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Modernidade Urbana e

Flexibilidade Tropical: as Feiras livres na


cidade do Rio de Janeiro (1904-1934)
Gilmar Mascarenhas de Jesus*

A
cidade moderna é um inconstante escombros do velho burgo colonial, as feiras-li-
mosaico de territorialídades. A co- vres assistirão paulatinamente à invasão de agen-
existência de tempos, agentes e tes e práticas populares, a erodir uma fria ceno-
processos os mais díspares confere à vida metro- grafia planejada e a fermentar um ambiente mes-
politana grande diversidade e riqueza de possi- tiço e de alegre rebuliço.
bilidades. Nela, os espaços públicos são lugares Enquanto espaço público arquitetado pela
privilegiados para o embate dos diferentes inte- modernidade, a feira-livre não deixou de sofrer
resses e necessidades em jogo, pois a modernida- o assédio dos excluídos. Ao que parece, aliás,
de urbana maximiza o duelo entre os setores he- mostrou-se gradualmente receptiva aos invaso-
gemônicos e os amplos segmentos margina li7a- res, reterritorializando-os num palco privilegia-
dos: os primeiros formatam e normatizam, ao do para o exercício da extrema diversidade que
seu interesse, os espaços da vida pública; os de- caracteriza as cidades brasileiras. Tais conflitos
mais, quase sempre, se recusam a (ou são impe- de territorialidade, que têm como arena as ruas
e praças de um Rio de Janeiro que se moderniza,
SKP
didos/incapazes de) participar desta coreografia
e recriam à sua maneira a vida cotidiana, apro- são o eixo central de nossa preocupação. Antes,
priando-se' inconvenientemente dos espaços pú- algumas palavras sobre essa tal modernidade se
blicos, ali instaurando, ainda que muitas vezes fazem necessárias.
precária e brevemente, uma territorialidade alheia O conceito de modernização, quase sempre
ao projeto elitista da modernidade. atrelado ao de modernidade, se move na litera-
O presente artigo procura verificar a presen- tura geográfica com grande fluidez e diversidade
ça desta faceta de dualidade da modernidade ur- de acepções. SANTOS (1994:71) chega mesmo
bana nas feiras-livres cariocas. Criadas oficial- a sugerir que não existe uma única modernida-
mente em 1904, em pleno bojo da Reforma Pas- de, mas várias, e, portanto, existiriam moderni-
sos, elas representam a culminância de um lon- zações sucessivas. Restringindo nossa reflexão ao
go processo de intervenção do poder público âmbito da modernidade na cidade, poderíamos
sobre o comércio varejista popular, desterritori- adentrar pelo universo discursivo do urbanismo,
alizando-o brutalmente. Concebidas (assim su- onde a modernidade urbana somente começa
pomos) para simbolizar a higiene, a ordem e a com a obra de Le Corbusier e as realizações da
europeização da cidade radiosa que emerge dos Bauhaus, no pós-primeira guerra mundial, ba-

Professor do Departamento de Geografia da UERJ. Doutorando em Geografia Humana pela USE


O termo apropriação é aqui tomado no sentido utilizado por Henri Lefebvre, como práxis de reação à gestão
da vida cotidiana ditada pela propriedade e/ou como estratégia do usuário frente aos processos hegemônicos
de alienação e institucionalização da vida. Nas palavras de SEABRA (1996: 72), o conflito propriedade x
apropriação promove "embates que se travam na textura fina da sociedade, e têm de subverter formas de uso,
revolver costumes".

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seada sobretudo na abolição da rua (CHOAY, cionais se diluem numa paisagem inconstante.
1992:20). Neste sentido, o modelo de cidade Modernidade assim definiria este ambiente pro-
modernista em HOLSTON (1993), por exem- piciador de imensas possibilidades, enquanto a
plo, é Brasília, enquanto o Rio de Janeiro apenas modernização poderia ser concebida como a par-
conserva, no aparato conceitual do autor, as es- ticular via burguesa de lidar com esta moderni-
truturas urbanas pré-modernas. Holston, aliás, dade, resolvendo suas profundas contradições
não difere cidade moderna de cidade modernis- com drásticas reformas urbanas e investimento
ta, deixando implícita a possível condição de em melhoramentos técnicos, conforme nos
palavras sinônimas. O modernismo, enquanto aponta BARBOSA (1990:48-9), baseado em
movimento estético de amplo alcance, seria a Berman e Lefebvre. Tal modernização não se
matriz das experiências de modernização urba- detém no aspecto técnico-material, mas incor-
na. Preferimos porém concordar com HARVEY pora e realça uma face de dominação, através da
(1993:34), que situa o urbanismo modernista explícita segregação sócio-espacial e do severo
mais como conseqüência do que causa da mo- controle disciplinar no trabalho, nas vilas operá-
dernidade urbana, tomando-a como o ambiente rias e nos espaços públicos, preocupação aliás
concreto de perplexidades, que se manifesta na presente em diversos trabalhos, dos quais gosta-
experiência urbana como crise fomentadora de ríamos de dest2rar BRESCIANI (1982), ROL-
fecundas reflexões urbanísticas. Com efeito, a NIK (1988), RAGO (1985), CHALHOUB
modernidade se instala na vida urbana antes (1986) e BRITO (1991).
do advento do urbanismo de inspiração mo- Considerando-se as enormes lacunas docu-
dernista. mentais que o tema apresenta, não podemos no
Nesta linha, há uma corrente de estudiosos momento ir além de um trabalho de natureza
da história da cidade e do urbanismo onde as mais ensaística e exploratória que propriamente
noções de modernização e modernidade urbana um relato de caráter mais ou menos definitivo.
se aplicam às intervenções que diversas cidades Aproveitamos o estado incipiente da tematiza-
brasileiras sofreram a partir de meados do sécu- ção para arriscar um vôo que sugere alguns no-
lo passado, tendo seu ápice na Reforma de Pe- vos nexos. Não obstante, acreditamos que assim
reira Passos2 . A modernização conviveria com mesmo o presente trabalho se reveste do mérito
modelos urbanos pretéritos numa mesma cida- de lançar breves olhares sobre zonas até então
de, eliminando, neste caso, definições absolutas pouco iluminadas pela pesquisa acadêmica.
de cidade moderna ou pré-moderna.
A noção de modernização urbana aqui toma- A CRIAÇÃO DAS FEIRAS—LI—
da (e conseqüentemente a de cidade moderna) VRES: UM ORNAMENTO DA PE—
vai ao encontro das reflexões de BERMAN DAGOGIA CIVILIZADORA?
(1987), que as desenvolve no sentido da con- No momento em que Pereira Passos assume
cepção marxista de moderna sociedade burgue- a gestão da cidade, esta apresentava um cenário
sa. Um quadro alarmante composto por extre- complexo no tocante à estruturação e distribui-
mos contrastes materiais de condições de vida, ção espacial do pequeno comércio, herdado de
envolvendo a experiência inédita das multidões, séculos de um longo passado colonial. Quando
a laicização / profanação do sagrado, confluindo o prefeito inicia seu tão famoso bota-abaixo, re-
num ambiente urbano onde as referências tradi- modelando a área central do Rio de Janeiro não

