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Morfologia urbana como um campo interdisciplinar emergente

Article in Revista de Morfologia Urbana · July 2017


DOI: 10.47235/rmu.v3i1.16

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2 authors:

Anne Vernez Moudon Vítor Oliveira


University of Washington Seattle University of Porto
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MORPHO – CHANGING URBAN FORM TO REDUCE URBAN INEQUALITY View project

EVIDENCE: Re-inventing analysis, design and decision support systems for planning View project

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Morfologia urbana como um campo interdisciplinar
emergente

Anne Vernez Moudon


College of Architecture and Urban Planning, University of Washington, Seattle, WA
98195, USA. E-mail: moudon@u.washington.edu

Artigo originalmente publicado na Urban Morphology em Outubro de 1997

Resumo. Neste artigo identificam-se as forças e os acontecimentos que


conduziram à formação do International Seminar on Urban Form (ISUF). O
ISUF tem vindo a expandir o campo da morfologia urbana para além dos
seus limites originais na área da geografia particularmente em direção aos
domínios da arquitetura e do planeamento. Três escolas de morfologia
urbana, em Inglaterra, Itália e França, têm vindo a desenvolver um processo
de aproximação, seguindo o trabalho seminal de dois morfologistas, M. R. G.
Conzen e Saverio Muratori. A aproximação destas escolas fornece as bases
para a definição de um campo interdisciplinar e a oportunidade de
estabelecer fundações teóricas comuns para um conjunto crescente de
morfologistas em diferentes partes do mundo. A ambiciosa missão do ISUF é
abordar um conjunto de temas atuais e concretos relacionados com o
processo de construção da cidade, fornecendo um fórum de reflexão e ação
que inclui disciplinas, e profissões relacionadas, provenientes de diferentes
culturas. Neste artigo discute-se o potencial de um campo interdisciplinar de
morfologia urbana e o seu contributo para a compreensão e para a gestão
dos processos de desenvolvimento urbano num período de transformação
sem precedentes.

Palavras-chave: morfologia urbana, interdisciplinaridade, construção da


cidade, geografia, arquitetura

Morfologia urbana é o estudo da cidade forma sobre o solo moldando as nossas


como habitat humano. O etnógrafo Lévi- cidades. Edifícios, jardins, ruas, parques e
Strauss (1954, pp.137-8) descreveu a cidade monumentos, estão entre os principais
como ‘a mais complexa das invenções elementos da análise morfológica. No
humanas,…na confluência entre natureza e entanto, estes elementos são considerados
artefacto’. Os morfologistas analisam a organismos que vão sendo constantemente
evolução da cidade desde o seu assentamento utilizados e transformados ao longo do
até às subsequentes transformações, tempo. Estes elementos também existem
identificando e dissecando os seus vários num estado de inter-relação próxima e
componentes. A cidade resulta da dinâmica: estruturas construídas que moldam
acumulação e da integração de muitas ações e que são moldadas pelos espaços abertos à
individuais, ou de pequenos grupos – ações sua volta; ruas de carácter público servindo e
determinadas por tradições culturais e sendo utilizadas por proprietários de parcelas
moldadas por forças sociais e económicas privadas dispostas ao longo dessas ruas. O
desenvolvidas ao longo do tempo. estado dinâmico da cidade, e a relação
Os morfologistas centram-se nos próxima dos seus elementos, levou a que
resultados tangíveis das forças sociais e muitos morfologistas preferissem o termo
económicas: estudam a concretização de ‘morfogénese urbana’ para descrever o seu
ideias e intenções à medida que estas tomam campo de estudo.

Revista de Morfologia Urbana (2015) 3(1), 41-9 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
42 Morfologia urbana como um campo interdisciplinar emergente

