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Universidade de São Paulo

Escola de Comunicação e Artes


Departamento de Artes Plásticas

Relatório Final de Iniciação Científica

Espaços Urbanos e Marginais – O Invisível

Daniele Maria do Nascimento (9425296)


Orientador: Prof. Dr. Marco Francesco Buti

São Paulo – SP
Agosto de 2018
Daniele Maria do Nascimento (9425296)

Espaços Urbanos e Marginais – O Invisível

Relatório final de Iniciação Científica apoiada pelo


Programa Unificado de Bolsas de Estudo Para Estudantes
de Graduação – PUB (Edital 2017 – 2018) da Universidade
de São Paulo campos Butantã São Paulo - SP

Orientador: Prof. Dr. Marco Francesco Buti

São Paulo – SP
Agosto de 2018
1. INTRODUÇÃO

A pesquisa “Espaços Urbanos e Marginais – O Invisível” teve início em setembro de 2017


no departamento de Artes Plásticas da Universidade de São Paulo, e foi concluído em
agosto de 2018.
Este projeto tem como finalidade estudar as possibilidades artísticas emergentes em
especial nas regiões periféricas da cidade de São Paulo. Analisar como certas
manifestações culturais se anunciam em determinado espaço-tempo, o que projetam
através de seu conteúdo, plasticidade, forma e poética. Para isto, foi realizado o contato
direto com o trabalho de artistas e coletivos culturais da atualidade, cuja produção abarque
questões do invisível e do marginal.
Partindo destas referências artísticas, vem o objetivo central do projeto, a criação de um
trabalho artístico, usando da técnica da gravura, que se relacione de alguma forma com a
temática do marginal e do invisível, assim como as questões acerca de classe, etnia,
gênero.
Acentua-se a esta reflexão, através de leituras que se relacionem com o tema, assim como
para o aperfeiçoamento técnico, busca por referências artísticas e históricas dentro das
artes visuais e gravura.

2. OBJETIVOS

Estudar formas emergentes de um pensar artístico em regiões periféricas, especialmente


na cidade de São Paulo. Como estas várias expressões poéticas se manifestam e como
dialogam com questões pertinentes a realidade deste mesmo espaço-tempo, assim como
questões acerca de gênero, classe e etnia.
Para a partir destes estudos, se desenvolver um trabalho prático artístico no campo das
artes visuais, utilizando da técnica da gravura, que possa refletir de forma crítica a
temática proposta. Assim como explorar formas criativas, e para o desenvolvimento
técnico dentro da linguagem da gravura.

3. METODOLOGIA

1. Primeiro foi realizado um levantamento de artistas e coletivos, das mais variadas


linguagens artísticas dentre os espaços urbanos, em especial provindas ou atuantes das
regiões periféricas da cidade de São Paulo, e cujo trabalho dialogue de alguma forma com
questões no âmbito do marginal e do invisível.
2. Em seguida, foi realizado vivenciamento direto com alguns destes artistas e coletivos,
visitando-se espetáculos, eventos, palestras e debates, acompanhados por registros e
anotações. No intuito de identificar e se aproximar de algumas formas emergentes da
poética marginal e da arte de resistência.
3. Foi realizada leituras de textos que permitam uma maior análise sobre o tema abordado,
assim como no âmbito das artes visuais e da gravura, buscando referências para se
adicionar ao material de estudo.
A partir destes materiais estudados, compilando-se assim em referências visuais, teóricas
e poéticas para se desenvolver um trabalho artístico.
4. Além desta pesquisa, foi necessário um estudo em ateliê para se investigar as diferentes
qualidades técnicas oferecidas pela linguagem da gravura, como experimentações de
suportes, meios de impressão, técnicas de gravação, tipos de matrizes e papéis. Com o
intuito de se atingir maior embasamento de possibilidades técnicas e expressivas deste
meio, para assim se poder obter os resultados esperados.
5. Se iniciou a execução dos trabalhos práticos: Foi criada uma série em xilogravura
composta por três partes, uma série em gravura em metal composta por três partes, assim
estudos de cor em serigrafia foram experimentados.
6. Desenvolvimento de registros e anotações, tanto das visitas realizadas quanto dos
processos construtivos do trabalho prático.

4. RESULTADOS

O principal resultado das atividades realizadas, foi desenvolvimento do trabalho artístico


intitulado “Espaços Urbanos e Marginais – O Invisível”. Que faz uma reflexão e analisa
criticamente sobre o assunto, e pretende dialogar com formas poéticas e discussões de
menor visibilidade. O trabalho é composto por duas obras, a primeira intitulada Sem
Título, composta por uma série de nove xilogravuras sobre papel japonês; a segunda,
intitulada Invisíveis, composta por uma série contendo nove gravuras em metal. O
detalhamento do trabalho, assim como conceito, poética e percurso, estão apresentados
em “Análises”. O trabalho contará com exposição pública, assim como materiais e
registros provindos da pesquisa, serão divulgados.
Também foi realizado um levantamento de artistas, das mais diversas linguagens, sobre
estes detalhei melhor em “Análises”.

5. ANÁLISES

Seguindo a ordem da programação proposta em “metodologia”, veremos aqui seus


resultados acompanhados pelas respectivas análises/ reflexões:

1. Estudos relacionados ao tema dos espaços urbanos e marginais e do invisível:


Foi realizado estudos teóricos sobre o tema, além da leitura citada na bibliografia.
Conforme fui frequentando eventos e me aproximando de artistas, mais informações e
referências me eram propiciadas por este contato, assim como indicações de outros
grupos, eventos, filmes, documentários e etc.

