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CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO:

notas sobre a construção social dos


lugares na Manguetown*

Rogerio Proença Leite

Ao comentar as reformas urbanas de Paris, através da abertura de grandes e largas avenidas


feitas por Haussmann no contexto do bonapartis- que não apenas dificultavam a construção das
mo autoritário pós-1848, Walter Benjamin (1985) barricadas operárias como facilitavam a ação da
lembrava que a intenção de adequar a capital cavalaria de Bonaparte.
francesa às necessidades de circulação que a cida- Mais de um século depois, as políticas con-
de industrial reclamava foi também uma operação temporâneas de “revitalização” do patrimônio reto-
política. O “embelezamento estratégico” de Paris mam, em outro contexto e com outras perspecti-
pretendia disciplinar os usos do espaço urbano vas, o princípio social higienizador de Haussmann,
para adequar as cidades às demandas e aos fluxos
internacionais de turismo e consumo urbano. Esses
* Este artigo é uma versão concisa e modificada de processos atuais, longe das idéias haussmanianas
parte do quarto capítulo da tese de doutorado Es-
de criar uma imagem moderna da Paris do século
paço público e política dos lugares, por mim defen-
dida no IFCH/Unicamp, 2001, sob a orientação de XIX, voltam-se hoje a formas de reapropriação cul-
Antonio Arantes. A pesquisa contou com financia- tural das imagens das cidades, objetivando – na
mento PICDT/CAPES, FINEP/PRONEX e apoio do maioria das vezes – recriar sentidos e usos dos con-
CEMI/Unicamp. Uma versão preliminar deste texto teúdos e materiais do passado, aspectos apontados
foi apresentada no X Encontro de Ciências Sociais por Harvey (1992) e Featherstone (1995) como tí-
do Norte e Nordeste, na cidade de Salvador, Bahia.
picos da chamada pós-modernidade.
Gostaria de agradecer aos colegas e pareceristas
anônimos da RBCS pelas críticas e sugestões à pri- É, portanto, sobre esses processos contem-
meira versão desse artigo, que foram – em sua gran- porâneos de “revitalização” urbana que recai a
de maioria – aceitas e incorporadas ao texto. análise desse artigo, tendo como referente empíri-

RBCS Vol. 17 no 49 junho/2002


o
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co o caso do Recife Antigo. Pretendo argumentar vida urbana, caracterizada fundamentalmente pe-
que, apesar dessas atuais intervenções terem um las ações que atribuem sentidos a certos espaços
caráter visivelmente segregador e socialmente as- da cidade e são por eles influenciadas. Não sendo
séptico – aspectos que poderiam concorrer para necessariamente todo espaço urbano um espaço
um esvaziamento do sentido público desses espa- público, há de se verificar quando um espaço ur-
ços urbanos –, os usos e contra-usos que neles se bano pode ser caracterizado como público. A rea-
estruturam concorrem, inversamente, para sua tivação pura e simples dos usos cotidianos de um
reativação como espaços públicos. Com essa hi- determinado espaço urbano não é, assim, caracte-
pótese, parto da premissa que essa reativação dos rística suficiente, embora necessária, para conferir
usos públicos dos espaços urbanos podem ou a um determinado espaço urbano a característica
não resultar na construção de um espaço público, de espaço público. Os processos de gentrification
no sentido de se constituir como um local de dia- (enobrecimento)2 reanimam os usos públicos dos
lógica interação política e exteriorização dos con- espaços urbanos. Mas, a questão fundamental é
flitos e das discordâncias. Todo espaço urbano é saber que tipo de uso público ocorre. Em outras
antes uma public property (Gulick, 1998): nele po- palavras, em que medida esse uso público pode
dem ser instituídos, ou não, práticas sociais que ser caracterizado como construção de espaços pú-
venham a caracterizar a dimensão propriamente blicos, e qual o papel desempenhado pela cons-
política dos espaços públicos. A partir de Arendt
trução dos lugares nesse processo.
(1987) e Habermas (1996; 1998), gostaria de suge-
rir que um espaço urbano somente se constitui em
um espaço público quando nele se conjugam cer-
A “revitalização” do Bairro do Recife Antigo
tas configurações espaciais e um conjunto de
ações. Quando as ações atribuem sentidos de lugar
Em 1993, um ano depois de iniciada a Ope-
e pertencimento a certos espaços urbanos, e, de
ração Pelourinho,3 em Salvador, a imprensa nacio-
outro modo, essas espacialidades incidem igual-
nal noticiava que havia chegado a vez do Recife.
mente na construção de sentidos para as ações, os
Seria “revitalizado” naquela cidade exatamente
espaços urbanos podem se constituir como espa-
um Bairro que fora, em 1910, reconstruído segun-
ços públicos: locais onde as diferenças se publici-
do o modelo da Paris de Haussmann. Entre os
zam e se confrontam politicamente.1
meses de abril e maio daquele ano, os jornais di-
Essa distinção entre espaço urbano e espaço
vulgavam que estava sendo assinado um acordo
público, que já pude desenvolver em trabalho an-
com a Fundação Roberto Marinho e a empresa
terior (Leite, 2001), parece-me ainda oportuna por Akzo do Brasil (Tintas Ypiranga) para pintar as fa-
duas razões: primeiro, ela evita uma certa sobre- chadas do Bairro do Recife Antigo. O Projeto Co-
posição conceitual que muitas vezes tem confun- res da Cidade, que no mesmo ano também se ini-
dido a noção de espaço púbico com a de espaço ciava no Rio de Janeiro, foi um dos primeiros re-
urbano aberto, muito típica dos estudos em arqui- sultados práticos da nova etapa de “revitalização”
tetura e urbanismo. Segundo, ela anuncia uma di- do Bairro. A operacionalização do projeto consis-
mensão propriamente sociológica do espaço pú- tia no sistema de parcerias: a Akzo doava as tin-
blico, quando o entendemos a partir dos usos e tas, os proprietários arcavam com a mão-de-obra,
das ações que lhe atribuem sentidos. Podemos, a prefeitura supervisionava as reformas e garantia
assim, entender o espaço público como uma cate- incentivos fiscais aos proprietários que participas-
goria construída a partir das interfaces entre os sem do projeto, e a Fundação Roberto Marinho
conceitos de esfera pública (do qual retira a cate- (FRM) assegurava a divulgação das reformas em
goria ação) e de espaço urbano (do qual retém a rede nacional de televisão.4
sua referência espacial). Embora o espaço público O local escolhido não poderia ser mais sig-
se constitua, na maioria das vezes, no espaço ur- nificativo: elegeram o Bairro do Recife Antigo, ou
bano, devemos entendê-lo como algo que ultra- simplesmente Bairro do Recife, como ponto de
passa a rua; como uma dimensão socioespacial da partida de um amplo processo de resgate da ima-
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gem da cidade. Marco Zero da cidade, o Bairro é cidade moderna, através das grandes reformas ur-
uma pequena ilha portuária que foi, no século XVI, banas. A reforma no Recife começou com as
uma restinga da cidade de Olinda, em cujo istmo obras de modernização do porto, símbolo do pro-
se fixaram os primeiros habitantes portugueses. A gresso econômico e da inserção de Pernambuco
pequena “lingüeta” de terra foi o núcleo primitivo na economia internacional. Nesse período, a eco-
da cidade do Recife, cujos arrecifes naturais – que nomia açucareira pernambucana passa por trans-
lhe deram o nome – formavam um seguro ancora- formações importantes com a substituição dos an-
douro para as embarcações comerciais. Nascendo tigos engenhos pela usina, delineando a composi-
às margens de Olinda, então sede da capitania de ção das novas elites da economia financeira e ur-
Pernambuco, o Povoado dos Arrecifes cresceu bana em Pernambuco (Perruci, 1978).
como um porto de comércio e assim permaneceu, Sob a responsabilidade da Societé de Cons-
circunscrito à estreita e insalubre faixa de terra, até truction du Port de Pernambouc, cujas obras fo-
a vinda dos holandeses que mudaram substancial- ram transferidas depois para a Societé de Cons-
mente a paisagem urbana e ambiental dos Arreci- truction de Batgnolles (Lubambo, 1991), a reforma
fes, com a implantação do primeiro plano urbanís-
concretizava em Pernambuco o ideário moderni-
tico do Recife, que originaria a cidade Maurícia
zante do início do século XX. O plano incluía ater-
(MauritsStadt). Durante o curto período da ocupa-
ros para ampliação da área do porto, construções
ção, tanto a cidade Maurícia, como o pioneiro Po-
de armazéns e – a mais drástica medida – a mo-
voado dos Arrecifes passaram por significativas mu-
dificação do traçado urbano do Bairro, com o
danças, tendo o último um crescimento do seu nú-
alargamento da avenida Marquês de Olinda e a
cleo urbano ao longo do eixo norte/sul do istmo.
São dessa época os conhecidos sobrados magros criação das avenidas Rio Branco e do Cais para
do Recife Antigo, que se verticalizavam estreitos, ampliar o fluxo do tráfego em direção ao porto.
comprimidos pelo rio e pelo mar. A abertura de Com esse novo traçado, o que havia de arquitetu-
nova ruas, a construção de casarios e sobrados, ra civil colonial veio abaixo, com as inúmeras de-
praças e fortes consolidam pouco a pouco o pri- molições que marcaram a construção da moderna
meiro movimento da evolução urbana do Recife paisagem do Bairro do Recife. Com a reforma,
(Cavalcanti, 1977; Mello, 1933). quase todo o bairro foi demolido, arrasando o que
Hoje, no entanto, o traçado urbano do anti- ainda restava de exemplares da arquitetura colo-
go povoado não é mais o das ruas estreitas e cur- nial – inclusive holandesa, para sua reconstrução
vas, onde se apinhavam os sobrados-cortiços. A seguindo o padrão haussmanniano das avenidas
paisagem que se vê não é holandesa, mas france- largas e retas.
sa. Mais precisamente a paisagem urbana france- Foi nesse bairro haussmanniano do Brasil
sa da belle époque, com duas longas e largas ave- que o Plano de Revitalização do Bairro do Recife5
nidas que rasgam o Bairro do mar ao rio. No lu- veio a ser colocado em prática a partir de 1993,
gar dos sobrados-magros, monumentais prédios tendo uma justificativa clara: não se tratava apenas
foram erguidos no difuso estilo eclético, modelo de uma proposta de restauração do patrimônio
da arquitetura liberal francesa do final do século edificado, mas de uma articulada idéia de inter-
XIX (Benevolo, 1989). Depois da ocupação holan- venção urbana na forma de um longo empreendi-
desa, foi a reforma de 1910, baseada na Paris de mento. Afinado com os pressupostos do chamado
Haussmann, a mais complexa intervenção urba- market lead city planning (Vainer, 2000), o plano
nística realizada no Bairro do Recife, cujos resul- tinha três objetivos principais, tendo como base
tados desenharam parte da sua atual fisionomia operacional um conjunto de três Setores de Inter-
(Lubambo, 1991). venção: 1. transformar o Bairro do Recife em um
A reforma de 1910 não foi um acontecimen- “centro metropolitano regional”, tornando-o um
to isolado no contexto da história do urbanismo pólo de serviços modernos, cultura e lazer; 2. tor-
brasileiro. Seguiu uma tendência que se proliferou nar o Bairro um “espaço de lazer e diversão”, ob-
em todo país, em busca de uma nova imagem de jetivando criar um “espaço que promova a concen-
o
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tração de pessoas nas áreas públicas criando um mento” (para referir-se às construções novas).
espetáculo urbano”; 3. tornar o Bairro um “centro Essa diferenciação, como o próprio autor esclare-
de atração turística nacional e internacional”.6 Esses ce, fazia sentido quando as práticas de gentrifica-
objetivos sinalizavam, desde o início, o quanto a tion ainda não eram operadas como renovação
proposta estava voltada ao incremento da econo- urbana em larga escala. Hoje, essa distinção,
mia local, pretendendo tornar o Bairro do Recife como reconhece Smith, já não atende ao caráter
um complexo mix de consumo e entretenimento. expansivo do processo: gentrification tanto pode
De igual modo, a noção de um espaço de “espetá- referir-se à reabilitação de casarios antigos como
culo urbano”, que iria caracterizar todo o plano, é pode englobar construções totalmente novas.
um indicador importante da presença de uma polí- Não deixa de ser curioso, no entanto, que o
tica de gentrification, na medida em que confirma termo tenha se sedimentado justamente nos anos
o foco predominantemente econômico das ações de 1960, no rastro dos “distúrbios” sociais pós-
previstas, bem como o tipo de uso esperado para 1968 e da contracultura urbana. Smith faz uma re-
cada uma delas, a partir de redefinições da noção ferência quanto à relação entre o uso do termo e
de valor cultural (Menezes, 2000). a contracultura em Greenwich Village, em Nova
O termo gentrification (enobrecimento) é York, mas é David Harvey quem explica essa as-
aqui usado no mesmo sentido dado pelos autores sociação ao comentar os efeitos dos distúrbios ur-
Harvey (1992), Featherstone (1995), Zukin (1995) banos em Baltimore. Segundo Harvey (1992), foi
e Smith (1996), que o utilizam para designar inter- justamente no contexto das manifestações públi-
venções urbanas como empreendimentos que ele- cas (passeatas, incêndios, saques), depois do as-
gem certos espaços da cidade considerados cen- sassinato de Martin Luter King, que políticos e em-
tralidades e os transformam em áreas de investi- presários começaram a pensar sistematicamente
mentos públicos e privados, cujas mudanças nos em formas de renovação urbana. Baltimore repe-
significados de uma localidade histórica faz do pa- tia, pela primeira vez de forma mais metódica, o
trimônio um segmento do mercado. A expressão princípio haussmaniano de pulverizar manifesta-
começou a ser usada em 1960, nos Estados Uni- ções públicas e higienizar a cidade, criando a sen-
dos, para designar um modelo de intervenção ur- sação de um local limpo e seguro. Apesar de ser
bana que se expandia em larga escala em muitas uma experiência típica do capitalismo pós-guerra
cidades americanas, cuja principal característica – claramente identificada pela tendência de dispu-
era a reabilitação residencial de certos bairros cen- ta das cidades pelo mercado internacional –, as
trais das cidades (Smith, 1996). Empreendimentos políticas de gentrification podem ser considera-
semelhantes, embora esporádicos, já aconteciam das sucessoras pós-modernas da experiência fran-
nas décadas de 1930 e 1940 nos Estados Unidos, cesa bonapartista do final do século XIX. A refor-
seguindo um modelo que Neil Smith chama de ma realizada pelo Barão de Haussmann em Paris,
embourgeoisement, voltado para os novos empre- com seus quartiers bem demarcados, suas longas
sários e comerciantes (white collars). O desloca- avenidas e seus boulevards, fizeram da capital
mento da população negra e operária dos seus francesa o mais importante modelo de protogen-
bairros tradicionais, como ocorreu em George- trification (Smith, 1996). A Baltimore “enobrecida”
town, bairro operário da cidade de Washington tentou igualmente se opor às manifestações públi-
(Smith, 1996, p. 37), exemplifica essa tendência cas que pareciam tornar suas ruas arenas de guer-
que surgiu e se alastrou pelos Estados Unidos e ra, através de intervenções urbanas.
pela Europa no pós-guerra. O termo gentrifica- No Recife, para viabilizar a implementação
tion, portanto, foi inicialmente utilizado como da proposta de “revitalização” urbana, foram esta-
uma linguagem especializada para designar “rea- belecidos alguns “elementos estruturadores”, en-
bilitação residencial”. Como Smith explica, ele tre os quais se destacavam: “Economia local com
próprio fazia, nos anos de 1970, uma distinção en- função central plena”, “Espaço público para reu-
tre gentrification (aplicada à reabilitação do esto- nião e espetáculo”, “Manutenção e valorização do
que arquitetônico já existente) e “redesenvolvi- patrimônio ambiental e cultural”, “Recuperação da
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imagem do Bairro”.7 Esses “elementos estruturado- ro do Recife: processo de revitalização e panorama


