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antes

de estar

em

mim

já esteve

nelas
nontsikelelo mutiti

é artista visual e educadora, nascida no


Zimbabwe. Está comprometida em elevar
o trabalho e as práticas do passado, presente
e futuro de comunidades negras, através de
uma abordagem conceitual no design, pu-
blicações e práticas de arquivo. Atualmente
é diretora dos estudos de pós-graduação em
design gráfico na Yale School of Art, EUA.

Colagens originais de Nontsikelelo Mutiti para o projeto


audiovisual Pain Revisited [Sofrimento revisitado], 2015.
A obra reimagina o corpo negro em sofrimento como
agente de potencialidade através da arte e da colaboração.

A obra, em sua duração total, contém imagens adicionais


criadas por Nontsikelelo Mutiti e Dyani Douze. A trilha
sonora foi produzida por Dyani Douze.

Disponível em: <nontsikelelomutiti.com/2017/01/23/pain-


-revisited-excerpt/>. Acesso em: abr. 2023.
meu
modo
de pensar
é um pensar
coletivo
antes
de estar
em mim
já esteve nelas
Ministério da Cultura, Governo do Estado de
São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura,
Economia e Indústria Criativas, Secretaria
Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação
Bienal de São Paulo e Itaú apresentam
meu
modo
de pensar
é um pensar
coletivo
antes
de estar
em mim
já esteve nelas

O título desta publicação é uma composição


de frases de autoria de Rosana Paulino
registradas durante a visita da equipe de
Educação ao seu ateliê em março de 2023.
Publicação educativa da Entre os conteúdos da publicação, foram
35a Bienal de São Paulo – inseridas ainda outras frases registradas
coreografias do impossível durante essa visita.
As publicações educativas da Bienal de São Paulo ram a estrutura conceitual da mostra, que se cons-
incorporam o compromisso da Fundação Bienal de trói em torno do trabalho curatorial de Diane Lima,
promover a democratização do acesso à arte. Pensa- Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel.
das e desenhadas a fim de lançar múltiplas ques- Cada volume – ou movimento, como foram batizados
tões e reflexões sobre a mostra, essas publicações – oferece ensaios e conversas sobre temas contem-
servem como um valioso recurso para educadores, porâneos, exercícios de poética, gestos criativos e
estudantes e pessoas que desejam fazer despertar novas sensibilidades, ao mesmo tempo que conta
– ou cultivar – o valor da arte contemporânea em com descritivos contextuais sobre as obras e seus
públicos cada vez mais numerosos e diversos. artistas, fornecendo informações e compartilhando
Para a 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do resultados de uma equipe devotada à pesquisa de arte
impossível, a publicação foi cuidadosamente proje- e educação.
tada para ser apresentada em três volumes, lançados Lançado em abril de 2023, o primeiro movimento
em três tempos diferentes, com propostas que se recebeu o instigante título aqui, numa coreografia de
complementam. Os dois primeiros servem como um retornos, dançar é inscrever no tempo, frase da poeta e
instrumento de trabalho para o curso de formação acadêmica Leda Maria Martins. A presente publica-
de mediadores e ações de difusão que antecedem ção, que vem a público às vésperas da abertura, tam-
a grande mostra do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, bém guarda em seu nome uma reflexão: meu modo de
enquanto o terceiro volume será organizado de modo pensar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já
a servir de base para as ações de educação durante esteve nelas, palavras emprestadas da artista Rosana
as exposições itinerantes que acontecerão em 2024, Paulino. Se pensados em conjunto, como devem ser,
quando recortes da mostra paulistana serão apresen- os títulos podem ser entendidos como uma chave de
tados para cidades do Brasil e do mundo. leitura para o trabalho que a Fundação Bienal de São
Essas publicações são fruto do esforço cola- Paulo vem desenvolvendo com diligência, isto é, uma
borativo entre a curadoria e a dedicada equipe coreografia coletiva para a apresentação de mais uma
permanente da Fundação Bienal. Elas oferecem aos mostra atual, plural e histórica.
mediadores, professores e educadores as ferramen-
tas necessárias para envolver e preparar os leitores e José Olympio da Veiga Pereira
visitantes. Os conteúdos e suas muitas vozes explo- Presidente – Fundação Bienal de São Paulo
Compartilhando da histórica missão do Ministério da conhecimento crítico de novos visitantes de todas as
Cultura do Governo Federal de promover o cresci- idades. Com uma equipe de Educação permanente,
mento do campo cultural e torná-lo mais acessível, a Fundação Bienal de São Paulo desenvolve cursos
além de fomentar a economia criativa, a Bienal de livres, ações de mediação e programas de formação
São Paulo chega agora a sua 35ª edição com mais um para educadores e mediadores, além de produzir
projeto curatorial inovador e afinado com as questões as publicações educativas, ferramentas de trabalho
mais urgentes de nossa época. Esta é uma marca na imprescindíveis para projetos artístico-pedagógicos.
trajetória deste evento, cujo objetivo sempre foi o Nesse quadro colorido e múltiplo da Bienal de
de receber um público amplo e mostrar o que há de São Paulo, são criadas oportunidades para apren-
mais atual no mundo das artes, ao mesmo tempo que dermos mais sobre nós mesmos, apreciarmos a
promove a sustentabilidade e os direitos humanos, diversidade do mundo e celebrarmos a cultura. Para
essenciais para o fortalecimento de uma cultura cada o Governo Federal, aqui representado pelo Ministério
vez mais cidadã. da Cultura, não há união nacional sem arte, e não há
Desde a sua primeira edição, em 1951, a Bienal arte sem democracia. Vamos festejar mais uma Bienal
de São Paulo tem ocupado um lugar de prestígio na de São Paulo. Viva a arte!
cultura nacional que vai muito além de suas exposi-
ções. Sua consistente continuidade ao longo dos anos Margareth Menezes
foi responsável por formar e capacitar trabalhadoras Ministra da Cultura do Brasil
e trabalhadores da cultura nos mais variados campos,
como educadores, críticos de arte, montadores, arqui-
tetos, produtores, editores, comunicadores, designers
e tantos outros ofícios, com cada projeto impactando
direta e indiretamente um contingente extraordinário
de pessoas, famílias e vidas.
Dentre os impactos da mostra, é importante
destacar a impecável atuação educativa da Bienal.
Cada uma de suas edições cria as condições neces-
sárias para se alcançar novos públicos e fomentar o
Há 35 anos, o Itaú Cultural (IC) tem contribuído para a O Instituto Cultural Vale tem a alegria de fazer parte da
valorização da cultura de uma sociedade tão com- realização desta 35ª Bienal de São Paulo – coreografias
plexa e heterogênea como a brasileira. Além de todo o do impossível e de seu programa educativo, que nesta
trabalho envolvendo pesquisa, produção de conteúdo, edição experimenta novos formatos e abordagens.
mapeamento, incentivo e difusão de manifestações Diante da proposta curatorial de criar um
artístico-intelectuais, a organização firma parcerias “espaço de experimentação aberto às danças do
com outros agentes alinhados a essas preocupações – inimaginável”, como definem os curadores, nos
como a Fundação Bienal de São Paulo. unimos a essa iniciativa que conecta arte e educação,
Com a volta do fluxo de atividades, eventos expande o acesso à cultura e aproxima estudantes,
e mostras após o período mais duro da pandemia professores e famílias de vivências interdisciplinares.
de Covid-19, o ic empenha-se em proporcionar Com uma curadoria conjunta, horizontal e
ao público programações que contemplem tanto o diversa, a Bienal – maior exposição de arte contem-
espaço físico (a sede em São Paulo) quanto o virtual. porânea do hemisfério Sul – nos convida a pensar a
Na área de artes visuais, destacam-se as exposições arte como exercício de diálogo, de abertura a novas
Tunga – conjunções magnéticas (2021-2022), Bispo narrativas e como espaço de aprendizado.
do Rosário – eu vim: aparição, impregnação e impacto Nesse sentido, também se conecta ao propósito
(2022) e Um século de agora (2022-2023). Aliás, a reu- do Instituto Cultural Vale: o de ampliar oportunida-
nião de obras de Tunga, realizada em conjunto com o des para aprender, refletir, desenvolver novos olha-
Instituto Tomie Ohtake, ganhou o prêmio da Associa- res e compartilhar arte, cultura e educação, dentro e
ção Paulista de Críticos de Arte (apca). fora dos museus, em todo o Brasil.
Já no quesito on-line, vale mencionar as mostras
virtuais Filmes e vídeos de artistas, que traz produções Instituto Cultural Vale
audiovisuais de caráter experimental, e Livros de
artista na coleção Itaú Cultural, cujos recursos imersi-
vos e interativos permitem uma apreciação detalhada.
Ambas estão hospedadas em itaucultural.org.br.
Ainda no site e no canal do IC no YouTube, há
uma série de conteúdos voltados para crianças e
adultos, de oficinas e podcasts a colunas e reporta-
gens. A Escola IC, a Enciclopédia Itaú Cultural de arte e
cultura brasileira e o programa Ocupação Itaú Cultural
também reforçam o empenho da organização em
apresentar diversos modos de fruição, acesso a infor-
mações e construção de saberes.
Prezando pela diversidade de formatos, pensa-
mentos e subjetividades, o IC continua fomentando o
fazer criativo e crítico no Brasil e do Brasil, pois sabe
que aí reside um dos grandes encantos deste país.

Itaú Cultural
A Bloomberg se orgulha de patrocinar coreografias Diante das incessantes questões da humanidade,
do impossível, a 35a edição da Bienal de São Paulo. talvez valha a pena conviver um pouco mais com
Há mais de uma década temos apoiado as excepcio- algumas perguntas em aberto, tomando amparo em
nais exposições de arte contemporânea da Bienal no recursos que permitam escavar e construir proces­
deslumbrante Pavilhão Ciccillo Matarazzo no Parque sualmente as respostas. Nesse sentido, a arte, em suas
Ibirapuera, e também pelo Brasil, através da nossa variadas faces, oferece sumo fértil para elaborações
parceria com a Fundação Bienal. A edição deste ano críticas acerca do mundo e de nós mesmos.
continua a tradição de apresentar instalações de arte O encontro entre arte e educação – ambas
cativantes e provocativas, que são gratuitas e abertas entendidas como campos do saber – permite a torção
ao público. do tempo e do espaço: passa a ser possível, assim,
Todos os dias, a Bloomberg conecta importan- suspender neutralidades e dilatar o que se precipita
tes tomadores de decisão a uma rede dinâmica de nas estruturas. Até onde essa aproximação é capaz de
informações, pessoas e ideias. Com mais de 19 mil inferir o real e nele interferir? Ela permite (re)povoar
funcionários em 176 escritórios, levamos informa- imaginários, descompassar o estatuto universalizante
ções financeiras e de negócios, notícias e conheci- atribuído a conceitos, práticas e pessoas, e assim
mento ao mundo todo. Nossa dedicação à inovação e talhar a realidade com narrativas que articulem o
às novas ideias se estende através do apoio de longa individual e o coletivo, de modo processual e coerente
data às artes, que, segundo acreditamos, constituem em relação às questões que atravessam a existência.
um caminho importante para motivar cidadãos e for- É segundo esse panorama que o Sesc São Paulo
talecer comunidades. Através de nossos patrocínios, e a Fundação Bienal, por meio da 35ª Bienal de
ajudamos a promover o acesso à cultura e a empo- São Paulo, reiteram sua longeva parceria, mutua-
derar artistas e organizações culturais para atingir mente comprometida em fomentar experiências de
novos públicos. convívio com as artes visuais, ampliando o acesso às
ações culturais e ao exercício da alteridade.
Bloomberg Esta parceria, que se constitui e se renova há
mais de uma década, tem resultado na promoção de
projetos como exposições simultâneas, encontros
públicos, seminários e formações para educadores,
bem como a consolidada mostra itinerante com
recortes da Bienal entre unidades do Sesc no interior
paulista. A confluência de escolhas e proposições
se integra à perspectiva institucional da cultura
como um direito e concebe, junto a uma das maiores
mostras do país, um horizonte acessível para a arte
contemporânea no Brasil.

Sesc São Paulo


12 20

correspondências entre vozes, quais movimentos compõem


uma carta para seguir conversas as coreografias do impossível?
equipe de educação diane lima, grada kilomba,
hélio menezes e manuel borja-villel

19 23

24 38

nós não temos um drama, temos desviar para se encontrar: reflexões


uma luta para tocar: conversa entre com base no livro the lesbiana’s guide
rosana paulino e sueli carneiro to catholic school
geni núñez

37 47

48 52
gesto: coreografar sauna lésbica
a palavra – lambe-lambe por malu avelar com ana paula
equipe de educação mathias, anna turra, bárbara
esmenia e marta supernova

49 53

54 58

daniel lie de fora para dentro,


de dentro para fora
trinh t. minh-ha

55 71
72 76

denilson baniwa �am e maldoror:


descolonização como
beleza e ação
kênia freitas

75 83

84

gesto: audiodescrições poéticas


equipe de educação

85

86 90
aurora cursino dos santos kapwani kiwanga
e ceija stojka

89 91

94

créditos

96
rosana paulino
Da série Jatobá, 2019
Aquarela, grafite sobre tela
65 × 50 cm
Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo
Foto: Isabella Matheus
é necessário
que a gente comece
a pensar o conhecimento
de outras maneiras.
conhecimento em roda,
conhecimento embaixo
de uma árvore,
conhecimento das plantas,
conhecimento que coloque
o sujeito dentro da
natureza e não acima dela.
correspondências
entre vozes,
uma carta
para seguir
conversas

equipe
de
educação
da
fundação
bienal
caminhar sem perceber
levar uma vida só
não se pode escolher
aquilo que dá o nó
de todos os desejos
impossível viver só
não se deixe implicar
busque tornar possível
a proposta de rimar
ler um verso sensível
poderás compreender
o que é impossível1

Voltei!

Continuo sendo…2, e hoje sou feita de mais vozes.3 Mas não sou maior
que antes. Dos desejos que me criaram, o de ser grande não é o que mais
me instiga. Prefiro continuar fragmentada, ser muitas partes juntas e
poder existir apenas como encontro.
E, em grande parte, é sobre isso que gostaria de falar com você
nesta mensagem. As vozes que me constituem carregam a memória de
cantos, risos e prosas dos vários encontros que aconteceram desde o
primeiro movimento. E, como você já sabe, páginas escritas nem sempre
dão conta do vivido, daquilo que se inscreve no tempo e no corpo. Mas,
aqui, minhas vozes vão contar algo sobre os encontros que tornam este

1/ Versos inspirados na literatura de cordel, criados com base em respostas da equipe de Edu-
cação às perguntas lançadas pelo coletivo curatorial da 35ª Bienal em meados de 2022.

2/ Meu nome é um gesto. Um intervalo, algo entre aquilo que foi, o que é e ainda será. As
vozes que me criaram ainda não me nomearam. E não é porque os nomes não importem para
elas. Pelo contrário! Trata-se de exercitar o convívio com aquilo que é vivo e, por isso, muda
constantemente. Aquilo que tem, ao mesmo tempo, muitos nomes e nenhum.

3/ Quando a publicação aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo estava
prestes a entrar na gráfica e vivíamos o toró de ideias para este movimento, Meu modo de pen-
sar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já esteve nelas, celebramos a chegada de mais
vozes à equipe de Educação. Dos ritornelos das experiências de mediação em Bienais, vêm
Bruna e Tai.
movimento − assim como o anterior e aquele que ainda virá − uma reali-
dade, e você também poderá ver registros e reflexões desses momentos
nas encruzilhadas.4
No final de abril colocamos nosso bloco na rua. Contamos com a pre-
sença de uma abre-alas de respeito − Leda Maria Martins. Ela e Thiago
Vinicius de Paula da Silva dançaram e grafaram no tempo os saberes
corporificados das pessoas presentes no Pavilhão da Bienal.

Trem sujo da Leopoldina,


Correndo correndo,
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome...

Thiago deu corpo e voz à palavra de Solano Trindade, poeta que dá nome
à Agência Popular que trabalha para que as pessoas que habitam a peri-
feria não existam apenas para servir à cidade, mas sejam reconhecidas
como um corpo de direitos e desejos.

Vamos tentando criar as formas circulares porque o espaço


em si não as cria. [...] O "eu" não é o principal, o principal é
sempre ‘nós’. Não um ‘nós’ abstrato. Um "nós" com quem
danço, rio e me alimento.5

Assim falou Leda, que, em vez de trazer uma resposta a nossas inquie-
tações sobre tempo, memória e ancestralidade, preferiu riscar o salão,
promovendo um encontro entre a materialidade proposta pelo arquiteto
Oscar Niemeyer (1907-2012) e a imaterialidade do canto ecoado pelo coro
de pessoas que preencheu o vão central do Pavilhão da Bienal.

4/ Encruzilhada é um espaço virtual, no site da 35ª Bienal, dedicado aos caminhos da equipe de
Educação decorrentes da publicação educativa da 35ª Bienal, em seus encontros com públicos
diversos, agregando contribuições que ampliem e cruzem pesquisas, conteúdos, referências,
experiências, vozes e gestos que ainda desconhecemos. “Lugar radical de centramento e des-
centramento, intersecções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e
divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem
e disseminação”, evocando as palavras de Leda Maria Martins em Afrografias da memória

15 (Perspectiva, 2021).

5/ Você pode assistir ao lançamento da publicação educativa no canal da Bienal de São Paulo
no YouTube: https://youtu.be/G_Ug-3SgyKc.

14
Seguimos no sábado, 13 de maio de 2023, quando mais vozes che-
gam para dar corpo à coreografia das ações de difusão da 35ª Bienal.
Performamos a re/estreia dos encontros presenciais no Pavilhão da
Bienal com um desejo: abandonar as formas, romper com métodos e
viver a experiência de trocas, de imaginações e possibilidades, a partir
da e com a publicação educativa. Uma roda, três pandeiros e o encontro
com artistas e pensadoras que colaboraram com o enredo do primeiro
movimento. Seguimos também com ações on-line, contando com pro-
fessoras, educadoras, pesquisadoras e pessoas interessadas de todas as
regiões do país, além de participantes de antigos carnavais, que compu-
seram equipes de mediação em outras Bienais, e muitos que se somaram
à roda agora. Cada encontro transformou-se em uma encruzilhada de
pessoas, corpos, vozes e saberes, de Leda a Rosana Paulino.


A apoteose de uma escola de samba geralmente é vista em seu desfile, mas
queremos contar um pouco sobre o que precede a festa. O barracão é o
principal espaço de fabulação das agremiações carnavalescas. É um espaço
no qual se constroem a coletividade, laços de solidariedade e infinitas pos-
sibilidades; nós o reconhecemos, portanto, como um espaço de educação.
“Cinza-chumbo." Essa era a cor da tarde em que a equipe de
Educação da Bienal visitou o ateliê de Rosana Paulino. Chovia havia
dias, e notícias de pessoas mortas e desaparecidas no litoral norte de
São Paulo ainda chegavam. Naquele momento, as “águas de março” não
inspiravam nenhum lirismo, nenhuma contemplação.

Pirituba com chuva ou sem chuva é assim:


se vacilar é o fim!6

Rosana não precisou de versos de seus vizinhos RZO para lembrar que
as nuvens carregadas traziam más notícias. E não era apenas o volume
da chuva, que persistiu e derrubou a energia elétrica. Para a artista, os
temporais daquele mês de março eram também recados da natureza,
que sinalizam sua destruição e a morte em nome do progresso. As gran-
des obras do homem branco no mundo.