2 Esta é a posição majoritária dos estudiosos que participam dos encontros periódicos sobre história urbana
organizados pela ANPUR (ver, por exemplo, FERNANDES & GOMES, 1992). Este nosso trabalho
compartilha desta posição.

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apenas na fisionomia, mas sobretudo nas práti- de Janeiro. Por outro lado, BENCHIMOL
cas sociais (expulsando os deselegantes, arcaicos (1990: 280-5) apresenta todo um conjunto de
e promíscuos usos populares), os espaçós públi- intervenções públicas radicais neste universo,
cos do centro da cidade estão majoritariamente eliminando das áreas centrais, confinando e re-
animados em seu cotidiano pelas formas mais gulamentando crescentemente tais atividades,
rudimentares de mercadejar (CARVALHO, sobretudo no contexto da Reforma Passos, sob
1994). Entende-se facilmente a razão pela qual alegações de defesa da higiene e circulação pú-
não são poucos os autores de época que compa- blicas. Consultas aos códices de abastecimento
ram o Rio de Janeiro a uma cidade árabe (BAR- do Arquivo da Cidade nos permitem afirmar que
BOSA, 1990). PARGA (1996:16-7), em seu es- desde pelo menos 1880 já se esboça este conjun-
tudo sobre o pequeno comércio no Rio de Ja- to de medidas de restrição. Contudo, somente
neiro do século XIX, afirma que os vendedores na gestão remodeladora da cidade é que estas
ambulantes "estendiam-se por todas as ruas e serão aprimoradas e mais efetivamente cumpri-
caminhos da cidade, (...) desde os aguadeiros até das. Também os velhos quiosques, pontos de
os mascates que vagavam pelos logradouros com concentração de trabalhadores pobres, foram
suas malas repletas de quinquilharias e gritos reconhecidamente alvo fatal da fúria civilizado-
escandalosos característicos". ra de Pereira Passos.
Dada a natureza informal destas atividades, Merecem ainda destaque as populares qui-
que resulta em escassa documentação, dificil tandas (do quimbundo kitanda: mercado), re-
seria tentar mensurar e mapear este duplo con- gularmente presentes na cidade brasileira desde
tingente de mercadores, entre os ambulantes início do período colonial. Constituem aglo-
(aparentemente um grupo muito mais numero- merações de negras ao ar livre, acocoradas ou
so)3 e aqueles assentados precariamente em pon-
tos fixos nas vias públicas, exercendo seu oficio
dispondo de tabuleiros, situadas em pontos
preestabelecidos, para a venda de produtos da
E
1

de forma relativamente sedentária. Debret, Ru- pequena lavoura, da pesca e da indústria domés-
gendas e Chamberlain, para citar apenas alguns, tica. GUIMARÃES (1968), PARGA (1996),
deixaram-nos registros diversos desta modalida- BRUNO (1953) e muitos outros nos deixam
de de comércio através de aquarelas, estampas e vagas referências a esta modalidade de varejo que,
outras formas de expressão. Sabemos pois de sua na aparência de um arremêdo de feira (GUIMA-
existência notória e difusa, mas não podemos ir RÃES,. 1968:21), represente talvez a principal
muito além da mera constatação do fato.'. forma precursora das feiras-livres do início do
Obras como as de João do Rio (1991) e ED- século XX. No final do século XVIII, o Rio de
MUNDO (1938) nos remetem a um quadro Janeiro contava com o significativo conjunto de
panorâmico e pitoresco da heterogeneidade das 181 barracas de quitandeiras (BARRETO FI-
formas de comércio ambulante na cidade do Rio LHO & LIMA, apud AZEVEDO, 1992:65).