res” abrangiam aspectos centrais e convergentes econômico,10 uma espécie de convocação geral
com as políticas de enobrecimento do urbanismo para bons negócios na mais cobiçada área de revi-
empresarial: a construção de uma nova imagem da talização do patrimônio cultural da capital pernam-
cidade, através da valorização dos usos econômi- bucana. Na ocasião, o SoHo serviu como exemplo
cos do patrimônio cultural e da espetacularização de um tipo de empreendimento que soube conju-
do espaço urbano, como forma de reativar os flu- gar restauração arquitetônica e “revitalização” ur-
xos de investimentos para a economia local. Essa bana, tornando o patrimônio economicamente
imagem, construída através de uma visão que en- sustentado. A utilização quase caricata do velho
tende a cultura na perspectiva dos resultados eco- SoHo não foi apenas um recurso gratuito da com-
nômicos, e a cidade como empresa, previa a con- petência visual da Rede Globo. Em que pese a sua
centração de escritórios de grandes empresas e singularidade, o Plano Revitalização do Bairro do
corporações, reforçando, no Bairro, a “imagem de Recife repetiu, a exemplo de outras cidades histó-
espaço central e nobre da cidade”.8 ricas no Brasil e em outros países, uma tendência
O processo de gentrification que reinventou que tem se proliferado nas duas últimas décadas,
o Bairro do Recife alterou profundamente a sua cujo resultado mais visível tem sido uma contínua
paisagem urbana, transformando-a numa espécie alteração da paisagem urbana com a transforma-
de “paisagem cívica” depurada (Menezes, 2002) ao ção de degradados sítios históricos em áreas de
deslocar para a esfera do consumo os sentidos tra- entretenimento urbano e consumo cultural. Anti-
dicionais da história e da cultura pública. Recons- gas áreas “marginais” das grandes cidades vão
truído como nova centralidade, o Bairro teve sua abrigando complexos centros de lazer, com bares,
memória – inscrita em seu patrimônio edificado e restaurantes, galerias de arte e lojas de artesanato.
na vida cotidiana dos moradores mais antigos –, No Fórum, foram discutidas formas de gestão, as-
subsumida pelas estratégias de marketing urbano, sim como o caráter típico de empreendimento que
que equipararam o antigo Povoados dos Arrecifes a iria caracterizar as intervenções urbanas no Bairro.
um shopping center. Hoje, o Bairro ocupa cada vez Nas palavras do então secretário de Planejamento
mais os espaços das narrativas sobre a singularida- do Município, José Múcio Monteiro:
de do local para a cidade do Recife.
Eu enxergo o bairro como um shopping que está
No meu ponto de vista é uma coisa que faltava ao funcionando a praça da Alimentação, eu vejo o
recifense, ao pernambucano, que eu vi muito no bairro, vejo a Rua do Bom Jesus que é um absolu-
sul quando viajava. É o orgulho de ser de tal lugar.
to sucesso, e enxergo a praça de alimentação de um
E hoje nós temos aqui, você pega um turista, traz
shopping [...] (PCR/URB/ERBR, 1998b, pp. 15-19).
pro bairro, você vinha pro Recife, trazia pra Olin-
da. Não tinha um ponto pra mostrar nossas raízes
e hoje esse ponto com certeza é o bairro do Reci- Um dos resultados práticos do Plano foi a
fe. Você traz e tem orgulho de mostrar.9 reforma de parte do seu casario, que transformou
o lugar em um agitado ponto de encontro, por
A construção dessa imagem esteve ancorada, onde passaram a circular pessoas que nunca an-
desde o início, na idéia de transformação do patri- tes havia freqüentado o antigo porto. Estrategica-
mônio em mercadoria cultural e teve, como prin- mente direcionados para realçar as fachadas res-
cipais “sujeitos”, os empresários locais associados tauradas, focos de luz reforçavam a impressão ce-
ao poder público. Em uma reunião que se tornou nográfica das ruas, cujo impacto passou a ser um
um marco para a “revitalização” do Bairro, a frase enorme contraste com todo o resto do Bairro. A
“A arte gera lucros” encerrou um vídeo produzido partir das 18 horas, o trânsito passou a ser interdi-
pela Fundação Roberto Marinho, no qual foram tado nas principais ruas “revitalizadas” e cavaletes
ressaltados os bem-sucedidos investimentos priva- de madeira surgiam, acompanhados de um refor-
dos na revitalização urbana do SoHo, em Nova çado esquema de segurança (pública e privada),
York. O vídeo foi peça de abertura do Fórum Bair- que ajudavam a transformar esse trecho da cidade
o
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em um artificial boulevard. Pouco a pouco as ruas da formação “pluricultural” brasileira. O bairro, tido
eram tomadas por pessoas e as calçadas pelas me- como um “exemplar íntegro da Paris de Hauss-
sas dos bares e restaurantes. Estimava-se que, em mann” foi considerado, assim, “[...] arquivo vivo e
dias de grandes eventos, mais de 15 mil pessoas único da superposição das várias temporalidades
circulavam pelas ruas, em busca de lazer e diver- que dominaram a história e a produção artística no
são. A prefeitura passou a manter, com o apoio Recife e no Brasil”.11
dos empresários locais, uma intensa programação
cultural: shows, apresentações de dança, exposi-
ções de arte na rua, festivais de seresta. Durante Cidade, territórios, lugares
todo o ano, diversas atividades asseguravam a
continuidade do pólo de animação cultural, inte- Transformações urbanas raramente resultam
grando o Bairro à agenda cultural da cidade. No de um desenvolvimento imanente da cidade. Creio
carnaval e nas festividades de São João, uma va- que o oposto também seja verdadeiro: nenhuma ci-
riada e intensa programação passou a manter o dade excessivamente planejada e controlada segue
local como uma das mais novas opções para o tu- invariavelmente o modelo que a gerou. Principal-
rista que freqüentava Pernambuco. O desfile de mente como produto cultural, a cidade é sempre o
agremiações no Bairro se tornou espetáculo: blo- resultado convergente de distintas influências for-
cos, troças, reisados, maracatus, caboclinhos da- mais e cotidianas. A análise de Simmel (1986; 1997)
vam o tom cultural do Plano de Revitalização. sobre a objetivação do conteúdo espiritual da cul-
Enobrecido, o Bairro do Recife tornou-se não tura reforça o que estou tentado afirmar. Ele fala de
apenas um espaço de enorme visibilidade pública: um tipo de objeto cultural que não depende direta
tornou-se igualmente um local de disputa, para e exclusivamente de nenhum produtor, alheio às
onde distintas pessoas convergiam seus esforços de determinações de um único sujeito anímico.
legitimação simbólica da diferença. Todas as refor- Seria válida esta interpretação também para
mas empreendidas, tanto no plano urbanístico os cenários enobrecidos pelas políticas de gentri-
quanto na programação de eventos, estiveram vol- fication, em sua monotonia aparentemente homo-
tadas para criar um espaço re-localizado da tradi- gênea? Parece indiscutível que essa forma de in-
ção, cujo resultado mais evidente foi a transforma- tervenção urbana tem contribuído para criar uma
ção do patrimônio em relíquia (Giddens, 1991). O certa rotina estética de uma vida pública que,
tombamento do Bairro pelo Instituto do Patrimônio muitas vezes, é difícil se desenvolver, como afir-
Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em 1998, ma Otília Arantes:
veio, nesse sentido, não apenas legitimar o proces-
so de gentrification, como também sedimentar [...] a reabilitação de certos bairros, especialmente
uma nova perspectiva de preservação em vigor no dos centros urbanos, não passa de uma verdadei-
Brasil (Leite, 2001b). Atribuindo caráter “simultâ- ra consagração da eternidade da cena – bem po-
neo” à estrutura urbana e arquitetônica do Bairro, lida, limpa, enfeitada, transformada ela mesma
o IPHAN reconheceu como patrimônio nacional em museu (Arantes, 1998, p. 136).
um sítio urbano eclético, que foi erguido graças à
demolição de um antigo bairro colonial, na ampla Essa opinião é compartilhada por David Har-
reforma que ocorreu em 1910, seguindo o modelo vey, para quem a estetização da paisagem urbana
das avenidas largas e retilíneas da Paris de Hauss- passa a ser a forma predominante de recuperar o
mann (Benevolo, 1989; Benjamin, 1985). Pulveri- sentido dos lugares e da tradição no contexto da
zando antigas concepções de identidade nacional, acumulação flexível e da compressão tempo-espa-
típicas dos processos constitutivos do Estado-nação ço. A reelaboração das tradições se daria, na visão
e das análises sistêmicas sobre a formação das na- do autor, mediante uma estetização romântica da
cionalidades (Leite, 1998), a justificativa para o cultura, expressa na forma de museus que reto-
tombamento destaca, ante a inexistência de uma mam um passado ilusório e o transformam em
tradição colonial, aspectos que seriam constitutivos mercadoria:
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Na melhor das hipóteses, a tradição histórica é reor- neo a partir dos usos e contra-usos que se faz dos
ganizada como cultura de museu, não necessaria- espaços enobrecidos. Nas áreas que passam por
mente de alta arte modernista, mas de história lo- processos de gentrification, esses usos podem al-
cal, de produção local, do modo como as coisas um
terar a paisagem e imprimir outros sentidos às re-
dia foram feitas, vendidas, consumidas e integradas
numa vida cotidiana há muito perdida e com fre-
localizações da tradição e aos lugares nos espaços
qüência romantizada (Harvey, 1992, p. 273). da cidade. Essas significações, ou contra-sentidos,
que diferem daqueles esperados pelas políticas
Harvey reconhece, obviamente, o papel urbanas, contribuem para uma diversificação dos
“motivacional da tradição” para os processos iden- atuais sentidos dos lugares. Essa polissemia dos
titários. Todavia, para o autor que tematizou sobre lugares é constantemente – mas não invariavel-
os efeitos desregulares da compressão tempo-es- mente – subsumida pelas políticas oficiais de pa-
paço, estaria cada vez mas improvável a perma- trimônio, que estriam os centros históricos como
nência de certos aspectos de continuidade (típica “relíquias” (Giddens, 1991). Certeau, ao atribuir a
dos lugares) no “[...] fluxo e efemeridade da acu- função de “curetagem social” a esses empreendi-
mulação flexível” (Harvey, 1992, p. 273). mentos urbanísticos, destacava que a reabilitação
Creio que não deixam de ter razão as opi- do patrimônio “subtrai a usuários o que apresen-
niões que ressaltam a monotonia das paisagens ta a observadores” (Certeau, 1996, p. 195). Essa
enobrecidas, cujos processos de intervenção pare- observação sugere, à primeira vista, que os bair-
cem tornar esses espaços mercadorias equivalen- ros enobrecidos parecem perder sua potencialida-
tes entre si, numa espécie de “mercado da auten- de como espaço público de dissensão política e
ticidade” pela busca da centralidade e originalida- eqüidade de participação. Uma questão funda-
de dos bens culturais em disputa no contexto da mental, entretanto, é saber em que medida essa
concorrência “intercidades” (Fortuna, 1997). É “desapropriação de sujeitos” não corresponde
nessa direção que Harvey (1992) sugere que a também a uma reapropriação de outros sujeitos.
produção social contemporânea do espaço des- Se por um lado as práticas de gentrification sepa-
perta um certo caráter defensivo no qual os vín- ram esses lugares dos que neles vivem – na me-
culos entre lugar e identidade social surgem como dida em que parecem alienar o patrimônio dos
uma forma de os indivíduos se situarem neste seus usuários através das relações econômicas de
“mutante mundo-colagem”. O quadro dedutível consumo –, por outro, é possível que esse mesmo
da reflexão de Harvey é sugestivo, porém pessi- processo amplie as possibilidades interativas (con-
mista: o que resultaria de paisagens urbanas es- flitivas ou não) entre aqueles que neles interagem.
tandardizadas seriam predominantemente lugares- O próprio Certeau oferece uma pista para re-
nichos, defensivos e particularistas. Quase um pensar as formas de dissensões sobre os usos do
correlato ao que Sennett (1998) chamou de “co- espaço urbano. Ao fazer a distinção entre “estra-
munidades destrutivas” para designar as relações tégias” e “táticas”, o autor permite aferir distintas
públicas que exacerbam intimidadas e tiranizam a maneiras de atribuição de sentidos. Por “estraté-
vida cotidiana moderna. gia” entende Certeau um conjunto de práticas que
Gostaria, entretanto, de levantar a hipótese articulam espaço e poder. Como as “paisagens de
de que esses lugares – ou “territórios de subjetiva- poder”, de Sharon Zukin (2000), elas criam de-
ção” (Deleuze e Guatarri, 1997) – não resultam marcações físicas através das quais o poder se dis-
necessariamente em configurações restritivas à tribui e se consolida:
vida pública. Ainda que sejam uma forma de com-
Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação)
pensar alguma “sensação de perda”, como desta-
das relações de força que se torna possível a par-
cou Jameson (1997) ao afirmar que o passado é tir do momento em que um sujeito de querer e
reapropriado na forma alterada dos lugares políti- poder (uma empresa, um exército, uma institui-
cos da cultura, é possível repensar a construção ção científica) pode ser isolado. A estratégia pos-
desses lugares no contexto urbano contemporâ- tula um lugar suscetível de ser circunscrito como
o
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algo próprio e ser a base de onde se podem ge- Adequando essa distinção entre “estratégias
rir as relações com uma exterioridade de alvos e e táticas” à problemática do usos políticos do es-
ameaças [...] (Certeau, 1994, p. 98). paço urbano em processos de gentrification, gos-
taria de sugerir um desdobramento do esquema
A “estratégia” como “algo próprio” significa de Certeau, a partir da contribuição de Sharon Zu-
uma autonomia ou uma estabilidade espacial so- kin: diria que as “táticas”, quando associadas à di-
bre as circunstâncias ou as efemeridades tempo- mensão espacial do lugar, que a tornam vernacu-
rais. Ao circunscrever um certo lugar, o qual con- lar, constituem-se em um contra-uso capaz não
quista para si, a estratégia se afirma como poder apenas de subverter os usos esperados de um es-
espacializado e implica a construção de uma visão paço regulado, como também de possibilitar que
totalizante, um panóptipo, ou, para compará-lo o espaço que resulta das “estratégias” se cinda
mais uma vez com Zukin, uma “paisagem de po- para dar origem a diferentes lugares, a partir da
der”. Por outro lado, as “táticas” são movimentos demarcação socioespacial da diferença e das re-
heterogêneos e imprevisíveis em espaços que não significações que esses contra-usos realizam.
lhes são “próprios”: Nesse sentido, gostaria de analisar, ainda que
brevemente, o caso específico da Rua da Moeda,
[...] chamo de tática a ação calculada que é deter- situada no Bairro do Recife, para sugerir como
minada pela ausência de um próprio. Então ne-
certos contra-usos podem contribuir para politizar
nhuma delimitação de fora lhe fornece a condi-
ção de autonomia. A tática não tem por lugar se- “taticamente” uma paisagem urbana também poli-
não o do outro. [...] a tática é determinada pela tizada “estrategicamente” pela gentrification, para
ausência de poder assim como a estratégia é or- argumentar que a desapropriação de “sujeitos”
ganizada pelo postulado de um poder (Certeau, não reduz o sentido público do espaço urbano,
1994, pp. 100-101). mas pode representar uma reordenação da sua ló-
gica interativa, a partir das apropriações (“táticas”)
As “trajetórias táticas” são, portanto, percur- dos espaços mediante a construção dos lugares.
sos temporais dos destituídos de poder e de um
lugar que lhes seja “próprio”. Elas ocorrem justa-
mente no interior dos espaços estratégicos, sub- Rua da Moeda: a construção de um lugar
vertendo sentidos por não serem coerentes com
esses espaços. Para manter a comparação com os Nunca houve andar fortuito que conduzisse
termos de Zukin, as “táticas” podem ser entendi- casualmente o transeunte ao Bairro do Recife.
das como o que é “vernacular” (dos sem-poder) Não se passa pelo Bairro: vai-se a ele. Sua locali-
no interior das “paisagens de poder”. Para a auto- zação no extremo leste da cidade, em uma ilha,
ra, “[...] a paisagem dos poderosos se opõe clara- quase o desloca dos fluxos rotineiros do andar
mente à chancela dos sem poder – ou seja, à pelo centro do Recife. É fácil evitar o Bairro, sem
construção social que escolhemos chamar de ver- transtornos e prejuízos a qualquer itinerário: as
nacular [...]” (Zukin, 2000, p. 84). Uma distinção, vias axiais não impõem um trajeto que obrigue
porém, subsiste nessa correlação: uma política uma passagem pela Bairro, ainda que fugidia ao
vernacular no contexto urbano não se limita às olhar da velocidade. Quem transita pelo Bairro é
ações no tempo, desprovida de referências espa- porque foi a ele por alguma razão. Das últimas
ciais. Ao contrário, ela implica uma reapropriação pontes erguidas sobre os rios e mangues avista-se
e uma qualificação dos espaços. Quando se fala, o Bairro. Por elas se alcança a ilha e com um úni-
por exemplo, em uma arquitetura vernacular, so- co olhar é possível atravessá-la por uma de suas
bressaem-se os usos alternativos de materiais e principais avenidas: das margens do Capibaribe se
concepções disponíveis localmente e que se vê o mar. Mais do que um deslocamento, a traves-
opõem a outros planos que seriam alheios a uma sia pela antiga ponte do Recife, hoje reformada,
dada realidade. induz o pedestre a vislumbrar, ainda à distância,
CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO 123