a. Foi feito um levantamento de artistas e coletivos culturais, em especial atuantes nas


regiões periféricas da cidade de São Paulo. Dos quais sua produção, dialogue de alguma
forma com os conflitos de uma população e setores invisibilizados do ponto de vista do
funcionamento socioeconômico, assim como as questões acerca de gênero, etnia e classe.
Os artistas mais relevantes dentro desta pesquisa, estão detalhados mais adiante.
A escolha em realizar este levantamento partiu de uma experiência antecessora a este
projeto, uma prática em frequentar regularmente alguns espaços e eventos, nesta prática,
tive a oportunidade em conhecer diversos coletivos e artistas. E assim passar a entender
o tamanho do potencial artístico e cultural existente em especial, nas regiões periféricas
da cidade de São Paulo (recorte da região escolhida para estudo), e como muitas vezes,
tal potencial acaba por ser invisibilizado, não recebendo a atenção que lhe cabem, não
sendo levado em conta como muito destes apresentam elevada qualidade técnica, de
discurso, poético e estético, além da diversidade propiciada, impulsionadas também pelas
problemáticas do atual cenário social, político e econômico, propiciando desta forma, um
efervescente cenário sociocultural, da arte marginal e periférica, na atualidade.
Muitos destes coletivos atuam de forma independente, e com grande dificuldade em se
manter enquanto autônomos, fora do circuito artístico tradicional e já consagrado. Umas
das formas de continuarem existindo e manterem seus espaços funcionando, é por meio
de programas de fomento e incentivo à cultura, mas estes já não atendem à demanda, além
de sofrerem cortes conforme interesses políticos.

b. No vivenciamento com o trabalho de alguns desses artistas e grupos, participando de


apresentações, palestras, eventos, exibição de documentários, tudo acompanhado por
registros e anotações. Esta etapa visou adentrar espaços invisíveis e compactuar da
poética marginal e da arte de resistência. Abaixo uma relação de alguns trabalhos
visitados:

Dolores Boca Aberta, com o espetáculo Rolezinho, em 03/12/17 no Quilombaque.

O coletivo teatral Dolores Boca Aberta nasceu em 2000. Tem como sede o CDC Vento
Leste, localizado na periferia da zona leste paulistana. Terreno que deste os anos 90
pertence a prefeitura e estava totalmente abandonado, deste meado do ano 2000
moradores da comunidade e grupos artísticos passaram a ocupar o espaço, cuidando e
lutando pela sua revitalização.
Hoje o CDC conquistou uma nova quadra poliesportiva, uma sala de ensaios e reuniões,
uma reforma no galpão e a construção de banheiros. Conta com três grupos de teatro,
Grupo de capoeira, Grupo de dança para terceira idade, Grupo de basquete, Grupo de
futebol, Comunidade paraguaia e o Ônibus cultural La Pacata. Tudo isso construído com
trabalho voluntário, sem dinheiro ou qualquer infraestrutura, além da constante luta até
hoje, em se manter o espaço funcionando e sua manutenção, gastos como água, luz,
energia, pintura, limpeza, são sempre um desafio. Um espaço construído sobre
dificuldades, persistência e resistência.
Posteriormente, com auxílio de fomento, o espaço ganhou um parque de esculturas, uma
Arena Arbórea e uma horta comunitária.
Mel Duarte, em apresentação com o grupo Poetas Ambulantes, em 23/07/18 no Sesc
Avenida Paulista.

Mel Duarte é poeta e slammer, atua como escritora independente deste 2006. Possui dois
livros publicados de forma independente “Fragmentos Dispersos” 2013 e “Negra Nua
Crua” 2016. Faz parte do coletivo Poetas ambulantes, inspirado nos vendedores
ambulantes que vendem mercadorias nos transportes públicos, eles percorrem trens,
metros e ônibus recitando poesias para os passageiros em troca de interatividade e alegria.
Também é integrante do Slam das Minas SP, campeonato de poesia falada feminino.

Slam das Minas, Final do campeonato feminino de poesia falada, em 15/10/17 no Mundo
Pensante.
Campeonato de poesia falada, criado em 2016, inspirado no Slam das Minas DF, que
tinha o objetivo em garantir uma vaga feminina no Slam BR (campeonato nacional que
seleciona um poeta brasileiro para disputar o campeonato mundial). Composto pelas
poetas Mel Duarte, Carolina Peixoto, Pam Araújo e Luz Ribeiro.
Mariana Felix, apresentação em 15/10/17 no Mundo Pensante.

Mariana Felix Santos é poeta, cronista e slammer de São Paulo. Participante do Slam da
Guilhermina, campeonato de poesia falada na zona leste da cidade. Autora de dois livros
“Mania” 2016 e “Vício” 2017.

Trupe Lona Preta, apresentação do espetáculo O Concerto do Lona Preta em 27/05/18,


no Teatro Popular União e Olho (TUOV).

A Trupe Lona Preta, formada por Alexandre Matos, Joel Carozzi, Elias Costa, Henrique
Alonso, Wellington Bernado e Sergio Carozzi. Reúne em seu processo teatro, tradição
circense, música e questões sociais.
Brava Companhia, com apresentação de Show do Pimpão, na Companhia do Feijão, em
30/06/18.

A Brava Companhia, é um grupo de teatro, surgiu em 1998, na zona sul paulistana.


Conhecida por ocupar espaços abertos ou não convencionais, como a premiada montagem
de A Brava (2008), um épico sobre a heroína Joana D’Arc.

Cia Treme Terra, apresenta o espetáculo Anonimato em 28/04/18, no Sesc 24 de maio.

A Cia Treme Terra foi fundada em 2006 no Morro do Querosene e desde 2009 reside no
Rio Pequeno, periferia da zona oeste de São Paulo.
Trabalha com elementos cênicos e de dança. Inspirando-se na cultura afro-brasileira,
como elementos das religiões de matrizes africanas, danças, cantos, movimentos, mas
apartir de uma ressignificação contemporânea.
Jé Oliveira, apresentação de Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e
Homens, no teatro Cacilda Becker, em 11/08/17.

Jé Oliveira é ator, dramaturgo, diretor e integrante do Coletivo Negro. Farinha com


Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, se revela como uma peça show, obra
tributária ao legado dos Racionais MC's, e faz uma investigação da masculinidade negra
periférica. A obra lhe rendeu a contemplação no 6º Prêmio Questão de Crítica.

Limpam com Fogo, exibição do documentário no restaurante Al Janiah, em 10/05/18,


seguido de debate com a participação do diretor do documentário, Conrado Ferrrato, e de
movimentos sociais (Terra Livre e MTST).

Limpam com Fogo é um documentário sobre incêndios em favelas paulistanas.