3 Saint Hilaire registra que na cidade do Rio de Janeiro predominam o escravos itinerantes, enquanto na cidade
de São Paulo são mais comuns as negras quitandeiras acocoradas nas ruas (GUIMARÃES, 1968:22).
4 Isto explica a opção de autores como PARGA (1996) em trabalhar quase estritamente com as formas de
pequeno comércio oficializadas e em estabelecimentos fixos, que figuram nos arquivos públicos e nos
almanaques. LAEMMERT (1990) salienta que, apesar de a maior parte das atividades cotidianas fundamentais
para o funcionamento das cidades brasileiras no século XIX (abastecimento alimentar e de água, iluminação,
transporte, escoamento de dejetos e limpeza urbana) ser desempenhada por negros escravos, são raros os
estudos que aprofundam as relações entre o escravismo e a estrutura e funcionamento de nossas cidades.
Consideramos que tal desconhecimento atinge não apenas as atividades desempenhadas por escravos, mas o
conjunto daquelas que se realizam em condições precárias, regidas por certa informalidade ou clandestinidade.

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O processo de territorialização destas moda- cana (..) Surge uma vasta legislação que
lidades populares de comércio se consumou atra- demanda documentos comprobatórios,
vés das muitas décadas de uma urbanização ace- atestados de visitas dos fiscais, regras de
lerada, porém baseada em muitos aspectos no salubridade(..).
modelo colonial. A manutenção de um traçado Expulsos os quiosques, as kitandas ou feiras
aparentemente irregular, próprio da colonização africanas, os ambulantes incompatibilizados com
lusitana' , repleto de ruas estreitas e dotado de os novos padrões de civilidade, enfim, todo um
poucos espaços amplos, resultou na configura- conjunto de meios de sobrevivência popular, o
ção de uma trama congestionada e ruidosa de que adveio em seu lugar?
pontos de comercialização varejista. Por outro Para substituir as tradicionais formas de dis-
lado, a presença numerosa de negros, e posteri- tribuição varejista de alimentos, a prefeitura do
ormente de grupos de imigrantes estrangeiros, Distrito Federal decidiu pela multiplicação dos
num quadro de baixa oferta de empregos, im- mercados cobertos, iniciativa que remonta a
puseram à cidade diferentes formas de compor- aproximadamente 1870, mas somente então ga-
tamento territorial na luta cotidiana pela sobre- nha efetivo incentivo governamental, incluindo
vivência, de forma tal que esta parece ter sido, a doação de terrenos públicos para sua constru-
na virada do século, um fantástico laboratório ção e exploração por empresas privadas6 . O ca-
de territorialidades populares. Laboratório este pital internacional também se utilizou desta prer-
que sofreu um choque desterritorializante com rogativa (BENCHIMOL, 1990:283-4). Tais
a Reforma Passos. Nas palavras de MOURA medidas representam não apenas a possibilidade
(1995:70): maior de fiscalização pública e controle das ati-
Com a reforma da cidade, são intensi- vidades varejistas agora confinadas em edificios
-1 ficadas todas as firmas de arrernAção para dotados de portões como uma fortificação. Sig-
suplementar o financiamento das obras nificam também mais um passo no sentido de
públicas, passando a se exigir com mais superar o tão criticado aspecto árabe da cida-
rigor as licenças para profissões autônomas de e remover da paisagem o passado escravis-
e para o pequeno comércio, o que atingi- ta-colonial, pela redução, afastamento ou mes-
ria em cheio o comercio paralelo dos ne- mo dissolução das aglomerações de negras qui-
gros. Essa taxação visava implicitamente tandeiras.
a acabar, ou pelo menos afastar dó Cen- Uma outra forma de comércio estimulada,
tro, essa face da cidade que lhe dava, em aliás, concebida, pela moderna administração da
algumas partes, o aspecto de uma feira afri- cidade foi a feira-livre, criada em 13/10/1904.
5 A clássica comparação com o padrão tabuleiro de xadrez da América Espanhola é freqüente na LITERATURA
(REIS FILHO, GEIGER, AZEVEDO), quase sempre pautada na obra fundamental de HOLANDA (1948),
que atribuiu ao desleixo e descaso dos lusitanos a culpa pela suposta ausência de regulamentações urbanísticas
no Brasil colonial. ABREU (1996), baseado em ampla e atualizada revisão bibliográfica, apresenta uma
reinterpretação do problema, salientando que não faltou na empresa colonial portuguesa um amplo controle
sobre a vida urbana, sendo aliás este o principal motivo da fisionomia irregular de nossas cidades.
6 O período que se estende aproximadamente de 1850 a 1930 assinala no Brasil a fase predominante de
construção de mercados cobertos. Posteriormente, tal iniciativa foi considerada ultrapassada, por convincentes
preocupações de caráter sanitário. No Rio de Janeiro ainda encontramos resquícios desta época, como por
exemplo o Mercado São José, em Laranjeiras. Várias outras cidades conservam estas estruturas hoje reutilizadas
para fins de entretenimento e venda de produtos regionais típicos, como o Mercado Modelo (Salvador), os de
Porto Alegre, Belo Horizonte e Florianópolis, entre outros. Muitos foram demolidos, como os da Glória e da
Harmonia, no Rio de Janeiro. Outros, como os de Recife, perduram ainda com suas funções originais,
atendendo sobretudo aos setores pobres.