6/ Versos da canção “Real periferia”, do grupo de rap RZO. Disponível em: https://youtu.be/
tm7_wGQMGuE. Acesso em: 16 jun. 2023.
Voltávamos a Pirituba em um sábado à tarde quando começamos a
especular com mais força sobre aquilo que ainda não conhecíamos mas
chamávamos de segundo movimento. Um beija-flor apareceu para lem-
brar que Rosana Paulino tinha sido homenageada no ano anterior pela
escola de samba Beija-flor de Nilópolis, representando as artes visuais
em um carro alegórico com outras personalidades negras. As fantasias
da ala das baianas traziam patuás inspirados nos trabalhos artísticos de
Paulino, reconhecimento que também vinha de sua presença na Bienal
de Veneza e agora chega à Bienal de São Paulo, em que Rosana vai exibir
seus trabalhos pela primeira vez.

Na comida de santo ninguém põe a mão, ela é sagrada, meu


pai, ela é sagrada!7

Dessa vez, o dia estava ensolarado, e, apesar de ser sábado, vivemos um


almoço de domingo, em um quintal, temperado pelo cheiro da moqueca
preparada por Pai Alcides8 e embalado pelo som de pássaros, carros e do
trem que liga as zonas leste, sul e norte da cidade de São Paulo.

Só nas estações,
Quando vai parando,
Lentamente,
Começa a dizer:
Se tem gente com fome,
Dai de comer…
Se tem gente com fome,
Dai de comer…
Mas o freio de ar,
Todo autoritário,
Manda o trem calar:
Psiuuuuu...9

7/ Durante o encontro entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro, a artista entoou essa reza para
lembrar que a comida preparada para o santo é sagrada e que se realiza sempre como um ato
de partilha.

8/ Baiano vindo de Salvador, profissão cozinheiro, também trabalhador do Museu Afro Brasil
Emanoel Araújo. Tem um terreiro de candomblé, o Ilê Axé Ajagun Fifaia, em Perus, região
noroeste do município de São Paulo.
17
9/ Ver poema na íntegra em Zenir Campos Reis (org.), Poemas antológicos de Solano Trindade.
São Paulo: Nova Alexandria, 2011, p. 58.

16
Rosana Paulino e Sueli Carneiro nos convidaram para seguir com o
atrevimento de sonhar, em roda, no encontro coletivo, esgarçando as im/
possibilidades de educação como uma dança de fuga ao pé de árvores.
Um quintal cercado de plantas que alimentam, curam e, como dirá
Rosana, são “medicina”. Assim como outros espaços, se faz por e com
a presença visível ou não de seres além-de-humanes.10 Quintal que se
prepara para gestar o Instituto Rosana Paulino e, como os barracões das
escolas de samba, também é espaço de educação.
As conversas com Rosana Paulino e Sueli Carneiro, a reflexão de
Trinh T. Minh-ha sobre a representação da Outra/do Outro, o debate
sobre instituições totais mobilizado por Kapwani Kiwanga, a prática
artística de Denilson Baniwa fundamentada nos povos originários, a
imaginação radical da Sauna lésbica… Esses são alguns componentes
desse enredo do segundo movimento, que invariavelmente nos levou a
um espaço muito caro.
Tornou-se impossível não coreografar com o espaço da escola, e,
quando escolhemos a escola, nos somamos a uma luta por um direito
adquirido, que é o acesso à educação pública, gratuita, de qualidade e
que tenha a diversidade como eixo estruturante.
Assim, convidamos professoras e educadoras parceiras para compor
a publicação, valorizando a importância das relações institucionais que
mantemos, entre outras, com o Centro Paula Souza, com as diretorias de
ensino da Secretaria Estadual de Educação e com a Secretaria Municipal
de Educação, especialmente a Divisão de Ensino Fundamental e Médio, o
Núcleo de Gênero e Diversidade e o Núcleo de Educação para as Relações
Étnico-Raciais. Diante das provocações em torno da educação que
Rosana Paulino e Sueli Carneiro generosamente nos ofertaram, decidi-
mos conversar com as educadoras, entender as violências presentes e
como afetam toda a comunidade escolar. Nesse encontro, contamos tam-
bém com um trecho do livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School [Guia
lésbico para escolas católicas], de Sonora Reyes, aqui comentado pela
psicóloga e pesquisadora Geni Núñez em “Desviar para se encontrar”.
Geni toma o livro como um convite a pessoas de quaisquer orientações
sexuais para que repensem seu fazer e seu lugar no mundo.
Nosso desejo era ouvir as educadoras, e assim transmutamos suas
palavras em frases que, por fim, compuseram os cartazes lambe-lambe

10/ Seres além-de-humanes são bactérias, fungos, plantas, animais, minerais, espíritos e
ancestrais, parceires de trabalho de Daniel Lie, que podem ser visíveis ou não. A parceria entre
elus amplia as pesquisas de Lie em torno dos efeitos da migração e dos estudos queer.
presentes neste movimento. A oficina compõe um dos gestos11 da publi-
cação. Os lambe-lambes são só o começo e podem ser aplicados em mui-
tas outras escolas a que essa voz que fala e escreve pode chegar.
Sabemos que ao longo da história não foram poucos os ataques à edu-
cação pública e aos corpos que a compõem. Mulheres, pessoas negras, dis-
sidentes sexuais, pessoas com deficiência e povos indígenas encontram na
escola um espaço que, muitas vezes, reforça a vivência de uma cidadania
incompleta. Por outro lado, esses grupos se assumem como seres sociais e
históricos, e a escola precisa acompanhar esse movimento, repensando as
condições materiais e simbólicas que o espaço escolar oferece.
Aqui você também encontrará vozes que se tornaram gestos.
Criamos uma audiodescrição poética, com a Mais Diferenças.12 Partimos
do encontro entre duas mulheres e artistas que, apesar das distâncias
territoriais e temporais, tiveram a vida atravessada por violências histó-
ricas e dialogam por meio de suas poéticas. Imaginamos o encontro de
Aurora Cursino dos Santos com Ceija Stojka, pensando em compartilhar
o resultado com pessoas videntes e não videntes.
Outro encontro foi registrado nas películas da cineasta Sarah
Maldoror (1929-2020), ao visitar o ateliê de seu amigo, o artista cubano
Wifredo Lam (1902-1982). Incluímos uma sequência de fotogramas do
filme Wifredo Lam com reproduções dos desenhos do artista para o livro
Fata Morgana e convidamos a crítica e curadora de cinema Kênia Freitas
para um exercício de fabulação em torno desse encontro.


E mais pessoas, também com trajetórias diversas e nascidas de diferen-
tes diásporas, chegarão para coreografar o im/possível com base no dis-

11/ Os gestos se exprimem mediante ações poéticas/pedagógicas que convidam os públicos a


ativar o livro por meio de reflexões, expressões e experiências nas possibilidades de escri-
tas, reescritas, rasuras, oralidades e imaginações radicais. Para mais informações, acessar:
“Correspondências entre vozes, uma carta para abrir conversas”. Disponível em: https://35.
bienal.org.br/correspondencias-entre-vozes-uma-carta-para-abrir-conversas/. Acesso em: 16
jun. 2023.

12/ A Fundação Bienal conta com a consultoria da Mais Diferenças na concepção e imple-
mentação do projeto de acessibilidade e inclusão na 35ª Bienal. Agradecemos especialmente
Carla Mauch e Ana Rosa Bordin Rabello pelo entusiasmo e pela ideia de experimentar uma
audiodescrição poética na publicação educativa. A Mais Diferenças é uma organização que
19 assessora, pesquisa e compartilha conhecimento, práticas e materiais relacionados à educação
e à cultura inclusivas, tendo como princípios básicos a acessibilidade e a garantia dos direitos
das pessoas com deficiência.

18
senso, para viver o inesperado do que virá a ser a 35ª Bienal,13 compondo
a equipe de mediação. Tomando a encruzilhada como metodologia, nosso
desejo é que as educadoras tensionem modos diversos do fazer poético/
pedagógico e que, na dança com mais de uma episteme, surjam gestos
que ainda desconhecemos.
Eu sou…, já fui… e, ainda, estou sendo… De nascedouros possíveis,
atravessando o rosa-azul, imaginando se existisse uma Sauna lésbica,
incluo um novo aceno, desejando um até logo. Desfruto do imprevisí-
vel do que se dará nestas páginas, vislumbrando encontros na expo-
sição para assim sonhar, compor um novo enredo e voltar a brincar
nos terreiros.14

Da equipe de Educação da Fundação Bienal, formada hoje por:


André Leitão, Bruna de Jesus, Danilo Pera, Diana de Abreu
Dobránszky, Giovanna Endrigo, Regiane Ishii, Renato Lopes,
Simone Lira, Tailicie Nascimento e Thiago Gil Virava.

13/ A ser realizada de 6 de setembro a 10 de dezembro de 2023, no Pavilhão da Bienal, no


Parque Ibirapuera, São Paulo.

14/ Em 2024, a itinerância da 35ª Bienal − coreografias do impossível chegará a territórios que
ainda desconhecemos, na boa companhia do terceiro movimento da publicação educativa.
quais movimentos
compõem
as
coreografias
do impossível?

diane lima,
grada kilomba,
hélio menezes e
manuel borja-villel
Para a 35ª edição da Bienal de São Paulo, as de apresentar uma ideia acerca dessas
publicações educativas estão sendo rea- metodologias, reforça como essa ideia foi
lizadas de modo processual, por meio de criada e enunciada a partir de um encontro
edições que se complementam e se revelam proposto coletivamente com a pensadora
ao longo da construção das coreografias do Sueli Carneiro e a equipe de Educação da
impossível. Nossa proposta é que este con- Fundação Bienal, em uma tarde de sábado.
junto de movimentos – modo como deno- Em meio aos desenhos de Paulino, reple-
minamos os volumes que compõem a série tos de mulheres búfalas, jatobás e imagens
– seja um convite e um chamado à ação, em de seu livro ¿História natural? (2016), apren-
que as práticas artísticas se tornam funda- demos que é possível pensar um “conhe-
mentais na construção de conhecimentos cimento que coloque o sujeito dentro da
que se baseiam em troca, compartilha- natureza e não acima dela”.2
mento, experimentação e estudo. Os espaços espirais, nos quais a natu-
Com a chegada deste segundo movi- reza e a ancestralidade são protagonistas,
mento, a noção espiralar que fundamenta são também os caminhos que Daniel Lie
o projeto da 35ª Bienal transborda o pen- escolhe para questionar o “cistema” hege-
samento teórico e constrói, na prática, as mônico heteronormativo e a “ótica a partir
nossas metodologias. São ferramentas que da qual a humanidade é hierarquicamente
não somente nos ajudaram a criar narrativas entendida como o centro” 3. Através da ins-
para a exposição, mas, também, nos leva- talação Outres, na qual seres não humanos
ram a repensar as formas de produção e de e mais-que-humanos habitam e deslocam a
transmissão dos conhecimentos produzidos centralidade humana, Lie questiona: “Como
até agora. pensar agência, como pensar direitos, como
Essa aprendizagem se reflete no títu- pensar essa outra perspectiva de seres além
lo-pensamento da artista Rosana Paulino, de humanes enquanto seres humanos ainda
que diz meu modo de pensar é um pensar não têm, totalmente, direitos humanos?” 4
coletivo / antes de estar em mim já esteve Esse modo categórico, determinista e
nelas.1 Nessa reflexão, a artista, para além binário que a linearidade do tempo ociden-
tal e o pensamento moderno impõem entre
a razão e o sentir, humanidade e natureza,
1/ Composição de frases de Rosana Paulino registradas em
visita da equipe de Educação da Fundação Bienal de São
corpo e mente, também está em suspenso
Paulo ao ateliê da artista, em 10 de março de 2023. na escrita da pensadora e psicóloga gua-
rani Geni Núñez, que expande os debates

2/ Ibid.

3/ Transcrição de trechos da entrevista de Daniel Lie conce-


dida à equipe de Educação, realizada no Pavilhão da Bienal
em 14 de março de 2023. Ver p. 55 deste volume.

4/ Ibid.
acerca de um ideal normativo de gênero e que a obra, por sua capacidade disruptiva,
de sexualidade. arrisca, tensiona e subverte.
Foi a partir do diálogo com o livro Essas iniciativas que se somam a mui-
The Lesbiana's Guide to Catholic School, da tas outras, como a oficina de lambe-lambe
escritora Sonora Reyes − romance que narra realizada com professores e educadores,
a história de uma garota mexicana queer de e que deu voz ao cartaz sim LGBTQIAP+ ·
dezesseis anos e as descobertas sobre sua na escola · em todo lugar. Esse gesto reapro-
sexualidade em uma escola católica −, que ximou a equipe de Educação da Bienal do
Núñez aceitou o desafio de escrever um Núcleo de Gênero e Diversidade da Secre-
texto5 que abordasse criticamente como a taria Municipal de Educação de São Paulo,
naturalização das diferenças entre os sexos, com o intuito de pensar ações que ampliem
baseadas em uma definição biológica, faz da os modos de abordar gênero e sexualidade
heterossexualidade, supostamente, a única nas escolas. Ações que têm como objetivo
e legítima forma de amar e se relacionar. Um evitar reações semelhantes às que descreve
“normal” que causa impacto na vida profis- Geni Núñez, quando nas primeiras linhas
sional, nas escolhas pessoais, nos compor- do seu texto exclama: “Como queria ter lido
tamentos cotidianos e na saúde mental de isso antes!” 7
jovens e adultos LGBTQIAP+ no ambiente Considerando que a violência é fun-
escolar. Como questiona Paulino: “Será dante na construção daquilo que acredita-
mesmo a ciência a luz da verdade”? 6 mos ser o “diferente”, a artista, cineasta e
Esse tensionamento aparece em Sauna pesquisadora Trinh T. Minh-ha problematiza
lésbica, projeto que integra a lista de parti- o modo como representamos esse “outro” no
cipantes da 35ª Bienal, ao propor um exer- cinema e no audiovisual. No texto “De fora
cício de imaginação radical que pergunta: para dentro, de dentro para fora”,8 a autora
“Imagine se existisse uma sauna lésbica?" apresenta diferentes perspectivas sobre o
Por meio dessa interrogação, a Sauna nos que significa “colocar-se na pele do outro”,
estimula a romper com os estereótipos e mostrando como a diferença “representa um
com aquilo que poderíamos imaginar − mas problema, senão uma ameaça, em termos
de classificação e de controle”.9 Esses siste-
mas de regulação encontram ressonância na
5/ Ver p. 38-47 deste volume.
obra pink-blue [rosa-azul] (2017), da artista
6/ Ver p. 29 deste volume. Kapwani Kiwanga, em que as luzes rosa e
azul transcendem seus significados norma-
tivos e escondem sofisticadas tecnologias
de vigilância.

7/ Ver p. 39 deste volume.


23 8/ Ver p. 58-71 deste volume.

9/ Ver p. 66 deste volume.

22
A importância de pensarmos os direi- França, Argélia, Angola e tantos outros luga-
tos dos povos indígenas é destaque nos res por se reimaginar e libertar”.12 Mediante
“dispositivos artísticos pensando a educação uma “fabulação crítica”,13 Freitas nos ajuda a
como coletividade”, criados por Denilson aprofundar como se daria o encontro entre
Baniwa.10 Em sua ação, o artista disponibiliza o cinema e as artes visuais, bem como entre
QR codes inspirados em grafismos indíge- “sonhos e lutas de descolonização como
nas que nos levam a informações relaciona- beleza e ação”.
das a seu projeto para a 35ª Bienal. Assim Com base nesse amplo trabalho de
como esse trabalho pode ser encontrado na pesquisa realizado com o Educativo, dos
plataforma on-line movimentos, também é intensos debates feitos a partir dos textos,
possível acessar a audiodescrição poética, das prazerosas mas também desafiadoras
realizada em colaboração com a Mais Dife- sessões de criação e dos enfrentamentos
renças, na qual apresentamos, para videntes que foram necessários para sustentar aquilo
e não videntes, as obras de Aurora Cursino em que acreditamos, fica nosso agrade-
e de Ceija Stojka. Essas são pintoras que, cimento às autoras, artistas e pensadoras
apesar de terem vivido em épocas distintas, que aceitaram o desafio de atualizar, reler,
encontraram na expressão artística modos traduzir ou desenvolver os pensamentos e
de “retirar do silêncio o relato do horror”, diálogos inéditos reunidos nesta publicação.
combinando “memória e imaginação em A gente se despede com a força do
imagens e palavras”.11 que ficou das paredes da memória da con-
Olhando para os trânsitos afro-atlânti- versa entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro,
cos, convidamos a pesquisadora e curadora quando esta última, antes de partir, deixou
Kênia Freitas para refletir a respeito de outro as pistas para o nosso próximo movimento:
encontro. Dessa vez, entre os artistas Sarah “nós não temos um drama, temos uma luta!”
Maldoror e Wifredo Lam, “uma aliança for-
jada há mais de três décadas entre utopias 12/ Ver p. 76-83 deste volume.
surrealistas e revolucionárias de toda parte e
13/ Referência ao conceito amplamente elaborado pela pen-
de lugar nenhum − Guadalupe, Cuba, China, sadora Saidiya Hartman.

10/ Ver p. 72-75 deste volume.