SINOPSE: Documentário sobre a epidemia de incêndios em favelas na cidade de São
Paulo e a relação com a especulação imobiliária. Entre análises de especialistas e
depoimentos marcantes das vítimas, o filme investiga os reais motivos por trás da
seletividade do fogo, e explora a relação entre empresas do setor imobiliário e os
vereadores que participaram da CPI dos Incêndios em Favelas na Câmara dos Vereadores
de São Paulo.
Direção: Conrado Ferrato, Rafael Crespo e César Vieira
Produção: césar vieira
Prêmios: melhor filme, melhor direção de documentário
Grupo Clariô de Teatro, em 02/06/18 na Oficina Cultural Oswals de Andrade.

o Grupo Clariô de Teatro é um coletivo de arte resistente que busca, através da cena e da
troca com outros coletivos, discutir a arte produzida pela periferia, na periferia e para a
periferia.
Deste 2002 segue com o objetivo de produzir e pensar o teatro e música nas bordas da
metrópole. Seu trabalho se concentra em Taboão da Serra, onde se localiza o Espaço
Clariô, sede mantida pelo grupo desde 2005, local de formação e produção de pensamento
junto à comunidade. E hoje, pólo cultural de referência na região.
Suas montagens tentam traduzir e questionar as inquietações políticas e artísticas do
coletivo, que mescladas a sua condição, precária, propõem um caminho de estética
própria, típica da periferia. Os últimos espetáculos de teatro “Hospital da Gente”, de
Marcelino Freire e “Urubu Come Carniça e Vôa! ” de Miró da Muribeca, ambos
premiados, tratam exatamente da condição das mulheres (H.G) e homens (U.C.C.V.) das
periferias do Brasil de hoje. População pobre, negra, marginalizada, são contadas e
cantadas (como é o caso do projeto musical CLARIANAS) pelo grupo, com elementos
populares, de aproximação e contato com público.
2. Desenvolvimento de pesquisa prática.

Se investigou as diferentes qualidades técnicas da gravura, possibilidades oferecidas de


suportes, meios de impressão, gravação e matrizes. Realizando leituras, experimentações
em ateliê. A execução do trabalho artístico em gravura, partiu de resoluções técnicas e
estéticas escolhidas para se obter os resultados esperados, considerando-se conteúdo,
forma e público.

O trabalho se iniciou nos ateliês de gravura da universidade, assim como nos meus
desenhos antecessores já se inclinavam para um interesse pelas paisagens urbanas e
periférica da cidade. Este interesse foi se direcionando para além da imagética destes
espaços, envolvendo várias questões que os permeiam.
Umas das questões que mais me atravessam, é o problema da violência no Brasil e seus
aspectos dentro de uma contextualização histórica do país e da própria forma como se
constituiu. Passei a pesquisar esse assunto, lendo artigos, notícias, e visitando acervos
como o Museu Penitenciário Paulista, que ocupa o extinto Complexo Penitenciário do
Carandiru, na zona norte de São Paulo.
Paralelo a isto, frequentava o Slam Moinho Resiste, que ocorre na Favela do Moinho,
ultima favela do centro de São Paulo. A comunidade enfrenta ameaças de remoção por
parte da prefeitura, além de já ter sido vítima de três incêndios em menos de dois anos
(em dezembros de 2011, setembro de 2012 e setembro de 3013). O que levou até mesmo
o Ministério Público de São Paulo a abrir investigação se há relação entre os incêndios
nas favelas e interesses imobiliários do setor privado ou setor público.

CASO FAVELA DO MOINHO

“O Ministério Público de São Paulo investiga se a série de incêndios ocorridos


desde janeiro deste ano em favelas da capital paulista tem relação com o
interesse do setor privado ou do setor público em construir nas áreas de entorno
dessas comunidades...

Incêndio em 2011 No dia 22 de dezembro do ano passado, um incêndio de


grandes proporções destruiu parte da favela do Moinho. O fogo começou em
um prédio abandonado de quatro andares. Segundo o Corpo de Bombeiros, em
menos de meia hora, o incêndio devastou um terço da comunidade, onde
moravam cerca de 600 pessoas. O local afetado tinha 6.000 m². Duas pessoas
morreram e dezenas de famílias ficaram desabrigadas.
A área onde está a favela do Moinho vem sendo alvo de disputas judiciais entre
a prefeitura e os moradores nos últimos anos. Enquanto a administração
municipal tenta desapropriar a área e utilizá-la para outros fins, os moradores
buscam conquistar o direito de permanecer no local. ” 1

1 (PAULA, Fábio Luís de. Novo incêndio na favela do Moinho, em São Paulo, atinge 80 barracos; uma pessoa morreu. Do UOL,
São Paulo, ano 2012, set Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/09/17/favela-do-moinho-pega-
fogo-em-sao-paulo.htm#comentarios>. Acesso em: 06/08/18.)
“Um incêndio destruiu parte da favela do Moinho, no centro de São Paulo, na
noite de quinta-feira (12). É o terceiro incêndio em menos de dois anos.
Desta vez ninguém ficou ferido. O Corpo de Bombeiros enviou 12 viaturas
para apagar o fogo em sete barracos. Moradores também ajudaram com baldes
de água.
Em setembro de 2012, um grande incêndio destruiu a favela. O viaduto
Orlando Murgel, que passa em cima da comunidade, chegou a ficar sete meses
interditado por causa do incêndio. A estrutura foi comprometida” 2.

Outro caso que abalou a comunidade, foi a morte do jovem Leandro Souza dos Santos,
em 27 de junho de 2017. Segundo moradores, o jovem teria sido torturado com um
martelo por mais de uma hora. Indignados, os moradores realizaram protesto por Leandro
e por todo abuso de violência sofrida na comunidade.