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O texto do decreto 997 se refere a "feiras ou tasia urbanística moderna. A limpeza e a organi-
mercados livres", sem, no entanto, exj:iliCar a zação eram rigorosamente fiscalizadas; os horá-
adoção do adjetivo livre, que posteriormente se rios obedecidos com pontualidade britânica; as
incorporou em definitivo ao nome (feira-livre) barracas enfileiradas em ordem absolutamente
gerando uma denominação intraduzível para geométrica, apresentando toldos com cores re-
outros idiomas7 . Assim esta denominação é ado- ferentes ao tipo de produto exposto. Vários ou-
tada em todo o Brasil para designar as feiras se- tros aspectos eram severamente observados pela
manais de caráter intra-urbano (de âmbito pra- fiscalização pública. O rigoroso policiamento
ticamente restrito ao bairro), diferentes daque- impedia a ocorrência de delitos. SILVA (1936)
las tradicionais que reunem compradores e ven- chega a compará-las com as congêneres européi-
dedores oriundos de áreas distantes, muito co- as (que visitara na Alemanha, Suécia e Dinamar-
mum no Nordeste, e que preferimos denominar ca) , pela harmonia e beleza do conjunto
feiras regionais (JESUS, 1991). (op.cit.p.10). Supomos que a feira-livre tenha
O que nos interessa, porém, é inserir esta ini- consistido em projeto de plena inserção nos ob-
ciativa governamental no contexto das transfor- jetivos da Reforma Passos, ainda que completa-
mações urbanas de então. Um dado importante mente ignorada pela bibliografia especializada no
a considerar é que, até o ano de 1916 (quando o assunto' .
decreto 1752 estabelece seu funcionamento diá- Levantamos, então, algumas indagações: se-
rio), tais feiras funcionaram em caráter experi- riam as feiras-livres de Pereira Passos um territó-
mental, realizando-se apenas aos domingos e fe- rio•fmjado para a fruição das elites? Até que ponto
riados. Isto nos remete à situação dos mercados aos deserdados de sua Reforma era permitido o
cobertos, que certamente desempenharam, pelo acesso a tais territórios? Certamente poderiam
menos até aquele ano, um papel muito mais efe- inexistir impedimentos legais a seu acesso, mas
tivo que as feiras-livres no abastecimento da ci- sabemos das barreiras invisíveis, aquelas que
dade. Haussmann criou ao derrubar as velhas mura-
Não dispomos de qualquer outra informa- lhas de Paris para erigir outras, simbólicas e mais
ção oficial sobre a realidade das feiras-livres cari- efirwes, para repelir o inimigo revolucionário,
ocas no seu período inicial, mas supomos que que vinha convivendo dentro da cidade com os
seu papel tenha sido muito mais simbólico do detentores do poder. Tal indagação se fundamen-
que concreto enquanto veículo de distribuição ta no reconhecimento de que o espírito da Re-
varejista. Os comentários de SILVA (1936) nos forma Passos era profundamente haussmannia-
convidam a pensar que estas parecem ter funci- no, e que não foram poucas as suas iniciativas (e
onado como símbolo de higiene, de estética e da de seus seguidores na gestão da cidade) no senti-
racionalidade geometrizante, elementos da fan- do de forjar situações/lugares onde a sociabilida-

7 Supomos que tal adjetivação se explique pelo franco acesso de sitiantes e outros produtores da zona suburbana,
que, com a criação das feiras-livres, passaram a contar com uma forma organizada e legal de expor suas
mercadorias. Tal hipótese deriva da pista deixada por BARRETO (1953:11-12), que afirmou possuir a feira-
livre um caráter profundamente socialista, pois ela visa a eliminar o intermediário entre o produtor e o
consumidor. Tal 'acessibilidade franca poderia então justificar a denominação oficial de feiras ou mercados
livres. Outra hipótese, menos plausível porém não descartada, é o aspecto deste novo mercado, que se realiza
a céu aberto, ao ar livre, diferente das estruturas cobertas que predominam na época.
8 BENCHIMOL (1990), com seu estudo bastante minucioso, e, mais recentemente, PEREIRA (1996), em
seu belo trabalho, pretendem percorrer os mais variados aspectos da Reforma Passos, sem entretanto mencionar
a feira-livre. Também ABREU (1987), ROCHA (1983), CARVALHO (1989) e BARBOSA (1990), em obras
de maior alcance temático, omitem a existência da feira-livre.

