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Rio de Janeiro
2010
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Rio de Janeiro
2010
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________________________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho (MN/UFRJ)
________________________________________________________
Prof.ª Dr.a Adriana de Resende Barreto Vianna (MN/UFRJ)
________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)
_______________________________________________________
Prof.ª Dr.a Myriam Moraes Lins de Barros (ESS/UFRJ)
________________________________________________________
Prof.ª Dr.a Claudia Barcellos Rezende (CCS/UERJ)
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AGRADECIMENTOS
À Capes e ao Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo apoio a esta
pesquisa.
Ao meu orientador Prof. Gilberto Velho, a quem devo todo o meu respeito, carinho e gratidão.
Obrigada pelo voto de confiança.
Aos membros da banca, por terem generosamente aceito participar como avaliadores deste
trabalho. Especialmente à Prof.ª Adriana Vianna e ao Prof. Luiz Fernando Dias Duarte, pelas
críticas fundamentais oferecidas por ocasião dos dois exames de qualificação.
À Prof.ª Myrian Lins de Barros, pelo modo atencioso como me orientou durante o estágio
docência.
Aos colegas do PPGAS, por tudo que pudemos aprender e viver juntos nestes quatro anos.
Especialmente a Liane Braga, Júlia O’Donnell e Tatiana Siciliano, pelo apoio e
compartilhamento de emoções.
Aos professores do PPGAS, pelo ambiente de estímulo intelectual, e aos professores que,
desde os tempos de graduação, incentivaram minha entrada na vida acadêmica.
A todos os entrevistados e salões de beleza que participaram desta pesquisa, por terem aberto
mais do que suas portas.
Ao meu marido Mauro Frota pelo amor, paciência e compreensão. Aos meus pais Marco e
Fátima, e minha irmã Biti, pelo carinho eterno.
Por fim, e muito especialmente, a Clarice Pamplona, Denise Gariani, Fabiana Santos, Fabiano
Morais, Flávia Haddad, Gabriela Cunha, Isa Laxe, Joana Alvares, Joana Machintosh,
Leonardo Ayres, Mao Tse Tung Brito, Márcia Abdon, Maria de Fátima Conceição, Mariana
Carneiro, Marina Silva, Marta Alves, Renata Júnior e Valdecy Leite. Este trabalho não teria
sido possível sem vocês.
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RESUMO
ABSTRACT
Amidst so many performances on stage in the daily lives of cities, beauty salons are the
preferred sites to observe and analyze certain movements of distancing and approaching that
the interaction in metropolitan scenarios produces. By offering a mix of public and private
settings, beauty salons are a peculiar phenomenon with their own densities and colors. The
purpose of this phenomenon is to make certain stage-backstage frontiers less marked out. This
study was triggered by considering the ethnographic potential of beauty salons. Over a year,
we observed routine activities at three beauty salons located in different districts in the city of
Rio de Janeiro: a “first class” beauty salon, a “low class” beauty salon and, lastly, a “middle
class” one. Trying to grasp the uses and meanings assigned to such spaces by the individuals
involved in it, many themes were addressed and studied over the development of this thesis,
especially the issues of sociability and perfectibility. Hence, beauty salons could be
investigated in terms of a typical fruition of a metropolitan lifestyle, without overlooking the
fact that they are part of a larger phenomenon through which individuals esthetically devise
their inclusion in society and in the city.
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SUMÁRIO
Primeiros passos
Há sete anos eu era uma estudante de mestrado de antropologia que, deslumbrada com
investigação. A cada semana me encantava com uma temática, queria poder pesquisar tudo.
Mas os limites e prazos exigidos pelo Programa 1 me colocavam a difícil tarefa de definir um
único tema para direcionar meus estudos. Enquanto não encontrava o tema ideal, tratava de
outras coisas tão importantes quanto. Minha aparência pessoal era uma delas.
beleza. A minha casa era o meu salão. Aprendi desde nova a manipular o meu próprio corpo:
era eu quem fazia minha própria unha, minha própria sobrancelha e ia ao salão cortar cabelo
apenas duas vezes ao ano, quando não o fazia eu mesma. Apesar de os salões serem
Enquanto era atendida em uma salinha reservada no segundo andar, o silêncio entre
mim e a profissional que cuidava de meu corpo permitiu escutar o momento de encontro entre
duas amigas que, pelo timbre de voz mais grave, aparentavam ter em torno de 60 anos.
Uma delas perguntou o que a outra fazia ali. Naquele momento, ainda não tinha noção do
quanto a resposta a ser dada viria a nortear minha trajetória de estudos dentro da antropologia
social. Foi quando a amiga falou: – “Salão de beleza é o playground da terceira idade”.
Que variáveis de idade estavam sendo colocadas? O que o ambiente do salão de beleza
representava para aquelas mulheres? Que dimensões sobre lazer estavam sendo consideradas
ao se fazer uma aproximação com playgrounds? A frase teve um efeito tão arrebatador sobre
mim que, ao abrir a porta e sair daquela salinha, passei a enxergar o salão em que eu havia
1
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF).
13
inicialmente entrado com outros olhos. Foi então que percebi a potencialidade etnográfica dos
presente nos mais variados espaços urbanos e não-urbanos do Brasil 3. Praticamente, a cada
2
Dissertação intitulada O teu cabelo não nega? Um estudo de práticas e representações sobre cabelos.
Um breve parêntese faz-se necessário para explicar a especificidade do trabalho desenvolvido no mestrado.
Durante um ano acompanhei o dia-a-dia de um salão de beleza localizado na Zona Sul do Rio de Janeiro. Um
salão sofisticado, de frente para a praia do Leblon, localizado nas dependências de um hotel quatro estrelas. O
público, na época, era constituído, em sua maioria, por mulheres cariocas de estratos superiores, entre 30 e 60
anos. Minha intenção inicial era estudar o ambiente do salão, mas quando cheguei lá, não consegui deixar de me
surpreender com o papel protagonista dos cabelos da cabeça em comparação aos outros elementos corporais ali
trabalhados. Foi observando com mais atenção a relação das pessoas com os cabelos que desenvolvi então as
principais considerações de minha dissertação De forma bastante resumida, a minha intenção foi refletir sobre
como os cabelos da cabeça são trabalhados, pensados e vividos em suas diversas representações. Sendo assim, o
salão de beleza serviu como espaço para observar o desenvolvimento de eventos e a construção de noções
fundamentais sobre corpo, beleza, saúde, gênero, idade, classe social e raça, entre outras. Embora o recorte
escolhido tenha sido muito produtivo, alguns temas interessantes, inevitavelmente, tiveram que ser deixados em
aberto. Questões referentes aos próprios usos e significados atribuídos ao espaço dos salões de beleza são um
exemplo de tema que não pude dar o tratamento que gostaria no mestrado, mas que tenho a oportunidade de
retomar no doutorado. É dessa forma que digo privilegiar agora não uma pesquisa no salão, como havia feito no
primeiro momento de minhas investigações, mas uma pesquisa do salão.
3
Naturalmente, tal presença dos salões no espaço urbano não é uma exclusividade do Brasil. Porém, dado que a
proposta é realizar uma pesquisa em salões de beleza na cidade do Rio de Janeiro, o Brasil é tomando aqui como
referência.
4
Recordo-me da etapa exploratória desta pesquisa. Estimulada pelos trabalhos de Gilberto Velho, especialmente
por seu artigo “Os mundos de Copacabana”, dediquei um feriado percorrendo todas as ruas do tradicional bairro
e me impressionou a quantidade de salões de beleza encontrados. A cada rua que entrava me deparava com, pelo
menos, um salão. Às vezes eram mais de quatro em um mesmo quarteirão. Terminei minha investigação
impressionada com o fato de que não havia uma única rua no bairro que não tivesse seu salão.
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cabelos “orientais” etc.). Além de serem freqüentados por, praticamente, todos os segmentos
Os salões de beleza também chamam atenção pelo fato de ser um dos mais ricos
em que a identidade pessoal é cada vez mais expressa, exibida, e revelada no corpo físico
(EDMONDS, 2002:216). Quando se pensa em “local para ficar belo”, os salões de beleza são
como academias de ginástica, clínicas de estética, consultórios médicos etc. O que não
impede que considerações e aproximações com estes outros espaços sejam levadas em
unhas e outras partes do corpo, os salões de beleza se destacam no contexto urbano pela
singularidade do tipo de encontro que promovem e pela qualidade das relações e experiências
Em outras palavras, os salões de beleza não apenas são locais em que se dá um tipo
específico de manipulação estética de corpos, mas existe uma outra dimensão, tão importante
quanto a primeira, que não pode ser ignorada. Refiro-me à questão da sociabilidade pública. É
feminina. Porém, trata-se de uma forma de sociabilidade muito distinta: revela-se um misto de
psicológica” 5.
5
Uma discussão mais elaborada sobre o tema da sociabilidade será desenvolvida no capítulo III.
15
Por mais contraditório que pareça, os salões são uma dimensão pouco referida nos
estudos sobre beleza. Ao procurar a produção brasileira dedicada à análise de tais espaços,
descobre-se que os trabalhos que mais chegam próximos são pesquisas realizadas em “salões
afro”, cujo foco é a questão da identidade negra 6. Tal fato apenas reforçou minha vontade de
No entanto, meu encantamento com o universo dos salões de beleza não impediu que
algumas questões fossem levantadas. Talvez a mais latente delas eu possa colocar sob os
seguintes termos: O que me leva, dentre tantas possibilidades “mais nobres” de temas
Confesso que um dos receios que tive quando decidi realizar minha pesquisa em
salões de beleza foi quanto à recepção do meu tema. O salão é tão fortemente associado a uma
dimensão de futilidade, um universo tão estigmatizado (apesar de adorado por muitos), que
Talvez, uma das maiores contribuições que esta pesquisa tenha trazido para mim foi,
justamente, a confirmação de algo a que Michel Foucault (1984a) já havia chamado atenção:
que são nas dimensões mais sutis da vida quotidiana que é possível encontrar aspectos
centrais da organização de uma sociedade. É sob esse ponto de vista que guio esta tese até a
6
Cf. FIGUEIREDO (1994); GOMES (2006); LUCINDA (2004). É evidente que a questão racial é um tema
importante para a minha pesquisa. Porém, a minha intenção é expandir a discussão para outras direções.
Contudo, apesar de tais trabalhos citados focarem a questão racial, interessantes considerações foram elaboradas
sobre o espaço do salão de beleza em si.
16
investigações, senti necessidade de propor algo diferente do que havia feito anteriormente.
localizado em um hotel quatro estrelas no Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro, com um
tipo muito específico de público, no doutorado me senti motivada a estender minha pesquisa a
A fim de empregar uma análise comparativa, optei por pesquisar três salões. A idéia
era que um deles fosse muito sofisticado 8, freqüentado por camadas sociais mais elevadas e,
região carregam.
Um terceiro salão fez-se necessário ser incluído, para que o contraste gerado pelos
dois salões, com estruturas tão diferentes, não conduzisse minha análise a uma visão muito
polarizada. Sendo assim, também freqüentei um salão considerado de “classe média”, com o
outros salões não estavam muito influenciadas pelo tipo de salão em questão.
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Vale aqui destacar que a opção por fazer um recorte nos salões de beleza a serem investigados a partir de
critérios de “classe” foi muito menos baseada em critérios socioeconômicos descritivos (como renda, ocupação,
grau de instrução etc.) e muito mais pautada em termos de ethos e visão de mundo. Compartilho da opinião de
Bourdieu (1974), para quem a definição de classes como uma estrutura estática não é a melhor forma de análise.
8
Embora o salão do hotel do Leblon correspondesse ao que estava procurando em termos de “sofisticação”, não
faria sentido fazer trabalho de campo no mesmo salão pesquisado durante o mestrado. Senti necessidade de
vivenciar novas experiências, em um salão diferente.
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Abro aqui um pequeno parêntese para lembrar que a entrada em campo, quando se
trata de salões de beleza, pode parecer fácil por ser um local, a princípio, aberto ao público em
geral. Sem dúvida o fato de serem ambientes voltados para a prestação de serviços facilita o
primeiro acesso do pesquisador. Todas as observações iniciais nos salões de beleza pelos
quais passei puderam ser feitas sem que eu tivesse que revelar formalmente minhas intenções
enquanto pesquisadora. Tendo condições de arcar com as despesas dos serviços oferecidos,
Porém, a partir do momento em que eu tomava a decisão de que aquele seria o salão
onde eu gostaria de fazer minha pesquisa, após ter freqüentado o local algumas vezes até ter
certeza de minha escolha, é que minha posição se tornava vulnerável. Por uma questão de
salões escolhidos e explicar meu projeto de pesquisa. Em alguns casos obtive prontamente
permissão para dar início ao trabalho de campo. Em outros encontrei resistências, cujas
serviços. Dessa forma, é esperado que seus freqüentadores consumam algum dos serviços
oferecidos, e não que passem o dia ocupando o espaço físico de outros potenciais clientes.
por parte do pesquisador, por mais discreta que seja, uma intervenção que foge ao cotidiano
daquele ambiente, o que pode gerar desconfianças e incômodos não apenas para a equipe de
atividade ou real identidade. Mais especificamente, o medo de que eu fosse fiscal da Agência
Em minhas buscas por Copacabana encontrei um salão de beleza que parecia ter
parado no tempo. Mais especificamente, na época áurea do bairro, apesar de parecer voltado
para uma classe média menos favorecida e apresentar certo ar de decadência. Não apenas a
decoração remetia à década de 70, mas as próprias clientes também. Eram senhoras que ainda
ostentavam cortes de cabelo armados à base de muito laquê e se vestiam com roupas não
visual.
Fiquei fascinada pelo salão. Descobri que existia há mais de 30 anos e que era um
negócio passado de pai para filho, há três gerações. A família conduzia o negócio. O marido
era encarregado da administração geral e a esposa costumava ficar na recepção, junto com um
Como de costume, freqüentei o salão como cliente por algum tempo e estabeleci
relações com algumas manicures, o que me forneceu boas informações sobre o salão. Nessas
primeiras visitas, enquanto tinha as minhas unhas feitas, conversava com as profissionais e,
Expliquei detalhadamente sobre o que se tratava meu tema de pesquisa, minhas experiências
anteriores durante o mestrado e disse que atualmente fazia o mesmo em dois outros salões.
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Trata-se de uma agência reguladora criada pelo Governo Federal, vinculada ao Ministério da Saúde, cujo
objetivo é fiscalizar a segurança sanitária de produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública. Os
profissionais dos salões de beleza em que fiz trabalho de campo me contaram que um dos métodos empregados
pelos fiscais da Vigilância Sanitária é se passar por cliente para flagrar irregularidades no estabelecimento.
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Alguns “nãos” são mais fáceis de serem aceitos do que outros. Não queria perder a
oportunidade de estudar aquele salão. Considerava-o muito interessante por ainda manter uma
estrutura e uma clientela de muito tempo. Mesmo fazendo uso de todos os argumentos
acadêmicos, racionais e emocionais, o dono não cedeu em sua posição. Foi então que joguei
com um último recurso: perguntei se ele aceitaria minha presença enquanto cliente
convencional, uma vez que eu tinha adorado o serviço de sua equipe de manicures.
Forcei o limite para ver até onde o princípio de “estabelecimento comercial aberto a
todos” seria sustentado. Sob esta condição, o dono aceitou minha presença. Saí do salão
contente por ter conseguido reverter até certo ponto a situação. A idéia era, com o tempo,
ganhar a simpatia do proprietário e poder fazer meu estudo de forma mais à vontade. Não
Na visita seguinte, fui fazer unha com a manicure que eu havia estabelecido uma
relação mais próxima. Ela revelou que o dono do salão não confiava em mim, achava que eu
era fiscal da Vigilância Sanitária, e que ele havia colocado uma funcionária de confiança para
“ficar de olho” em mim. A partir de então meus dias naquele salão se transformaram em uma
proprietário.
Como eu não marcava horário, para poder chegar de surpresa e evitar eventuais
escolhia a dedo a profissional que iria me atender. Uma vez, para me ter sob maior controle,
colocou-me sentada na cadeira em frente à ele na recepção, cadeira esta que nunca era
A situação limite se deu quando fui delatada pela manicure encarregada de me vigiar,
provavelmente por ter sido vista anotando algo ou fazendo perguntas. O dono do salão se
colocou de pé atrás de mim, de braços cruzados, fingindo que estava assistindo televisão
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pesquisa.
Fiquei irritada com a situação. Mas terminei o serviço com toda a calma do mundo e
ainda esperei um tempo o esmalte secar para poder colocar os sapatos, enquanto folheava uma
revista, como se não houvesse percebido nada. A intenção era demonstrar que aquele tipo de
Nesse dia voltei para casa com um sentimento de angústia. Por mais que soubesse que
ele tinha o direito de não aceitar uma atividade de pesquisa em seu salão, incomodava o fato
de não acreditar que eu fosse capaz de não gerar nenhum tipo de inconveniência para o
negócio, especialmente por eu já ter experiência no passado com este tipo de trabalho em
salões.
trabalhar a ambigüidade que pode surgir durante uma pesquisa de campo. Refiro-me ao
contraste de experiências vivenciadas entre aquelas pessoas que não apenas gostam, mas se
aquelas que optam por preservar seus domínios, sua privacidade, seja por medo da vigilância,
de serem observadas e criticadas ou pelo simples fato de não ver sentido em ajudar.
O trabalho neste salão de Copacabana não estava andando no ritmo esperado, eu tinha
aquela situação não foi uma simples atitude de teimosia frente a uma resposta negativa, mas
uma opção para ver até onde iam os diversos limites em jogo. Percebi então que havia forçado
Minha vontade era partir para outro salão, por mais interessante que o de Copacabana
parecesse. Mas forcei-me a sustentar tal situação porque achava que eu precisava
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experimentar uma situação de dificuldade, uma vez que a maior parte das entradas em campo
A última vez que fui a este salão de Copacabana, após pagar pelos serviços
contratados, o dono se voltou para mim e perguntou se eu já havia terminado o que precisava
para minha pesquisa. Tentando inutilmente sustentar uma imagem de menina simpática e
Salva esta situação mais extrema, a entrada em campo se deu de forma bastante
positiva no caso dos três salões escolhidos para realizar a pesquisa. No salão de “elite” eu
havia conseguido duas frentes de abordagem: uma delas foi usar um contato pessoal para
perguntar à dona do salão sobre a possibilidade de realizar minha pesquisa lá. Uma tia minha
Uma vez lá dentro, a outra frente que facilitou muito o andar de minha pesquisa foi o fato de
Leblon onde eu realizei minha pesquisa para o mestrado. Por já saberem como se dava meu
trabalho e pelo tipo de relação amistosa que havíamos desenvolvido naquela ocasião, a
No salão “popular” a situação foi muito curiosa. O dono do salão era um homem alto e
corpulento, com cavanhaque e pulseira grossa de prata. À primeira vista parecia uma figura
mal-encarada, o que me gerou certa inibição. Com o tempo é que pude perceber que se tratava
Parecia uma “criança” no corpo de adulto. Passava o dia fazendo brincadeiras com os
funcionários. Talvez por conta de tais atitudes, demorei a perceber que ele era o proprietário,
10
Para uma apresentação mais completa dos três salões investigados ver capítulo I.
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dada a qualidade da interação que ele estabelecia com os colegas de trabalho no dia-a-dia e
Como ainda não havia tido oportunidade de interagir com o proprietário, aliado ao fato
de ele parecer ser uma pessoa tímida, minha opção foi tentar, por meio da recepcionista,
provocar uma apresentação. Revelei à funcionária os objetivos da minha pesquisa e disse que
gostaria de pedir permissão ao dono do salão. Ao final de minha explicação, para minha
desconfortável. Passei mais de um ano fazendo pesquisa de campo no salão “popular” sem ter
pedido permissão formal ao dono. Nunca fui questionada pelo mesmo, pelo contrário. Ele
No salão de “classe média” minha entrada também se deu de forma bastante facilitada.
No primeiro contato mais enfático com o dono do salão, que também trabalha como
cabeleireiro, aproveitei que estava descansando em uma cadeira de clientes e me sentei ao seu
lado após ter feito as unhas. Comecei a puxar assunto sobre o salão e aproveitei a
A opção por fazer uso dos serviços oferecidos nos salões de beleza investigados foi
motivada não só pela intenção de estreitar minhas relações, uma vez que ao contratar um
serviço de manicure, por exemplo, eu garantiria uma interação mais intensa com tais
profissionais. Também fui levada por certa culpa de fazer uso da boa-vontade dos
proprietários sem nada dar em troca. Entretanto, ao fazer tal escolha, algumas questões se
colocaram.
A minha imagem acabou por se constituir de forma híbrida. Ao mesmo tempo em que
eu era uma antropóloga que pesquisava salões de beleza, eu também era cliente. Logo, ficava
estabelecida uma hierarquia vertical, tanto no sentido de posse de capital cultural (enquanto
doutoranda) quanto de recursos econômicos (no papel de contratante dos serviços oferecidos).
Contudo, hoje acredito que os profissionais dos salões investigados tiveram mais facilidade
relativamente suaves, salvo um caso ou outro de profissionais que faziam uso de termos e
que achavam que seriam aproveitáveis para uma tese de doutorado. Quanto a esses tipos de
situação, o próprio passar do tempo cuidou de corrigir. Percebi minha presença ser
No entanto, o meu papel enquanto cliente foi aquele que mais tive dificuldade em
administrar. Especialmente porque eram minhas referências estéticas e meu corpo que
estavam em jogo. Muitas foram as situações em que tive dificuldade de deixar o papel de
Recordo-me de uma ocasião que vivi no salão “popular”. Era a primeira visita ao
estabelecimento, ainda não conhecia ninguém, mas eu queria passar o máximo de tempo
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convidada para uma festa de casamento de amigos a se realizar no dia seguinte, aproveitei a
oportunidade para cuidar da aparência. A manicure, não muito simpática, primeiro fez minhas
unhas das mãos e depois as dos pés. Entretida ao tentar estabelecer um diálogo com a
profissional, não percebi que ela havia borrado duas unhas dos pés ao final do serviço. A
manicure fingiu que não reparou e rapidamente se distanciou para não ter que refazer.
De forma amistosa, sem apontar culpados, pedi que a manicure refizesse a pintura
borrada. Com muita má vontade ela o fez. Porém, só em uma das duas unhas borradas.