11/ Ver p. 86-89 deste volume.


nós
não temos
um drama,

temos
uma luta
para
tocar:

conversa
entre
rosana
paulino
e
sueli
carneiro
rosana paulino
Paraíso tropical, 2017
Impressão digital sobre papel, linoleogravura,
ponta seca e colagem
48 × 33 cm
Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo
O texto a seguir foi elaborado a partir de recor- colocada pelos pensadores. Grandes filósofos
tes da conversa que a equipe de Educação e o colocaram dúvidas a esse respeito, inclusive
coletivo curatorial da 35ª Bienal acompanharam se nós tínhamos alma, não é? Mas, ao mesmo
entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro, ao lado tempo, eu tenho uma inquietação: de quanto
das ervas de axé e debaixo da romãzeira citadas precisamos da legitimação desses pensadores?
pela artista. Ali, nos alimentamos das reflexões Isso é uma dúvida, coloco como um problema.
partilhadas, e também da deliciosa moqueca de Ah, está bem. Tem que ocupar o espaço, tem
Pai Alcides. que estar presente aqui, tem que buscar reco-
nhecimento lá e, sobretudo, nas instâncias
rosana paulino Estar aqui, num território que nos negam esse reconhecimento. Agora,
diferente, estar aqui neste terreiro. Quando eu será que é só disso que precisamos? Será que
falo que não vou só fazer um texto, não vou só esse é o único horizonte utópico possível para
falar na Bienal, tem que vir para cá, ter o barulho alcançarmos a legitimação no universo das
do trem passando, ter esse jardim de vó que está instituições brancas? Se essas instituições
cheio de plantas de axé. Essas são outras formas foram tão perversas, se foram tão deletérias,
de se aproximar do mundo, são outras formas será que somos capazes de transformá-las a
de conhecimento. ponto de que, dentro delas, possamos real-
Trazer as pessoas para cá, em vez de só mente restituir tudo o que nos foi tirado?
escrever um texto. É importante estarmos O que nos foi tirado de dignidade humana,
aqui. E você, Sueli, fala no seu livro1 das outras excelência humana? Gosto muito da ideia de
formas de conhecimento, de outras epistemo- que, para além disso, é preciso encontrar as
logias, de apagamentos epistemológicos. nossas próprias formas de legitimação. Eu
acho que os povos que foram oprimidos na
sueli carneiro É, eu falo muito dos saberes dimensão que nós fomos têm a obrigação de se
sepultados, da negação da nossa condição pensarem como novos agentes civilizatórios.
de sujeito cognoscente, da negação da nossa Isso significa ir muito além dessa civilização
condição de sujeito cognitivo. Há uma dúvida sob a qual estamos todos submetidos. Muito
metafísica sobre nossa educabilidade, que foi além do que ela nos ofereceu como possibili-
dade para o humano, e não apenas o que foi
feito conosco. Mesmo a classe hegemônica
1/ Sueli Carneiro, Dispositivo de racialidade. Rio de Janeiro:
tem muitas razões para estar insatisfeita se
Zahar, 2023. fizer uma reflexão séria sobre o que resultou
desse processo civilizatório. Que mundo é
esse? Sobretudo o mundo que nós herdamos,
que o colonialismo produziu, que é o mundo
no qual estamos, hoje. Nós, povos que fomos
destituídos – pretos, indígenas e outros grupos
–, mas que somos portadores de outras visões
27 de mundo, de outros valores e outros princí-
pios, talvez tenhamos como responsabilidade

26
ainda maior produzir aquilo que o [geógrafo] grupo humano sofreu, que foi o que nós pas-
Milton Santos [1926-2001] chamava de univer- samos. Nenhum outro grupo humano passou
salidade empírica,2 forjada pelo intercurso de por algo tão brutal como o que aconteceu com
todas as possibilidades culturais que a huma- o tráfico transatlântico, com a escravização de
nidade produziu. tantos milhões de africanos e de seus descen-
dentes. Nós pulamos uma fogueira que nin-
rosana Mas como a gente faz isso? Como a guém pulou. E, para chegar aqui e ainda existir,
gente coloca essas novas visões? tivemos que desenvolver diferentes táticas,
múltiplas táticas, da confrontação direta a
sueli Primeiro precisa sonhar, não é? Como eu uma série de outras possibilidades de suposta
sou bem mais velha que você, eu sempre digo, aceitação, de tergiversação. Foram múltiplas
eu sou daquela geração que disse: “Sejamos táticas, os historiadores são prenhes em nos
realistas, queiramos o impossível!” Então, pri- fornecer essas diferentes modalidades de resis-
meiro precisa sonhar. tência que nós desenvolvemos. E eu acho que,
agora, quando temos essa massa crítica que
rosana Isso é maravilhoso, primeiro precisa você menciona… quando você chegou, anos
sonhar, e então tem as estratégias também, não atrás, não havia, mas hoje temos artistas como
é? Como é que a gente faz? Entra por dentro e essas pessoas, esses negros todos que estão
tenta esse posto de poder, tenta modificar dali, nesses novos circuitos em que não estávamos,
come pelas beiradas…? e temos que cobrar deles. “Tá bom, está bonito,
legal, mas e então?” Por isso eu quero que a
sueli São várias as estratégias. A nossa gente senhora fale desse espaço, do Instituto Rosana
teve táticas de todo tipo para chegar até aqui, Paulino. Quando eu falo em “espaços de legiti-
depois da mais brutal experiência que um mação”, é disso que eu estou falando.

rosana A ideia é daqui a dois anos estar com


2/ Universalidade empírica é um conceito desenvolvido por
Milton Santos que parte de categorias de análise territoriais, o espaço, que é o Instituto Rosana Paulino, e a
valorizando assim a racionalidade produzida e observada biblioteca vai ser o coração desse lugar. Isso é
nos próprios territórios. O objetivo é promover o avanço de
técnicas contrárias às encontradas nos sistemas de valores porque nós temos que pensar novas imagens,
totalizadores impostos pela cosmovisão europeia. Para saber o Brasil tem que ter acesso ao que é produzido
mais, ver o livro de Milton Santos Por uma outra globalização:
Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro:
pela diáspora, porque hoje nós não temos, as
Record, 2001. [N.E.] coisas não entram aqui.
Uma coisa que eu não tinha falado pra
você ainda é sobre o café com os professores,
trazer professores de escolas públicas, uma vez
por mês, pra tomar um café no Instituto, e que
esse seja de fato um local de trabalho de arte.
Esse é um dos sonhos, e colocar essa biblioteca
aberta para jovens pesquisadores, professores,
jovens que são servidos pela linha do trem.
É um local muito legal porque é estratégico, a era um projeto muito interessante, porque era
todo momento a gente escuta o trem passando, gente de todo o mundo, de áreas diferentes,
tem esse eixo das estações Francisco Morato, pensando ao mesmo tempo. Fiquei um mês
Perus, mas também é fácil para o pessoal da lá, tinha matemáticos, antropólogos, artistas
zona leste, que desce na estação Barra Funda. visuais, cineastas, pensando como a educação
A ideia é ter um instituto construído neste pode colaborar com a arte. Eu estava em um
local. Esta casa que está aqui, a gente vai botar prédio que não era o prédio central e eu tinha
abaixo, mas manter o jardim, e a parte de trás que atravessar um jardim, uns dez minutos
fica também. andando. Era um jardim italiano, e eu tinha
que passar por ele todo santo dia. Aquilo foi me
sueli Que é medicina! dando um desespero tão grande, que nem eu
sabia o que estava acontecendo; eu tinha que
rosana Exatamente, isso é medicina, é cura- passar pelo jardim e começava a me sentir mal,
tivo em todos os sentidos. É curativo para a a me sentir fisicamente mal, a ficar desespe-
alma, é curativo porque me conecta com a rada. Até que um dia eu acordei e pensei: “Eu
minha ancestralidade pelo jardim. E aqui atrás, estou sentindo falta de mato, eu estou sentindo
manter as árvores, porque o meio ambiente é falta da Mata Atlântica, eu estou sentindo falta
necessário, e eu acho que os povos de matriz de um espaço de natureza que não seja tão
africana, indígenas, ribeirinhos, quilombolas organizado e que não tenha essa arrogância”.
têm um conhecimento e a chave para a gente Porque, por mais bonito que fosse o local − e
sair desse caminho da extinção. era lindo −, era um jardim renascentista, era
aquela ideia de domar a natureza. E nisso eu
“A natureza é a medida de todas as coisas.” me percebi. Acho que foi uma experiência
— Rosana Paulino muito forte, eu percebi como realmente ser
uma pessoa negra vai muito além; essa relação
rosana Tem uma história engraçada que eu com as plantas, essa relação em que você não
vou contar para vocês. Eu fui para o Bellagio se coloca acima da natureza é que estava me
Center, da Fundação Rockefeller, na Itália. pegando. Então isso modificou todo o meu tra-
Do meu quarto eu via as montanhas; de um balho. Lá no Bellagio eu fiz uma série, Paraíso
lado, os Alpes italianos e, do outro, os Alpes tropical (2017) [p. 25]. Então, voltei para o
suíços. Só que meu quarto ficava um pouco Brasil e fiz aquele álbum que eu mostrei,3 e
afastado, um local onde havia três palácios, assim começou a mudar a direção do meu
trabalho. Percebi que essa afrodescendência ia
muito além de questões políticas, da cor da pele,
mas era a maneira como eu me colocava dentro

3/ Referência à primeira visita da equipe de Educação da


29 Bienal ao ateliê de Rosana Paulino, no dia 10 de março de
2023, quando a artista mostrou e comentou diversos traba-
lhos, entre eles o álbum ¿História natural? (2016).

28
da natureza também. Então entrou em choque – como algo primitivo. Vou discutir se a ciência é
uma coisa que eu estava comentando outro dia a luz da verdade. E com perguntas, sempre: “A
no ateliê – essa ideia europeia de que o homem ciência é a luz da verdade?” Porque a ciência
é a medida de todas as coisas. A natureza é a nos classifica como primitivos. A nossa relação
medida de todas as coisas para quem vem do com a natureza é diferente, mas de maneira
grupo do qual eu venho. Você não vai tirar do nenhuma é primitiva. E é isso que pode sal-
alecrim ou da espada-de–são-jorge uma folha var, inclusive, o mundo; cada vez mais fui me
sem pedir autorização. Isso me pegou muito. dando conta disso, de que essa arrogância, esse
Então, quando eu vou pensar o ateliê e o outro modo de lidar com a natureza, colocou
instituto, por menor que seja, isso [a natureza, a gente na beira do abismo. E, agora, quem vai
as árvores] vai ficar aqui. Lógico que vamos nos tirar dali? Isso vai proporcionando outras
trocar algumas plantas, atrás vamos mexer por- dimensões também, quando olho o feminino
que tem terreno, mas, se eu não tiver também negro e vou pensando como esse dito univer-
esse espacinho, não tem sentido para mim. Eu sal, que a psicologia coloca, não nos cabe. Não
mudo, deixo de ser quem sou, muda a minha cabe em mulheres que têm um arquétipo como
relação com o mundo, não é? o meu, que sou filha de Ogum com Iansã, não
tem como. Nenhum arquétipo da psicologia
sueli Muito lindo, obrigada por compartilhar tradicional que conhecemos vai dar conta de
isso conosco. Muito legal! uma mulher filha de Ogum com Iansã, sol em
áries e lua em leão!
rosana Eu que agradeço a escuta, para mim Então vou procurar outras maneiras de me
foi muito potente, mudou o meu trabalho; colocar do ponto de vista da psicologia. Assim,
então passam a aparecer nele os elemen- nascem, primeiro, as mulheres árvores, como
tos da natureza, com muita força. Eu olhava a Senhora das plantas [2019]; do fato de eu ser
aquilo e pensava: “Eu quero mato, eu quero obviamente filha de Ogum com Iansã nascem
Mata Atlântica!” Começa nesse ponto o olhar as Búfalas [2019]. As Búfalas são muito ado-
atento de ser tão parte da natureza, de estar lescentes, muito desafiadoras, eu diria que a
tão embrenhada ali, que é outra maneira de Senhora das plantas é a mulher lá dos seus 50
pensar o mundo. Primeiro, vou trabalhar essa anos... E aqui no parque onde eu caminho, o
dimensão da ciência e da planta, essa arrogân- Parque do Jaraguá, tem um jatobá com quase
cia da ciência que classifica, que nos classifica, 500 anos. Ele tinha uma plaquinha muito
que classifica nossa interação com a natureza antiga que dizia: “Este Jatobá tem cerca de 450
anos”. Mas essa placa devia ser da década de
1990. E as Jatobás me lembraram as grandes
Iabás, as grandes senhoras, donas do conhe-
cimento, que mantiveram as comunidades
negras unidas.
As primeiras mulheres árvores que nas-
ceram foram as Jatobás [2019]. Depois delas,
eu gosto muito da ideia do mangue, onde tem
aquelas raízes aéreas que vão se interconec- mundo, inclusive usando a tecnologia que
tando, então eu pensei em continuar essa pes- temos. Por exemplo, atrás de você há umas
quisa das mulheres árvores, que são as mais folhas de tapete-de-oxalá. É preciso descon-
antigas, que são as grandes senhoras, com esse dicionar esse olhar que só se direciona para a
elemento de interligação, porque essas raízes lousa, que só vai ali para a frente, que só vai
do mangue vão todas se entrecruzando, vão para aquela pessoa que dá as informações.
se interligando. E o mangue é um local muito Eu consigo montar uma aula grande a partir
importante porque é berçário, é um local de de uma folha e pergunto: “Que folha é essa?”
vida e de morte; tudo começa ali, tudo termina Pego esses aplicativos de reconhecimento de
ali. O mangue tem uma dimensão cósmica planta, vou lá, fotografo. “Que planta é essa,
muito bonita. Então eu pensei: quero levar para que ela serve, ela tem alguma utilidade
essa experiência das mulheres árvores para o além do jardim?” “Se ela é tão conhecida, se
mangue. Já faz um tempo que estou viajando ela é boa para o estômago também... se ela tem
para o mangue, faz mais de dois anos que eu um princípio químico, que princípio é esse?
estou perseguindo o mangue, e essa dimensão Por que ela entra na digestão, como é que ela
de vida e de morte, para mim, é a sabedoria entra na digestão? Tradicionalmente, para que
que existe nesse espaço tão especial represen- essa planta é usada? Quem utiliza essa planta,
tado por essas raízes que vão se interligando. que povos fazem isso?” “Se usar para banho de
É como se essas mulheres, mães, as grandes Oxalá, é tapete-de-oxalá o nome dela; se usar
Iabás, fossem essas raízes que vão interligando para orixá, como é essa representação? Como
as vivências negras. é essa história?” Tudo isso apenas a partir de
uma folha! É descondicionar esse olhar que
“Eu consigo montar uma aula grande a só recebe. Descondicionar esse olhar e voltar
partir de uma folha.” a deixar as crianças fazerem as perguntas; é
— Rosana Paulino uma das principais virtudes do ser humano,
fazer perguntas. E, na escola, colocam um
rosana Quando falo que a escola está produ- sentadinho atrás do outro, e ai de quem sair
zindo natimortos, é porque estamos à beira dali e perguntar uma coisa que não está lá! A
de um desastre climático. E quando falo que gente tem que trazer de volta essa capacidade
temos que nos sentar novamente debaixo de olhar, essa capacidade de fazer perguntas.
da árvore, isso não é uma coisa romântica, Nada melhor que sentar debaixo da árvore e
é uma maneira de nos apropriarmos do ficar ali.

sueli Eu não tenho muito o que acrescentar


em relação ao que a Rosana já colocou, mas
acho que tem um contexto e uma realidade
que estão além do que estamos discutindo.
Vivemos num país que forma pessoas que
31 têm nível de graduação, de pós-graduação,
que têm canudo, mas são analfabetas políti-

30
rosana paulino
Da série Jatobá, 2019
Aquarela, grafite sobre tela
65 × 50 cm
Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo
Foto: Isabella Matheus
cas, são reacionárias, são conservadoras, são que permita que sujeitos críticos se desen-
totalmente descompromissadas em relação a volvam, que possibilite que cidadãos sejam
este país. Os maiores índices de escolaridade formados, e que tenham respeito pelos valores
são das pessoas que apoiaram os últimos básicos da democracia, do Estado Democrático
quatro anos [2019-2022] que nós vivemos, que de Direito. Pois o que assistimos é exatamente
é chamada a elite educada, a elite letrada do o contrário disso. Há menos de uma semana,
país, que sustentou um governo genocida, um aquilo que estava circunscrito à experiência
governo excludente, um governo negacionista, do norte, nos Estados Unidos, parece que vai
um governo anticiência. Temos que pensar começar a proliferar por aqui também, essa
nisso. A escola está produzindo esse tipo de coisa da violência da escola.5 O supremacismo
coisa. Sempre haverá um professor heroico, é uma ideologia que prospera na sociedade
uma professora heroica, sempre existiram e brasileira; num país de maioria negra existe
sempre existirão os heroicos na educação, mas, um supremacismo que se espraia aqui; está
no grande contexto, a ambiência escolar tem tudo junto com a educação. Então, acho que
sido essa. Hoje a educação está controlada por tem um pano de fundo nesse contexto que
forças ideológicas e políticas que são contrárias precisa da nossa atenção, e talvez precisemos
à emancipação das mulheres, que demonizam de recursos outros para podermos fazer o
nossas culturas, nossas manifestações cultu- enfrentamento, a disputa de corações e men-
rais. É dessa escola que estamos falando tam- tes para valores progressistas, republicanos. A
bém. Seja ela escola pública, seja ela escola de pandemia foi a pá de cal sobre essa situação e
elite, o Brasil está péssimo naquele indicador assim se projeta uma década de esforço sério e
que avalia o desempenho dos alunos das clas- responsável para poder dar conta do prejuízo
ses superiores,4 ou seja, é ruim para todos isso. que foram esses últimos anos.
Então, é dessa educação que estamos falando, Eu venho da escola pública, acho que nós
uma educação que não cria para a cidadania, pertencemos às últimas gerações de escola
muito ao contrário, é nesse contexto que a pública de qualidade, que permitiu que pes-
gente luta. Assim, a pergunta última é: “De qual soas como nós nos tornássemos quem somos.
educação este país precisa?” Que seja crítica, Mas essa escola não existe mais, com tudo que
ela nos ofereceu de possibilidade para desen-
volver uma visão crítica da sociedade, ter bons
4/ ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes).
professores, poder acessar uma literatura de
[N.E.] muito valor e que você pudesse também pro-
blematizar, exercitar sua inquietação diante do
mundo, perguntando, questionando, problema-
tizando. Pelo que tenho ouvido, essa escola não
existe, ela não está aí. Então a escola que está

33 5/ Sueli refere-se ao episódio ocorrido na Escola Estadual


Thomazia Montoro, Vila Sônia, São Paulo, SP, em 27 de março
de 2023. [N.E.]

32
aí não está formando Rosanas Paulino a todo de projeto que temos para oferecer a este país.
momento, não está, não. Por mais importante E acho que isso só se faz com organização, não
que seja a educação, é sim, mas desde que não se constrói isso sozinho, mas com instituições.
seja essa que está formando essas pessoas que Por isso, além de criar a minha, eu participo da
são os letrados da sociedade que fazem esco- criação de inúmeras outras, então, tenho uma
lhas anticidadãs, escolhas reacionárias, esco- absoluta crença nessa ideia.
lhas conservadoras, que penalizam a maior
parte da população deste país. rosana Somos duas! Já vai ajudar a criar
Na primeira viagem que eu fiz aos Estados aqui também.
Unidos, percorri o circuito black. Escolhi visitar
um conjunto de organizações e assim fiz, na sueli Pode contar comigo, sou boa nisso!
costa leste, na costa oeste. Tudo o que eu pude
conhecer de organizações e instituições negras, “Há muitas formas de educar.”
eu visitei. E voltei de lá com uma convicção: — Sueli Carneiro
de que um dos principais desafios que nós
temos − estou falando de movimento social sueli E não é só a escola que educa hoje. Eu
− é construir organizações que sejam sólidas, tenho essa oportunidade também, de cons-
perenes. Não havia naquela época − isso há truir – inclusive currículos que nos interessem
cerca de trinta anos − uma organização negra − utilizando ferramentas de que dispomos.
que tivesse conseguido sobreviver na socie- Tem uma experiência que estou acompa-
dade por mais de cinquenta anos no Brasil. nhando de fora, embora eu esteja diretamente
Então, acho que esse é um desafio que temos: implicada nela. É uma experiência que a Casa
construir organizações sólidas para nossa Sueli Carneiro está realizando. O nome dessa
gente, que tenham como missão institucio- instituição é Sueli Carneiro, mas não sou da
nal alavancar o processo de desenvolvimento direção, não sou do Conselho, tem meu nome
da nossa gente. O desenvolvimento político, e eu doei meu acervo pessoal para a casa. Ela
o desenvolvimento educacional, ideológico, realiza periodicamente cursos de formação.
em todas as dimensões. Precisamos ter essas Esse último curso6 que está sendo oferecido
organizações como referência, organizações tem quatro professores: Edson Cardoso, de
que também afirmem nossa identidade, que Salvador; Muniz Sodré, eu e a Conceição
nos afirmem culturalmente, que demarquem a Evaristo. É um curso on-line. A previsão era
diferença que nós queremos fazer e a diferença oferecer a 2 mil pessoas. Tivemos 15 mil
inscritos. Mas o que isso significa? É uma
demanda reprimida que temos, pessoas que
querem esse tipo de conhecimento e que não

6/ Curso on-line gratuito “Ler o Brasil”, promovido pela Casa


Sueli Carneiro de novembro de 2022 a maio de 2023. Mais
informações em: https://casasuelicarneiro.org.br/curso/ler-o-
-brasil/. [N.E.]
vão encontrar na escola, às vezes sequer na o tempo todo; a lacuna, a ausência de bibliogra-
universidade. Tem 11 mil dessas pessoas que fia negra na universidade, o movimento social
estão fixas, que estão acompanhando siste- proveu essa lacuna. Eu li Abdias [Nascimento],
maticamente o curso. Há alguma coisa nisso. eu li Lélia Gonzalez, eu li Amílcar Cabral, tudo
Eu tenho sonhado com a possibilidade de em troca-troca de livro de militante. Eu sempre
ministrar cursos de filosofia em praça pública, conto esta história: há quinze anos, chegou na
voltar para a tradição filosófica mais arcaica, minha organização, a Geledés, uma professora,
que era na res publica, o debate filosófico, levar chefe de departamento de pós-graduação em
para a ágora. Como diz uma professora [Yara uma universidade do Canadá. Ela chegou ao
Frateschi] no posfácio do meu livro Dispositivo Geledés e disse: “Vocês são a minha última
de racialidade, a filosofia ocidental nasce − chance”. Eu perguntei: “Sim?” Ela continuou:
para Sócrates e Platão − do espanto.7 Ela [Yara “[Vocês são] A última chance de eu encon-
Frateschi] afirma que a minha filosofia nasce trar um livro de Abdias Nascimento, porque
da minha perplexidade diante do absurdo que eu revirei as universidades brasileiras e não
é nossa vivência como negros, esses corpos encontrei em lugar nenhum os livros desse
submetidos a tanta violência. Essa perplexi- autor. E isso é algo absolutamente incompreen-
dade somada à indignação nos leva a pensar sível para mim, porque, para nós, ele é consi-
de um modo completamente diferente, fora da derado a maior expressão do pan-africanismo
caixinha. Uma atitude de insurgência, porque nas Américas!” Portanto, nós temos um país
é a condição para afirmar nossa dignidade que consegue operar isto: o epistemicídio!8 E
humana e contrariar tudo o que o racismo diz o epistemicídio é isto: apagar do universo da
sobre nós. universidade uma figura com a importância e a
Há muitas formas de educar. Tem uma dimensão de Abdias Nascimento.
escola, ela está lotada de problemas; nós temos
que lutar para que ela se torne a escola de que “Para que serve o racismo?”
precisamos, mas não temos de ficar esperando — Sueli Carneiro
essa escola possível acontecer para tomar-
mos providências. Há uma série de ações que
podem ser desenvolvidas. As ONGs fazem isso

7/ Dispositivo de racialidade, op. cit., 2023. [N.E.]


