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LIVRARIAS SI(IL lA NO

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Catllg CI'taty do (Nascimento


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Daniel Aarão Reis Filho

A CONSTRUÇÃO
DO SOCIALISMO NA CHINA

1981
Copyright(ê) Daniel A. Reis Filho

Capa;
123(antigo 27)
Artistas Gráficos

Carícafzzras;
Emilio Damiani

Revisão:
José E. Andrade

ÍNDICE

Introdu ção . 7
Em buscadeum caminho:As contradições
do
modelo soviético -- 1949/1956 10
O Movimentodas Cem Flores e o grande salto
parafrente -- 1957/1959 24
O equilíbrio instável do reajustamento conser-
vador -- 19S9/1965 37
A Revolução Cultural -- 1966/1969 50
A domesticação da Revolução Cultural -- 1969/
1976 71
As Quatro Modernizações -- 1976 . 83
As relações entre os comunistas chineses e sovié-

@
g
ticos -- 1949/1976 97
6
Conclusão 113
8
ju Indicaçõespara leitura 116
editora brasiliense s.a.
01223 -- r. general jardim. 160
são pauta -- brasil
®
INTRODUÇÃO

É preciso vencer dificuldades para estudar a


construçãodo socialismona China. Não há estudos
Ao in$nito amor de Pipsi sistemáticos sobre a luta de classes depois de 1949,
sobre a dinâmica do movimento social camponês,
sobre a luta dos operâriós, das mulheres, dos jovens,
dos intelectuais. Salvo em determinadas conjunturas
críticas, como por exemplo durante a Revolução Cul-
tural (1966/1969), o movimento da sociedade terá de
ser ''descoberto'' nas entrelinhasdos comunicados
oficiais, das notícias censuradas, dos documentosci-
frados.
Faltam informações, não hâ acesso às fontes. Os
próprios textos de Mao Tse-tung até hoje não são do
conhecimento público, exceto ag edições piratas pro-
movidas pelos Guardas Vermelhos em 1967-1968.
Como se não bastasse, a maioria dos estudiosos
e especialistaspreferem deixar-se impressionar por
idéias e teorias preconcebidase nos entregam uma
8 Daniel Aarão Reis Filho A Constmção do Socialismo na China 9

leitura ideológica da realidade. Partem de conclusões harmónica, democrática.


em vez de chegarem a elas e vão encaixando como Podem ser objetivosirrealistas, mas a política
podem os fatos nos seus esquemas e modelos. Ou na não seria ''a arte do impossível''?
defesa das tendências políticas com que simpatizam.
Mas o povo chinês continuou a lutar depois de
1949. E as crises e reviravoltas surpreendem e des-
montam as construções pacientemente elaboradas.
O presente texto não pode ter a pretensão de
superar os limites à pesquisa histórica que acabam
de ser apontados. Em muitos momentos fomos obri-
gados a referenciar a história da China em docu-
mentosoficiais. Sabemos que eles não passam de
expressão de uma realidade social complexa. E que
às vezes são ecos invertidos dessa realidade. Quando,
portanto, nos referenciarmos neles, desejaríamos que
o leitor compreendesseque o método não resultou de
uma opção, mas de uma situação de fato.
Procuramos, contudo, não distorcer fatos, nem
selecionar os que ''interessavam'' a determinado
ponto de vista. Também não pretendemos apresentar
uma história de bons e maus, verdadeirose falsos,
revolucionários e contra-revolucionários.
Isto não quer dizer que o texto tente ser neutro.
E duvidosaa possibilidade
daneutralidade.E o texto
assume suas simpatias. A principal delas vai para o
povo chinês, camponeses, operários, mulheres, jo-
vens, intelectuais. Foram os responsáveis pela vitória
em 1949. São os que hoje procuram construir a
China. Acreditamos que já conseguiram muito e que
continuarão lutando por uma sociedade que não seja
apenas mais rica, mas que seja também mais justa,
®
EM BUSCA DE UM CAMINHO
AS CONTRADIÇÕES
DO MODELO SOVIÉTICO
1949/1956

A proclamação (ia República Popular da China


(RPC) em outubro de 1949 surpreendeu quase todo
mundo, inclusive as duas maiores potências mun-
diais; os EEIJU e a URSS.
Os EEUU não quiseramadmitir o fato: nega-
ram o reconhecimentodiplomático ao governorevo-
lucionário, atribuíram ao governo de Tchiang Kai-
chek (que se refugiara na Ilha de Taiwan a sudeste
da China) uma cadeira permanente no Conselho de
Segurança da ONU, tornando-o o ''único e legítimo''
representante do povo chinês, e tentaram, sistema-
ticamente, isolar a nova república no contexto das
nações. Em 1950 o Congresso proibida os cidadãos e
as empresas norte-americanas de realizarem qual-
quer tipo de comércio com o continente chinês. Os
12 Daniet barão Reis Filho A Construção do Socialismo na China 13

EEIJIJ também interviriam no conflito coreano, ini- confiança. Mas foralm os norte-americanos, restrin-
ciado em junho de 1950, com o objetivo de ''deses- gindo a margem de manobra do governo chinês, que
tabilizar'' o governorevolucionáriode Pekin. A par- possibilitaram
à URSS determinaros termosdas
tir de julho de 1950os marfners estarão na Corria e suas relações com a China.
em Taiwan é as agências norte-americanas de notícias Não era assim favorável a conjuntura interna-
criarão os mitos da ''cortina de bambu'' e do ''perigo cional.
amarelo'' Internamente a situação também não era bri-
E, no entanto, nada interessava mais aos diri- lhante. A China, desde meados do século XIX, esti-
gentes chineses que uma política de boa vizinhança vera convulsionadapor guerras ae diversos tipos,
com o mundo capitalista.Antes do fim da guerra além de sofrer a ação impiedosae predatória das
mundial procuraram sem sucessoestabelecer uma potências imperialistas (cf. .4 Neva/lição C#f/lesa,
linha direta com Washington. E que partiam da pre- desta Coleção) .
missa de que as tarefas de reconstrução económica No campo havia fome e miséria generalizadas,
exigiriam relaçõescom o mundo capitalistae de que alastravam-se o banditismo e a insegurança, eram
estas relações ajudariam a diversificar as fontes de precárias as trocas com as cidades que, em certas
abastecimentoe financiamento da China, ampliando regiões, simplesmentenão se realizavam mais. As
sua margem de manobra frente ao campo socialista, obras hidráulicas e o armazenamento de reservas de
dirigido então pela URSS. sementes e cereais, cruciais para o equilíbrio da eco-
A situação ainda se tornava mais complicada nomia camponesa, estavam em colapso.
porque o Estado soviético também não viu com bons As cidades sofriam com o afluxo dos refugiados
olhos a vitória da revolução na China. Na verdade, de guerra, com a crise geral de abastecimentode
quando os EEUU e a URSS tentaram estabelecer nas géneros alimentícios, com o desemprego e o bandi-
conferências de Yalta e Potsdanl um . condomínio tismo organizado.
internacional sobre o mundo, ficara estabelecido que Do ponto de vista político as contradições não
se instalaria na China uma república democrática eram nada insignificantes.
burguesa, prevendo-se, naturalmente, a legalização O amplo arco de alianças estruturado durante a
do PCC e sua participação num governode união última guerra civil apresentavaagora seus proble-
nacional. A realidade,porém, fora rebeldeaos pla- mas. A burguesia nacional e a intelectualidade urba-
nos e acordos das potências. A URSS se veria obri- nas concordavamcom as bandeiras gerais de ''sal-
gada ao relacionamento com os comunistas chineses vaçãonacional'', mas não demonstravamnenhum
que escapavam ao seu controle e não Ihe inspiravam entusiasmo pelo socialismo. Os próprios comunistas
14 Dancei barão Reis Filho A Construção do Socialismo na China 15

admitiam que cerca de 90%odos intelectuais descon- de camponeses que ficaram com o direito de dispor
fiavam do PCC e de sua política. Além disso, muitas como bem entendessem de seus pequeníssimos lotes:
regiões-- sobretudoo sul da China -- caíram quase 1/5 de hectare por indivíduo, baixando a medida, em
sem luta sob controle do Exército Vermelho, e as certas regiões, para 1/15 de hectare, às vezes menos
cidades constituíam centros de resistência na medida ainda.
em que os comunistas mal haviam conseguido desen- A Reforma Agrária liquidada a classe dos gran-
volver nelas um trabalho político mais sério. Mao des proprietários. As expropriações eram realizadas
Tse-tung, refletindo sobre a situação, diria que a no quadro de um debatepolítico, onde cada campo-
Revolução fora vitoriosa, mas não as idéias revolu- nês fazia o seu ''relato de amarguras'', contando sua
cionárias. vida, condiçõesde trabalho, o que sabia.sobre o
Para enfrentar estas contradições os comunistas comportamento do grande proprietário, etc.. . O pro-
chineses dispunham de alguns trunfos: a experiência cesso, assim, adquiria um profundo significado social
de governo nas áreas libertadas, o prestígio do Exér- e político.
cito Vermelho, o enraizamento político em setores Ainda em 1950duas outras leis teriam um amplo
expressivosdo campesinatochinês. Eram importan- alcance social: a lei do Casamento, em abril, e a da
tes pontos positivos; mas seriam suficientes para asse- Organização Sindical Urbana, em jun.ho.
gurar o prometode construção do socialismosegundo A Lei do Casamentoproibia o casamentoobri-
o ''espírito de Yanan''? Os comunistas chineses gatório, tramado pelos pais e imposto aos jovens.
seriam capazes de fazê-lo? Ou melhor, seria possível Consagrava direitos iguais para ambos os sexos, a
faze-lo? livre escolha, a monogamia, protegendo os direitos
da mulher e das crianças, e assegurando a separação,
desde que desejada por ambas as partes. Criava,
assim, as bases jurídicas para a emancipaçãodos
As primeiras medidas -- 1950/1952 jovens e das mulheres em particular, atraindo a sim-
patia da juventude pela revolução.
Os comunistas
só se manteriamno poder se A Lei da Organização Sindical Urbana revelava
fossem capazes de satisfazer as aspirações do povo e as contradições em que se debatia o governo chinês.
dos camponeses em particular. Estes queriam a dis- O prometode construção do socialismo supunha uma
tribuição das terras. A Lei de Reforma Agrária, de classe operária formada e organizada politicamente .
30 de junho de 1950, viria atendê-los. As terras dos Entretanto, as exigênciasimediatas da produção e,
grandes proprietários seriam repartidas pelos milhões principalmente, os acordos políticos com a burguesia
16 Dclnie} Aarão Reis Filha A Construção do Socialismo na China 17

nacional urbana levavam o governo a tomar medidas siva foi criada, inclusive polícia secreta e campos de
de ''enquadramento'' da classe operaria. concentração... A autonomia deste aparelho só seria
E inegávelque a Lei garantiu a criação de sindi- questionada durante a Revolução Cultural. . .
catos, estabeleceuo seguro-desemprego
e a partici- Um outro Movimento é lançado em dezembro
pação dos operários na gestão das empresas estatais e de 1951: o dos 3 Anta(contra a corrupção, o desper-
privadas. Além disso, melhoraram as condições de dício e o burocratismo), para controlar a máquina
vida da classe operária. Mas os capitalistas conser- administrativa estatal. Será acompanhado, em mar-
vavam o direito de despedir os trabalhadores, que ço de 1952,pelo Movimentodos 5 Anta, contra as
eram chamados a observar a máxima disciplina. Os práticas de fraude comercial, fraude fiscal, suborno,
horários de trabalho permaneciam ''como de. cos- desvio de bens do Estado e espionagem económica
tume'' e não havia férias. Ê evidente que tais dispo- em detrimento dos interesses do Estado.
sições não poderiam despertar um especial entu- Os Movimentos apontam as contradições em
siasmo na classe operária. que estava mergulhada a China. Com efeito, o pro-
O êxito social e económicodas primeirasmedi- jeto socialista chinês esbarrava em impasses não pre-
das é insofismável: a paz interna e .a reforma agrária vistos: no campo, a reforma agrária criara um gigan-
asseguram condições para que a economia alcance tesco conglomerado de minúsculos proprietários de
índices expressivos: a produção de cereais passa de terra; na cidade o Estado enquadrava a classe ope-
113 milhões para 164 milhões de toneladas, entre raria cuja participaçãonas decisõesera mínima. O
1949 e 1952. A política monetária e orçamentâria PCC exercia a tutela da sociedade em nome da cons-
consegue debelar a inflação. Na indústria destaca-se trução do socialismo, mas fizera reformas que esta-
a recuperação da produção em setoresvitais: aço, vam permitindo o florescimento de um capitalismo
carvão, petróleo, cimento, eletricidade, etc. renovado na China. Estariam os revolucionários con-
O governo revolucionário ainda desencadeada denados a serem os funcionários de uma ordem que
três importantes campanhas até 1952: o Movimento haviam pretendido destruir?
pela Eliminação dos Contra-Revolucionários, desti-
nado a identificare punir os agentesdo Guomindang
e as organizaçõesde bandidosurbanos e rurais que O Plano Qüinqüenal e suas contradições
assolavama China. Entre 800000e 3000000são - 1953/1957
punidos com a prisão ou a execução. Estudiosos
simpáticos ao governo admitem a primeira cifra. Na Três grupos de questõescomeçam então a domi-
sombra deste Movimento toda uma estrutura repres- nar as reflexõesdos dirigentes chineses. Terminada
].
19
18 Z)aPzíe/ .4arão Reis /T;/zo l ,4 Co,isrmção do Sacia/fumo lza CAlHa

uma primeira etapa de reconstrução, como conceber termos internacionaisafirma-se a importância da


o desenvolvimento
rumoao socialismo?..Quais
as aJiançacomaUniãoSoviética. . .: ..
Os camponeses reagem contra as priortaaaes ao
prioridades?Que ritmos deveriamser definidos? A
segunda questão referia-se à luta de classes: seria ou
não recomendávelpassar ao ataque à burguesia na-
cional privada? E, no campo, seria ou não recomen-
dável estimular o movimentocooperativo? Final-
mente, a morte de Stalin e os debates na União
Soviética colocam em questão a própria expenencia
arrendatários. Uma camada de camponeses médios e
da construção do socialismo na URSS.
O l Plano Qüinqüenal -- 1953/1957-- procura ricos, não atingidos pela Reforma Agrária, fortalece-
se às custas dos microproprietârios beneficiados pela
responder a estas questões. Rompendo com a expe- Reforma. Para os camponesespobres cresce de im-
riência acumulada nas áreas libertadas e se apoiando
no exemplo da URSS, o Plano define a indústria pe- portância o processo de cooperativização em suas
varias modalidades -- equipes de ajuda mútua em
sada como prioridade número um, estabelecendo
como meta um crescimentoeconómicoanual de que os camponeses se limitam .a .trocar tempos de
trabalho; cooperativas semi-socialistas em que par-
14%o.Com uma taxa de acumulaçãode 22%o,OS celas dos lotes individuais também entram no fundo
investimentosserão concentradosem 694.grandes coletivo e, finalmente, cooperativas plenamente so-
proletos para a realização dos quais será decisiva a cialistas onde jâ se trata da colocação de todas as
presença de técnicos soviéticos: A visão é a de que s6 terras e de todo o trabalho sob controle de uma di-
o crescimento de um setor industrial estatal permi-
tira ao socialismoacumular forças políticas e econó- reção comum. O processo cooperativo acelera-sea
partir de 1954 vencendo as resistências dos .campo)
micas para, numa etapa posterior, atingir a. burgue- neses médios e ricos e de correntes do -interior do
sia nas cidades e estimular no campo um processo PCC. O êxito do movimento, que se estende a toda.a
cooperativo. .:
China em fins de 1956, rompe a rigidez e a coerência
Ao nível político o Plano leva a uma centrali- do Plano Qüinqüenal. A conseqüência será 'a apro'
ão acentuada das decisões no aparelho estatal e a
um deslocamento de centros de poder do Exército vação,'ainda em 1956, de um Programa de desen-
volvimento agrícola em doze anos.
Vermelho para o Partido Comunista Chinês -- PCC. Nas cidadesos trabalhadoresurbanosreagem
As cidades assumem posição de relevo, deixando-se o
contra a dominação da burguesia nacional privada e
campo numa posição relativamentesecundaria. Em
20 21
Daniel Aarão Reis Fila\ A Construção do Socialismo na China

contra os métodosde organização do trabalho. O


Estado encampará o movimento e decretara a expro-
priação dos burgueses que deixarão de existir, como
classe, em 1956. Também os setorescomercial e arte-
sanal urbano, onde o capital privado assumia papel
de destaque, são expropriados ou obrigados a assu-
mir formas mais ou menoscomplexasde coopera-
tivas.
A ruptura com os ritmos previstos no l Plano
revela a crise do modelo soviético. As quedas de Gao
Gang e de Rao Shushi em 19S4/1955 são a expressão
política dessa ruptura no PCC. Mas a análise das
contradições políticas se torna complexa porque ne-
nhuma tendência assume abertamente a crítica ao
l Plano.
O Vlll Congresso do PCC, realizado em setem-
bro de 1956, tenta um compromisso, procurando
combinar as Três Transformações Socialistas (expro-
priação da burguesia privada urbana -- indústria e
artesanato -- e movimento cooperativo no campo) e
as opçõesestratégicas do Plano -- altas taxas de acu-
mulação, concentraçãona indústria pesada, centra-
lização político-administrativa e ritmo acelerado de
crescimento.
O Congresso inclina-se pela tese de que o pro-
blema da luta de classes esta definitivamente resol-
vido coú as Três Transformações Socialistas --
trata-se-, agora, de enfrentar a contradição entre o
sistema socialista de relações de produção e as forças
produtivas ainda atiasadas. Neste contexto assume A influência soviética: cartaz chinês com ilustração típica
caráter principal a tarefa de aumentar a produção. do realismo socialista soviético.
23
22 Daniel Aarão Reis Fita A Construção do Socialismo na. China