Levantou e tomou como finalizado o serviço. Para evitar uma situação de desconforto, o que
poderia comprometer meu trabalho de campo naquele salão, fingi não ter percebido e aceitei a
unha borrada. Confesso que, no fundo, carreguei até o último dia de pesquisa de campo uma
Com a unha ainda borrada, sentei-me para cortar as pontas do cabelo. Pelo menos o
cabeleireiro era simpático e passou o tempo de atendimento contando como havia sido sua
trajetória nesse meio profissional. O corte de cabelo em si se deu sem grandes traumas. O
Mesmo após ter sido secado com secador, o cabelo parecia molhado, ficou com
aspecto de ensebado. Parecia que eu não lavava a cabeça há dias. Não podia falar nada para o
cabeleireiro, mas sentia vontade de chorar quando olhava no espelho. Saí na rua com
vergonha. Prendi o cabelo para as pessoas não perceberem. Cheguei em casa e fui correndo
para debaixo do chuveiro. Foram cinco lavagens com xampu. Demorei mais de 40 minutos
Pode parecer besteira ou falta de controle, mas esses tipos de evento são capazes de
gerar um desconforto muito grande. Lembro uma vez que a manicure do salão de “classe
média” lixou as unhas de forma desalinhada. Nesse dia, passei o resto do tempo em campo
incomodada com a situação e a primeira coisa que fiz ao sair do salão e virar a esquina foi
sacar uma lixa da bolsa e acertar o formato das unhas. Senti um alívio indescritível, seguido
Para finalizar este capítulo, algumas palavras valem ser ditas referentes à metodologia
focar a atenção, sobretudo, nos dados qualitativos, tais como práticas, costumes, regras,
No caso da observação direta, considero-a fundamental. Não apenas pelo fato de ter
sido o que permitiu acompanhar o cotidiano dos sujeitos, levando a uma maior aproximação
com a realidade observada, mas, sobretudo, porque nos salões de beleza, especialmente
concentrar. A cada minuto uma nova situação desvia a sua atenção para outro fato ou direção.
informações. Por muitas vezes o rumor alto dos secadores, a música e as várias pessoas que
Brinco que me vi obrigada a desenvolver uma técnica para reter a minha atenção nos
casos em quisesse focar em uma conversa específica. O princípio é o mesmo que costumamos
experimentar quando fechamos os olhos deitados na praia – parece que a conversa das
pessoas ao nosso redor se aproxima ainda mais de nós. Isso acontece porque, suspendendo
momentaneamente a visão, imediatamente a audição toma a frente dos outros sentidos 11.
Como fechar os olhos no salão tornaria minha presença enquanto pesquisadora ainda
mais esquisita, o recurso que passei a utilizar foi pegar uma revista e fingir que a lia. Dessa
forma, ao fixar os olhos em um ponto qualquer do papel, era possível prestar mais atenção a
uma conversa que me interessava. Outra vantagem dessa técnica era que ela neutralizava
momentaneamente minha presença. Ou seja, para as pessoas ao meu redor, minha atenção
parecia estar voltada para a revista e não para elas, o que por vezes as deixava mais à vontade
Contudo, não era apenas eu quem observava. Também era observada pelos clientes e,
sobretudo, pelos profissionais dos salões. Naturalmente, estes tentavam me mapear. Faziam
perguntas pessoais, tais como se eu tinha namorado ou onde morava, e ficavam atentos às
minhas evidências corporais. Quanto às roupas, por serem veículos de indício significativos,
11
Interessante esta questão dos sentidos. Uma mudança que percebi ao ter iniciado meu trabalho de campo em
salões de beleza foi a importância que o olfato adquiriu para mim. Hoje sinto cheiro de salão à distância.
Familiarizei-me com os odores característicos de acetona misturada a produtos para cabelos. Às vezes faço um
teste com quem me acompanha. Ao subir as escadas rolantes de uma galeria comercial desconhecida já digo se
há ou não um salão no próximo andar. Para quem não está com a percepção seletiva voltada para salões, fica
mais difícil fazer tal inferência.
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foi importante ter atenção e aprender a manipular meu vestuário de acordo com o salão em
questão 12.
No entanto, escapar de tais tentativas de mapeamento nunca é fácil. Uma vez cometi
um erro ingênuo, no intuito de “colaborar” para o bem do salão “popular” ao qual eu havia me
afeiçoado. Ao perceber que os clientes, muitas vezes, ficavam à procura de revistas para ler
(havia poucas), tive a brilhante idéia de levar para o salão algumas revistas de moda um pouco
Feliz, entreguei as revistas à manicure que era uma das principais colaboradoras para
minha pesquisa. Ela pegou, analisou as capas, olhou para mim e falou: – “Ih, ela é fashion!”.
Meu esforço de manipular minha imagem havia ido por água abaixo.
Além das dificuldades impostas pela própria natureza das atividades empenhadas em
salões de beleza (como o barulho de secadores, por exemplo), tal ambiente proporciona certas
facilidades compensatórias. A primeira que destaco diz respeito aos espelhos. Espalhados por
todo o ambiente, são um instrumento de grande utilidade para a observação direta. Facilitam o
pesquisador olhar por diversos ângulos as inúmeras cenas que acontecem pelos diferentes
cantos do salão.
Outra facilidade que tal ambiente proporciona, especialmente nos salões de beleza
apresentam como um local estratégico para dar início a interações com os freqüentadores. Ser
confundida com uma cliente que aguarda ser atendida facilitou bastante a aproximação com
outros clientes ao longo do trabalho de campo. Boa parte dos dados desta tese teve origem de
12
No salão “popular” costumava ir vestida de forma simples, calça jeans e uma camiseta que poderia ter sido
comprada em qualquer lugar. Procurava ir sempre com a mesma bolsa e o mesmo par de sandálias. Não queria
exibir poder de consumo mostrando variedade de acessórios. É tão interessante isso, porque no dia em que
apareci neste salão com uma sandália mais diferente da usual, uma das manicures logo notou e fez um
comentário elogioso. Quanto ao salão de “elite”, procurava ir bem arrumada. Já ao salão de “classe média” roupa
não era uma preocupação. Ia vestida como me visto cotidianamente.
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sobre minha pesquisa. Por vezes, os próprios profissionais dos salões me poupavam esta etapa
de apresentação e contavam para suas clientes meu tema de estudo, o que me proporcionou,
na maior parte das vezes, excelentes oportunidades para iniciar uma conversa.
A maior parte dos funcionários dos salões de beleza que estudei sabia que eu estava ali
Outras vezes simplificavam, ao explicar para outras pessoas que se tratava de um trabalho
para a faculdade.
fundamental. Porém, diferentemente do que fiz por ocasião do mestrado, desta vez optei por
não realizar entrevistas dentro dos salões de beleza e não empregar o uso de gravador no
registro de minhas conversas com os profissionais dos salões investigados. A intenção era
afastar para longe daquele ambiente o peso do registro formal das falas, a fim de deixar as
Minha principal estratégia para ter acesso e estreitar minha relação com os
profissionais do salão, como comentado anteriormente, era contratar algum dos serviços
oferecidos. Sendo assim, toda semana eu me colocava no lugar de cliente para poder ter 40
minutos (se fizesse apenas o serviço de manicure ou pedicure) ou uma hora e meia que fosse
Confesso que fiz pouco uso dos serviços de cabeleireiro e depilação nos salões que
trabalhei. O primeiro por um motivo pessoal: minha carência genética de cabelo não permite
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colocar meus já escassos fios em experiências de campo. O segundo serviço também evitei
realizar, dada a exposição da intimidade do corpo que a técnica de depilação costuma exigir.
experiências muito interessantes, eu precisava desta “evitação” para conseguir conviver por
mais de um ano com aquelas pessoas sem me constranger com a lembrança de que elas já
O salão de “elite” foi o único em que não fiz uso do recurso de contratação de
serviços, dado que os valores de seus serviços excediam o montante de dinheiro que eu tinha
salão tinha algumas vantagens que me proporcionaram trilhar outros caminhos para
aproximação. A mais importante delas é que boa parte dos cabeleireiros e assistentes que lá
investigação.
Vale aqui destacar outro ponto importante. Por maior que fosse a boa vontade das
pessoas em colaborar com a minha pesquisa, não podia ignorar o fato de que o salão de beleza
é o ambiente de trabalho de muitas pessoas. Naturalmente, tive que lidar com uma grande
dificuldade de abordagem dos profissionais, uma vez que na maior parte do tempo estavam
Foi preciso muito tato para saber os momentos adequados para ensaiar uma
aproximação. O que também não garantia a continuidade do diálogo iniciado seja com
profissionais ou com clientes. Fazer trabalho de campo em salões de beleza é ter suas
Muitos são os limites que devem ser respeitados. Meu acesso não era livre a qualquer
lugar ou a qualquer pessoa em qualquer momento. Atenção e discrição eram predicados que
não me podiam falhar em nenhum momento. Existia uma preocupação muito grande de minha
30
presença não ser vista pelos gerentes ou donos dos salões como um elemento de distração dos
profissionais.
relaxamento e privacidade de muitos outros, no caso dos clientes. Quando pedia permissão
para realizar minha pesquisa e explicava a natureza de minha atividade aos responsáveis pelos
salões de beleza, uma das principais preocupações era a interferência que eu poderia vir a ter
com os clientes. Afinal, não era esperada durante a prestação de serviço em um salão de
A fortuita presença dos clientes no salão, durando em média apenas uma hora
uma dinâmica mais ágil. Quando sentia, através da conversa, que uma cliente poderia
contribuir mais com a minha pesquisa, aí era feito o convite para um bate-papo mais
estruturado, em outro ambiente que não o salão de beleza. Bancos de ruas, cafés, restaurantes
e livrarias próximas aos salões foram alguns dos ambientes sugeridos por mim. Em nenhum
Foi nesse sentido que o emprego de entrevistas com clientes foi estratégico. Não
apenas para tentar compensar essa diferença em relação ao tempo de interação que pude ter
com os profissionais, como também para deixar os clientes à vontade para falarem sobre suas
relações com o universo dos salões de beleza sem se sentirem constrangidos pelo próprio
ambiente.
No total, foram realizadas 15 entrevistas, cada uma com duração aproximada de uma
hora e meia. Embora a prioridade tenha sido focar nos discursos dos freqüentadores dos salões
salões, assim como pessoas que não possuem o hábito de freqüentar este tipo de ambiente 13.
13
Para cada participante foi entregue uma ficha e pedido que preenchessem alguns dados, não apenas sociais,
mas relativos a seus atributos corporais. O objetivo foi não apenas tornar os participantes visuais para o leitor da
31
de faixa de renda, grau de instrução, bairro de residência, idade, gênero e raça. O objetivo de
tal diversificação no perfil dos entrevistados foi tentar evitar predominância de certas
trabalham em salões de beleza, pude lidar com grupos sociais que se encontram em contato
direto e constante com práticas e vivências específicas e que podem ser considerados
salões de beleza.
encontrar para vender bloquinhos de anotação que cabiam na palma da minha mão, tal como
uma caneta do mesmo tamanho. Dessa forma eu conseguia deixar menos evidente meus
Mas isso nem sempre funcionou. Em uma dada situação, uma manicure se sentou ao
valiosas para mim. Quando terminou e se afastou para retomar suas atividades, peguei
correndo minha caderneta de anotações para registrar o que tinha acabado de ouvir, com medo
Enquanto escrevia concentrada, a manicure surgiu e sentou ao meu lado. Olhou para
meu caderninho, esticou o pescoço e começou a ler o que eu havia escrito. Pega de surpresa,
senti que não seria razoável, naquela situação em que me encontrava, evitar que a manicure
tivesse acesso às minhas anotações, especialmente porque o conteúdo dizia respeito ao que ela
tese a partir de suas próprias descrições, como também apreender o contraste entre aquilo que eles declaravam
sobre si e o que eu via em minha frente. Tais fichas encontram-se reproduzidas na íntegra, na seção de anexos.
32
havia acabado de me revelar. A saída que encontrei, para evitar que a leitura do caderno se
estendesse além do que deveria, foi pedir que me ajudasse a escrever uma sentença sobre os
assuntos comentados.
retornar algumas vezes a campo. O objetivo era verificar e elucidar alguns pontos que
pareciam ainda não muito claros na análise dos dados. Considero tais momentos como tendo
que fizessem sentido para o leitor, optei por estruturar esta tese em quatro capítulos.
investigados, em seguida os sujeitos que constituem tais universos e, por fim, abro espaço
para a discussão sobre as duas características que destaco como constituintes principais de tal
etapa exploratória. Foram visitas que se deram com certa freqüência a determinados salões em
diferentes lugares da cidade que, pela qualidade das experiências neles vivenciadas, seria um
equívoco omitir.
33
é, justamente, a possibilidade de encontrar o que não se está procurando (e que, muitas das
de dados os mais variados. Neste sentido, objetos, decoração, divisão espacial, serviços
tais espaços pelos diferentes sujeitos que se movem por meio desses cenários e os
função da região em que se localizam. A rua, o bairro e a cidade se tornam, neste capítulo,
Atores, carreiras e apropriações é o título que abre o segundo capítulo, dedicado aos
dois principais interlocutores de minha pesquisa: os profissionais dos salões e os clientes que
os freqüentam. A intenção aqui é pesquisar os indivíduos não como unidades autônomas, mas
em termos de suas relações. Investigar como os sujeitos localizam a si e aos outros dentro de
expectativas geradas a partir de sua posição enquanto profissional, em contraste com seus
projetos e trajetórias pessoais que não se esgotam no salão; ou mesmo ambigüidade em torno
Quanto aos clientes dos salões, a questão principal é compreender quem são as pessoas
que freqüentam salões de beleza. A partir das formas de classificação praticadas pelos
próprios entrevistados, a análise é conduzida por variáveis como gênero, classe social, idade e
cor de pele, entre outras, para compreender como as pessoas descrevem a si mesmas e aos
moderna a partir da expansão dos grandes centros urbanos, como também nas formas de
associação particulares que se dão no ambiente dos salões de beleza na atualidade, elementos
para analisar a riqueza das formas com que os sujeitos são capazes de se apropriar dos
diferentes espaços para, em última instância, criar aquilo que talvez lhes seja o bem mais
valioso: relações.
O quarto e último capítulo da tese, O corpo no salão, tem por objetivo problematizar
corpos não como meros depositórios, mas como um conjunto de relações e ao mesmo tempo
ação, vivência, experiência, fundamentais para pensar muitas questões referentes à nossa
sociedade.
35
gostaria de dar voz a alguns outros: refiro-me aos salões de beleza que freqüentei até o
momento de me decidir por aqueles que melhor viriam a se encaixar nas definições por mim
estabelecidas inicialmente.
Abro tal espaço por dois motivos. Primeiro para situar o leitor em eventuais
referências ao longo da tese que possam vir a ser feitas sobre tais salões. O segundo motivo é
deixar registrado um pouco das experiências que vivenciei ao longo dessa etapa exploratória.
Desde o segundo ano do doutorado comecei a fazer incursões esporádicas aos mais
variados cantos da cidade em busca de salões de beleza para minha pesquisa. De certa forma,
cada salão que encontrei pelo caminho ajudou a construir esta tese. Foram situações tão ricas
e que me levaram ao encontro de personagens tão fascinantes, que seria equívoco de minha
parte omiti-las.
Seleciono então quatro momentos dessa etapa exploratória que considero válidos
Era época de eleições para Governador no Rio de Janeiro. Um amigo fazia os filmes
para a campanha de um dos candidatos (posteriormente eleito). Na ocasião, este amigo havia
37
14
acabado de voltar de uma filmagem feita na Central do Brasil . Cansado e eufórico,
comentava sobre sua experiência. De todas suas percepções, um dos pontos de sua fala me
chamou atenção: disse-me que nunca havia visto tanta gente feia reunida.
Pedi que me explicasse melhor como era essa “gente feia” a qual se referia. Não
conseguiu explicar. Falou que só indo àquele lugar para entender. No dia seguinte acordei,
15
vesti-me de feia , peguei um ônibus e lá estava eu na Central do Brasil pela primeira vez.
Precisava ver de perto essas pessoas, entender os critérios de beleza que estavam sendo
contrário de um lugar inóspito e perigoso, encontrei uma estação de trem limpa e organizada.
Para minha surpresa, ao invés de gente feia vi pessoas como outras quaisquer (de acordo com
se para retornar às suas casas após um dia de trabalho. Foi então que a descrição de meu
amigo fez sentido, uma vez que o conceito de feio pode estar associado ao de pobre.
Comecei então a procura por um salão de beleza. Era quase impossível naquele espaço
tão estratégico não haver pelo menos um salão ou barbearia. Procurei no saguão principal e os
para o lar, além de stands de doces e bijuterias. Mas não desisti. Não acreditava na
Foi então que descobri um vão que levava ao subsolo da Central. Embora o local fosse
bastante movimentado, confesso que desci com um pouco de receio. Não sabia o que havia lá.
14
Trata-se da Estrada de Ferro Central do Brasil, principal pólo de ligação do Rio de Janeiro com a periferia do
Município, região metropolitana e outros estados do Brasil por meio de trens. O prédio-sede atual foi construído
entre 1936 e 1945, durante o período do governo de Getúlio Vargas. Possui uma torre de 135 metros de altura e
tem no seu topo o famoso relógio da Central do Brasil, que permite ver a hora a partir de alguns pontos da
cidade.
15
Cabelo preso em um rabo-de-cavalo, nenhum resquício de maquiagem, óculos de grau, brincos quase
imperceptíveis, uma t-shirt velha, calça jeans, tênis All Star e uma bolsa discreta, atravessada pela frente do
corpo. Meu andar era firme e apressado, como se tivesse um lugar a ir e um horário a cumprir, tal como a
maioria dos transeuntes ali pareciam ter. Não queria destoar do restante das pessoas.
38
Caminhando com certo medo e pouca esperança, prestes a dar a volta e encerrar minha
No letreiro de sua fachada estava escrito o seguinte nome: Patty’s Coiffeur. Parei por
um momento, sorri com a ironia da situação e fui caminhando em direção ao salão de beleza
que tinha meu apelido. Em meu íntimo, como uma boa antropóloga não deve ser, pensava que
manicures e dois cabeleireiros constituíam a equipe daquele pequeno salão. Entrei e perguntei
16
se havia a possibilidade de alguém fazer minhas unhas. Conduziram-me a Niely , uma
jovem negra, alta, bonita, com sorriso largo e um comprido aplique de tranças nos cabelos.
Sentei e comecei meu trabalho, enquanto Niely se preparava para o dela. Um serviço
de manicure, que era suposto durar 30 minutos se estendeu a uma hora e meia de pura
“conversa de salão” com Niely. Ao deixar o Patty’s Coiffeur, com os olhinhos brilhando de
17
felicidade, pensei comigo: encontrei minha Doc .
Niely é manicure desde quatorze anos de idade. Agora, com 22 anos, completava o
segundo grau. Conta que parou de estudar cedo porque começou a trabalhar em salão e ganhar
dinheiro, o que a fez se sentir desestimulada com a escola. Hoje Niely tem planos de fazer
faculdade e “trabalhar com alguma área relacionada com gente”, porque se considera uma
pessoa comunicativa.
concentre, em um único prédio, salão de beleza, restaurante com comidas light e academia de
16
Todos os nomes referentes a pessoas nesta tese são fictícios, com o intuito de preservar a identidade das
pessoas que contribuíram com a pesquisa.
17
Referência ao informante privilegiado de Willian Foote White em sua investigação de uma comunidade ítalo-
americana em Boston, nos Estados Unidos (1943).
39
ginástica. Cada um desses ambientes em um andar. Diz que ainda não o pode fazer porque lhe
falta “capital”.
Enquanto pinta minhas unhas Niely aborda os mais diversos temas a partir do relato de
sua experiência nos salões de beleza em que trabalhou. Traz assuntos sobre relações de
gênero, classe e raça, levanta questões e pensa respostas junto comigo. Ao final do
continuemos a conversa à noite. Precisava atender outra cliente que havia chegado.
marcada. Niely estava com a cabeça abaixada, fazendo a unha de uma cliente. Não a
reconheci. Havia retirado o aplique. Quando me vê, uma das primeiras frases que fala é: -
“Viu que tirei o aplique? Estou me sentindo muito estranha”. Seus planos são colocar um
aplique ainda mais comprido, que alcance a altura da cintura. Revela que já tem parte dele em
casa. A outra parte diz que o “namorido” vai lhe dar de presente. O total do aplique custa R$
800,00, o que equivale ao salário de dois meses de trabalho como manicure no Patty’s
Coiffeur.
Niely confessa que achava que eu nunca mais apareceria por lá. Respondo que não se
livrará de mim tão cedo. Mais uma rodada de conversa se dá enquanto minhas unhas são
feitas. Antes de deixar o salão, dou uma gorjeta de R$ 5,00. Ela se despede e me chama de
sócia. Adorei ouvir aquilo. A partir daquele dia tínhamos uma sociedade fechada. Iríamos
Voltei posteriormente algumas vezes ao Patty’s Coiffeur para fazer minhas unhas e
conversar com Niely. Por conta da carga-horária nos cursos do doutorado precisei me afastar
do salão durante dois meses. Assim que tive a oportunidade logo retornei a campo. No
entanto, quando desci o vão que conduzia ao subsolo meu coração disparou.
40
O salão de beleza que eu tinha escolhido para fazer minha pesquisa havia fechado. Um
brechó ocupava seu lugar. Fiquei muito decepcionada. Inocentemente, não havia me dado
conta de que o campo que escolhi para estudar, tal como os mais diversos elementos que
compõem uma cidade, estão sujeitos a encerrar suas atividades, mudar de local ou
fenômeno urbano.
salão. Ela contou que Niely havia largado o emprego de manicure para concluir seus estudos
de segundo grau e que estava trabalhando em um posto de gasolina como frentista, em São
Gonçalo. Talvez por uma dificuldade pessoal de desassociar Niely do Patty’s Coiffeur, nunca
Decepcionada com a perda, o sentimento era estar de volta ao ponto zero. Porém, ao
invés de desistir da Central do Brasil, coloquei em minha cabeça que deveria haver outro
salão na região. Tratava-se de um local de passagem, muito movimentado, ideal para um salão
de beleza. Procurei dentro da Central e em seus arredores. Pedi informações para algumas
18
pessoas, até que alguém comentou sobre um salão que havia dentro do Hotel Popular .