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de burguesa pudesse se realli72r e se exibir como- pregnados de sentido: eles proclamam alto e for-
damente a despeito da miséria circundante: te a glória e o poder do Estado (LEFEBVRE,
1991:16).
O saneamento da cidade enseja a
Nesta linha de reflexão sobre os elementos
oportunidade de novos entretenimentos.
constitutivos da cidade moderna, indagamos até
A população passa a frequentar com as-
que ponto a feira-livre de Pereira Passos não te-
siduidade, as praças, os parques e os jar-
ria sido concebida enquanto mais um ornamen-
dins (..) A Batalha das Flores, promo-
to dedicado à pedagogia da civilização nos trópi-
vida em setembro de 190Z está a de-
cos. Sabe-se que todo território circunscreve em
monstrar este desvelo, pois ela nada mais
seu interior um conjunto específico de possibili-
é que o desfile de carros e automóveis
dades, ao sugerir determinado comportamento
adornados de flores variadas e multico-
a quem se introduza em seus domínios. No caso
res, desfilando na Praça da República
das feiras-livres, imaginamos que seu formato
(..) Armam-se arquibancadas para o
carregado do sentido de organização, beleza e
público. (Renault, 1980:119-121)
asseio, inspirasse nos freqüentadores aquela nova
A expressão fazer avenida (antes restrita aos economia de gestos de que nos fala RAGO
passeios à Europa, Buenos Aires e Nova Iorque) (1985). E deixasse, após a visita, aquela imagem
tornou-se possível com a abertura da Avenida da nova ordem civilizadora, induzindo a crença
Central: percorrer seus cafés e vitrines, sem o de que a cidade estava realmente mudando, e
desprazer de esbarrar em carroças, ambulantes e para muito melhor. Como aliás funcionou um
quitandeiros, degustando tranqüilamente as fa- amplo conjunto de novos espaços públicos de
chadas art-nouveau e sentindo-se finalmente então. Afinal, estamos imersos numa conjuntu-
membro do mundo civilizado. Freqüentar a fei- ra de rápido avanço de valores burgueses (CAR-
ra-livre e descobrir a possibilidade de adquirir os VALHO, 1996:42).
produtos longe do ambiente (agora tomado
como) tumultuado, feio, sujo e barulhento das UM ORNAMENTO MACULADO:
velhas kitandas. Vale refletir sobre a leitura que a FLEXIBILIDADE TROPICAI2
população urbana faz destes novos espaços pú- LINHARES e SILVA (1979) apontam para
blicos. a existência de uma crise crônica no sistema de
AGULHON (1994), um dos maiores estu- abastecimento alimentar da cidade do Rio de
diosos da história das sociabilidades, desenvol- Janeiro, que se estende de 1808 ao final da pri-
veu um interessante estudo sobre escultura cívi- meira guerra mundial. O início da longa crise se
ca e decoração urbana, onde procura demons- dá com a chegada da familia real portuguesa, que
trar que elementos arquitetônicos como facha- de imediato quase duplica a população da cida-
das de edifícios públicos, monumentos como de, impondo grande aumento na demanda de
arcos do triunfo, chafarizes, obeliscos e outros abastecimento alimentar. Demanda que não se
elementos edificados nos espaços públicos, so- esgota no aspecto quantitativo: os hábitos ali-
bretudo a partir do século passado, não se res- mentares dos novos habitantes conduzem a uma
tringem ao efeito decorativo: têm função didáti- diversificação muito maior que o limitado car-
ca, exercendo papel particular na pedagogia da dápio de então, mudança esta motivada sobre-
ordem burguesa. Retomando a Paris de Hauss- tudo pela considerável incorporação de imigran-
mann, a nossa fonte principal de inspiração ur- tes estrangeiros de origem diversa. Quanto ao
banística, vemos que os grandes espaços abertos momento final desta crise crônica, ele se dá com
pela reforma urbana, apesar de vazios, estão im- as medidas oficiais de radical transformação nas

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estruturas viciadas de então: abertura e melho- No curso de menos de duas décadas (1916-
ramento de vias de acesso às zonas produtoras 1934) as feiras-livres superam completamente
de alimentos; subsídios à comercialização e fi- aquele significado estritamente simbólico orna-
nalmente o aperfeiçoamento das formas de dis- mental aqui sugerido. Elas agora desempenham
tribuição final da produção, via expansão das papel crucial no sistema de abastecimento, aliás
feiras-livres' . extrapolando em muito os setores alimentício e
E assim, em 1916, a prefeitura resolve ex- de flores, que caracterizaram sua primeira fase
pandir o sistema das feiras-livres, logo seguida (1904-1916). Incorporam tecidos, plásticos, fer-
de uma gestão caracterizada pela abertura de es- ramentas e pequenos utensflios domésticos em
tradas para facilitas o escoamento da produção geral. Transformadas em centros periódicos de
alimentar das freguesias suburbanas e rurais grande volume de negócios varejistas (algumas
(REIS,1977:65) (uma daquelas vias conserva feiras chegam a reunir regularmente mais de
ainda hoje o nome do prefeito Amaro Cavalcan- quinhentos feirantes num único dia), os feiran-
te). As feiras passam então a existir em número tes passam a pagar elevados impostos à adminis-
de 14, duas para cada dia da semana. Evoluem tração municipal, em valores que podem, fre-
paulatinamente até constituir, no início dos anos qüentemente, ultrapassar os de estabelecimen-
trinta, um conjunto de 42 feiras (seis para e2cla tos comerciais fixos (SILVA, 1936:13).
dia da semana). Com novo papel e ampla disseminação na
As feiras-livres de então apresentam-se mui- mancha urbana, a feira-livre, agora finalmente
to bem distribuídas por toda a mancha urbana, tomada como elemento de funcionalidade na
conforme atesta a relação contida em SILVA vida cotidiana, terá seu universo de relações so-
(1936), que aliás salienta o grande serviço por ciais alterado. Nossa atenção está voltada parti-
elas prestado ao abastecimento da cidade. Con- cularmente para a natureza das formas de socia-
clusão que se chega facilmente ao verificar a es- bilidade que se desenvolvem no interior deste
tratégia locacional do conjunto: todas as feiras- território transfigurado, que é a feira-livre. E
livres ocupam os pontos centrais de cada bairro, novamente encontramos em SILVA (1936) re-
junto às estações ferroviárias (quando nos subúr- latos essenciais, preocupado que está em reter
bios), em vias e praças importantes, como Praça curiosas usanças e alocuções populares, enten-
Saenz Pefia, Praça da Bandeira, Largo do Ma- dendo ser a feira-livre um local privilegiado para
chado, Rua Conde de Bonfim, Rua das Laran- tais manifestações que considera folclóricas:
jeiras, Avenida do Mangue, Rua Barata Ribeiro, "agrupamentos curiosos.., núcleos que, semanal-
Avenida Suburbana etc. A maioria destas ocor- mente, imprimem uma nota pitoresca em vári-
ria em dias úteis e em horários nos quais o mo- os cantos de nossa terra" (SILVA, 1936:7).
vimento de tráfego atinge seu ápice (evidente- Pretendendo-se um estudioso diletante da
mente, alguns anos mais tarde estas feiras mi- cultura e dos comportamentos populares, o au-
graram por força do incremento do fluxo de ve- tor elenca uma série de passagens colhidas em
ículos). Este padrão locacional privilegiado de- suas visitas periódicas às feiras-livres cariocas,
monstra o papel relevante que as feiras-livres entre 1921 e 1934. Descreve os tipos sociais
cumpriam naquele momento. humildes e os diálogos entre eles, que, na postu-