CASO LEANDRO

“Na entrada da casa de Lucimar Oliveira Santana, na favela do Moinho (centro


de São Paulo), há uma pequena cadeira rosa de plástico com respingos de
sangue. Na pequena cozinha, manchas de sangue no chão de cimento batido e
buracos de bala na parede, geladeira e armários. Um deles está com o vidro da
porta quebrado. Também já não se vê um martelo que normalmente ficava
pendurado ao lado do fogão. "Quando entrei em casa para pegar meu RG, vi
que [a ferramenta] estava aqui no chão", relata Lucimar, de 30 anos, enquanto
aponta para uma das marcas no cimento. De lá saiu desacordado e sangrando
Leandro Souza dos Santos, seu vizinho, na última terça-feira.
Leandro tinha 18 anos e perdeu a vida durante uma operação da Polícia
Militar na favela. Por volta das 10h da manhã de terça, policiais da tropa de
elite Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) entraram na comunidade
para, segundo asseguram, desmantelar um laboratório que fornece drogas para
a cracolândia. Testemunhas contam que, ao vê-los, Leandro se assustou e
correu para dentro do barraco mais próximo. O de Lucimar. Os agentes então
decidiram segui-lo. "Uns quatro" entraram no recinto, aumentaram o volume
do aparelho de som e lá ficaram, até cerca de 11h30, torturando o rapaz,
segundo relatam os moradores. "Como também havia helicópteros, não dava
para escutar quase nada, só uns gemidos e um barulho de luta", relata Lucimar.
Depois, recorda, Leandro foi discretamente retirado e colocado numa kombi
branca. "Deu pra ver que seu rosto tinha sangue".
O corpo do rapaz retornou às 22h35 de quarta-feira para a comunidade para
ser velado, após passar por um longo processo burocrático para ser identificado
pela família e ser feita a autópsia. O jovem recebeu ao menos três tiros: dois
no abdome e um na região do ombro. A Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo não permitiu que o EL PAÍS tivesse acesso ao laudo do IML, mas
os que viram o cadáver do rapaz – além dos próprios familiares, o vereador
petista Eduardo Suplicy – asseguram que, além das marcas das balas, seus
joelhos estavam "estourados", seu rosto estava inchado, com hematomas perto
dos olhos, e seus dentes estavam quebrados. Acredita-se que os policiais
utilizaram o martelo de Lucimar para torturá-lo.
Familiares e vizinhos contam que Chiclete, como Leandro era conhecido no
Moinho, era usuário de drogas e estava tentando interromper o uso. "Quando
iniciou a operação, meu irmão devia estar consumindo a droga e, na brisa da
droga, saiu correndo", conta Lucas Souza Santos, irmão do rapaz.

2
(Incêndio destrói sete barracos da favela do Moinho no centro de SP. Do R7, São Paulo, ano 2013, set Disponível em:
https://noticias.r7.com/sao-paulo/incendio-destroi-sete-barracos-da-favela-do-moinho-no-centro-de-sp-13092013.>. Acesso em:
06/08/18.)
Tanto ele como outros moradores com os quais o EL PAÍS conversou
coincidem em assegurar que Leandro, um rapaz magro que estava prestes a
completar 19 anos, não era traficante e nunca tocou em uma arma. "Ele era um
bom menino, trabalhador, nunca fez nada", disse uma moradora. O garoto,
contam, trabalhava como catador de material reciclável ou como ajudante de
obras. Deixou uma filha de dois anos...

Protesto e resistência no Moinho


A favela do Moinho é uma pequena comunidade plana localizada no centro de
São Paulo, no bairro de Campos Elíseos, e delimitada por trilhos de trem. Um
bolsão de pobreza em uma região onde novos prédios são erguidos cada vez
mais. Lá, em suas ruas de terra e barracos de madeira e tijolos, seus moradores
vivem entre a promessa da reurbanização e o medo de serem despejados pelo
setor imobiliário. Devido também ao histórico de militância no local, nos
últimos dois dias permaneceram mobilizados. Na terça-feira, quando Leandro
supostamente ainda era torturado, houve uma explosão de indignação.
Começaram então um protesto na comunidade que se expandiu até a avenida
Rio Branco, mas foram duramente reprimidos pelas forças policiais. Lucila dos
Santos Silva, de 42 anos, conta ter sido agredida com um cassetete nas costas,
agora cobertas por uma faixa. Também mostra uma marca vermelha de bala de
borracha no ombro direito e uma marca preta em seu rosto. "Depois que eu cai
no chão, um policial pisou na minha cara e esfregou aquela botina que eles
usam. Disse assim: 'Vocês que moram no Moinho são tudo lixo'. Mas não sou
lixo não", diz ela, que ainda garante ter sido atingida por spray de pimenta no
rosto e sido ameaçada pelos agentes de levar "pedradas".
Já Maria Vitória Oliveira, de 19 anos e grávida de oito meses, explica que foi
abordada por um policial quando Leandro ainda estava sendo torturado. "Ele
perguntou: 'Por que você está nervosa? Está tomando as dores de quem está
apanhando?'", recorda. Depois, quando estava no telefone com sua mãe
pedindo um telefone de repórter, foi abordada novamente e empurrada. "Bati
a cabeça na tampa da fossa e desmaiei. Me levaram para o hospital Victorino,
mas não tinha médico. Quando voltei, um policial falou: 'essa grávida
desgraçada tá olhando o que? Vai levar pedrada".
Lucimar, a dona da casa onde Leandro foi morto pela Polícia, conta ter sido
pressionada. Considerada testemunha-chave do caso, ela se encontrava na rua
no momento em que Leandro e os policiais entraram no seu barraco. Recorda
de "uns vultos" passando e de ter sido impedida pelos homens fardados de
entrar. Depois da ação, pegou seu RG na cozinha – deparando-se com um
cenário de horror descrito acima – e foi levada, sozinha, para depor. Na viatura,
diz que foi questionada diversas vezes sobre se Leandro era traficante e portava
armas. No dia seguinte, na manhã de quarta-feira, conta que tentaram levá-la
de novo para prestar esclarecimentos. Mas dessa vez se negou a ir, com medo
de ser forçada a contar mentiras sobre o rapaz...
Quando Leandro finalmente chegou à comunidade, às 22h35 de quarta,
dezenas de moradores se aglomeraram dentro e fora da capela do Moinho para
uma celebração religiosa. O corpo foi velado até o dia seguinte por familiares
e amigos do rapaz. Por volta das 9h da manhã desta quinta-feira, um pastor
local e o padre Julio Lancellotti deram seguimento à celebração. "Não
podemos dizer que [a morte de Leandro] foi vontade de Deus. Isso foi obra
humana. Deus não quer o sofrimento de seus filhos e filhas. Leandro foi
executado porque é pobre. Não podemos aceitar que isso seja normal e
natural", disse Lancellotti durante o velório.
Uma hora depois, um carro do Serviço Funerário do Município levou o caixão
até o cemitério de Vila Formosa, na zona norte da capital.
Três ônibus foram alugados para que os moradores do Moinho
acompanhassem o enterro. Saíram lotados. Leandro foi finalmente enterrado
entre 11h e meio dia, exatamente 48 horas depois de seu martírio. Seu corpo
foi para debaixo da terra sob lágrimas e orações, mas também aplausos e uma
mensagem que ecoou no cemitério: "A luta continua! O moinho resiste!" 3