8/ Epistemicídio é um conceito criado pelo sociólogo Boa-
ventura de Sousa Santos para nomear o processo de apaga-
mento e de morte das epistemologias, dos modos de compre-
ender o mundo dos povos colonizados. Ou seja, é resultado
das ideologias de dominação empregadas pelo imperialismo
e pelo colonialismo a fim de manter o controle e a hegemonia
sobre os povos colonizados. Para Sueli Carneiro: “O conceito
desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos torna possível
35 apreender o processo de destruição da racionalidade, da
cultura e da civilização do Outro, que aconteceu e acontece
no Brasil”. Ibid, p. 87.

34
sueli Mas o dispositivo9 não é meramente que nós desafinamos no meio desse caminho e
negativo, ele é também produtivo. Pois produz, nossa resistência começou a nos levar a pro-
inclusive, resistência. Então, essa é uma dinâ- blematizar, a questionar, dizer que não, aquilo
mica que envolve todas as estratégias de assu- não era democracia racial, era mito. Não era
jeitamento, mas que também envolve as dinâ- democracia racial, era farsa, era falácia. Esse
micas de resistência. Porque você nunca deixa discurso foi nos empurrando para a necessi-
o dispositivo, rigorosamente nunca sai dele; a dade de reconhecer as desigualdades raciais
resistência é quase uma política de redução de e os remédios para corrigir isso. E isso cul-
danos e de criação de janelas de oportunidade mina em quê? Estamos falando de remédios: a
no contexto dessa mecânica, dessa engenharia, questão das cotas é um ponto de inflexão nesse
dessa coisa que se move se retroalimentando debate, um ponto de inflexão na medida em
e às vezes engasgando e permitindo um salto que o combinado não vale mais. E a branqui-
de qualidade. Eu disse um milhão de vezes que tude veio para cima de nós, com tudo. Alguém
a saída do mito da democracia racial produzi- se lembra do que foi o debate sobre as cotas?
ria o agravamento do conflito racial porque o Quanto nós apanhamos? Não foi fácil, foi um
mito da democracia racial tinha uma etiqueta. verdadeiro pelourinho eletrônico10 aquilo o
A primeira estratégia politicamente correta que que aconteceu. É dessa tensão que a mudança
existe no Brasil é o mito da democracia racial, surge, e ela virá mais rápido e mais consis-
porque ele conformou uma cena para este país, tente quando nós, como sujeitos políticos
que é inclusive vendida internacionalmente, coletivos, tensionarmos e pressionarmos. É o
e que tinha um princípio: enquanto todos que sempre digo, está tudo muito bem, está
funcionarem de acordo, vai dar certo. Acontece tudo muito bom, mas o movimento de direitos
civis, as conquistas, a derrubada da segregação
9/ De acordo com o pensamento de Foucault, filósofo francês
racial foram na rua, como movimento coletivo.
com o qual Sueli Carneiro dialoga para a elaboração de suas Nelson Mandela permaneceu quase trinta anos
teorias, dispositivo é um conjunto de elementos variados a
partir dos quais pode-se compreender o funcionamento de
organismos reguladores e produtores de vida, mas que nem
10/ Refere-se sobretudo ao debate anticotas após a aprovação
sempre compõem um regime de visibilidade, nem sempre
do PL 73/1999, a lei de cotas, e do PL 3.198/2000, o Estatuto da
são revelados. Por exemplo, qual a concepção de Estado
Igualdade Racial. Parte da sociedade posicionou-se contra as
para a organização do homem em meio à sociedade? Quais
leis que asseguravam vagas para estudantes negros acessarem
os mecanismos que regulam o funcionamento do Estado?
o Ensino Superior, uma das políticas de reparação aos povos
O dispositivo não possui um formato único ou normativo,
negros e escravizados no passado. Podemos compreender o
depende do contexto, do conjunto de normas e enunciados
posicionamento anticotas como um evento sintomático do
ao qual é empregado. [n.e.]
racismo, presente nas mais diversas camadas sociais. Manifes-
tos a favor e contra as cotas raciais, redigidos e divulgados em
2008, foram assinados por diversos representantes da socie-
dade civil. Em resposta ao manifesto contra as cotas raciais, os
movimentos negros articularam-se mais uma vez em defesa
delas, na época aplicadas na UNEB, na UnB, na UERJ e em fase
de expansão nas demais universidades federais e estaduais.
Os debates foram acalorados, principalmente devido à adesão
de intelectuais ao manifesto anticotas, cenário ao qual Sueli se
refere em sua fala. Ambos os manifestos podem ser lidos em
www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml.
Acesso em: 23. jun. 2023. [N.E.]
na prisão. Foi necessário criar um instrumento dispositivo11 nos oferece ou nos impõe. Se
político para dar conta daquela luta que levou seremos vitoriosos ou não, não importa, nosso
décadas. Não será o protagonismo individual único caminho é a luta contra todas as formas
que construirá a transformação. A política é de assujeitamento. Porque é essa rejeição a
uma ação que se faz no coletivo e acho que tudo o que o assujeitamento diz que garante
essa tensão, a capacidade de vitória que temos, que somos seres humanos. É a rejeição radical
depende disso, do nível de organização política a isso. Nós não temos um drama, temos uma
e da capacidade de pressão e de incidência luta para tocar; não há um drama existencial,
política. Foi assim em todo lugar, está tudo se quisermos viver, temos que lutar. Eu sempre
muito bom, temos gente na universidade, digo para os meninos pretos: a maior insurgên-
produzindo, mas a luta política é travada de cia que vocês podem realizar é se manter vivos,
outro modo, precisa de instrumento político e façam isso a qualquer preço.
de ação coletiva. Considero que esse é o desafio O que está sendo dito o tempo todo é: “Está
que temos como coletividade. bom, há uma emergência de um fenômeno, o
colonialismo institui uma coisa”; e essa coisa
Para que serve o racismo? Não quero mais fundamental é a supremacia branca. Mas
conversar aqui “Ah, porque nós não somos isso se desdobra em muitas coisas. No plano
inferiores... porque o branco disse... etc.” Esse jurídico institui sujeitos soberanos e subal-
é um sistema que foi criado para permitir uma ternos. Qual é o papel da educação nisso? É
construção de grupo racialmente privilegiado à nesse ponto que entra o epistemicídio, quando
custa da opressão de outro. É para isso que ele a educação é um instrumento de reprodução
serve, é para isso que foi feito. Qualquer outra desse saber dominante, desse saber opres-
conversa é bobagem, e minha tentativa é colo- sor, desse saber que nos exclui da dignidade
car esse debate onde ele nunca está, no âmbito humana, que nos exclui da humanidade. Ao
das relações de poder neste país. discutirmos a lei n. 10.63912 nos termos em
Penso, sobretudo, que temos a obriga- que ela foi concebida, percebemos o esforço
ção de lutar em defesa de nossa dignidade
humana, não importa se houver horizontes
ou não. Nossa obrigação é lutar; nossa digni- 11/ Nesse ponto da argumentação, Sueli Carneiro nos apre-
senta a elaboração de um dispositivo específico, o dispositivo
dade humana se afirma recusando o que esse racial. Esse conceito foi defendido em 2005 na sua tese de
doutorado, A construção do outro como não-ser como funda-
mento do ser, em que relaciona a noção de dispositivo foucaul-
tiana à questão racial, ao buscar compreender os mecanismos
que legitimam o racismo. Disponível em: https://repositorio.
usp.br/item/001465832. Acesso em: 15 jun. 2023. [N.E.]

12/ Lei que tornou obrigatório o ensino da história e da


cultura africana e afro-brasileira. Fruto de uma intensa mo-
bilização dos movimentos negros pela valorização da cultura
e da história afro-brasileira no ambiente escolar, essa lei foi
instituída no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio
37 Lula da Silva (2003-2007). Em 2008, a legislação foi alterada
(atual 11.645/08) com o intuito de abarcar os conhecimentos
dos povos indígenas. [N.E.]

36
gigantesco que alguns professores, alguns rosana paulino é artista visual,
diretores, alguns coordenadores pedagógicos pesquisadora e educadora, com
faziam para implementá-la. Uma coisa é ter- doutorado em artes visuais pela Uni-
mos o direito de conhecer a história da África, versidade de São Paulo e especialização
da cultura afro-brasileira. Mas tão importante em gravura pelo London Print Studio. Sua
quanto isso seria fazer a leitura crítica do que obra dialoga com questões sociais, étnicas e
foi a construção da civilização ocidental, do de gênero, com foco especial nas mulheres
que foi o processo colonial do ponto de vista negras da sociedade brasileira e nos vários
do conhecimento. Tudo o que foi forjado ali. tipos de violência sofridos por essa popula-
Se a celebração da nossa negritude em sala de ção devido ao racismo e ao legado duradou-
aula não caminhar paralelo a uma desautori- ro da escravidão. Entre outras exposições,
zação da antropologia kantiana,13 que afirma seu trabalho esteve na mostra principal da
que nós somos naturalmente inferiores, não 59ª Bienal de Veneza (Itália) e na 21ª Bienal
vai funcionar! Videobrasil (São Paulo, SP).
Chega, não é?
sueli carneiro é filósofa, escritora e ativista
13/ A antropologia kantiana é um conjunto de teorias do
do movimento feminista e do movimento
filósofo alemão do século 18, Immanuel Kant. De acordo negro no Brasil. Doutora em educação pela
com os seus argumentos, a antropologia deve ser apreendida Universidade de São Paulo, é cofundadora,
da observação empírica do objeto de análise. No seu livro,
Antropologia de um ponto de vista pragmático, encontramos coordenadora executiva e coordenadora
uma série de análises produzidas da observação das civili- da área de direitos humanos do Geledés –
zações humanas, algumas consideradas em sua época como
selvagens, também de acordo com as teorias iluministas que Instituto da Mulher Negra. Publicou, entre
o influenciaram. Em Dispositivo de racialidade (op. cit., 2023, outros livros, Racismo, sexismo e desigual-
p. 91), Sueli Carneiro discute a antropologia kantiana. Após
comentar as categorias racistas utilizadas pelo filósofo para dade no Brasil (Selo Negro, 2011), Escritos de
descrever civilizações ameríndias, africanas e asiáticas, ela uma vida (Letramento, 2018) e Dispositivo de
afirma: “A negação da plena humanidade do Outro, o seu
enclausuramento em categorias que lhe são estranhas, a
racialidade: A construção do outro como não
afirmação de sua incapacidade inata para o desenvolvimento ser como fundamento do ser (Zahar, 2023).
e aperfeiçoamento humano, a destituição da sua capacidade
de produzir cultura e civilização prestam-se a afirmar uma
razão racializada, que hegemoniza e naturaliza a superiori-
dade europeia. O Não Ser assim construído afirma o Ser. Ou
seja, o Ser constrói o Não Ser, subtraindo-lhe aquele conjunto
de características definidoras do Ser: autocontrole, cultura,
desenvolvimento, progresso e civilização”. [N.E.]
desviar para
se encontrar:
reflexões
com base
no livro

the lesbiana’s
guide to
catholic school

geni
núñez
Acompanhar a narrativa do livro The Lesbiana’s um irmão, Cesar, quase da sua idade. Ambos
Guide to Catholic School [Guia lésbico para vivem com a mãe nos Estados Unidos, pois o
escolas católicas], de Sonora Reyes,1 me tocou pai foi deportado para o México. É uma família
profundamente. É uma daquelas leituras que, de origem indígena mexicana, que enfrenta o
ao concluir, pensamos: “Como queria ter lido racismo em suas diferentes dimensões, na pre-
isto antes! Como teria sido incrível, quando carização financeira, no racismo institucional e
adolescente, poder ler cada uma dessas pala- na saúde mental, mas que também experiencia
vras!” Independentemente do grau de iden- o cruzamento dessas violências com outras
tificação que cada leitor(a) possa ter com as opressões, como a lesbofobia e a bifobia.
personagens, esse livro é um convite precioso a A história se inicia com a mudança de
pessoas de quaisquer orientações sexuais para escola de Yamilet e seu irmão, por ocasião de
que repensem seu fazer e seu lugar no mundo. uma bolsa que ele havia ganhado por seu exce-
Pensando em um bordado entre literatura e teo- lente desempenho escolar. Enquanto a escola
ria, buscarei compartilhar neste texto um pouco anterior era pública e precarizada, a nova
da artesania que essa obra suscitou em mim. escola é privada e católica, com uma estrutura
Peço desculpas por dar spoilers da história muito maior; os alunos, em sua maioria, são
e por fazer um resumo tão sucinto dela, uma pertencentes à elite branca da cidade. Uma das
síntese que em nada faz justiça à delicadeza primeiras impressões de Yamilet ao chegar ao
dos detalhes, à ternura de cada cena e à emo- novo colégio é justamente que ela podia contar
ção que senti ao longo de toda a narrativa. nos dedos a presença de colegas não bran-
Mas não tenho a pretensão ou a presunção de cos. Isso significava, portanto, que ela e esses
fazer um resumo do livro; o objetivo é discutir outros colegas estavam em uma posição de
alguns pontos como pistas para pensarmos hipervisibilidade, o que provocava nela des-
nossas práticas profissionais, rumo a horizon- conforto e desgaste emocional. Por outro lado,
tes mais potáveis de existência. é justamente nesse grupo de colegas não bran-
O livro conta a história de Yamilet, de sua cos que ela encontra amparo para sua existên-
família, amigos, amores, de suas angústias e cia, por meio dos vínculos que constrói com
alegrias. Ela é uma jovem de 16 anos, que tem Bo (uma menina amarela) e David (um menino
indígena Navajo), bem como com outros cole-
gas brancos antirracistas, como Amber. Nessa
1/ The Lesbiana’s Guide to Catholic School foi escrito por
Sonora Reyes, neta de imigrantes, queer, que frequentou por
escola, ela passa por uma série de situações de
anos uma escola católica. Nova York: Balzer & Bray, 2022. violência institucional por parte de algumas
professoras e colegas, que adiante retomarei.
Pouco antes de ingressar na nova escola,
Yamilet havia sofrido uma grande decepção
amorosa, e, por conta disso, sua tristeza e sua
mágoa ainda estavam latentes. Ela havia se
declarado à sua melhor amiga, Bianca, que a
rejeitara. A dor de Yamilet não era apenas em
razão da não reciprocidade do sentimento,
mas pelo modo como Bianca externara sua sensível, quando é correspondida pela amiga
negativa. Bianca a fizera se sentir inadequada, e pode, finalmente, vivenciar a alegria de sua
suja, predadora, simplesmente por ser lésbica. afetividade/sexualidade.
Diante dessa situação traumática, ao ingressar Emocionalmente mais próxima do pai,
na nova escola, Yamilet segue determinada Yamilet imaginava que a reação dele seria
a ser o mais heterossexual possível. Além muito mais acolhedora que a da mãe, que era
disso, ela teme a reação dos pais, tem medo mais rigorosa com ela e, da sua perspectiva,
de ser expulsa de casa se descobrirem sua destinava a ela menos carinho e atenção que ao
sexualidade, sobretudo porque, na sua idade irmão. Além disso, a mãe era uma cristã muito
e naquele contexto, ela não tinha condições mais fervorosa que o pai, que era um ativista
financeiras para morar sozinha e se sustentar descrente de vários pressupostos religiosos.
de maneira autônoma. Yamilet ajuda a mãe Apesar de sua expectativa, o pai não a ampara,
fazendo e vendendo artesanato e, aos pou- ao contrário, mostra-se distante, deslegitima
cos, faz uma pequena reserva para caso seja sua sexualidade associando-a a uma fase,
expulsa de casa. por fim se afastando dela. A mãe, para sua
Mesmo sendo muito próxima de Cesar, surpresa, acolhe-a e também seu irmão de
Yamilet se surpreende ao descobrir que o modo generoso e amoroso, reforçando que “se
irmão é bissexual e tem uma relação amorosa a Bíblia diz que não devo amar meus filhos,
com Jamal, e também que muitos dos con- então a Bíblia está errada”. Essa sensibili-
flitos dele na escola anterior se justificavam dade da mãe foi acentuada por uma situação
pela bifobia que ele sofria. Solidária ao irmão, extrema, de ideação suicida de Cesar, ocasião
Yamilet e Jamal simulam ser um casal, para em que ela se dá conta do quanto é importante
que a mãe não desconfie de nada. O vínculo proporcionar essa escuta e amparo aos filhos.
entre Cesar e Yamilet é muito bonito e pro-
fundo, e eles se apoiam e se fortalecem inú- o que é o armário?
meras vezes. É Cesar o grande encorajador
para que Yamilet se declare para Bo, a menina No senso comum, a noção de armário está
por quem ela se apaixona. Apesar do apoio do muito relacionada a uma ideia de encobrimento,
irmão, a todo o tempo Yamilet sofre a ansie- sobretudo quando se trata da vida sexual das
dade e a angústia por viver no armário, e só pessoas LGBT. O vocabulário em torno desse
consegue de fato se declarar para Bo muito tema costuma trazer ideias como saída e
mais tarde − um momento muito terno e entrada, dentro e fora (do armário), bem como
referências a assumir-se ou a confessar-se.
A pesquisadora de estudos de gênero
Eve Kosofsky Sedgwick (1950-2009) concei-
tua armário como uma espécie de “segredo

41

40
aberto”,2 um dispositivo de regulação da vida seriam as condições ideais para partilhar, não
das pessoas lgbt, aparato com regras contra- foi possível ter esse controle completo. Apesar
ditórias e coercitivas, que borram as fronteiras de seus receios, Hunter, o colega branco hete-
entre privacidade, escolha, público e privado. rossexual e rico, não a julgou nem a expôs. Mas
Ao contrário do que é compreendido o pai, alguém que ela amava e em quem con-
no senso comum, o armário vai muito além fiava, não reagiu desse modo. Dessa forma, per-
de uma simples divisão entre dentro e fora. cebemos que, por mais que se busque controlar
É comum que uma mesma pessoa LGBT possa e prever as situações, é sempre uma aposta,
estar fora do armário em algumas relações há sempre certo risco. Assim como Yamilet,
e não em outras; para algumas pessoas da muitas pessoas lgbt se culpam pela reação
família, talvez consiga dizer, para outras, não. violenta que porventura recebam de outrem,
Também no ambiente escolar e/ou de trabalho, como se o problema tivesse sido o momento
é possível que haja relações nas quais encontre de contar, o modo de contar, a quem contar. Na
maior ou menor encobrimento da sexualidade. verdade, assim como “o racismo é uma proble-
Mesmo alguém que, a princípio, estaria fora mática branca”,3 a lesbofobia também é uma
do armário para a maioria de seu círculo social problemática de quem é lesbofóbico.
pode novamente ser colocada em situação O dilema do armário da sexualidade só
constrangedora quanto a isso; basta mudar de se apresenta em virtude das violências de
bairro, de cidade, de escola, e é como se tivesse gênero. Não constitui uma escolha livre, uma
que iniciar do zero todo o trabalho emocional. honestidade em se assumir ou não, mas mostra
No caso de Yamilet, uma das primeiras quanto essa decisão é relacional. Como cobrar
pessoas a quem ela conta ser lésbica é o colega de alguém que nos diga algo se não produzi-
Hunter, com quem ela não tem uma relação mos minimamente um espaço de escuta? Nem
estreita de intimidade e confiança, mas, por sempre o que temos a dizer é algo fácil de ser
conta das circunstâncias, ele acaba ocupando dito, seja pelo conteúdo, seja por nosso receio
esse lugar daquele que escuta sua fala. Por mais de desagradar, entre tantos outros motivos. Por
que ela pensasse muito sobre isso, sobre quais temer a reação do outro, suas chantagens, dis-
torções, ameaças e punições, muitas pessoas
adiam ou atenuam o que têm a dizer. E nem
2/ Ver Eve Kosofsky Sedgwick, “A epistemologia do armário”, sempre é fácil se afastar; existem dependências
Cadernos Pagu, Quereres, v. 28, pp. 19-54, 2007. Disponí-
vel em: https://ieg.ufsc.br/storage/articles/October2020//
financeiras e emocionais de toda ordem. Antes
Pagu/2007(28)/Sedgwick.pdf. Acesso em: 26 maio 2023. de apenas cobrar que o outro diga a verdade,
é preciso averiguar se existe mesmo alguma
abertura para a escuta.