''Tudo pela produção'' é o s/oga/zrepetido durante o a ser celebrado como classerevolucionária. Em fins
Congresso que consagra a liderança de Liu Shao-qi. de 1955Mao Tse-tung proclama que ''os camponeses
Quanto ao stalinismo a visão oficial é a de que os chineses são melhores do que os operários ingleses
méritos de Stalin predominam sobreseus erros, expli- ou norte-americanos, podendo obter resultados mais
cados pelo contexto histórico em que se verificaram. expressivos, melhores e mais rápidos na marcha para
Não se fazem referênciasàs opções, à aliança de o socialismo''. Na ocasião Mao avançaria a tese total-
classes e ao modelo de centralização político-admi- menteherética de que ''é muito provável que o país
nistrativa inerentesaos Planos elaborados na época esteja socializado antes de estar industrializado. ..''
stalinista. A crítica limita-se a censurar o culto à Quanto à luta de classessustenta-sea ideia de
personalidade, as violações à legalidade socialista e o que ela continua sob outras formas mesmo depois da
desrespeito ao princípio da direção coletiva. O rela- liquidação da burguesia nacional privada e que se
tório secretode N. Krutschev não é divulgadona desdobra no próprio PCC. Em relação ao stalinismo
China. caracteriza-se a necessidade de estudar em profun-
Em oposição às versões oficiais articula-se uma didade os erros cometidos no sentido de descobrir os
alternativa que se propõe a aprofundar a ruptura seus fundamentos políticos e económicos.
com o modelo soviético e com as próprias premissas Evidenciavam-se no debate as contradições das
dos Planos. Dois textos de Mao Tse-tung exprimem sociedades onde jâ não reina a burguesia privada: as
esta tendência: ''Sobre as Dez Grandes Relações'' contradições entre o campo e a cidade, entre o cam-
(abril de 1956)e ''Da Justa Solução das Contradições pesinato e a classe operaria, entre os trabalhadores
no Seio do Povo'' (fevereiro de 1957). manuais e intelectuais, entre os ritmos e as priori-
A nova proposta se baseia na força do movi- dades do desenvolvimentoe a participação popular,
mento social camponês, dinamizado pelo processo entre centralismo e democracia, entre dirigentes e
cooperativista, e no descontentamento com o rígido dirigidos .
centralismo dos Planos. Defende-se a tese de que o A China revolucionária, um oceano de campo-
desenvolvimentomáximo da indústria pesada não neses, teria condições históricas para responder a tais
corresponde necessariamente ao desenvolvimento óti- desafios?
mo que se baseada no equilíbrio harmonioso entre os ''O Grande Salto para Frente'' será a primeira
vários setores económicos. A agricultura é definida tentativa em busca de um novo caminho. . .
como base do desenvolvimento, devendo merecer
investimentos mais importantes que a indústria,
mantida como fator dominante. O campesinato volta
25
l.4 Colzifrução do Sacia/limo /za(:fina

vésdo Movimentodas Cem Flores a partir de feve-


reiro de 1957. As instâncias dirigentes concederiam
uma.certa margem de crítica à sociedade: rapida-
mente os abusos dos funcionários do Partido e do
Estado começariam a ser denunciados nas colunas
dos jornais e nos cartazes colados nos muros das
escolas e universidades. Pedia-se a divulgação do
relatório secreto de Krutschev sobre os crimes de Sta-
lin. reclamava-se do ''socialismo feudal'' , afirmando-
O MOVIMENTO DAS CEM FLORES se que a propriedade do povo não passava de proprie-
E O GRANDE SALTO PARA FRENTE dade do Partido. Quando a agitação fugiu dos con-
1957/1959 troleso PCC determinouo fim do Movimento, proi-
biu manifestaçõese reuniões,prendeu os principais
líderes e os enviou para campos de ''reeducação
O fato é que, embora restritoa setoresdas camadas
Os resultados dó l Plano Qüinqüenal, embora médias urbanizadas -- intelectuais e estudantes -- o
parcialmente favoráveis, não conseguiam convencer Movimento das Cem Flores revelara a insatisfação
a maioria do PCC. As dúvidas levantadas exprimiam latente na sociedade chinesa contra o modelo econó-
o descontentamento que lavrava na base da socie- mico encarnado pelo l Plano Qüinqüenal.
dade.
Da parte do PCC o Movimento revelara a preo-
No campo, o movimentocooperativo, impulsio- cupação em combater o controle rígido e centrali-
nado pelos camponesespobres, rompera os ritmos zado das informaçõese da formação da opinião pú-
determinados pelo l Plano. Na cidade os operários blica. A falta de apoio político da intelectualidade
não só apoiaram a ofensiva contra a burguesia mas determinaria o recuo apressado do PCC. A expe-
também passaram a exigir acesso às decisões rela- riência provara que uma crítica radical do modelo
tivas à organização do trabalho e à fixação das metas dos Planos Qüinqüenaisteria que buscar outras
de produção. Também a intelectualidade manifes- bases sociais e com propostas concretas de satisfação
tava insatisfação contra a censura e o excessivo cen- das suas necessidades imediatas.
tralismo administrativo ao nível da educação, das
artes, da imprensa, etc.
O PCC tentaria canalizar as contradições atra-
26 DanielAarão ReisFiel 27
A Construção do Socialismo na China

Itinerário de uma formulação dado oficialmenteem maio de 1958 por Liu Shao-qi.
Observe-se que na época muitos problemas eram
De setembro de 1956 (Vlll Congresso do PCC) de difícil explicação -- o PCC ocultava as divergên-
a maio de 1958(anúncio oficial do Grande Salto), cias internas, mantendo uma unidade aparentemente
os comunistas evoluirão num processo sinuoso e con- sólida. É sintomático que Mao Tse-tung e Liu Shao-
traditório em busca de respostas originais aos pro- qi tenham subscrito os ''Sessenta Pontos". E o pró-
blemas colocadospela construção do socialismo na prio Liu, princit)al intérprete do l Plano, será o encar-
China. regado de anunciar a política do Grande Salto que
Desde a formulação do texto ''Sobre as Dez punha em questão, e de forma radical, o conjunto
Grandes Relações'' (abril de 1956) esboçava-se uma das opções do modelo soviético.
nova alternativa. O Movimento das Cem Flores fora
mais um passo. O seu recuo representara um forta-
lecimento das concepções favoráveis aos Planos. Mas
a permanência dos fatores críticos e a incapacidade O Grande SaltoPara Frente
do Plano em resolveros problemas da agricultura e as C(imunas Populares
continuavam a exigir respostas adequadas à reali-
dade chinesa. O Grande Salto deslocariao eixo das preocu-
Na Conferência dos Partidos Comunistas em pações das cidades para o campo. Afirma-se uma
Moscou, em novembro de 1957, os chineses veriam nova concepção de desenvolvimento económico privi-
que os soviéticosnão iriam longe na crítica ao gtali- giando a agricultura -= definida como base -- em
nismo. Moscou procurava circunscrever os ''erros'' relação à indústria, concebida como fator dominante.
da época stalinista ao próprio Stalin, descido do seu O campesinato aparece como classe fundamental no
pedestal e convertido em bode expiatório das contra- processo de construção do socialismo, incentivando-
dições e problemas do desenvolvimento económico e se suas tradições de trabalho comunitário e a am-
político da l.Jnião Soviética. pliação dos êxitos obtidos pelo movimento cooperati-
Em fevereiro de 1958 surge o texto ''Sessenta vista
Pontos Sobre os Métodos de Trabalho". Combinam- Os camponeses são chamados a organizarem-se
se aí uma série de recomendações técnicas e anódinas em Comunas Populares, cada Comuna correspon-
com outras de inspiração renovadora. Da discussão dendo à área geográfica de um distrito. A terra,
do Documento se consolidaria no PCC a corrente que os equipamentos, a moradia e o gado serão coletivi-
possibilitaria a aprovação do Grande Salto, anun- zados, permanecendona área da propriedade parti-
28 DanietAarão Reis Filho 29
A Constmção do Socialismo na China

Guiar os pequenos animais, as arvores frutíferas e os carâter autárquico (''contar com as próprias forças'');
objetos de uso pessoal. A propriedade da terra é ao lado da produção agrícola, seriam criadas indús-
expropriada sem indenização -- os grandes prejudi- trias locais para o abastecimento da população em
cados serão os camponeses médios e ricos não atin-
produtos de uso corrente, e também mecanismos
gidos, a não ser parcialmente, pelo movimento coo- próprios de defesa militar -- as milícias populares.
perativista. As Comunas Populares reunirão de 2 a 7 Cada cidadão devera ser camponês, operário e sol-
mil famílias, segundoos distritos, e resultarãoda dado.
fusão das cooperativas existentes. Nas cidades a linha do Grande Salto se desen-
No interior da Comuna a unidade de base será a
volvera em duas direções:
equipe de trabalho -- três equipes constituirão uma 1 -- 0 controle das empresas industriais se
brigada, correspondendogrosso modo a uma coope- deslocara do nível central para o nível local(provín-
rativa antiga. l.Jm Comité de Gestão, eleito a cada cias, municipalidades,etc.). No período de vigência
dois anos pela Assembleia de Representantes da Co- do Grande Salto o índice das empresas controladas
muna, dirige o trabalhoe é responsávelpela fixação pelo poder central decresceu de 46%o para 26%o, ele-
das normas de produção, pela gestão financeira, etc. vando-se o das empresas controladas pelo poder local
As Comunas movam ainda em dois aspectos de 54%opara 74%o.Ao mesmo tempo é lançado o
decisivos: em primeiro lugar, a euro/zomba que lhes é Movimento 2-1-3 com o objetivo de implantar as
conferida por lei em relação ao poder central. A duas participações (dos quadros no trabalho manual
partir de agora, os Planos e as orientações nacionais e dos operáriosna gestãodas empresas),realizar
passam a ter um valor indicativo -- as Comunas uma reforma (a das normas de produção) e organizar
podem revisâ-los segundo suas possibilidades e neces- a tríplice união (dos .trabalhadores, dos quadros e
sidades. Em segundo lugar, as Comunas Populares dos militantes políticos). O Movimento tenta reequi-
se caracterizam pelado/fva/êPzcia de suas atribuições librar as relaçõesde poder no interior das empresas,
-- cada Comuna será responsável pela organização e incentivando a participação dos trabalhadores, redu-
direção, na área do distrito em que se localiza, de zindo o leque salarial e dando preferência aos estí-
todas as tarefas económicas (trabalhos agrícolas, im- mulos morais e coletivosem relação aos materiais e
plantação e desenvolvimento de projetos industriais individuais.
locais, criação e gestão de bancos, etc.), educacio- 2 -- Na educação tenta-se quebraro monopólio
nais, culturais, sanitárias e de defesamilitar.
das instituições escolares formais, realizando-se a
O objetivo é o de criar unidades autónomas e
crítica dos intelectuais diplomados que desprezam o
integradas, conferindo a cada Comuna (distrito) um trabalho manual. Trava-se aqui uma luta contra uma
30 Dance! barão Reis Fila. 31
Construção do Socialismo na China

das tradições mais arraigadas da sociedade chinesa: nas populares e a industrialização rural com base em
o abismo que separa o trabalhador intelectual do pequenas e médias empresas procuram diminuir as
trabalho manual, com o conseqüenteculto do pri- diferenças entre o campo e a cidade. Com a auto-
meiro pela grande maioria do povo que vive em fun- nomia do poder local e o reforçamento dos controles
ção de um trabalho extenuante executado basica- da base tenta-se atenuar os problemas derivados da
mente com os braços. Serão feitas várias tentativas contradição entre dirigentes e dirigidos. Finalmente,
para a organização de escolas onde se combinem as reformas educacionais buscam corrigir os efeitos
estudo e trabalho como, por exemplo, as Univer- da contradição entre trabalhadores manuais e inte-
sidades ''a tempo parcial'', facilitando-se o ingresso e lectuais.
a frequência de trabalhadores. Os intelectuais são
conclamadosa irem trabalharnos campose nas
obras urbanas --. em 1958/1959,6 milhões de qua- Contradições e impasses
dros do aparelho estatal, estudantes secundaristas,
universitários e intelectuais em geral fazem ''está- Numa primeira fase a política do Grande Salto
gios'' como trabalhadoresbraçais. Num plano mais suscita amplo apoio: a massa do campesinato pobre
geral haverá a recomendação para o aperfeiçoamento verá nas Comunas Populares uma forma de escapar
da formação política. O ensino técnico de nada vale das dificuldades que o Movimento das Cooperativas
se não estiver, subordinado a uma sólida formação não conseguira superar, e um mecanismo de aniqui-
política(''a política no posto de comando''), e com- lação dos camponeses médios e ricos, beneficiados
binado com ela (''ser especialista e vermelho'' no pela polarização económica que o desenvolvimento
sentido de consciente dos interesses populares) . espontâneodo campo lhes assegurava; diversos se-
O Grande Salto não é portanto uma política de tores da classe operária e dos trabalhadores urbanos
desenvolvimento agrícola. Trata-se de uma concep- verão no Grande Salto a possibilidade de controlar a
ção global cuja principal originalidade é a ênfase no tecnoburocracia instalada nos comandos da produ-
campo (como espaço) e nos camponeses (como agen- ção industrial. .Mesmo setores estudantis, apesar da
tes sociais), tendo em vista o processo de construção desconfiança que ficou do abortado Movimento das
do socialismo. Caracteriza-se também por uma visão Cem Flores, verão com simpatia as propostasde
de autonomia do poder local em oposição à tradição reformulação radical da educação.
centralizadora típica do modelo soviético. A nova Aos níveisdo Partidoe do Estadoo Grande
política tenta enfrentar as contradições dominantes Salto despertara o apoio dos militantes e funcionários
após a expropriação da burguesia privada: as Comu- que trabalham nas áreas rurais e nas bases dos apa-
33
32
Z)an/e/ 4arão Reis Pm,4 Co/zsf ção do Sacia/ümo na (nana

ralhos institucionais. O duplo movimento em direção pida, ferindo valores ideológicostradicionais do cam-
ao campo e à valor'ização das bases no processo de pesinato chinês.
decisão política estimula a participação dos quadros Além disso, diretivas em princípio adequadas,
dos escalões inferiores e intermediários, conferindo- como, por exemplo, a implantação de indústrias ru-
Ihes pela primeira vez, desde 1949, um poder autó- rais, quandoaplicadas de forma voluntarista, produ-
nomo em relação às cúpulas até então todo-pode- ziam verdadeiros estragos. Basta analisar a política
rosas na concepção e na decisão das políticas a serem de generalização da produção de aço, baseada na
implantadas. multiplicaçãodos altos fornos de fundo de quintal,
Entretanto, uma série de problemas e de contra- responsável por um gigantesco desperdício a nível
dições começariam a aparecer enfraquecendo e, às nacional.
vezes, anulando o apoio que o Grande Salto suscitará Assim, setores expressivos do campesinato co-
inicialmente. No campo o processo de coletivização, meçavam a se revoltar contra os efeitos e os ritmos
em determinados distritos, extingue o lote individual impostospelo Grande Salto. A insatisfaçãoera natu-
e retira da propriedadeparticular as árvores frutí- ralmente promovida e estimulada pelos camponeses
feras, a pequena criação de animais e até mesmo médiose ricos que tinham sido desfavorecidospela
móveis e utensílios de cozinha... A preocupação com política das Comunas Populares. Por outros motivos
a rentabilidade leva à substituição da produção de a intelectualidade também reagia à ameaça ao mono-
alimentos por matérias-primas industriais. Com o pólio do saber formal enunciada pelo Grande Salto.
objetivo. de atingir grandes pe/gormances (ultrapas- O descontentamentose alastrava nas cidades com a
sar os países capitalistas em 5, 10 anos), adotam-se escassez dos géneros alimentícios e as cadências ace-
ritmos de trabalho insuportáveis, sobretudo quando leradas na produção.
se sabe que o sistema de remunerações não se modi- Dois outros aspectosviriam agravar o quadro:
ficou para melhor na medida em que predominam os os desastresclimáticos do ano agrícola de 1959(secas
incentivosmorais. Como se não bastasse, diversas e inundações como não se viam desde 1949) em .con-
Comunas Populares, estimuladaspor uma delirante traposição a 1958, que fora um ano excepcional; e o
visão de chegar a curto prazo ao comunismo, instau- acirramento das contradições políticas com a l.JRSS,
ram uma série de serviçospúblicos gratuitos (saúde, que começavam a repercutir no plano econõmico-
educação, transportes, etc.) sem que houvesseuma financeiro (endurecimento na concessão de créditos,
real base económica para isto. na política de assistência técnica, etc.) e no plaino
O projeto de integração da mulher na produção diplomático(recusa da URSS em apoiar a RPC por
também é conduzido de forma demasiadamente rá- ocasião das crises com a índia -- revolução tibetana
34 35
.Z)apele/.barãoReis PzZil' ,4 6o sfmção do Sacia/limo na China

no outono de 1958 -- e com Taiwan -- agosto do


mais uma vez seu.potencial de mobilização e cons-
mesmo ano).
ciência política na luta por uma sociedade mais justa
Jâ em julho de 1959o próprio Mao Tse-tung
admitiria os erros do Grande Salto -- inexperiência e igualitária. Mas.certos limites estruturais, impostos
pelos padrões.objetivos de de senvolvimento econó-
dos quadros, idealismode muitos na execuçãoda mico e tecnológico,não podiam ser superadospor
política, "esquerdigmo'' e supervalorização da von-
tade em outros. Mas o PCC nunca ofereceria um ba- ates de vontade ou por decretos, ao menos a curto ou
médio prazos.
lanço claro do processo. Na época prevaleceu a de- Do ponto de vista político a formulação do
cisão de manter a unidade ''monolítica'' do aparelho Grande Salto foi marcada por característicasque
partidário, ocultando-se mais uma vez as divergên- condicionaram sua eficácia: o controle de cima para
cias. A autocríticade Mao terá sido trocada pela baixo e a decisão de manter a unidade ''monolítica''
destituição de Peng De-huai, desaparecido desde en- e ocultar as divergências internas.
tão da cena política e principal crítico da política do Apesar de exprimir um descontentamento di-
Grande Salto. Sua substituiçãopor Lin Biao no co- fuso que vinha da base da sociedade, o Grande Salto
mando do Exército Popular de Libertação -- EPL -- foi fruto de uma elaboração que veio praticamente
foi parte integrante do difícil compromisso entre as ''pronta'', embora inovando radicalmente com tudo
alas do Partido articulado pelo hábil primeiro-mi- o que se fizera até então. Era, portanto, de difícil
nistro Zhou En-lai. As opçõesestratégicasdo Grande controle pelas classes populares, do campo e da ci-
Salto seriam conservadas no quadro de uma política dade, que não tinham condiçõesde captar sua fina-
de ''Reajustamento'' que, na pratica, equivaleria ao lidade última. Por isso mesmo o Grande Salto foi
seu esvaziamento. suscetívelde falhas de execução, interpretações auto-
A rigor não se pode atribuir o fracasso relativo ritárias, voluntaristas, erros de aplicação, .ptc...
do Grande Salto e o seu progressivo abandono a difi- A situação se agravava em função da decisão de
culdades económicas (desastres climáticos) ou a con- se manter um compromisso entre as diferentes alas
tradições internacionais -- polémica coM a URSS. do PCC. Não se pode dizer que se tratou de um pro-
Nem mesmo a falhas de execução, conforme esta cesso absolutamente consciente. Na verdade, o que
formulado na autocrítica maoísta de julho de 1959. iria se çonfigurar mais tarde como o processo de luta
Pesaram na verdade fatores históricos e políticos entre ''duas linhas'' ou duas alas no PCC ainda não
e foram eles que inviabilizaramas perspectivasa estava claro para o conjunto dos comunistas chine-
curto prazo da política do Grande Salto. ses. A não ser que se queira enveredar pela história
A grande massa do campesinato chinês revelara retrospectiva, que reconstrói a sucessão de fatos pelos
36 Daniel barão Reis Fita.