18
O Hotel Popular foi inaugurado no prédio da Central do Brasil em 2002 pela então Secretária Estadual de
Ação Social, Rosinha Matheus. O objetivo do Hotel era oferecer pernoite a R$ 1,00 para trabalhadores que saem
tarde do serviço ou que, por falta de dinheiro, não têm como voltar para casa. De dia, o local é utilizado como
escola para formação de mão-de-obra no setor de hotelaria e estética, além de oferecer cursos de alfabetização de
adultos, idioma e informática, mediante parceira com a Fundação de Apoio a Escola Técnica (FAETEC-RJ).
Para uma discussão sobre esse espaço de assistência social na Central do Brasil, Cf. BORGES (2003).
41
da portaria a me deixarem subir para conhecer o salão de beleza. Geralmente o meu acesso a
salões nunca havia sido uma etapa complicada. Só mais tarde que fui compreender o porquê
de tal burocracia. Finalmente fui apresentada a um jovem funcionário que me conduziu por
entre os intermináveis corredores desocupados do Hotel. O fato de caminhar por muito tempo
dentro daquele prédio e não chegar ao salão de beleza, unido ao silêncio enigmático do rapaz
Passamos por uma entrada que fornecia o primeiro indício da real existência do salão.
Em uma cartolina, com letras coloridas recortadas, havia escrito o seguinte nome: Oficina
popular de beleza Hebe Camargo 19. Tive a infeliz idéia, com a intenção de quebrar o gelo, de
perguntar ao rapaz se a Hebe havia ido lá para inaugurar o espaço. O rapaz não entendeu, ou
fingiu não entender, a brincadeira em minha pergunta. Achei melhor continuar calada durante
Finalmente cheguei aonde queria. Mas para minha surpresa encontrei algo que não
Hotel os alunos uniformizados com calça preta e blusa branca se espalhavam por entre as
20
diversas cirandinhas, cadeiras e lavatórios e colocavam em prática as técnicas de
19
Hebe Camargo é uma famosa apresentadora de TV brasileira. Faz sucesso desde a década de 40, tendo
iniciado sua carreira em programas de rádio.
20
Alguns termos referentes a instrumentos, mobiliários ou técnicas próprias de salões de beleza encontram-se no
glossário ao final da tese.
42
Quanto aos “modelos” - como eram chamadas as pessoas que procuravam os serviços
de beleza do salão-escola -, bastava pegar uma senha na portaria e ter coragem para entregar
seus corpos aos cuidados de principiantes. Boa parte era proveniente do Morro da Providência
21
, localizado logo atrás do Hotel Popular. Sobre a origem dos outros freqüentadores, Caxias,
Bangu e São Gonçalo são algumas das regiões que consegui descobrir.
sedutor. Mas meu interesse estava voltado para os formatos de salão comerciais, mais
Com o passar do tempo comecei a me sentir pouco confortável com a forma com a
qual eu estava sendo envolvida por aquela situação: um misto de informalidade e formalidade
em sua forma mais burocrática – a governamental. Por mais que a minha presença para fazer
trabalho de campo tenha sido aceita, algumas situações cotidianas começaram a me mostrar
que algum tipo de troca, além do que eu imaginava, deveria ser estabelecido.
simpática porém manipuladora, como condição para minha pesquisa que eu fizesse um
discurso na festa de formatura dos alunos. Meu título de doutoranda de Antropologia Social
da UFRJ era negociado em termos de atribuir uma legitimidade simbólica ao diploma daquele
21
O Morro da Providência foi uma das primeiras favelas a se desenvolver na cidade do Rio de Janeiro, em 1897.
43
evento, senti seu planejamento pouco estruturado. Não havia um lugar ainda definido às
vésperas do evento, não havia apoio do Governo para legitimar tal ação e, quando soube que a
Minha ausência foi cobrada pela coordenadora de uma forma que eu não esperava.
Comecei a me sentir pressionada a situações que iam além do que julgava razoável me
envolver. Depois fiquei sabendo que o evento teve que ser encerrado por problemas com
sentir de tal forma exposta que decidi descontinuar minha pesquisa naquele salão-escola.
O fiz sem aviso prévio. Simplesmente no dia seguinte deixei de ir. Por um lado me
senti aliviada. Por outro carrego até hoje certa culpa por ter partido sem agradecer às pessoas
que me receberam, dispostas a ajudar minha pesquisa e conversar comigo. Mas não estava
confortável com a rede de obrigações que se estabeleceu. É claro que em todo tipo de relação
existem trocas. Não é a primeira vez que as experimento em campo. Mas aquelas que me
estavam sendo colocadas não pareciam saudáveis para o tipo de pesquisa a que me propunha.
Terminei meu último dia de campo na Central do Brasil e me vi em uma cena irônica.
Andando no meio do gigantesco saguão da Central, voltava para casa no sentido contrário ao
daquela massa de transeuntes trabalhadores que também terminavam sua jornada de trabalho.
Embora meu caminho fosse muito mais curto para chegar ao meu destino final, em
comparação ao longo caminho de ferro a ser trilhado por todas aquelas pessoas, sentia o quão
longe eu ainda estava de descobrir um salão “popular” para realizar minha pesquisa.
44
Do salão “popular” ao salão “classe média”, o caminho escolhido foi procurar este
último pelas ruas de Copacabana. Certa vez uma amiga perguntou o que eu fazia em minha
etapa exploratória. Enquanto explicava, fui questionada: – “Mas como você faz?
Envidraçados, disputando espaço nas calçadas lado a lado com lojas de marcas
famosas, ou mais discretos, dentro de galerias, as opções eram muitas. Eu entrava nos salões,
aproveitava para dar uma olhada no ambiente. Agradecia e ia embora quando sentia que
estava muito vazio 22 ou que aquele não era o perfil de salão que procurava.
Entrei em uma galeria que conduz a uma conhecida loja de eletroeletrônicos. Não
encontrei nenhum salão no andar térreo. Decidi subir as escadas. Foi então que me deparei
com letreiros de dois salões. Seguindo minha orientação ocidentalmente destra, primeiro me
conduzi ao salão do canto direito. Escuro, quase sem iluminação natural, com paredes
revestidas de madeira, não havia um único cliente em plena tarde de quarta-feira. Apenas
22
Um salão vazio nem sempre é uma escolha produtiva quando se trata de fazer trabalho de campo,
especialmente por tornar a observação de clientes um ato menos freqüente. Não que um salão com pouco
movimento não possa se revelar um local etnograficamente rico. Pode, inclusive, ser muito interessante para
trabalhos que privilegiem a análise da dinâmica e interação dos profissionais que ali trabalham. Porém, depois de
ter passado pela experiência na Central do Brasil, em que o salão escolhido teve que fechar suas portas,
escolhendo um salão mais movimentado acredito correr menos risco de que um dia o mesmo venha a falir pela
pouca rentabilidade, comprometendo a continuidade da minha pesquisa. Além do mais, mesmo o salão mais
movimentado possui seus dias da semana ou horários especiais em que o movimento reduz, o que me oferece a
oportunidade de trabalhar a relação dos profissionais nesses momentos.
45
O segundo salão era amplo e bem iluminado. Toda sua fachada de janelas de vidro se
voltava para a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Era um ambiente simples, com
mulheres sendo atendidas, a maior parte fazendo uso de serviços para cabelos.
estéticas, em que a cliente tentava, em vão, convencer o profissional a fazer uso de um tom de
vermelho mais escuro. A cliente perdeu. O argumento do cabeleireiro foi mais forte: um
vermelho mais escuro na raiz do cabelo não combinaria com o tom de vermelho do resto do
cabelo.
Minha atenção foi interrompida pela chegada de Eunice, a manicure que iria me
atender. Era uma senhora negra, cabelos bem curtos, óculos de grau e uma esperteza que se
revelava à primeira troca de olhares, confirmada pela primeira troca de palavras. Quando
Fui puxando assunto, sempre tendo o salão como tema. Sabia que meu tempo de
exploração não passaria do tempo de um serviço de manicure, então tinha que ser o mais
rápida possível para conseguir informações de forma a não assustar a manicure com minhas
perguntas.
Queria saber quem era o tipo de público que freqüentava aquele salão, os dias em que
havia mais movimento, um pouco da história do salão, como a Eunice havia começado a ser
manicure, suas impressões sobre o que as mulheres procuravam no salão, tudo em vão:
Eunice apenas me dava respostas curtas. Às vezes parava seu serviço, levantava a cabeça,
olhava para mim em um momento de pausa e só então dava a resposta. Evasiva, sempre.
46
Comecei a me sentir mal. Não consegui ganhar a simpatia de Eunice com a facilidade
com a qual costumava ganhar as manicures com quem havia conversado até então. Resolvi
abrir o que eu estava fazendo ali. Expliquei que estudava salões de beleza, não em termos
comerciais, mas para a universidade. Que eu tinha que descobrir um salão em Copacabana em
que eu pudesse encontrar diversos perfis de clientes em um mesmo lugar para fazer a
pesquisa, mas estava tendo dificuldades, porque não conhecia os salões do bairro e precisava
Eunice mobilizou os outros profissionais que estavam à nossa volta para pensar junto com ela
em salões que pudesse me indicar. Disse que o salão em que ela trabalhava era mais
“sofisticado”, mas seu eu quisesse realmente ver “mistura”, deveria ir à Galeria Ritz, ali perto.
Disse que em salão de rua entra muito mais gente diferente do que em salão de galeria, cujo
público costuma ser mais homogêneo. Mas que eu não iria encontrar “rico” e “pobre” em um
Minha unha já havia sido terminada. Eunice levanta, pisca para mim (em um código
de cumplicidade) e quando vejo já tem três pessoas envolvidas no assunto sobre salão para me
indicar. Peço um café e um pouco de sal. Fazer trabalho de campo no Rio de Janeiro em pleno
Ainda lenta na cadeira, esperando a pressão voltar ao normal, a cliente cuja conversa
com o cabeleireiro eu estava acompanhando no início pergunta meu nome e se senta ao meu
lado para conversar sobre os motivos pelos quais ela gostava tanto daquele salão: – “O
atendimento, as pessoas, o olhar nos olhos e o sorriso sincero. Ser bem atendida”. Eunice já
havia me adiantado que Vera era um exemplo de cliente que toda semana está no salão.
Vera era uma mulher de aproximadamente 55 anos. Uma figura um tanto exótica.
Tinha os cabelos pintados de vários tons entre o loiro e o vermelho, o que dava a impressão de
47
algumas mechas serem rosa-claro. No lugar de suas sobrancelhas, havia uma tatuagem,
comum em casos de sobrancelhas ralas ou que não mais possuem pêlos. Era uma mulher alta,
com ancas largas. Usava uma camisa muito colorida, calça jeans e anéis dourados. Pelos
detalhes que ia revelando sobre sua vida pessoal, parece que era mulher de militar e mãe de,
Quando me dei conta, havia perdido Eunice de vista e Vera dominava a minha
atenção. Com a pressão ainda baixa e Vera sentada ao meu lado falando muito próxima de
mim, em uma distância em que nossos rostos quase se encostavam, comecei a ficar irritada.
Estava ansiosa para ir à Galeria Ritz e Vera não parava de falar sobre sua vida pessoal. Senti-
me presa à armadilha de uma “caçadora” de assunto e atenção. Perfil que se acredita ser
Dei a desculpa de que precisava ir antes que anoitecesse e me levantei para pagar.
Despedi-me de todos agradecendo e dizendo que voltaria lá. Chamei Vera pelo próprio nome,
embora tivesse acabado de conhecer aquela pessoa. Senti-me muito estranha com tamanha
intimidade, especialmente por saber histórias da vida pessoal dela. Depois de pagar, separei
aproximadamente 20% do valor do serviço de manicure para dar à Eunice como gorjeta.
Agradeci a indicação de salão, as lindas unhas que havia feito em mim e falei que
voltaria outras vezes para fazer os pés. Mostrei o cartão que peguei com o número de telefone
do salão e Eunice perguntou se eu não queria anotar o telefone da casa dela, caso precisasse
de mais ajuda. Achei curioso isso, pois no salão da Central do Brasil, na primeira vez em que
fui, a manicure ao final também me fez escrever os números de telefone pessoais dela, após
pesquisa. Cito não apenas a boa-vontade das pessoas em me fornecer informações e pensar
48
junto comigo, como também casos de profissionais dos salões que se disponibilizaram a
contar sobre suas trajetórias ou aguardavam minha chegada para relatarem acontecimentos
ocorridos em minha ausência que poderiam ajudar na elaboração da minha tese 23.
As próprias clientes também tiveram semelhante iniciativa. Era só falar que estudava
suas impressões sobre tal universo e contar casos ocorridos com elas ou com pessoas
conhecidas. Após perceber o quanto abria portas o simples fato de mencionar meu tema de
estudo, confesso que muitas vezes fiz uso desse recurso para entrar com maior rapidez e
que mal conheciam. Pergunto-me se isso se dá por algum tipo de solidariedade feminina, pelo
assunto despertar a curiosidade daquelas pessoas ou por se sentirem valorizadas, no caso dos
profissionais da beleza, uma vez que suas atividades e meio profissionais não costumam ser
podia esquecer que aquilo também se tratava de uma relação de troca. Reproduzo uma fala
ilustrativa de uma manicure de um dos salões em que fiz campo: – “Podemos fazer uma troca.
Você vem aqui toda semana, eu te conto tudo que precisa e você faz a unha comigo”.
23
Uma manicure, em especial, chamou minha atenção. Após explicar que era antropóloga e o tipo de trabalho
que eu fazia em salões de beleza, no encontro seguinte ela me procurou, disse que refletiu sobre meu trabalho e
que um dia eu deveria estudar as situações que se passam em ônibus coletivos. Peço que ela me explique por que
deveria estudar isso e fico contente em perceber o quanto ela era perspicaz em suas observações. Sugiro que ela
mesma um dia estude tais relações. Ela ri e diz: - Quem sabe um dia?
24
Sobre esta questão, Beaud e Weber (1997: 68) sugerem que o termo estudante tranqüiliza, pois muitos são os
pesquisados que já foram ou conhecem estudantes. Por estarem em situação de aprendizagem, os estudantes não
representam ameaça social.
49
Como sugerido pela manicure Eunice, segui em busca dos salões “misturados” da
Galeria Ritz. Nunca havia ouvido falar daquele lugar, não sabia o que me esperava. Sem o
endereço certo, tinha apenas indicações. Caminhando pela Avenida Nossa Senhora de
Copacabana ainda perdida, fui abordada por um rapaz na porta de uma galeria, que me
entregou um folheto de um salão de beleza. Passei os olhos pelo papel e percebi que
Entrei caminhando com bastante calma. Queria observar tudo. Era uma galeria quase
exclusivamente composta por salões de beleza. Um relojoeiro, uma costureira e uma pequena
loja de produtos para salão eram as exceções. Os estabelecimentos eram todos muito simples
e pareciam atender um segmento bem popular. A galeria, propriamente, não era um local
muito convidativo. Goteiras, fiação exposta e pouca iluminação davam ao lugar um aspecto
O rapaz que havia entregado o folheto na porta, quando percebeu que entrei na galeria
foi atrás de mim. Sua abordagem foi bastante insistente. Fez de tudo para que eu entrasse em
seu salão e não nos da concorrência. Para me livrar da situação disse que não procurava por
No fundo da galeria um pequeno salão com decoração kitsch chamou minha atenção.
ambiente iluminado por lâmpadas frias e colorido por paredes com tons chamativos. Objetos e
pessoas pareciam empilhados uns sobre os outros, era muita informação visual.
Parei na frente de sua porta de vidro e me surpreendi não apenas com a habilidade de
acomodar em pouco mais de 15m2 uma considerável quantidade de mulheres, uma gaiola com
um casal de periquitos e mais dois gatos persa lindamente peludos, que se enroscavam nos pés
50
das clientes e viravam de barriga para cima em busca de chamego. Todos pareciam conviver
ficar sentada ao lado de outras clientes nas cadeiras de espera que havia do lado de fora. Não
conseguia tirar os olhos daquele lugar. Logo percebi que a dona do salão se tratava de uma
travesti. Diferente das manicures, estava sem uniforme e era a única que desempenhava a
atividade de cabeleireira. Reparei um rapaz novo, também sem uniforme, que parecia atuar
como assistente da cabeleireira. Não demorou para descobrir que se tratava do namorado da
dona do salão.
Precisava voltar àquele lugar em uma nova oportunidade para conseguir entrar no
dona do salão - Katarina - e seu assistente estavam na porta fumando cigarros. A situação era
Não demorou muito para chegarmos à conversa sobre o tipo de clientes que
freqüentam aquele salão. Katarina diz que “dá de tudo. Maluco, gente fina com grana,
empregada, puta, safado, gente sem vergonha...”. Mas que não deixa homem “feio” entrar. Só
homens que possam vir a causar algum tipo de confusão. Embora isso não garanta que
Katarina conta a história de uma senhora de idade bastante avançada que já havia ido
ao salão algumas vezes. Um dia tal senhora fez uso de diversos serviços no estabelecimento
(cabelo, unha etc.), totalizando o total de R$ 90,00. Falou que ia almoçar e na volta traria o
Diz que um tempo depois encontrou a tal senhora em Copacabana e a abordou para
perguntar quando iria pagar a conta que devia ao salão. Percebendo que a cliente não iria
51
saldar sua dívida, Katarina conta que fez um escândalo na rua. Xingou a senhora de “velha
Quando pergunto sobre sua trajetória, como começou a trabalhar com beleza, Katarina
prontamente responde que nasceu com o “dom”: – “Cada um tem a sua estrela. A minha é
econômica. Diz que se quisesse poderia viver de renda e que entre os imóveis que tem, um
25
deles é um apartamento na Avenida Atlântica . – “Número 1.111, apartamento 302”, diz
No meio de nossa conversa, somos interrompidas pela chegada de uma moça que, sem
mesmo se apresentar ou dar bom-dia, tira de uma sacola de plástico um anel e mostra para
Katarina, que o elogia. A mulher fala: – “Katarina, comprei e vim te mostrar porque você tem
bom gosto” e vai embora sem se despedir. Katarina olha para mim e fala: – “Essa é uma das
Katarina volta para dentro do salão enquanto continuo aguardando do lado de fora
para ser atendida. Converso com duas clientes que passavam pela rua e foram convidadas pelo
namorado de Katarina na porta da galeria a conhecer o salão. Uma delas era da Paraíba e
estava de férias no Rio. Diz que achava que o preço do serviço de manicure no Rio seria
muito mais caro. Para sua surpresa, não diferenciava muito daqueles praticados em sua
cidade.
Sentada à minha esquerda, uma estudante que mora ali por perto puxa assunto comigo.
Diz que foi fazer unha porque era véspera de feriado e estava com preguiça de fazer sozinha,
porque leva a tarde toda para conseguir fazer suas próprias unhas dos pés e das mãos. Em
25
Ponto imobiliário nobre da cidade, localizado na orla de Copacabana.
52
pouco menos de dez minutos de conversa me conta como estava cansada porque havia ido ao
Centro da cidade atrás de uma camiseta de São Jorge que havia gostado.
26
Fico sabendo que é adepta da “curimba” , que estava de ressaca porque havia
“bebido todas na noite anterior”, pede minha opinião sobre a cor de esmalte que deve pintar as
unhas e interrompe nossa conversa para fazer um comentário a respeito de dois homens fortes
e bonitos que passam pelo corredor. Era muita informação ao mesmo tempo. A impressão é
Katarina volta para fora do estabelecimento enquanto aguarda a tintura fazer efeito
sobre o cabelo de uma das clientes. Continua a conversa comigo do ponto em que havia
parado. Diz: – “Tem horas que o ambiente está leve. Tem horas que está pesado. Eu sinto, sou
kardecista”.
Finalmente sou chamada para fazer as unhas. Sento entre as clientes enfileiradas umas
ao lado das outras, com nenhum espaço entre as cadeiras. Se alguém começa uma conversa
em tom alto no salão, não há como se manter alheio. Uma senhora de idade começa a puxar
assunto comigo. Fala sobre sua sobrinha, que está a apenas uma cadeira de distância de mim.
Comenta que a sobrinha era bonita, mas casou e engordou muito. Fico muito sem
graça, porque sei que a sobrinha, embora finja que não, escuta nossa conversa, tal como o
salão inteiro. Desvio o olhar assim que posso para tentar cortar o assunto. O mesmo faz a
manicure, que abaixa ainda mais a cabeça enquanto pinta as unhas da senhora.
Ao terminar as unhas, vou até Katarina, pago meu serviço e pergunto se posso voltar
para conversarmos mais. A essa altura já havia dito que era antropóloga, que estudava salões e
que tinha me interessado pelo seu. Katarina me diz que seria muito complicado, porque o
salão é muito cheio. O recado já havia sido dado, mas insisto um pouco mais, em vão.
Katarina não permite que meu trabalho de campo se realize ali. Acato sua decisão por
26
Termo que se usa para definir “macumba”, na própria explicação da cliente.
53
concordar que, embora aquele ambiente pudesse render boas observações, seu espaço físico
era um impedimento concreto (embora tal negação também pudesse estar ligada a inúmeros
outros motivos não revelados). É triste se interessar por um lugar e não poder estudá-lo.
oportunidade que tive para explorar potenciais campos de estudo. Fiquei contente por ter ido a
salões que me chamavam atenção há algum um tempo, além de ter me sentido à vontade para
poder explorar outros bairros ou certos cantos da cidade que sempre me despertaram
curiosidade.
O contato com as pessoas com as quais interagi, as conversas informais, as visitas aos
mais variados tipos de salões, as experiências empíricas enquanto mulher, participando dos
rituais de embelezamento e me colocando também como objeto de análise, enfim, cada parte
dessa etapa exploratória serviu para dimensionar melhor o meu campo de estudo e levantar
dados importantes a serem explorados com maior atenção no decorrer de minhas posteriores
investigações.
Foi um processo que, por ter sido realizado de forma pouco ansiosa e sem uma
estruturação prévia ou rígida, permitiu-me descobrir pessoas e lugares que talvez não tivesse a
oportunidade de conhecer. Senti-me mais segura para tomar aqueles que viriam a ser meus
próximos passos.