3/ Entrevista com Grada Kilomba, “‘O racismo é uma


problemática branca’, diz Grada Kilomba”, Carta Capital, 30
mar. 2016. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/
politica/201co-racismo-e-uma-problematica-branca201d-u-
ma-conversa-com-grada-kilomba/. Acesso em: 26 maio 2023.
Na história de Yamilet, ela temia ser empobrecidas (em geral não brancas) à prática
expulsa de casa, não ter mais o amor dos pais; dos mais diversos preconceitos.
receava também ser ainda mais perseguida Em todo caso, o tempo em que Yamilet per-
na escola. Nenhum desses receios deixa de manece no armário para a mãe, para o pai, para
ter alguma correspondência com a realidade; a colega por quem é apaixonada, é um tempo
de fato, em muitos casos, é o que acontece. de muita angústia. De maneira que não falar
Portanto, não se podem diminuir os anseios também é um processo que não se faz sem
de uma pessoa no armário, nem julgá-la pelo custos. Por vezes, até mais altos do que aqueles
tempo que precisa para tomar suas decisões, da realidade de sair do armário.
especialmente quando se trata de um jovem, Diante disso, percebemos que, contraria-
de uma adolescente, que tem com sua famí- mente ao que se pode pensar, a situação do
lia uma relação de dependência financeira armário não deve ser individualizada. Inclusive,
e emocional muito mais profunda do que mesmo que a pessoa escolha permanecer no
um adulto. armário, ela pode ser, a qualquer momento,
Por outro lado, nessa tentativa de ante- arrancada dele. Esse tipo de invasão do tempo e
cipar tudo, corremos o risco de preencher as da privacidade amedronta pessoas lgbt, rece-
palavras da outra pessoa, de pressupor que osas de dar pinta de sua sexualidade. A cena da
ela não conseguirá lidar com isso, escutar ou polêmica, da chacota, da vergonha e da humilha-
acolher, mas, em alguns casos, podemos nos ção é performada por pessoas lgbtfóbicas que,
surpreender. Ao contar para a mãe, Yamilet dessa negativação, positivam sua heterossexu-
recebe carinho e amparo, algo que ela estava alidade como “normal”, como “natural”, como
certa de que não receberia. Inclusive, essa única forma correta de existência. Por isso,
empatia e sensibilidade não estão associadas repito, o armário é uma estrutura que fortalece a
diretamente ao grau de instrução, à geração norma da heterossexualidade. Em todo esse per-
ou afins; há muitas pessoas pouco escola- curso há um desgaste emocional imenso produ-
rizadas que têm abertura para a escuta, ao zido pela lgbtfobia; afinal, algum heterossexual
passo que alguns, com formação acadêmica, pensa constantemente em como confessar que é
perpetuam as discriminações. É importante hétero? Que pessoa heterossexual tem receio de
sinalizar isso, porque alguns desses argumen- ser expulsa de casa se falar da sua heterossexua-
tos podem reforçar o racismo, que atribui a lidade? Ou de não ser mais amada pelas pessoas
pessoas brancas, ricas e escolarizadas uma mais importantes de sua vida?
evolução moral, enquanto associa pessoas Todo esse custo emocional, invisível por
vezes, faz com que crianças e jovens sejam
simbolicamente expulsos da escola. No caso
de Yamilet e Cesar, as faltas, o sono, o can-
saço, eram consequências das violências que
sofriam, ainda que, por parte da instituição,
eles fossem os “alunos-problema”. Nesse caso,
43 o que se percebe é que a instituição escolar era
o problema, era a escola que contribuía para a

42
evasão dos alunos todas as vezes que impunha por a sexualidade das pessoas lgbt
a todos uma única fé, uma única sexualidade e contra a vontade delas, ao mesmo
um modo único de estar no mundo. tempo que há uma recusa em aceitar
Quando jovens não se veem no currículo sua autoenunciação.4
de maneira positiva, quando são invisibili-
zados e sua presença só é notada de forma Quando pensamos em nossa experiência como
negativa, quando não há comprometimento, pessoas indígenas, também há algo em comum
apoio e solidariedade em relação às violên- que se repete. É frequente nos chamarem
cias que vivem, como desejar continuar nesse de “índios”, de maneira pejorativa, para nos
espaço? É impossível que uma imposição dessa envergonhar, para que seja algo risível. Mas
ordem não traga nenhum efeito − pode ser na quando dizemos: “sim, sou indígena”, contes-
forma de adoecimento, de explosão de raiva tam, dizendo que não existem mais indígenas
(como ocorre com Yamilet e Cesar), de insegu- hoje. É como se a única maneira boa de ser
rança em se posicionar, de enfraquecimento indígena ou de ser LGBT fosse não sendo indí-
de vínculos, autoestima, autoconfiança etc. gena e sendo heterossexual, um apagamento. O
Assim, o sofrimento dos jovens LGBT não deve que há em comum nessas lógicas é a imposição
ser usado como uma prova de que precisam da de um tempo, de um marco temporal que nos
cura gay, considerando que o que lhes impinge coloca sempre fora/longe de como e onde deve-
sofrimento é justamente a lgbtfobia, e é isso ríamos ser e estar.
que precisa ser elaborado, erradicado. Também por isso, quando uma pessoa
Esses sentimentos vividos pelas perso- indígena se afirma lgbt, é comum que haja um
nagens do livro, o receio de serem expostos, duplo estranhamento temporal. Se, por um lado,
organizam a polêmica em torno do armário, o racismo anti-indígena só pensa a existência de
que funciona como uma espécie de pedagogia indígenas no passado, por outro, a norma hete-
e como rossexual tenta desqualificar as dissidências
de gênero dizendo que são coisa da moda, que
um ensinamento (ameaça) público a outras são apenas uma fase passageira. Nessa ideia de
pessoas LGBT, em uma tentativa de dis- moda, o que se coloca é a tentativa de dizer que
suadi-las de serem o que são (porque não aquilo seria algo recente e, portanto, falso. Já a
basta estar escondido, você poderá ser heterossexualidade, não seria coisa da moda,
descoberto, o seguro mesmo é não ser). visto que seria atemporal, natural, verdadeira.
Assim, há um prazer específico em ex- É como se a heterossexualidade fosse o original
e as dissidências fossem as cópias. Em verdade,

4/ Geni Daniela Núñez Longhini, Mãe (nem) sempre sabe:


Existências e saberes de mulheres lésbicas, bissexuais e tran-
sexuais. Dissertação de mestrado. Florianópolis: Departa-
mento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), 2018. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/
bitstream/handle/123456789/189944/PPSI0782-D.pdf?se-
quence=-1&isAllowed=y. Acesso em: 26 maio 2023.
nossas existências indígenas e lgbt são con- ancestrais, que não queriam ser chamadas de
temporâneas e, embora alguns termos sejam mulheres, porque não eram heterossexuais:
mais recentes, a diversidade de práticas sexuais
existe desde que existem pessoas no mundo. E cometem o pecado contra a natureza,
Em nosso território, o primeiro caso de maneira que há muitas mulheres (sic)
conhecido de uma vítima dessas violências é que usam armas e seguem todos os ofícios
o de Tibira, condenado à morte no século 17 como se não fossem fêmeas. Mantêm
por cristãos colonizadores, que introduziram namoro com outras mulheres com quem
seu corpo em um canhão, exigindo até o último se dizem casadas e a maior injúria que se
momento que Tibira se arrependesse e pedisse lhes pode fazer é chamá-las de mulheres.
perdão por seus pecados. Mas aqui cabe, De tal forma que quem lhes disser algo
assim como Yamilet, nos questionarmos: por poderá correr o risco de que lhe ati-
que devemos pedir perdão por algo que não é rem flechadas.5
errado? Por que pedir desculpas e autorização
para existir à nossa maneira? Há quem diga Nossas ancestrais já entendiam que ser mar-
que Deus ama o pecador, não o pecado. Mas cada como mulher era algo muito além de uma
não há como separar nossa sexualidade e nossa descrição meramente biológica, era o anúncio
afetividade de quem somos. de um roteiro, no qual se deveria ser hete-
Para os colonizadores, nossos ancestrais rossexual, mãe, submissa ao marido, e assim
não eram considerados humanos, e por isso não por diante.
eram definidos como homens e mulheres. Só Por isso, antes de se colocar na posição de
era considerado humano quem se convertesse, quem concorda ou discorda, de quem perdoa
quem se tornasse cristão. Não fosse assim, seria ou não, de quem aceita ou repudia, é necessá-
considerado selvagem, bárbaro. Nessa inter- rio um questionamento anterior: não deverí-
pretação normativa, Deus tinha criado o homem amos ter o direito de concordar ou discordar
para a mulher, de maneira que ser homem e ser de algo que não diz respeito ao nosso próprio
mulher de verdade era ser heterossexual. Até corpo. Se a ideia que temos de homem e de
hoje observamos esse raciocínio, quando dizem mulher de verdade, do que é família, do que é
que os homossexuais são mulherzinhas e as lés- pecado, não acolhe outras existências, não são
bicas são machorras, maria joão etc. elas que devem se encaixar em nossas catego-
Em 1551, o missionário Pero Correia regis- rias, somos nós que devemos revê-las.
trou em uma carta seu incômodo com nossas Algumas pessoas dizem que são contrárias
às sexualidades não hétero porque elas não
seriam “naturais”. Para a religião dominante,
apenas o sexo reprodutivo seria válido aos
olhos de Deus, por isso até hoje o Vaticano

45
5/ “Cartas avulsas: 1550-1568", in Cartas jesuíticas II. Rio de
Janeiro: Officina Industrial Gráfica, 1931

44
proíbe o uso de preservativos, porque entende nós também somos o céu
que eles já anunciam que aquele sexo será
apenas por prazer. Assim, o principal incô- Diante de tudo isso, talvez o maior desafio
modo com práticas sexuais de pessoas lgbt seja justamente que essas lógicas de mono-
deriva do fato de acontecerem somente por cultura atuem em nome do bem, do amor, da
motivos de prazer. Há um equívoco nisso, pois salvação, da caridade. E, em nome desse amor,
pessoas lgbt também podem praticar sexo agem de maneira discriminatória. Esse é um
reprodutivo, mas é outra questão que se coloca: aprendizado muito bonito do livro em questão,
é pouca coisa praticar sexo por prazer? Por que o quanto é poderoso e nutritivo nos abrirmos
algo prazeroso é considerado não natural? a olhar e a perceber as pessoas que dizemos
Aqui tem-se um ponto central: são nossas amar, não pelo que gostaríamos que fossem,
ideologias que inspiram nossas práticas. Por mas pelo que são.
exemplo: nós, povos indígenas, não queimamos Essa é uma obra que, ao mesmo tempo
as casas de reza alheias, não consideramos os que nomeia as violências, também faz questão
deuses alheios como algo demoníaco, como de validar as resistências, as delicadezas, os
espiritualidades que devem ser destruídas. pequenos gestos (invisíveis para tantos), que
Diante disso, não constitui um esforço respei- reafirmam silenciosa mas ruidosamente nos-
tar as diversidades cosmogônicas, culturais. sas identidades.
Mas quem acredita que apenas seu deus é Eu dei início a este texto dizendo que
verdadeiro, que somente sua fé é universal e queria ter lido algo assim quando era joven-
que todos devem se submeter a ela poderá se zinha. Mas como o tempo circula e se movi-
sentir mais facilmente incomodado ao ver que menta, de alguma forma ler essa história hoje
nem todos acreditam em seus pressupostos. também consegue acolher os outros tempos
Da mesma forma, quem considera que existe que já vivi. Consegue dizer, nessa máquina do
apenas um tipo de família válido, apenas um tempo que é a memória, que está tudo bem se
tipo de sexualidade, poderá se sentir descon- apaixonar pela amiga, que não tinha nada de
fortável em observar a multiplicidade. A colo- errado sentir o coração acelerando, os olhos
nização é um sistema de monoculturas, da brilhando e o sorriso abrindo quando eu a via.
fé, dos afetos, da sexualidade. Não admite a Que tenho, que temos o direito a viver nossos
concomitância, vê a diversidade como algo a amores, nossos desencontros, do tamanho que
ser dizimado. eles são, sem o agigantamento das opressões,
sem tanto medo de errar, de decepcionar.
Como me disse uma vez o mestre
quilombola Nêgo Bispo: “tudo que é reto
mente”; não há um único caminho, nem uma
única verdade a ser seguida. Por isso, benditos
sejam os desvios que nos fazem reencontrar
com nós mesmas.
Já não quero ir pro céu nem pro inferno,
minha paixão é pela terra (que também sou).
Dizem que querem nos perdoar,
eu pergunto: de quê?
Dizem que querem nos salvar,
mas não estamos perdidos,
nunca estivemos

Quando as águas do rio me banham,


me banham de graça,
não me perdoam de nada,
não me consideram suja de pecado nenhum
O céu também é a terra,
também faz parte dela
O céu tá aqui pertinho
Ele chove em mim, em nós

Vejo daqui suas cores do dia, tarde, noite e madrugada


Quando as gotas do orvalho hidratam as folhas,
também há nelas um pouco de céu
Quando as flores e frutas crescem,
há nelas um pouco de chuva

No néctar que a borboleta toma há um pouco de nuvem


Em toda chuva,
um pouco de rio
Em todo rio,
um pouco de céu

O céu não é oposto da terra


Céu não é paraíso,
nem terra é inferno
Nem o inferno é aqui nem o paraíso é lá
Céu e terra são parte da mesma dança
que transcende tanto a salvação quanto a condenação

Não quero ir para o céu,


nós somos o céu.
geni núñez é ativista indígena
guarani, escritora e psicóloga. É
doutora pelo Programa Interdisciplinar
em Ciências Humanas da Universida-
de Federal de Santa Catarina (UFSC,
Florianópolis, SC), mestre em psicologia
social e graduada no curso de psicologia
pela mesma universidade. É co-assistente
da Comissão Guarani Yvyrupa, membro da
Articulação Brasileira de Indígenas Psi-
cólogos(as) (ABIPSI), membro do Obser-
vatório da Kuñangue Aty Guasu Guarani
Kaiowá e membro da Comissão de Direitos
Humanos (CDH) e do Conselho Federal
de Psicologia (CFP).
gesto: coreografar a palavra
– lambe-lambe
Em uma manhã no início de maio, realizamos com um grupo de
professoras e educadoras uma oficina. O encontro foi criado a partir
de uma urgência e de um desejo, a urgência de iniciar um diálogo
e uma escuta sobre a violência nas escolas e o desejo de criar um
conteúdo para o segundo movimento da publicação educativa com
as professoras. Convidamos nove participantes1 e compartilhamos
alguns textos para nortear a conversa, prévias dos conteúdos do
segundo movimento: um capítulo traduzido por nós do romance
The Lesbiana’s Guide to Catholic School [Guia lésbico para escolas
católicas], de Sonora Reyes, e trechos da deliciosa conversa que
acompanhamos entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro, duas profes-
soras que nos provocaram a refletir sobre as práticas e as respon-
sabilidades na área da educação. Apesar dos desafios, empolgadas
com o encontro, uma dinâmica acolhedora fluiu e gerou frases para
a criação de cartazes lambe-lambe:

› a escola é nascedouro
› sim LGBTQIAP+ · na escola · em todo lugar

A primeira frase foi criada em diálogo com o texto de Reyes e o con-


texto do ambiente escolar trazido pelas participantes. A segunda frase
surgiu em diálogo com a afirmação de Rosana Paulino de que “a escola
forma natimortos”, provocando nas pessoas uma resposta contrária,
combativa e inspirada na paisagem ambiental que a artista insere em
seus trabalhos. Essas educadoras coreografam mais do que palavras
ou desejos, mas questões caras a todas que compõem um potente
espaço de formação e que precisam enfrentar as violências promovidas
institucionalmente no aparato escolar. Assim, compartilhamos por QR
code o resultado da oficina para expandir as discussões e convidar mais
pessoas para a dança.

1/ As participantes presentes atuam em diferentes instituições ligadas à área da educação.


48 São elas: André de Pina Moreira, Anna Luisa de Castro, Daniela Livia da Costa Esposito, Eva
Santos, Júnior Azhura, Lucilia Guerra, Luma Nunes, Marli Virtz e Rosângela Castro de Jesus.
Com frequência, parcerias com as instituições nas quais as participantes trabalham são viabi-
lizadas, com o objetivo de construir e realizar ações de formação.