9 Cabe informar que as revoltas populares contra a carestia dos alimentos, que culminaram com a Insurreição
Anarquista de 1918, formaram papel fundamental no processo. Por outro lado, a conjuntura da guerra majorou
os preços dos produtos alimentícios no mercado internacional, desviando para a exportação parte de nossa
produção interna, resultando, conseqüentemente, em redução da oferta e encarecimento dos produtos.

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ra elitista do autor, revelam sempre "algo de amplo de apropriações diversas, em reação ao
imaginoso entre os rudes" (SILVA, 1936:8). Cita modelo elitista uniformizante, que se revela in-
diversas piadas que considera obscenas (emiti- compatível com uma sociedade culturalmente
das principalmente por lusitanos, "que adoram heterogênea e marcada por fortes contradições
as filhas coloridas do País) e que são dirigidas às de classe. PEREIRA (1996) nos traz exemplos
moças morenas (nunca lhes atribui a cor negra), formidáveis:
criadas (empregadas domésticas) a circular em
Toda a população tem a esperança que
ofício pela feira-livre, transportando sacolas.
a Avenida (Central) concorra para modi-
Toma tais momentos como transgressões, o que
ficar certos costumes; mas se não se evitar
nos sugere a referência possível a um ambiente
desde já que eles penetrem, será depois
pretérito predominantemente austero no tempo
muito 4ficil corrigi-los. Já hontem os ven-
de Pereira Passos. Cita ainda a presença de uni
dedores fixos de jornaes assentaram acam-
violeiro nordestino, sentado sobre um caixote de
pamento ao pé dos postes da iluminação
madeira, a entoar "trovas brejeiras, aglomerando
electrica e instalaram o seu caixãozinho à
pessoas de mesma categoria, rindo e emitindo
guisa de tamborete. Amanhã ou depois o
opiniões maliciosas" (op.cit.p.36). Neste momen-
poste estará amarrado a cordas e cordões
to, passa um bonde (estamos na praça Sezerde-
enfeitado de todos os jornaes da cidade.
llo Correa, em Copacabana) e um "moreno" pen-
Os postes vão ser o centro desse mercado
durado no estribo grita para a turma: "Vamos
original. (Jornal do Commercio, 1905,
ver, negrada!".
apud PEREIRA, 1996:199)
A cena revela não apenas a presença de ele-
mentos populares no cotidiano de uma feira-li- A Avenida Central, eixo monumental da Re-
36 no bairro mais sofisticado da cidade de en- forma Passos, o nosso eminente boulevard, via-
tão. Mostra também a possibilidade destes ele- se já em 1905 sob o risco indesejado de conta-
mentos re21 iza rem encontros festivos no interi- minar sua nobreza e elegância com as improvi-
or da feira, exercendo espontaneamente formas sadas estratégias populares de sobrevivência.
de sociabilidade que possivelmente não seriam Alheios ao projeto civilizador da avenida, os ele-
admitidas no período de Pereira Passos, marca- mentos marginalizados apenas buscam cotidia-
do pelo conhecido elitismo segregador. Consi- namente o seu sustento material. Os vendedo-
derando-se como válida tal hipótese, estaríamos res de jornal vêem naquela maravilhosa e larga
diante de um processo de incorporação à feira- via a possibilidade de exercer com sucesso seu
livre de práticas comportamentais distintas da- ofício, sem talvez compreender o quanto a sua
quelas para as quais foi concebida. Práticas que presença comprometia a cenografia do lugar. O
apontam para o exercício de formas de sociabili- trecho acima demonstra com clareza a expecta-
dade alheias ao projeto civilizador vigente e que, tiva pedagógica do projeto da avenida, em ree-
de certa forma, resgatam um pouco do ambien- ducar os costumes da população. Vejamos outro
te informal das velhas quitandas e dos quiosques. exemplo similar, decorrido no ano seguinte:
Tal movimento de desvirtuamento dos ide- Num dos últimos domingos vi passar
ais civilizadores da belle e'poque certamente não pela Avenida Central um carroção atulha-
estaria circunscrito unicamente ao universo da do de romeiros da Penha; e naquele amplo
feira-livre. Diversos outros espaços arquitetados boulevard esplêndido (..)o encontro do
pelo projeto de modernização do Distrito Fede- velho veículo, em que os devotos bêbados
ral sofreram alterações significativas quanto ao urravam, me deu a impressão de um mons-
uso previsto. Isto significa um movimento mais truoso anacronismo: era a ressurreição da