seus resultados últimos. Pode=sedizer, contudo, que


a visão de compromisso estabelecidadesde o início
pelo próprio Mao (não é à toa que ele assinara com
Liu Shao-qi os ''SessentaPontos'' e atribuíra a este
último a responsabilidade pelo anúncio .oficial do
Grande Salto) acabou por se refletif na realidade.
Assim, por exemplo, é típica a influência da ''cultura
produtivista''. (obsessão pelos resultados e pelos rito
mos)na formulaçãoe aplicaçãodo Grande Salto.
As contradições..históricas e políticas condicio- O EQUÍLIBRIO INSTÁVEL DO
naram inegavelmenteo alcancepratico do Grande REAJUSTAMENTO CONSERVADOR
Salto. .Mas nãó:anularam o seu significado .de pri- 1959/1965
meira .ofensiva contra os desafiei que um passado
secular deixara gravadas Da estrutura social chinesa:
as contradições entre çampo e cidade, entre trabalho
manual e intelectual, entre dirigentes e dirigidos. A O Partido Comunista Chinês assumira de forma
expropriação da burguesia privada jâ provara não ser muito espetacular o Grande Salto para poder aban-
suficiente para encaminhar a resolução dessas con- dona-lorapidamente.A opção será por um movi-
tradições. O Grande Salto acabara de revelar seus mento sutil de esvaziamento:o programa de ''Rea-
limites. Como fazer? Na confusão do recuo prevale- justamento
ceriaa políticado ''Reajustamento'',
a vitóriado A analise das medidas tomadas a partir de 1959
conservadorismo. indicam o sentido da nova política.
A tentativa deixara, porém, suas marcas: o reino No campo, que fora anteriormente o espaço pri-
incontestável da mentalidade dós Planos Qüinqüe- vilegiado da construção acelerada do socialismo na
nais seria incapaz, pelo menos por certo tempo, de China, a iniciativaparticular volta a ser incentivada
manter a força existente'antesde 1958. com a extensão dos lotes individuais, o estabeleci-
mento de normas de rendimento referenciadas na
família, a definição da pequena criação como área da
economiaprivada e de uma série de estímulosvi-
sando o renascimento dos mercados ''livres''. As Co-
munas Populares são redimensionadas pela metade

®
38 39
Z)ame/.barão Reis .l;TIÀ{,4 Construção do Sacia/limo na China

ou mesmo 1/3 do seu tamanho original.


Nas empresas reduz-se a.autonomia das equipes
de trabalho, restabelecendo-se,em grande medida,
a margem de decisão dos diretores de unidades de
produção. Voltariam com força os estímulosmate-
riais e individuais, considerados essenciais para recu-
perar os níveis de produção e produtividade.
Na educação a combinação trabalho manual/
intelectual e as tentativas de criação de novas formas
de aprendizado cedem terreno às teorias e métodos
vigentes antes de 1958. Em relação à defesa, as mi-
lícias reassumem um papel de força auxiliar do exér-
cito regular.
Nada exprime melhor o sentido geral do Reajus-
tamento do que o Movimento das 3 Liberdades e l
Segurança: Liberdade para as parcelas individuais,
para a compra e venda de produtos nos mercados,
e para as empresas que disporiam livremente de seus
lucros e arcariam com suas eventuaisperdas. Segu-
rança para os camponesesque voltariam a ter na
família a unidade de referência para a fixação de
quotas de produção.
O Programa de Reajustamento exprime a in-
fluência crescente dos camponeses médios e ricos
(.''é preciso contar com eles para a produção'') e dos
funcionários encasteladosnos postos de direção eco-
nómica e política. O que esta em jogo, acima de
tudo, é a recuperação dos níveis de produção ante-
riores a 1958e mesmo sua superação. Para isso todos
os meios são validos. Deng Xiao-ping cunhada um 'Não interessa que um gato seja branco ou preto, o que
s/otan que ficaria famoso: ''Não interessa que um importa é que seja capaz de caçar ratos.
40 41
DanieIAarão ReisFil
A Construçãodo Socialismo na China

gato seja branco ou preto, o que importa é que sela didas e do sentido geral do Grande Salto.
capaz de caçar ratos''. ' '' As formulação
de Zhou, no comandodo go-
. O novo Programa é formulado em três Confe- verno, se articulam com as de Liu, na direção do
rências sucessivasdo Comité Central num processo aparelho partidário: Nada parece se opor à volta dos
sinuoso e contraditório. As contradições com a modeloscentralizadosdos Planos Qüinqüenais, por
URSS, em.fase de radicalização (cf. cap. 7) e o fra- mais paradoxal que isto possa parecer, tendo em
casso económico do Grande Salto impõem um movi- vista o acirramento das contradições com a URSS no
mento de conciliaçãoentre os quadros dirigentesdo plano internacional. Muitos analistas de então, e isto
I'artido e do Estado. Mas é provávelque o fatos prevaleceaté hoje, quiseram assimilar Liu e Zhou a
determinante para o ocultamento das divergências uma oração''pró-soviética''em função de suas incli-
tenha sido o de que não havia maiorias políticas nações favoráveis ao modelo dos ''Planos". Subesti-
claras em nenhum sentido preciso: assim, em 1960. maram assim a força da vertente nacionalistado
em pleno período de "Reajustamento'', é aprovada a comunismo chinês, presentedesde os anos 20 com Li
chamada Carta Siderúrgica de Ashan, fruto de uma Da-zhao e que nunca deixou de se fortalecer no
Conferência de quadros operários onde se critica o transcorrer da Guerra Revolucionária. Na verdade
modelo soviético dos grandes conglomerados indus- nenhuma demonstração objetiva conseguiu provar
triais ultracentralizados. Ê como se a grande maioria que os dirigentes chineses partidários da concepção
dos comunistas chineses permanecessem confusos dos Planos fossem ''agentes de Moscou''
com os resultadosdo Grande Salto, mas sem de- O programa apresentado por Zhou En-Lai, em-
bora ainda pouco claro, apontava na direção da reto-
nistas dos Planos Qüinqüenais.ta aos padrões stali- mada da dinâmica anterior ao Grande Salto. O arco
Entretanto, as próprias exigências de um mí- de alianças implícito no projeto (campesinato médio
nimo de coerência na política estatal vão precipitar a e rico, elites dirigentes dos aparelhos político e de
dar'ificação de posições. Em janeiro de 1962 Liu produção) romperia com as classese forças sociais
Shao-qi ataca frontalmenteo' Grande Salto Pára privilegiadas desde maio de 1958 (campesinato pobre
Frente no interior do PCC e volta a fazer o mesmo no e médio-inferior, massas urbanas e quadros de base
mes seguinteno âmbito de uma Conferência de Es- dos aparelhos políticos).
tado (aberta a elementos não pertencentes aos qua- Em agosto/setembro de 1962, novas discussões
dros do PCC). Em abril de 1962, Zhou En-Lai defi- do CC do PCC imprimiriam uma significativa cor-
niria os.. ''Dez Pontos do Programa de Reajusta- reção de rumos. A agricultura é reafirmada como
mento'', sistematizandoa revisão das principais me- base do desenvolvimento,caracterizando-se a indús-
W

42 Daniet barão Reis Fit 43


Construçãodo Socialismo na China

troacomo fator dominante. Define-se a necessidade


de quebrar o cerco das tendências espontâneas favo- podia.contar com 95%odos quadms que saberiam
;econhecer seus erros e se corrigirem. .
ráveis ao capitalismo no campo através da mobiliza- O documento de maio de 1963, embora contra-
ção e educação das massas rurais: é o Movimento de riando o sentidogeral do Programa de Reajusta-
Educação Socialista. mento, mantém um acentuado caráter elitista: os
A nova política exprime-seatravés düs ''Dez quadros superiores são chamados a ''explicar' o so-
Pontos de Maio de 1963''1 0 documento propõe a cialismo às massas rurais; os problemas imediatos e
ampliação do trabalho ideológico nas áreas rurais as contradiçõeslocais são discutidos em primeiro
através de campanhas maciças de esclarecimentoa jurar com os quadros de base e só a partir daí é que
respeito do socialismo e de sua capacidade em solu- as ''massas'' virão a participar do debatee exercer
cionar os problemas imediatos e históricos dos cam- um controle político e ideológico gbbre a direção.
poneses; o fortalecimento da economia coletiva, in- A preocupação é corrigir os quadros para melhorar o
surgindo-se, assim, contra.as determinações do Pro- desempenho político e económico de seu trabalho,
grama de Reajustamento, que privilegiava a econo- mas mantendoo controlede cima em relação ao
mia privada; a organizaçãoe fortalecimentodas conjunto do processo.
Associações de Camponeses pobres, atribuindo a elas Em setembro de 1963 o Comitê Central emitida
uma função importante no controle da produção e do um novo documento:os Dez Pontos de Setembro.
próprio aparelho político do PCC; a participação dos O texto, atribuído a Deng Xiao-ping, enfatiza o ca-
quadros administrativose políticos no trabalho Ina- râter elitista e vertical do processo. O Partido deve
nual; finalmente, um Movimento das Quatro Lim- concentrar-sena formaçãode Grupos de Trabalho
pezas -- pelo combateàs fraudes nas operações con- (segundo a importância da área, as equipes teriam de
tâbeis, na avaliação dos estoques de cereais, na uti- 100 a 3000 quadros). Os Grupos de Trabalho se
lização dos bens públicos e no registro dos pontos- encarregarão de ''ir ao campo'', ou ''às bases'', discu-
trabalho (a remuneração era função do trabalho de tindo nos vários níveis, e sucessivamente(comuna,
cada um, medido através de pontos. Ora, os quadros brigada e equipe), os textos elaborados pelo Comité
do PCC estariam abusando na contagem dos pontos- Central. Assim, a organização das Associações de
trabalho subsidiários, equivalentes ao trabalho buro- Camponeses passa a um plano secundário, a inte-
crático). Deixava-seclaro, porém, que as contradi- gração dos quadros no trabalho manual perde impor-
ções entre a população e os quadros não eram anta- tância e o Movimento das Quatro Limpezas adquire
gónicas, estimulando-seassim a educação e a per- um carâter exclusivamente produtívista: trata-se de
suasão e não a repressão: afirmava-se mesmo que se superar deficiênciaseconómicase não mais atacar
44 45
DanieIAarão Reis ;trução do Socialismo na China

:n:=,vv=;:i=n:!: ã:: lu
politicamente a contradição entre dirigentes e dirá.
gidos .
As novas diretivas apontarão como modelar a campanhapara aumentara produçãoe economizar
matNas.primas a volta dos cursos pesados, dos
examesanacrónicos, da ênfase no ensino baseado na
memorização
e na despolitização,
choca-secom a
talode trabalho de Wang referencia-se nas instâncias realizaçãodo IX Congresso da Liga das Juventudes
dirigentese centrais. Sua orientação,citada por J. Comunistas que afirma a necessidade de ''formar
Chesneaux, se tornaria famosa: ''As massas se vol- continuadores da revolução, combinando a política
tam para quadros, os quadrospara o núcleodirá. com a técnica e contando com as próprias forças''
gente, este se inspira nos grupos de trabalho, que por As divergências atingem o terreno cultural com
sua vez se voltam para os dirigentes centrais'' a peça ''A Destituição de Hai Rui''. Trata-se de um
Os documentos de maio e setembro exprimem integro mandarim que viveu no'.século XVI e foi
propostas que se apoiam em distintas alianças de injustamentedemitidopelo Imperador de então. A
classes e forças sociais e só na base dessa compreen- alusão à demissão de Peng Deng-huai é evidente, e a
são é que adquirem seu significado histórico. peça se torna um tema político de primeira grandeza.
No decorrerde 1963acentua-sea luta política. Em contraposição, desdejunho de 1964,realiza-se a
No campo enfrentam-se, no âmbito do Movi. reforma da Ópera de Pekin -- a encenação de
mento de Educação Socialista, as Associações de ''O DestacamentoFeminino Vermelho'' é a primeira
Camponeses pobres e a organização política do PCC. expressão de uma linha que deseja politizar a Ópera,
A contradição desdobra-se muitas vezes na luta .entre reabrindo uma discussão ''adormecida'' desde o Mo-
quadros de base, locais, e os quadros superiores, vimento das Cem Flores ( 1957) sobre a arte em geral,
quase sempre vindos da cidade, e que se organizam seu papel na sociedade e suas relações com a política.
nos Grupos de Trabalho. A luta política revigora tensões relativamente
Na cidade setores da classe operária lutam para encobertas desde 1949: trata-se da contradição entre
reconquistar influência face aos dirigentes e técnicos. o Exército Popular de Libertação -- EPL -- e o
Mas orientações diversas se entrecruzam confun- Partido Comunista Chinês -- PCC.
dindo as bases sobre as reais prioridades políticas. O EPL, dirigidopor Lin Biao, desenvolve
um
E o caso, por exemplo,do desenvolv
alento simul- ativismo político incomum: forma equipes de propa-
tâneodo Movimentodos 5 Anta -- conta'aa corrup- ganda, lançando-aspor todo o país, edita milhõesde
46 Daniet Aarão Reis 47
)nsÜ-ração
do Socialismo na China

exemplares do -Livro Verme/&o de Mao Tse-tuna


reativa as milícias populares, suprime as diferenças
de graus hierárquicos e as distinções de uniformes.
A nível nacional o EPL lança a campanha ''lnspi. mesestiveram de lutar contra o autoritarismo, a in-
rar-sel no Exemplo do Exército Popular de Liber- compreensão e o burocratismo dos quadros do rcc e
tação do Estado. Dazhai teria vencido por haver extinto os
O PCC reivindica, porém, a condição de van- lotesindividuais, apurando sua educação ideológica
guarda, conferida pela ortodoxia leninista. O li- e espírito coletivo. O campo de Daqing, em Heilong-
vrinho de Liu Shao-qi -- Sopre o .4pe/gelçoamezzfo Jiang, ficou célebre por garantir o auto-abasteci-
/ndlvfdua/ do (]omzz/zEsfa-- é editado em mais de 60 ;nento chinês em petróleo. O exemplo dos seus ope-
milhõesde exemplares.Liu procura traçar o perfil do rários é divulgado por haverem sabido ''asumir e
''quadro ideal'' do PCC, num misto de religiosidade aprofundar o espírito de Yanan, usando tecnologia
e de stalinismo. O PCC anima uma outra campanha: simples e local na construção de suas casas, partici-
''Inspirar-se na Vanguarda Política'' -- imitar a van- pando nas atividades agrícolas e fazendo questão de
guarda, medir-sepor seus padrões, atingir o seu não terem níveis de vida e de trabalho superiores aos
nível
e camponeses da província
As campanhas e movimentos contraditórios ani- Lei Feng, Dazhai e Daqing simbolizavama
mados pelo PCC e pelo EPL revelam a dimensão dos união entre soldados, camponeses e operários. A pro-
conflitos que abalam a direção política. Enquanto o paganda destes exemplos exprimia a força da cor-
PCC sustentao exemploda Brigada de Taoyuane rente identificada com o renascimento das grandes
divulga os ensinamentos de Líu Shao-qi, o EPL edita opções do Grande Salto.
o livrinho vermelho de Mao e concentra sua atenção As divergências se cristalizariam afinal em dois
em três modelos exemplares: o soldado Lei Feng, documentos políticos. O primeiro, inspirado por Mao
a Comuna de Dazhai e o campo petrolífero de Da- Tse-tung, apareceu em junho de 1964 e estabelecia
qing. uma série de critérios políticos para'sé medir o êxito
O soldado Lei Feng é exemplo de devoção à cole- do Movimento de Educação S(iêialista. A ênfase era
tividade, de heroísmo anónimo. Uma de suas frases é colocada na mobilização das massas e no processo de
particularmente exaltada: ''Desejo ser um parafuso organização das Associações de Camponeses; no con-
que não enferruja. Um parafuso não chama a aten- trole político dos quadros, na sua incorporação ao
ção, mas uma máquina semparafuso não funciona". trabalho manual, na formação de um núcleo sólido
A Comuna de Dazhai, na província de Shanxi, é na base para dirigir o trabalho do PCC. Em sentido
48 Daniet Aarão Reis 49
)nstr'ração do Socialismo na China

contrário, em setembrode 1964, surgia um outro

$
documento, inspirado por Liu Shao-qi: ''Revisão dos
Dez Pontos de Setembro de 1963''. A ênfase aqui era
distinta: destacava-se a necessidade de fortalecer os
aparelhos centrais, de controlar os quadros locais.
de ''purifica-los". Peng Zheng, do grupo de Liu, Os comunistas chineses se debatiam e hesitavam
faria em outubro um discurso contra a corrupção e o entre os caminhos a percorrer na construção do
burocratismo dos quadros locais. As notícias eram socialismo: o modelo soviético dos Planos não apro-
alarmantes: mais de 70%odos quadros de base esta- vara, mas o Grande Salto também não apresentara
vam envolvidosem um ou mais itens da Campanha resultados convincentes.
das Quatro Limpezas ou do Movimento dos 5 Anti. Um fato tornara-se, porém, evidente: os tons
Tornava-se necessário diagnosticar as raízes de erros cinzentos do Programa de Reajustamento e os. meios-
tão disseminados e a forma de enfrenta-los. tons do Movimento de Educação Socialista não indi-
Em janeiro de 1965a publicação do documento cavam rumos. O acoplamento de alianças políticas e
''Os 23 Pontos'' parece revelar o predomínio das sociais contraditórias estava chegando aos limites do
formulações defendidas por Mao Tse-tuna e seu possível.O equilíbrio cada vez mais instável aproxi-
grupo. Os critérios de junho de 1964tornam-se orien- mava-sede uma ruptura: estava soando a hora da
tações, enfatizando-se a luta contra o autoritarismo, Revolução Cultural.
o burocratismo, o controlepela base, a necessidade
da educação. política e da mobilização e organização
das massas. O texto insiste na democratização do
processo de decisões, lançando o Movimento das 4
Democracias: na política, nas forças armadas, nas
finanças e na produção. Os ''23 Pontos'' consolidam
uma tendência. As divergências ameaçam implodir o
monolitismd tão decantado do PCC.
O períodoentre19S9e 1965é marcado por um
equilíbrioextremamenteinstável-- as idas e voltas
do Programa de Reajustamento, as contradições e
lutas no Movimento de Educação Socialista, a multi-
plicação de campanhas e movimentos de massa, a
T