quase toda a extensão da ilha, banhada pelo rio planos de revitalização. Ela estava circunscrita em
Capibaribe. Mas, o percurso pela ponte não per- uma área mais ampla do pólo Alfândega, este sim,
mite rememorar o passado sem fixar o olhar no um dos pólos de interesse previstos no planeja-
presente: no rio poluído, uma pequena embarca- mento estratégico que deu origem ao processo de
ção leva um catador de caranguejo, homem do gentrification. O pólo Moeda surgiu de uma re-si-
mangue, que escava da sujeira restos de vida. A ginificação social de um espaço, pelos próprios
Manguetown sobrevive como na canção, cantada agentes que o tornaram realidade, ao contrário do
entre guitarras e batuques de Maracatu: “Rios, Bom Jesus que induziu a presença dos seus usuá-
pontes e overdrives – impressionantes esculturas rios pela intervenção urbana realizada. A área do
de lama/mangue, mangue, mangue [...]”.12 No pólo, até o final da última gestão do PFL na pre-
Manguelama, ou na ponte que se ergue sobre ele, feitura do Recife, ao final do ano 2000, não teve
a vida soa como uma improvisada e transitória ro- nenhuma obra de melhoramento em sua estrutu-
tina diária: como as pontes, está incrustada no ra urbana. Era uma parte do Bairro que permane-
mangue, mas não quer com ele se fundir. Por so- ceu como no passado, antes da “revitalização”:
bre – ou sob – as esculturas de cimento e ferro, a edificações deterioradas, iluminação precária, fa-
travessia para o Bairro do Recife anuncia uma pai- chadas sem pinturas novas. No entanto, exata-
sagem feita de espera e persistência. mente por isso, tornou-se um espaço ideal para os
O processo que deu origem ao pólo Moeda sentidos que lhe atribuem seus freqüentadores.
é diametralmente oposto ao do Bom Jesus. Este, Na Rua da Moeda, a sensação não era dife-
local escolhido para ser iniciado o processo de rente. Era difícil imaginar que, à noite, essa rua se
“revitalização” do Bairro, foi detalhadamente pla- tornava um lugar: durante o dia ela nada tinha
nejado. Sendo uma das mais antigas e importan- que pudesse configurar um espaço praticado.
tes ruas do Bairro, desde a época de Nassau, a Como outras ruas do Bairro, limitava-se a ser um
Rua do Bom Jesus – que deu o nome ao mais im- estacionamento para os inúmeros veículos que
portante pólo do Bairro – foi o ponto de partida ocupavam a pequena ilha.
das reformas. Nela foram restauradas as primeiras Dizer que a Rua da Moeda era – na ausência
edificações que, antes ocupadas por velhas pros- das pessoas que lhe atribuem sentidos, apenas um
titutas, passaram a abrigar sofisticados bares e res- espaço urbano – permite visualizar os contrastes
taurantes. Cavaletes de madeira passaram a cir- práticos das diferenciações conceituais entre espa-
cunscrever o pólo Bom Jesus, ordenando o fluxo ço urbano e espaço público, feitas na introdução
de carros e pessoas. Como um lugar típico de desse artigo. Sem os seus usuais freqüentadores
consumo e lazer, o Bom Jesus tornou-se paradig- noturnos, a Rua da Moeda apenas potencialmen-
mático para o processo de gentrification do Bair- te pode ser compreendida como um espaço pú-
ro: ruas limpas, bem iluminadas, com diversifica- blico – enquanto categoria sociológica da visibili-
ção de serviços e um eficaz sistema de vigilância. dade, diferença e conflito estruturada pela presen-
Parte significativa dos recursos públicos e priva- ça de ações que atribuem diferentes sentidos aos
dos foram investidos nesse pólo, tido como cata- espaços. Em trabalho anterior (Leite, 2001), pude
lisador de um projeto mais amplo de “revitaliza- sugerir que se entendesse por lugar uma determi-
ção” urbana de todo o Bairro.13 nada demarcação física e/ou simbólica no espaço,
Dos diferentes usos que se desenvolveram cujos usos o qualificam e lhe atribuem sentidos di-
no Bairro do Recife, ergueram-se pelo menos qua- ferenciados, orientando ações sociais e sendo por
tro espaços de significação e uma zona liminar de estas delimitado reflexivamente. Um lugar é, as-
passagem: pólo Bom Jesus, pólo Moeda, favela do sim, um espaço de representação, cuja singulari-
Rato, largo do Marco Zero e a zona de passagem dade é construída pela “territorialidade subjetiva-
compreendida pelo eixo entrecruzado de duas da” (Guattari, 1985), mediante práticas sociais e
grandes avenidas retilíneas: as avenidas Marquês usos semelhantes. A Rua da Moeda, assim como
de Olinda e Rio Branco. A Rua da Moeda – obje- outras invariáveis espacialidades diurnas do Bair-
to desse artigo – nunca existiu inicialmente nos ro do Recife, era apenas – na ausência desses sen-
o
124 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