A partir de agora apresento então os três salões em que desenvolvi minha pesquisa
etnográfica de forma mais sistemática. Para cada um deles conto um pouco da história do
54
bairro em que se localizam 27, seguida de uma breve exposição de como se dá a estruturação
Seguindo a faixa costeira que vai da ponta do Arpoador até os limites do canal que liga a
Lagoa Rodrigo de Freitas ao mar, atravessando o parque conhecido por Jardim de Alah,
Ipanema 28 é um bairro cercado por águas, ao norte pela referida Lagoa e ao sul por uma praia
oceânica 29.
Até o final do século XIX o bairro não passava de uma estreita faixa de terra arenosa
fronteiriça a Copacabana. Sua ocupação urbana só se viabiliza com a abertura do Túnel Velho, em
1892. Por volta de 1910, já existem mais de 100 residências construídas, impulsionadas pela
Pereira Passos, que implementa uma transformação urbanística na cidade, impondo novos
conceitos para o uso do espaço urbano, no início do século XX. Os bairros das zonas Norte e
áreas mais valorizadas do Centro – pressionada por ações como a demolição dos cortiços,
27
A respeito dos dados históricos dos bairros, foi tomado como referência o estudo do Instituto Pereira Passos,
Nota Técnica n º 12. Quanto a uma literatura antropológica sobre bairros, Cf . VELHO (1973), ABREU (1987),
COSTA (1999) e CORDEIRO (1997).
28
Ipanema significa em Tupi água imprestável, ruim, sem peixes.
29
Ver em anexo Figura I – Vista aérea do bairro de Ipanema.
55
iniciada ainda em 1893 - começa a ocupação dos subúrbios em direção à Zona Norte,
Enquanto isso, a população mais abastada toma a direção salubre e arejada da Zona Sul,
agora já aterrada e saneada, inicialmente em áreas não muito distantes do Centro. O grande areal
desabitado de 1919 passa a dispor de acesso através de uma moderna e ampla avenida, iluminada
e pavimentada - Avenida Vieira Souto - tendo início então a ocupação mais intensa do bairro,
especialmente dos terrenos da orla. Ipanema surge como decorrência do sucesso de Copacabana.
grande número de casas edificadas. Com sua superfície ocupada, tem início na década de
1960 o processo de verticalização, que atinge o auge em meados dos anos 1970. A explosão
Nos anos 60, a bossa nova e o sucesso internacional da canção Garota de Ipanema
trazem para o bairro notoriedade mundial. Ipanema é enaltecida simultaneamente como praia
freqüentada pela juventude dourada e como reduto boêmio de intelectuais, poetas e artistas,
passando a competir pelo título de praia mais famosa do mundo com Copacabana.
Hoje o bairro residencial ainda sustenta sua fama pelos atrativos naturais e se destaca
pela vocação para o comércio sofisticado, a gastronomia e a vida noturna. Não por menos se trata
de um dos IPTUs (Imposto Predial e Territorial Urbano) mais caros do Brasil. É nesse cenário que
encontramos localizado o primeiro salão investigado para esta tese, que me limito a chamar de “o
Em uma reservada e arborizada rua residencial, localizado em um dos pontos mais nobres
de Ipanema, um muro alto protege dos olhares mais indiscretos uma bonita casa onde funciona,
há nove anos, um dos mais sofisticados salões de beleza do Rio de Janeiro. Não há letreiros,
salão. Uma única e discreta logomarca na porta de entrada apenas revela o nome do
56
estabelecimento que, por sua vez, não faz referência a palavras que costumam ser usadas para
despertam a curiosidade como também se colocam como elementos inibidores para certas
pessoas. A alta e larga porta de madeira que dá acesso ao salão, sempre entreaberta, colabora
de forma significativa para o afastamento de qualquer presença indevida que não corresponda
por uma das recepcionistas ou profissionais, sempre atentos a qualquer nova presença que se
A casa onde funciona o salão é espaçosa, bem decorada e com muita iluminação
despendida aos mais sutis detalhes: desde os pequenos aparelhos elétricos que destilam um
suave perfume que se propaga pelo salão, até a trilha sonora desenvolvida especialmente para
o estabelecimento.
aparadores. Uma pequena fonte e cristais na entrada sugerem uma decoração voltada para
elementos que remetam a equilíbrio. O jardim da entrada se liga à recepção por meio de uma
parede de vidro que integra ambos os ambientes. Ali se encontram o balcão de atendimento,
com recepcionistas em trajes sociais de cor preta, móveis expositores envidraçados com os
30
“Salão de beleza” e “cabeleireiro”, além dos termos estrangeiros “coiffeur” e “hair salon” são os termos
usualmente mais utilizados na composição de nomes para salões de beleza no Rio de Janeiro.
57
produtos de beleza à venda, além de uma mesa com computador e acesso à internet disponível
aos clientes.
Existem vários ambientes na casa pelos quais o cliente pode circular. No salão
existe uma sala envidraçada reservada para coloração de cabelos. Ainda no exterior, encontra-
podem relaxar, tomar um café ou mesmo optar por fazer um serviço de beleza ao ar livre 31.
Há, ainda, uma pequena copa no formato de cozinha americana, onde são preparadas
bebidas variadas (de chá a prosecco), sanduíches e pequenas refeições. Garçons se encontram
à disposição dos clientes. No andar de cima se concentram as salas reservadas para serviços
possível encontrar desde cadeira de descanso até um box para ducha. São neles que as clientes
trocam de roupa, penduram seus casacos ou blusas nos cabides e vestem roupões
jornais. Não existe acesso a emissoras de rádio ou canais de TV. A única televisão existente
Contudo, o espaço de 180m2 da casa parece não ser suficiente para abrigar todas as
atividades. Descubro uma outra casa, do outro lado da rua, onde funciona uma clínica de
medicina estética, cuja parte é alugada pelo salão de Ipanema. Lá funcionam o escritório
que cuida da higiene das diversas toalhas e roupões utilizados nas atividades cotidianas do
31
Ver figura IV - Planta baixa salão de beleza de Ipanema, em anexo.
58
salão. Até mesmo as escovas de cabelo são esterilizadas. Vale destacar que quase todos os
uma multinacional de cosméticos bordada na manga da blusa. Os poucos que não trabalham com
uniforme são os cabeleireiros de maior prestígio. Porém, a orientação é que todos façam uso de
Algo que me chamou bastante atenção é o uso que os funcionários fazem de acessórios.
por outro, são os pequenos detalhes dos acessórios que agregam valor e distinguem cada
indivíduo.
atendimento e dos serviços oferecidos, como também no nome dos profissionais que nele
atrativas ou oferecem sociedade, o que torna a rotatividade comum nesse meio profissional.
Quando já havia terminado a etapa de campo, foram necessárias apenas algumas semanas sem
contato com a equipe do salão de Ipanema para descobrir que quinze profissionais haviam
32
Vale destacar que o branco é uma cor culturalmente ligada a representações de higiene, saúde e pureza, entre
outras. Daí sua utilização tanto em atividades médicas, estéticas, culinárias ou religiosas. Vestir roupas brancas
transmite confiança ao remeter a uma imagem de assepsia e higiene corporal.
33
Um dos cabeleireiros do salão de Ipanema, por exemplo, possui um quadro semanal em um programa de
televisão da Rede Globo, em que “transforma” o visual de uma pessoa da platéia. Isso rende considerável
notoriedade e prestígio não apenas para o profissional, como também para o salão.
59
confirma a valorização a que um corte ou uma pintura de cabelo pode ter. Vinte mil reais por
mês é o salário mensal do colorista do salão de Ipanema. Assustou-me quando tive acesso a
mulheres, brancas, com uma concentração na faixa entre 35 e 60 anos. Os poucos clientes
fazem de sua presença o evento mais discreto possível. Aquele em especial é um reduto
Além de um grande e coletivo camarim, o salão de Ipanema também parece uma verdadeira
passarela, onde desfilam não apenas bolsas importadas, jóias e roupas de grife, como também
Os olhares no salão de Ipanema parecem não conseguir se fixar somente nas revistas
ou nas próprias imagens refletidas no espelho. É praticamente impossível uma pessoa entrar
no salão e não ser notada. Os olhares, tanto das clientes quanto dos funcionários, deslizam de
cima a baixo sobre as figuras que por ali passam. O curioso é que tal prática não parece
34
Vale lembrar que parte desta mesma equipe costumava trabalhar no salão do hotel no Leblon, onde fiz meus
primeiros estudos para o mestrado. Logo, estamos falando de duas mudanças de local de trabalho em um período
de cinco anos. Fora outros profissionais que conheci que passaram por muito mais que dois salões diferentes em
períodos de tempo menores.
60
Engana-se quem entra no salão de Ipanema achando que irá encontrar apenas serviços
relacionados a cabelos e unhas. Cílios, sobrancelhas, pêlos e pele também dão lugar a uma
distintamente precificados, ultrapassa a quantidade de 130. A inferência que aqui faço a partir
de tais dados é que quanto mais voltado para os estratos superiores da hierarquia social, maior
refiro, apresento uma organização que fiz com base nas partes do corpo que são objeto de
Cabelos
- Corte (infantil; masculino; feminino)
- Coloração (simples; nutritiva suprema;
balayage; decapagem; retoque de raiz frontal)
- Tratamento capilar (cauterizações molecular ou
a frio; rituais de firmeza, de força, de brilho, de cor, de nutrição, de proteção,
disciplinante, purificante, clarificante, color lock, age resist; tratamentos de
keratina, colágeno ou outras substâncias; escova ciment thérmique)
- Estilo (secagem; escova; lavagem; baby liss)
- Penteado (solto; preso; de noiva; teste de
penteado noiva)
- Alisamento
- Mega hair
Mãos e pés
- Manicure e pedicure (francesinha; esmalte; unha de silicone)
- Tratamento para os pés
- Reflexologia
61
- Shiatsu
Rosto
- Cílios (eyelash; pintura; permanente)
- Sobrancelha (design; coloração; alisamento)
- Maquiagem (simples; noiva; teste noiva)
- Estética facial (limpeza de pele; peeling; revitalização; hidratação facial)
Corpo
- Bronzeamento (instant bronze)
- Descoloração de pêlos (banho de lua)
- Estética corporal (massagens; drenagem linfática; gomagem)
Depilação (buço; perna; meia-perna; virilha; virilha cavada; axilas; faixa; braço)
procedimentos estéticos direcionados aos cabelos, comparados àqueles voltados para as outras
partes do corpo. Os tratamentos relacionados a cabelos também costumam ser aqueles que
praticam os preços mais elevados. Para se ter uma noção de valores, um corte de cabelo no
recepção ou em nenhum outro lugar do salão o cliente encontra uma relação com os serviços
cartão magnético personalizado com seu nome (cujo formato curiosamente é semelhante ao
salão. Se a pessoa não perguntar previamente o preço do serviço, saberá o valor da conta a ser
pago apenas ao final, o que pode reservar surpresas desagradáveis para clientes desavisadas.
investigações sobre aquilo que previamente havia definido como um salão de “elite”. Nele
importantes subsídios para elaborar uma visão comparativa com as outras realidades
35
A ocupação do bairro do Catete pode ser considerada uma história de luta
permanente contra a natureza. De acordo com o já referido estudo do Instituto Pereira Passos,
o acesso era extremamente dificultado pelo percurso entre o Catete e a Lapa, um trajeto
tortuoso que se estreitava entre lagoas, pântanos e morros. As marés que inundavam o
A área entre a colina da Glória e a região do Catete era uma zona rural que floresceu
durante o ciclo do café, no século XIX. Durante esse período, grandes fazendeiros de café
com plantações na planície do rio Carioca e nas encostas dos morros do Cosme Velho,
mansões.
aterros realizados na orla e no curso dos rios. Ruas estreitas são alargadas, reconstruídas ou
35
Catete - corruptela de cateto, que em Tupi significa espécie de milho miúdo.
36
Ver em anexo Figura II – Vista aérea do bairro do Catete.
63
calçadas; inúmeras casas de arquitetura simples – de origem portuguesa – dão lugar a prédios
iluminação pública a gás encanado. A população passa a usufruir de lazer noturno em bares e
restaurantes.
Criadas as condições para a expansão instala-se na região uma classe média abastada,
seguida por pequenos comerciantes e, mais adiante, por pessoas de todas as classes sociais.
representantes dos poderes eclesiásticos (Palácio Episcopal), político (Palácio do Catete) e até
cujos discípulos ainda se reúnem no Templo da Rua Benjamim Constant, número 74.
como moradia para 18 presidentes. Foi nele que Getúlio Vargas cometeu suicídio com um tiro
brasileira. Com a mudança da capital para Brasília em 1960, o Palácio torna-se Museu da
República.
característica geográfica de corredor de passagem para outros bairros da Zona Sul. Com sua
desvalorização iniciada a partir da abertura dos túneis de ligação com as praias oceânicas, é
um dos bairros que mais sofre com o deslocamento das atenções do poder público e dos
interesses da iniciativa privada para Copacabana, passando a atrair populações de baixa renda.
O Catete se destaca, ainda, por uma vocação singular: muitos dos comerciantes abastados que
ali ergueram mansões também haviam se tornado proprietários de cortiços para exploração
O bairro tem o seu declínio acentuado a partir dos anos 1930, com o deslocamento do
fluxo de veículos para a Avenida Beira-Mar, tendo como conseqüência uma crescente
ocupação por pessoas de baixo poder aquisitivo. O processo de tomada irregular das encostas
dos morros também aumenta. O desvio do acesso viário à Zona Sul para o aterro do
em corredor para as praias oceânicas da Zona Sul, o Catete até hoje não conseguiu retomar a
imagem de bairro nobre, apesar de localizado na Zona Sul do Rio de Janeiro e ainda possuir
os inúmeros eventos que têm sido realizados no entorno do bairro, em locais como a Marina
sempre foi um bairro relativamente desconhecido. Por carregar a percepção de que se tratava
exploratória, quando eu procurava por um salão “popular”, que fosse voltado para estratos
lugar que poderia se aproximar daquilo que eu procurava. Sugeriu que eu fosse conferir um
salão no Catete, pelo qual todo dia ela passava de ônibus. O estabelecimento havia chamado
sua atenção pelo fato de na vitrine estar escrito: “Corte R$ 6,00”. Fiquei curiosa e decidi
conferir pessoalmente.
37
Apesar de ter nascido e sido criada nos primeiros anos de vida no município do Rio de Janeiro, morei minha
infância e início de adolescência em Itaipu, bairro da região oceânica do município de Niterói, no Rio de Janeiro.
Aos quinze anos, aproximadamente, mudei-me com minha família para o bairro de Ipanema e lá residi por 11
anos. Há cinco moro em Botafogo. Forneço tais informações sobre minha trajetória para mostrar que existe uma
relação de proximidade e conseqüente conhecimento sobre determinados bairros, o que até então não existia
quando comecei a fazer trabalho de campo no Catete.
65
Optei por chegar ao salão de ônibus, tal como minha informante o fazia. Deixei pouco
dinheiro na carteira, tirei os documentos originais e não levei meu relógio. Tive receio de ser
assaltada no caminho 38. Sabia que, apesar de haver um batalhão da Polícia Militar na esquina
da rua, a área no entorno não era das mais seguras. Existe uma comunidade, conhecida como
morro Santo Amaro cujas vias de acesso são justamente no final da rua ou por meio de uma
Desci uma parada de ônibus antes daquela que me levaria mais próxima ao salão e,
lavanderia, loja de motos, botequim, casa de lanches. Tratava-se de uma área voltada para a
oferta de pequeno comércio. A movimentação de ônibus e automóveis era mais intensa do que
a de pedestres. Não foi difícil encontrar o salão. Sua localização é bem exposta, separada da
visualização. Qualquer um que passe por sua frente consegue enxergar praticamente tudo que
acontece lá dentro através de sua fachada de vidro. Também é possível saber o quanto a
pessoa que ali se encontra está pagando pelo corte de cabelo, manicure ou pedicure, uma vez
38
Mais uma vez considero importante esclarecer certos aspectos de minha trajetória a fim de tornar
compreensíveis algumas percepções e atitudes. No caso dos medos que acabo por revelar em alguns momentos
da tese, creio que são fortemente influenciados por experiências pessoais relacionadas a violência urbana pelas
quais passei. Apenas para citar as mais relevantes, em um sinal de trânsito no Catete um bando de meninos
cercou o carro em que me encontrava com minha mãe e irmã pequena e vi colocarem um caco de vidro no
pescoço de minha mãe como ameaça para roubar seu relógio. Uma segunda experiência se deu na porta do
prédio que morei em Ipanema. Dois homens armados renderam a mim, meu pai, e minha mãe quando
entrávamos em nosso carro e nos mantiveram como reféns por algumas horas, dirigindo pela cidade e nos
ameaçando de morte. Dessa forma, acredito que meu medo de passar por certas ruas do Catete ou conhecer a
Central do Brasil possam ser relevados pelo leitor. Talvez um pesquisador com trajetória diferente da minha não
trouxesse tal questão de forma tão latente. No entanto, considero importante tais registros sobre medos uma vez
que dizem respeito a um fenômeno particular que não está desassociado da vida cotidiana nos centros urbanos.
66
Entro no salão e o primeiro fato que me impressiona, além da fina camada branca de
conversas em tom alto que se misturam ao mesmo tempo. O salão é bastante movimentado.
São muitas as cenas que acontecem ao mesmo tempo, deixando um pesquisador menos
naturalmente, é que são espaços separados. Contudo, mesmo estando todos os profissionais
O ambiente no geral é decorado de forma bem simples. O mobiliário parece ter sido
para trás, é a gaveta que não mais encaixa na cirandinha ou o apoio para as mãos das clientes
Um sofá preto de couro sintético no meio do salão acomoda não apenas os clientes que
esperam ser atendidos, como também revistas e jornais, que ficam espalhados pelo assento.
Achava engraçado ver conviverem lado a lado revistas evangélicas e jornais populares com a
natural, no Catete encontram-se bocais com lâmpadas frias. Na ausência de uma cozinha
equipada com toda sorte de bebida e comida, é preciso contentar-se com um bebedouro que,
39
Ver figura V - Planta baixa salão de beleza Catete, em anexo.
67
para fazer uso, é necessário pedir um copo descartável à recepcionista. O toalete amplo, com
objetos e decoração pensados nos mínimos detalhes, dá lugar a um banheiro escuro e sem
manutenção apropriada, em um espaço extremamente reduzido que não permite dar mais que
salão do Catete são linhas de produtos nacionais. No lugar de uniformes brancos assépticos,
todos os funcionários se vestem com roupas próprias. A única orientação é que calça e blusa
sejam ambas de cor preta 40. No lugar de uma trilha sonora instrumental com efeito calmante,
no Catete o pagode toma conta do salão, sendo suas letras românticas muitas vezes
Apesar das discrepâncias que se colocam em uma primeira impressão, veremos mais
tarde que os salões estudados mantêm entre si muitas aproximações. Continuemos então esta
O salão existe há pouco mais de um ano. O mesmo dono possui outro salão de mesmo
nome com um sócio, a poucas quadras dali. Grande parte da equipe, inclusive o atual dono do
salão do Catete, trabalhava junta em um salão concorrente, também próximo dali. Tendo
condições de finalmente abrir seu próprio negócio, o barbeiro convidou parte de seus colegas
muitas delas jovens, em torno de 20 a 30 anos. Também foi possível acompanhar certa
salão de Ipanema diz respeito ao papel do auxiliar. Não existe tal função no salão do Catete
40
O que gerou uma situação de confusão por eu ter ido, na primeira visita, vestida justamente de calça e blusa
pretas. Passei o resto do dia respondendo a clientes desavisados que entravam no salão que eu não trabalhava lá.
68
41
(nem no de Botafogo ), enquanto no de Ipanema pode-se chegar ao caso de um profissional
manicures que também atuam como depiladoras, cabeleireiros que cuidam das sobrancelhas,
quando não são os próprios profissionais da beleza os responsáveis pela limpeza do local de
trabalho, também podendo atuar como recepcionistas. Tais diferenças percebidas sugerem que
tamanho da equipe e recursos financeiros são dois fatores que interferem na distribuição das
Quanto aos clientes, o salão do Catete atende, basicamente, moradores do morro que
se localiza atrás do estabelecimento ou de ruas próximas, além de pessoas que trabalham nas
“populares”.
41
Embora ainda não tenha apresentado o salão de “classe média” em Botafogo, antecipo algumas comparações
que forem pertinentes.
69
No que se refere à idade dos freqüentadores, não se diferencia muito do observado nos
outros dois salões. Entretanto, no salão do Catete pude observar maior presença de crianças
ou de pessoas de pele negra, tanto clientes quanto funcionários. Outra diferença que se
42
Comum em padarias ou barbeiros, cujas pecinhas de plástico amarelas em formato de letras permitem formar
frases.
70
Embora preço, por si só, não seja o fator exclusivo que defina o perfil dos
freqüentadores de um salão de beleza, para ter uma idéia da distância entre o salão de
do valor de todos os serviços listados acima encontrados no salão do Catete. Sob outro ponto
Mesmo oferecendo preços menores que a média praticada, o salão do Catete ainda
permite que o cliente compre e leve a tinta que usará para tingir os próprios cabelos. Nesses
(como as de cassinos), cada uma com valores distintos, que todo funcionário deve buscar com
a recepcionista após a conclusão do serviço. Às manicures fica estipulado que devem fazer 20
fichas por dia. Aos cabeleireiros e barbeiros, a meta são 15 cortes diariamente.
Como estímulo à superação, aqueles que ultrapassarem a cota estipulada durante três
meses seguidos ganham 5% a mais sobre o valor do salário. Aqueles que se mantém muito
abaixo da cota esperada podem vir a ter problemas, embora eu não tenha tido conhecimento
relação à preferência na busca por profissionais. No primeiro, é raro ver um cliente entrar no
salão sem saber previamente com que profissional deseja fazer determinado serviço,
recepcionista ao profissional da vez que se encontra disponível. Parte disso pode ser explicada
pelo fato de o salão ser uma loja de rua e ter muitos clientes de passagem. Mesmo assim é
A partir de todos estes elementos descritos e das relações observadas, pude trabalhar
uma concepção de salão “popular” que até então eu tinha pouca noção. Foi minha primeira
fundamental para ter acesso a novos pontos de vista que não ficassem restritos aos de salões
Mas ainda faltava um terceiro elemento para tornar ainda mais ricos os prismas pelos
Seguindo ainda os dados históricos fornecidos pelo Instituto Pereira Passos, vejamos
43
como se deu a transformação do bairro de Botafogo. No século XVII, Botafogo servia
apenas como ligação entre o Catete e os fortes da Urca, na Praia Vermelha 44. Até o início do
século XIX, a região era rural. Com a chegada da corte portuguesa, em 1808, foram erguidas
43
O nome Botafogo tem origem no sobrenome do sertanista português João Pereira de Sousa Botafogo, que se
estabelecera no Rio de Janeiro no final do século XVI. João Botafogo ganhou como recompensa uma extensa
sesmaria ao longo da praia e parte da enseada, por ter se destacado no combate aos franceses e índios Tamoios
remanescentes em Cabo Frio.