Assim como Leandro, morto em junho de 2017, outros dois casos intrigam pela forma
violenta como aconteceram, e pelo sentimento de impunidade e revolta que geraram,
foram os casos Claudia da Silva Ferreira morta em março de 2014 e Luana Barbosa dos
Reis Santos morta em abril de 2016.

CASO CLAUDIA

“Eram cerca de 9h desse domingo, quando uma viatura do 9º BPM (Rocha


Miranda) descia a Estrada Intendente Magalhães, no sentido Marechal Hermes,
na Zona Norte do Rio, com o porta-malas aberto. Depois de rolar lá de dentro
e ficar pendurado no para-choque do veículo apenas por um pedaço de roupa,
o corpo de uma mulher foi arrastado por cerca de 250 metros, batendo contra
o asfalto conforme o veículo fazia ultrapassagens. Apesar de alertados por
pedestres e motoristas, os PMs não pararam. Um cinegrafista amador que
passava pelo local registrou a cena num vídeo.
A mulher arrastada era Claudia Silva Ferreira, de 38 anos, baleada durante uma
troca de tiros entre policiais do 9º BPM e traficantes do Morro da Congonha,
em Madureira. Em depoimento à Polícia Civil, os PMs disseram que a mulher
foi socorrida por eles ainda com vida, e levada para o Hospital Carlos Chagas,
em Marechal Hermes, mas não resistiu. Já a secretaria Estadual de Saúde
informou que a paciente já chegou à unidade morta. Ela levou um iro no
pescoço e outro nas costas.
- Foi revoltante ver aquele corpo pendurado. Eles iam ultrapassando outros
carros, e o corpo ia batendo. As pessoas na rua gritavam, tentando avisar os
policiais, mas eles não ouviam. Só pararam por causa do sinal e, aí,
conseguiram ouvir o que as pessoas diziam. Dois policiais, então, desceram da
viatura e puseram o corpo de volta no carro - disse o cinegrafista.

Trajeto de 250 metros


A cena começou a ser registrada próximo ao número 796 da Estrada Intendente
de Magalhães, na altura da Rua Boiacá, e foi filmada aproximadamente até o
878, onde fica uma agência da Caixa Econômica Federal. A irmã de Claudia,
Jussara Silva Ferreira, de 39 anos, ficou chocada quando viu a imagem do
corpo da irmã sendo arrastado. Revoltada, ela quer que os policiais sejam
punidos:
- Acham que quem mora na comunidade é bandido. Tratam a gente como se
fôssemos uma carne descartável. Isso não vai ficar impune. Esses PMs
precisam responder pelo que fizeram.
Antes mesmo de saberem o que havia acontecido com Claudia, familiares
tinham desconfiado de que algo pudesse ter ocorrido, já que viram o corpo dela
em carne viva ao chegarem no hospital.
- Achamos estranho quando vimos o corpo daquele jeito. Desconfiamos de que
tinha acontecido no trajeto até o hospital - relatou Diego Gomes, de 30 anos,
primo de Claudia.
Thaís Silva, de 18, filha da vítima e a primeira a encontrá-la morta, já tinha
reclamado até mesmo da forma com que os policiais do 9º BPM a socorreram:

3 (BETIM, Felipe. Favela do Moinho: Um morto e múltiplos indícios de tortura no centro de São Paulo. EL PAÍS, São Paulo, ano
2017, jun. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/29/politica/1498762845_937251.html> Acesso em: 06/08/18.)
- Eles arrastaram minha mãe como se fosse um saco e a jogaram para dentro
do camburão como um animal - revoltou-se a jovem.
Mãe de quatro filhos, Claudia, conhecida no Morro da Congonha como Cacau,
era auxiliar de serviços gerais do Hospital Naval Marcílio Dias, no Lins.
Nascida e criada em Madureira, ela ainda cuidava de quatro sobrinhos. A
vítima faria 20 anos de casada com o vigia Alexandre Fernandes da Silva, de
41 anos, em setembro deste ano...” 4

CASO LUANA

Luana Barbosa dos Reis Santos morreu dia 13 de abril de 2014. Procurados
pela Ponte Jornalismo, o comandante-geral da PM de SP, coronel Ricardo
Gambaroni, Douglas Luiz de Paula, Fábio Donizeti Pultz e André Donizeti
Camilo, os três últimos investigados sob suspeita de terem causado a morte de
Luana Barbosa dos Reis Santos, 34 anos, não se manifestaram.

“Corre que eles vão matar a Luana”. Foi pelo aviso de uma vizinha que
familiares de Luana Barbosa dos Reis Santos, 34 anos, começaram a entender
o porquê dos gritos e tiros que tomaram a vizinhança, na noite de 08 de abril.
Ao parar para cumprimentar um amigo que estava no bar na esquina da rua de
sua casa, no bairro Jardim Paiva II, na periferia de Ribeirão Preto, Luana foi
abordada e espancada por policiais militares e morreu cinco dias depois, em
decorrência de uma isquemia cerebral causada por traumatismo crânio
encefálico.
Os PMs Douglas Luiz de Paula, Fábio Donizeti Pultz e André Donizeti
Camilo, do 51 Batalhão da corporação, são investigados sob suspeita do
espancamento que causou a morte Luana.
Procurado desde o dia 19 de abril para se manifestar sobre a morte de Luana,
o comandante-geral da PM, coronel Ricardo Gambaroni, ficou em silêncio. O
mesmo aconteceu com o Setor de Comunicação da PM...