MAPA BAIRRO DO RECIFE


DETALHE DO PÓLO MOEDA
REFERÊNCIA CARTOGRÁFICA:
MAPA-BASE BAIRRO DO RECIFE/ URB

tidos atribuídos – um espaço urbano, como uma de pagode e a chamada axé music. Antropofagi-
public property (Gulick, 1998). O bar Pina de Co- camente fundindo rock, funk, maracatu e embola-
pacabana, fechado nas primeiras horas do dia, era da, o Manguebeat recuperou o discurso sonoro
também uma edificação simbólica, mas, sem os da cidade, da rua, e de suas contradições mais ex-
usos, perdia parte da sua eficácia. À noite, quan- cludentes.14 Ao contrário de fazer uma apologia
do outras sociabilidades se desenvolviam na rua, ufanista da cultura pernambucana, cantava a mi-
esses espaços se emprenhavam de significados: séria da periferia da manguetown, ao mesmo tem-
deixavam de ser meros logradouros públicos para po em que contribuía para uma nova reapropria-
se transformarem em lugares. ção da cultura popular ao revelar influências de fi-
O pólo Moeda permaneceu como um elo de guras meio esquecidas pelos jovens do Recife,
continuidade de certas práticas e sentidos que já como Selma do Coco, Mestre Salustiano e os pró-
existiam antes da “revitalização”. Foi no velho prios Maracatus. No início de sua ascendente car-
bairro portuário, com sua má fama de local aban- reira, era justamente no Bairro do Recife – local
donado, perigoso, boêmio e marginal, que se ini- de putas e marginais – onde se apresentavam:
ciou uma das últimas e mais ricas inovações mu-
sicais, culturais e comportamentais de Pernambu- [...] já existia [no Bairro] uma ocupação do pessoal
co. Refiro-me ao Movimento Manguebeat que, alternativo, da cena alternativa: Chico Science, o
sob a liderança do irreverente Chico Science, mor- pessoal das bandas já faziam festas nos cabarés
to prematuramente em um acidente de automó- que existiam: o Adílias, Frank, o Bar do Grego, ti-
vel, renovou a cena musical dos anos de 1990. O nha esse público underground.15
Movimento recolocou Pernambuco na dianteira
cultural, em um momento em que a cena musical O surgimento do pólo Moeda deveu-se mui-
brasileira parecia um tanto estagnada entre grupos to à iniciativa de Roger de Renoar. Empresário e
CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO 125