44
Ver em anexo Figura III – Vista aérea do bairro de Botafogo.
72
grandes mansões em frente à enseada, como a casa de campo no início da praia de Botafogo, a
atraindo o interesse de ricos aristocratas que ali erguem seus palacetes, transformando pouco a
pouco o bairro em uma região seleta. Primeiro foram os ingleses, que se fixaram ao longo da
praia construindo imponentes mansões. Posteriormente, as terras foram sendo ocupadas pelos
O fator mais efetivo para o crescimento da região foi o advento do transporte marítimo
Saco do Alferes, no Centro (atual bairro de Santo Cristo). Em 1844, outra companhia inicia a
também camadas mais modestas. Dessa forma, as ruas internas de Botafogo passam a ser
ocupadas por imigrantes e pessoas menos abastadas, que constroem casas simples e
inúmeras vilas para habitação de operários, uma das características típicas do bairro.
ruas, com os donos das fazendas desmembrando suas propriedades em chácaras e sítios. A
abertura do Túnel Velho, em 1892, possibilita a chegada das linhas de bonde até Copacabana.
45
Le Lac era como a enseada de Botafogo costumava ser chamada pelos franceses, por conta de suas águas
tranqüilas.
73
expandem-se e muitas das imponentes mansões do bairro de Botafogo são então ocupadas por
embaixadas, consulados, colégios e, mais tarde, por clínicas, restaurantes e sedes de empresas.
adensamento de Botafogo e Humaitá se mantêm, tendência que persiste até a década de 1960,
outros bairros da Zona Sul promovem, a partir da década de 1980, a redescoberta do bairro,
terrenos dos antigos casarões, revivendo uma vocação residencial que nunca deixou de existir.
Em uma rua muito característica de Botafogo, dividindo espaço com lojas de peças
Trata-se de um salão pequeno e pacato 46. A televisão que existe quase nunca é ligada.
O mesmo acontece com o rádio. O salão não é dos mais movimentados. Inaugurado no
começo de 2008, sua clientela está sendo constituída aos poucos. O fato de o estabelecimento
ser uma loja voltada de frente para a rua facilita a divulgação para aqueles que passam pela
calçada, apesar de a vitrine não ser muito grande a ponto de chamar muita atenção.
poltronas para clientes são confortáveis, as revistas de fofocas costumam ser edições
atualizadas, há sempre um jornal do dia disponível, além de café e água oferecidos como
cortesia.
O nome do salão é uma junção das primeiras letras dos nomes dos dois sócios – um
homem e uma mulher. A história de tal sociedade é interessante. Contam que se conheceram
46
Ver figura VI - Planta baixa salão de beleza de Botafogo, em anexo.
74
em Botafogo. A então sócia, na época, era apenas cliente do salão. Havia aberto mão da
profissão de advogada para poder se dedicar à criação de seus filhos, após o nascimento do
caçula.
O salão do condomínio, nessa época, era administrado pelo atual sócio e sua esposa
(que hoje também trabalha como cabeleireira no salão pesquisado). Porém, o fato de não
poder atender clientes que não fossem moradores do condomínio estava limitando as
clientes que tinha a intenção de se mudar do condomínio e abrir um novo salão. Visualizando
nisso uma oportunidade de emprego que lhe permitisse mobilidade de horários para poder
cuidar dos filhos pequenos, a então cliente se ofereceu para ser sócia do novo projeto. Assim
Toda a equipe atual, com exceção de uma manicure, trabalhou junta (todos como
funcionários, incluindo o atual dono) em um salão no passado. Essa mesma equipe foi então
delas esposa do dono do salão), três manicures e dois sócios (o sócio homem também
desempenha a função de cabeleireiro; já a sócia mulher não possui experiência na área, o que
a faz assumir a tarefa de recepção). Com exceção do dono, a equipe é toda constituída por
No entanto, aos finais de semana tal composição muda, em função da maior circulação
região e pessoas que trabalham próximas ao local. Uma grande empresa de telefonia é
responsável por boa parte dos clientes que freqüentam o estabelecimento. Algumas são
Não existe meta a ser cumprida no que se refere ao número diário de atendimentos que
os profissionais devem fazer. Uma das manicures revela que a quantidade de atendimentos
para tal serviço varia entre quatro (considerado um dia ruim de trabalho) e quinze por dia.
A sócia do salão, em uma dada ocasião, conta que cada manicure consegue gerar até
R$ 1.500,00 por mês em épocas boas. Ou seja, no total fazem R$ 3.000,00, sendo que metade
fica com a profissional e a outra metade é comissão do salão. Para se ter uma noção dos
preços dos serviços deste salão que considero de classe média, reproduzo a relação a que tive
acesso.
Reflexo - R$ 100,00
Relaxamento - R$ 100,00
Cauterização - R$ 80,00
Cauterização extreme up - R$ 140,00
Manicure - R$ 9,00
Pedicure - R$ 11,00
Maquiagem - R$ 60,00
Penteado - R$ 80,00
Noiva - R$ 360,00
Apesar das diferenças mais evidentes entre bairros e perfis de público bem
destacar aquele que considero um dos principais: o fato de todos os três se encontrarem
localizados em uma parte bastante específica da cidade: a Zona Sul do Rio de Janeiro. Antes
de dar início à analise das implicações de tal concentração, considero importante fazer uma
A Região Zona Sul é formada por 18 bairros: Botafogo, Catete, Copacabana, Cosme
Velho, Flamengo, Gávea, Glória, Humaitá, Ipanema, Jardim Botânico, Lagoa, Laranjeiras,
Zona Sul se destaca por ser uma região constituída por montanhas e praias. Além da paisagem
natural privilegiada, possui rico acervo arquitetônico e ostenta dois dos postais mais famosos
47
Ver figura VII - Distribuição bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, em anexo.
77
conhecidas internacionalmente.
Até o fim da República Velha, a nova Zona Sul carioca (orla oceânica) havia se
mais ricas da sociedade. O período de 1930-1950, entretanto, veio impor a essa parte da
dos mais variados serviços, transformando a região em importante mercado de trabalho, o que
passou a atrair grande quantidade de mão-de-obra barata, que passou a ocupar os terrenos
íngremes até então desvalorizados, dando origem a novas favelas (ABREU, 1987:112).
Alguns dados gerais sobre a região, de acordo com o Censo 2000 48: 630.473 é número
total de habitantes da Zona Sul. Trata-se da segunda maior região empregadora da cidade,
sendo a atividade econômica local composta por cerca de 21 mil estabelecimentos, dos quais
70 anos (nos países que apresentam melhores indicadores socioeconômicos a média chega a
49
71,2 anos para homens e 78,6 anos para mulheres) . A renda média da região Zona Sul é a
maior da cidade (14,25 salários mínimos), quase duas vezes e meia superior à renda média do
48
Estudo do Instituto Pereira Passos, Nota Técnica n º 12. Vale destacar que os dados estatísticos aqui utilizados
servem como dados de contextualização, que permitem que se especifiquem certas características sociais do
campo, embora não dêem conta de todas as nuances que constituem aquilo que se compreende por “Zona Sul”.
49
Ver figura VIII – Longevidade de acordo com os bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, em anexo.
78
50
município (seis salários mínimos) . Valores estes considerados bastante altos, tanto para os
escolaridade de nível superior na Zona Sul é de quase 44%, bastante superior à média da
quando nos referimos à Zona Sul, estamos falando da região responsável por apresentar os
uma região que concentra moradores cujos recursos são os melhores, em termos de saúde,
escolaridade e renda.
Somado a estes dados estatísticos, existe uma dimensão simbólica que corrobora para
a supervalorização da região. Parece existir uma vocação da Zona Sul enquanto pólo de
administrativas da cidade. A questão é que, para muitos cariocas, a máxima expressão do que
se compreende como “Zona Sul” não é compatível com a lista de 18 bairros sugerida pelos
50
Ver figura IX – Renda média de acordo com os bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, em anexo.
51
Ver figura X – Alfabetização de acordo com os bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, em anexo.
52
Ver figura XI – Escolaridade nível superior de acordo com os bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, em
anexo.
53
Apesar de possuir um arranjo diferente do que se observa na Zona Sul, a Barra da Tijuca é uma região da
cidade que não pode ser ignorada enquanto relevante espaço de elaboração de valores e estilos de vida de uma
elite que, no entanto, possui contornos bastante particulares, relacionados a ascensão social. Para uma discussão
mais aprofundada sobre ethos “emergente”, Cf. LIMA (2007).
79
órgãos governamentais. De acordo com tais representações, no limite extremo, a Zona Sul se
resume aos bairros Ipanema e Leblon, com restritas extensões ao Jardim Botânico, Lagoa e
Gávea.
Dessa forma, é possível perceber que, mesmo dentro da região simbolicamente mais
classificam em uma escala mais ou menos valorativa, o que impede que a Zona Sul seja vista
como tendo uma representação única, estática e uniformizante. Dessa forma, é possível fazer
um estudo em diferentes bairros de uma mesma região ciente que, apesar de certas
aproximações que as ligam, muitos são os afastamentos que devem ser levados em conta.
Foi seguindo tal concepção não oficial, mas oficiosa, do que se entende por Zona Sul
que selecionei os bairros e seus respectivos salões de beleza de acordo com o público a que eu
gostaria de ter acesso: Ipanema como o bairro “chique”, Botafogo como o bairro “classe
No entanto, estou ciente de que qualquer forma de classificação dos três salões em
discussão não deixaria de ser arbitrária nem tampouco estaria isenta de minha própria
aparência dos salões de beleza. Ao seguir tais imagens valorativas sobre os diferentes bairros
Além do fato de serem localizados na Zona Sul da cidade, outro ponto em comum
aproxima os três salões investigados. Refiro-me ao fato de todos serem lojas de rua, ou seja, a
calçada pública é sua principal via de acesso. Não se encontram em locais reservados como
no interior de galerias comerciais, shopping centers ou hotéis. Pelo contrário, dividem espaço
lado a lado com prédios residenciais, estabelecimentos comerciais os mais diversos, hospitais,
Porém, tal escolha não se deu aleatoriamente ou por coincidência. Era intenção minha
estudar aqueles tipos de salões que se aproximassem dos formatos mais “tradicionais”. Em
outras palavras, não queria que fossem salões de cadeia (franchising - com ambiente físico e
54
processos padronizados) nem salões com formato atípico (salões de beleza caseiros ou
trabalho (casos de auxiliares de limpeza ou de cozinha que, nas horas vagas do almoço, fazem
salões-escola. Espaços voltados para a oferta de apenas um tipo de serviço de beleza, como o
54
Refiro-me àqueles tipos específicos de salões, comuns nos subúrbios da cidade, cujas atividades de beleza são
desenvolvidas informalmente em um ou mais cômodos de uma residência. Atualmente, tal formato também se
tem feito presente nos bairros mais desenvolvidos. Conhecido pelo termo “salão studio”, trata-se de cabeleireiros
que fazem uso do próprio apartamento para receber sua clientela. Geralmente, a sala de suas residências é o
ambiente que se transforma em salão, recebendo o mobiliário adequado para tal prática, como cadeira regulável,
espelho de parede e lavatório.
81
Também fez parte do recorte desta pesquisa excluir salões de beleza segmentados por
idade (salões infantis), gênero (barbearias) ou tipo de cabelo (salões “étnicos” especializados
recorrência de dois tipos de resposta. A primeira e mais imediata era dizer que salão de beleza
se encontra em “qualquer lugar”, “qualquer esquina”, “todo canto da cidade”. Interpretei tal
generalização feita pelos respondentes como uma forma de verbalizar o quanto a presença de
Salão é igual farmácia, padaria, você encontra em toda esquina. Igual pet
shop e boteco no Rio, toda rua tem um. (Inês, assistente de edição)
Eu acho que eles estão em todos os lugares. Porque é uma coisa que todo
mundo quer ir. Todo mundo quer fazer depilação, fazer unha, fazer tudo.
Então eles vão ter sempre público. Acho que eles estão cada vez mais se
espalhando e tem público para isso. (Fabrícia, trainee)
pergunto o inverso, ou seja, em quais locais não se encontram, as respostas convergem para
pessoas realizam um movimento de afastamento, que pode ser lido enquanto uma separação
entre esferas consideradas “puras” (como infância e religião) e “impuras”, como o salão de
beleza, envolto por representações negativas como vaidade e fofoca (DOUGLAS, 1966).
identificar nos discursos uma distinção entre cidades grande e pequena, que se reflete no grau
de vaidade esperado desses respectivos dois tipos de mulheres. Acredita-se que no interior as
82
oportunidades de encontro e espaços para sociabilidade não apenas são reduzidos, como
exigem um menor controle sobre a aparência pessoal, uma vez que se trata de um estilo de
vida mais “simples”, nas palavras dos entrevistados. Daí a menor presença de salões de
beleza.
encontram salões de beleza era shopping center. Quando percebi que muitas pessoas faziam a
mesma correlação, tentei aprofundar um pouco mais o tema para entender tais aproximações.
Compreendi então que shopping não apenas era visto como um local alternativo à tradicional
localização dos salões de rua, especialmente pelo fato de serem ambos locais de grande
55
Como referência para uma discussão sobre formas de sociabilidades em shopping centers, Cf. FRÚGOLI JR.
(1990).
83
comparação à sua presença pelas ruas da cidade. Porém, uma parte interessante da citação
em que haja circulação de dinheiro. Foi muito comum em minhas andanças pelos mais
alarmes ou portas automáticas que só se abriam aos clientes mediante permissão das
recepcionistas.
Em dois dos salões em que realizei etnografia, havia segurança particular. No caso de
Ipanema, eram exclusivos do salão e se posicionavam à sua porta, cobrindo todo o expediente
No salão do Catete, por outro lado, o único tipo de segurança com a qual se podia contar
era a pública. Especialmente pelo fato de haver um batalhão da polícia militar no início da rua
era comum a cena de policiais passando de carro em frente ao salão com suas metralhadoras
visivelmente para fora da janela ou abordando certos meninos que costumavam circular de
Salões de beleza certamente são sentidos como lugares mais seguros do que bancos, por
exemplo. Todavia isso não os isenta de serem assaltados (como no caso de um salão em
arrastão que ocorreu na rua. Era época de Natal e um bando de aproximadamente trinta
homens armados, em plena luz do dia, passou pela rua assaltando pedestres, arrombando
A ação não durou mais que 20 minutos. Em desvantagem, o vigia da rua apenas pôde
avisar aos estabelecimentos do final da rua para fecharem as portas. O salão de Botafogo não
84
foi invadido, pois naquela altura da rua o bando já havia se dissipado e deixado o local. No
entanto, mesmo tendo sido informada sobre o ocorrido, nunca me senti insegura no salão de
Botafogo.
A única experiência negativa que vivenciei mais próxima a uma situação de insegurança
foi no salão do Catete. O controle sobre a entrada de pessoas era quase nulo, o que certa vez
permitiu a entrada de um rapaz descalço com roupas sujas e rasgadas. Sua aparência não se
assemelhava à dos freqüentadores do salão. Trazia nas mãos um par de sandálias de criança
Como eu estava sentada muito próxima à porta de entrada, fui a primeira pessoa que ele
sandálias. Ninguém do salão fez nada. Assustada, recusei diversas vezes a oferta e agradeci. O
rapaz persistiu e ainda insinuou que eu era tão bonita quanto o objeto que tentava vender.
Cortei o contato olho a olho e imediatamente passei a ignorar sua presença. A atitude
surtiu efeito. O rapaz foi fazer o mesmo com outras clientes e se mostrava cada vez mais
sete minutos aproximadamente, sem que ninguém tivesse inibido sua atividade.
Não sei se pedir que se retirasse poderia acarretar algum tipo de problema e por isso as
pessoas ali dentro optaram por ignorar sua presença. Fizeram o mesmo com o evento que
acabara de acontecer: após a saída do rapaz, as pessoas continuaram suas atividades como se
nada houvesse ocorrido, sem tecer um único comentário a respeito. Optei por seguir a mesma
No entanto, para mim foi uma experiência bastante desconfortável. Senti-me vulnerável
em um ambiente que, a princípio, eu era conhecida pelas pessoas, mas que eu poderia me
tornar uma “estranha” no caso de uma situação adversa onde a segurança dos outros
indivíduos também estivesse em jogo. Ou seja, a ameaça de violência era capaz de colocar em
85
Considero-a interessante exatamente por aquilo que se define como seu inverso. Ou seja, o
que classifica um salão como não sendo “de bairro”, uma vez que todo salão se encontra
localizado em um?
Dessa forma, mais tempo de convívio se mantém entre as pessoas que trabalham no salão e os
imagem que se faz do salão de bairro é a de um salão pequeno, que oferece os serviços mais
tradicionais, como manicure e cabeleireiro, e que mantém um tipo de relação mais pessoal
com seus freqüentadores. Ao contrário dos formatos de salão mais atuais, nos quais as
Destaco um trecho bastante ilustrativo de tal relação, verbalizado por Inês, uma das
entrevistadas:
86
Aproveito uma menção na fala de Inês para introduzir outro tema: o do salão de beleza
enquanto vitrine. A grande maioria dos salões pelos quais passei possui, pelo menos, algum
elemento de vidro em sua fachada - quando a fachada não é toda em vidro - o que permite, da
rua, ter acesso visual ao interior do salão 56. Mas o que a transparência do vidro torna visível e
Uma das primeiras sugestões é que tal transparência torna explícito um duplo processo
característico de salões de beleza: eles se apresentam não apenas como bastidor, mas,
56
Richard Sennet (1988:183) localiza nas últimas décadas do século XIX o nascimento de um novo movimento
entre as grandes lojas de departamento: começam a trabalhar o caráter de espetáculo de suas empresas por meio
do recurso das vitrines, fazendo uso de decorações cada vez mais elaboradas enquanto apelo para a sedução ao
consumo.
87
É nesse sentido que a visão se torna um dos sentidos centrais para compreender os tipos
de relação que se desenvolvem no ambiente público dos salões de beleza. Muitos pensadores
chamaram atenção para a preponderância do olhar, com destaque especial para Benjamin
(1985) e Simmel (1908). Este último atribui à grande cidade a causa desta preponderância, em
função dos múltiplos estímulos que a constituem. Alguns pensadores chegam mesmo a
camada de vidro é a única coisa que separa o salão do mundo da rua, tornando embaçados os
profissionais certa naturalização desta situação de relativa exposição. Para algumas clientes
que entrevistei, a interação dentro do ambiente do salão é tão grande, as atividades absorvem
de tal maneira suas atenções, que afirmam esquecer que existem transeuntes do lado de fora
que, eventualmente, observam o que acontece lá dentro. O fato de compartilharem não apenas
um universo, mas práticas comuns é outro motivo que neutraliza de certa forma tal exposição:
Eu não vejo problema. Porque eu estou fazendo o que todo mundo ali
também está fazendo. Não estou deslocada. Eu estou lá fazendo a unha. Se
eu estivesse fazendo depilação no meio de todo mundo, aí eu me sentiria
deslocada. Eu me sinto à vontade, mesmo sabendo que pode ter gente lá fora
que vê. (Nazaré, estatística)
57
Sugestão de Evgen Bavcar, filósofo franco-esloveno em entrevista para o jornal O Globo. Cf. NAME (2003).
58
O mesmo tem se observado em academias de ginástica, onde também é possível ver os corpos sendo
manipulados por meio de exercícios físicos.
88
No entanto, existe quem se incomode com a situação. Uma das entrevistadas chega a
comparar a exposição pela vitrine do salão com aquela também observada em algumas pet
shops, onde é possível enxergar através do vidro os serviços de lavagem e secagem de cães e
gatos. Sendo assim, é levantada a possibilidade de os salões de beleza terem suas fachadas
devassadas como uma forma de exposição dos aspectos tangíveis do serviço oferecido; como
estabelecimento: - “O tipo de gente que freqüenta. Se é mais mulher, mais homem ou criança.
coletivo de práticas, quanto um momento íntimo de contato com o próprio corpo. Momento
este que, para alguns clientes, é algo que deve ser reservado e pessoal 59.
Para mim nada é muito natural, nada é muito confortável. Isso porque você
está pedindo para outra pessoa fazer um trabalho que vai ser um processo
tenso. E também tem a coisa de você não querer ficar exposta ali na vitrine,
então você reza para não ter ninguém conhecido por ali.
Dentro do salão?
Dentro ou então que passe na rua e fale: - “Eu te vi no salão!”
Por quê?
Eu não quero ninguém participando desse processo, nem namorado nem
ninguém. É um momento muito específico, você está em uma tensão com o
seu cabelo, pois alguém está mexendo nele e você já tem problemas com
isso. Então você não pode se distrair. Eu acho que não é para ser visto. É
quase que nem depilação, não é para ninguém ver o processo, só o resultado
final. Pelo menos eu sempre procuro o lugar mais reservado do salão. Não
quero que ninguém me veja de cabelo molhado.
E qual o problema de te verem de cabelo molhado?
Por que eu tenho pouco cabelo. Eu fico parecendo um Bambi. Fico muito
carequinha. Não é toda pessoa que fica bonita de cabelo molhado. (Inês,
assistente de edição)
59
Para uma discussão sobre o tema da reserva e da privacidade, no sentido de manter a sociedade à distância por
meio de uma busca por espaços íntimos Cf. ELIAS (1933), MORAES (1994), ARIÈS & DUBY (1991).
89
Por fim destaco um último assunto também relacionado com a questão da localização.
acesso são capitais para a escolha de um salão em determinado ponto, embora não sejam
pedicure.