Segundo a irmã Roseli, Luana saiu de casa para levar o filho a um curso de
informática, no centro da cidade. “Foi questão de dez minutos para começarem
os gritos e os tiros. Ao abrirmos o portão, já estava uma cena de guerra, com
policial apontando arma, vizinhos correndo e minha irmã gritando pedindo
ajuda”, relata.
Ao se aproximar do bar com outros familiares, Roseli diz ter visto a irmã
ajoelhada, com as mãos para trás, com uma bermuda preta, sem camisa e só
com um top. Segundo ela, havia dois policiais imobilizando Luana, um deles
com sangue no lábio – o mesmo policial que apontou uma arma para Roseli e
sua mãe dizendo “entra [para a sua casa], se não morre”.

A abordagem
Em um vídeo gravado por familiares após as agressões, Luana diz que policiais
a mandaram abaixar a cabeça e colocar as mãos para trás: “Aí eu comecei a
apanhar, já me deram um soco e um chute”. Roseli diz à irmã que ela foi
acusada de agredir um policial e fala ter visto um policial com a boca
machucada. “Por causa que eles me algemou, me deram um soco e um chute”,
responde Luana.
No vídeo, ela ainda diz: “Falou que ia me matar e matar todo mundo da
minha família. Eu vomitei até sangue. Falou que vão matar todo mundo. Não
é só eu não, vão matar até meu filho. Meu filho está morto, eles falou”.
Testemunhas relataram aos familiares que policiais chutaram Luana para fazê-
la abrir as pernas, o que a fez cair no chão. Ao se levantar, Luana deu um soco
em um dos policiais e chutou o pé de outro. A partir de então, os policiais

4
(HERINGER, Carolina; MODENA, Ligia; HOERTEL, Roberta. Viatura da PM arrasta mulher por rua da Zona Norte do Rio. EXTRA, Rio
de Janeiro, ano 2014, mar. Disponível em: < https://extra.globo.com/casos-de-policia/viatura-da-pm-arrasta-mulher-por-rua-da-zona-
norte-do-rio-veja-video-11896179.html> Acesso em: 06/08/18.)
começaram a bater em Luana com cassetetes e com o capacete que ela usava
ao dirigir a moto.
“Alguns vizinhos dizem que estão tomando remédio para conseguir dormir,
lembrando dos gritos da Luana pedindo socorro. Ela apanhou muito”, conta
Roseli.
Um familiar relatou que Luana tinha muitos hematomas na região abaixo do
umbigo. “Pessoas que estavam no bar contaram que ela levou muitos golpes
de capacete no abdômen e de cassetete também”, relata o parente, que chegou
ao local quando Luana já estava dentro do carro da Polícia Militar.

Na casa dos familiares


Roseli diz que, após ameaçarem ela e sua mãe, policiais entraram em sua casa,
alguns deles escoltando o filho de Luana. Perguntaram se ela morava ali, se ela
usava ou traficava drogas, se ela roubava, no que ela trabalhava e revistaram o
quarto dela e objetos de outros familiares.
“Os policiais não falaram porque abordaram ela e saíram de casa sem falar o
que estavam procurando. Perguntei o que tinha acontecido, falaram que ela
tinha agredido um policial e que estavam fazendo um procedimento normal no
bairro”, conta Roseli. Em seguida, os policiais se dirigiram para a casa da
companheira de Luana e repetiram perguntas e revistas.
Familiares disseram que não conseguiram se aproximar de Luana, pois a área
foi isolada por carros da Polícia Militar. “Os policiais deram tiros pro alto e
ameaçaram vizinhos que tentaram se aproximar e entrar na casa da mãe”, relata
uma parente de Luana.
Segundo testemunhas, o filho de Luana, de 14 anos, presenciou tudo, escoltado
por policiais. “Já tentamos de todos os jeitos, mas ele não conversa com a
gente. Acho que está em estado de choque”, relata outro familiar, que também
não quis se identificar.
Perguntados sobre Luana e a moto, policiais disseram que ela e o veículo, com
documentos em ordem e apenas um pequeno problema no lacre da placa, havia
sido levado para o 1º Distrito Policial. Na delegacia, somente um familiar teve
a entrada autorizada. Ele diz que Luana estava algemada, “só de top e cueca
preta”. “Coloquei uma camiseta nela. Ela estava meio deitada em um sofá, com
olhos fechados, inchaço na cabeça e vomitando algumas coisas brancas”, relata
o familiar.
Ele diz ter conversado com ela por poucos minutos, sendo solicitada a sua
retirada da delegacia em seguida. Cerca de uma hora depois, ele entrou
novamente: “Me chamaram para fazer ela assinar o termo circunstanciado e
o Boletim de Ocorrência, que eles registraram por lesão corporal e desacato à
autoridade”...
Ela conta que foi então foi chamada por um integrante da Polícia Civil, que lhe
recomendou levar Luana para fazer um exame de corpo de delito, pois ela tinha
sinais de espancamento. Como o IML (Instituto Médico Legal) já estava
fechado àquela hora, recomendaram que voltassem apenas na segunda-feira.
“Perguntei o que ela tinha feito, falaram que ela tinha agredido um policial e
que eles tinham acalmado ela, porque se quisessem quebrar ela, só um policial
tinha dado conta”, relata Roseli.
Ao sair da delegacia, os familiares registraram o vídeo em que Luana relata ter
sido ameaçada. “Ela estava desfigurada, quase inconsciente quando saiu. Suja,
só de meia pé, sem sapato. Ela não conseguia abrir os olhos, estava com a fala
enrolada”, relata Roseli.
No vídeo, Luana pede para ir para casa tomar um banho. Familiares dizem que,
por medo de represálias, decidiram atender o pedido e não registraram um BO
naquele momento. Luana foi internada no hospital somente no dia seguinte,
depois de apresentar febre e reclamar de dores.
No hospital
Ao dar entrada no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, Luana já estava
com suspeita de AVC (Acidente Vascular Cerebral), relata Roseli: “Fizeram
exames para confirmar as suspeitas, mas falaram que era um caso grave e que
não sabiam se as sequelas eram reversíveis’’.
Da equipe médica, Roseli ouviu que os exames mostraram um coágulo e
rompimento de veias na cabeça de Luana.
O exame de corpo de delito foi realizado somente na terça-feira (12/04) pela
manhã. “Quando o hospital pediu o exame de corpo de delito para o IML,
perguntaram se a paciente era a agressora dos policiais”, conta Roseli. Após
cinco dias de internação, Luana morreu por traumatismo crânio encefálico e
isquemia cerebral. Ela teve os órgãos doados pela família...