48
Trazer novos significados para o espaço

o corpo dança o tempo [...]

ser concebido pelo espaço


escolar e dar potência para que as juventu-

o tempo, em sua dinâmica


des se descubram, se expressem e cons-
truam conhecimento com protagonismo
e independência é um caminho possível.

ou na espacialidade do
– Lucília Guerra2

hiato que o corpo em


a sim em outras palavras:
escola lgbt espiralada, só pode
qiap+
voltejos ocupa.
é escola em
na

nasce-- todo
nasce
douro. lugar.
douro.
2/ Relato de Lucília Guerra, diretora do Centro de Capaci- Leia o QR code para acessar
tações do Centro Paula Souza, sobre como a oficina a fez os arquivos digitais dos lambe-
refletir sobre a violência nas escolas. lambes acima e imprimi-los e
distribuí-los como quiser.
rosana paulino
¿História natural?, 2016
Livro de artista composto por técnica mista sobre
imagens transferidas em papel e tecido, linoleogravura,
ponta seca e costura
31,5 × 42,5 × 33,5 cm
Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo
sauna lésbica
por malu avelar com ana paula mathias, anna turra,
bárbara esmenia e marta supernova

malu avelar
Sauna lésbica, 2019
Instalação no Valongo Festival
Internacional da Imagem (2019)
Foto: Marina Lima
imagine se existisse uma sauna lésbica malu avelar é artista inter-
disciplinar e pesquisadora. Desde
Em 2019, durante a residência PlusAfroT, em a infância, tem a trajetória marcada
Munique, Alemanha, Avelar divide inquie- pela dança. Após uma formação inicial
tações e um intenso esgarçar de textos com em danças hegemônicas na cidade de
outras artistas, germinando assim o desejo Belo Horizonte (MG), vai para São Paulo
por um espaço de trocas. (SP), onde integra diferentes coletivos.
Nesse mesmo ano, no Valongo Festival Sua produção é atravessada pelo corpo em
Internacional da Imagem, em Santos (SP), trânsito e por processos políticos do Brasil.
Avelar propõe a primeira edição da instala- Transmitindo espiritualidades, conflitos e
ção Sauna lésbica, como movimento cole- imaginações, Avelar rompe com discursos
tivo para a celebração de afetividades de socialmente cristalizados.
pretas, lésbicas e sapatões. Um espaço pra-
zeroso, seguro e provocativo para experien-
ciar a política, o espiritual e o profano, para
amar e acolher. Com base em conversas,
oficinas e festas, a obra é coreografada por
pessoas que a ocupam, em uma imperma-
nência proposital. Na 35ª Bienal, o projeto
inicia seu coro a partir das vozes de mais
quatro artistas, engendrando a potência do
erótico como linguagem de resistência.
Um cuíerlombo,1 Sauna lésbica se
realiza no encontro com e entre todas as im/
possibilidades de ser. Construção coletiva
que, no limite das brechas, transborda
urgências de cuidado e de cura com base em
processos imaginativos de feitura do mundo.

1/ tatiana nascimento articula o quilombismo de Beatriz


Nascimento (1942-1995) e Abdias Nascimento (1914-2011) em
seu artigo “da palavra queerlombo ao cuíerlombo da palavra”
(2018). Trata-se de um processo de construção por meio e
com base na palavra "quilombismo", fazer mítico no qual
nos reinventamos, não só apesar do silenciamento colonial,
mas contra ele. Diz respeito a reorganizar a história “a partir
de nossas próprias narrativas ancestrais, desenterradas da
memória que as histórias mal-contadas guardam, florescidas
na pungência que nossos corpos e desejos brotam de Erzulie
Dantor a Vera Verão – reorganizar nossa própria história, nos-
sa própria narrativa, nossa própria subjetividade”. “da palavra
queerlombo ao cuíerlombo da palavra”, Palavra preta!, 12 mar.
2018, p. 4. Disponível em: https://palavrapreta.wordpress.
com/2018/03/12/cuierlombismo/. Acesso em: 16 jun. 2023.
daniel lie

daniel lie
Non-Negotiable Condition [Condição inegociável], 2021
Instalação site-time specific, composta de tecido de
algodão tingido com cúrcuma, tecido de juta, lama,
sementes, vasos de cerâmica de terracota, matéria
orgânica à base de plantas, água, flores, cordas de fibra
natural, cogumelos-ostra e entidades sem nome
14 × 15 × 8 m
Vista da exposição em Metabolic Rift, Atonal Festival,
Berlim, Alemanha (2021)
Foto: Daniel Lie
Transcrição de trechos da entrevista de daniel lie vive e trabalha em
Daniel Lie concedida à equipe de Educação, Berlim, Alemanha. Em sua prática
realizada no Pavilhão da Bienal, em 14 de artística conta com a colaboração de
março de 2023. parcerias a quem elu chama “além-de-
-humanes”: bactérias, fungos, plantas,
“Para mim, a importância de trabalhar animais, minerais, forças invisíveis, ances-
em parceria, tanto com pessoas huma- trais e seres impossíveis de nomear.
nas quanto com seres além-de-humanes, Ao propor a criação de ambientes e
é entender que a gente faz parte de um temporalidades específicas em espaços
ecossistema maior, mas, principalmente, expositivos, busca possibilitar às pessoas
retirar, questionar, criticar essa hierarquia humanas, por meio de nossos canais mul-
que coloca a humanidade no topo. E todo tissensoriais, um lugar de experimentação
esse ecossistema que é essencial para nossa e de meditação.
existência acaba virando algo objetificado, Lie sugere a expansão do entendi-
secundário. Então tem uma pergunta: mento de ecossistema ao questionar o
Como se relacionar com esses seres? Como cistema hegemônico e a ótica a partir da
perceber? Como entender a comunicação/ qual a humanidade é hierarquicamente
relação e o que essa comunicação/relação entendida como sendo o centro.
me traz, o que muda? E aí, estando no Brasil, No projeto apresentado para a
onde as questões humanas são muito degra- 35ª Bienal de São Paulo, o protagonismo é
dantes, em algum momento da minha jor- além-de-humane: com o passar do tempo,
nada eu pensei: como pensar agência, como diferentes cheiros e mudanças nos aspec-
pensar direitos, como pensar essa outra tos físicos da obra se mostram presentes,
perspectiva de seres além-de-humanes estabelecendo um diálogo e uma relação
enquanto seres humanos ainda não têm, entre essas existências, os seres invisíveis
totalmente, direitos humanos? Então, acho que habitam o Parque Ibirapuera, o Pavilhão
que as coisas vão se retroalimentando.” da Bienal, e nós.
Com base nessa proposta de experiên-
◗ cia e, consequentemente, por meio de emo-
ções, de pensamentos, existências e visões
“A instalação [Outres] responde especifica- apagadas da história, é possível ter acesso a
mente ao lugar em que ela está. Os seres outros tipos de conhecimento? Desconstruir
invisíveis ao nosso olhar começam a se apro- e desaprender a normatividade, quebrando
priar dessa instalação e viver, e vão ser seres conceitos duros e binários, é o que propõe
do andar da Bienal, invisíveis, que não têm Outres (2023).
nome, que são impossíveis de nomear.”
Frase de Rosana Paulino registrada
em conversa com a equipe de Educação.
eu sou um trem
que não cabe
no ocidente.
de fora
para
dentro,

de dentro
para
fora

trinh t.
minh-ha
todas as imagens deste ensaio:
trinh t. minh-ha
Reassemblage [Remontagem], 1982
Stills de filme, 16 mm
40’
Um objetivo constantemente reivindicado Frequentemente, o conhecimento sobre algo
por quem “busca revelar uma sociedade para leva à ilusão de se ter o conhecimento
outra” é “capturar o ponto de vista do nativo”
e “compreender a visão dele acerca do mundo Há muitos anos, a antropóloga e cineasta esta-
dele”. Provocando muita discórdia, em termos dunidense Zora Neale Hurston (1891-1960)
de metodologia e de abordagem, entre especia- escreveu sobre como lhe impressionava a
listas nos campos da antropologia e do cinema ausência de curiosidade anglo-saxã acerca da
etnográfico na última década, esse objetivo é vida interna e das emoções de pessoas negras
também, de diferentes maneiras, caríssimo a e, de modo mais geral, sobre quaisquer povos
muitas e a muitos de nós que consideramos não anglo-saxões. Apesar de hoje isso ainda
nossa a missão de representar e de ser intér- persistir, há uma tendência de reafirmá-lo de
pretes fiéis de outras pessoas. A determinação outra forma, dizendo que impressiona mais
de ver as coisas da perspectiva dos nativos a reivindicação geral de “especialistas” oci-
constitui uma ideologia definida de verdade e dentais que se interessam somente por esse
autenticidade, e se encontra no centro de todas aspecto da vida do Outro, e por quase nada
as discussões polêmicas sobre “realidade” e além disso. O objetivo final agora é “desvendar
sua relação com “beleza” e “verdade”. Trazer à a percepção do eu [self] do javanês, balinês
tona a questão de representar a Outra/o Outro ou marroquino”, supostamente mediante as
é, portanto, retomar incessantemente a ques- definições que esses grupos têm de si. Às vezes,
tão fundamental entre ciência e arte, documen- parece que as coisas mudaram drasticamente,
tário e ficção, universal e pessoal, objetividade quando, na verdade, podem apenas ter assu-
e subjetividade, masculino e feminino, de-fora mido aparências opostas, como costumam
e de-dentro [outsider e insider].1 fazer, ao embaralhar as cartas e despistar as
pessoas. A mudança que parte da exterioridade
inconveniente para a interioridade intrusiva e
a corrida pelos supostos valores ocultos de uma
pessoa ou de uma cultura deram origem a
uma forma de um legitimado voyeurismo (não
reconhecido como tal) e a uma arrogância sutil
1/ Ao longo deste texto, serão utilizadas as variações pes- – ou seja, a pretensão de enxergar ou dominar a
soa-de-dentro/alguém-de-dentro/de-dentro como tradução
para insider, e pessoa-de-fora/alguém-de-fora/de-fora para
mente dos outros, cujo conhecimento, suposta-
remeter ao termo em inglês outsider. [N.T.] mente, esses outros não detêm; e a necessidade
de definir e, portanto, restringir, provendo-lhes
assim um padrão de autoavaliação do qual eles
necessariamente dependem. Conflitos psico-
lógicos, e demais elementos idiossincráticos,
tornam-se sinônimos de profundidade (palavra-
-chave para a metafísica ocidental), ao passo
61 que a experiência interna é reduzida à subjeti-
vidade, são sentimentos e opiniões pessoais.

60
“Como é ser racializada como eu?”2 de verossimilhança, por exemplo). O poder cria
Como é ser branco como você? suas restrições, porque o Poderoso é também,
necessariamente, definido por aquele que
Para que um filme sobre a Outra/o Outro Não Tem Poder. Assim, o poder precisa ser
seja bom e sério, deve mostrar algum tipo de compartilhado (“antropologia compartilhada”
conflito, pois, com frequência, é assim que o é uma noção que tentaram aplicar por aí) para
Ocidente define identidades e diferenças. Para que seu efeito possa continuar a circular; mas
muitos cineastas que se orientam pela ciência, compartilhado só parcialmente, com muita
ver, ironicamente, ainda significa acreditar. cautela, e sob a condição de que seja dado, e
Mostrar não é mostrar como posso vê-lo, como não tomado. Um antropólogo famoso expres-
você pode me ver e como somos percebidos – o sou a crise existente em seu campo de atuação
(nosso) encontro –, mas sim como você se vê e quando escreveu: “Onde ficamos quando não
representa sua espécie (na melhor das hipóte- podemos mais reivindicar algum tipo de pro-
ses, por meio de conflitos), o Fato por si só. A ximidade psicológica ou identificação trans-
autenticidade factual depende profundamente cultural com nossos sujeitos?”4 Certamente o
das palavras e dos testemunhos da Outra/ homem precisa manter vivo seu papel. Afinal,
do Outro. Para validar um trabalho, torna-se, em todo erro há sempre alguma verdade.
portanto, mais importante provar ou eviden-
ciar como essa Outra/esse Outro participou da [...] é uma questão de grau, não de oposi-
composição de sua própria imagem; daí, por ção polar [...] O confinamento a conceitos
exemplo, a proeminência das séries de entre- próximos-à-experiência deixa o etnógrafo
vistas e das talking-heads,3 estratégias de teste- inundado de imediatismo e enredado em
munho oral em práticas de documentário. Essa vernáculo. O confinamento a conceitos
abordagem é frequentemente chamada de “dar distantes-da-experiência o deixa pre-
voz”, embora essas “vozes” jamais formem, so a abstrações e sufocado em jargões.
de fato, a Voz do filme, pois são utilizadas A verdadeira e única questão [...] no caso
como artifícios de legitimação cuja autoridade dos “nativos” – você não precisa ser um
aleatória, convenientemente dada e desvalori- para conhecer um – é quais papéis os dois
zada, serve, com frequência, para compensar tipos de conceito desempenham na análise
a Ausência fílmica (ausência de imaginação ou antropológica.5

No entanto, “colocar-se na pele de outra pessoa”


2/ Em inglês, “How It Feels To Be Colored Me”, título original
de um artigo de Zora Neale Hurston. Constitui provavel- não é algo fácil. O risco que o homem teme para
mente uma resposta ao que ela sentia que os brancos de seu si e para os seus parceiros é o de “atravessar a
convívio sempre queriam lhe perguntar. In Alice Walker
(org.), I Love Myself When I Am Laughing. Old Westbury, NY: montanha”. Para tanto, ele assume a tarefa de
The Feminist Press, 1979, pp. 152-155.

3/ Em português, literalmente, “cabeças-falantes”. É um


estilo de vídeo em que uma pessoa é filmada da cintura para 4/ Clifford Geertz, Local Knowledge. Nova York: Basic Books,
cima, encarando a câmera. A estratégia causa a impressão de 1983, p. 56.
que a pessoa filmada está se dirigindo à pessoa que assiste a
ela. [N.T.] 5/ Ibid., p. 57.
aconselhar e treinar seus seguidores para o dis- de interdependência (neo)colonial. E como,
tanciamento no campo, para que permaneçam nesse modelo, compartilhar sempre significa
no lado vitorioso. Nesse contexto, o ato de dar dar pouco e obter mais do que um pouco, a
deve sempre ser determinado “com referência necessidade de informantes acaba se trans-
ao que, à luz do conhecimento e da experiên- formando em uma necessidade de discípulos.
cia ocidental, temperados pelas considerações Precisamos treinar pessoas-de-dentro para
locais”, achamos que é melhor para eles.6 E, que possam se ocupar de Nossas preocupa-
assim, garantir que absorveremos os segredos ções e torná-las úteis formulando o tipo certo
Deles/Delas, sem jamais entregar os Nossos. de Pergunta e proporcionando o tipo certo de
Resposta. Portanto, a pessoa-de-dentro ideal é
O truque é não se envolver em correspon- o sujeito psicologicamente detector-de-confli-
dências espirituais internas com seus in- tos e resolvedor-de-problemas que representa
formantes. Por preferirem, como o restante a Outra/o Outro para o Mestre8 de maneira
de nós, considerar como deles as próprias fidedigna, ou, mais especificamente, que
almas, eles não ficarão muito interessados conforta a relação eu-outro do Mestre em sua
em se envolver em tais correspondências, de implementação de relações de poder, colhendo
qualquer maneira. O truque é desvendar o dados aproveitáveis, cuidando da própria vida/
que diabos eles pensam que estão fazendo.7 do próprio território, e ainda assim oferecendo
a diferença que se espera dele.
A consequência natural desse raciocínio é o
casamento arranjado entre “distante-da-ex- O sistema do “Negro de estimação” 9
periência” e “próximo-à-experiência”, entre a (por Zora Neale Hurston)
objetividade científica e a subjetividade nativa,
entre o input de alguém-de-fora e o output de A todo homem branco deverá ser permitido
alguém-de-dentro. Para atingir a noção mais ter um Negro de estimação. Sim, ele poderá
íntima e oculta acerca do eu [self] da Outra/do pegar um homem negro para si para cuidar
Outro, o homem precisa contar com uma forma e estimar, e esse Negro será perfeito aos
olhos dele. Nem o ódio entre as raças de
homens nem as condições de discórdia nas
6/ Earl of Evelyn Baring Cromer, Political and Literary Essays, cidades muradas farão esmorecer o orgulho
1908-1913. (1913) Freeport, NY: Books for Library Press, 1969.
e o prazer que sente por seu Negro.10
7/ Clifford Geertz, op. cit., p. 58.

8/ “Master”, no original, se refere ao mestre antropólogo,


cientista, e não ao senhor colonial (também “master” no
inglês). [N.E.]

63 9/ No original, "The 'Pet Negro' System". [N.T.]

10/ Zora Neale Hurston, “How It Feels To Be Colored Me”,


op. cit., p. 156.

62
[...] quando tudo é descontado, prevalece pode tirar o mato do homem negro”, esse mato
o fato de que gente branca do Norte e do é constantemente fornecido de volta a ele, e, no
Sul promoveu Negros – geralmente sob a fim das contas, é esse mato que ele deve trans-
ideia de “representar o Negro” – com pouca formar em seu território exclusivo. E ele pode
consideração pelas habilidades da pessoa fazer isso completamente ciente de que uma
promovida, mas de forma alinhada ao sis- terra infértil está longe de ser um presente,
tema “de estimação”.11 pois, no desdobramento dos processos de
desigualdades de poder, as mudanças exigem
O apartheid impede qualquer contato entre que as regras sejam reapropriadas para que o
pessoas de raças diferentes que possa mi- Mestre seja derrotado em seu próprio jogo. O
nar a ideia de diferença essencial.12 doador pretensioso gosta de dar partindo da
premissa de que está na posição de pegar de
Uma perspectiva de alguém-de-dentro: a pala- volta o que deu quando quiser, ou sempre que
vra mágica que contém o selo de aprovação. a pessoa que recebeu ousar ou vir a ultrapas-
O que pode ser mais autenticamente outro que sar os limites de suas condições. No entanto,
a outridade da Outra/do Outro em si? Contudo, aquele que recebe não vê presente nenhum
cada fatia de bolo fornecida pelo Mestre traz (consegue imaginar um presente que é tomado
consigo uma faca de dois gumes. Os africânde- de quem o recebe?), mas apenas dívidas que,
res dizem prontamente: “Você pode tirar o mesmo depois de pagas, permanecerão sendo
homem negro do mato, mas não pode tirar sua propriedade, mesmo que o conceito de
o mato do homem negro”. propriedade (de terras) lhe seja alheio, um con-
O lugar do nativo é sempre bem delimi- ceito que se recusou a assimilar.
tado. O fazer fílmico culturalmente “correto” Por meio das reações e expectativas do
quase sempre insinua que os africanos mos- público a respeito de seus trabalhos, cineastas
tram a África, os asiáticos, a Ásia, e os euro-es- não brancas/os13 são frequentemente informa-
tadunidenses… o Mundo. A outridade tem leis das/os e lembradas/os dos limites territoriais em
e interdições próprias. Portanto, se “você não que devem permanecer. Uma pessoa-de-dentro
pode falar com autoridade sobre sua cultura e
é considerada uma fonte de autoridade nesse
11/ Ibid., p. 160. assunto – não necessariamente como cineasta,
12/ Vincent Crapanzano, “A Reporter at Large”, The New
mas meramente como alguém-de-dentro. Esse
Yorker, 18 mar. 1985. ato automático e arbitrário de imbuir a pessoa-
-de-dentro de conhecimento legitimado sobre
seu patrimônio cultural e seu ambiente apenas
exerce seu poder quando se trata de uma ques-
tão de validação de poder. É uma inversão para-
doxal da mente colonial: o que Alguém-de-fora

13/ No original, non-white. [n.t.]


espera de Alguém-de-dentro é, de fato, a proje- levou ao deslocamento, pois as zonas entre-luga-
ção de um sujeito onisciente que esse Alguém- res são terrenos movediços sobre os quais cami-
de-fora costuma atribuir a si e à sua espécie. nham pessoas (duplamente) exiladas. Não Você/
Nessa relação eu-outro não reconhecida, no não como Você. A subjetividade de Alguém-de-
entanto, o Outro/a Outra sempre permaneceria à dentro (compreendida como horizonte afetivo
sombra do eu, portanto não-realmente-não-exa- limitado – o pessoal) é a mesma área sobre a
tamente “onisciente”. Uma pessoa branca que qual o Alguém-de-fora objetivo (compreendido
realiza filmes sobre o povo Goba do Zambeze como horizonte imparcial ilimitado – o univer-
ou sobre o povo Tasaday da floresta tropical das sal) não consegue reivindicar autoridade plena,
Filipinas não parece surpreender ninguém, mas mas graças à qual ele segue validando seu papel
uma pessoa do Terceiro Mundo que faz filmes indispensável, reivindicando agora o que lhe é
sobre outros povos do Terceiro Mundo jamais devido por meio de um conhecimento científico
deixará de ser passível de questionamentos para “interpretativo”, mas ainda um conhecimento
muitos. Imediatamente, surge a questão da esco- científico totalizante.
lha do assunto. Às vezes, por curiosidade, e, na
maioria das vezes, por hostilidade. O casamento A antropologia é a ciência da cultura vista
não se consuma, pois o casal não é mais “de-fo- de fora.14
ra-de-dentro” [outside-inside] (objetivo versus
subjetivo), mas algo entre “de-dentro-de-dentro” Portanto, se nativos estudassem a si mes-
(subjetivo no que já é designado como subjetivo) mos, dir-se-ia que estariam produzindo
e “de-fora-de-fora” (objetivo no que já é reivindi- história ou filologia, não antropologia.15
cado como objetivo). Sem conflito real.
[...] somente um representante de nossa ci-
Diferença, sim, mas diferença vilização pode, de maneira detalhadamente
Dentro das fronteiras de suas terras, eles dizem adequada, documentar a diferença e ajudar
Domínio branco e a política de divisões étnicas
a criar uma ideia do primitivo que não seria
Quaisquer tentativas de desfocar a linha divi- construída pelos próprios primitivos.16
sória entre alguém-de-fora e alguém-de-dentro
provocariam – com razão – ansiedade, senão A interdependência não pode ser reduzida
raiva. Nesse caso, direitos territoriais não estão a mera questão de escravização mútua. Ela
sendo respeitados. A violação de limites sempre também consiste na criação de um território
que não pertença a ninguém, nem mesmo a

14/ Claude Levi-Strauss, “Anthropology: Its Achievements


and Future”, Current Anthropology, n. 7, 1966, p. 126.