animador cultural, Roger é uma dessas pessoas O Bairro do Recife sempre foi um lugar que, mes-
que não apenas formam opinião, como também mo antes da revitalização, sempre teve seu char-
congregam pessoas e tendências em torno de me. O Frank’s Drinks foi uma coisa que marcou
o movimento mangue, o Bar do Grego marcou
seus projetos. Carismático e inovador, Roger criou
uma época também, dentro da história [...] as pri-
no Bairro do Pina (na Praia de Boa Viagem) uma meiras festas de Chico Science foram lá, os pri-
soparia que foi o “mais mangue dos bares recifen- meiros shows. Então, era uma coisa que se mistu-
ses” (Teles, 2000, p. 305). A soparia virou ponto rava: a nova galera que tava saindo à procura de
de encontro dos mangueboys e parada obrigató- novos lugares, e os marinheiros, e as putas, e essa
ria para o circuito alternativo da noite recifense. coisa, já não tinha mais zona, os puteiros sobra-
Por razões que não cabe aqui pormenorizar, Ro- vam, já tinha tido declínio então, e coincidiu com
ger mudou-se para o Bairro do Recife, à procura a história da revitalização, começou meio que bo-
tar para fora a galera, o Francis pegou fogo e fi-
de um espaço mais amplo que pudesse abrigar
cou com essa marca de burguesia aqui. Então
seus novos projetos culturais. Sua ida para a Rua esse lado foi uma opção muito legal. Eu pensei
da Moeda, onde abriu o famoso Pina de Copaca- em vir para o Bairro mais por esse lado [a entre-
bana, mudou a paisagem do local. Com ele, vários vista é interrompida por pessoas que vêm cumpri-
grupos e pessoas, que antes freqüentavam a sopa- mentar Roger] Coincidiu que, minha vinda para cá
ria, também migraram para o Bairro do Recife, coincidiu também com a história do investimento
reencontrando um espaço que já retinha enorme que a prefeitura fez, que não é nada boba, depois
que Chico morreu, se passou a olhar para esse
carga simbólica, por ter sido um dos primeiros
lado comercial e o lado positivo da história, o
palcos do Movimento Mangue.
lado lucrativo da história do Manguebeat.16
A importância de Roger é inegável. Durante
a realização da pesquisa, quase todos as pessoas
O depoimento de Roger é elucidativo de um
entrevistadas, que exerciam algum cargo da prefei-
aspecto: a apropriação do conteúdo simbólico
tura relacionado ao Plano de Revitalização, reco-
existente nas práticas sociais cotidianas (e não
mendaram que Roger fosse entrevistado, quando o
apenas no passado histórico edificado, via patri-
assunto era o pólo Moeda. O local do meu encon-
mônio cultural) pelas políticas de gentrification.
tro com Roger não poderia ter sido mais adequa-
Em geral, essas políticas investem em áreas carre-
do: um pequeno boteco, perto da Rua da Moeda,
gadas de sentido pela história e pela evolução ur-
com poucas mesas e uma radiola de ficha tocando
músicas que seriam facilmente rotuladas de “bre- bana dos espaços das cidades. Mas é interessante
ga”. Em uma mesa, três jovens tomavam cerveja. perceber que muitas dessas áreas já sinalizavam
Em outra, uma cena típica do velho bairro: um ma- sua potencialidade pelos usos e sentidos atuais. O
rinheiro, recém-chegado da Venezuela e ainda tra- que Roger sugere, ao se referir à apropriação do
jando seu uniforme branco, parecia trocar promes- “lado lucrativo da história do Manguebeat”, pode
sas de amor com uma jovem e bonita prostituta, ser, no caso do Bairro do Recife, apenas um as-
vestida de saia preta e botas longas. Durante a en- pecto secundário, haja vista o processo ter sido
trevista, fomos interrompidos muitas vezes, ora iniciado no pólo Bom Jesus, e a partir de uma
pelo som que ficava mais alto, ora pelos inúmeros perspectiva mais voltada ao patrimônio edificado
conhecidos que paravam para cumprimentar Ro- do que aos usos que o Manguebeat fazia de ou-
ger: desde homens engravatados que pareciam ter tras áreas do Bairro. Além disso, o movimento não
saído de um reunião de negócios, até bêbados que desenvolveu uma associação com um local espe-
circulavam pelo local. Roger cumprimentava to- cífico, mas com a cidade como um todo, a Man-
dos, sem distinção. O dono do boteco, outro ami- guetown. Contudo, não deixa de ser sugestivo o
go do entrevistado, talvez notando a dificuldade fato de existir alguma forma anterior de valoriza-
que tínhamos em prosseguir a conversa, simples- ção dessas áreas, fato que pode evidenciar, ao
mente desligou a radiola, sem qualquer protesto menos, uma possível influência na percepção dos
dos presentes. Em uma longa e agradável conver- planejadores sobre a potencialidade comercial das
sa, Roger revelou parte da história do pólo Moeda. áreas históricas a serem “revitalizadas”.
o
126 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

Neste caso, haveria um aproximação com o para a cultura pernambucana. Obviamente, não es-
caso baiano de “revitalização” do Pelourinho, este tou afirmando aqui que a questão racial inexiste
sim, um exemplo claro de apropriação de uma va- em Pernambuco, mas apenas enfatizando que, cu-
lorização anterior existente, que justificou, pelo riosamente, na terra de Gilberto Freyre não existe
menos em parte, a implantação das políticas de uma inscrição acentuada da raça no discurso que
gentrification. Sabe-se que o Pelourinho foi, antes forja uma idéia de Pernambuco. O que parece mui-
de sua reforma, um local onde os grupos negros to mais evidente é a tentativa de identificar o Esta-
de Salvador se encontravam. O que muda, no do a partir de certos conteúdos tradicionais de cul-
caso baiano em relação ao do Recife, é que em tura brasileira autêntica. Durante o carnaval, por
Salvador a cultura negra é apropriada para legiti- exemplo, essa problemática aflora na disputa sim-
mar a centralidade do Pelourinho, explorando e bólica pela legitimidade do frevo sobre outros rit-
pasteurizando turisticamente a imagem de uma mos, e, em particular, sobre a música baiana. A
negritude integrada como identidade baiana (Pi- idéia, portanto, mais afluente para uma concepção
nho, 1998). No caso do Recife, por outro lado, a de pernambucanidade está na apologia das “raízes”
valorização anterior – que identificava o Bairro culturais, da suposta autenticidade das tradições e
com o Manguebeat – não pôde ser incorporada à manifestações da cultura.
“revitalização” exatamente porque o espaço social Esta talvez tenha sido uma das razões pelas
dessa identificação era justamente o Bairro contra- quais a Rua da Moeda obteve uma certa legitimi-
enobrecido. Talvez por isso, as manifestações do dade perante a opinião pública mais geral: o pólo
Manguebeat nunca tenham sido utilizadas como adotou em sua variada programação, ao lado de
justificativas para as reformas do pólo Bom Jesus, bandas de rock e mangue, uma programação que
mas associadas ao pólo Moeda, que se mantinha incluía de modo substancial esses valores da cha-
fora do processo de gentrification. Isso não impe- mada “cultura popular pernambucana”. Embora
diu, entretanto, que os principais agentes do Pla- houvesse uma programação oficial de eventos di-
no de Revitalização (poderes públicos e iniciativa ferenciados para a Rua da Moeda, parece claro
privada) usassem estrategicamente a Rua da Moe- que a meta não era apenas incentivar a diversida-
da, quando interessava ressaltar a diversidade de de, mas uma forma de assegurar as fronteiras e as
eventos oferecidos no Bairro do Recife. Aliás, especificidades de cada pólo. A fragmentação exis-
nada seria mais apropriado para um local que foi tente no Bairro não resultava, assim, apenas da es-
tombado17 por ser “simultâneo” em sua arquitetu- colha das pessoas que freqüentavam cada um des-
ra, também erguer uma imagem atual de um es- ses espaços. A assimetria dos usos foi observada
paço culturalmente diversificado. No fundo, o que pela prefeitura e incorporada à programação dife-
diferencia o Pelourinho do Bairro do Recife pare- renciada de eventos que ocorriam em cada pólo.
ce ser o grau de apropriação e de legitimidade A princípio, o fato de haver programações oficiais
buscado nessas manifestações que já mantinham distintas para cada público poderia ser interpreta-
relações identitárias com esses espaços centrais e do como uma sensata atitude de respeito à dife-
com a própria imagem da cidade. rença, não fosse a enorme discrepância que pau-
Neste caso, percebe-se que a variável “raça” tava o tratamento dispensado aos diferentes pólos.
opera uma distinção fundamental entre a idéia de Excetuando o próprio pólo Bom Jesus, o resto do
afro-baianidade e pernambucanidade. Em Pernam- Bairro não tinha sido beneficiado por qualquer
buco não há uma hegemonia negra como na Bahia medida que viesse melhorar a sua infra-estrutura
e a idéia de raça parece diluída entre outras cate- urbana ou o estado de conservação das suas edifi-
gorias indistintas para uma concepção de identida- cações. Havia, contudo, um grande projeto de ur-
de. O critério racial está praticamente ausente na banização a ser implantado na rua da Moeda, mas
concepção de pernambucanidade, embora ela seja as características dessas ações estavam voltadas
construída a partir de muitas manifestações cultu- para o mesmo freqüentador do pólo Bom Jesus,
rais negras, como é o caso dos maracatus, cujo sig- seguindo a lógica de mercado que singulariza as
nificado social tem uma inequívoca centralidade práticas de gentrification.18
CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO 127