Já quanto aos cabelos, tal tendência se torna mais frouxa. Existem muitos clientes que
se dispõem a se deslocar por distâncias consideráveis para poderem ser atendidos por um
cabeleireiro específico. O caso mais extremo a que tive acesso foi o de uma cliente que
mensalmente viaja 140 km de Arraial do Cabo, onde reside, até a cidade do Rio de Janeiro
Também conheci muitas clientes que, embora já tivessem se mudado há tempos para
outra localidade, mantiveram o hábito de freqüentar o salão de beleza de seu antigo bairro, a
que estavam acostumadas. Dizem ter criado um vínculo com o lugar ou com alguns dos
Manter um cliente fiel a um salão requer certo esforço, especialmente quando tal fidelidade se
encontra associada ao profissional, dado o risco de ele se mudar para salões concorrentes ou
pesquisa para o mestrado. Reproduzo tal fala, um pouco forte, mas ilustrativa, de como tal
relação pode ser sentida por parte do profissional: - “Adoro vovó. Essas meninas novas são
90
tudo piranha. Elas pulam de salão em salão. As vovós não, elas são fiéis, me acompanham
Foi possível perceber uma diferença entre os salões do Catete e de Ipanema no que se
refere à fidelidade dos clientes. Observo pouca preferência por profissionais específicos, no
caso do primeiro salão. As pessoas chegam e logo são encaminhadas para o profissional que
estiver desocupado (existe um sistema de “vez” que controla a distribuição dos clientes entre
os profissionais para que não seja feita de forma desigual). No salão de Ipanema é
praticamente impossível ver uma pessoa chegar ao salão e não saber por quem será atendida,
Finalmente encontrei uma manicure que faz as unhas do jeito que gosto e até hoje freqüento o
salão como cliente, estritamente. Embora acredite que nunca mais conseguirei entrar em um
60
Não consegui identificar em minhas investigações de campo uma relação tão direta entre idade e fidelidade, tal
como sugerida pelo cabeleireiro. Observei mulheres de diferentes faixas etárias seguirem os profissionais que
gostavam por diferentes salões.
91
Chicago, uma das primeiras preocupações que se deve ter ao fazer pesquisa de campo em
organizações comerciais voltadas para serviços é descobrir, pelo menos de uma maneira geral,
que tipo de estrutura possuem e que problemas humanos são encontrados nesses lugares.
sua organização interna, hierarquias e distribuição de papéis, mas, sobretudo, buscar os usos e
Dessa forma, podemos dar início a tais considerações começando pela análise dos
salões de beleza a partir daquela que se mostra sua característica mais evidente. Refiro-me ao
Pude identificar na fala de alguns profissionais de beleza com os quais tive contato,
de Botafogo diz com indignação: - “Você acredita que muita gente diz na nossa cara que
menos de um ano que foi aprovado o Projeto de Lei 6960/06 que regulamenta as profissões de
higiene 62.
61
A leitura de trabalhos sobre organizações sociais voltadas para comércio ou serviços foi essencial para o
desenvolvimento de muitas das análises contidas ao longo desta tese. Destaco, em especial, os trabalhos de
CAVAN (1966), MACHADO DA SILVA (1969), RIAL (2003) e SANTOS (1976).
62
Mais especificamente a aprovação do Projeto de Lei 6960/06 se deu no dia 12 de novembro de 2008. Fonte:
site da Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www2.camara.gov.br. Acesso em 16 jun. 2009.
93
Pelo projeto original, para exercer a profissão o profissional deve ter certificado de
nova lei, independentemente do grau de instrução, estão liberados para exercerem a profissão.
a salão de beleza no Brasil, aponta para algo muito além de uma mera negligência dos órgãos
legitimadores. Revela um processo mais amplo de não legitimação que mantém à margem
certas profissões que ainda carregam fortes estigmas relacionados a baixa escolaridade.
Profissões estas que, seguindo a sugestão de Goffman, podem ser encaradas como “carreiras
morais” (2001:42).
atividades ligadas a beleza exige um treinamento mínimo, tanto aqui como em qualquer lugar
do mundo. Entretanto, no Brasil, não há grandes exigências quanto à educação formal. Dweck
constata que o baixo grau de instrução é uma constante da força de trabalho brasileira, não
sendo exclusividade de tal segmento. Embora hoje em dia se venha observando uma maior
educação formal e a falta de legitimação médica, entre outros, são fatores que ainda impedem
Resgato uma frase dita por um cabeleireiro (BOUZÓN, 2004) que ilustra tal
ambiente fútil e envolto por fofocas atribuído aos salões de beleza, o que pode vir a marcar
negativamente os profissionais que constituem tal universo. Um segundo fator pode estar
relacionado à qualidade daquilo que é manipulado pela profissão. Em poucas palavras, restos
de cabelos, pêlos, peles e unhas são tidos como resíduos corporais extremamente poluentes
impureza.
Por fim, um terceiro fator deve ser considerado. Refiro-me a uma distinção valorativa
salões de beleza, por se aproximarem do campo das artesanias e práticas manuais, sofrem
pesquisa de campo. Por muitas vezes me peguei hipnotizada observando a destreza das
técnicas corporais adquiridas pelos profissionais do salão (MAUSS, 1934). Era como se
manipulados de forma tão particular, que mais pareciam coreografias encenadas. O modo
como os auxiliares lavam os fios de cabelos nos lavatório ou o rápido gesto de manicures
testando a afiação dos alicates na palma de suas próprias mãos são momentos excepcionais.
parecido com uma teia de aranha, que cai suavemente sobre a cabeça da cliente. Começa
então a brincar com as diversas formas e penteados possíveis, transformando o simples ato de
aprendidas por meio de cursos reconhecidos (a ponto de ser elevada ao patamar de “técnica”),
de Ipanema faz uma distinção ainda mais elaborada, ao correlacionar técnica e tempo de
execução do serviço.
Costumo levar até mais de uma hora cortando um único cabelo. Técnica é
tudo. A cliente chega em casa, lava, sacode o cabelo e o corte está lá. Quase
não tem manutenção. Alguns cabeleireiros daqui [refere-se ao salão em que
trabalha] ainda trabalham no estilo antigo: levam cinco minutos para cortar e
uma hora moldando o cabelo no secador. Antigamente era mais penteado.
Hoje é mais corte. (Rubens, engenheiro)
Uma rápida observação vale ser feita a respeito da questão sobre tempo, mencionada
na fala do cabeleireiro. Quando se trata de corte de cabelos, o processo costuma durar meia
hora, aproximadamente. Com tintura, esse tempo pode dobrar, em função da ação da química
sobre os fios. Um dos pontos que me chamou atenção no salão do Catete foi justamente o
não duravam nem dez minutos. O cliente mal sentava e logo já estava liberado. Ao contrário
do salão de Ipanema, em que a qualidade do serviço parece ser avaliada, entre outras coisas,
Voltando à questão das formas autônomas de aprendizado, ao longo dos relatos dos
profissionais de beleza sobre suas trajetórias de vida percebi que parte considerável delas se
amigos, até se tornarem profissionais. - “Toda manicure tem em comum o fato de, no passado,
terem tido o costume de fazer suas próprias unhas. Esse é o aprendizado”, diz Soraya,
alguns cabeleireiros e manicures era o fato de terem sido estimulados a entrar na profissão por
se dar tanto por uma indicação de vaga no salão em que trabalham (iniciar-se no ramo da
beleza por uma questão de necessidade, em casos de desemprego) quanto por uma questão de
63
tradição (casos de pais cabeleireiros que passam adiante o ofício aos filhos) . O papel
63
Para uma literatura sobre projeto, trajetória individual e campo de possibilidades, Cf. VELHO (1981 e 1994).
97
estagnação 64.
Tais resultados não deixam de ser um reflexo do interesse que a profissão pode vir a
despertar em muitas pessoas. A história de uma das manicures do salão do Catete é ilustrativa.
A profissional conta que veio da Paraíba para o Rio de Janeiro estimulada por uma amiga,
também paraibana, que fez o mesmo percurso e a convenceu que trabalhar como manicure na
cidade “dava muito dinheiro”. Resolveu fazer um curso em sua cidade-natal para então vir em
relacionada às suas carreiras em salões de beleza eram fontes valiosas para apreender
estruturado.
Para outros, uma mudança de atividade. Psicólogas que se tornam esteticistas, professoras que
aos finais de semana trabalham como manicure, instrumentadores cirúrgico que ao cortarem
os cabelos de colegas de trabalho com bisturis descobrem uma nova vocação, donas-de-casa
cujos maridos as abandonam com filhos pequenos e encontram na atividade de manicure uma
porta de entrada no mercado de trabalho... Os exemplos são muito variados, mostrando que os
turning points (HUGHES, 1952) que levam à iniciação em uma profissão dependem, em
grande medida, das respostas dadas por cada indivíduo aos acontecimentos que incidem sobre
sua vida.
Embora o treinamento formal seja exigido por lei e cumprido por boa parte dos profissionais,
64
Ver tabela I em anexos. Fonte: Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e
Cosméticos. Panorama do setor 2008-2009. Disponível em: http://www.abihpec.org.br. Acesso em 23 jul. 2009.
98
não é o conhecimento padronizado aprendido nas aulas práticas ou apostilas de formação. Diz
da estética e da sociabilidade.
eventual exposição na mídia, atrativas propostas de trabalho por parte de outros salões ou
mesmo o início de carreira enquanto dono de seu próprio salão. Sendo assim, a possibilidade
salão de beleza (tendo como exemplos mais ilustrativos cabeleireiros do salão de Ipanema,
como também de definição de uma nova identidade profissional que aos poucos se afirma.
Por vezes, o emprego em salão de beleza pode representar muito mais do que uma
atenção porque nunca estava uniformizada, mas era possível perceber que trabalhava no salão,
menos pela freqüência de serviços a ela demandados e mais pela intimidade que tinha com os
outros funcionários. Além do fato de lá passar o dia lendo revistas, jornais e, eventualmente,
embora já estivesse aposentada, todo dia sem exceção ia para o salão. O dono havia feito um
acordo com a antiga funcionária, que não consista em uma contratação formal, mas ela teria
liberdade de fazer uso do espaço, como sempre o fez, para atender as poucas clientes que
99
ainda a procuravam. Não ganhava um salário, mas uma comissão sobre os serviços prestados.
Ela vem porque é muito sozinha. Não é casada, sente-se muito sozinha em
casa. Ela tem Alzheimer, mas não se trata. Aqui é um lugar para ela se
distrair. Se a gente fala para ela procurar um médico para tratar sua doença
ela manda a gente para aquele lugar. Às vezes ela dá uma desligada do
ambiente por causa da doença. (Isaura, manicure)
salões de beleza. Um breve parêntese merece ser feito a fim de contextualizar a discussão
sexuais de forma a evitar que novas formas de rotulação e marginalização sejam instituídas, a
preferência por parceiros do mesmo sexo, no Brasil, costuma ser vista predominantemente em
Internacional de Doenças o Código 302.0, que até então definia a homossexualidade como
1999, através da edição da Resolução CFP nº 01/99, a colaboração de qualquer psicólogo com
eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades (ROCHA, 2007).
sujeito político do movimento, manifesta nas atuais siglas GLBT ("gays, lésbicas, bissexuais,
travestis e transexuais"), GLS ("gays, lésbicas e simpatizantes") ou HSH ("homens que fazem
sexo com homens"), a fim de ampliar o potencial de inclusão de diferentes sujeitos nas
Sobre o movimento gay no Brasil, vale destacar que começou a se organizar entre o
final da década de 1970 e o início dos anos 1980. Nessa época, não somente este, mas outros
movimentos sociais se articulavam pela defesa da cidadania e pela luta por direitos civis. O
fim da ditadura militar fazia surgir um sentimento de otimismo que possibilitava sonhar com
uma sociedade mais democrática, igualitária e justa. Trazia para o movimento gay a esperança
Apesar de todos os esforços para que a categoria “homossexual” não seja apropriada
Uma vez que o humor é um canal comumente utilizado para fazer comentários de
assuntos tabu que, em outros contextos de enunciação poderiam ser tomados como insulto
para compreender a dimensão depreciante que tal profissão carrega. Reproduzo algumas que
homofóbica.
Piada 2
Você sabe quais são os cinco animais que uma mulher precisa para ser totalmente feliz?
Um gato na cama, um veado no cabeleireiro, um vison no guarda-roupa, um jaguar na
garagem e um burro para pagar.
Nos três salões trabalhados durante a pesquisa de campo, percebi diferenças quanto à
distribuição por gênero e orientação sexual dos funcionários. No salão de Ipanema só existe
102
uma única mulher cabeleireira. O resto da equipe é toda constituída por homens, sendo a
65
maior parte, senão todos, homossexuais . Quanto ao salão do Catete, não parece haver
a presença de profissionais homens não se dá sem que haja uma negociação de performances
de gênero (BUTLER, 2003:200). Não desconsidero a percepção da maior parte das pessoas
das preferências sexuais em jogo, é possível observar que os profissionais do sexo masculino
que trabalham nesses ambientes, por muitas vezes, adotam trejeitos afeminados, o que
65
É oportuno aqui esclarecer que as categorias “homem”, “mulher”, “homossexual”, “heterossexual” ou
“metrossexual” utilizadas nesta tese não devem ser lidas sem deixar de considerar a arbitrariedade de tais
classificações. Por vezes, trata-se de reproduções de categorias empregadas pelos próprios entrevistados. Por
outras, emprego meu próprio universo de referência para dar conta de situar os sujeitos no que se refere às suas
orientações sexuais, tendo sido tais orientações, em alguns casos, explicitadas pelos próprios indivíduos em
questão (como o caso de cabeleireiros homens que se revelam casados entre si ou deixam bem claro, ao longo de
nossas conversas, sua preferência por pessoas do mesmo sexo).
103
Tenho amigos cabeleireiros. Inclusive tem um que fala como bicha, mas é
homem. Acho que o ambiente, a profissão, a convivência com homossexuais
acaba influindo muito no jeito dele falar. (Fabiana, designer)
Não se pode também ignorar o fato de que o contato corporal entre homens e mulheres
pela legitimidade atribuída à ciência - nos casos de contatos corporais entre médicos e
pacientes. Logo, ser homossexual (ou parecer ser) sugere colocar em suspenso o risco
cliente conta ao dono do salão - que é seu cabeleireiro - que o seu marido passou a ter ciúmes
computador que o cabeleireiro havia dado. O cabeleireiro (alvo do ciúme), sua esposa (que
também trabalha no salão) e a cliente caem juntos na gargalhada quando a própria esposa do
cabeleireiro sugere que ele se faça passar por homossexual da próxima vez que o marido da
Outro fator que pode contribuir para a associação que se faz entre a atividade de
grandes estilistas.
No entanto, este trânsito por domínios diferentes do esperado para cada gênero não se
dá sem algum tipo de sanção. Não bastasse o estigma da homossexualidade, é esperado que o
104
sujeito em questão realize a atividade de forma mais eficiente do que costuma fazer o gênero
ao qual tal tarefa costuma ser atribuída. Uma vez que se trata de uma apropriação “indevida”,
Ao mesmo tempo em que não representa um perigo à cliente - pelo fato de não sentir
atração sexual pelo sexo feminino - o homossexual pode, por outro lado, representar uma
beleza” e os tipos restantes. Emerge a idéia de que homossexuais que trabalham em salão
costumam ser mais evidentes em termos de suas preferências sexuais, fazendo um uso
E quanto aos profissionais no salão de beleza do sexo masculino que não são
homossexuais? Como costumam ser sentidas tais presenças? Basicamente, são verbalizadas
Eu não fico constrangida, mas acho estranho. É que nem loja. Eu detesto
essas lojas que estão colocando vendedor homem. Lojas de sapato
principalmente. Eu não quero um vendedor homem para me atender. Eu
acho um estranho fora do ninho. (...) Tem um salão perto do meu trabalho
que tem um cabeleireiro homem, homem mesmo. Acho estranhíssimo. Eu
me sinto desconfortável. Porque eu acho que ele olha para a gente com olhar
de homem. Então eu não gosto da presença dele no salão. (Jordana,
promotora de eventos)
tipos de situação/ instituição (GOFFMAN, 1961). Mas se perguntar também o que faz do
salão de beleza uma situação de encontro social que exija uma atenção particular no que se
É necessário para o bom desempenho do seu trabalho o preparo técnico e uma correta
conduta profissional como:
- Ser educado, recepcionando bem o cliente;
- Ser comunicativo;
- Ser discreto;
- Ser organizado;
- Ter noção de estética;
- Praticar higiene pessoal;
- Manter sempre a aparência impecável (jaleco limpo, unhas e cabelos cuidados);
- Fazer assepsia do instrumento;
- Saber orientar a cliente através de sugestões;
- Demonstrar segurança no que faz;
- Ter bom relacionamento com os colegas, chefes e clientes.
Fica evidente a preocupação de instruir os futuros profissionais para aquela que talvez
seja uma das mais árduas tarefas inerente às suas profissões: relacionar-se com o outro a partir
de uma nova posição social. Posição esta que demanda mudança nos sentimentos de
delicadeza e sutileza, em que todo um esforço de contenção e controle corporal deve ser
empregado.
Porém, por mais enfáticas que sejam as orientações sobre comportamento, é difícil
conter os gestuais e os altos tons de voz tão característicos do ambiente de salões de beleza.
Observo que, mesmo no salão de Ipanema, onde tais regras costumam ser seguidas de forma
mais efetiva, cabeleireiros, coloristas e maquiadores conseguem fazer ecoar pelo imenso salão
suas gargalhadas e comentários efusivos, sobre os mais diversos assuntos. Apesar dos
esforços empreendidos pela dona do salão – no caso, uma empresa de consultoria é contratada
acontece nos bastidores do salão. Mais especificamente, na outra casa em que se localiza o
Nossa, você nem faz idéia. Rola muita baixaria, muito palavrão, quem
comeu quem... Ontem mesmo a cabeleireira estava em uma discussão
ensandecida com os outros cabeleireiros dizendo que tinha 60 anos e não
havia uma única celulite em seu corpo. Para provar ela arriou a calça ali
mesmo, no meio do refeitório. A gente morre de rir. (Alejandro, cabeleireiro)
generalizada são o que dão o tom ao ambiente dos salões, seja entre os próprios funcionários,
Para trabalhar em salão tem que gostar de lidar com o público. Isso porque
chega mulher chata enjoada e diz: - “Faz assim, faz assado”. Então tem que
ter paciência e bom-humor. Tem que gostar muito do que faz. (Rebeca,
auxiliar administrativa)
salão em que trabalham (BLACK, 2004:125). Ficam então restritas roupas “provocantes”
pesada ou perfumes muito fortes. Quando o controle sobre a própria aparência falha, muitas
especialmente aquele dos cabeleireiros em relação às manicures. - “Vira e mexe elas precisam
ser chamadas atenção por não estarem com batom, pela pele manchada sem base ou por causa
O tema que abordo a seguir, a princípio, pode parecer contradizer os pontos até então
Afinal, tal profissional possui técnicas e habilidades que poucas pessoas dominam,
além de um dos mais valiosos bens: o segredo de um bonito cabelo. Tanto que muitos usam o
termo “consultor de beleza” ao invés de “cabeleireiro” para definirem suas atividades. Nas
tirarem férias por muitos dias seguidos, tendo que parcelá-las durante o ano: - “Senão as
mulheres vão à loucura”, explica o colorista Francis do salão de Ipanema. O valor mais
são outros indicativos de tal valorização. Quanto às profissões ligadas a outras partes do corpo
Pude perceber, em todos os salões investigados, uma disputa velada (ou mesmo
aberta) entre manicures e cabeleireiros. Uma manicure do salão de Ipanema é enfática: - “Os
cabeleireiros muitas vezes querem ser mais estrelas que as próprias estrelas que freqüentam
fazem uso de diversos recursos para se colocarem no centro das atenções. Manipulam a
atenção e conduzem as conversas de forma a sempre terem como emitir sua opinião pessoal
de gerenciamento de egos. Em certas situações, mesmo tendo sido eu a pessoa a iniciar uma
110
situação de conversação coletiva, tinha que ser muito cuidadosa para não parecer que era eu
quem conduzia a conversa ou para não dar mais atenção a uma cliente ou outro profissional
em detrimento do cabeleireiro ou colorista. Era ele quem deveria ser o dono da situação,
especialmente quando o espaço em questão era sua sala pessoal ou a parte do salão
Nos outros dois salões investigados essa disputa entre cabeleireiros e manicures
também era expressa. Os relatos sempre chegavam a mim de forma espontânea. - “Os
cabeleireiros são as estrelas do salão. Nós somos a ralé. Nós somos humildes. A gente tem
cliente, mas não ‘se acha’”, diz uma das manicures do salão do Catete. Outra manicure, do
salão de Botafogo, inverte tal hierarquia colocando a questão da confiança e da lealdade como
superior às manicures. Destaco alguns trechos em que a distância entre tais profissões se
uma coisa meio rebaixada. (...) Por último seriam as meninas que servem
bebidas. Tem mais alguém no salão que eu esteja esquecendo?
Tem a faxineira.
É tem a faxineira, que normalmente é a menina que serve a bebida. (Jordana,
promotora de eventos)
Porém, não são apenas disputas entre manicures e cabeleireiros o que se encontra em
salões de beleza. Fricções também ocorrem entre profissionais que desempenham a mesma
atividade. Muitas foram as cenas de ciúmes, deboche ou intriga que presenciei. Confesso que
me divertia em algumas situações, como uma vez que ouvi dois assistentes de cabeleireiro do
salão de Ipanema comentando entre si sobre a escova recém feita nos cabelos de uma cliente
por uma escovista rival: - “Parece a Farrah Fawcett”, diz um dos assistentes, referindo-se ao
responde: - “É, essas ondas eram lindas... mas na década de 70”. Os dois riem ironicamente.
profissionais do salão. Alguns se sentiam menos privilegiados por ainda não terem sido
“entrevistados” por mim. O caso extremo se deu no salão da Central. A manicure conta que,
pelo fato de no último atendimento termos ficado muito tempo conversando, as outras
manicures sentiram ciúmes e levaram tal questão para a reunião quinzenal que a dona do salão
112
costumava ter com a equipe. Porém, felizmente em nenhuma das situações vividas o ciúme
coloração especial quando o lugar em questão é o salão de beleza. O próprio dono do salão de
profissionais também é compartilhada pelas próprias pessoas que trabalham nesse tipo de
ambiente. Chiara, manicure do salão do Catete, associa tal clima de disputa por se tratar de
muitas mulheres compartilhando o mesmo espaço. Diz: - “Homem, se estranhar com outro
resolve logo na porrada, na hora, e fica tudo bem. Ou até mata. Já mulher não, elas ficam
Outro tipo de conflito que também se coloca é aquele que se dá entre funcionário e
patrão. Curiosamente, tal questão foi muito mais levantada nas falas dos próprios donos de
salão do que pelos funcionários. Muitos reclamam da dificuldade de lidar com as diferentes
alguns donos de salão sentem certa dificuldade em delimitar os limites hierárquicos que
devem ser respeitados. Uma das sócias do salão de Botafogo conta sobre sua divergência com
a equipe de manicures: - “Não posso me igualar a elas. Manicures não têm instrução. Por isso
113
aprendi a ficar na minha, no meu canto, sem brincar muito, sem dar intimidade, porque senão
Administração de conflitos
aqueles que se dão entre os próprios clientes ou entre estes e os prestadores de serviço.