65 15/ Ibid.

16/ Stanley Diamond, “A Revolutionary Discipline”, Current


Anthropology, n. 5, 1964, p. 433.

64
seu “criador”. A outridade torna-se uma dife- tiva dos asiáticos”; ou Nós queremos “ensinar
rença crítica que empodera quando não é dada, pessoas de uma cultura diferente da nossa a
mas sim recriada. Definida com os critérios fazer filmes que retratem a cultura delas e elas
recém-formados da Outra/do Outro. O cinema mesmas da forma que elas achem melhor”
imperfeito é subversivo, não porque a ciência (para que Nós possamos coletar dados sobre o
contribua para a purificação da arte, ao “permi- processo fílmico etnográfico indígena e mostrar
tir que nos libertemos de tantos filmes fraudu- o povo Navajo pelos olhos do povo Navajo aos
lentos, ocultos sob o que tem sido chamado de nossos colegas da área).18 Novamente, isso é o
mundo da poesia”;17 não porque, “quanto mais mesmo que afirmar que uma perspectiva não
granulada [a imagem], melhor a política”; tam- branca é desejável porque ajudaria a preencher
pouco porque uma tomada trêmula, desfocada um vazio que os brancos agora estão dispostos
e mal enquadrada seja mais verdadeira, sin- a deixar mais ou menos vazio para diminuir a
cera e autêntica do que uma tomada conside- pressão crítica e proporcionar a ilusão de certa
rada “bonita” e tecnicamente perfeita (tremer incompletude que necessita da contribuição
a câmera também pode ser uma técnica); mas da pessoa nativa para ser mais completa, mas
sim, eu diria, porque não existe imperfeição que, em última instância, depende da autori-
(absoluta), pois a perfeição só pode se construir dade branca para alcançar qualquer tipo de
por meio da existência de sua Outra imperfeita. completude real. Essa missão caridosa ainda é
Em outras palavras, a perfeição é produzida, e considerada correta por muitos, e, apesar das
não meramente dada. Os valores que mantêm diversas mudanças de aparência pelas quais
o conjunto dominante de critérios no poder são passou ao longo dos anos, a imagem do branco
simplesmente ineficazes em uma estrutura na colonial salvador parece mais perniciosa do que
qual não são mais obedecidos. nunca, pois agora opera por meio do consenti-
Pessoas não ocidentais podem ou não que- mento. A antropologia indígena possibilita que
rer realizar filmes sobre suas sociedades. Seja a antropologia branca continue a antropologi-
qual for sua escolha, a questão seguramente zar o Homem.
não é estabelecer uma oposição às práticas
dominantes, pois “oposição” no contexto unidi- A antropologia é a atual base de cada dis-
mensional das sociedades modernas, de modo curso pronunciado por sobre a cabeça da
geral, significa fazer o jogo do Mestre. Durante pessoa nativa.
anos, Eles têm dito, com um cuidado muito
paternalista: “África para os africanos”; “Nós Os “retratos” de um grupo produzidos
deveríamos incentivar as pessoas do Terceiro pelo observador como alguém-de-fora
Mundo a fazer filmes sobre seu próprio povo”; e pelo observador como alguém-de-dentro
“Nós gostaríamos de ver asiáticos na perspec- serão diferentes, assim como serão rele-
vantes em contextos distintos. A consci-

17/ Julio García Espinosa, “For an Imperfect Cinema”, in


Michael Chanan (org.), Twenty-five Years of the New Latin
American Cinema. Londres: BF1/Channel 4 Television, 1983, 18/ Ver Sol Worth e John Adair, Through Navajo Eyes. Bloo-
pp. 28-33. mington: Indiana University Press, 1972.
ência desse fato subjaz ao apelo recente: O senso de eu [self] de uma pessoa é sem-
“Tem que ser [uma pessoa nativa] para pre mediado pela imagem que ela tem do
entender [uma pessoa nativa]”.19 Outro/da Outra. (Por vezes, me perguntei se
um conhecimento superficial acerca do Ou-
A questão não é simplesmente “corrigir” as tro/da Outra, em termos de estereótipo, não
imagens que brancos têm de não brancos, nem é uma maneira de preservar uma imagem
reagir à mente territorial colonial simplesmente superficial de si mesmo.)20
revertendo a situação e estabelecendo uma opo-
sição que, na melhor das hipóteses, espelhará Além disso, onde termina a linha divisória
as atividades e as preocupações do Mestre. (Há entre alguém-de-fora e alguém-de-dentro?
pouco tempo, por exemplo, alguns antropólogos Como ela deve ser definida? Pela cor da pele
franceses falaram em treinar e trazer antropó- (nenhuma pessoa Negra deve fazer filmes
logos-discípulos do continente africano para sobre pessoas Amarelas)? Pela língua (somente
estudar aspectos culturais de vilarejos remotos o povo Fulani pode falar sobre o povo Fulani,
na França. Mais uma vez, deixe que Eles – a pessoas do povo Bassari são estrangeiras aqui)?
quem Nós ensinamos – Nos estudem, pois isso Por nação (somente vietnamitas podem pro-
também é informação, e é assim que a roda duzir obras sobre o Vietnã)? Por geografia (na
antropologizante se mantém girando.) configuração Norte-Sul, o Oriente é Oriente e
Mas, em vez disso, a questão é rastrear e não pode se encontrar com o Ocidente)? Ou
expor a Voz do Poder e da Censura, quando e por afinidade política (Terceiro Mundo [fala]
onde ela surja. A diferença essencial possibilita sobre Terceiro Mundo em oposição a Primeiro
a seus adeptos se apoiarem com tranquilidade e Segundo Mundos)? E quanto às pessoas de
em sua gama de noções fixas. Qualquer muta- identidades hifenizadas e realidades híbridas?
ção na identidade, na essência, na regularidade (Vale a pena mencionar uma reportagem em
e até mesmo no espaço físico representa um uma edição da revista Time [1987], intitulada
problema, senão uma ameaça, em termos de “A Crazy Game of Musical Chairs” [Louca dança
classificação e de controle. Se você não con- das cadeiras]. Nessa reportagem breve e con-
segue localizar a Outra/o Outro, como poderá cisa, chama-se a atenção para o fato de que as
localizar a si mesmo? pessoas na África do Sul – que são classificadas
por raça e colocadas em uma das nove catego-
19/ Diane Lewis, “Anthropology and Colonialism”, Current
rias raciais que determinam onde podem viver
Anthropology, n. 14, 1973, pp. 586-587. e onde podem trabalhar – podem ter sua classi-
ficação alterada se puderem provar que foram
inseridas no grupo errado. Assim, em um anún-
cio de reclassificações raciais feito pelo ministro
de Assuntos Internos,21 ficamos sabendo que:

67 20/ Vincent Crapanzano, op. cit.

21/ Ministry of Home Affairs. [n.t.]

66
nove brancos se tornaram coloured,22 506 co-
loured se tornaram brancos, dois brancos se
tornaram malaios, 14 malaios se tornaram
brancos [...] 40 coloured se tornaram negros,
666 negros se tornaram coloured, 87 colou-
red se tornaram indianos, 67 indianos se
tornaram coloured, 26 coloured se tornaram
malaios, 50 malaios se tornaram indianos,
61 indianos se tornaram malaios [...]

E a lista continua. No entanto, diz o ministro,


“nenhum negro se candidatou para se tornar diferentemente da pessoa-de-fora, ela tam-
branco e nenhum branco se tornou negro”.)23 bém recorre a estratégias não explicativas e
No momento em que a pessoa-de-dentro não totalizantes que suspendem o significado
sai de dentro, ela não é mais uma mera pessoa- e resistem à conclusão. (Isso geralmente é
-de-dentro (e vice-versa). Ela necessariamente considerado por pessoas-de-fora como estra-
olha de fora para dentro e de dentro para fora, tégias de ocultação e de revelação parciais,
simultaneamente. Como a pessoa-de-fora, destinadas a preservar segredos que só devem
ela se afasta e registra o que nunca soa para ser transmitidos às pessoas iniciadas). Ela se
ela-a-pessoa-de-dentro24 como algo que valha recusa a se reduzir a Outra e a reduzir suas
a pena ou que precise ser registrado. Mas, reflexões ao mero raciocínio objetivo de pesso-
a-de-fora ou ao sentimento subjetivo de pes-
soa-de-dentro. Ela sabe, como a antropóloga-
22/ Decidimos manter o termo coloured, como em seu -de-dentro Zora Neale Hurston sabia, que não
contexto específico, para evitar comparações com o con-
texto brasileiro e não atribuir termos que não existem aqui. é de-fora como o estrangeiro de-fora. Ela sabe
Para maior aprofundamento no tema, ver, por exemplo, que é diferente mesmo quando é Ele. Não exa-
Mohamed Adhikari (org.), Burned by Race: Coloured Iden-
tities in South Africa. Cidade do Cabo: UCT Press, 2013. tamente a Mesma, nem exatamente Outra, ela
Disponível em: https://library.oapen.org/bitstream/han- se encontra naquele limiar indeterminado em
dle/20.500.12657/31443/1/628130.pdf. Acesso em: jun.
2023. [n.t.]
que constantemente entra e do qual constan-
temente sai. Subvertendo a oposição dentro/
23/ Ibid.
fora, a intervenção dela é tanto a intervenção
24/ Her-the insider, no original. [n.t.] de uma pessoa-de-dentro fraudulenta quanto a
de uma pessoa-de-fora fraudulenta. Ela é essa
Outra/Mesma Inapropriada que se move sem-
pre com pelo menos dois/quatro gestos: o de
afirmar “sou como você” enquanto persiste em
sua diferença; e o de lembrar a si mesma “sou
diferente”, enquanto desestabiliza toda defini-
ção de outridade a que tenha chegado.
É arrepiante pensar – saber que, por [...] a única etnologia possível é aquela que
qualquer ação minha, receberei o dobro estuda o comportamento antropofágico do
de elogios ou o dobro de culpa. É muito homem Branco.28
inquietante estar no centro do palco nacio-
nal, diante de um público que não sabe se Quer ela vire o lado de dentro para fora ou o lado
ri ou se chora.25 de fora para dentro, ela é, como as duas faces de
uma moeda, a mesma pessoa-de-dentro/de-fora
Os coloured são muito emotivos, e não se impura, duas-em-uma. Pois dificilmente há uma
pode confiar nos Bantos. Uma vez, um parte de dentro essencial que possa ser repre-
fazendeiro daqui perguntou a um capataz sentada de forma homogênea por todas as pes-
Banto, “Johnny, você daria um tiro em soas-de-dentro; uma pessoa-de-dentro autêntica
mim?” “Não, chefia, não daria um tiro no aqui dentro, uma realidade absoluta lá fora, ou
senhor”, disse Johnny. “Eu iria na casa do uma representante não corrompida que não
vizinho e daria um tiro no chefe de lá. E o possa ser questionada por outra representante
encarregado dele viria atirar no senhor.26 não corrompida.

A teoria por trás de nossas táticas: “O ho- A razão mais importante pela qual Negros
mem branco está sempre tentando saber não fazem mais a respeito da falsa “repre-
demais da vida de alguém. Tudo bem. Eu sentação” pela lógica de estimação é que
vou botar um negócio na porta da minha eles sabem por experiência que essa lógica
mente pra ele brincar e mexer. Ele vai está enraizada demais para ser mudada.
poder ler minhas palavras, mas não vai Quem emprega essa lógica tem seus moti-
ler minha mente, não. Eu vou botar esse vos, pessoais ou políticos. E sempre pode
brinquedo na mão dele, ele vai pegar e ir apontar para o beneficiário e dizer: “Vejam,
embora. Aí eu vou dizer meus dizeres e Negros, vocês foram bem tratados. Não
cantar meus cantares”.27 veem que eu dei um emprego importante a
um membro de seu grupo?” As autoridades
brancas presumem que o elemento Negro
25/ Zora Neale Hurston, op. cit., p. 153.
está satisfeito e não sabem o que fazer
26/ Dora Herzog, “An Afrikaner”, apud Vincent Crapanzano, quando, mais tarde, descobrem que um
op. cit., p. 93.
grupo tão grande de Negros as acusa de in-
27/ Zora Neale Hurston, op. cit., p. 83. diferença e de trapaça. O amigo branco dos
Negros resmunga sobre ingratidão e decide
que é simplesmente impossível entender
os Negros... são como crianças.29

69 28/ Stanislas Spero Adotevi, Negritude et negrologue. Paris:


Union Generale d’Editions, 1972, p. 182.

29/ Zora Neale Hurston, “op. cit., p. 161.

68
No contexto dessa Outra Inapropriada, são ará a exercer seu poder. Quanto mais a represen-
pouco relevantes perguntas como “Quão leal, tação se apoiar na verossimilhança, mais estará
como representante de seu povo, essa pes- sujeita à verificação normativa.
soa é?” (cineasta como alguém-de-dentro) ou Para a Outra Inapropriada, entretanto, as
“Quão autêntica é sua representação da cultura perguntas previamente mencionadas parecem
observada?” (cineasta como alguém-de-fora). inadequadas; o critério de autenticidade perde
Quando a magia das essências deixa de impres- sua pertinência. É como perguntar a alguém
sionar e intimidar, não há mais uma posição ateísta: “Quão fiéis às palavras de Deus são
de autoridade com base na qual se possa julgar tuas palavras?” (com o entendimento de que a
definitivamente o valor de verossimilhança da pessoa ateísta não se opõe, mas é in-diferente
representação. Na primeira pergunta, o sujeito à pessoa crente). Ela [a Outra], que sabe que
questionador, mesmo que seja alguém-de- não pode falar deles sem falar de si mesma,
-dentro, não é mais autêntico e não tem mais nem falar da história sem envolver a própria
autoridade sobre o assunto do que o sujeito a história, também sabe que não pode fazer um
quem as perguntas dizem respeito. Isso não gesto sem ativar o movimento de ir e vir da
quer dizer que o “eu” histórico possa ser obs- vida. A subjetividade que opera no contexto
curecido ou ignorado e que a diferenciação não dessa Outra Inapropriada dificilmente pode ser
possa ser feita, mas esse “eu” não é unitário, a submetida ao velho paradigma subjetividade/
cultura nunca foi monolítica, e mais ou menos é objetividade. A consciência política aguda do
sempre mais ou menos em relação a um sujeito sujeito não pode ser reduzida a uma questão de
julgador. As diferenças não existem apenas autocrítica que visa o autoaperfeiçoamento ou
entre pessoa-de-fora e pessoa-de-dentro – duas o autoelogio com o intuito de obter mais auto-
entidades –, elas também operam dentro da pes- confiança. Tal diferenciação é útil, pois a com-
soa-de-fora ou pessoa-de-dentro – uma entidade preensão da subjetividade como “ciência do
só. Isso nos leva à segunda pergunta, na qual sujeito” faz parecer absurdo o medo da auto-
a pessoa cineasta é alguém-de-fora. Enquanto a absorção etnográfica. A consciência dos limites
pessoa cineasta adotar uma atitude positivista em que se opera não precisa levar a nenhum
e optar por ignorar as intersubjetividades e as tipo de indulgência em parcialidade pessoal,
realidades envolvidas, a verdade factual conti- nem à conclusão limitada de que é impossível
nuará sendo o critério dominante de avaliação, e entender qualquer coisa sobre outros povos, já
a questão de saber se o trabalho dela representa que a diferença é questão de “essência”.
com sucesso a realidade que reivindica continu- Ao se recusar a naturalizar o “eu”, a subje-
tividade revela o mito do núcleo essencial, da
espontaneidade e da profundidade como visão
interior. Portanto, a subjetividade não con-
siste apenas em falar sobre si, seja de maneira
indulgente ou crítica. Muitas das pessoas que
concordam com a necessidade de autorreflexão
e reflexão na produção de filmes consideram
ser suficiente mostrarem-se operando na tela,
ou, ocasionalmente, indicar o próprio papel no
filme e sugerir alguma melhoria futura para
convencer o público da própria honestidade,
pagando assim as dívidas com o pensamento
liberal. Por isso, há agora um crescente número
de filmes em que o público vê o narrador nar-
rando, o cineasta filmando ou dirigindo e, como
era de se esperar, as pessoas nativas – a quem
se entrega, temporariamente, uma pequena
câmera (geralmente uma super-8) ou um grava-
dor – supostamente contribuindo para o pro-
cesso de produção. Nesse caso, o que é apresen- Minha certeza de ser excluído por pessoas
tado como autorreflexão não é mais do que uma Negras um dia não é forte o suficiente para
pequena fração – a mais convenientemente visí- me impedir de lutar ao lado delas.30
vel – das muitas possibilidades de demonstrar o
trabalho da ideologia na qual pode se desdobrar O que, de fato, representa um desafio é a
essa “ciência do sujeito”. Em resumo, o que está organização que consiste em uma associa-
em jogo é uma prática de subjetividade que ção íntima ou aliança entre negro, branco,
ainda desconhece sua própria natureza cons- indiano, coloured. Um grupo assim constitui
titutiva (por isso a dificuldade de extrapolar o uma negação da teoria de separação africân-
par simplista de subjetividade/objetividade); der, da lógica medieval de clã deles.31
desconhece seu papel contínuo na produção
de sentido (como se as coisas pudessem “fazer [...] os modos estereotipados do comporta-
sentido” por si mesmas, de modo que a função mento japonês, de quietude, obediência
de quem as interpreta consiste somente em e conformidade chocaram-se com as ex-
escolher entre as muitas leituras possíveis); pectativas brancas de ser uma pensadora
desconhece a representação como represen- motivada, independente e ambiciosa. Quan-
tação (as inter-realidades culturais, sexuais e do estava com brancos, me preocupava se
políticas envolvidas na feitura: da pessoa cine- estava falando alto o suficiente; quando es-
asta como sujeito; do sujeito filmado; e do apa- tava com pessoas japonesas, me preocupa-
rato cinematográfico); e, por fim, desconhece a va se estava falando alto demais.32
Outra Inapropriada dentro de cada “eu”.