No verão de 1996, um grupo de ‘histórias operativas’ de Veneza e Roma


morfologistas com formações diversas (Muratori, 1959, 1963) como as bases
incluindo arquitetura, geografia, história e teóricas para as suas aulas de desenho
planeamento, formalizaram o International arquitetónico, sofreu um isolamento e uma
Seminar on Urban Form (ISUF – ou SIFU, desconsideração intelectual por parte dos
Séminaire International de la Forme seus colegas modernistas na arquitetura.
Urbaine, Seminario Internazzionale de la No entanto, a força dos ensinamentos de
Forma Urbana). O grupo, que incluía Conzen e Muratori atraiu seguidores que
investigadores de Inglaterra, França, perceberam a importância de capturar aquilo
Alemanha, Irlanda, Suíça, Japão e EUA que os mestres chamavam de genius loci e as
tinha-se reunido nos dois verões anteriores singulares capacidades mnemônicas da
no mesmo local, Lausanne, Suíça, para cidade enquanto palimpsesto cultural. J. W.
explicar e comparar o seu trabalho. Estes R. Whitehand (1981) assegurou o legado de
encontros reconheceram a expansão da Conzen ao compilar alguns dos seus
morfologia urbana para além dos seus limites trabalhos e ao investigar o significado e o
originais na geografia, e a sua emergência desenvolvimento das suas ideias. Whitehand,
como um campo interdisciplinar. Os um académico da geografia histórica e
encontros sublinharam a necessidade de urbana, alargou os limites da morfologia até
promover um diálogo internacional e de à economia urbana, ao investigar a relação
investigar o âmbito das bases teóricas deste entre a cidade, os seus habitantes, e as
campo. dinâmicas da indústria de construção. Em
1974, Whitehand formou o Urban
Três escolas de morfologia urbana Morphology Research Group na University
of Birmingham, que inclui investigação sobre
As reuniões do ISUF vieram a confirmar que cidades medievais, nomeadamente a
diversas gerações de académicos tinham pesquisa conduzida por T. R. Slater, bem
estado ativas no campo da morfologia como estudos sobre a expansão e a
urbana, não apenas em Inglaterra, mas transformação suburbana do século XX. Um
também em Itália e em França, e que muitos programa sustentado de conferências e
investigadores, a título individual, numa publicações, desenvolvido ao longo dos
variedade de outros países, estavam também últimos 25 anos, tornou o Urban
a contribuir para o seu desenvolvimento. Morphology Research Group num centro de
Dois indivíduos figuram de modo investigação de exceção, complementando as
proeminente como investigadores pioneiros principais tradições em morfologia urbana.
neste campo: M. R. G. Conzen , um geógrafo Um fluxo constante de distintos doutorados
Alemão que emigrou para Inglaterra antes da de Birmingham, como Peter Larkham, Karl
Segunda Guerra Mundial, inicialmente para Kropf e Keith Lilley, ajudou a disseminar a
estudar e exercer a atividade de planeamento influência do grupo.
urbano, e depois para ensinar geografia; e Em Itália, Gianfranco Caniggia (1933-87)
Saverio Muratori (1910-1973), um arquiteto assumiu a tradição de Muratori, que tinha
Italiano que lecionou primeiro em Veneza e orientado o seu estudo de 1963 sobre a
depois em Roma. Ambos eram homens cidade de Como. Na sua prática de ensino e
excecionais e não conformados nos seus nas suas publicações, Caniggia continuou a
domínios, a geografia e a arquitetura, tradição Muratoriana que ele chamou
respetivamente. Conzen, que é mais ‘processual tipológica’ devido ao enfoque
conhecido pelo seu estudo detalhado sobre nos tipos edificados enquanto raiz elementar
Alnwick (1960), teve de conviver com a da forma urbana. Como Muratori, Caniggia
revolução quantitativa da geografia, no pós- colocou a sua teoria em prática,
guerra, que em larga medida passou por cima permanecendo ativamente envolvido como
da sua investigação indutiva e empírica, arquiteto ao longo da sua vida. A sua
alegadamente pouco rigorosa e com pouca investigação estendeu-se a diferentes cidades
capacidade preditiva. Por outro lado, em Itália e no Norte de Africa, sendo
Muratori que usava as suas conduzida com colegas e estudantes que
Morfologia urbana como um campo interdisciplinar emergente 43