O pólo Moeda cresceu em torno do bar Pina randas, das quais participava quem desejasse: estra-
de Copacabana. Nele estavam os bares voltados nhos, conhecidos, amigos, eventuais turistas de
para um público jovem, que formavam o perfil passagem pela cidade. As sociabilidades que no
underground do lugar, chamado muitas vezes de pólo Moeda se estruturavam pareciam, em geral,
“Berlim Oriental”. Também existiam cavaletes ter pouco vínculo com a dimensão propriamente
nesse pólo, colocados com o mesmo pretexto de econômica do consumo. As pessoas que o freqüen-
impedir que algumas áreas de lazer fossem ocu- tavam pareciam estar ali para “consumi-lo” como
padas pelos veículos. Existia, contudo, diferenças símbolo, para trocar significados, mais, enfim, pelo
relevantes na função desses cavaletes. A maioria que aquele espaço significava. As diferenças, que
não tinha o mesmo esquema de vigilância do se codificavam em cada gesto, roupas e adereços,
Bom Jesus. Havia, na verdade, uma inversão da tornavam mais fluidas as fronteiras simbólicas que
lógica dessa vigilância, que podia ser observada, separam as pessoas, permitindo interações múlti-
principalmente, em dias de eventos no pólo. A plas. Era comum ver, neste pólo, uma cena quase
programação cultural, como já se disse, diferia cinematográfica: marinheiros recém-chegados de
por abrigar as manifestações mais voltadas ao cir- outro país dançavam, à meia luz e ao som de ra-
cuito Manguebeat. diola de ficha, com prostitutas que se misturavam
No carnaval, quando todas as fronteiras do aos demais freqüentadores, oferecendo um mo-
Bairro ficavam mais fluidas e os cavaletes torna- mento suspeito de volúpia, sem tanta cautela e re-
vam-se ineficazes, o RecBeat se mantinha como ceio. Meninos cheiravam cola, jovens dançavam
um diferencial da Rua da Moeda: rock, funk, ma- reggae e andavam em bandos. Mal iluminado e
racatu, frevo e embolada faziam do Moeda um an- sem nenhuma obra de restauração, o pólo Moeda
tropofágico espaço-mangue, com apresentações conseguiu também “revitalizar” um espaço do Bair-
de grupos e artistas como Lia de Itamaracá, Mes- ro, imprimindo sua própria dinâmica de usos. Os
tre Ambrósio, Querosene Jacaré, Faces do Subúr- meninos que eram impedidos de permanecer no
bio, Mundo Livre S/A, entre outros, além das par- Bom Jesus sempre ressurgiam no Moeda, sur-
ticipações de Naná Vasconcelos e do irreverente preendendo o crédulo transeunte que pensava
grupo paulistano Karnak. Diferentemente das não existir menores em situação de rua no cenário
atrações do palco central do largo do Marco Zero, enobrecido. Um dos “pontos de fuga” do Bairro do
cuja programação tendia ao gosto médio e mais Recife era exatamente outro pólo que se desenvol-
abrangente dos freqüentadores do Bairro, o pólo veu à revelia do Plano de Revitalização.
Moeda continuava identificado com o chamado O chamado pólo Moeda foi um caso de ocu-
circuito “alternativo”. pação espontânea, numa área do Bairro que ain-
Nas festividades de São João ocorria a mesma da não tinha sido “revitalizada”. Seu surgimento
diferenciação. Enquanto o eixo Marquês de Olinda- radicaliza o que estou chamando aqui de contra-
Rio Branco promovia apresentações de quadrilhas uso, exatamente porque pode ser compreendido
e pequenas bandas para que as pessoas dançassem como uma resposta às fronteiras “enobrecidas”
na rua, no pólo Moeda se apresentavam, por exem- que demarcavam socioespacialmente o pólo Bom
plo, Selma do Coco, Mestre Salustiano e a Banda Jesus. Assim, o pólo Moeda seria um contra-espa-
de Pífanos de Caruaru, entre outros. Era nessas ço: nele, subvertiam-se quase todas as sociabilida-
ocasiões que se observava a inversão no sistema de des que não podiam ocorrer em outras áreas do
segurança. Enquanto no Bom Jesus a vigilância Bairro. Da mesma forma como ocorria no Bom Je-
ocorria de dentro para fora, ou seja, ela era direcio- sus, as fronteiras do pólo Moeda também circuns-
nada para quem não estava no eixo delimitado, no creviam e definiam um estilo de vida que só po-
Moeda ocorria o contrário: a vigilância era exerci- deria ser vivenciado naquele espaço. Dificilmente
da de fora para dentro, sobre os que estavam no se via o freqüentador desse pólo na rua do Bom
interior do pólo. Os próprios freqüentadores eram Jesus, mas a recíproca nem sempre era verdadei-
constantemente observados enquanto dançavam e ra, excetuando alguns turistas que desejavam co-
se divertiam, muitas vezes em grupo, fazendo ci- nhecer o Bairro como um todo. Às vezes, essas
o
128 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

pessoas cruzavam as fronteiras, embora a maioria ras tinham outros parâmetros de inclusão e exclu-
dos usuários do Bom Jesus não freqüentasse o são, quando comparadas às do Bom Jesus. Quan-
Moeda, exatamente porque ela é era antítese do do havia o Mercado Mundo Mix no Bairro, eram
que, em geral, procuravam: segurança para o la- justamente os freqüentadores do pólo Moeda que
zer, em uma rua bem iluminada e vigiada. capitaneavam o evento, embora muitos dos usuá-
rios do Bom Jesus também participassem. Algu-
O público da Bom Jesus vem para a Rua da Moe- mas vezes, o mercado aconteceu no antigo prédio
da. Olha, o público da Bom Jesus pode até fugir
da Alfândega, então denominado “Casarão Pop”,
de lá, às vezes, pode até vir. Talvez o turista que
vai para lá. Mas o público que vai para lá jamais noutras no Armazém 13, na área dos armazéns
vem para cá, sem dúvida.19 abandonados do Cais do Porto. Havia, nessas oca-
siões, códigos identitários inscritos nas roupas,
Em geral, esse fluxo de pessoas do Bom Jesus nos corpos, no comportamento. Embora a princi-
para o Moeda ocorria mais em dias de eventos – pal atividade do Casarão fosse a própria “feira”, na
como a grande festa carnavalesca que passou a qual de tudo se vendia, as relações que ali se de-
acontecer no Bairro –, quando o grande número de senvolviam não poderiam ser reduzidas a um sim-
pessoas que freqüentava todo o Bairro acabava por ples ato econômico de consumo. A maioria das
pulverizar qualquer espacialidade existente, flexibi- pessoas não estava naquele ambiente para pro-
lizando as fronteiras que demarcavam as identida- priamente comprar alguma coisa. Com um enor-
des socioespaciais. Mas, em dias normais, exata- me pé direito e em precário estado de conserva-
mente quando esses espaços eram ocupados coti- ção, o Casarão tinha sua paredes pichadas ou gra-
dianamente pelos seus freqüentadores usuais, essa fitadas. Inúmeras barracas improvisadas vendiam
fragmentação não apenas era mais nítida como uma miscelânea de objetos: artesanatos em couro,
também mais difícil de ser superada. Era pouco barro e papel machê, bijuterias, roupas em bati-
provável que qualquer usuário do Bom Jesus, sem- que, miçangas, caleidoscópios, discos, fantasias
pre bem vestido e portando códigos corporais es- de carnaval, adereços de maracatu e frevo, livros
tranhos aos freqüentadores do Moeda, adentrassem e incensos Hare-Krisna, artigos para decoração e
o pólo, principalmente no trecho mais segmentado lanches, além de um tatuador de plantão.
do bar do Rainha: um pequeno espaço fora dos ca- Sob uma fraca iluminação, que conferia ao
valetes, mais ainda dentro do pólo Moeda, onde, prédio um ar de porão, as pessoas andavam de
em torno de alguns pequenos botecos, diferentes um lado para o outro. Um palco improvisado
“tribos” urbanas se encontravam. servia para apresentações de bandas locais. Era
Os estereótipos eram variados: corpos tatua- possível sentir um aroma de incenso e maconha
dos, cabelos grandes, outros curtos e coloridos, que perfumava todo o ambiente. De vez em
cabeças raspadas, estilo rastafari. Bermudão na al- quando, uma patrulha motorizada da polícia es-
tura do joelho, roupas dos anos de 1960. Óculos tacionava seu camburão e alguns homens entra-
escuros com aros coloridos, boné com aba virada. vam esbaforidos no Casarão, como se quisessem,
São funkeiros, rockeiros, magueboys, skatistas. de qualquer modo, disciplinar o uso daquele lu-
Estes últimos, vez ou outra, iam em bando até a gar. Saíam em seguida em silêncio, sob o olhar
rua Madre de Deus para fazer suas manobras, sob malicioso e cúmplice de muitos. Ninguém pare-
o olhar da Polícia Militar. O clima era sutilmente cia se importar com aquela visita repentina. Na
hostil a quem quer que não se enquadrasse em al- entrada (ou o que poderia ser também a saída),
gum dos perfis dos grupos, embora fosse possível uma pista de skate continuava a entoar um ba-
transitar (quase) normalmente pelo local. Não ra- que solto, aonde se realizava um áspero balé. Na
ramente, ocorriam batidas policiais que já não sur- saída (ou o que poderia ser igualmente a entra-
preendia seus freqüentadores. da), jovens se amontoavam na rua escura, às
Dizer que não existiam fronteiras no pólo margens do Capibaribe, cuja fedentina invadia as
Moeda é um erro. A diferença é que essas frontei- narinas causando torpor. Ali, aonde as diferenças
CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO 129