Incontáveis foram os relatos a que tive acesso, como o de duas clientes que foram para a
calçada em Copacabana para bater boca por motivo da presença do cachorro de uma delas
dentro do salão.
recepcionista, pois achou que ela ria e comentava sobre ele com outra funcionária - situação
essa que não passou de um grande mal entendido, uma vez que a recepcionista era estrábica, o
que fez parecer que estava olhando para o cliente quando, na verdade, conversava sobre outro
assunto.
mais conflitos do que o tempo de espera. Ser prontamente atendida é uma forma
respeitada. Uma cliente do salão do Catete reclama por não ser atendida no horário marcado: -
“Poxa, injustiça isso. Sou cliente há tantos anos!”. Detalhe: o salão foi inaugurado há apenas
alguns meses.
É extraordinário observar a encenação que muitas clientes fazem para mostrar que
estão impacientes e desejam ser atendidas depressa: levantam da cadeira, suspiram alto, vão
realmente não valesse à pena esperar, muitas não continuariam ali até serem atendidas. As
expectativa da clientela ao falar que a manicure está quase terminando, oferecendo uma
O caso mais extremo, relacionado a tempo de espera, ocorreu no salão do Catete. Uma
cliente, insatisfeita porque a manicure ainda estava fazendo a unha de outra cliente (que havia
que estava sendo atendida, proferindo indiretas para que a cliente responsável pelo atraso
ouvisse. Esta respondeu às provocações dando início a uma discussão que culminou com o
- “Ei, fica calma minha filha, você está muito nervosa, está precisando é
gozar.”
manicure, além dos “bifes”, muitos são os relatos sobre clientes que borram a unha minutos
depois de ter sido pintada ou pedem para trocar a cor do esmalte após a profissional já ter
costumam ser mais difíceis de serem reparados. Cabelos que caem por não agüentar a química
empregada, rolinhos que se emaranham nos fios, cortes que não ficam exatamente iguais ao
No salão do Catete havia um taxista que toda vez dizia ao final do serviço que não
havia gostado do corte, mas sempre voltava para cortar no salão, com o mesmo barbeiro. No
salão de Ipanema também pude presenciar a situação de uma cliente que voltou no dia
115
seguinte para refazer o corte, pois não havia gostado. Também insatisfeita com o segundo
corte que fazem em seus cabelos, ela se tranca no banheiro por um tempo, enquanto a gerente
Outro tipo de situação a que se está exposto no salão de beleza é o furto de pequenos
excepcionalidade com o qual tais situações foram narradas tanto pela gerente quanto por um
dos cabeleireiros, como se o fato de se tratar de um público com situação econômica bastante
Todas estas situações citadas fazem parte daquilo que muitas das pessoas com as quais
conversei definem como “lidar com o público”. Quando pergunto à Fabrícia (uma das clientes
entrevistadas) qual profissão relacionada a salão de beleza escolheria, caso tivesse que optar
por uma, ela pergunta rindo se pode ser nenhuma. Pergunto o porquê da resposta e Fabrícia
justifica dizendo que “todas devem ser muito desgastantes, justamente por ter que lidar
diversas vezes servi como ouvido para os desabafos de manicures e cabeleireiros em relação a
clientes que os tiravam do sério. No caso de cabeleireiros, reclamam de clientes que choram
quando cortam o cabelo de maneira que não as agrada, ou que trazem uma foto de quando
eram jovens na esperança de que o profissional as faça voltar no tempo por meio de um corte
algo que “não cabe ao tipo de cabelo que possuem” é sempre um problema para cabeleireiros
e coloristas.
Já o terror das manicures são clientes com unha encravada ou as conhecidas por “pé de
festa”, expressão usada para indicar aquelas que só vão ao salão em época de Natal, dia das
116
mães ou aniversário de casamento: - “Elas querem que a gente faça milagre, que deixe lisinho
Uma tarde, neste mesmo salão, as manicures se juntaram para traduzir para mim os
diversos termos que usam como código entre si para falar sobre suas clientes ou outros tipos
de situação que não cabe abrir ao conhecimento público. Reproduzo os termos que me foram
ensinados:
- “Aguarde seu momento (porque o meu chegou)” – utilizado para as colegas de trabalho
invejosas.
- “Só Jeová dos exércitos mais povo de Israel” – quando a situação ou a pessoa é demais,
beira o insustentável.
- “Ebó mal despachado” – pessoa mal amada que vem para a cadeira da manicure “ebosar
nossa mente”, nas palavras das informantes.
- “Nunca nesse Brasil” – indica não querer fazer certo serviço ou atender certo cliente.
- “Embrulha e manda” – significa não demorar com o cliente porque ele é chato.
- “Não tem akwê” – gíria de umbanda para dizer que o cliente não tem dinheiro.
- “Brilho” – nome dado ao profissional que fez todas as fichas do dia; aquele que consegue
atender mais clientes.
beleza, cabe agora voltar nossa atenção para outros atores que compõem tal universo. Refiro-
me aos clientes.
“Quem freqüenta salão de beleza?” Quando fazia essa pergunta, as respostas mais
imediatas que costumava receber eram: “qualquer pessoa”, “todas as pessoas”, “pessoas
117
comuns”. No entanto, eu precisava entender melhor quem era “todo mundo”. Na tentativa de
tornar tais definições mais inteligíveis a mim, os entrevistados trouxeram à tona um sistema
destacaram nas falas das pessoas com quem conversei. Justamente por terem sido acionadas
com maior recorrência para definir freqüentadores de salões de beleza, fiz uso de tais
variáveis como mapas, que ajudaram a guiar minha análise. Não foi minha intenção operar
com nenhuma definição rígida de gênero, classe ou idade. Ou mesmo esperar que tais
variáveis, por si só, dessem conta de tornar apreensíveis os diferentes matizes que compõem o
A proposta é que tais variáveis sejam úteis à análise à medida que lançam luz sobre
discussões mais gerais. Dessa forma, mediados pelas lentes de suas posições de classe, gênero
etc., os entrevistados mostraram como o salão de beleza não apenas produz uma gama de
experiências relacionadas a gênero, idade, classe etc., como também reforça a elaboração de
contexto das experiências das mulheres” (BLACK, 2004:7). Foi somente a partir de uma
orientação aparentemente simples como esta que pude ter acesso à chave de entendimento
118
para orientar minhas observações em campo, de modo a não me perder na seara de discussões
A tarefa inicial que me coloquei foi a mais elementar possível: observar como as
variáveis de gênero se constroem nos espaços dos salões de beleza. Feito isso, uma das
primeiras características que chamou minha atenção foi o fato de que as mulheres são maioria
comum. Tal diferença leva a sugerir que quanto mais elevado o estrato social para o qual o
participação masculina no universo dos salões de beleza, esse continua a ser simbólica e
sociabilidade que sugerem uma “cultura” feminina distinta da esfera de ação dos homens, que
À primeira vista, um salão de beleza pode gerar certo estranhamento. Seu ambiente
rodeado por espelhos e cadeiras enfileiradas mais parece uma fábrica de fazer mulheres ainda
mais mulheres, no sentido de femininas. Mas quem são as “mulheres” a que me refiro, tendo
em vista que o termo não denota uma identidade comum ou estável? O que se está falando ao
fazer referência a gênero? Como essa variável se articula com outras dimensões? Ou, ainda,
que ideais de feminilidade estão sendo elaborados nos espaços dos salões?
66
Uma vez que a discussão sobre gênero é muito rica e vasta, seleciono alguns trabalhos cujas leituras considero
mais que estimulantes para pensar o tema no campo investigado: BUTTLER (1990 e 1997), FOUCAULT
(1985), MOORE (1999), SIMMEL (1944), STOLCKE (1992) e VALE DE ALMEIDA (1995).
119
Sobre tais questões, Paula Black lembra que, apesar da posição de gênero, a mulher
também pertence a outras estruturas sociais objetivas. Que ela também se move por diversos
campos e acumula uma variedade de capitais. Por todas essas razões, a mulher é capaz de
abraçar ou, igualmente, rejeitar uma feminilidade idealizada (BLACK, 2004:70). Dessa
Tal sugestão se torna mais fácil de ser compreendida quando levadas em consideração
reiteração para sua existência (BUTLER, 1990). Podendo gênero ser compreendido enquanto
ato e performance que passam por atos corporais, os salões de beleza se colocam como
sujeitos investigados, a fim de perceber que outras noções são adicionadas à composição do
que é ser feminino ou masculino. Uma das entrevistadas tenta dar inteligibilidade ao fato de
Mulher vai muito mais a salão, certamente! Isso porque mulher tem essa
cultura da vaidade. Ela é cobrada por mídia, por família, por tudo. Isso é
cultural. A mulher tem que ser vaidosa. Ela tinha que estar arrumada, linda
para o homem, desde sempre. Então a mulher tem que estar bonita para o
mercado de trabalho, para o marido... Ela agora tem que envelhecer bonita,
não pode nem relaxar na velhice! Ela tem que ser uma velhinha gata. Enfim,
isso tudo é em função de beleza. (...) O salão dá uma coisa de segurança, de
auto-estima para a mulher. Eu acho que para o homem é mais no sentido de
resolver um incômodo. Por exemplo, o cabelo está grande, aí ele vai e apara.
(Inês, assistente de edição)
As mulheres têm uma relação mais próxima do salão. Os homens têm uma
relação assim: vou a qualquer lugar para cortar o cabelo curto e dane-se! Eu
acho que as mulheres vão em busca de tratamentos estéticos e de beleza.
Então quando a mulher vai ao salão ela acaba mais propensa a adquirir
outros serviços, a fazer uso de outras coisas, ela se interessa mais. Para os
homens é mais uma relação de resolver alguma coisa que tem que ser feita e
que, muitas vezes, não dá para fazer em casa. (Rubens, engenheiro)
O sexo feminino aparece aqui como o sexo, por excelência, ligado à noção de belo. A
vaidade entra em cena como um dispositivo que deve ser mantido em alerta constante para a
construção e manutenção dos atributos que constituem o belo. Sendo assim, o corpo da
mulher é visto como um corpo próprio a ser trabalhado nos detalhes (unhas, sobrancelhas
etc.). Diferente do corpo masculino, que deve buscar o salão de beleza como solução para um
“problema” pontual e rápido de ser corrigido, como por exemplo um cabelo que se encontra
Vaidade e feminilidade são dimensões tão próximas que o descuido da primeira pode
colocar em cheque a própria sexualidade da pessoa em questão. Lembro de uma situação que
se passa entre o colorista do salão de Ipanema e uma cliente que aparece em sua sala com a
raiz do cabelo com fios brancos por pintar. Extremamente incomodado com o descuido, o
profissional diz em tom de reprovação após sua saída: - “Um horror essa mulher. Uma
Apesar de fortemente associada enquanto atributo do feminino, nos últimos anos tem
sido possível observar uma crescente elaboração de discursos e práticas que tornam a vaidade
cada vez mais próxima do mundo masculino. Conhecido pelo termo “metrossexual”, é
identificado um novo perfil de homem que encontra nos produtos e serviços de estética
Para Vigarello, o princípio da igualdade mudou as relações dos sujeitos com seus
corpos. “A beleza, que não mais define gênero, pode ser cultivada e mesmo reivindicada pelos
121
relação aos serviços de manicure ou pedicure, não percebi uma procura muito grande por
parte de homens mais jovens. Os poucos que vi fazendo unha aparentavam ter acima de 40
anos e pertencerem a classes menos abastadas. No salão de Ipanema nunca presenciei a cena
de um homem tendo as unhas feitas, ao contrário dos outros dois salões investigados. Eles
solicitam que a manicure as lixe, cutile e, em alguns casos, que passe uma base incolor.
Fazer as unhas em salão não se mostrou uma prática muito difundida entre homens, o
que pode vir a levantar suspeitas em relação à sexualidade. Em minhas andanças por
Copacabana vivenciei uma situação ilustrativa. Em um salão na rua Prado Júnior, um homem
estrangeiro sentou ao meu lado enquanto aguardava ser atendido para fazer as unhas das
mãos. Aproveitei para puxar assunto. Como era um salão freqüentado pelas prostitutas da
região, na segunda ou terceira frase fiz questão de me identificar dizendo que era antropóloga
e estava ali a trabalho. Ele faz o mesmo logo após minha fala. Esclarece que não é “gay”,
homem, de meia-idade, que tinha seu cabelo cortado pelo barbeiro fez o seguinte comentário
a respeito de outro cliente homem, da mesma faixa etária, que era atendido por uma manicure:
Porém, embora certas práticas de beleza ainda sofram preconceitos de gênero, hoje os
homens são menos estigmatizados por freqüentarem salões. Não à toa que nos últimos tempos
tem sido possível assistir a uma gradual substituição das antigas barbearias por salões unissex.
O próprio termo “barbeiro” já se tornou pejorativo entres alguns profissionais do ramo, que
preferem ser chamados de cabeleireiros, mesmo que tal denominação venha às vezes
Cortes mais elaborados e modernos. Este é o principal motivo que leva cada vez mais
cada vez mais, se torna um lugar antiquado, freqüentado por gerações de homens que faziam
barba a lâmina e usavam tal espaço para a prática de sociabilidade. Um dos entrevistados
conta o estranhamento que sentiu quando deixou de ir ao barbeiro e passou a freqüentar salões
de beleza:
Sendo exceções que confirmam a regra, tive acesso a duas informações que caminham
na contramão desse processo de substituição das antigas barbearias. A primeira delas foi ter
descoberto, para minha surpresa, que três cabeleireiros do salão de Ipanema apenas cortavam
Eu corto meu cabelo em barbeiro. Porque ele tem noção de forma, não deixa
minha cabeça torta. Antes, quando eu morava no Flamengo, também cortava
em um barbeiro do bairro. Mas é barbearia mesmo, daquelas com revista
Playboy e Ela. Eu sentava na cadeira e o barbeiro logo jogava uma revista de
mulher pelada no meu colo. Não gosto de cortar com cabeleireiro, não gosto
de ter cabelo “estiloso”, “modernoso”, de quem freqüenta salão. Eu já
trabalho em salão, já sou cabeleireiro, não quero ter estampado na cara que
sou cabeleireiro, sabe? Aqueles cabelos super elaborados, com luzes loiras...
Não gosto. (Armando, cabeleireiro)
Algumas pessoas mantêm preferência por barbeiros, seja para fugir do estigma de
Na minha cabeça, homem que é homem vai ao barbeiro. Claro que eu tenho
consciência de que existem muitos homens que freqüentam salão. Em São
Paulo tem uma barbearia que é toda no estilo retrô, que é o point dos bulldog
crew, uma turma de caras com tatuagens old school que curtem carro antigo
e têm cachorros bulldog. Eles se reúnem nesse salão para bater papo. Não
entra mulher, é o cantinho deles, onde eles falam assuntos de homem. Ficam
dentro da barbearia durante horas conversando, marcam de se encontrar lá.
Já virou um bar, praticamente. Tem cerveja e whisky. Eles fizeram da
barbearia o “clube do bolinha” deles. É muito engraçada a relação desses
meninos com a barbearia, eles só deixam ir lá as meninas que eles querem
namorar ou as namoradas fixas, que passam lá só de vez em quando. Quando
um menino desses fala para a menina encontrar com ele na barbearia, é que o
negócio está ficando sério. Não é qualquer uma que vai lá. (Fabiana,
designer)
124
deixaram de despertar minha curiosidade. Havia uma em Copacabana que sempre me chamou
atenção, pelo fato de ser super discreta em uma rua tão movimentada como a Santa Clara. Um
dia decidi conhecer a barbearia de perto. Havia dois homens sendo atendidos. Um deles tinha
seus cabelos cortados e o outro as unhas feitas. Percebi que a manicure era a única presença
aproximadamente 40 anos, que pela atitude parecia ser dono ou gerente do salão, logo abriu a
manicure estaria disponível para fazer minhas unhas. Prontamente o homem me indicou um
salão na esquina. Como se não tivesse sido clara o suficiente, perguntei novamente se aquela
manicure da barbearia, em especial, não poderia fazer as minhas unhas. Mais uma vez o
homem me aconselhou procurar uma manicure ótima neste salão que havia indicado. Disse
Fiquei inibida em insistir pela terceira vez e fui procurar o salão indicado. Minutos
depois lá estava eu de volta, sendo mais uma vez atendida na porta do estabelecimento, ao
invés de convidada a entrar. Falei para o homem que não havia horário disponível no outro
salão e perguntei novamente se poderia fazer unha em sua barbearia. O homem falou que em
Como último recurso, decidi abrir o motivo de minha insistência. Falei que era
se interessou pelo meu estudo. Foi então que perguntei mais enfaticamente se os clientes
alguns espaços da cidade - tais como certas barbearias ou salões de beleza – são fortemente
marcados por uma sociabilidade intra-sexual. Não são todos os homens e nem todas as
mulheres que se sentem à vontade em compartilhar o mesmo ambiente com o sexo oposto
mulheres possam ficar fisicamente separados uns dos outros. No entanto, na maior parte dos
salões não existe tal segregação. Especialmente nos que tive a oportunidade de investigar, os
clientes pareciam à vontade em um ambiente misto. Com exceção de dois casos: uma senhora
clientes homens e, no caso do salão do Catete, um homem que uma vez abriu a porta do salão,
Entrou e comentou que nunca viu tanta mulher junta. Pareceu relaxar apenas quando atendido
pelo barbeiro.
Contudo, a maior parte das pessoas com quem conversei afirmou não se sentir
Quanto a casais que vão juntos ao salão de beleza, embora não seja comum, tive a
embora uma vez eu tenha presenciado no salão do Catete um casal de amantes (desconfiança
126
minha confirmada pela manicure) - enquanto a menina fazia manicure e ele aproveitava para
cortar o cabelo.
Nesses episódios de casais que vão ao salão juntos, pude observar que quando a
mulher não tinha nenhum serviço agendado para si, colocava-se ao lado para explicar ao
cabeleireiro como gostaria que fosse feito o corte no parceiro e acompanhava o serviço até o
fim. A cena parecia se confundir com a de mães decidindo sobre o corte dos filhos,
especialistas sobre o visual dos homens, seja na esfera familiar ou mesmo no ambiente de
Contudo, nem sempre ir com o cônjuge ao salão se revela uma boa idéia. Nino, um
rapaz com quem conversei no salão de Botafogo, conta a vez em que sua namorada pediu que
a acompanhasse ao salão. Quando deixam o estabelecimento a namorada diz que nunca mais
Um fato curioso que observei nos salões investigados é que, diferente do que fazem as
clientes mulheres, raramente os clientes homens puxam conversa com outros clientes
enquanto aguardam ser atendidos. Geralmente só conversam com o/a profissional que os
quando vai a salão não fica falando tanto quanto a mulher. Cabelo de homem sempre faz
rápido. Eles não ficam enrolando muito lá. A gente não, fica conversando durante horas!”
Quando tento explorar se existe diferenciação quanto ao conteúdo das conversas, mais
uma distinção com base em gênero é trazida à tona. Os assuntos de homem são tidos como
aqueles que giram em torno de esporte, família ou mulheres, enquanto os assuntos femininos
Pode até ser que haja certa recorrência de assuntos de acordo com o gênero em
encontros e desencontros amorosos - com especial atenção para o tema da traição - o que pude
observar em campo é que os assuntos são muito generalizados. Tanto homens quanto
são elaboradas. Ou seja, os próprios usos e significados que homens e mulheres atribuem aos
salões de beleza são capazes de revelar noções bastante particulares sobre gênero.
sentidos para o espaço do salão de beleza: refiro-me às noções referentes a idade 67. Apesar de
ter optado por manter as variáveis usadas pelas próprias pessoas entrevistadas, a sugestão que
67
Destaco o trabalho de três autores, em especial, que me ajudaram a relativizar a noção de idade: LINS DE
BARROS (1999 e 2006), ALVES (2004 e 2006) e ARIÈS (1978).
128
proponho é que as idades aqui mencionadas não deixem de ser vistas como construções
históricas e sociais, ou seja, como variáveis culturalmente produzidas que têm como
rituais, práticas e estilos de vida relacionados a períodos distintos da trajetória de uma pessoa.
Isto porque o uso do salão pelas mulheres varia de acordo com a idade e o momento no curso
de suas vidas. Ou seja, o tipo de tratamento procurado e a regularidade das visitas não
permanecem estáticos ao longo dos tempos. Como bem coloca Paula Black, não é possível
dizer como a passagem do tempo afeta o uso do salão, mas, em todos os casos, tempo é um
salão de beleza ou com que idade começaram a freqüentar, poucos souberam precisar
exatamente. Alguns se recordam apenas dos carrinhos de brinquedo usados como assento para
Seja para acompanhar as mães ou ter os cabelos cortados, desde cedo as crianças são
iniciadas no universo dos salões de beleza. Durante a pesquisa de campo observei a presença
68
de bebês recém-nascidos até senhoras de 92 anos . Entretanto, apesar de não existirem
restrições de idade para ter acesso ao ambiente dos salões, o mesmo não ocorre quanto aos
serviços ofertados: quanto menor a idade, maiores as restrições sobre o acesso a práticas
estéticas realizadas em salões de beleza (com exceção de cortes de cabelo). Embora isso não
impeça observar crianças muito novas de unhas pintadas, cabelos tingidos ou expostos a
privilegiados de observação. Era uma menina de sete anos, negra, magra e alta, de presença
68
Comparado aos salões do Catete e de Botafogo, no salão de Ipanema a freqüência de crianças, adolescentes ou
pessoas muito idosas é pouco comum. Acredito que, tal como ocorre com gênero, quanto mais sofisticado um
salão de beleza, maior a segmentação por idade.