51
tição do Socialismo na China

GenteRevolução Cultural é assim concebida como


ilm movimentosemelhanteao das Cem Flores. A
segundaarticula-seem Shanghai, em torno de um
j;jhínário de Estudos em que participam Mao Tse-
tung e Lin Biao. A visão aqui, ao contrário, sugere a
ampliação da discussão ao conjunto da sociedade,
hcjuindo-se debates sobre a cultura em geral, o sis-
tema de ensino e o combate aos ''Quatro Velhos'' (ve-
lhos habitos, velha cultura, velhas idéias e velhos
A REVOLUÇÃO CULTURAL costumes). O processo deveria também assumir e
1966/1969 estimular a crítica .das bases aos quadros dirigentes:
''Derrubar o Rei dos Infernos e Libertar os Diabi-
nhos'', segundo uma fórmula corrente na época.
A polémica ganha força na imprensa oficial e é
A Revolução Cultural começaria como um des- acompanhada por um ascenso do movimento estu-
dobramento do Movimento de Educação Socialista dantil nas principais universidadesdo país, sobre-
no plano das artes e da literatura. Ê neste sentido, tudo em Qinghua, Universidade de Ciências de Pe-
aliás, que o termo passa a ser empregado no segundo kin. Voltam a ser discutidos os métodos autoritários
semestre de 1965.
dosprofessores, os cursos pesados, longos, livrescas e
A discussão se inicia com um artigo violento de magistrais, a separação da Universidade em relação
Yao Wenyuan, jornalista de Shanghai, publicado sem à sociedade, a exclusão de operários e camponeses do
autorização das instâncias superiores do Partido, e ensinosuperior.a separação entre trabalho manual e
atacando a peça ''A Destituição de Hai Rui'', de Wu intelectual, a repressão sexual aos jovens. ..
Han, assistente de Peng Zhen, prefeito de Pekin e um. O movimento social é apoiado e confirmado por
dos homens fortes do regime. uma carta de Mao Tse-tung a Lin Biao, de 7 de maio
Da crítica político-teatral passa-se à temática da de 1966,.onde se formula a crítica ao sistemade
arte e de seu significado para a edificação do socia- ensino vigente, destacando-se a necessidade da com-
lismo chinês. Duas correntes aparecem desde feve- binação do trabalho manual e intelectual. A data
reiro de 1966: a primeira, em torno de Peng Zhen, ficaria conhecida'por dar origem, mais tarde, ao
aprova uma crítica de Wu Han, mas propõe que a nome das escolas de reeducação dos quadros do PCC,
discussão fique restrita ao âmbito académico. A nas- denominadas Escolas 7 de Maio. Um outro docu-
53
52 Dance! barão Reis itrução do Socialismo na China

mento seria decisivo para conferir expressão nacional


ao movimento em curso: trata-se da Circular de 16 de
Maio de 1966, do Comité Central. Através dela seria
apontada a necessidade de identificar e desmascarar
os agentes da burguesia infiltrados no PCC e mesmo Timoneiro'' seria capaz de evitar.
nas suas instâncias dirigentes. O documento refere Os meses subseqíientes-- junho e julho de 1966
indivíduos ''do tipo de Nikita Krutschev'' que esta- . serão marcados pelas tentativas de afirmação do
riam prestes a empolgar o poder. Ou seja, o debate movimentode crítica e pelas iniciativasdo PCC no
académico ampliado para temáticas mais gerais sentidoda sua contenção e controle. As autoridades
transformava-senum processode crítica ao PCC. nomeiamum Grupo Central da Revolução Cultural e
A Circular de 16 de Maio iria, de fato, ''libertar enviampara os pontos críticos os chamados Grupos
os diabinhos". Em 25 de maio, aparece o primeiro de Trabalho que jâ se haviam celebrizado durante o
da-zf-óao(cartaz gigante) nos muros da Universi- Movimento de Educação Socialista. Tais Grupos
dade de Pekin. Assinado por um grupo de sete pes- estabelecerão uma série de critérios e normas que
soas, entre as quais se destacam'iauma jovem profes- deveriam nortear o movimento em curso mas na pra-
sora de Filosofia, Nie Yuanzi, o textocritica as auto- tica procuram enquadra-lo, castrando a iniciativa
ridades universitárias acusadas de métodos repres- das bases.
sivos, e conclama estudantes e professores a popula- A situação se definiria afinal a partir de agosto
rizarem a Universidade, aproximando-a da socie- de 1966, com a XI Plenária do Comitê Central do
dade, conferindoum caráter político aos cursos e PCC. A reunião aprova os famosos ''.16 Pontos'' , ver-
abrindo o ensino superior às massas operárias e cam- dadeira Carta de Princípios da Revolução Cultural.
ponesas. O da-z/-bao é difundido em todo o país, Os pontosl e 2 definemos objetivosda nova
a partir de lo de junho, dando início a um movi- revolução -- ela deverá visar os Quatro Velhos e os
mento generalizado de crítica. No começo da Revo- quadros de direção ''enganadosna via capitalista'',
assim como as ''sumidades acadêmicas'' autoritárias
lução Cultural também assume importância um dis-
curso de Lin Biao em que o Chefe do EPL exalta Mao e elitistas. O processo deveria se basear em ampla
Tse-tung como ''o maior marxista-leninista de nossa mobilização de massas, reservando-se um papel par-
época por ter sabido salvaguardar, continuar e de- ticular aos jovens. Esta era a condição para que
senvolver o marxismo-leninismo de forma genial, fossem superadas as resistências das tradições e dos
criadora e integral''. A partir de então, o culto a Mao interessesimediatos contrariados.
Tse-tung conheceria projeçõesjamais vistas. Os par- Os pontos 3 e 4' insistem no carâter insubsti-
54 DanieIAarão Reis 55
)nstruçõodo Socialismo na China

]l?iaKzxxa Bili;
tuível e educativo da mobilização de massas --
massas educam-se pela ação.
A seguir (pontos 5, 6, 7 e 8), analisa-se o Pro.
blema dos quadros, como combater seus desvios
(persuasão, educação, condenação ao recurso à vio. tenteÃls manifestações de estudantes e jovens esten-
lência), afirmando-se que a grande maioria (95%o) dem-sea todo o país no segundosemestrede 1966.
seria recuperável depois de um processo de crítica e Oito comícios-monstros se realizarão em Pekin nos
autocrítica.
três meses seguintes, reunindo onze milhões de
O ponto 9 discorre de forma indicativa sobre as Guardas Vermelhos. A crítica à educação paralisa as
novas estruturas políticas que deverão surgir com a aulas e evidencia o caráter elitista, seletivo, tecno-
Revolução Cultural. Não há preocupação em fixar crático e livresco do ensino na China. A juventude
formas, ao contrário, mas é defendido o princípio da adquire irrestrita liberdade -- os deslocamentos por
revocabilidade, a qualquer momento, dos represen- via férrea são gratuitos para os Guardas Vermelhos
tantes políticos eleitos. -- e por toda a parte realizam-se encontros ''de troca
Os pontos 10, 11 e 12 referem-se ao ensino (ne- de experiências". Inspirando-se no livrinho vermelho
cessidade de redução do período de escolaridade, re- do ''camarada Mao Tse-tuna'', o movimento define
dução e melhoria dos programas de ensino, simpli- duas preocupaçõesbásicas: a democracia direta e o
ficação das matérias, combinação do estudo com a igualitarismo social. A grande referência histórica é a
produção agríçola e industrial e a arte militar, com- Comuna de Paras.
binação do trabalho manual e intelectual) e à cultura Em outubro o processose radicaliza com a luta
(ampliação e aprofundamento da crítica às ciências) . pelo controle dos ''documentos negros'' que eram
O ponto 13 define a Revolução Cultural como a profundamente temidos e odiados pelos cidadãos
continuação do Movimento de Educação Socialista. comuns na China. Elaborados pelos quadros do PCC
O ponto 14 lembra a necessidadede não se e pela polícia política, acumulavam informações so-
esquecerem as tarefas da produção (''fazer a revo- bre os dissidentes e rebeldes. Na medida em que os
lução e promover a produção"). movimentos sociais de crítica refluíam e perdiam sua
Finalmente, os pontos 15 e 16 exaltam o papel agressividade, os ''documentos negros" eram utili-
dirigente do pensamento de Mao Tse-tung e do Exér- zados para enquadrar, reeducar e punir os elementos
cito Popular de Libertação no apoio e na sustentação mais ativos. A luta revela-se um. avanço importante
do movimento. na Revolução Cultural, sobretudo se considerarmos
Em termos imediatos o texto teve um grande que ela vem acompanhada por tentativas de controle
56 57
DanieIAarão Reis ;unção do Socialismo na China

dos meios de comunicação social. Os Guardas Ver


molhosjá não se satisfaziam com liberdade de ex.
pressão e de manifestação. Reivindicam o controle
dos órgãos de formação e informação da opinião
pública.
Dois alicerces do poder político começariam.
assim, a ser atingidos: a polícia política, seu aparelho
de informações secretas e o monopólio de comunica- clãs militares w inserem nas tradições de guerra
ção social exercido de forma absoluta pelo PCC. revolucionária do povo chinês, devem-se ao prestígio
Mas o intenso movimento dos jovens acabaria do Exército, e também se ligam à profunda desmo-
contaminando outros setores sociais. . . ralização que se abate sobre o PCC.
Mas a proliferaçãodas OrganizaçõesPopulares
de operários e jovens reflete as divisões do movi-
mento. De certa forma pode-se dizer que esta frag-
A Comuna de Shanghai mentação é induzida por quadros do PCC, sobretudo
pelos que se opõem à Revolução Cultural, o mesmo
A intervençãodo movimentooperário no pro- acontecendocom dirigentes do EPL que começam a
cesso da Revolução Cultural se inicia em novembro ver sua posição de absoluto predomínio algo contes-
de 1966. É um novo passo à frente e as autoridades tada pela própria existência de organizações ''fora do
do PCC parecem confusas. Ao mesmo tempo que controle". No entanto, as divisões exprimem sobre-
incentivam a formação de Comités da Revolução Cul- tudo a incapacidade interna do Movimento para for-
tural nas fabricas, promovem a organização de Co- mular um programa comum de ação, que possibili-
mitês que se dedicariam a velar pelas tãiêfas relativas tasse ou favorecessea unidade e a agrupação do
à produção. Comités para a ''ordem'' e ci)mitês para conjunto da claHê operária e dos jovens em torno de
a ''desordem'' pontos precisos;
O movimento, entretanto, seria mais i'ico do que A estrutura política do PCC sucumbe sob o fogo
a previsão das normas e regulamentos. Ainda em fins da crítica. Ao contrário do que imaginavam os 16
de 1966, .em Shanghai, as correntes mais radicais Pontos quando formularam a tese de que 95%odos
tomariam o ''poder'' num dos jornais mais impor- quadros seriam recuperáveis -- ponto 5 -- as massas
tantesda cidade. Começama apareceruma série de de Shanghai e dos principais centros urbanos da
organizações de trabalhadores, independentes do China parecem chegar à conclusão de que 95%o dos
58 59
DanieIAarão Reis ;tição do Socialismo na China

quadros não estão aptos a desempenharem nenhum


papel na direção da sociedade. O curioso é que o
movimento não se volta para a revitalização ou Para
a retificação do Partido, mas sim para a formação de
organizações de outro tipo, mais flexíveis e capazes ;Ísticas. Ao mesmo tempo desaconselha-se a for-
de.corresponderem a seus interesses.A rigor, iá no aiação das Comunas do Povo, baseadas unicamente
início de 1967,o PCC deixaria de existir como órgão nas novas organizaçõesindependentesdo Estado.
de direção política na China socialista. Não foram Mas o Movimento era rebelde. Em pelo menos
necessáriosmais do que alguns meses para que o três cidades, Shanghai, Taiyuan e Pekin, procla-
processo se realizasse. mam-se em 4 e 13 de fevereiro, durante gigantescos
As manifestações em Shanghai alarmam as comícios,as primeirasComunasdo povo chinês.
autoridades do Grupo Central da Revolução Cultu- Nascem, contudo, relativamente enfraquecidas por-
ral. Uma ''Instrução Urgente'', inspirada pelo pró- quenão só não têm um prometonacional como tam-
prio Mao Tse-tung, em janeiro de 1967, conclama bém não conseguem unificar o próprio movimento
operários e jovens a moderarem o ritmo, não esque- socialnas cidadesonde se localizam. De fato, nas
cerem das tarefas produtivas, e a não se isolarem do Comunas recém-criadas não estão devidamentere-
conjunto do país. Os conselhos de moderação, po- presentadas as organizações populares existentes. O
rém, não ganham sequer a unanimidade na direção Grupo Central da RevoluçãoCultural, jâ expurgado
política -- surgiriam as primeiras demissões e depu- dos elementos. considerados ''urra-esquerdistas'',
rações atingindo quadros tidos como ''urra-esquer- manobrarâ nas brechas destas contradições. Em fins
distas'' de fevereiro, as Comunas do Povo se converterão em
Uma reunião do Bureau . Político emite resolu- Comités Revolucionários da Tríplice Aliança. Não se
ções reforçando o conteúdo da ''Instrução Urgente'' tratara aí, como é evidente, de uma simples opção
e tomando duas importantesmedidas: promovera por nomes. Mas de uma nova composiçãopolítica
intervenção do EPL cujas Equipes de Propaganda onde as organizações populares dividem o poder com
percorrerão o país persuadindo as massas a ap.lica- o EPL e compartedo PCC. E o que é maisimpor-
rem os 16 Pontos de agosto de 1966: ''trata-se de tante -- a nova composiçãose estrutura sob o signo
corrigir o PCC e não de destrua-lo''. As resoluções de que o PCC, enquanto estrutura, manterá sua
também sugerem uma nova forma de organização condiçãode ''Vanguarda Política'', única e insubs-
estatal -- os Comitês Revolucionários da Tríplice tituível. O Bureau Político reafirma suas teses: é
Aliança, ou seja, formadopor representantesdas preciso reformar e não destruir o Partido. A Revolu-
60 DanieIAarão ReisFi Construçãodo Socialismo na China
61

ção Cultural acabava de. esbarrar em seus limites. .ens. Retomarão algumas características das mani-
Depois do enquadramento das Comunas dó festaçõesdo ano anterior -- formação de organiza-
Povo, uma série.de medidas em fevereiro e março de çõespopulares, busca e apreensão de arquivos secre-
1967 tentarão Hstitucionalizar a Revolução Cultural: tos, culto à personalidade de Mao Tse-tung (as edi-
os estudantes são çhalnados a voltarem às aulas ''seH
çõesde suas obras atingem a impressionante tiragem
prquízo que continuam empenhadosna Revolução de 540 milhões de exemplares, sem contar estatuetas,
Cultural'', é claro; os operáriossão convidadosa medalhas, flâmulas, chuveiros, etc.).
preservarem o horário. de. trabalho (8 horas), dedi- Mas são os aspectosnovos os mais significativos.
cando-se à Revolução his horas de folga; recomen- O primeiroe principal delesé que os Guardas Ver-
daçõesexpressassão formuladaspara que se recu- melhos e os Operários Rebeldes começaçi a questio-
pere ''a grande maioria'' dos quadros do PCC cujo nar a ''pureza'' do EPL enquanto instituição depo-
carâter de vanguarda é insistentemente reafirmado. sitária de um poder de arbitragem. As organizações
Em 12 de fevereiro, o Grupo Central da Revolução populares passarão desde então a se armarem para
Cultural emite uma resolução segundo a qual ''o poderem se defender. Trata-se de um passo quali-
Partido é intocável enquanto estrutura''. Finalmente. tativamente novo no questiona.mento do poder polí-
as equipes de propaganda do EPL percorrem os tico: depois do monopólio da representação política e
pontos críticos do país apressando a organização dos do controleda informação, iniciava-seagora o ques-
Comitês Revolucionários e tentando manter os ritmos tionamento do monopólio da força, concentrada nas
da produção. Não é mera coincidênciao fato de que mãos do EPL desde 1949. Em segundo lugar,.o Mova
os enfrentamentos subsequentes encontrarão o EPL mento começa +atingir alguns=ponto#"ão'aparelho
em posições favoráveis às facções mais conservadoras estatal'considerados até ctítãaúomo ''acima de qual-
no interior do movimento social. Num outro nível, as quer suspeita''. É o casoíbor exemplo, do Ministério
equipes do EPL ampliam o culto à personalidade de das Relações E+teíáores que acabara sendo invadido,
Mao, celebrado como fator essencial ao coesiona- c.aindoparte de seus arquivos sob controle dos Guar-
mento político da nação. das Vermelhos: um jovem diplomata assumira du-
Mas o Movimento parecia ter mais fôlego do que rante pouco mais de um mês o comando da política
os esforços de controle da direção política. Os ''dia- externa chinesa. Ao mesmo tempo, os Guardas Ver-
binhos'', uma vez libertados, não se mostravam dese- melhos criticam abertamente altos dirigentes do PCC
josos de voltar ao seu "devido lugar''. A primavera e -- uma gigantesca manifestação em forma de sff-ln
o verão de ]967 serão marcados por novos e impor- cerca a residência dos principais quadros do PCC,
tantes ascensos dos movimentos de operários e jo- voltando-se particularmente . contra Liu Shao-qi e
62 63
Z)a/zíe/ 4arâo ReísFI'i )WstNçãodo Socialismo na China

