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Análise de Leitura: O gesto do desenho de Sónia Vespeira de Almeida e José Mapril

O desenho, indispensável para a representação das formas, é também uma


ferramenta fundamental para a interpretação da realidade. Apesar de ser um elemento
imprescindível para a prática arquitetónica nem sempre terá sido considerado uma
ferramenta essencial para a Antropologia, contudo, tem-se vindo a manifestar uma mais valia
para a análise etnográfica.
Sónia Vespeira de Almeida e José Mapril, antropólogos e professores, no
desenvolvimento de O Gesto do Desenho, induzem o leitor para a importância do desenho
como ferramenta metodológica no desenvolvimento etnográfico. Neste sentido, os autores
realizaram workshops em desenho etnográfico no contexto da Escola de Verão da Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Para a realização desta atividade foi escolhida a área envolvente do Bairro do Rego, em
Lisboa. Esta escolha deveu-se essencialmente à proximidade geográfica com a faculdade de
onde provinham os alunos, à especificidade urbana do bairro e à existência do Mercado do
Bairro de Santos que fora um ponto de observação fulcral.
O Bairro do Rego, em tempos terá sido uma zona de fixação de população, porém,
em consequência do crescimento populacional, transformou-se progressivamente numa
zona de imobilidade populacional. A sua população ter-se-á vindo a alterar até aos dias de
hoje e, onde inicialmente este era um bairro ocupado por um povo operário, nos dias que
correm é composto sobretudo por classes médias.
Para a realização deste exercício, optou-se pela procura de temáticas que permitissem uma
articulação coerente do desenho com problemáticas da antropologia contemporânea. Deste
modo, foi essencial pensar sobre a relação do mercado com o bairro e paralelamente com o
resto da cidade. Destacaram-se assim alguns temas que revelaram ser úteis para a reflexão do
desenho etnográfico: A natureza do bairro como elemento periférico da cidade e o défice de
transportes para o centro da cidade; a dinâmica do bairro em consequência ao impacto do
programa de realojamento; os processos de gentrificação em alguns pontos e as medidas
tomadas nesse sentido e, por fim, as consequências para a dinâmica do lugar perante a
deslocalização de algumas empresas e serviços.
A visita ao Mercado do Bairro de Santos foi essencial para esclarecer alguns destes aspetos.
Desde a o primeiro momento, os alunos ficaram surpreendidos com a quantidade de
bancadas e estabelecimentos encerrados. Este mercado, que habitualmente serviria a
população residente do bairro e alguns trabalhadores das empresas ali localizadas, revelara
uma decadência. Perante o confronto com esta realidade, os participantes do workshop,
começaram por observar os gestos, interações, movimentos e diálogos de quem por lá
passava e trabalhava. Ainda na conversa com alguns comerciantes, perceberam qual o
conjunto de fatores que poderiam ter levado a esta decadência: a relocalização de várias
empresas, a retirada da bolsa desta zona da cidade, o envelhecimento da população do bairro
e, até mesmo, o processo de renovação do mercado. Após este estudo, consideraram
essencial ter um olhar comparativo sobre outros mercados e as suas respetivas dinâmicas.
Neste sentido, optaram também por visitar e desenhar o Mercado 31 Janeiro, situado na
freguesia de Arroios, também em Lisboa.
Os antropólogos desafiaram os alunos a partilhar os seus centros de interesse sobre
as análises feitas, identificando conjuntamente as problemáticas decorrentes das visitas aos
dois estabelecimentos de comércio. A partir de um debate que integrara a experiência dos
estudantes e as possibilidades adquiridas pelo desenho etnográfico destacaram-se os pontos
de análise mais comuns: Fluxos, mobilidades, escalas, mercadorias, consumos, espaço,
trabalho, entre outros. Estes pontos permitiram retratar e comparar a complexidade do
estudo antropológico. Neste sentido, o desenho foi uma ferramenta essencial de reflexão e
esclarecimento de opiniões. Permitiu auxiliar no pensamento e retificar ideias sobre ambos
os mercados assim como outros fatores adjacentes: economia, política e o contexto urbano.
Esta forma de representação possibilitou ainda dar sentido, não só aos gestos das dinâmicas
vividas nos campos de análise, mas também, à integração e interpretação do espaço por parte
dos alunos e professores. O desenho revelou-se um instrumento de produção etnográfica
que resultara de um processo de partilha, encontro e diálogo onde ter-se-á representado o
visível e até mesmo o invisível, resultando de diferentes camadas de leitura, expressão e
observação.
A antropologia, como uma disciplina de observação sobre as diferentes formas de
estar no mundo, procura um conhecimento a partir do ato participativo. Por sua vez, o
desenho permite ao investigador complementar a sua análise sobre o espaço através do gesto.
Desta forma, as duas disciplinas desempenham um papel colaborativo significante. Como
formas de ver e conhecer o mundo, quando usados em simultâneo, possibilitam uma reflexão
muito mais atenta e profunda sobre as vivências do espaço.

Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra


Antropologia, Cultura e Arquitetura 2019/2020
Daniela Soares

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