prolongaram o legado de Muratori. três principais escolas de morfologia urbana


Atualmente, Giancarlo Cataldi, Gian Luigi – Conzeniana, Muratoriana e Versalhesi. A
Maffei, Maria Grazia Corsini, Paolo Maretto, criação do ISUF foi conduzida por um
Giuseppe Strappa, entre outros, continuam a conjunto de contactos pessoais e
tradição em Florença, Roma, Génova e circunstanciais particulares, bem como pela
Siena. convergência fortuita de duas tentativas
Depois de Conzen e Muratori lançarem as isoladas de promoção e cobertura
bases para as duas escolas anteriores, uma internacional: a sistemática disseminação de
terceira escola emergiu em França no final publicações por parte dos geógrafos de
dos anos 60, quando os arquitetos Philippe língua Inglesa e a crescente popularidade
Panerai e Jean Castex, juntamente com o global da arquitetura Italiana.
sociólogo Jean-Charles Depaule, fundaram a O grupo Conzeniano manteve um perfil
Escola de Arquitetura de Versalhes como consistente nos círculos geográficos
parte do processo de separação das Belas- Britânico e Americano, beneficiando
Artes. Do mesmo modo que a Escola internacionalmente da participação ativa do
Italiana, também a Escola Francesa emergiu filho de Conzen, M. P. Conzen, um geógrafo
como reação à arquitetura modernista e à sua da University of Chicago; e de contactos
rejeição da história. A escola beneficiou continuados com James Vance Jr na
ainda do vibrante debate intelectual sobre a University of California, Berkley, e com
vida urbana que então atravessava a Deryck Holdsworth, agora na Pennsylvania
arquitetura envolvendo críticos proeminentes State University. O grupo de Birmingham
como o sociólogo Henri Lefebvre e o estabeleceu também ligações com
historiador André Chastel. investigadores na Irlanda, Alemanha,
Quando já estavam envolvidos na Polónia, Espanha e Áustria. A tradição
investigação sobre a evolução histórica dos Stadtlandschaft, com uma grande força na
bairros parisienses, Panerai e Castex geografia da Europa Central no período entre
descobriram as obras de Muratori, então guerras, incluindo na University of Berlin
desconhecidas em França, que forneceram o onde Conzen tinha estudado, continuou a ter
ímpeto para o aprofundamento das os seus seguidores. Mas nos anos 80, o
dimensões teórica e metodológica do seu número destes seguidores tinha encolhido
trabalho. Ao longo dos anos, estabeleceram restando, comparativamente, poucos
contactos com investigadores não apenas em académicos, como Elisabeth Lichtenberger e
Itália, mas também em Espanha e na Dietrich Denecke, que permaneceram ativos
América Latina. O resultado deste diálogo neste campo ii.
continua por documentar. Por outro lado, as O grupo de Birmingham desenvolveu
anteriores publicações de Castex e Panerai também laços com a prática profissional de
exerceram uma considerável influência por planeamento Britânica, particularmente na
toda a comunidade de arquitetos na Europa. área da conservação urbana e património, um
Os subsequentes estudos detalhados sobre a interesse diretamente relacionado com as
cidade de Versalhes, as bastides Francesas, e ideias de Conzen sobre gestão da paisagem
a cidade do Cairo, no Egipto, ajudaram a urbana. Pelo contrário, os contactos com
preparar uma segunda geração de arquitetos emergiram de forma lenta e,
morfologistas em França. Ao longo da última ironicamente, foram-se consolidando à
década fundaram-se grupos de investigação medida que os arquitetos Britânicos se foram
em Nantes, por Michael Darin, e em familiarizando com a Escola Muratoriana em
Marselha, por Lucien Bonillo. meados dos anos 80.
A difusão das ideias Muratorianas seguiu
o aumento da popularidade da arquitetura
ISUF: uma geneologia Italiana por todo o mundo, particularmente
com a tradução para Inglês dos trabalhos de
Até à primeira reunião do ISUF em 1994, Aldo Rossi nos anos 80 iii. Apesar de Rossi
tinha havido alguma promoção individual, ter escolhido não assumir a influência de
mas poucas trocas e ligações formais entre as Muratori na fase inicial da sua prática
44 Morfologia urbana como um campo interdisciplinar emergente