Segundo familiares, os policiais teriam chegado gritando para Luana botar as


mãos na cabeça, abrir as pernas e mostrar documento. Ela teria pedido uma
policial mulher para revistá-la, o que não foi feito.
“Mesmo falando que ela era mulher, eles continuaram a abordagem e
quiseram revistá-la. Depois de agredida, falaram que ela ainda levantou a
camiseta para mostrar que era mulher”, conta Roseli, em alusão à aparência
“masculinizada” da irmã.
Para a família de Luana, ela também pode ter sido espancada pelos PMs porque
tinha um registro policial anterior, quando foi acusada de porte de arma e
roubo. Luana deixou a prisão em 2009 e, segundo Roseli, ela continuou
estudando e trabalhava como faxineira, garçonete e vendedora.
“Ela não pode refazer a vida? Ela não tem mais direitos e nem é ser humano
por ter passagem? Não tinha nenhuma acusação contra ela. Por ser lésbica,
negra e da periferia, com passagem pela polícia, ela já era considerada
culpada”, contesta Roseli.
Em sessão ordinária na Câmara dos Vereadores de Ribeirão Preto, no dia 19
de Abril, Roseli falou sobre a morte da irmã: “Estão tentando usar o fato dela
já ter tido passagem para convencer a opinião pública de que foi merecido. Que
bandido bom é bandido morto”.
“Por que não levaram ela presa pelo desacato? Por que fizeram tudo isso com
ela? Ela já estava rendida, não tinha necessidade disso”, questiona outro
familiar.
“Nosso pai foi assassinado a tiros aos 34 anos, em São Paulo, sem que o
culpado jamais tenha sido identificado. Ele foi primeiro enterrado como
desconhecido e só depois teve o corpo identificado por uma das minhas tias. O
círculo vicioso da violência que se repete com as minorias e o genocídio da
juventude negra tem que acabar”, diz Roseli. ” 5

A partir deste momento iniciei o primeiro trabalho Sem Título, ele é composto por uma
série de nove gravuras, utilizando da técnica de xilogravura e serigrafia sobre papel
japonês.
Tendo como referência uma fotografia retirada de artigos de notícias vinculados à internet
e jornais, sobre o Massacre do Carandiru ocorrido em 02 de outubro de 1992. Na imagem,
há vários corpos das vítimas do massacre estendidos nus sobre precários caixotes de
madeiras. Os corpos sem vida, apresentam uma cicatriz que atravessam do pescoço ao
final do abdômen, resultado da autopsia, e nas pernas suas correspondentes numerações
feitas pelo IML. Pela a imagem, a primeira numeração possível de ser vista corresponde
ao número “4467”. A partir desta fotografia, escolhi mais três fotos de vítimas, também
reais, do excesso de violência policial e do Estado, seguidas de impunidade.
Começando pela foto de Leandro de Souza Santos morto na Favela do Moinho, e mais
outras duas vítimas a Claudia da Silva Ferreira e Luana Barbosa dos Reis Santos, todos
os três casos citados acima.

5
(ALVES, Alê. A história de Luana: mãe, negra, pobre e lésbica, ela morreu após ser espancada por três PMs. Ponte Jornalismo, São
Paulo, ano 2016, abr. Disponível em: < https://ponte.org/a-historia-de-luana-mae-negra-pobre-e-lesbica-ela-morreu-apos-ser-
espancada-por-tres-pms/> Acesso em: 06/08/18.)
Fiz a imagem das três vítimas em xilogravura, depois imprimi sobre elas em serigrafia,
uma fictícia numeração do IML em cada uma delas, seguindo a sequência numérica a
partir do número “4467” da fotografia do Massacre do Carandiru. Então seguiram as
numerações 4468, 4469 e 4470.
Com isto queria demonstrar uma continuidade do que aconteceu no Carandiru, uma
continuidade da violência exacerbada, do abuso policial, da negligência do Estado, da
impunidade, do genocídio contra pessoa desprivilegiadas.
Com o objetivo, embora partindo de casos isolados, apontar não para indivíduos mas para
um setor da sociedade, os setores mais desprivilegiados, e, portanto, mais vulneráveis a
serem cometidos por injustiças. Apontar para um sistema criminal brasileiro falho, uma
justiça seletiva, forças armadas despreparadas, e um Estado negligente.
As imagens se repetem, e as numerações vão sendo sobrepostas até cobrirem por
completo o rosto das pessoas retratadas, neste momento, de uma forma simbólica e
usando de uma força expressiva, estas pessoas perdem sua identidade, passando a
representar apenas números, prontos para se tornarem mais um número para serem
acrescentadas as estatísticas, sem nome, sem identidade, sem direitos, para assim tornar
mais fácil o seu esquecimento.