30/ Do artigo do escritor sul-africano Breyten Breytenbach,


“L’Aveuglement des Afrikaners”, Le Nouvel Observateur, 20-26
jun.1986, p. 48.

31/ Ezekiel Mphahlele, The African Image (1962). Nova York:


Praeger, 1966, p. 73.

71 32/ Joanne Harumi Sechi, “Being Japanese-American


Doesn’t Mean ‘Made in Japan’”, in Dexter Fisher (org.), The
Third Woman. Boston: Houghton Mifflin, 1980, p. 446.

70
Andando bem ereta e falando de maneira trinh t. minh-ha é cineasta,
inaudível, tentei adquirir uma postura escritora, compositora e professora.
feminina-estadunidense. A comunicação Leciona cursos com enfoque em teoria
chinesa era alta, pública. Somente pessoas feminista, teoria do cinema e políticas
doentes precisavam sussurrar.33 culturais. Nascida no Vietnã, Trinh realizou
filmes em diversos territórios, subvertendo
Quando escuto estudantes de minhas tur- convenções tradicionalmente empregadas
mas dizerem “não somos contra gente ira- em documentários etnográficos.
niana que cuida da própria vida. Só somos Reassemblage [Remontagem] (1982)
contra gente iraniana ingrata que abusa de apresenta sua conhecida formulação speak
nossa hospitalidade fazendo protestos e nearby [falar perto], diferenciando-se do speak
falando mal de nosso governo”, eu sei que about [falar sobre]. Ao filmar o cotidiano de
estão falando de mim.34 uma zona rural no Senegal, a voz off da diretora
volta-se à sua prática cinematográfica e tenta
desmantelar a exotização comum às episte-
mologias coloniais. Falar perto é reconhecer a
lacuna. Ao renunciar à explicação da Outra/do
Outro, a cineasta assume que não há solução
a ser apontada: “Estou olhando em círculo, em
um círculo de olhares”.35
No ensaio “De fora para dentro, de dentro
Publicado originalmente em J. Pines e P. para fora" (1988), Trinh também discute os
Willemen (orgs.), Questions of Third Cinema. jogos de poder e de legitimação que ocorrem
Londres: British Film Institute, 1988. [n.e.] quando perspectivas não brancas e identida-
des hifenizadas estão em circulação. Alertando
sobre as armadilhas das hierarquias de conhe-
33/ Maxine Hong Kingston, The Woman Warrior. Nova York:
cimento, ela questiona quem define o que é
Vintage Books, 1977. chamado de autêntico e as produções que
34/ Mitsuye Yamada, “Asian Pacific American Women and
acreditam estar dando a voz. Para a autora, a
Feminism”, in Cherrie Moraga e Gloria Anzaldúa, This Bridge liberdade de se livrar de uma posição de autori-
Called My Back. Watertown, Mass.: Persephone Press, 1981, dade surge como um campo de possibilidades.
p. 75.
Quem era considerada a Outra sabe que “não
pode falar deles sem falar de si mesma, nem
falar da história sem envolver a própria histó-
ria, também sabe que não pode fazer um gesto
sem ativar o movimento de ir e vir da vida”.36

35/ Do filme Reassemblage, 1982, 36m55s.

36/ Trinh T. Minh-ha, De fora para dentro, de dentro para fora,


p. 69 deste volume.
denilson baniwa

denilson baniwa
tatu ruwá | alidari yekua | rosto de tatu, 2023
imagem digital
denilson baniwa denilson baniwa
yautí piréra | itsída ífli | casca de jabuti, 2023 tamuatá piréra | oro ífli | casca de tamuatá, 2023
imagem digital imagem digital
denilson baniwa
yakaré ruwaýa | katíri itípi | rabo de jacaré, 2023
imagem digital
denilson baniwa vive e traba-
lha em Niterói (RJ). Pertencente ao
povo Baniwa e nascido em Barcelos,
cidade às margens do rio Negro no inte-
rior do Amazonas, Denilson define seus
trabalhos como hackeamentos no sistema
das artes e nas estruturas de poder. Ao
articular imagens e perspectivas provindas
de sua experiência de vida como Baniwa e
como sobrevivente da violência colonial nas
Américas, altera noções de história tanto em
territórios invadidos quanto em países inva-
sores. Algumas de suas obras reconstroem
imagens iconográficas dos livros de história
da arte e arquivos históricos, ora revelando,
ora apagando elementos.
O ativismo pelos direitos dos povos
indígenas o levou a conceber “dispositivos
artísticos pensando a educação como cole-
tividade”. Nesta publicação, os QR codes
presentes nas imagens inspiradas em grafis-
mos indígenas – com títulos em nheengatu,
baniwa e português, atribuídos por Francisco
Baniwa – são entradas para a plataforma
on-line Movimentos, onde é possível acessar
informações relacionadas a seu projeto para a
35ª Bienal. A ideia é criar um canal de aber-
tura e diálogo que será nutrido pelo artista ao
longo da exposição, com a colaboração de
Jerá Guarani, Francineia Baniwa, Aparecida
Benjamin Baniwa e comunidades convidadas.
�am
e
maldoror:

descolonização
como
beleza
e
ação

kênia
freitas
76
wifredo �am
Ilustração do artista para o livro Fata Morgana,
de André Breton (1941)
Sem título, 1940-1941
Lápis e nanquim sobre papel
31 x 24 cm
Galerie 1900-2000, Paris
© Wifredo Lam / AUTVIS, Brasil, 2023
Fundo preto. No compasso da batida dos no contexto e deixa que as criaturas de Lam
tambores, as criaturas nos olham. Esculturas indaguem (e olhem) por elas próprias.
densas: meio humanas, meio mitológicas,
meio bichos. Sombrias e imponentes, e, ◗
acima de tudo, estranhas. Belamente estra-
nhas. As personagens aparecem e desapa- Entre Maldoror e Lam, uma aliança forjada
recem em um jogo de sombra e luz, foco e há mais de três décadas entre utopias surre-
desfoco. Com elas, aos poucos, nos olham alistas e revolucionárias de toda parte e de
também as pinturas em livros e em telas. lugar nenhum − Guadalupe, Cuba, China,
Figuras de corpos alongados, com membros França, Argélia, Angola e tantos outros luga-
fragmentados, partes que se repetem e se res por se reimaginar e libertar. Sonhos e
sobrepõem. Aos poucos esses seres tomam lutas de descolonização como beleza e ação.
forma – deixam a escuridão e ganham con- Um cubano afro-asiático luta ao lado dos
tornos –, pois foram brevemente capturados republicanos na guerra civil espanhola. Uma
no curto filme de Sarah Maldoror gravado franco-antilhana, no Movimento Popular de
em 1980, em homenagem a Wifredo Lam. Libertação de Angola. Ambos sem contor-
Nesse filme, a câmera de Maldoror nos e fronteiras. A arte é política e pessoal
se move simulando os movimentos desses − e coletiva e andarilha. Habitada por poesia
seres estranhos, conduzindo o olhar de e criaturas estranhas e belas.
quem assiste a percorrer de diversas manei-
ras essas geografias corporais inesperadas ◗
– pernas que se transformam em braços,
pés que são como cabeças. Por um breve 1956. A livraria Présence Africaine
instante, a voz over tenta se fixar – conta [Presença Africana] era um baobá africano
que Lam é pintor-escultor afrocubano, e afrodiaspórico (re)plantado no meio do
de pai chinês e mãe negra, um surrealista bairro parisiense Quartier Latin. Em sua
caribenho radicado na França. Descobrimos grande sombra esbarravam-se jovens
que a reunião das criaturas se deve a uma estudantes, artistas, escritores de África,
exposição de trabalhos do artista. Mas nada do Caribe, das Américas. Entre os jovens
disso interrompe o fluxo de olhares que atra- discípulos do fundador do espaço cultural, o
vessam a tela. Nesses poucos minutos, de senegalês Alioune Diop (1910-1980), estavam
forma generosa, o filme de Maldoror aterra Sarah Maldoror e sua trupe transnacional
da companhia teatral Les Griots [Os griôs] −
Ababacar Samb-Makharam (Senegal), Toto
Bissainthe (Haiti) e Timité Bassori (Costa do
Marfim). As histórias que esses jovens que-
riam contar passavam pelo desejo de cons-
trução de um teatro negro moderno − afir-
79 mando um lugar para as atrizes e os atores
negros para além das personagens serviçais.

78
Se o jazz e as danças negras já habitavam a recém-criada companhia de teatro negra.
a paisagem cultural de Paris, os griôs dese- E que criaturas Lam pode ter inventado para
javam estabelecer um lugar para as artes esse cartaz? Obra que hoje é apenas uma
dramáticas. (E ninguém iria supor, naquele menção em textos sem imagens do registro.
momento, que dois dos griôs, Maldoror e Entre quatro paredes, quatro jovens negros
Bassori, enveredariam anos depois para o reivindicavam sua possibilidade de tam-
campo do cinema.) bém performar a crise existencial do sujeito
Inexperientes e ambiciosos, os griôs moderno? Será que as criaturas eram frag-
lançaram-se então em cursos de atuação, mentos de pedaços desses sujeitos estilha-
formações pagas e públicas, ensaios e çados? Será que eram híbridos trans-huma-
projetos. Nos intervalos, participavam das nos, nem bichos nem deuses?
atividades regulares da Présence Africaine.
Estiveram lá acompanhando as alegrias e ◗
desavenças do Primeiro Congresso de Escri-
tores e Artistas Negros em Paris. (Será que Anos mais tarde, Maldoror deixa Paris para
os griôs também pensaram como poderia estudar cinema em Moscou e depois fazer
ter sido se o escritor W. E. B. Dubois não filmes por onde os sonhos de libertação esti-
tivesse sido impedido pelo governo dos vessem pulsando. Lam permanece em Paris
Estados Unidos de viajar para o evento? Será − fazendo surgir mais criaturas expatriadas,
que então os negros estadunidenses pode- de toda parte.
riam ter se sentido menos estadunidenses
negros? Será que, anos depois, olhando para
a famosa foto do encontro com os 63 dele-
gados do Congresso e apenas uma mulher,
Maldoror se ressentiu desse apagamento?)
E como será que o já reconhecido
Lam se sentiu ao ser abordado pelos inex-
perientes e ambiciosos griôs, quando enco-
mendaram ao artista o cartaz da peça de
estreia? Um cartaz de Lam para a peça Huis
Clos [Entre quatro paredes], de Jean-Paul
Sartre – eis uma chegada de impacto para
wifredo �am
Ilustração do artista para o livro Fata Morgana,
de André Breton (1941)
Sem título, 1941
Lápis e nanquim sobre papel
16,9 x 22 cm
Coleção particular
© Wifredo Lam / AUTVIS, Brasil, 2023
sarah maldoror
Wifredo Lam, 1980
Stills do vídeo, 4’
Cortesia: Annouchka de Andrade & Henda Ducados
sarah maldoror
Wifredo Lam, 1980
Stills do vídeo, 4’
Cortesia: Annouchka de Andrade & Henda Ducados
kênia freitas é curadora e programadora do sarah maldoror foi poeta e
Cinema do Dragão, Centro Dragão do Mar cineasta, tendo dirigido mais de vinte
de Arte e Cultura (CDMAC, Fortaleza, CE). filmes de ficção e documentários. Seu
Doutora em comunicação e cultura pela primeiro curta-metragem, Monangambé
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, (1968), vencedor do festival de Cannes, e o
Rio de Janeiro, RJ), é pesquisadora indepen- longa Sambizanga (1972) são baseados em
dente com foco em afrofuturismo, cinemas obras do escritor Luandino Vieira. Em 1956, foi
negros, curadoria e crítica de cinema. Integra o uma das fundadoras da companhia de teatro
Forúm Itinerante de Cinema Negro (FICINE). negra Les Griots, em Paris.

wifredo lam foi um proeminente artista


cubano conhecido por misturar distintas
influências africanas, caribenhas e surrealistas.
Sua obra incorporou uma fusão única de várias
influências modernistas e explorou temas
como identidade, espiritualidade e justiça
social. O trabalho de Lam, feito predominan-
temente de pinturas, pode ser encontrado em
coleções do mundo todo, incluindo de institui-
ções como o Museo de Arte Latinoamericano
de Buenos Aires, MoMA (Nova York), Centre
Pompidou (Paris) e Tate Modern (Londres).
gesto: audiodescrições poéticas

até aqui,
Aurora e Ceija nunca se
encontraram.

nunca partilharam um
quarto de hotel, uma
cela de prisão, um vagão
de trem ou uma mesa
de bar. para chegar aonde
estão agora, elas
traçaram caminhos
e viram paisagens
muito diferentes, como
as línguas em que
cada uma contou a
própria história.
85

84
talvez você saiba que
esse lugar pode ser o
de um livro ou de uma
exposição de arte. Mas e
se um encontro entre
Ceija e Aurora também
se der em um entrelugar,
o meio do caminho
entre o que se vê e o que
se escuta? convidamos você a
ouvir vozes que contam
a história de duas
artistas, descrevem suas
obras e um encontro
impossível…
até aqui.

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as audiodescrições poéticas
criadas pela equipe de
Educação, em colaboração
com a Mais Diferenças.
aurora cursino dos santos
e ceija stojka

aurora cursino dos santos


Sem título, sem data
Óleo sobre papel (frente e verso)
47,5 × 32 cm
Coleção Museu de Arte Osório Cesar, Franco da Rocha
Foto: Everton Ballardin / Fundação Bienal de São Paulo
ceija stojka
Z6399, 1994
Pintura acrílica sobre papelão
70 × 100 cm
Coleção Pinault, Paris
Foto: Rebecca Fanuele
aurora cursino dos santos
desenvolveu uma obra que combina
memória e imaginação em imagens e
palavras. Nascida em São José dos Cam-
pos (SP), cresceu sob a influência do pai,
que a obrigou a se casar muito jovem. Com
o fim da união − que durou apenas um dia −,
deixou a cidade natal. Entre as décadas de
1910 e 1930, viveu em São Paulo e no Rio de
Janeiro, onde trabalhou como prostituta e
empregada doméstica.
Cursino entrou em contato com a pin-
tura ainda na infância. Apreciava literatura,
música popular e erudita. Ao frequentar a ofi-
cina do Hospital Psiquiátrico do Juquery, que
teve entre seus criadores o psiquiatra Osório
César (1895-1979) e a coordenação da artista
Maria Leontina (1917-1984), Cursino produ-
ziu grande parte de suas obras. O cenário
sombrio retratado pela artista em muitos de
seus trabalhos constitui uma elaboração do
trauma diante do machismo, da misoginia, do
sexismo e dos violentos procedimentos aos
quais foi submetida nesse hospital.
Desde a década de 1940, suas obras
foram exibidas em inúmeras exposições
temáticas de arte e loucura, muitas vezes
sem a devida atenção à potência crítica e à
relevância técnica de seu trabalho. Privada
de sua liberdade, Cursino faleceu no pró-
prio Juquery.
Os dados biográficos de Cursino são
poucos e incertos, alguns partem de suas
pinturas, outros se encontram em relatos de
médicos psiquiatras. Assim, há a necessidade
de uma leitura crítica das fontes dos dados,
aurora cursino dos santos
Sem título, sem data de reconhecer as violências presentes nos
Óleo sobre papel (frente e verso arquivos, e de conhecer a vida da artista a
da embalagem de chicletes)
49,6 × 44,8 cm partir de outras temporalidades.
Coleção Museu de Arte Osório Cesar, Franco da Rocha
Foto: Everton Ballardin / Fundação Bienal de São Paulo
ceija stojka (pronuncia-se
Tchaia Stoica) nasceu em 1933, em
Kraubath, na Áustria. Era a quinta de
seis filhos de uma família Roma,1 do povo
Lovara, tradicionais comerciantes de cava-
los na Europa Central. Recebeu o sobreno-
me Stojka de sua mãe, seguindo a tradição
de seu povo. Quando tinha oito anos, seu
pai foi levado pelos nazistas para o campo
de concentração de Dachau, na Alemanha,
onde foi morto no ano seguinte. Logo toda
a família seria deportada para um campo
de concentração destinado a ciganos, em
Auschwitz-Birkenau. A violência racial que
atingiu a família e a vida de Ceija é nomeada
pelos Roma com o termo porajmos, palavra
que descreve a perseguição e o extermínio
de sua comunidade pelos nazistas. Liberta-
da em 1945 do campo de concentração de
Bergen-Belsen, a história de Stojka se tornou
conhecida fora de sua comunidade em 1986,
após seu encontro com a pesquisadora e ci-
tradução: neasta austríaca Karin Berger. Seu testemu-
naquela época = 1945 nho tem início com um livro autobiográfico
naquela época
eu me encontrei e com sua obra pictórica, composta de mais
no meio deles de mil desenhos e pinturas que rememoram
sob a proteção
da minha o passado doloroso dos campos de concen-
mãe. tração, mas que lembram também os mo-
nada veio de fora
nenhuma ajuda.
mentos felizes vividos com a família antes da
por que sss ocupação da Áustria. Pintando em pé na co-
zinha de seu apartamento nos subúrbios de
Viena, usando pincéis e também os dedos,
em muitos de seus trabalhos Stojka acres-
centa textos na frente ou no verso das telas,
aliando palavras a imagens em seu esforço
de retirar do silêncio o relato do horror. Sto-
ceija stojka
Sem título, 2003 jka faleceu em Viena, em 2013.
Acrílica e guache sobre papel
41,7 × 29,4 cm
Coleção Antoine de Galbert, Paris 1/ Grupo étnico tradicionalmente nômade, que vive atual-
Foto: Diego Cestellano Cano mente em diferentes regiões da Europa e cujos povos falam
variações da língua romani.
kapwani kiwanga

kapwani kiwanga
pink-blue [rosa-azul], 2017
Tinta rosa Baker-Miller, tinta branca, luzes fluorescentes
brancas, luzes fluorescentes azuis
Dimensões variáveis
Vista de exposição na The Power Plant, Toronto (2017)
Cortesia da artista e Goodman Gallery, Cidade do Cabo,
91 Joanesburgo, Londres / Galerie Poggi, Paris / Galerie
Tanja Wagner, Berlim
Foto: Tony Hafkenscheid

90
kapwani kiwanga é uma artista
franco-canadense que vive e tra-
balha em Paris, França. Com base em
uma ampla pesquisa fundamentada em
arquivos de histórias esquecidas, a artista
fabula/cruza narrativas históricas com a
contemporaneidade, em uma multiplicidade
de mídias, como escultura, instalação, foto-
grafia, vídeo e performance.
Kiwanga aborda a realidade que cerca
e atravessa a população negra em diáspora
e tensiona a normatividade eurocêntrica,
reelaborando os sistemas de poder com sua
produção artística. Assim, esboça estraté-
gias de saída e coreografias de fuga e de
liberdade, convidando o público a observar
como as simbologias operam nas estruturas
de opressão existentes.
Em pink-blue [rosa-azul] (2017), a
artista recria políticas de controle e de
vigilância em que as luzes rosa e azul são
utilizadas para influenciar o comportamento
das pessoas. Pesquisas aplicadas nas celas
de presídios demonstraram que o tom de
rosa conhecido como Baker-Miller reduz a
força muscular e diminui a frequência car-
díaca e a respiração dos internos, enquanto
as luzes azuladas, neon, utilizadas em
banheiros públicos, dificultariam a identifi-
cação de veias e, assim, tenderiam a dimi-
nuir o uso de drogas intravenosas. A insta-
lação também nos leva a outros campos de
discussão, não somente em relação à arqui-
tetura, mas também aos padrões normativos
de gênero e sexualidade.
rosana paulino
¿História natural?, 2016
Livro de artista composto por técnica mista sobre
imagens transferidas em papel e tecido, linoleogravura,
ponta seca e costura
31,5 × 42,5 × 33,5 cm
Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo
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