profissional, a verdade é que acabou por mundos Latino e Árabe. No final da década
promover, com sucesso, o retorno aos tipos de 1970, o seu trabalho tinha sido traduzido
edificados tradicionais, potenciando assim para várias línguas europeias e circulava nos
um renovado interesse pela cidade histórica e Estados Unidos para uma possível
promovendo o seu significado na arquitetura. publicação em Inglês – esta tentativa falhou
A mensagem de Rossi teve eco nos e, até à data, este trabalho não está acessível
arquitetos Britânicos, Americanos e a audiências de língua inglesa . A afirmação
Franceses. Estes arquitetos leram também os internacional dos franceses, na morfologia
textos de outro arquiteto Italiano, Carlo urbana, deu-se pela primeira vez em 1986
Aymonino, cujo estudo sobre Pádua e outros através do prestigiado Institut d’Urbanisme
textos que ele designou como ‘tipo- da Universidade de Paris. O Instituto
morfologia’ estimularam o interesse pelo organizou um simpósio sobre morfologia
desenho da cidade. Incidentalmente, mas urbana abordando a questão do fracasso do
com significado para a estrutura do ISUF, modernismo no desenho da nova cidade. A
Rossi e Aymonino vieram a rejeitar a lista de convidados incluiu muitos
morfologia urbana, vendo-a como um campo académicos, planeadores e arquitetos de
que promovia soluções ultrapassadas para os renome, da Europa e América do Norte. No
atuais problemas urbanos e como impotente entanto, nem os membros da Escola de
na resolução de um conjunto de temas da Versalhes, nem qualquer um dos
arquitetura moderna. colaboradores mais próximos das escolas de
No entanto, em retrospetiva, o contributo Birmingham e Muratoriana participaram no
italiano com um carácter mais instrumental simpósio, à exceção de Ivor Samuels, do
na ligação das três principais escolas de Oxford Polytechnic, e Albert Levy, que
morfologia urbana e na criação do ISUF, foi então lecionava em Genebra, na Suíça. No
o programa de reabilitação do centro entanto, pouco depois do simpósio,
histórico de Bolonha, que teve Caniggia estabeleceram-se ligações entre a Escola de
como consultor. A rápida difusão deste Versalhes e o Institut d’Urbanisme, para o
projeto, o seu interessante âmbito e o sucesso estudo da região parisiense, conduzindo
da sua implementação, ajudou a desenvolver Castex e Panerai a lecionar no Instituto.
contactos entre morfologistas em diferentes Também a nova geração de geógrafos
partes do mundo. urbanos franceses tem vindo a desenvolver
Foi neste contexto que Caniggia foi relações de trabalho mais estreitas.
convidado para visitar o Oxford Polytechnic Castex, que havia passado uma
pelo arquiteto e Italianófilo Ivor Samuels no temporada em Nova Iorque no final dos anos
início dos anos 80. Apesar de Caniggia não 1960, ajudou a reforçar o desenvolvimento
ter encontrado os geógrafos de Birmingham de laços com a América do Norte, ao
por altura desta visita, Samuels tinha então retornar em 1988, como Professor Visitante à
começado a colaborar com os seus University of Oregon. Lecionou também
compatriotas. Nos últimos anos de vida, nessa altura, na University of Washington,
Caniggia desenvolveu um extensivo e em Seattle. Eu tinha conhecido Castex e
abrangente programa. Caniggia passou três visitado Versalhes um ano antes, embora
meses na University of Washington, em conhecesse o seu trabalho (e de Panerai) há
Seattle, em 1986, após um encontro comigo uma década, tendo partilhado pensamentos
e com um dos meus colegas, no ano anterior sobre morfologia com Francófilos como M.
em Nápoles, Itália, num seminário em Christine Boyer e o académico da paisagem
homenagem ao trabalho de Kevin Lynch. urbana Paul Groth, estudante de James
Caniggia visitou ainda o Federal Polytechnic Vance. Em 1987, eu tinha planeado dar uma
Institute of Zurich, na Suíça, para apresentar palestra em Roma, como parte de uma
o seu trabalho (em co-autoria com Maffei) tentativa de ‘fechar o círculo’ entre as
sobre Florença que foi traduzido e editado escolas Italiana e Francesa de morfologia
por Sylvain Malfroy. urbana. A súbita morte de Caniggia foi um
Como mencionado anteriormente, a impulso para estabelecer relações com os
Escola de Versalhes manteve contactos nos seus colegas em Florença, Roma e Génova.
Morfologia urbana como um campo interdisciplinar emergente 45