se codificavam em cada gesto e as fronteiras sim- Assim como na Pomba-gira, uma estreita escadaria
bólicas pareciam se fluidificar, permitindo intera- conduzia o desavisado visitante para uma porta
ções múltiplas, prostitutas se misturavam aos de- que parecia a de um frigorífico: de metal, com uma
mais freqüentadores, oferecendo seus “serviços” pequena e circular janela de vidro, através da qual
por apenas quinze reais. Em um determinado viam-se luzes fortes e muita fumaça branca. Ao
dia, aconteceu vizinho ao Casarão um luxuoso contrário do ambiente rústico e underground do
casamento na antiga Igreja Madre de Deus. Na Pina de Copacabana, o último andar do velho so-
calçada, mulheres com longos vestidos e homens brado era um espaço sofisticado: um ambiente fu-
de terno preto esperavam a noiva, sob o olhar turista, com iluminação estroboscópica, música tec-
atento de fortes seguranças. Na entrada do Casa- no e gelo seco.
rão, garotos sem camisa rodopiavam em seus ba- Outra área que também retinha ruídos eno-
rulhentos skates. O tênue limiar entre aqueles es- brecidos era a dos Armazéns 13 e 14. Destinada a
paços parecia se dissipar quando os skatistas grandes eventos, o público que a freqüentava era
avançavam na direção da Igreja e executavam mais heterogêneo, não havendo cavaletes: o poli-
manobras desafiadoras e arriscadas, seguidas de ciamento, mais uma vez, parecia ter como alvo os
um grito incompreensível, num singular movi- próprios freqüentadores. Tanto se podia observar
os usuários mais característicos do pólo Moeda
mento de codificação da diferença.
como também freqüentadores de ocasião, que iam
Da mesma forma que o pólo “enobrecido” ti-
em busca do show propriamente dito. Os ruídos
nha seus ruídos visuais, configurados pelos contra-
“enobrecidos” do pólo Moeda guardavam um con-
usos, também no eixo do pólo Moeda havia ruídos
traste substancial em relação aos ruídos contra-eno-
de “enobrecimento”, em meio a paisagem contra-
brecidos do Bom Jesus. Estes ocorriam na rua,
enobrecida. O bar Pina de Copacabana tinha, em
abertamente, e tinham um sentido contrastivo evi-
seu primeiro andar, a Discoteca da Pomba-gira. Su-
dente. Os primeiros, excetuando os shows do Ar-
bindo uma estreita escadaria, chegava-se a um es-
mazém 13 e da área externa do Armazém 14, só
paço quase escuro, iluminado por luzes vermelhas, permaneciam na rua o tempo necessário das lon-
onde casais dançavam salsa, mambo e merengue. gas filas para adentrar os espaços fechados, onde
Nada mais contra-enobrecido do que esse ambien- ficavam confinados e protegidos por fronteiras in-
te. No entanto, a duas quadras da Pomba-gira, dois transponíveis para muitos (bolhas de alvenaria).
dancing bar reuniam exatamente o público que Mais do que ruídos, eles podem ser considerados
normalmente freqüentaria o Bom Jesus. A discre- extensões, para outros pontos do Bairro, das socia-
pância entre os ambientes era enorme, e seus fre- bilidades que ocorriam no cenário “enobrecido”.
qüentadores, completamente diferentes. Em um
deles, instalado em um antigo sobrado de três pa-
vimentos, carros de luxo anunciavam, já em sua Lugares e espaço público:
entrada, que não se tratava mais de um local do uma breve (in)conclusão
Moeda, ainda que estivesse localizado em sua área.
Com um rígido sistema de segurança, a danceteria A inteligibilidade das fronteiras que separa-
cobrava cara a entrada. Confundido com um repór- vam os pólos do Bairro do Recife ultrapassa o fal-
ter paulista, graças à desenvoltura do meu infor- so dilema que busca indagar quem surgiu primei-
mante, entrei no recinto sem dificuldade. Estava re- ro, se os usos espacializados ou a programação
pleto de gente. No térreo, um grupo de pagode diferenciada de eventos. Essas variáveis foram
embalava uma estreita pista de dança, que exigia concomitantes: os usos inspiraram e demandaram
muita paciência para atravessá-la. No andar de eventos específicos; e estes, por sua vez, contri-
cima, mesas, garçons bem vestidos serviam bebidas buíram para a manutenção das fronteiras e usos
às pressas, casais namoravam. Gente jovem, em ge- diferenciados. Dessa convergência entre espaço e
ral branca e aparentando uma elevada posição so- ação, estruturam-se – como já sugeriu Antonio
cial. No local, havia, entretanto, outro pavimento. Arantes (2000) – manifestações públicas diversas,
o
130 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

a partir dos significados que as pessoas atribuem de vida, marcadas pelas formas cotidianas de ritua-
a certos espaço da cidade: lizar códigos de conduta. Em ambos os casos, po-
dem ser estabelecidas as bases políticas dos usos
Os habitantes da cidade deslocam-se e situam-se públicos dos espaços da cidade, na medida em que
no espaço urbano. Nesse espaço comum, que é práticas e sociabilidades urbanas que demarcam es-
cotidianamente trilhado, vão sendo construídas
paços mediante condutas identitárias geralmente
coletivamente as fronteiras simbólicas que sepa-
evidenciam formas rituais e cotidianas da política
ram, aproximam, nivelam, hierarquizam ou, numa
palavra, ordenam as categorias e os grupos sociais como ação simbólica (Leite, 2000).
em suas mútuas relações (Arantes, 2000, p.106) Redescoberta e reinventada como imagem
moderna, a “Paris” pernambucana (e antiga Mau-
Existia, no Bairro do Recife, o interesse po- ricéia) não eliminou as possibilidades de manifes-
lítico de assegurar essa espacialização dos usos tações e discordância. Embora o conjunto de seus
que ordenam relações sociais, como forma de espaços tenha sido transformado em uma “paisa-
garantir algo maior que apenas o respeito pela gem de poder” (Zukin, 1995), os contra-usos
diferença. Não “misturar”, embora nem sempre transformaram um espaço moldado predominan-
signifique discriminar, passou a ter, no Bairro do temente para as práticas econômicas e simbólicas
Recife, a conotação de separar. A diferença era de consumo e lazer em um espaço político de vi-
sibilidade pública e contestação. A Rua da Moeda
admitida e respeitada, desde que cada uma ti-
foi um dos lugares que se formou no Bairro do
vesse seu lugar.20 A espacialização segmentada
Recife Antigo, entre outros como a própria Rua do
do Bairro “enobrecido” aconteceu, mas não na
Bom Jesus (típico lugar de consumo e exclusão,
forma de guetos, mas de lugares: menos rígidos
sendo a mais “enobrecida” das ruas), a favela do
em suas demarcações, mas igualmente marcados
Rato (lugar de refúgio, onde antigos moradores –
pelos sentidos que são atribuídos a certos espa-
excluídos dos processos de gentrification – conti-
ços da cidade. Lugares cujas fronteiras não se
nuaram a residir no Bairro) e o largo do Marco
mantiveram tão inflexíveis a ponto de anular as
Zero (entre-lugar de encontro, no qual diferentes
possibilidades públicas de se estabelecer zonas identidades se formavam, estabelecendo zonas de
de contato e negociação, que qualificariam o es- contato e conferindo visibilidade às distintas for-
paço urbano do Bairro do Recife como um es- mas de inserção social e simbólica no Bairro).21
paço público. Se podemos finalizar com alguma indicação
No Bairro do Recife, a desapropriação de su- conclusiva, a partir do caso da Rua da Moeda, di-
jeitos através de uma “curetagem social” (Certeau, ria que os lugares, quando erguidos pelos contra-
1996) resultou em uma reordenação da lógica inte- usos no interior dos processos de gentrification,
rativa da vida pública, a partir das diferentes apro- podem representar formas táticas – espacializadas
priações dos lugares pelas práticas e pelas políticas e simbólicas – de criar singularidades, expressar
cotidianas dos usos do espaço urbano. Esses luga- dissensões e reivindicar direitos. Direitos de perten-
res, embora representem formas de demarcação so- cer à cidade, de estabelecer itinerários próprios, de
cioespacial que estriam os espaços da cidade, pre- fazer do espaço público contemporâneo, enfim,
cisam se contrapor entre si, na afirmação pública do um legítimo espaço político da diferença. Ao con-
reconhecimento e da sua própria existência e singu- trário de significar uma espécie de “privatização”
laridade. Esses lugares, assim, além de desejarem do espaço público – pelo aparente excesso de seg-
ser representados, como sugere Martín-Barbero, de- mentação espacializada de modos de conduta pú-
mandam igualmente ser reconhecidos: “[...] tornar-se blica –, a construção social dos lugares politiza o
visíveis socialmente, em sua diferença” (Martín-Bar- espaço urbano (qualificando-o como espaço públi-
bero, 2000, p. 45). As disputas que incidem sobre co), na medida em que cada lugar, para se legiti-
essas demarcações socioespaciais urbanas podem mar perante o outro – e a partir do qual se diferen-
resultar tanto em um enfrentamento político mais cia –, precisa igualmente ser reconhecido publica-
elaborado quanto na mera contraposição de estilos mente em sua própria singularidade.
CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO 131

Talvez por isso se possa dizer que a lição de original na língua inglesa por se tratar de uma ex-
Arendt continua válida e atual: o homem público, pressão nova, cujo problema de tradução ainda não
está solucionado. Além disso, o termo “enobreci-
mesmo entrincheirado em seus lugares, “se dá a
mento”, embora pareça ser o mais adequado, retém
conhecer”. É na vida pública que as pessoas reafir- ainda uma imprecisão: refere-se ao “nobre” como
mam suas diferenças e legitimam suas visões de categoria de sujeitos de um processo que é em ge-
mundo: o espaço público não se ergue na harmo- ral, e particularmente no Brasil, relacionado mais a
nia das falas, mas na comunicabilidade política do uma estratificação social por renda do que por um
sistema de status.
“desentendimento” (Rancière, 1996), da qual emer-
gem diferentes inteligibilidades sobre fatos iguais, e 3 A “Operação Pelourinho”, como ficou conhecido o
torna factível a possibilidade democrática. Somen- ambicioso projeto de recuperação de um dos mais
expressivos conjuntos arquitetônicos do período co-
te no âmbito da vida pública, e nunca na esfera
lonial brasileiro, foi uma experiência precursora das
privada, as pessoas compartilham ou disputam práticas de gentrification no Brasil. Situado no cen-
realidades, de onde aflora a condição humana da tro histórico da cidade de Salvador, capital do Estado
pluralidade, base da difícil convivência social e das da Bahia, o Pelourinho sofreu uma reforma “relâm-
relações de poder: pago” quando em 1992 o governo do Estado abriu li-
citação para que empresas privadas realizassem a re-
forma em um prazo de 150 dias para a conclusão das
O poder só é efetivado enquanto a palavra e o obras (Fernandes et al., 1995, p. 47). Realizada em
ato não se divorciam, quando as palavras não são curto espaço de tempo, a reforma foi duramente cri-
vazias e os atos não são brutais, quando as pala- ticada em vários aspectos, a começar pelo fato de ter
vras não são empregadas para velar intenções sido executada praticamente à revelia das instâncias
mas para revelar realidades [...] o poder passa a municipais e federais de preservação.
existir entre os homens quando agem juntos, e
desaparece no instante em que eles se dispersam 4 Iniciado no Rio de Janeiro, o Projeto Cores da Cida-
(Arendt, 1987, p. 212). de desenvolveu o Projeto Corredor Cultural, que re-
cuperou parte das fachadas da rua Sete de Setem-
bro, entre 1993 e 1994 (Finguerut, 1995, p. 53).