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barbaria (..) ainda se a orgia desbragada alidade colonial, alargar e abrir novas vias são
se confinasse no arraial da Penha! Ma:s. não! operações de impacto radical na fisionomia da
Acabada a festa, a multidão transborda cidade, transformando sensivelmente sua confi-
como uma enchurrada vitoriosa para o guração territorial. Mas não alteram significati-
centro da urbs. (crônica de Olavo Bilac vamente a sua reprodução social cotidiana, ain-
na Revista Kosmos, apud PEREIRA, da que esta dependa substancialmente das con-
op. cit.p.200) dições territoriais. Havia, entretanto, um cará-
Nem todos demonstravam a mesma insatis- ter excludente no projeto e este descompasso
fação reinante para com o processo de retomada entre a paisagem e a estrutura social não poderia
dos espaços reformados pelos segmentos margi- perdurar por muito tempo.
nalizados (dos quais destacamos o comércio in- Das velhas formas de sobrevivência da dasse
formal). O trecho abaixo é de Mário Pederneiras subalterna, algumas permaneceram sob nova re-
que, em suas crônicas, faz simultaneamente a gulamentação e padrão locacional, porém mui-
apologia da Reforma Passos e lança comentários tas outras foram abolidas na nova ordem urba-
saudosistas aos aspectos remanescentes da bucó- na. No conjunto, a proposta de usos e de estru-
lica cidade colonial: tura ocupacional para a cidade remodelada estão
muito aquém das demandas populares de sobre-
Tudo novo, tudo Civilização (...)A Ci- vivência. A expulsão da população pobre resi-
vilização triunftava gloriosamente, esma- dente nas freguesias centrais não evitou o aden-
gando toda a existência patriarcal da mi- samento do cinturão de miséria em torno da-
nha velha cidade carioca (..) De repente quelas, como um monstro ameaçador a rondar a
(..) eu descobrira a luz mortiça da peque- tranqüilidade insegura dos cafés de estilo parisi-
na lanterna suspensa da Bahiana, vende- ense.
dora de mandobi e de cuscús (..) oppondo Paulatinamente, esta massa viva de deserda-
ao clamor barulhento da Civilização do- dos vai se deslocar das zonas escuras da Gam-
minadora, a ingenuidade simples de seu boa, Saúde, Estácio, Praça Onze para recriar a
pequeno commercio primitivo. (Kosmos, civilização nas zonas iluminadas da cidade. À ri-
1906, apud PEREIRA, 1996:199-200) gidez da racionalidade europeizame da Reforma
Como podemos ver, não somente no interi- Urbana se impõe a flexibilidade tropical (SAN-
or da feira-livre, mas até mesmo no símbolo TOS,1994) que caracteriza as grandes cidades
máximo da modernidade urbana (a Avenida do Terceiro Mundo, retrato que são da diversi-
Central), os pobres da cidade vêm mostrar suas dade das classes sociais e dos modelos culturais.
incompatibilidades para com o projeto de cida- Passada a euforia da febre demolidora e da fan-
de que se quer impor. tasia civilizadora, os desterritorializados reapare-
É fácil reformar a cidade intervindo somente cem e se reterritorializam, expondo a outra face
na sua paisagem material, sobretudo quando es- de nossa modernidade.
tão envolvidos poderosos interesses econômicos' ° Gostaríamos então de citar um importante
. Demolir quiosques e dezenas de cortiços, além intelectual brasileiro, aparentemente pouco lido
de tantas outras edificações herdadas da materi- e certamente pouco citado pelos geógrafos, ain-

10 BENCHIMOL assinala o amplo leque de segmentos do capital envolvidos na Reforma Passos, "desde o
capital bancário internacional, de onde provieram os empréstimos para o financiamento da reforma,
passando pelas grandes companhias empreiteiras, especuladores e construtores, até as diversas frações
do capital comercial, financeiro e industrial que puderam permanecer ou vieram se instalar nas áreas
remodeladas" (op. cit. p. 3 18-9).

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da que tenha publicado obras cujo teor geográfi- ordem burguesa abrigar em seu interior práticas
co salte aos olhos: sociais contra as quais se erigiu e se justificou
No Brasil (..) as cidades são capitalís- como moderno. Em outras palavras, tentamos
aqui visualizar a feira-livre como território que,
ticamente planejadas (..) com vistas à fas-
cinação e ao esmagamento das diferenças a partir de determinado momento, passou a aco-
(..) No entanto, a essas concepções espaço- lher a convivência de duas faces da modernidade
temporais entronizadas - seja por meio da urbana.
Vimos que os ideais de civilidade contidos
arquitetura/urbanismo, seja por meio dos
múltiplos dispositivos de contabilização dos no projeto modemizante de Pereira Passos eram
tempos sociais - sempre se opuseram outros incondizentes com a permanência de feiras afri-
processos simbólicos, oriundos das classes di- canas e outras práticas de comercialização pelas
tas subalternas. (SODRÉ, 1988:17) ruas da cidade. Não obstante a importância des-
tas práticas no abastecimento urbano e na provi-
são de oportunidades de trabalho, bem como na
CONCLUSÃO manutenção de territórios de sociabilidade in-
A ordem capitalista produz uma sub- formal, a Reforma Passos baniu tais usos, des-
jetividade própria, subjetividade essa que territorializando formas de sobrevivência e de
determina constrangimentos a nível espa- sociabilidade tidas como impróprias. Em seu
cial. A firmação do território revela - é lugar estabeleceu territórios de alto grau de dis-
cenário, instrumento e resultado - a contí- ciplina e controle: mercados cobertos e feiras-
nua luta de dominação e insubmissão. Às livres.
arquiteturas disciplinares e enquadrado- Supomos que as feiras-livres, por sua estética
38 sobrepõem-se formas particulares de (o colorido, as linhas retas) e higiene (ao ar livre,
apropriação, vivências cotidianas específi- exposição ao sol), sobressaíram em relação aos
cas que acabam por produzir territoriali- mercados cobertos, e assumiram a condição de
dades novas e imprevistas. (Revista Espa- mais um dos muitos espaços públicos festejados
ço é- Debates, n.16, introdução à entre- como triunfo da burguesia ascendente sobre a
vista com Felix Guattari, 1986) barbárie colonial. Uma das hipóteses aqui levan-
tadas é justamente esta: a feira-livre, uma inicia-
Quando, na primeira linha deste trabalho,
tiva tomada por Pereira Passos, comporia, junto
declaramos que a cidade moderna é um incons-
a outras medidas em relação ao uso e formata-
tante mosaico de territorialidades, não estáva-
ção dos espaços públicos da cidade, um amplo
mos querendo meramente resgatar o clássico dis-
curso dos teóricos da Escola de Chicago. O co- projeto de pedagogia da civilização. Nestes terri-
nhecido mosaico de territórios de WIRTH tórios diversos (parques, avenidas), alguns de
(1938) ou o desgastado equilíbrio instável de caráter efêmero/periódico (as feiras-livres, a ba-
PARK (1916) não bastam para exprimir nossa talha das flores, etc), o cidadão vivenciaria o tri-
proposta de entendimento das feiras-livres cari- unfo da cidade moderna, reeducando seu com-
ocas nas primeiras décadas do século. Mosaico e portamento (vestuário, asseio, sociabilidade) e
instabilidade são decerto imagem e condição repensando a própria sociedade em que vive,
presentes nas transformações urbanas no con- tomando-a como progressista e promissora, com
texto da modernidade, mas não incorporam a grande potencial de civilização redentora.
perspectiva da interpenetração de territorialida- Inicialmente, as feiras-livres mantiveram-se
des. Queremos pensar a feira-livre de então como espacio-temporalmente confinadas e com redu-
o exercício da possibilidade de um território da zido papel no abastecimento. Sugerimos aqui,