Deng Xiao-pino. Em princípio a manifestaçãofoi


tolerada e, em certa medida, até estimuladapelo
Grupo Central da RevoluçãoCultural. A 4)attir de está-
um certo ponto, porém, alguns eminentes comunis- Üe 16 de. maio; data da Circular do CC que
tas, verdadeiras encarnações da revolução chinesa. verána origem da Revolução Cultural). Desde então,
passariam a ser hostilizados: é o caso dos velhos ma- todosos quadros afastados por ''urra-esquerdismo''
rechais Chen Yi e Zhu De, e até mesmo de Zhou serão acusados, com ou sem provas, de pertencer ou
En-lai. haver pertencido a esta organização.
Explodem em vários pontos do país incidentes O movimento pela moderação é complementado
cada vez mais violentos. O mais importante ocorrerá por novas orientações favorecendo a intervenção do
em Wuhan, no centro da China, entre abtjl e julho EPL na administração, no ensino e na produção. A
de 1967. Mais de duas mil fabricas suspendemou direçãoprocura orientar os ataques contra determi-
reduzem bastante a produção. Cerca de 500000 ope- nados alvos: Liu Shao-qi, Wang Guangmei, Deng
rários e trabalhadores urbanos envolvem-seem deze- Xiao-ping passarão a personificar os desvios critica-
nas de conflitos provocando mais de 700 mortes. dos até então. Ê muito significativo que estes diri-
Enfrentamentos armados ocorrem em Shaghai, Can- gentesserão apontados como ''agentes'' do Guomin-
tão, Chengdu, na província de Sichuan, no She- dang infiltrados no PCC. Hâ como que um interesse
nyang, etc. A Revolução Cultural foge decidida- em transformar o processoem curso num prolonga-
mente aos controles, e o país se aproxima da guerra mento das lutas passadas travadas contra a burgue-
Clv sia. A Revolução Cultural perde assim sua caracte-
Formula-se novo apelo aos jovens para que ces- rística original de processo específico, que se verifica
sem suas manifestações e voltem às aulas. Pede-se a numa sociedadesocialista dividida por interessesde
suspensão dos enfrentamentos armados -- as orga- classe distintos, movida por (e procurando resolver)
nizaçõespopulares de Guardas Vermelhos e de Re- contradições Internas, transformando-se em mais
beldes Operários são ''convidadas'' a entregarem uma fase da tradicionalluta contra um inimigoex-
suas armas. O próprio Mao intervém para defender fer/zo -- a burguesia do Guomindang -- que se i/%/l/-
certos dirigentescomo Chen Yi e Zhou En-Lai. Um fra traiçoeiraihente no aparelho do PCC.
texto de ampla circulação -- o Manifesto das Duas As orientações moderadoras parecem desta vez
Mil Palavras -- urge a realização de uma ampla surtir efeito. Para isso contribuem .decisivamente fa-
aliança, a retomada da produção, a recuperação da voresinternos ao próprio Movimento: a atomização
grande maioria dós quadros do PCC, a reconciliação das organizações populares que continuam incapazes
64 DanietAarão Reis 65
;tição do Socialismo na China

de propor uma plataforma de ação comum, a falta de


alternativas a nível das estruturas estatais, a falta de
lideranças experientes, a falta de referências políticas
e teóricas, na medida em que Mao Tse-tung tomava
uma posição resolutamentemoderadora, a oposição
do EPL que continua monopolizando a força, tudo volucionârios. Outro aspecto.É o estabelecimento em
isto condiciona o refluxo do movimentode massas. várias províncias das Escolas 7 de maio, .destinadas a
A última manifestação dos Guardas Vermelhos recuperar os quadros considerados em desvio. E sin-
realiza-seem lo de outubrode 1967,quandodas tomáticoque a tarefa de reeducação tenha passado
comemorações do aniversário da RPC. No palanque do movimento de massas para instituições formais a
armado em Pekin estariam os dirigentes de todas as seremcontroladas pelo PCC.
tendências: Mao Tse-tung e Lin Biao, ''o mais pró- Os universitáriosainda tentariam reagir ao re-
ximo e fiel companheiro de armas do Grande Timo- fluxo. Uma série de lutas e incidentes explodiriam na
neiro'', Chen Bo-da, do Grupo Central da Revolução Universidade de Qinghua, berço e principal foco da
Cultural, Nie Yuanzi, cujo primeiro da-zí-bao provo- RevoluçãoCultural na área intelectual. Mas se trata
cara tantas repercussões,e até mesmo Deng Xiao- de um último espasmoe não de uma retomada das
ping, um dos alvos predilletosdas denúncias. A reu- lutas. O Movimento tende a se limitar à análise das
nião dos dirigentes é simbólica: demonstra a preocu- transformações específicas do ensino, não resistindo
pação geral em controlar o movimento que adquire à dispersão comandada pela orientação de ''ir ao
autonomia. O 19.de outubro de 1967 assinalaria o campo aprender com as massas'', que espalha os
início do fim da Revolução Cultural. jovens pelo país enfraquecendo a sua capacidade de
O ano de 1968 seria marcado pelo controle da intervenção política e social.
direção, pela estabilizaçãodo processo de lutas so- Na cúpula sucedem-se expurgos à direita e à es-
ciais, pela retomadada produçãoe pelos últimos querda.
espasmosde um Movimento que não conseguira en- Em outubro de 1968, seria oficialmente expulso
contrar seus rumos; neste quadro é que se darão os doComité Central e do PCC o outrora todo-poderoso
expurgos da ''linha negra'', encarnada por Liu Shao- Liu Shao-qi, que se tornara a própria personificação
qi e por l)eng Xiao-ping, e da ''extrema-esquerda'', dos desvios de direita no PCC. A XI Reunião Plená-
inconformadae inquietacom a paralisaçãodas crí- ria do PCC concluiria que Liu ''sempre fora um
LIÇab. agentedo Guomindang'' desdeos tempos da Guerra
A expressão política do processo é a institucio- Revolucionária. As acusações ,são as mais vagas e
66 DanieIAarão Reis 67
)nstnlção do Socialismo na China

lembram os obscuros processos de Moscou da décad,


suas caracterísücas mostrou em que medida conti-
de 1930, quando a maquina de propaganda do Es. nuavaa ser uma agência reprodutora das desigual-
tado soviético orquestrou, sob o comando de Stalin dades socíais-
a sinistra farsa histórica através da qual ''provou-se'; O movimento teve inegavelmente um carâter de
a vinculação de boa parte da velha guarda do partido massas. Se é certo dizer que foi ''alimentado'' pelo
bolchevique aos serviços secretos das potências capa. alto, ao menosnuma primeira fase, seria incorreto
talistas .
supor que tenha sido um processo totalmente mani-
Como ''urra-esquerdistas'' são destituídos Q
chefe provisório do Estado-Maior do EPL, velho puladopor .grupos em luta pelo poder -- só uma
visão demasiado simplista poderia chegar a esta con-
companheirode Lin Biao, o Ministro da Segurança, clusão.A análiseda participaçãopopular, da diver-
o ComissárioPolíticoda Aeronáuticae o Chefe da sidade de opiniões e dos conflitos que se verificaram,
Guarnição de Pekin, acusados, sem provas conclu- sobretudo em 1966 e 1967, demonstram a força in-
sivas, de participação numa ''conspiração'' contra o terna do movimento e sua vitalidade.
regime. Aliás, sâ isto pode explicar a sua capacidade em
O caminho estava assim aberto para a ''ressur- quebrar o monopólio da informação (da-zí-bates, luta
reição'' do PCC, que começariaem abril de 1969, contra os ''documentos negros'', pelo livre acesso aos
com a realização do seu IX Congresso. órgãos de comunicação social), o monopólio da' re-
presentação política (formação das organizações po-
pulares) e em ameaçar o monopólio da força do EPL
A RevoluçãoCultural, (conflitos em julho de.1967). O Movimento acabaria
provocando o pânico nas elites dirigentes que, desde
balanço de uma experiência o começo de 1967, apenas oito meses depois do pri-
meiro da-zí-bao, tentavam refreá-lo e mesmo para-
O processo da Revolução Cultural representou lisa-lo.
para o povo chinês mais uma etapa na busca de um Mas por queum movimentotão amplo e ma-
caminho próprio para a construção de uma sociedade ciço, de tanta vitalidade, acabou prisioneiro das fór-
mais justa, igualitária e democrática. Revelou a ina- mulas burocratizantes dos processos de Moscou?
dequação das estruturas estatais e o desprestígio em A questão esta evidentemente em aberto.
que mergulhara o-PCC aos olhos das massas popu- Pode-se, contudo, alinhar algumas consideram
lares urbanas e dos jovens. O sistema de ensino foi çõesque contribuíram neste sentido.
especialmentevisado -- a analise e a denúncia de Em primeirolugar,o Movimento
Popularfoi
Z)dizia/ ,4arâa Reis )Rstruçãodo Socialismo na China

incapaz de gestar uma a/fernaflva às estruturas esta-


tais existentes. Quando o fez, no começo de 1967, na
experiênciadas Comunas do Povo, recuou apressa-
damente às primeiras pressões, como que assustado
diante de sua própria iniciativa.
Em segundolugar, o Movimento ficou limitado
no culto à personalidadede Mao Tse-tung. Se, nuH
primeiro momento, o culto foi importante para ''li-
bertar os diabinhos'', num segundo momento, sobre-
tudo quando o ''Grande Timoneiro'' também re-
cuava para posiçõesmais moderadas, o culto acabou
sendo uma poderosa alavanca para refrear o Movi-
mento, fazendo-ovoltar sobre os próprios passos.
Assim, as referências ideológicas que permitiram o
avanço inicial deteriam os partidários de transfor-
mações radicais, que seriam derrubados sob a acu-
sação de "urra-esquerdistas''. Destaque-se aqui o
oportunismo político da maioria do Grupo Central
da Revolução Cultural e do.comandante do EPL, Lin
Biao. Não hesitaram em sacrificar companheiros de
posições, engrossando o coro dos que os acusavam de
"esquerdistas". Imaginaram que poderiam, com o.
expurgo dos partidários dê.''linha negra'', reformar e
dominar a estrutura do PCC. A história iria sur-
preendê-los . .
Ressalte-se ainda o relativo isolamento urbano
da RevoluçãoCultural. Os camponeses,que consti-
tuem a massa do povo chinês, participaram pouco e
mal do processo de lutas e talvez este tenha sido um
fator dos mais importantesna determinaçãodo re-
cuo Mao e o culto à personalidade.
70
DanietAarão Reis Ft

A Revolução Cultural terá sido uma revolução


inacabada. Haveria condiçõesde avançar mais, re
fundindo de forma radical o conteúdo das estruturas
políticas? Ou o Movimento estaria, desde o início.
condenado a abalar apenas estas estruturas, prepa-
rando o campo para futuras ofensivas? Questões que
ainda hoje desafiam historiadores e políticos. . .

A DOMESTICAÇÃO
DA REVOLUÇÃO CULTURAL
1969/1976

A realizaçãodo IX CongressodoPCC, em abril


de .1969, tem o objetivo de reorganizar o aparelho
partidário desmantelado pelo movimento de massas.
Ao mesmo tempo, e talvez seja esta a contradição do
Congresso, pretende assumir e consolidar as conquis-
tas do processoda RevoluçãoCultural que a direção
comunista desejava ver terminado.
O Congresso proclamara assim seus compromis-
soscom as bandeiras da Revolução Cultural: desbu-
rocratização da vida pública, estímulo à participação
das bases, controle da direção pelas massas, convic-
ção de que a luta de classesse desdobra no período
-- bastante longo -- de construção do socialismo.
Entretanto, em nome das massas cuja participação
se pretende incentivar, define-se o objetivo de recons-
trução de um aparelho -- o PCC -- que fora prati-
73
72 Daniel Aarão Reis )Bstruçãodo Socialismo na China

lamente .varrido da vida política pelo Movimento de que tenham elevado sua consciência e ganho a
Popular. compreensão das massas'' . O Relatório ainda exalta o
A organização do Congresso é bastante enigtnâ. papel do.EPL, as conquistas da Revo ração Cultural
tica: quandose abre, em 19 de abril de 1969,eH a necessidadede o povo chinês pemianecer atento
Pekin, reunindo 1512 delegados, não é o coroamento contra a ameaça do revisionismo (observe-se que o
de um processo de discussões pelas bases como Imperialismo norte-americano é equiparado aos revi-
usualmentese faz em congressospartidários (neH sionistas soviéticos num mesmo pé de igualdade).
que seja para salvar as aparências!). Trata-se de um boas a reconstrução do PCC é que marca o Congres-
encontro de delegados cooptados pelas diversas ten- so, simbolizando o término político do processo da
dências que governam e dirigem o país As discussões Revolução Cultural.
não chegaram até hoje ao conhecimento público por- Os delegadostomam outras duas medidas im-
que as sessões,que se desenvolvem.até 24 de abril, portantes: a formulação de novos estatutos e a elei-
foram secretas. É instrutiva, porém, a analise dos ção da nova direção política.
resultados porque neles estão inscritas as tendências Os novos ,statutos asseguram o direito dos qua-
que dominarãoa vida políticada China nos anos dros à discordância, ao encaminhamento de críticas
mais recentes. e de recursos, diretamente às autoridades superiores
O Relatóriode Política Geral afirma a prepon- na medida em que julgassem violada a linha revolu-
derância que o PCC recupera entre os órgãos do cionária por seus dirigentes imediatos. E bastante
enfatizada a ideia da democracia, do controle da
poder estatal: ''Os Órgãosdo poder de Estado, da
Ditadura do Proletariado, o Exército Popular de Li- direção pela base: os representantes saídos do movi-
mento da Revolução Cultural tentavam assim evitar,
bertação, a Liga das Juventudes Comunistas, as
organizações dos operários, camponeses,. dos Guar- através de dispositivos estatutários, a volta de uma
das Vermelhos e de outras organizações revolucio- dinâmica ultracentralista, característica marcante do
PCC desde1949.
nárias de massa (referência aos Comités Revolucio-
nários da Tríplice Aliança) devem submeter-se, sem A preocupação também se revelaria na eleição
exceção,à direçãodo PartidoComunista''.Pro- da nova direçãopolítica: dos 279 membros -- efe-
clama-se ainda o papel que na reconstrução do Par- tivos e suplentes -- do novo Comitê Central, 44,1%o
tido devem desempenhar os quadros atacados pela são originários do EPL, 29%o provêm das organiza-
Revolução Cultural: ''Os quadros que se engajaram ções populares criadas pela Revolução Cultural, e
na via capitalista, mas são bons elementos, devem ser apenas 26,9%osão formados por quadros do antigo
libertados, assumindoum trabalho apropriado, des- aparelho partidário que se pretende agora restaurar.
74 75
DanieIAarão Reis iStrMçãodo Socialismo na China;

Dos 21 membros do Bureau Político, direção execu. ciasde direção do Partido. Mas a política geral apro.
uva do Comité Central, ll pertencem ao EPL, 4 vêH
das organizações populares e 5 do aparelho partidá- !h;: :=;Tn;=i;i:=::1:==n*:
:2==:=:z=:=:=:aJ:::98.x'.s:
rio. Finalmente, não deixa de ser sintomático o fato
de que no Comité Permanente do Bureau Político -.
direção suprema do Partido e do Estado -- façam destesdirigentesera a de que sua presençafísica
parte três elementospartidários da Revolução Cul- seria capaz de '!controlar'' a dinâmica antidemocrá-
tural (Lin Biao, Chen Bo-da e Kang Cheng), o pró- tica do aparelho partidário. Subestimavam a força
prio Mao e mais Zhou En-lai, que aparececomo objetivadesta dinâmica. E pagariam um alto preço
''representante'' da velha guarda do Partido. por isso. . .
Destacam-se ainda mais dois elementos favorá- ' A reconstrução do PCC, aprovada como princí-.
veis às tendências identificadas com a Revolução Cul- Pio, iria, porém., suscitar divergências no seu enca-
tural: em primeirolugar, o fato de que Lin Biao é minhamentopratico: quem reorganizada o Partido?
oficialmente designado como sucessor de Mao Tse- comoreorganiza-lo? qual o papel das massas no pro-
tung; em segundolugar, alguns dos mais importan- cesso?em que medida participariam os ex-quadros
tes líderes da Comuna do Povo em Shanghai ocupam depuradospela RevoluçãoCultural? qual o papel
postos de relevo: Jiang Qing, mulher de Mao, é desig- excitode um PCC ''retificado''?
nada ''animadora de campanhas em prol de uma As resistências eram notórias e podem ser medi-
cultura proletária''; Yao Wenyuan é elevado às fun- daspelo fato de que até outubro de 1970 apenas em
ções de responsável ideológico e chefe do aparelho de 60 distritos da China (em 2000, ou seja, cerca de
informação do PCC; Wang Wongwen é'indicado 19 3%a),haviam sido reorganizados os respectivoscomi-
vice-ministro, enquanto Zhang Qunqiao é designado tês partidários. Entretanto, os representantesda
para a direção do Departamento Político do EPL -- Revolução Cultural eram obrigados a dois recuos
os quatro são eleitospara o Bureau Político do Co- significativos:a abertura de um inquérito contra a
mité Central. Organização 16 de Maio e a dissolução, em fins de
Os principais dirigentes da Revolução Cultural 1969, do Grupo Central da Revolução Cultural.
eram assim eleitos para altos postos de direção do Como, de fato, manter em funcionamento um instru-
Partido, logo, do Estado chinês. Em troca, aceita- mento orgânico que devia sua existência política a
vam ou eram levados a aceitar a política de parali- um processo que se considerara terminado?
sação do Movimento que os havia projetado. A sua Ao mesmo tempo (cf. cap. 7) surgiam impor-
força política exprimia-se organicamente nas instân- tantes divergências no plano da linha internacional.
76 DanieIAarão Reis Fila Construçãodo Socialismo na China
77

As definições do IX Congresso, equiparando URSS e a divergir de Mao e do aparelho partidário em ques-