A promoção e o alcance no mundo de As bases teóricas


língua inglesa foram facilitados pela
publicação da Urban Morphology Esta convergência de investigadores de
Newsletter, do grupo de Birmingham, a diferentes disciplinas e áreas linguísticas
partir de 1987. Em 1990, o grupo organizou assenta sobre uma base comum. Primeiro, é
uma conferência internacional e editou um consensual que a cidade pode ser ‘lida’ e
livro reunindo contributos de vários Norte- analisada através da sua forma física. Para
Americanos e Europeus ‘continentais’. além disso, existe um amplo reconhecimento
Finalmente, têm vindo a desenvolver-se de que, no seu nível mais elementar, a
contactos individuais entre investigadores análise morfológica é baseada em três
Norte-Americanos, Asiáticos e Australianos princípios.
desde o final dos anos 80. i. A forma urbana é definida por três
A genealogia do ISUF é, como seria elementos físicos fundamentais: edifícios e
expectável, complexa. No entanto, dada a os espaços abertos relacionados com estes,
fratura natural entre geografia e arquitetura, parcelas ou lotes, e ruas.
com as suas diferentes missões e intenções, ii. A forma urbana pode ser compreendida
as habituais disputas territoriais e, mais em diferentes níveis de resolução.
importante, dado o fosso cultural e Normalmente, reconhecem-se quatro níveis,
linguístico entre Anglo-Saxónicos e Latinos, que correspondem ao edifício/parcela, à
é uma feliz surpresa poder ver a criação do rua/quarteirão, à cidade, e à região.
ISUF apenas quatro décadas depois da iii. A forma urbana só pode ser
publicação da Storia Operante di Venezia de compreendida na sua dimensão histórica uma
Muratori e de Alnwick de Conzen. vez que os elementos que ela compreende
Curiosamente, a neutralidade e centralidade sofrem uma contínua transformação e
geográfica – não por acaso – foi chamada substituição.
para as três primeiras reuniões do ISUF que Assim, a forma, a resolução e o tempo
tiveram lugar na Suíça. Até então, constituem as três componentes
académicos e investigadores Suíços tinham, fundamentais da investigação em morfologia
de um modo natural, desenvolvido laços com urbana. Estas componentes estão presentes
as escolas de morfologia Italiana e Francesa. em todos os estudos, quer sejam
Léopolde Veuve, Bruno Marchand e Sylvain desenvolvidos por geógrafos ou por
Malfroy ofereceram-se para acolher arquitetos, quer se centrem na cidade
reuniões, em três anos consecutivos, na medieval, barroca ou contemporânea.
Federal Polytechnic School of Lausanne, Reconhece-se que a mais pequena célula da
que culminaram com a confirmação do ISUF cidade é constituída pela combinação dos
como organização, o anúncio de uma seguintes elementos: a parcela de solo
primeira conferência aberta em Birmingham individual, juntamente com o seu edifício ou
em 1997, e a criação da revista Urban edifícios e com os espaços abertos. As
Morphology. características da célula definem a
Os primeiros encontros do ISUF em configuração e a densidade da forma urbana,
Lausanne incrementaram a intensidade das bem como a sua utilização efetiva ou
trocas entre as escolas. Mais potencial ao longo do tempo. Estudos
especificamente, Attilio Petruccioli, que mostram que os atributos da célula e dos
estudou sob o enquadramento da Escola seus elementos refletem não apenas um
Muratoriana em Itália, organizou período de tempo na história, mas também as
conferências anuais em Cambridge, condições socioeconómicas presentes no
Massachusetts, desde 1995 sob os auspícios momento de desenvolvimento inicial. Ao
do MIT Aga Khan Program, nas quais longo do tempo, esses elementos são
participaram muitos dos membros da utilizados de forma diferente – por exemplo,
comunidade do ISUF. Em resultado, uma por diferentes classes sociais –
nova geração de morfologistas está a emergir transformados fisicamente, eliminados ou
rapidamente e a produzir trabalho substituídos por novas formas. O ritmo de
comparativo sobre as três escolas. transformação, quer da função quer da forma
46 Morfologia urbana como um campo interdisciplinar emergente

das células, varia de cidade para cidade, mas du projet basée sur les traditions
também se enquadra, de um modo geral, em d’édification de la ville.
ciclos relacionados com a economia e a iii. O estudo da forma urbana para avaliar
cultura. Os ciclos de construção e de o ‘impacto de teorias de desenho do passado
transformação são processos importantes que na construção da cidade’. Este é o domínio
devem ser explorados pelo planeamento da crítica de desenho, que faz a sofisticada
urbano e pelo imobiliário; no entanto, distinção entre ‘teoria do desenho como
raramente são estudados nas cidades ideia’ e ‘teoria do desenho como prática’.
contemporâneas. Estes estudos avaliam as diferenças ou
Alguns estudos também se focam no que semelhanças entre diretivas sobre o que deve
Conzen chama ‘unidade de plano’ e que os ser construído (teorias normativas) e aquilo
Italianos designam por ‘tecido’. Unidades de que é realmente construído. A Escola
plano ou tecidos são conjuntos de edifícios, Francesa tem defendido esta utilização da
espaços abertos, parcelas e ruas, que formam análise morfológica identificando, com
um todo coeso, ou porque foram todos sucesso, as raízes do modernismo no
construídos num mesmo tempo ou com as desenho urbano no século XVIII. No
mesmas condicionantes, ou porque sofreram entanto, este continua a ser um exercício
um mesmo processo de transformação. mental difícil para muitos planeadores, que
Para além disso, e se bem que todas as tendem a não perder tempo a avaliar o
análises morfológicas são desenvolvidas com impacto das suas ações sobre a vida (em
um objetivo de construção de teoria, existem termos de longo prazo) das cidades.
propósitos distintos entre as diferentes
tradições em morfologia urbana que
produzem diferentes tipos de teorias. Cada Questões e potencial
uma das três escolas tem tido diferentes
intenções nos seus esforços de ‘construção Como é frequente quando algo novo está a
de teoria’. Essas intenções são as que se ser proposto, os pontos fortes da inovação
seguem: são também as suas fraquezas. A fundação
i. O estudo da forma urbana com de um campo interdisciplinar de morfologia
propósitos ‘descritivos’ e ‘explicativos’, com urbana cria tensões e oportunidades que o
o objetivo de desenvolver uma ‘teoria de ISUF terá de enfrentar. Discutamos primeiro
construção da cidade’ (théorie de algumas das questões gerais relacionadas
l’édification de la ville). Estes estudos estão com a morfologia urbana e, em seguida,
preocupados com o modo como as cidades algumas das questões específicas sobre o
são construídas e com o porquê. Este é o estado atual do campo.
objetivo principal dos geógrafos, e da Escola A missão do ISUF é ambiciosa e,
de Birmingham em particular. Os cientistas portanto, cheia de potenciais conflitos com
sociais da Escola Francesa também têm este as estruturas existentes nos mundos da
propósito quando desenvolvem estudos investigação e da prática. O ISUF
morfológicos. estabeleceu um domínio que se estende pela
ii. O estudo da forma urbana com geografia, história, arqueologia, arquitetura e
propósitos ‘prescritivos’, com o objetivo de planeamento, e consequentemente pelas
desenvolver uma ‘teoria de desenho da humanidades, ciências sociais e por um
cidade’. Estes estudos centram-se no modo conjunto de profissões; estende-se pelo
como as cidades deveriam ser construídas. estudo e pela ação, pelo conhecimento e pela
Este é o enfoque principal da Escola Italiana decisão, pela descrição e pela prescrição.
que deu a este propósito uma direção Este domínio é atualmente constituído por
particular, o desenvolvimento de uma teoria um vasto mosaico de territórios intelectuais,
de desenho do edificado assente nas ajustando lentamente os seus limites por
tradições históricas de construção da cidade. entre as habituais disputas sobre poder e
Alguns investigadores Franceses têm tido ideias, sendo tudo isto representado em
intenções semelhantes nas suas análises inúmeras revistas, jornais, livros,
morfológicas, tendo como propósito do seu organizações com as suas conferências
trabalho o desenvolvimento de uma théorie associadas, páginas web, etc. Do lado
Morfologia urbana como um campo interdisciplinar emergente 47

