sobressair as relações coletivas dos no Selva de Pedra, era planejado. Ao passo que
espaços, especialmente quando os autores se as categorias levantas no bairro do Catumbi eram
debruçam sobre a análise de categorias nativas mais diluídas, no caso do Selva de Pedra as noções
de dentro do universo do Catumbi. Tais categorias homogeneizadoras de classificação dos modos de
existiriam com referência nas realidades fronteiriças vida eram recorrentes. Ainda nesse contraponto, os
da experiência do bairro, ainda que de outro campo autores levam o argumento ao extremo ao afirmar
do domínio de pensar e conceber, em correspondên- que as atribuições observadas no Catumbi seriam
cias mútuas e artificiosas entre rua, casa, calçada, mais úteis – em relação aos modelos monofunciona-
janelas e quintais. listas – como instrumentos de análise urbana, uma
vez em que tal sistema não se atribuem impedi-
No capítulo “Primeiros Contatos” há uma rápida mentos às variedades de formas de apropriações
apresentação da morfologia do bairro e das relações do espaço.
com as categorias mencionadas, referentes à
Por fim, em “Conclusão: rua ou Selva de Pedra”,
interlocução e impregnação mútua dessas com a
o livro é arrematado com uma crítica ao discurso
apropriação do espaço vivido. O padrão morfológico
dos planejadores, cuja inspiração modernista os
do Catumbi estaria articulado em constante (re)
faz aferir retórica com viés progressista no intento
atualização de valores de uso, à medida que se
de formar mitos fundadores desconectados dos
integram às práticas vividas nos fazeres e perfor-
modos de vida preexistentes. O Catumbi, portanto,
mances do cotidiano, diferente do planejamento
seria um exemplo potente de como um modo
praticado pelo poder público, especialmente nas
monotético não apenas em relação a determinados
atividades coletivas e públicas da rua, nas relações
sistemas classificatórios é constantemente ameaçado
limítrofes de casa-rua-calçada que suscitam dife-
pelo mundo das práticas cotidianas que desafiam
rentes níveis de exposição, visibilidade e performance
a utopia modernista-racionalista da construção
social do corpo usufruidor.
do espaço público no contexto analisado. Quando
Em “Os trabalhos e os dias” a vida da rua é desenvol- a rua vira casa é exatamente o elogio e a incorpora-
vida como moduladora das próprias qualidades for- ção das rugosidades e dos estranhamentos das inte-
mais do espaço, além de nele se manifestar. Por meio rações urbanas em sistemas politéticos, não binários,
das referidas categorias, que figuram essencialmente dinâmicos e ambíguos de entendimento do mundo.

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