EEUU, e a radicalizaçãodas contradições
com a tõesdecisivas: a reconstrução do Partido e a política
URSS -- incidentes armados na fronteira norte em internacional.
março de 1969-- estimulavama China a uma série Duas conferências partidárias iriam fixar os
de manobras diplomáticas objetivando o seu ingresso ramos da controvérsia: em agosto/setembro de 1970,
na ONI.J -- abril de 1971-- e o estabelecimentode o Comité Central do PCC, eleito pelo IX Congresso,
relações comerciais e diplomáticas.com os EEUU -- reafirma a necessidadede acelerar a reconstrução
visita de Nixon em fevereiro de 1972. As manobras orgânica do Partido -- os resultados são rápidos:
eram inspiradas na estratégia trimundista que aban: entredezembrode 1970e julho de 1971, o.PCC
donava, nã pratica, a agressiva política internacional estará reconstruído em todos os distritos.e províncias
desenvolvida pela Revolução Cultural, substituindo-a da China. Outra resolução indica a necessidade de
pelo apoio a todos os movimentos ou Estados que, de restringir o culto a Mao Tse-tung -- a restauração do
uma forma ou de outra, se opusessemou pudessem Partido dispensaria o culto como fatos de coesão das
se opor ao hegemonismo das duas ''superpotências'' massas. Em termos orgânicos, Lin Biao e seu grupo
Neste período os comunistas chineses passariam a perdem uma série de posições: a Comissão Militar do
subordinar a política internacional aos interesses Comitê Central é remanejada, assim. como o co-
imediatos de seu Estado. As divergênciasem torno mando da Região Militar de Pekin. Além disso, Chen
desta questão constituiriam também uma importante Bo-da, ex-chefe.doGrupo Central da Revolução Cul-
dimensão dos acontecimentos que abalariam o PCC tural, perde suas funções ejâ não aparecerá nas come-
em 1970/71. moraçõesda Revolução Chinesa em outubro de 1970.
Em abril de 1971,uma segundaconferência, do
Bureau Político desta vez, aprovada as grandes li-
nhas da nova política internacional, mais uma vez
A queda de Lin Biao denotando as proposições de Lin Biao e de seu gru-
po. Uma série de expurgos revelam o declínio defi-
A destituição de Lin Biao deixou perplexos .os nitivo do ''fiel companheiro'' de Mao. Além do pró-
estudiosos da China. Ê possível supor que sua in- prio Lin Biao, caem ll dos 21 membros do Bureau
fluênciajâ entrara ein declíniono próprio IX.Con- Político, dezenas de membros do Comité Central,
gresso, quando o seu Relatório de Política Geral aca- mais de 60 altos dirigentes dos Comités Revolucio-
bou sendo refeito pelas discussões que foram ali tra- nários provinciais. As demissões estendem-se ao
vadas. Desde então, lfin Bico e seu grupo passariam EPL, atingindoo Chefe do Estado-Maior, três de
Construção do Socialismo na China 79
78 DanieIAarão Reis Fi

seus adjuntos, a maioria dos. responsáveis da aero- Entre 1971 e 1973 os meios de comunicação
náutica, da infantaria, dos serviços políticos da Ma- social relançarão a discussão de temas considerados
rinha e muitos chefes políticos provinciais. sepultados pela Revolução Cultural: qualquer retri-
O PCC difundeou deixa circular uma série de buição suplementar em dinheiro deveria ser estig-
versões faótâsticas a propósito do expurgo, incluindo matizada como ''estímulo material''? as preocupa-
uma fuga rocambolescade Lin Bico para a Mongó- ções com a evolução técnica seriam sempre assimi-
láveis ao ''tecnicismo''? qualquer tipo de regulamen-
lia, a bordo de um avião da força aérea chinesa. Lin
Biao e seu grupo são acusadosde articularemum tação seria necessariamente irracional? a redistribui-
golpede Estado no qual figurada o assassinatode ção ''excessiva'' da renda não estaria prqudicando os
Mao Tse-tunge de numerosaspersonalidades de ritmos de acumulação socialista? os lotes individuais
prestígio do Partido e do Estado. Segundo estas ver- levariam forçosamente à restauração do capitalismo?
l sões, os conspiradores não passariam de ''agentes'' A própria forma de colocar as questõesjâ indicava
do inimigo e da burguesia,. ''hâ dezenas de anos onde se queria chegar.
infiltrados no PCC'' para causar sua destruição e sua Em 1973 a reviravolta torna-se mais clara: o-X
Congresso do PCC, realizado em agosto daquele ano,
perda. Não se pode imaginar, .contudo, como tantas
personalidades e quadros, ocupando tão altos postos, consagraria a mudança de rumos.
O Relatório de Política Geral é desta vez apresen-
pudessemser expurgadas com tanta rapidez e faci-
lidade se estivessem efetivamente envolvidos num tado por Zhou En-lai, e nele se reafirmam as opções
que vinham caracterizando os rumos do PCC. Em
complâ ou num golpe de Estado. Na verdade, é jus-
tamente o contrario que parece ter acontecido, ou política internacional o hegemonismo soviéticopassa
a figurar como ''inimigo principal''. Intemamente,
seja, o de terem sido alvo de uma operação de polícia
política no mais puro estilo stalinista. a ênfase vai para as tarefas de reconstrução, defi-
O desaparecimento de Lin Biao e de seu grupo nindo-se a necessidade de modernização da China
favorecia a intensificação do processo de ''normali- nos planos da produção agrícola e industrial, da cul-
zação institucional'' -- reconstituição do aparelho tura e do ensino. Ainda não se chegou à formulação
partidário, campanhas sistemáticascontra o "ultra- das Quatro Modernizações, mas a tendência aponta
neste sentido.
esquerdismo'', reafirmação do PCC enquanto única
E notável, contudo, como se conservam certos
vanguarda política, reabilitação de centenas de qua-
dros afastados durante a Revolução Cultural, entre aspectos da Revolução Cultural. Na formulação dos
os quais Deng Xiao-ping, ex-secretario.geral do PCC Estatutos afirma,se explicitamente que outras revo-
e braço direito de Liu Shao-qi.
luções culturais serão realizadas no futuro(não pre-
81
80 Z)aRIe/ 4arão Reis .l;ll Construção do Socialismo na China

visível) como condição para o bom encaminhamento linha geral que não tem mais nada a ver com o con-
da construção do socialismo. Também é celebrada a teúdo e os princípios da Revolução Cultural.
necessidadede se combinar o trabalho manual e o Do X Congresso (1973) à morte de Mao Tse-
trabalho intelectual, destacando-se a ênfase na orga- tung (1976), a China evoluíra lenta mas firmemente
nização das Escolas 7 de Maio para reeducação dos para a definição do processo de modernização econó-
quadros, as reformas nos aparelhos.de saúde(mé- mico-social como sua prioridade número um, pas-
dicos de pés descalços), no ensino, a ida de jovens ao sando as preocupações com a luta de classes a um
campo. Outras referências, apoiar de mantidas, são plano secundário.
esvaziadasem sua substância-- é o caso, por exem- Na produção voltarão a vigorar o princípio da
plo, dos Comitês Revolucionários da Tríplice.Alian- direção única dos técnicos, os estímulos materiais
ça, cuja composição seria ''reinterpretada'': a tríplice (saláriose prêmios por tarefas realizadas), o critério
do lucro e da rentabilidadede cada empresa, a preo-
aliança não se daria mais entre militares, represen-
tantes das massas e quadros do PCC, mas entre jo- cupação com a modernização tecnológica e com a
vens," pessoas maduras e velhos, ou nas fabricas, importação de técnicas dos centros mais avançados,
entre técnicos, quadros do PCC e operários de van- a doutrina de ''apoiar-se nos pólos mais avançados''
guarda. No ensino, os cursos retomam aspectos duramente
criticados pela Revolução Cultural, sendo ridicula-
As campanhas de mobilização das massas. trans-
formam-se em Vastos movimentos de ''estudo teó- rizada a preocupação excessivacom o trabalho ma-
nual. Não faltam insinuações(através de peças tea-
rico". As pessoas são chamadas a estudar ''atencio-
trais) favoráveis à reabilitação de Liu Shao-qi, ''in-
samente''asobras de Marx, Engels, Lênin, Staline
Mao Tse-j:ung no quadro da luta contra Lin Biao e justiçado'' pelos Guardas Vermelhos.
Confúcio,fora do horário de trabalho, naturalmente. Uma série de textos, inspirados por Deng Xiao-
As referências à Revolução Cultural não fazem ping, procuram teorizar o novo rumo: ''Alguns pro-
blemas relativos à aceleração do desenvolvimento in-
parte de um plano maquiavélicodestinado a ''salvar
dustrial'', ''Sobre a importação de técnicas avança-
as aparências''. Exprimem a força remanescenteda-
das'', ''Sobre a responsabilidade individual dos ge-
quele Movimento e as posições relativas que os seus
rentes'', ''Sobre os prémios na esfera da produção
rio. destacando-se
aí o Grupo de Shanghaique, no industrial". O movimentoé tão forte na cúpula do
entanto, avalizada a demissão de Lin Biao. Mas PCC que nem mesmo o segundo afastamento de
esses dirigentes, a partir de então, não passarão de Deng Xiao-ping, logo após a morte de Zhou En-lai,
em janeiro de 1976, trará mudanças substanciaisao
reféns políticos de um aparelho dominado por uma
82 Dance! Aarão Reis File

curso dos acontecimentos.


Da resistência social às novas orientações hâ
escassas notícias, salvo agitações, mas pouco cf?nhe-
cidas, nas províncias:de Henan, Hunan e Zhçjiang,
entre'1973e 1975.No apanlho do Partido, o Grupo
de Shanghai lidera uma série de campanhas de ''reta-
guarda''' intensificação do movimento contra ,Lin
Biao e Confúcio, procurando estigmatizar o espírito
conservador; campanha contra o Direito Burguês e
sobre a Ditadura do Proletariado, com o objetivo de
AS QUATRO MODERNIZAÇÕES
1976
revelar a atuação dos mecanismos favoráveis ao capi-
talismo no processo de construção do socialismo,
destacando-se a necessidade de vigilância contra os
efeitosde tais mecanismos(salário em função do tra-
O período mais recente da história da República
balho, critério do lucro). As campanhas são, con- Popular da China, depois da morte de Mao Tse-
tudo, essencialmenteteóricas, como se o.Grupo..de tung --setembro de 1976 -- é marcado pela volta de
Shanghai houvesse esquecido a máxima de que ''as
massas se educam na ação''. Na verdade, comoja se princípios e concepções de desenvolvimento econó-
mico-social bastante combatidos durante a Revolu-
disse, estes dirigentes eram prisioneiros do aparelho çãoCultural e que pareciam ter sido definitivamente
do PCC, não possuindo uma alternativa de conjunto superados.
à linha que se afirmava sob a direção de Deng Xiao- A linha geral do Estado chinês e do PCC, ba-
ping. Chegariam mesmo a utilizar métodos típicos do seadanas Quatro Modernizações(da indústria, da
aparelho partidário: cenoura, medidas arbitrárias e agricultura,da defesae da cultura), a volta a postos
terror policial. Encastelados nas cúpulas, Incapazes de responsabilidade e ao próprio comando governa-
de inverter a linha geral predominante, o Grupo de
mental de milhares de ex-quadros afastados pela
Shanghai esperava a sua hora... que soaria com a Revolução Cultural, entre os quais destaca-se uma
morte de Mao Tse-tung, em setembro de 1976
das figuras mais atacadas entre 1966/1969,Deng
Xiao-ping, antigo secretario-geral do PCC e atual
''homem-forte'' da China, são expressões de uma
reviravoltaquenão tém deixado de surpreender. Os

B
85
84 Z)arie/ 'barão Reis ãz Construção do Socialismo na China

acontecimentosse precipitariam após a morte de ''pensamento''


de Mao na revoluçãochinesa,e o
cultoà sua personalidade que, embora reduzido des-
Mao. de 1969, continuava a ser um elemento essencial da
vida política do país.
Já a partir de 10 de outubro começa uma grande
A morte de Mao campanha contra o Grupo de Shanghai, que passará
a ser conhecido como ''O Bando dos 4'' -- referência
e o golpe de outubro de 1976 aos seus quatro dirigentes mais importantes: Wang
Hongwen, Yao Wenyuan, Zhang Chunqiao e Jiang
As cerimónias relativas à morte de Mao Tse-
Qing. O ''Bando'' seria acusado de espionagem, revi-
tung são conduzidas por Wang Hongwen, na pre- sionismo e envolvimento na articulação de complõs
sença da alta direção do Partido e do Estado. As e intrigas contra os interessesdo Estado e os princí-
aparências de unidade? contudo, começaram a.ser pios do PCC. Não era propriamente original, uma
desfeitas em fins do próprio mês de setembro com a vez que as campanhas contra Liu Shao-qi, em 1969,
circulação de rumores de que os dirigentes ligados ao e contra Lin Biao, em 1971, haviam sido caracteri-
Grupo de Shanghai seriam responsáveis pela 't?lsi zadas pelos mesmos insultos. A única novidade, de
ücação" de importantespronunciamentosde Mao certaforma irónica, era que os organizadoresdas
campanhas anteriores passavam, agora, ao banco
Em 6 de outubro de 1976é dado o golpe: Hua dos réus.
A campanha contra os ''4'' será combinada,
ainda em outubro, com manifestaçõesorganizadas
pelo PCC que ''saúdam'' a ascensão de Hua Guo-
feng, designado como ''o único sucessorlegítimo de
Mao'' e ''dirigenteincontestáveldo Partido" (os ser-
viços de Propagandadivulgariam um texto ''do pró'
prio Mãos', indicandoHua para ocupar as novas
Multar do Comité Central, conservando o .cargo de funções). A crítica aos desvios ''urra-esquerdistas''
pruneuo.ministro que exercia desde a morte de Zhou dos ''4'' sãó acompanhadas por outras aos ''direi-
En-lai em janeiro de 1976. Ao mesmotempo, Hua tistas'', nomeando-se explicitamente Deng Xiao-
assume o controle da edição das obras de Mao.Tse- ping. Entretanto, desdenovembro cessam as críticas
tung posteriores a 1949. É evidente a importância a Deng, e uma série dé indícios prenunciam sua volta
desta ú uma tarefa, considerando-se o papel do
87
86 DanielAarão Reis Constmção do Socialismo na China

A partir de 1978Deng,se fortalececada vez


à cena política.
O principal deles é a manutenção da política mais. Sua influência deslocara progressivamente a de
Hua Guofeng e, numa certa medida, ofuscarâ a pre-
com a qual aquele dirigente se identifica: de fato, eH
novembroe dezembro, grandes campanhas pelo au- dominância, até então incontrastâvel, de Mao Tse-
mento da produtividade e por uma estrita disciplina tung, cuja atuação e pensamento passarão a ser criti-
na produção confirmam que a linha geral ''moderni- cados. Não só o culto perde intensidade e se relati-
viza, mas também certas diretivas do ''Grande Timo-
zante'' prossegue inalterada. Um segundo indício é neiro'' serão questionadas, sobretudo as que dizem
dado por manifestaçõesde massa ''pelo retorno do
camarada Deng Xiao-ping'' que se realizam sem en- respeito à Revolução Cultural.
A restauração de Deng não se limita à luta das
frentar oposição dos poderesestatais. Finalmente, idéias. Compreende também o esmagamento pela
a partir de fevereiro de 1977, altas autoridades come- força da resistência ao ''novo curso'': expurgos e
çam a admitir privadamenteo retorno de Deng, o execuções atingem cerca de 1/3 dos quadros do apa-
que é possívelsupor se tenha verificado em março relho do PCC, acusados de partidários dos ''4'' ou
de 1977.
A volta oficial de Deng a suas funções anteriores então de vacilantes.
Como explicar.a restauração, surpreendente, da
é precedida por um elogio público de suas concep- linha das Quatro Modernizaçõese o conseqüentere-
ções, formulado pelos órgãos de comunicação social, tomo de Deng Xiao-ping? Como entender a rapidez
em junho. O processo se completaria um mês depois da queda do Grupo de Shanghai/Bando dos 4?
-- um curto e lacónico comunicado do Comitê Cen-
tral anunciou seu ''retorno às funções''. Voltaria Na verdade, e ao contrario do que muitos ima-
como saíra em abril de 1976 -- sem explicações. ginam, jâ vimos que a referida restauração foi um
lento processo que, a rigor, começou em fevereiro de
A consagração seria em agosto de 1977 quando
do XI Congressodo PCC -- Deng Xiao-ping recobra 1967, quando o Movimento Popular de Shanghai
recuou de sua tentativa de organizar a Comuna do'
a' totalidade dos poderes que foram seus, pronun-
ciando o discurso de encerramento do Congresso. Povo naquela cidade. A partir daí inicia-se o des-
Não se tratava de um fato isolado mas o coroamento censo da Revolução Cultural, cujo fôlego, porém,
ainda conduziria às ofensivas políticas da primavera
de.um processo de retorno maciço dos ex-.quadros do e verão de 1967,e às últimas tentativasde 1968(cf.
PCC, afastados durante a Revolução Cultural. Per-
sonifica também a predominância da linha geral à cap. 4) marcadas pela incapacidade de propor e
construir uma alternativa consequente ao sistema
qual Deng associa seu nome: a política das Quatro ditatorial e hierarquizado do PCC.
Modernizações.
89
88 DanieIAarão ReisFil )Rstrução do Socialismo na China

O primeiro marco da ''restauração'' é o IX Con-


gresso do PCC, realizado em abril de 1969: o dis.
curso e as idéiasde ''esquerda'', a proclamaçãopú-
blica dos princípios da Revolução Cultural e mesmo
a inserção deles nos novos estatutos do PCC, não
anulam o fato de que a princip41 decisão deste Con-
gresso foi a reestruturação de' um aparelho político
-- o PCC -- virtualmente desmantelado pela Revo-
lução Cultural e cuja lógica de existência e sobrevi-
vência implicavam a negação dos valores e métodos
preconizados pelos Guardas Vermelhos e pelos ope-
ráriosrevoltadosentre1966e 1968.
Em 1970/71, ocorre uma nova e importante
etapa -- a queda de Lin Biao e da.maior parte do
estado-maior da Revolução Cultural e a reestrutura-
ção rápida dos comités do Partido, com o correspon-
dente esvaziamento das instituições políticas esbo-
çadas por aquele movimento, como era o caso, por
exemplo, dos Comités Revolucionários da Tríplice
Aliança. O X Congresso, em 1973, confirmaria e
consagraria estes acontecimentos.
Assim, e apesar de exerceremaltos postos e
responsabilidades, os dirigentes do Grupo de Shan-
ghai tornaram-se reféns do aparelho partidário. Re-
velariam também, nas tentativasque fizeram para
alterar o rumo dos acontecimentos,uma profunda
incapacidade de compreender as reais questõesem
jogo. As suas ''campanhas'' ideológicas eram livres-
cas e abstratas (contra .o direito burguês, Lin Biao e
Confúcio), ultrapersonalizadas
na figura de Mao
Tse-tung e sem nenhum efeito pratico. Recorriam Deng-Xiao-ping.
Z)azzíe/ 4arâo Reis 91
90 Construção do Socialismo na China

freqüentemente à intimidação e à força bruta Para No plano da organização da produção hâ um


''suscitar'' a participação das massas e da intelectua. reforço da direção única (''os principais. dirigentes de
cidade(cf. a campanha de ''ida ao campo''). Numa uma empresa devem pessoalmenteassumir as deci-
espiral de sectarismo e de hermetismo, imputando os sões relativas à acumulação/lucro''), com o enfra-
mesmos rótulos a erros de qualidades diferentes, Q quecimento dos Comitês Revolucionários de fábrica
Grupo de Shanghaifoi se isolandocada vez mais e/ou dos grupos operários de gestão, criados durante
num processo que um autor chamou justamente de a Revolução Cultural. Ênfase é atribuída ao papel
''revolucionarização pela força'' dos regulamentos e normas de trabalho, destacando-
Portanto, o golpe de estado de outubro de 1976, se um texto redigido sob a direção do próprio Deng
que abre o caminho à formulação das Quatro Moder- Xiao-ping que afirma: ''E preciso aprender com cer-
nizações e à volta de Deng, é apenas o último passo tas normas e regulamentosburgueses... porque cer-
de uma longa caminhada, apesar do escândalo que tos aspectos da gestão das empresas capitalistas...
se fez em torno do ''Bando'' de Shanghai. representam um balanço ;da experiência dos operá-
Trata-se, agora, de compreendermelhor as ca rios, e são, assim, científicos. . .''. A febre produtivista
racterísticas da política das Quatro Modernizações e volta às preocupações dos responsáveis pela econo-
seu significado na evolução recente da República mia -- campanhas de emulação centralizadas são
Popular da China. desencadeadascom o objetivodê aumentar.o renda-.
mento e a produtividade dos diversos setores indus-
triais. Os operários são mobilizados para a realização
As Quatro Moderniíações ''da grande ordem'', e para atingir ''rápidos
dos''. Em novembrode 1977a Rádio Pekin retoma o
resulta-