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'1
uma vez mais, que até então seu papel simbólico vezes silencioso, às vezes ruidoso, com as popu-
se sobrepunha à funcionalidade. A 'partir de lações e as coisas já presentes. É assim que eles
1916, em meio à aguri iza.ção da crise do abaste- reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encon-
cimento na cidade, elas são convocadas a cola- trando novos usos e finalidades para objetos e
borar mais efetivamente na distribuição varejis- técnicas e também novas articulações práticas e
ta. Multiplicam-se pelo tecido urbano e se es- novas normas, na vida social e afetiva". E assim,
tendem ao longo da semana, adquirindo grande a feira-livre, inicialmente um território fechado,
porte. Esta ampliação/refuncionalização das fei- espaço da exatidão, um sistema de gestos sem
ras-livres permitirá a incorporação de novas prá- surpresas, se flexibliliza e se transforma em es-
ticas sociais em seu interior, pelo afluxo crescen- paço inorgânico, de afta densidade comunicaci-
te de indivíduos das camadas sociais desfavore- onal, pela ação dos homens lentos.
cidas, que ali encontrarão um ambiente propí-
cio para resgatar algumas formas de sociabilida- RESUMO
de informal. Concordamos com CARLOS A despeito de sua ausência na ampla lite-
(1996:92): a rua é expressão da normatização do
ratura acadêmida acerca da Reforma de Pe-
cotidiano, mas é também o lugar da manifesta-
reira Passos, as feiras-livres cariocas, criadas
ção da diferença. Acreditamos que tal conflito
de forças foi vivido de forma particularmente em 1904, podem ser tomadas como compo-
intensa pelas feiras-livres cariocas no período aqui nente daquele famoso projeto de intensa re-
estudado. novação urbana. Neste sentido, compõem sua
Vimos que, antes do advento das feiras-livres fisionomia e dinâmica revestindo-se de ele-
e dos mercados cobertos, prevalecia na cidade mentos próprios da pedagogia civilizadora dos
um amplo leque de modalidades precárias de espaços públicos da Reforma Urbana de en-
comércio de rua, movimentado pela necessida- tão em substituição às negras quitandeiras,
de de sobrevivência de indivíduos pobres numa aos vendedores ambulantes e outras modali-
conjuntura de baixa oferta de empregos. A Re- dades populares de distribuição varejista,
forma Passos desfechou sobre este segmento do
herdadas de um indesejado passado colonial.
varejo um golpe violento, desenraizando das ruas
Num segundo momento, este território da
do centro da cidade os vários pontos e agentes
de comercialização e, com eles, meios de sobre- ordem se refuncionaliza e é apropriado por
vivência e formas populares de sociabilidade. Em práticas de sociabilidade popular, cedendo à
seu lugar, formatou-se um território comercial ambiguidade e flexibilidade de nossa
espelhado na experiência dos mais prósperos cen- modernidade urbana.
tros urbanos europeus. Mais adiante, tais espa-
ços públicos foram cedendo à realidade circun- PALAVRAS—CHAVE
dante, compondo um ciclo de transformações feira-livre, modernidade urbana,
que pode ser lido também a partir da tríade con- territorialidade popular, espaço público, fle-
ceituai T-D-R (territorialização - desterritoriali-
xibilidade tropical.
zação - reterritorialização) de que nos fala HA-
ESBAERT (1995).
Para finalizar este trabalho, lembramos no- ABSTRACT
vamente SANTOS (1996:261) e sua concepção Literature dealing with the project of ra-
de flexibilidade tropical: "Por serem diferentes, dical urban reforms in Rio de Janeiro
os pobres abrem um debate novo, inédito, às triggered by the mayor Pereira Passos omits

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