positivo, o ISUF está a criar um domínio que de teoria por parte da morfologia urbana vêm
reúne peças de todos estes territórios para se de dois lados opostos. Por um lado, os
focar num fenómeno real: James Vance positivistas questionam o modo empírico e
designa este fenómeno real como indutivo de investigar a cidade e apontam a
‘construção da cidade’, de modo a incluir as fraca capacidade de previsão de uma teoria
formas físicas e todos os processos de construção da cidade. No entanto, a
relacionados com o ato de fazer cidade. Isto própria capacidade de previsão da
significa que a morfologia urbana pode virar investigação positivista tem sido alvo de
costas às lutas internas pelo poder que estão crítica, porque a natureza reducionista desta
a ocorrer dentro da geografia e transcender abordagem não tem sido eficaz no
as contendas adolescentes que assolam o tratamento das questões relativas ao
planeamento, a arquitetura, o imobiliário e a comportamento humano. Por outro lado, os
construção. Significa ainda que a morfologia grupos artísticos e literários desconfiam do
urbana poderá preencher um vazio que enfoque único da morfologia urbana na
atualmente debilita tanto a investigação realidade física da cidade. No entanto, a
como a prática de ‘construção da cidade’. crítica relacionada com o que pode ser
Consequentemente, o ISUF é uma interpretado como o determinismo físico da
oportunidade para estabelecer um fórum de morfologia urbana pode também ser
pensamento e ação sobre como moldar e silenciada: a morfologia urbana aborda a
gerir os nossos habitats – um assunto cidade não como um artefacto, mas como
oportuno neste momento da história da organismo, onde o mundo físico é
civilização. Todavia, por mais excitante que inseparável dos processos de transformação a
seja a oportunidade e por mais nobre que que está sujeito. O enfoque está no mundo
seja o objetivo, o caminho futuro do ISUF físico enquanto ‘resultado’ de forças sociais
será provavelmente árduo, por um conjunto e económicas com uma natureza dinâmica. O
de razões. desafio do ISUF é demonstrar os processos
Primeiro, ao contrário, por exemplo, da correntes que suportam o modo como as
engenharia e da medicina, a arquitetura e o cidades são construídas e transformadas,
planeamento têm ainda que desenvolver, definir e ilustrar os princípios de
isoladamente ou em conjunto, uma base de transformação em diferentes contextos – por
conhecimento partilhada. Ambas são exemplo, como é que os quarteirões são
profissões que prosperam na ação e no alterados, dependendo de como são
projetar de futuros possíveis, mas que implantados numa fase inicial e do tipo e da
deixam pouco espaço para a investigação e intensidade de desenvolvimento em seu
para a avaliação. São profissões que não redor; ou como diferentes condições
seguiram outras no desenvolvimento de uma definirão se uma determinada área é sujeita a
abordagem sistemática e empírica de um desenvolvimento de densificação ou a
aprendizagem e construção de uma base de um completo re-desenvolvimento.
conhecimento. São profissões que têm Segundo, o material de investigação que o
poucos – se é que têm algum – mecanismos ISUF oferece a este mundo agora mais
para relacionar estudo e ação. Quaisquer que alargado tem as suas próprias fragilidades.
sejam as razões para a existência de uma Uma parte significativa da investigação em
abordagem artística no que se refere à morfologia urbana tem-se centrado em
tomada de decisão em arquitetura e cidades Europeias históricas, uma dupla
planeamento, este estado de coisas significa limitação que pode parecer dificultar
que os morfologistas irão percorrer, com aplicações práticas no mundo atual. Existe
estas profissões, territórios desconhecidos, uma necessidade de a investigação abordar a
tendo de captar a atenção destas profissões, expansão sem precedentes das cidades ao
para demonstrar a validade e a eficácia da longo deste século, e uma necessidade de
abordagem morfológica na identificação de dirigir esta investigação para cidades que
relações de causa-efeito. cresceram em culturas não-Europeias.
Do ponto de vista das ciências sociais, as Significativamente, no entanto, um conjunto
dúvidas sobre as capacidades de construção de estudos recentes sobre as cidades do
48 Morfologia urbana como um campo interdisciplinar emergente