A política das Quatro Modernizações constitui slogan stalinista: ''A política serve à economia' '
uma estratégiade desenvolvimento
a longo prazo, O lucro por empresa volta a ser incentivado
abrangendo a vida económica, política e social da (''quanto mais lucro para cada empresa,mais ri-
China. queza para o socialismo"), e, do ponto de vista da
,4 modernização índzzsfría/ implica a absorção . retribuição do trabalho, afirma-se uma concepção
em larga escala de tecnologia sofisticada e a concen- que privilegia a diferenciação salarial (''o igualita-
tração do desenvolvimentoem determinados pólos. A rismo é ainda o maior problema da China'' , afirmam
indústria pesada, produtora de maquinas e de meios os meios de propaganda em novembro de 1977)..
de produção, tende a ganhar prioridade frente aos Neste sentido são reimplantados o salário por tarefa,
demais ramos da produção industrial. os prémios em dinheiro e em recompensas materiais
93
92 Z)ame/ 4arão Reis Constwção do Socialismo na China

para os operários mais destacados. O processo de modernização agrícola e indus-


Em cada empresa o comitê do PCC é celebrado trial supõe uma ampla abertura para o mercado
como força dirigente incontrastâvel: ''Numa empresa internacional de onde se espera venha a tecnologia
socialista, a relação do Partido com outras organi- avançada que permitirá emancipar a nação chinesa
zaçõesé uma relaçãoentre o guia e os discípulos". do subdesenvolvimento. Neste sentido, serão assina-
.4 modernização da agrícu/ftzra acompanha eH dos acordos com o Japão, EEUU e outros Estados
grandes linhas o que ocos'rena indústria: avanço capitalistas da Europa Ocidental para importação de
tecnológicoe mecanização agrícola acelerada. E pre- ''pacotes tecnológicos'' e de fabricas prontas. A pauta
ciso ''educar os camponeses'' segundo as novas orien- do comércio externo chinês começa a se desequilibrar
tações: ''reforçamento da disciplina no trabalho, em função da clássica ''deterioração dos termos de
controle da assiduidade, sistema definido de respon- troca'' , inerente à troca de matérias-primas indus-
sabilidades, mecanismos racionais de remuneração triais e produtos alimentícios (oferecidos pela China) ,
de trabalho; organização de campanhas de emula- por maquinas, equipamentos e tecnologia (forneci-
ção, avaliação regular do trabalho dos indivíduos e dos pelos países. capitalistas). Os acordos internacio-
das unidades de trabalho coletivas (equipes e briga- nais, a partir de 1978,permiteme estimulamos
das de produçãoy' investimentos conjuntos (/oinf-venfzzres) com empre-
As indústrias rurais ''não rentáveis'' são deses- sas e Estados capitalistas, além de concessõespara
timuladas, incentivando-seo controle central das ''projetos especiais'' de firmas estrangeiras cuja pro-
maquinas, a organização de ''grandes batalhas pela dução se destina à exportação.
produção'', o controle centralizado e unificado dos ,4 modernização da dl:lHesa baseia-se na reorga-
fluxos de mão-de-obrana tentativa de dirigi-la para nizaçãodas Forças Armadas com base em equipa-
onde for mais indicado em termos económicos. mentos sofisticados e o seu treinamento em métodos
O princípio da propriedade coletiva não é ques- avançados de combate. Restabelecem-seos níveis
tionado, mas a preocupação com a produtividade hierárquicos abolidos desde 1965. As milícias popu-
promove a extensão da dimensão dos lotes indivi- lares perdem importância e autonomia, subordi-
duais e a correspondente ampliação das atividades e nando-se ao controle dos militares profissionais .
da importância da família e da equipe de trabalho ,4 modernização cu/ftzra/,em nome da eficácia e
como unidades de produção, em detrimento da bri- da rapidez dos resultados, suprime os estágiosperió-
gada, unidade mais ampla e mais favorável ao com- dicos na produção que eram uma condição de acesso
bate às desigualdadesna remuneração do trabalho aos estudos universitários, restabelece os exames e dâ
camponês. preferência aos ''melhores'' intelectualmente. Cres-
95
94 DanieIAarão Reisl;. $stNção do Socialismo na China
'". IAa
cem nas escolas o poder e a influência dos detentores
do saber formal.
As Quatro Mi)dernizações são complementadas
por uma política internacionalinspirada na ''Teoria
dos Três Mundos'' voltada simultaneamente contra
os EEUU e a URSS, mas com ênfase não disfarçada passarâa desempenharpapel decisivo, caindo para
para o ''perigo que vem do norte'' representadopela ;m plano secundário o s/oga/z de Yanan: ''contar
URSS. A política trimundista é um elemento-chave com suas próprias forças
para a compreensão das relações comerciais externas Os ritmos de desenvolvimento constituem outra
da China. característica essencial. A aceleração dos ritmos é
Quando de sua definição oficial, no XI Con- apresentada como uma condição específica do socia-
gresso do PCC, em agosto de 1977, as Quatro Moder- lismo: ''No fundo, o regime socialista é superior.ao
nizações foram anunciadas como um prometo que capitalistaporque permite realizar uma produtivi-
integraria um certo nível de liberalização-política. dade e ritmos de desenvolvimento da economia mais
Chegou-sea falar numa nova Campanha das Cem elevados''. Volta-se, como observa Charles Bettel-
Flores ou mesmo das Mil Flores. Como, no entanto, heim, ao s/open stalinista: ''Os ritmos decidem
as críticas passaram a comprometer não só o ''Bando
dos Quatro'', mas também alguns aspectos do ''novo Parte-se da premissa de que o sistema socialista
curso'', o Estado e o Partido restringiram rapida- será inevitavelmente fortalecido. com o avanço das
mente a liberdade concedida. De fato o centralismo forçasprodutivas que se processa em seu interior.
económico, essencial à política das Quatro Moderna- . Uma equação política simples é proposta: ''As fábri-
zações, é incompatívelcom a descentralizaçãoe as cas pertencem ao Estado, e o Estado é controlado
liberdades democráticas de expressão e de manifes- peloPartido. Ora, se o Partido é dos operários, logo,
tação do pensamento político. as fábricas pertencerão também aos operários'' . Fal-
As Quatro Modernizações
representamuma tam nuanças à equação, mas é ela que vigora na
reviravolta radical em relação aos princípios e à polí- China das Quatro Modernizações.
tica da RevoluçãoCultural. As preocupaçõescom a A vitória da nova política e de Deng Xiao-ping
produção, a produtividade e o rendimento económi- parecem consolidadas neste momento. Alguns ana-
cos ganham prioridade absoluta. Em vez da ''polí- listas jâ se apressam em dizer que a China do ano
tica no postode comando'',celebradapela Revo- 2000estará marcada pelas características desta polí-
lução Cultural, teremos ''a política serve à econo- tica
96 ruanieIAarão Reis Filho

Terão sido definitivamentesepultadasas expe-


riências e propostas da Revolução Cultural? Ou o
povo chinês, mais uma vez, surpreendera com sua
vitalidade revolucionária os sinólogos mais categori-
zados?

AS RELAÇÕES ENTRE
OS COMUNISTAS CHINESES
E SOVIÉTICOS 1949/1976

Os conflitos de interesse entre os comunistas


soviéticos e chineses foram constantes durante o pro-
cessorevolucionário que levou à proclamação da Re-
pública Popular da China -- RPC. (Cf. .A Neva/zzção
Cãl/lesa, vo1. 5 desta colação) .
Depois de 1949 as contradiçõesassumiriam
novase múltiplasformas e começariamcom a pró-
pria vitória da Revolução na China. Como já se disse,
os acordos firmados entre URSS e EEI.JIJ em Yalta e
Potsdam não previam este desdobramento da situa-
ção. Fora programadopara a China um governode
Frente Única sob o controledo Guomindang de
Tchiang Kai-chek. Assim, a própria existênciada
RPC representava um desafio aos acordos entre as
superpotências. O fato de que a l.JRSS e os países do
Leste Europeu só viessem a reconhecer a Revolução
ã
98 DanieIAarão Reis Filho z4Consrmçâo do Sacia/Esmo lza C&lna

Chinesa vinte dias depois de sua proclamação não equilibrar suas relações com a URSS (cf. capítulo l).
pode ser visto fora de um contexto mais abrangente. No plano interno, a rica experiênciadas áreas
A lenta manobra diplomática foi a primeira expres- libertadas não pareceu, pelo menos num primeiro
são do desajustamento de interesses que iria se tor- momento, de grande valia para organizar e dirigir o
nando mais complexo. país O PCC se sentia fascinado pelo prestígio e pelos
êxitos da URSS e não dispunha, além disso, de apre-
ciável margem de manobra. Daí por que a viagem de
Mao Tse-tung a Moscou (dezembro de 1949--feve-
Do alinhamento dependente reiro de 1950)conduziria à assinatura de um Tratado
à autonomia na aliança -- 1949/1956 de Aliança e Assistência Mútua, valido por trinta
anos. O acordo assinalaria o ''alinhamento'' da RPC
Os comunistas chineses, apesar da originalidade ao bloco socialistadirigido então de forma rigida-
de seu processo revolucionário, não conseguiram mente centralizada por Moscou. A RPC definiria
apresentar um perfil próprio nas relações com a uma via de desenvolvimentocujos grandes eixos se-
URSS em toda uma primeira fase (até 1953). riam calçados no modelo dos Planos Qüinqüenais
A sua política externafoi de início duramente soviéticos,vistos como a forma mais eficaz e rápida
de afirmar a China no concerto mundial.
condicionada pelos EEUU. A principal potência
mundial, além de se recusar a reconhecera nova A dependência em relação à URSS se acentuada
China, patrocinava a ficção jurídica da ''China Na- com a guerra da Corria. Desencadeada em junho de
cionalista'', instalada sob sua proteção na ilha de 1950, e na medida da intervenção dos EEUU, o con-
Taiwan-Formosa.Num plano mais geral, e isto se flito se tornaria logo desfavorávelaos comunistas
coreanos. A China foi então obrigada a intervir, re-
aplicava também à URSS no quadro da guerra fria
que se iniciara a partir de 1948, o governo norte- equilibrando a correlação de forças, inclusive porque
americano se empenhava na articulação de um cor- os EEUI.J visavam, através da guerra, desestabilizar
dão ''sanitário'' em volta da China Vermelha, reani- o novo governo revolucionário em Pekin. Mas a
mando campanhas contra o ''perigo amarelo'' e as guerra seria altamenteprejudicial à China. Além de
''hordas chinesas'' representar uma sangria em homens, implicou a mo-
Os comunistasem Pekin foram portanto como bilização de grandes contingentese de uma parcela
que obrigados a se apoiarem única e exclusivamente considerável do parco potencial económico da RPC.
em Moscou, apesar de seus esforços em abrir uma No plano internacional consolidou-se o isolamento
da China.
política triangular com Washington, o que permitiria
101
100 l,4 Consrmção do Sacia/limo na China
Dance! Aarão Reis Filha

bolcheviqueabre um períododuplamenteinstável.
A URSS teve uma política pouco clara nas ori- Internamentea URSS parece caminhar para.a
gens do conflito. Na ONU, durante os debates sobre institucionalizaçãodo regime, superando o arbítrio
as acusações e contra-acusações que se faziam mu-
incontrolável da fase stalinista. As resistências seriam
tuamente coreanos do sul e do norte, o representante
da URSS (que tinha direito de veto como membro do progressivamente neutralizadas .(cf. processo e. exe
Conselho de Segurança) simplesmentese retirou do cução de Berma,dirigente da polícia política soviética
e um dos principais responsáveis pelo ''terror' per-
plenário permitindo que os EEUU fizessem aprovar manente em que vivia subjugada a nação soviética).
uma força internacional de intervenção no conflito. No planointernacionala URSS procu!!.!firmar
Posteriormente, a URSS não se mostraria entusias- uma linha de coexistência pacífica com os EEUU e.o
mada com o desenvolvimento das conversações de
mundo capitalista em geral. A noção de coexistência
paz, que se arrastariam de 1951a 1953. Os comunistas pacifica não era original. Nova era a maneira,de con
chineses ficariam com a impressão de que Moscou se cebê-lae a forma de aplica-la.Uma certa distensão
servia da guerra para aprofundar os laços de depen-
vai passar a caracterizaras relações.internacionais.
dência económica (e agora militar) da China. No Seus resultados imediatos: a assinatura da paz na
mesmo sentido operava o processo de isolamento Corria -- 1953 -- e no Sudeste Asiático -- Confe-
internacional a que se via submetida a China em rênciadeGenebraem 1954. .
função de sua participação no conflito. Parodiando Talvez os soviéticosnão houvessemcalculado
uma fórmula cunhada em outras épocas, era como se
que a coexistênciapacífica, na medida em que dis-
o Estado soviéticoestivessedisposto a lutar na Coréia tensionava o clima das relaçõesinternacionais, pro-
até o último chinês. . .
O fato inquestionávelé que a guerra estreitara
ainda mais a jâ reduzida margem de manobra da
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a necessidadede uma rígida centralização,condi-
RPC. A China parecia destinada a se mover na órbita
cionada pelo cerco do inimigo, o próprio conceito de
de Moscou, mesmo que isso não fosse de seu agrado. "fortaleza cercada por todos os lados'',. diwlgado
A morte de Stalin, em março de 1953, inaugu- pela URSS a respeitode si mesma para justificar a
rada uma novafasenas relaçõesentre URSS e RPC. mobilização permanente de todas as forças do movi-
Não propriamente pelo desaparecimento do homem, mento comunista internacional em sua defesa, todas
embora seu papel pessoal não possa ser subestimado essasnoções da guerra fria diluíam-se no contexto da
na organização e funcionamento de um sistema cuja coexistência pacífica.
conceituaçãocontinua desafiando especialistas e his- No interior do bloco socialista a China estava em
toriadores. Mas pelo fato de que a morte do velho
102 103
DanieIAarão Reis Fil
Construção do Socialismo na China

melhores condições para tirar partido da nova si-


tuação e começará a adquirir um mínimo de margem
de manobra.
Em julho de 1953é afinal assinado o tratado de
paz pondo fim à guerra da Corria. Um ano depois a
China participa no patrocínio da Conferência de Ge.
nebra que formalizada o reconhecimentoda Repú-
blica Democrática do Vietnã após a histórica vitória mero crescente de Estados capitalistas, conversações
de Dien Bien-phu. Ainda em 1954a China assinaria diretascomosEEUU,etc. . . .. ..
um acôrdo com a Índia, estabelecendo-seos ''Cinco No plano interno a RPC começaria a firmar.suü
Princípios'' de sua política externa, baseados na
autodeterminação dos povos e na não intervenção de
cada Estado nos assuntos internos dos demais.
Outras importantes conquistas diplomáticas fo-
ram registradas em 1955: em abril, a China figurada prime a força das tendênciascríticas ao transplante
como nação-líder na Conferência afroasiática de mecânico para a China das opções soviéticas de de-
Bandoeng-- Zhou En-lai surge ao lado de Tito, senvolvimento...
As iniciativas externas e internas configuram a
Sukarno, Nasser e Nehru representandoas aspira-
ções de um ''terceir(i mundo'' cujos contornos impre-
autonomia da RPC no contexto da aliança com .a
cisos não deixam, porém, de anunciar uma nova URSS Esta continua a ser celebrada como eixo da
força política emergentena cena internacional. No política intemacionaldo.Estado chinês. Não se tra-
começo do ano, e antes mesmo de que a URSS desse tava de uma declaraçãoformal, basta verificar .o.al-
passos concretos nesta direção, a China restabele- cance do novo acordo assinado em outubro. de 1954 e
ceria relações amigáveis com a lugoslávia de Tito, até que asseguravaà RPC mais créditos, a retirada das
então considerada a ''ovelha negra'' do mundo socia- últimas tropas soviéticas de bases na China: e .um
lista. A China vê o princípio de sua admissãona pmgrama de cooperação científica com vistas à fabri-
ONU reconhecido por um número crescente de Es- cação da bomba atómica chinesa. Entretanto, algu-
mas divergências importantes começam a despontar:
tados e é sintomático que se abram desde 1955 con-
versações diretas entre a RPC e os EEUU. em setembro de 1954, a RPC inicia bombardeios
Estes acontecimentosexprimem a conquista de maciços às ilhas de Quemoy e Matou, ameaçando
uma margem de manobra nas relações internacionais intervir em Taiwan. A URSS não apoia o prometoe a
China é obrigada a recuar.
104
DanieIAarão ReisFila. Construção do Socialismo na China 105