NOTAS 5 Agência de Desenvolvimento Econômico do Estado


de Pernambuco – AD/Diper, Plano de revitalização
1 Dados os limites naturais desse artigo, essa distinção - Bairro do Recife, Planejamento Urbano e Econo-
aqui proposta está apenas brevemente apresentada. mia, Recife, 1992, vol.1, p.37.
Maiores considerações podem ser consultadas em
Leite (2001). 6 Idem, ibidem.

2 A tradução desse neologismo, derivado do inglês 7 Idem, pp. 37-39.


gentry, é ainda controverso no Brasil, razão pela 8 Idem, p. 41.
qual utilizo aqui o termo original. Silvana Rubino e
Pedro Maia Soares, tradutores de Sharon Zukin, no 9 Depoimento de Fernando Andrade, então coorde-
Brasil, da coletânea O Espaço da diferença (Campi- nador executivo do Escritório de Revitalização do
nas, Papirus, 2000), organizada por Antonio Aran- Bairro do Recife. Entrevista concedida ao autor, na
tes, adotam a expressão “enobrecimento” para o cidade do Recife, em 11 de abril de 2000.
termo. De outro lado, a tradução brasileira para o
livro de David Harvey, The condition of postmoder- 10 Realizado no dia 2 de fevereiro de 1998 e promovi-
nith (Condição pós-moderna, São Paulo, Loyola, do pela prefeitura da cidade do Recife em parceria
1992), optou por utilizar o sofrível termo “gentrifi- com a Associação dos Empresários do Bairro do Re-
cação” para o correspondente em inglês. No entan- cife – ASBAR, o evento reuniu empresários e políti-
to, o tradutor Julio Assis Simões manteve o termo cos locais. Na ocasião, foi celebrado o novo acordo
original em inglês na sua versão para o livro do com o Projeto Cores da Cidade, agora também com
Mike Featherstone, Consomer culture & postmoder- a participação do Programa BID/Ministério da Cul-
nism (Cultura de consumo e pós-modenismo, São tura, para ampliação e consolidação da “revitaliza-
Paulo, Studio Nobel, 1995). Apesar de estar de ção” do Bairro. Na ocasião, foi amplamente discuti-
acordo que o melhor termo em português ainda da a idéia de transformação do Bairro em um mix
seja “enobrecimento”, optei por manter o termo que diversificasse as atividades de comércio e servi-
o
132 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

ços, como num shopping center. (PCR/URB/ERBR, um bairro eclético, é um bairro que tem mais de um
Fórum Bairro do Recife, Recife, mimeo., 1998). pensamento. Então tem lugar para todo tipo de ca-
beça. [...] Exatamente sem querer discriminar nin-
11 PCR/URB/ERBR, Revitalização do Bairro do Recife, guém, simplesmente porque se criou um público
Proposta de Tombamento do Núcleo Original da Ci- naquela área da Rua da Moeda com uma mentalida-
dade do Recife – “Dentro de Portas”, Recife, 1998. de diferente do público que está aqui [no pólo Bom
Jesus]. Então, nós não queremos é que ele tenha lá,
12 Trecho da música “Rios, Pontes & Overdrives”, de
juntar tudo bem, mas se eles estão lá, são pessoas
Chico Science e Fred 04. Cf. Chico Science & Nação
excelentes, aqui também, mas têm uma cabeça di-
Zumbi, Da lama ao caos, Sony Music Entertainment.
ferente daqui. Você não pode misturar, infelizmen-
13 Para uma maior compreensão das especificidades te”. Indagado se esse excesso de espacialização de
das práticas sociais da Rua do Bom Jesus, consultar atividades não resultaria na criação de guetos, Fer-
Leite, 2001; 2002. nando Andrade refutou: “Não foi feito para isso, tá?
Primeiro, esse pólo Alfândega, pólo Moeda, como
14 Para mais detalhes sobre o manguebeat, consultar o chamam, ele foi criado espontaneamente [...] se é
bom livro do jornalista José Teles, Do frevo ao man- espontâneo é do povo, então porque não incenti-
guebeat, São Paulo, Editora 34, 2000. var? E eu não acredito que vamos criar guetos den-
tro do bairro aqui não. Tanto que o trabalho que
15 Depoimento de Noé Sérgio, arquiteto da prefeitura nós fazemos com os empresários, donos dos esta-
da cidade do Recife. Entrevista concedida ao autor, belecimentos, é como um todo. Eu reuni o pessoal
na cidade do Recife, em 13 de abril de 2000. da Bom Jesus, da Rua da Moeda, e eu sempre in-
centivo que a ABR, a associação de empresários,
16 Depoimento de Roger de Renoar, animador cultural seja uma associação de todo um bairro. Infelizmen-
e então proprietário do bar Pina de Copacabana. te ela só trabalha direcionada para o pólo Bom Je-
Entrevista concedida ao autor, na cidade do Recife, sus”. (Depoimento de Fernando Andrade. Entrevis-
em 14 de abril de 2000. ta concedida ao autor, na cidade do Recife, em 11
de abril de 2000).
17 Ministério da Cultura, Portaria n° 263 de 23 de julho
de 1998, do Ministro Francisco Weffort, publicado 21 Tenho tentado explorar, separadamente, alguns des-
em Diário Oficial da União em 24 de julho de 1998. ses lugares: no presente artigo, dedico-me à Rua da
Moeda e Rua do Bom Jesus; em “Localizando o es-
18 A área que compreende a Rua da Moeda está cir-
paço público: lugares, política e desentendimento”,
cunscrita ao chamado pólo Alfândega, área que es-
a ser publicado em coletânea organizada por Anto-
taria para “revitalizada” em uma nova etapa do Pro-
nio Arantes (Ed. da Unicamp), tento analisar as im-
jeto de revitalização, com recursos do Programa
plicações das sociabilidades do largo do Marco Zero
Monumenta/BID. Pelo plano, estariam previstas
na construção do espaço público; e, em “Consumo
obras de recuperação do antigo prédio da Alfânde-
mix da tradição”, artigo em preparação para a Re-
ga, onde seria instalado um shopping cultural. A Rua
vista do Condephaat, busco analisar as tensões e es-
da Moeda seria transformada em um boulevard, fa-
pecificidades da rua Bom Jesus e da favela do Rato.
zendo parte do trajeto do corredor cultural que in-
A análise integral do conjunto desses lugares en-
terligaria os espaços enobrecidos do Bairro até o
contra-se em Leite (2001).
pólo Bom Jesus. Caso essa nova etapa venha a
acontecer, muito provavelmente as sociabilidades
da atual Rua da Moeda desaparecerão ou migrarão
para outra localidade do Bairro.
BIBLIOGRAFIA
19 Depoimento de Roger de Renor. Entrevista concedi-
da ao autor, na cidade do Recife, em 14 de abril de
2000. AGÊNCIA de Desenvolvimento Econômico do Es-
tado de Pernambuco – AD/Diper. (1992),
20 Nesse sentido, é elucidativa a fala de Fernando An- Plano de revitalização - Bairro do Recife.
drade, então coordenador executivo do Escritório
Planejamento Urbano e Economia, vol. 1,
de Revitalização do Bairro do Recife. “[...] no carna-
val atual nós fizemos uma [programação] aqui na Recife.
rua do Bom Jesus, fizemos um carnaval na rua da
ARANTES, Antonio. (2000), Paisagens paulista-
Moeda, esses distintos, lógico. Mas são tipos de pes-
soas diferentes, de gostos diferentes. Lá, é um pes- nas: transformações do espaço público.
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CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO 133

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CONTRA-USOS E ESPAÇO COUNTER-USES AND PUBLIC CONTRE-USAGES ET ESPACE


PÚBLICO: NOTAS SOBRE A SPACE: NOTES ON THE SO- PUBLIC: NOTES À PROPOS DE
CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS CIAL CONSTRUCTION OF PLA- LA CONSTRUCTION SOCIALE
LUGARES NA MANGUETOWN CES IN MANGUETOWN DES LIEUX À MANGUETOWN

Rogerio Proença Leite Rogerio Proença Leite Rogerio Proença Leite

Palavras-chave Key words Mots-clés


Gentrification; Patrimônio cultural; Gentrification; Public space; Cultural Gentrification; Patrimoine culturel;
Espaço público; Lugares; Bairro do heritage; Places; Recife quarter. Espace public; Lieux; Quartier de
Recife Recife.

Este artigo analisa as transformações This article analyses the transforma- Cet article analyse les transforma-
do espaço público na experiência tions of the public space in the con- tions de l’espace public dans le ca-
urbana contemporânea, tendo como temporary urban experience, pre- dre de l’expérience urbaine contem-
referente empírico o caso do antigo senting as an empirical reference the poraine, ayant pour référence empi-
Bairro do Recife, em Pernambuco. A old Bairro do Recife (Recife Quar- rique le cas de l’ancien Quartier de
hipótese do trabalho refere-se à ter), in Pernambuco, Brazil. The Recife, dans l’État de Pernambuco,
possibilidade dos usos cotidianos e hypothesis of this work is concer- Brésil. L’hypothèse de travail se ré-
públicos de esses espaços de patri- ned with everyday and public uses fère à la possibilité des usages quo-
mônio contribuírem na qualificação of these heritage spaces that could tidiens et publics de ces espaces du
de certos espaços urbanos como es- contribute to the qualification of cer- patrimoine de contribuer à la quali-
paços públicos. O argumento central tain urban spaces as public spaces. fication de certains espaces urbains
é que os usos e contra-usos dos es- Therefore, the central argument of en espaces publics. L’argument cen-
paços de gentrification constituem the article is that the uses and coun- tral est que les usages et contre-usa-
lugares e que estes qualificam os es- ter-uses of gentrification spaces can ges des espaces de gentrification
paços urbanos como espaços públi- constitute places, and that these pla- constituent des lieux et que ceux-ci
cos, na medida em que os tornam ces qualify urban spaces as public qualifient les espaces urbains com-
centros de disputas práticas e sim- ones, insofar as they promote these me espaces publics, dans la mesure
bólicas pelo reconhecimento políti- space centers as practical and où ils deviennent objets de conflits
co e pela visibilidade pública das symbolic disputes for political ack- pratiques et symboliques pour la re-
diferenças. nowledgment and for the public vi- connaissance politique et pour la vi-
sibility of differences. sibilité publique des différences.

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