século XX na Europa, América do Norte e imobiliário bem como aos planeadores


Austrália, bem como sobre um número urbanos e aos decisores políticos. Eles
crescente de cidades Asiáticas, confirma a oferecem a capacidade de coordenar as
validade dos princípios de construção da atividades destes campos tradicionalmente
cidade identificados anteriormente pelas três separados. Por último, e talvez mais
escolas: os elementos básicos da forma importante, estas bases de dados
urbana são os mesmos, e os processos de espacialmente codificadas permitem aos
formação e transformação partilham a morfologistas estudar, pela primeira vez,
mesma base. Esta é a parte emocionante e vastas áreas de desenvolvimento urbano ou
abrangente da morfologia urbana: o seu suburbano. Pela primeira vez, a análise em
potencial para ajudar a enfrentar o boom de morfologia urbana tem os instrumentos para
construção da cidade das próximas décadas abordar as áreas metropolitanas
noutras áreas para além da América do Norte contemporâneas.
e da Europa. As expectativas devem necessariamente
De grande importância em relação a esta ser cautelosas – a tecnologia demonstrou ser
e a outras tarefas é o facto de a revolução em um ‘excelente servo, mas um pobre mestre’.
curso no modo como se registam as No entanto, os atuais avanços nos SIG
atividades de construção da cidade constituir baseados na parcela podem ajudar a mover o
uma grande promessa para a análise centro da investigação em morfologia urbana
morfológica. Os Sistemas de Informação da sua fundação no estudo de pequenas
Geográfica (SIG) podem agora, não apenas cidades históricas até às grandes regiões
registar as características espaciais dos urbanizadas da atualidade, e de aplicações
habitats mas também, ligar atributos em conservação urbana e património até à
espaciais a dados quantitativos de modo a gestão do desenvolvimento urbano futuro.
que, pela primeira vez, o espaço físico possa Certamente, as oportunidades para a
ser medido e analisado em relação às forças construção de teoria que o ISUF oferece
socioeconómicas que o moldam – por pode tornar este num futuro tangível.
exemplo, dados dos censos podem agora ser
ligados, com bastante facilidade, às formas
construídas e aos usos de solo. Para além Referências
disso, muitas unidades administrativas
recolhem os seus registos ao nível da parcela Conzen, M. R. G. (1960) Alnwick,
de solo individual, permitindo assim uma Northumberland: a study in town-plan analysis,
análise urbana à escala de trabalho Institute of British Geographers Publication 27
privilegiada pelos morfologistas. Como (George Philip, Londres).
resultado, estes novos mapas ‘inteligentes’ Lévi-Strauss, C. (1955) Tristes Tropiques (Terre
permitem análises regionais desenvolvidas Humaine, Paris).
Muratori, S. (1959) Studi per una operante storia
com dados detalhados, disponíveis ao nível
urbana di Venezia (Istituto Poligraphico dello
da parcela, ou inversamente, análises ao Stato, Roma).
nível da parcela podem ser aplicadas a toda Muratori, S., Bollati, R., Bollati, S. e Marinucci,
uma região. Esta possibilidade tem enormes G. (1963) Studi per una operante storia urbana
implicações, tanto para a investigação como di Roma (Consiglio Nazionale delle Riceche,
para a gestão de áreas urbanizadas. Roma).
Significativamente, os SIG baseados na
parcela oferecem os dados empíricos que os
morfologistas necessitam (e que até agora Notas
adquiriam meticulosamente de forma
manual). Recolhidos de modo longitudinal, i
Para uma lista de referências sobre o trabalho
estes dados empíricos abrem imensas
das três escolas ver Moudon, A. V. (1994)
oportunidades de investigação para ‘Getting to know the built landscape:
monitorizar e explicar a transformação das typomorphology’ , em Franck , K. A. e
formas urbanas. Para além disso, os SIG Schneekloth, L. (eds.) Ordering space: types in
baseados na parcela combinam dados que architecture and design (Van Nostrand
são úteis às indústrias de construção e do Reinhold, Nova Iorque) 289-311.
Morfologia urbana como um campo interdisciplinar emergente 49