Da luta ideológica entre os Partidos nos Planos Qüinqüenais poderia ser mantida imune
ao conflito entro os Estados -- 1956-1968 às críticas ao regime político? Ou seriam dois aspec-
tosde uma mesma realidade? No quadro da coexis-
A história das relaçõesentre URSS e RPC en. tência pacífica, e encerrado o ciclo de bipolarização
trará numa fase de tensõesqualitativamentemais do mundo, que futuro estaria reservado para as
agudas com a realização do XX Congresso do PCUS demais nações socialistas? Os dirigentes chineses se
em fevereiro de 1956. A apresentação do Relatório perguntavam que tipo de discussõesestariam tendo a
Secreto de N. Krutschev define os limites das refor- URSS e os EEI.JU a respeito do futuro de seu país. ..
mulações que os soviéticos pretendem empreender no O enfrentamento destas questões produzira o
regime stalinista. As referências aos crimes de Stálin agravamento das contradições e tensões entre URSS
revelam a ponta do iceberg, mas os dirigentesem e RPC
Moscou parecem paralisados no processo crítico e se A RPC, no plano interno,procura um perfil
satisfazemna caracterização de Stalin como bode próprio: as Cem Flores e sobretudoo Grande Salto
expiatório dos erros e problemas do sistema sovié- para Frente (1958) exprimem esta busca. A heresia é
tico. A opção pela coexistência pacífica não esclarece registrada em Moscou que denuncia o aventureirismo
a margem de iniciativa dos demais países socialistas do Grande Salto e das Comunas Populares.
no interior do bloco liderado pelos soviéticos, nem as Nas questõesinternacionaisacentuam-seas di-
conseqüências últimas da reaproximação que se arti- visõese os atritos:em setembrode 19S7a RPC
cula entre EEUU e URSS.
reconheceo Governo Provisório da Revolução Arge-
O mal-estarse aprofunda com as crises da Po- lina, contrariando as orientações da URSS que velava
lânia e da Hungria em 1956, quando tentativasde por suas boas relaçõescom a França. Em 1958a
autonomização são esmagadas pelos tanques soviéti- RPC exigeinutilmente da URSS uma atitudemais
cos (o mesmo já se verificara em .1953 na República firme frente à invasão do Líbano por tropas norte-
Democrática Alemã quando a repressão armada se americanas, No mesmo ano a URSS também não
abatera contra manifestações populares em Berlim) . apoia a RPC em seus conflitos com Taiwan e Índia.
Na verdade o processo de crítica a Stalin e ao Mas é a partir de 1959que as tensões se agravam de
regime político que havia dirigido levantava uma uma forma irreversível -- em setembro N. Krutschev
série de questões: qual fora exatamente o papel de vai aos EEUU consagrando a coexistênciapacífica
Stalin? como se colocava a questão da democracia na na base do ''espírito de Camp David''. Enquanto os
construção do socialismo? e a concepção de desen- soviéticosarticulam a depois fracassada Conferência
volvimentoeconómico baseada na indústria pesada e dos Quatro Grandes (Inglaterra, França, URSS e
Construção do Socialismo na China 107
106 DanieIAarão ReisFilho
terpostos países: a URSS critica a Albânia, fiel aliada
EEUU), a China se sente excluída e não consegue da RPC na Europa Oriental. E os chineses criticam os
descobrir por que não é considerada também Uma ''erros do camarada Togliatti'' , dirigente comunista
potência ''grande'' italiano partidário das opções internacionais do re-
O curioso no debate cada vez mais veemente ê gime de Moscou. Os chineses acusam os soviéticos de
que tanto a URSS como a China parecem não se dar ''revisionistas''e de ''conciliadores''e são por estes
conta de que a partir de 1959 numa pequena ilha do acusados de ''dogmáticos'' e de ''aventureiros''. As
Caribe uma revoluçãoestavaem marcha. A irónica divergênciassão complexas e abrangem vasta gama
deusa da História continuava a plantar revoluções de questões.Podem ser reunidas, porém, em dois
socialistas nos locais mais impróprios. . . grandes grupos: a) as relativas ao processo de cons-
Haverá ainda tentativasde conciliação: em ou- trução do socialismo;b) as que dizem respeitoà
tubro de 1957a URSS assinaum tratado de assis- política internacional.
tência nuclear com a RPC, com promessas de trans- Do ponto de vista da construção do socialismo,
ferência de tecnologia nuclear para a China. Em no- os soviéticos reafirmavam a perspectiva de não ir às
vembro do mesmo ano, numa conferênciade ses- raízes da crítica ao fenómeno stalinista. As opções
senta e quatro Partidos Comunistas, realizada em estratégicas dos Planos eram mantidas, procedendo-
Moscou, para avalizar as novas políticas soviéticas, se a reformas políticas que institucionalizavamo re-
as divergências serão ocultadas. Mas estas tentativas gime existente até 1953. Ora, os chineses, desde
não conseguirãosuperar o abismo das desconfianças 1958, e apesar do fracasso do Grande Salto, procu-
geradas pelas conversações de Camp .David e pela ravam novos rumos e a RevoluçãoCultural seria a
política geral da URSS em todo o mundo. expressão mais radical de suas tentativas de focar
' As tensões se radicalizam desde 1960, tornando um caminho próprio.
cada vez mais difícil manter a aparência de unidade: O debate, porém, é confuso porque os chineses
em agostoa URSS corta sua ajuda e retira seus téc- nunca combaterão Stalin publicamente -- ainda que
nicosda China. Os comunicadosanódinosde uma concordandoem fazer restriçõesa seus erros polí-
nova Conferência Internacional dos Partidos Comu- ticos, ressaltarão sempre o carâter ''fundamental-
nistas -- desta vez reunindo oitenta e um partidos -- mente positivo'' de sua contribuição. O paradoxo é
realizada em fins de 1960,só provam que a conci- que os soviéticos, apesar de manterem em grandes
liação entre os dois maiores países socialistasé jâ linhas os Planos stalinistas, empenham-seem des-
agora impossível. mantelar o mito de Stalin. Enquanto que os comu-
O conflito então explode publicamente: numa nistas chineses .que, na prática, avançam propostas
primeira fase as acusaçõesmútuas se fazem por in-
108 DanieIAarão ReisFt ào l,4 Construção do Socialismo na China 109

alternativas ao sistema stalinista(Grande Salto e lógica.


Revolução Cultural), permanecem cultuando a per- Novos elementos, porém, realimentariam as
sonalidadede Stalin. A explicaçãopara o enigma contradições.
não é simples -- em síntese, pode-sedizer que os O desencadeamento da Revolução Cultural na
soviéticossempre temerão, ao põr em causa o sistema China aprofunda a crítica ao revisionismosoviético.
que proüetou Stalin como líder, questionar a sua pró- Liu Shao-qi, personificaçãodos vícios e desvios a
pria condição de dirigentes políticos. Jâ os chineses serem evitados, é acusado de ser ''o Krutschev chi-
nunca saberão levar às últimas conseqüências a crí- nês". A adição pelaChina de uma política de apoio
tica ao sistema stalinista -- basta verificar as incer- agressivo aos movimentos de libertação nacional e
tezas da Revolução Cultural, o culto à personalidade contestação social em todo o mundo não poderia dei-
de Maó Tse-tung, as ilusões quanto ao aproveita- xar de entrar em conflito com a política de respeito às
mentodo aparelhopartidário do PCC por parte do áreas de influência observada pela IJRSS em seu re-
Grupo de Shanghai, etc. lacionamento com os EEUU.
O debate sobre a construção do socialismo e o O bombardeia da República Democrática do
fenómeno do stalinismo radicaliza a oposição entre Vietnã a.partir de 1965pelosnorte-americanos
ea
o PCC e o PCUS: os ''Nove Artigos", provavelmente invasão da Tcheco-Eslovâquia pelas tropas soviéticas
inspiradospelo próprioMao Tse-tuna,e as inter- em agosto de 1968conduziriam ao aprofundamento
venções de M. Suslov do lado soviético, dão sólida das divergênciassino-soviéticas.Novos textos apa-
consistência às divergências ideológicas entre comu- recem na China denunciando o carâter do Estado
nistas soviéticos e chineses. soviético: ''Como os revisionistas da URSS pilham e
No plano internacional a crise dos foguetes em exploram os povos da Europa Oriental''; ''Revisio-
Cubo, em 1962,o novo conflitosino-indiano, a ques- nismo e imperialismo: chacais de um mesmo covil'';
tão do Laos, e, finalmente, os incidentes fronteiriços ''A diabólica natureza social-imperialista da quadd-
entre URSS e RPC caracterizam uma escalada de Iha de renegados revisionistas da IJRSS". Os títulos
desentendimentos que parece imprevisível. são suficientes para que se entreveja o nível das acu-
A queda de N. Krutschev cria uma certa expec- sações . . .
tativa de reconciliação (outubro de 1964). O ingresso As análises chinesas ganharão sinistra confirma-
dos chinesesno clube atómico e a visita de Zhou ção com os conflitos fronteiriços entre tropas sovié-
En-lai a Moscou, em novembro, retribuída pela de ticas e chinesas em torno da ilha Tchen-pao/Da-
Kossiguin a Pekin, em fevereirodo ano seguinte, manski no rio Ussuri. Sobretudo quando se sabe que
produzem uma determinada acalmia na frente ideo- os soviéticos concentram um dispositivo militar ofen-
110 111
DanieIAarão Reis Fi. Constmção do Socialismo na China

sivomuito bem equipado nas fronteiras com a China disso a RPC procura aliados no Segundo Mundo --
O IX Congressodo PCC em 1969afirmara o caráter nações capitalistas industrializadas -- e no Terceiro
imperialista da URSS -- começa a se esboçar entre Mundo -- nações subdesenvolvidas entre as quais a
os chineses a convicção de que a URSS seria mais RPC se inclui, aceitando, taticamente, eventuais
perigosado que.os EEUU para a sua segurançae alianças com os EEUU, considerada superpotência
integridade. em decadência.Estes princípios afastarão a RPC de
sua tradicional política internacional de apoio aos
movimentos de libertação nacional e contestação so-
cial. Tudo se subordinarâ à tarefa principal: enfren-
A guerrafria entreURSS e RPC tar e deter o hegemonismo soviético em crescimento.
1969- O Trimundismo é a política internacionalpor exce-
lênciadas QuatroModernizações (cf. cap. 6). E não
A trégua nas fronteiras à base do respeito ao deixa de ser aparentemente paradoxal o fato de que a
sfalzz qzzo a/zfe e uma nova viagem de Kossiguin a China, ao se aproximar do modelo dos Planos sovié-
Pekin em 1969, na volta dos funerais de Ho Chi ticos, esteja tão irreconciliavelmenteafastada da
Minh, despertaram rumores sobre um possível apa- URSS em política internacional. Paradoxo aparente :
ziguamentonas relaçõesentre URSS e RPC. Ilusões na verdade, como jâ se viu, sõ uma concepção sim-
que não duraram muito. . . plista pede imaginar que os dirigentes chineses par-
O X Congresso do PCC, em 1973, confirmaria e tidários do modelo stalinista não passavam de ''agen-
radicalizaria ainda mais as análises dos comunistas tes'' de Moscou.
chineses sobre os soviéticos, indicando-se claramente A guerra fria entre URSS e RPC dificilmente
a URSS como inimiga principal. E na base dessas degenerara em conflito armado generalizado. l.Jma
perspectivas, alias, que se reatam as relações entre os vitória militar da RPC é impossível.E a URSS só a
EEUU e a RPC (viagensde Kissingere Nixon à conseguiria a um custo excessivamente elevado e em
China em 1971/1972),ganhando esta afinal o apoio troca da certeza de uma nova guerra mundial.
norte-americano
para o seu ingressona ONU -- Mas é possível que num futuro não muito re-
outubrode1971. moto a atual guerra fria evolua para uma competição
A nova política internacional da RPC, inspirada na base da coexistênciapacífica. Ê difícil prever as
na Teoria dos Três Mundos, concentra a atenção no condiçõesem que isto poderia acontecer. Mas uma
hegemonismo soviético, ''em expansão'', definindo-o delas, certamente, seria a modificação do atual ex-
como principal inimigo da humanidade. Por causa pansionismo soviético, traço marcante e caracterís-
112
DanieIAarão ReisFitln

taco da presente conjuntura internacional. Nessa


hipótese é possível que a coexistência se afirme nas
relações entre a RPC e a l.JRSS. Porque estaria de
acordo com os interessesdos dois Estados. E são
estes interesses, ultrapassando eventuais divergências
ideológicas, que estão na base das políticas e alianças
internacionais.

CONCLUSÃO

Tentamos estudar um período marcado pela


afirmação e consolidaçãoda República Popular da
China.
Tateando, e aprendendo com os próprios erros,
os chinesestentaram o modelo soviéticodos Planos
Qüinqüenais,arriscaramum Grande Salto para
Frente, recuaram diante das dificuldadese preten-
deram novamente assaltar .o céu das desigualdades
sociais e da democracia através da Revolução Cul-
tural.
A situação tornou-se complicada porque os chi-
nesesa tiveram de enfrentar num quadro internacio-
nal desfavorávelde lutas e de tensões não só com o
mundo capitalista, mas também com a principal po-
tência do bloco socialista, a URSS.
A partir de 1969, e sobretudo depois de 1976,
o Estado e o PCC empenham-se na restauração de
uma política de desenvolvimentoem ritmo acelerado.
114 Constmção do Socialismo na China 115
DanielAarão ReisFilha

O bom senso da política é saudado em quase todo o o passado não desmentesua capacidadede com-
mundo. E os especialistas mais apressados pronun- preender os problemas, identificar amigos e inimigos
ciam-se sobre o caráter definitivo da nova linha e de passar à ação e à luta por seus interesses.
assim como antes afirmavam a irrevogabilidade dos
princípios da Revolução Cultural jâ em pleno declí-
nio
O povo chinês foi capaz de combater e derrotou
a força do imperialismo japonês, o bloqueio dos
norte-americanos, a dependência em relação à
URSS, a miséria e a fome que matavam periodica-
mente Milhões de mulheres e homens.
Desde 1949, contudo, os chineses enfrentam
desafios novos, contradições imprevistas cuja força e
persistência surpreenderam os revolucionários mais
experientes: as contradições entre campo e cidade,
entre operários e camponeses, entre trabalho manual
e intelectual, entre dirigentese dirigidos, entre desen-
volvimentoeconómico e distribuição de riqueza, en-
tre centralismo e democracia. Não são problemas
novos. Novo é o fato de que os proprietários privados
jâ não se colocam entre o povo e o enfrentamento
dessascontradições. E enquanto elas não forem re-
solvidas nenhum povo será senhor de seu destino.
A política atual das Quatro Modernizações não
tende a resolver as desigualdades sociais e por isso
mesmo não favorecerá a democracia. Acentuarâ al-
guns problemas. Agravara outros. Numa pedagogia
negativa é possível que prepare o povo para renova-
dos ''assaltos ao céu''
Tudo dependerá, como no passado, como sem-
pre, do povo que constrói o país e faz as revoluções. E
117
Constmção do Socialismo na China

uma equipe de professores especialistas: J. Bellassen,


J. Chesneaux, A. Dubois e outros -- .La C/zune,un
]Vouveau Cbmmunüme, -Z949/.297ó -- Ed. Hatier,
Paras, 1977. A analise dos acontecimentos vai..até a
morte de Mao Tse-tuna, em 1976. K. S. Karol tam-
bém procura dar um quadro geral do processo histó-
rico chinês depois de 1949, em seus dois livros: .[a
China de Mao, L'Autre Communisme e La Deuxiême
Révo/zzfíozz(;&í/zoise, ambos editados por R. Laffont,
INDICAÇÕES PARA LEITURA Paria, 1966 e 1973.
O movimento social camponês é particularmente
estudado, em sucessivosmomentos, por J. Myrdal --
[/ma .4Zdeía na CAlHa PoptzZar -- Ed. Morais, Lis-
As mais recentes reviravoltas da vida política boa, 1966; Chen C. S. e Ridley C. P. -- Rzira/
chinesa tornaram anacrónica boa parte dos trabalhos Peop/e's Commzznes ín Zlenc#lang -- Stanford,
publicados. A compreensão deste tema extrema- 1969, e Tissier P. -- Trans$ormaffo s Rara/es ef
mente controvertidodeve ser buscado na leitura das Pfan#7caf/on Socfallsre en C#íne -- Maspero, Paras,
revistas especializadas: a C%/na Quarrer:/y, publicada 1976. É preciso, porém, aguçar o espírito crítico
em Londres, e .4sfazz .Szzn'ey, em Berkeley e a 7e/pzps porque os autores frequentemente fazem uma leitura
.iUodernes em Paria. ideológica da realidade, deixando-se envolver por
Os documentos chineses poderão ser encontra- concepções apriorísticas.
dos no .Bo/eramreal/z-.Zn$ormafionque reproduz os O estudo da Revolução.Cultural poderá ser
textos oficiais do Partido e do Estado, além dos ar- aprofundadono segundotrabalho.de .Kaml, ja ci-
tigos e comunicados mais expressivos dos principais tado, e em Daubier J. -- História da Revolução
órgãos de informação: o jornal O Z)fárlo do .l)ovo, a Cti/rzzra/Chinesa -- 2 volumes, Ed. Presença, Lis-
revista teórica .4 .Bandeira Verme/Àa e a agência de boa, 1974. Esmein J. -- .[a Neva/ufiozt CuZfure//e --
notícias ]Vova Calha. Pelos mesmos motivos podem Ed. Seuil, Paras, 1970. E G. Mury que, também em
ser consultadas as publicações das .Edições em Zz'á- dois volumes, fez um trabalho de seleção dos princi-
guas Estrangeiras de Pekin . pais textos da Revolução Cultural até a realização do
Para uma introdução geral à história da cons- X Congresso do PCC, editado em.Paria em 1973.
trução do socialismo na China, destaca-se o livro de As divergências e o conflito sino-soviético são
118
DanieIAarão Reis Filha

abordados por.M. Bettati -- .[e Clo/z#/f .S/no-sovlé


fique -- A.. Colin,. Pauis, 1971, em dois volumes.'0
primeiro sobre as divergências entre os Partidos, e os
segundo sobre os problemas envolvendoos dois Es-
tados.. E FQjto F. -- C&z'na/{/R.S.S, de /:4/7íaHce azz
Clo/zWíf-- Ed. Seui], Paras, 1973. Vale a pena ainda
a leitura dos volumes de Schram S. 'e Carrêre
d'Encausse -- Z 't/RSS ef /a C%/zze devanf /es Révo-
lutions duns les Sociétés Pré-industrielles e l,e Mar- Sobre o Autor
xüme ef /:4s/e (até 1964), ambos editados nor A
Colin, Paris, 1970/1972. '' ' " '-'
Sugerimos também para a análisedas contro- Daniel Aarão Reis Filho nasceuno Rio de Janeiro em 1946.
Graduou-se no exílio em História pela Universidade de Paras Vll, Jus-
vérsias que abalaram o PCC, a consulta às varias sieu onde também fez seu mestrado, defendendo tese sobre a evolução
publicações não oficiais que trazem os textos de Mao do Estado no Brasil. , ,... ..

Tse-tung depois de 1949. Disponíveis graças aos Foi professor (1976-1979) de História. ConemporaTca (Hist61ta

Guardas Vermelhos,têm sido fundamentaispara a


reconstituição da história da construção do socia-
tamentode História da EIAP(Escola Interamericana de Administração
Pública), onde desenvolveuum trabalho sobre.a política governamental
em relação à produção de alimentos(1955-1974). ..
Prestou concurso para professor assistentede História Contem-
Rouge de Mbo 2se-fung, Ed. Flammarion, Paras, porânea na UFF, sendo admitido.
1975;a coletâneaorganizadapor Schram S. --- Mào

d:ll$ i:lBHUL%B:l
pela Maspero! Pauis, em 1979, sob o título:' Qzzes
:tons sur la China aprês la Mora de Mao Tse-tuna

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