Fotografia das vítimas


do Massacre do
Carandiru
Sem Título
Gravura sobre papel
Dimensão variável
2018
Sem Título (detalhe)
Gravura sobre papel
Dimensão variável
2018

Sem Título (detalhe)


Gravura sobre papel
Dimensão variável
2018
Sem Título (detalhe)
Gravura sobre papel
Dimensão variável
2018

O segundo trabalho intitulado Invisíveis, utilizando da técnica de gravura em metal sobre


papel, é uma série de nove gravuras, foi usado a técnica da água forte e ponta seca. Onde
aparecem três paisagens periféricas reais, estas vão formando um degrade até
praticamente sumirem. Tentei dialogar com a questão da invisibilidade nas regiões mais
pobres, do descaso por parte dos poderes públicos desta parcela da sociedade.
Existe um visível abandono do estado, carência de políticas públicas, de infraestrutura e
serviços públicos.
A primeira paisagem, retrata a Favela do Moinho, localizada no centro de São Paulo; a
segunda, retrata uma comunidade no Jaguaré, na zona oeste de São Paulo; e a terceira se
refere a periferia de Pirituba, na zona oeste de São Paulo.
Este trabalho, pretende contar uma história, falar do percurso, das muitas histórias dos
muitos percursos vividos no cotidiano. As imagens partiram de uma série de fotografias,
que foram feitas em jornadas que percorri pela cidade, utilizando transporte público ou
caminhando. A primeira, partiu de um percurso da linha 7 rubi da cptm, entre as estações
luz e Jundiaí; a segunda, foi um caminho feito através de ônibus da sptrans; e a terceira,
através de um percurso a pé pelo bairro de Pirituba.
Invisíveis
Gravura em metal sobre papel
Dimensão variável
2017

Invisíveis (detalhe)
Gravura em metal sobre
papel
Dimensão variável
2017
Bibliografia Fundamental:
-ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão: Ensaios sobre o Barroco. Companhia das
Letras, São Paulo, 2004.
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Minneapolis, Walker Art Center; New York, Abbeville Publishers, 1987.
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-BARATA, Mario (org.) et alii. Mostra da Gravura Brasileira; catalogo da Bienal
Nacional 1974. São Paulo, Fundação Bienal, 1974.
-BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política - Obras Escolhidas - Vol. I. São
Paulo:
Editora Brasiliense, 2012.
-BERONÄ, David A. Wordless books. The original graphic novel. Abrams, New York,
2008.
-BERSIER, Jean E. La Gravure, les Procédés, l'Histoire. Paris, Berger-Levrault, 1963.
-BOSSE, Abraham. Tratado de Gravura. Lisboa, Typographia e Chalcographia
Typoplástica do Arco do Cego, 1801.
-BROWN, Kathan. Ink, PAPER, Metal, Wood. Painters and Sculptors at Crown Point
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Chronicle Books, San Francisco, 1996.
-BRUNNER, Felix. A Handbook of Graphic Reproduction Processes. Stuttgart, Gerd
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-BUENO, Cláudio Pereira. Campos de Invisibilidade. Tese (doutorado) – Escola de
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BUTI, Marco e LETYCIA, Ana (Org.). Gravura em metal. São Paulo: Imprensa Oficial
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-CARVALHO, Gilmar de. Madeira Matriz. Cultura e Memória. São Paulo, Annablume,
1999.
-COSTELLA, Antonio Fernando. Breve história ilustrada da xilogravura. Campos do
Jordão: Editora Mantiqueira, 2003.
COSTELLA, Antonio Fernando. Introdução a gravura e sua história. Campos do Jordão:
Editora Mantiqueira, 1984.
D'ANDREA, Tiarajú Pablo. A formação dos sujeitos periféricos. Cultura e política na
periferia de São Paulo. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas / Universidade de São Paulo, FFLCH / USP. São Paulo: 2013.
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- DIDI-HUBERMAN, Georges. L’Empreinte. Center Georges Pompidou, Paris, 1997.
-DUARTE, Mel. Negra Nua Crua. São Paulo: Editora Ijumaa, 2015.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: Editora EDUFBA, 2008.
-GRASSELLI, Margaret Morgan. Colorful impressions. The printmaking revolution in
eighteenth century France. National Gallery of Art, Washington, in association with Lund
Humphries, 2003.
-HERSCOVITZ, Anico. Xilogravura: arte e técnica. Porto Alegre, Tchê, 1986.
JARDIM, Evandro Carlos. Olhares Plásticos. São Paulo: Editora Nacional, 2005.
-JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo,
Editora Ática, 2016.
-KOSSOVITCH, Leon; LAUDANNA, Mayra; RESENDE,Ricardo. Gravura Brasileira.
São Paulo, Cosac & Naify, 2000.
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-LEITE, José Roberto Teixeira. A Gravura Brasileira Contemporanea. Rio de Janeiro,
Editora Civilização Brasileira, 1976.
-PAULINO, Rosana. Imagens de sombras. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicação
e Artes / Universidade de São Paulo, ECA / USP. São Paulo: 2011.
-PON,Lisa. Raphael, Dürer, and Marcantonio Raimondi. Copying and the Italian
Renaissance Print. Yale Univerrsity Press, 2004.
ISBN 0-300-09680-1
-SILVA, Luiz (Cuti). Neghúmus líricos. Ciclo Contínuo Editorial, São Pulo, 2017.
- Vários autores. Xilografie Italiane del Quattrocento, da Ravenna e altri luoghi. Longo
Editore, Ravenna, 1987.
-Vários autores. The painterly print: Monotypes from the seventeenth to the twentieth
century. The Metropolitan Museum of Art, New York,1980.

Conclusões
Cabe dizer aqui, que a realização deste projeto contribuiu e muito para minha forma de
pensar visualmente, mas principalmente para o desenvolver discursivo e expressivo. Há
tempos, a arte contribui para expressar ideias, levantar questionamentos, até mesmo trazer
dúvidas, seja em um aspecto mais individual ou mais amplo.
Durante o desenvolver do projeto, num primeiro momento, após a realização de leituras,
estudos, visitações e eventos, foi possível conhecer uma gama muito rica de trabalhos,
nas mais diversificadas linguagens como teatro, dança e poesia. Muitos destes trabalhos
deixam claro sua vontade em expressar através da arte, realidades em conflito constante
com o atual cenário político-social, levantando questões acerca de classe, etnia e gênero.
Em um segundo momento, foi interessante observar a relação entre a linguagem escolhida
e os resultados gráficos obtidos. Neste caso, a linguagem da gravura que já vem atrelada
a ideia de repetição, pois desde sua criação, uma de suas finalidades era justamente
permitir uma multiplicidade de reproduções a partir de uma matriz. Por outro lado, a
repetição de imagens também foi usada como elemento estético dentro do trabalho, para
reforçar conceitos, contribuindo para a poética do trabalho.

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