ii
Para uma discussão sobre o papel da morfologia arquitetura, e respetivas referências, ver
urbana na geografia, e referências sobre este Panerai, P., Depaule, J. C., Demorgon, M. e
papel, ver Conzen, M. P. (1978) ‘Analytical Veyrenche, M. (1980) Eléments d’analyse
approaches to the urban landscape’, em Butzer, urbaine (Editions Archives d’Architecture
K. W. (ed.) Dimensions of human geography, Moderne, Bruxelas); Moudon, A. V. (1992) ‘A
University of Chicago Department of catholic approach to organizing what urban
Geography Research Paper 186, 128-65; Slater, designers should know’, Journal of Planning
T. R. (ed.) (1990) The built form of Western Literature 6, 331-49.
cities (Leicester University Press, Leicester);
Whitehand, J. W. R. (ed.) (1981) The urban
landscape: historical development and Notas de tradução
management Institute of British Geographers
Special Publication 13 (Academic Press, Nova M. R. G. Conzen (1907-2000) faleceu a 4 de
Iorque); Whitehand, J. W. R. (1988) ‘Recent Fevereiro de 2000.
developments in urban morphology’, em A publicação da Escola de Versalhes Castex, J.,
Denecke, D. and Shaw, G. (eds) Urban Depaule, J. C. e Panerai, P. (1970) Formes
historical geography: recent progress in Britain urbaines: De l'îlot à la barre de (Dunod, Paris)
and Germany (Cambridge University Press, foi entretanto adaptada e traduzida para Inglês -
Cambridge) 285-96. Panerai, P., Castex, J., Depaule, J.-C. e Samuels,
iii
Para uma discussão sobre o papel da I. (2004) Urban forms, the death and life of the
morfologia urbana no desenho urbano e na urban block (Architectural Press, Oxford).

Tradução do título, resumo e palavras-chave

Urban morphology as an emerging interdisciplinary field

Abstract. The forces and events leading to the formation of the International Seminar on Urban Form
(ISUF) are identified. ISUF is expanding the field of urban morphology beyond its original confines in
geography, particularly into the domains of architecture and planning. Three schools of urban
morphology, in England, Italy and France, are coming together, following seminal work by two
morphologists, M. R. G. Conzen and Saverio Muratori. The bringing together of these schools provides
the basis for an interdisciplinary field and the opportunity to establish common theoretical foundations
for the growing number of urban morphologists in many parts of the world. ISUF’s ambitious mission is
to address real and timely issues concerning city building by providing a forum for thought and action
which includes related disciplines and professions in different cultures. The potential of an
interdisciplinary urban morphology to contribute to the understanding and management of urban
development in a period of unprecedented change is discussed.

Keywords: urban morphology, interdisciplinarity, city building, geography, architecture

Tradução

Este texto foi traduzido por Vítor Oliveira, que agradece a Anne Vernez Moudon a disponibilidade
permanente para esclarecer todas as questões relacionadas com este processo.

22nd International Seminar on Urban Form


A cidade de Roma, e em particular a Facoltà di Adriana e Villa D’Este, e à cidade histórica de
Architettura Sapienza, acolherá no próximo mês Todi. A Comissão Científica da conferência
de Setembro o 22º International Seminar on inclui: Giancarlo Cataldi (Università degli Studi
Urban Form. Entre os dias 22 e 26, cerca de duas di Firenze), Michael Conzen (University of
centenas de participantes irão discutir a ‘cidade Chicago), Kai Gu (University of Auckland), Ivor
enquanto organismo’ e desenhar ‘novas visões Samuels (University of Birmingham), Jean-
para a vida urbana’, num debate estruturado nas François Lejeune (University of Miami), Vítor
quatro escalas da escola Italiana. Oliveira (Universidade do Porto), Piero Ositilio
As excursões pós-conferência incluem visitas Rossi (Sapienza Università di Roma) e Jeremy
a ‘Roma Moderna e Contemporânea’, à Villa Whitehand (University of Birmingham).

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