129
encantadora. Usava óculos de grau, cabelos compridos ondulados e, pelos detalhes das roupas
A mãe conta que a filha adora salão de beleza, mas quando vai nem sempre a leva
junto. Insatisfeita com a “exclusão”, uma vez a filha questionou por que a mãe tinha direito de
ir ao salão e ela não podia ir também, “para pintar florzinha na unha”. Sua argumentação
parece ter vencido, dado que nunca vi a mãe ir sem a filha durante os meses que acompanhei
Lembro da primeira vez que as vi. Enquanto a mãe era atendida por uma manicure, a
filha era atendida por outra. No entanto, a partir de certo momento, como se as luzes se
apagassem e um holofote se colocasse sobre a pequena menina, dá-se início a uma cena
intencional, caminha em linha reta até os fundos do salão como se estivesse em uma passarela
de moda. No percurso de volta, para em frente à mãe, coloca uma das mãos na cintura e dá
uma viradinha, como se posasse para fotógrafos. A mãe ri e diz sem-graça, mas com um
Minutos antes, coincidentemente, uma pedagoga havia sentado ao meu lado no banco
antigamente, querem se vestir, maquiar e pentear como adultos, “tal como na Idade Média”.
expostas a sexualidade, o que as faz pular etapas e iniciar a vida sexual muito cedo.
Exemplifica dizendo que quando a criança pinta as unhas, no fundo, já sabe que aquele é um
Divirto-me com a ironia da situação que acaba de acontecer aos nossos olhos. Para
finalizar, antes de ir embora a menina saca de sua bolsinha uma nota de R$ 2,00 e dá como
para bonecas que continha vários tipos de diversão. Entre piscina e tobogã, as bonecas
cuidar da aparência dos pequenos convidados. Embelezar-se torna-se uma diversão desde
cedo.
Diariamente, sem exceção, eu acompanhava a cena de pais ou avós levando seus filhos
ou netos aos salões para terem seus cabelos cortados 69. Geralmente era o parente adulto quem
explicava ao cabeleireiro que tipo de corte deveria ser feito. Quanto maior a criança, maior a
indivíduo dominar boa parte das técnicas de embelezamento corporal. Fica estabelecido então
que crianças não devem manipular sozinhas seus próprios corpos. A passagem da infância
corpo e se torna cada vez mais responsável pela própria aparência. A partir deste ponto,
69
Os salões de beleza, neste sentido, também são espaços de encontro inter-geracional. Encontro este que se
estende da infância à vida adulta, sendo possível ver pais e filhos de qualquer idade acompanhando uns aos
outros nas visitas a salões.
131
para se tornar e se fazer cotidianamente mulher, sendo o salão um dos espaços privilegiados
Lembro uma vez que fui com minha avó ao salão. Eu devia ter oito anos. Eu
a vi fazendo a unha e quis também. Ela pediu então para a manicure pintar
minhas unhas. Nossa, eu fiquei toda feliz com a unha pintada. Eu me senti
mulher. Pensei: - “Olha, estou grande!” (Jordana, 25 anos, promotora de
eventos)
Apesar de a adolescência ser marcada como a fase em que se inicia uma relação mais
diferencia de outras faixas etárias mais avançadas. Acredita-se que adolescentes freqüentem
menos os salões por se tratar de uma fase que exige menos manutenção da beleza. Afinal, têm
aquilo que mais se busca: juventude. Com o passar da idade a relação com salão de beleza se
Por volta dos 30 anos, tal relação muda de tom. Dá-se início à busca por uma beleza
que parece aos poucos desaparecer. Os serviços prestados pelo salão de beleza passam a ser
A mulher começa a freqüentar mais quando vai se aproximando dos 30. Que
é quando ela mais sente a necessidade de uma vaidade que você não resolve
tão facilmente em casa. É quando você está trabalhando e pode administrar o
dinheiro que ganha com isso. (Inês, 27 anos, assistente de edição)
Eu, por exemplo, só comecei a procurar salão depois dos 40. Tudo fica lindo
quando você é novo, qualquer jeitinho que você der em casa é lindo. A
média de idade que usa muito salão são mulheres de 30 a 60 anos, no
máximo. Porque as mulheres de 70, muitas já assumiram o cabelo branco.
Ou então elas prorrogam, ficam com quatro dedos de raiz branca e só vão ao
salão quando têm um casamento ou aniversário. Porque o grau de vaidade
vai diminuindo com a idade. Você é mais vaidosa aos 40 do que aos 50 e
132
muito mais aos 50 do que aos 60. Eu acho que na sua balança você começa a
ter outros valores que não só a estética, o visual. Você fala assim: - “Ah!
dane-se se alguém vir minha unha mal feita, eu não tenho a obrigação de
mostrar aos outros que eu fiz a unha”. A mulher mais nova, no final de
semana, vai se encontrar com as amigas e não pode estar com a unha mal
feita, senão vão dizer que é relaxada. Quando você chega a certa idade, você
diz: - “Essa semana não estou a fim de fazer, dane-se o que os outros vão
pensar”. Você já tem mais autoconfiança, é diferente. Não sei como explicar
isso, mas conforme vão passando os anos você vai relaxando mais nessas
obrigações. (Ivanilde, 52 anos, empresária)
Não sei se os mais jovens só vão ao salão quando estão precisando e as mais
idosas, no caso, não dão tanta importância a isso. Mas o que eu vejo quando
vou ao salão é essa faixa dos 30 aos 50 anos, que estão lá fazendo unha toda
semana, fazendo o cabelo mais de uma vez ao mês. Acho que nessa idade, as
pessoas estão se mostrando mais. Querem se afirmar jovens: estou
envelhecendo, amadurecendo, mas continuo enxuta, continuo me cuidando,
continuo bonita.
Mas seguindo essa lógica, não era para as mulheres quanto mais velhas
mais freqüentarem o salão?
Mas aí eu acho que depois de um tempo elas não dão tanta importância.
Muda o conceito do que é salão para elas.
Então me fala: o que é um salão para a mulher de 30 a 50 e o que é um
salão pra a mulher acima de 50?
De 30 a 50 é mais um lugar para ela se sentir melhor, arrumar-se, sentir-se
mais bonita. Talvez para passar o tempo, algumas das vezes. É como se
fosse uma parte social. Ela está se relacionando com outras mulheres da
idade dela. De 50 anos para cima, as mais velhas, que vão chegando à
terceira idade, não têm essa necessidade de estar vivendo aquele lado social.
Eu acho que tem um apelo social, de convivência, de sociedade no salão. Eu
vejo isso pelas conversas, fofocas, “tititi”, essas coisas. As mulheres mais
velhas não têm tanto isso. Elas já estão querendo viver com os filhos, com os
netos, com o marido. Elas não têm mais esse apelo de vaidade. Eu acho que
depois de um tempo vira uma futilidade, talvez. Elas pensam: - “Ah! Eu não
preciso disso”. Já perceberam que o marido não presta atenção se elas
fizeram a unha, se cortaram o cabelo ou pintaram de uma cor diferente.
(Fabrícia, 23 anos, trainee)
Quando a idade se encontra mais avançada, a partir dos 50 anos, a crença é que a
70
prioridades na vida. Já venceram o grande desafio de adquirir matrimônio , já possuem
netos e a vida sexual já não mais está em seu auge, liberando a mulher da obrigação de se
Outra leitura que se faz diz respeito às situações de sociabilidade. Como se ao final da
A minha avó é extremamente vaidosa, ela tem 80 anos e vai ao salão. Ela
quebrou a perna e teve que parar de ir, mas o salão foi até ela. Ela ficava em
casa de camisola, com a perna sem poder mexer, mas tinha uma mulher lá
fazendo o pé, a outra fazendo a mão, outra o cabelo. A minha avó precisa
disso, porque ela jamais sairia na rua desgrenhada. Mas eu acho que esse
exemplo não é uma regra. Porque quando você começa a ficar muito
velhinha você pode dar uma relaxada, né? Ah! Você já está viúva, você não
tem uma vida social, não está na rua, não está sendo vista. Você se arruma,
de repente, para uma festa ou evento. Mas não precisa estar bem em tempo
integral, com a unha feita toda semana. (Inês, 27 anos, assistente de edição)
Depende da pessoa. A minha mãe está com 72. Ela é religiosa e só vai ao
salão se tiver um casamento ou alguma coisa muito importante. Fora isso, eu
nem lembro a última vez que ela pisou em um salão. Mas tem uma vizinha
que todo fim de semana vai ao salão e é da mesma idade da minha mãe. É
que ela é mais vaidosa, ela trabalha fora. Já minha mãe não, ela lava, passa
cozinha, se arruma e vai à igreja de noite. Ponto. (Rebeca, 35 anos, auxiliar
administrativa)
aquela ligada ao trabalho formal. Quanto maior a exposição a pessoas fora do núcleo familiar,
maior a cobrança de uma apresentação de si dentro dos parâmetros tidos como apresentáveis,
70
Quanto a estado civil, não percebi a concentração de nenhuma condição específica no que se refere a uma
maior ou menor freqüência a salões de beleza. A percepção dos profissionais e clientes com quem conversei
reforçam minha suposição: que os salões de beleza são freqüentados tanto por pessoas solteiras, casadas, viúvas
ou divorciadas, entre outras.
134
Por outro lado, reconhece-se que a questão da vaidade independe de idade. Muitos são
os relatos de mulheres, conhecidas ou familiares, com mais de 70 anos que ainda mantêm o
costume de ir ao salão de beleza com regularidade. Uma das entrevistadas conta sobre uma
senhora de 100 anos que conseguia se locomover com muita dificuldade, mas todo final de
semana ia com suas duas filhas ao salão para todas terem os cabelos arrumados.
aproximadamente 90 anos. Sua saúde é bastante debilitada. Pergunto à filha por que não
chama uma manicure em casa. Esta diz que o salão é um dos poucos lugares que a mãe tem
Neste sentido, é possível pensar o salão de beleza não apenas como um espaço de
diversão, mas como um lugar para se sentir viva e participante do mundo. Adorei a resposta
dada por uma senhora de 92 à filha. Ambas estavam no salão de Ipanema e a filha sugere à
mãe que pare de pintar o cabelo e assuma os fios brancos. Em um tom de indignação, a mãe
71
Vale destacar que muitos salões de beleza funcionam aos sábados e domingos, ficando a segunda-feira
reservada como dia de folga para os funcionários.
135
Em uma das passagens de Behavior in public places, Goffman comenta que, nas
serviços disponíveis a qualquer pessoa que tenha condições de arcar com as despesas de um
corte de cabelo ou serviço de manicure, esse “uso relativamente igualitário” deve ser
relativizado.
são todos os salões que são freqüentados por qualquer pessoa. Levando em consideração que,
na cidade do Rio de Janeiro, o preço de um corte de cabelo pode variar mais de 450%, tal
diferença sugere como o valor de uma simples prática estética é capaz de gerar uma
de posição de classe, devemos atentar não apenas para os aspectos econômicos, mas também
Uma das mulheres de classe popular com quem conversei traz suas percepções sobre o
Tijuca - por motivo de ter ganhado um serviço de manicure oferecido pelo escritório em que
72
Tal forma escolhida para homenagear as mulheres por si só é uma informação interessante
136
de vestir e falar, e visões de mundo que são capazes de apontar a participação de determinado
Uma das clientes do salão de Ipanema conta suas impressões sobre o primeiro dia em
A primeira vez que eu fui achei lindo! Mas fiquei morrendo de medo.
Pensei: - “E meu bolso? Entrei num lugar desses, estou lascada! Vou ter que
pagar a conta”. Eu tive que ir porque o meu colorista foi transferido para lá e
ele é o único que acerta a cor do meu cabelo. A primeira vez então eu entrei
de gaiata. Terminou de pintar o meu cabelo, aí veio o ajudante secar. Depois
eles oferecem uma massagem com um creme hidratante que vai dar uma
vida ao seu cabelo. Não, deixe! Qualquer tubozinho daquele você paga R$
7,80 na L’Oréal e no salão eles cobram R$ 25,00. Ou então oferecem um
creme que tem uma substância do tomate que faz bem. O cabelo sai uma
delícia, mas custa R$ 70,00 a aplicação. Então você não pode entrar nessa de
salão chique, de passar cremezinho ou secar cabelo. Eu acho que o salão
tinha obrigação de secar, porque se você chegou com o cabelo seco, então
tem que sair com ele seco. Em um salão mais simplesinho a secagem já está
incluída na pintura. Eu já vi mulher lá que entra, faz pé e mão, pinta o
cabelo, faz sobrancelha, passa um cremezinho e deixa quase R$ 600,00 no
salão. Mas isso não é problema para ela. (Ivanilde, empresária)
Evidentemente que o preço cobrado pelos serviços nos salões de beleza é um dos
funcionários, ou mesmo a própria clientela que freqüenta o salão. Nesse sentido, o que conta
na escolha de um salão de beleza, muitas vezes, não diz respeito apenas ao valor cobrado
pelos serviços, mas à representação que o espaço adquire no imaginário de cada indivíduo.
me diz que não existe diferença entre certos tipos de cortes de cabelo se feitos em salões de
São todos iguais. Se você mudar a roupa da socialite, tirar sua bolsa Louis
Vutton e a calça de marca e colocar na mulher pobre, você vai ver que, pelo
cabelo, não dá para diferenciar uma da outra. Aquela ali, por exemplo,
[aponta uma cliente que cruza o salão com cabelos castanhos compridos em
corte reto] deve ter gasto, no mínimo, R$ 400,00 com corte e pintura. Me diz
quantos cabelos iguais a esse você não vê na rua? É tudo igual! (Armando,
cabeleireiro)
Uma das entrevistadas com que conversei possui opinião similar. Quando peço para
pensar a diferença entre o salão mais chique a que já foi e o menos sofisticado, responde:
O corte é melhor. A higiene também. Mas depende do corte: se for fio reto
até um macaco treinado faz. Mas se for mais elaborado, aí requer uma
técnica. Por isso que eu não vou a salão caro para cortar só as pontas do
cabelo. (Juliana, desempregada)
No salão de Ipanema, a única situação que presenciei de pessoas que usualmente não
teriam condições de arcar com os custos dos serviços ali prestados, foi um caso bastante
específico. Tratava-se de uma jovem modelo recém-descoberta que foi ao salão para ter os
Acompanhada pela mãe, ambas destoavam do resto da clientela, não apenas pelo
vestuário diferente como pela postura corporal da mãe, que se mostrava inibida, sentada na
cadeira de forma tímida, sem repousar o corpo nas costas do assento ou deixar de segurar no
colo sua bolsa, como se fosse uma bóia salva-vidas para aquela situação que aparentava
do Catete ou no de Botafogo nunca consegui perceber nenhum cliente que parecesse destoar
salão de beleza? Hoje acredito que depende do que se entende por “luxo”. Para muitas das
pessoas entrevistadas, o salão é uma questão de “necessidade”. Uma obrigação (por vezes
prazerosa, por outras não) para se “sentir bem”, “apresentável”. Sendo assim, pode ser
considerado um luxo ou não de acordo com a importância que o sujeito enxerga nos serviços.
O salão também pode ser encarado enquanto luxo no sentido de atribuir status e
salão de Ipanema. Dessa forma, salões de beleza podem ser usados para a construção de
econômicas. Como observa Miguel, um dos cabeleireiros do salão de Ipanema: - “Tem muita
mulher que vem aqui para desfilar, para ver e ser vista”.
salão do Leblon me disse que fazia “caridade”. Pensando que participava de alguma
fazia. O colorista explica, com um ar de altruísmo, que pinta de graça os cabelos de uma
socialite cujo marido havia falido. A caridade, aqui, tratava de não privar um ser humano de
uma necessidade tão importante que, por falta de dinheiro, havia se transformado em um luxo.
139
Boa parte dos homens com quem conversei formal ou informalmente compartilham
uma visão bastante parecida sobre salão de beleza. Em uma palestra que dei sobre meu tema
Federal do Rio de Janeiro, propus uma dinâmica antes mesmo que começasse minha fala.
Pedi que cada um, individualmente, entregasse a mim um papel no qual deveriam escrever o
a preço. “Caro”, “um negócio muito lucrativo”, “tempo e dinheiro gastos para se agradar e/ou
agradar os outros” foram algumas das opiniões registradas (além de uma mais engraçadinha
que, embora não tenha feito referência a lucratividade, mas sim a gênero, destacou-se em
Porém, não são apenas homens que associam salão a gasto financeiro. Quando
pergunto à recepcionista do Catete o que as mulheres vão fazer no salão, ela imediatamente
me responde: - “Gastar dinheiro”. Comenta em tom inflamado sobre um caso que parece tê-la
incomodado:
Um dia uma mãe trouxe a filha de sete anos para fazer escova. Para quê, me
diz? A criança vai brincar na rua e vai sair toda a escova! Só naquele dia,
essa mulher gastou R$ 65,00 aqui no salão. Fez escova e hidratou o próprio
cabelo, cortou o cabelo do filho, fez escova no cabelo da filha. Pagou tudo
em dinheiro. (Monique, recepcionista de salão)
Para algumas pessoas a ida ao salão de beleza pode ser eventual. Para outras, trata-se
de uma prática periódica, na maior parte das vezes semanal - quando se trata da manutenção
das unhas. Quanto às mulheres com quem conversei, parte considerável afirma ir ao salão
para fazer unhas das mãos toda semana e unhas dos pés quinzenalmente. Se considerarmos
um preço médio de R$ 12,00 para serviços de manicure e R$ 15,00 para pedicure, tal perfil de
140
freqüentadora gasta R$ 78,00 por mês, o que equivale a um investimento de R$ 936,00 por
Uma das entrevistadas conta que quando decidiu se mudar da casa dos pais para morar
sozinha, uma amiga que já havia feito tal movimentação a aconselhou montar uma planilha
em Excel para ter noção de todos os gastos que passaria a ter mensalmente, tais como contas
de luz, água, IPTU etc. E chamou atenção da amiga para que não se esquecesse de incluir os
gastos mensais com salão de beleza. Uma manicure do Catete resume: - “Salão de beleza
Porém, algumas mulheres questionam o valor gasto com tais serviços estéticos,
especialmente por se tratar de algo que requer constante manutenção, dado que unhas, cabelos
Salão é chato e caro. É uma despesa mensal. Se você somar, tem muito
dinheiro gasto com unha, depilação a laser, sobrancelha...
Você considera um dinheiro bem gasto?
Se você parar e raciocinar, é uma coisa que expira muito rápido. Às vezes eu
saio do salão e quebro a unha. Me irrita isso. São R$ 20,00 jogados no lixo.
Ou você sai do cabeleireiro linda, achando que o cabelo ficou maravilhoso.
Mas aí você lava e vê que não era bem aquilo o que você queria, sabe? Às
vezes é um investimento alto e você se decepciona. Então é muito dinheiro.
Eu poderia fazer coisas absurdas com o dinheiro gasto em salão. Por isso que
eu diminuí minhas idas. Hoje eu faço pé só uma vez por mês. A mão eu
tento estender por duas semanas. Mas no final das contas eu acho que é
necessário. É um dinheiro bem gasto porque a sua imagem necessita daquilo.
(Jordana, promotora de eventos)
E quanto às mulheres que possuem recursos financeiros mais limitados e não podem
arcar com um investimento mensal em serviços oferecidos por salões de beleza? “Pendurar” a
conta, parcelar o pagamento ou contar com a boa vontade do profissional ou dono do salão
141
para não cobrarem pelo serviço são alguns dos recursos que podem ser empregados. Contudo,
Por mais que se possa encontrar em qualquer estrato social pessoas que tenham
habilidade para fazer a própria unha ou cuidar do próprio cabelo, tais recursos de beleza feitos
caseiramente costumam ser associados a práticas comuns entre camadas populares. Dessa
forma, o fato de não fazer uso de salões de beleza pode ser apropriado enquanto um
A classe mais baixa faz em casa, faz no intervalo do trabalho, tem seu
alicatezinho, faz sua unha, sua limpeza. Às vezes também porque ela tem
necessidade de se sentir limpinha, bonita, com boa aparência. Mas ela pinta
o cabelo em casa. Então ela não está nem aí se a cor não ficou muito legal, se
não ficou igual à feita por aquele expert de tintura, mas ela também quer
colorir o cabelo. Às vezes para mudar a cor, às vezes para tapar os fios
brancos. A mulher quando quer economizar faz em casa. Mas a classe social
eu acho que influi muito. Porque, hoje em dia, um pé e uma mão em um
salão custam em torno de R$ 30,00. Uma pintura de cabelo, no mínimo, R$
70,00. Isso, para uma pessoa que não tem, é difícil. (Ivanilde, empresária)
Tal capacidade de manipulação estética do próprio corpo pode ser associada não
Eu não sei como é que funciona, mas toda empregada sabe fazer unha. Volta
e meia elas perguntam: - “Você quer que eu faça a unha para você? Está
lascadinha, quer que eu dê um jeito para você?”. Ou elas sabem fazer ou
gostam de tirar onda que sabem.
E por que toda empregada sabe fazer unha?
Talvez seja por necessidade, por não querer pagar mesmo. Eu acho que essas
caixinhas de tinta para fazer o próprio cabelo elas devem usar mais que
madame. Eu posso até estar errada, mas com certeza devem ter alguns salões
para cabelo de negros. (Jordana, promotora de eventos)
142
Quanto às pessoas que freqüentam os salões em que realizei trabalho de campo, raras
foram as clientes negras que tive a oportunidade de observar nos salões de Ipanema ou de
Botafogo. Quanto ao salão do Catete, a presença de clientes não brancas era mais comum.
constituída de pessoas negras. No salão de Botafogo, cinco entre as sete pessoas que
compõem a equipe fixa possuem pele branca. Já no salão de Ipanema, os poucos funcionários
seja na forma dos chamados salões “afro”, “étnicos”, salões especializados em cabelos
angolanos, ou, ainda, práticas de depilação que ficaram conhecidas como brazilian wax.
variáveis pode revelar aspectos da organização não apenas de grupos específicos, mas de uma
idéia de Estado-Nação ou mesmo de uma noção de “cultura”. Européias que não possuem o
hábito de remover a cutícula com alicate. Argentinas que não gostam do formato quadrado ao
terem suas unhas lixadas. Inglesas que se depilam com menor freqüência. Diversas são as
salão de Ipanema que estudo e trabalhou como tal na Inglaterra – aciona noções como “frio”,
Umas das entrevistadas que residiu em Londres durante dez anos acrescenta algumas
Uma vez, eu era estudante e ainda não tinha manicure em casa, então fui a
um salão. Estava barato nesse dia, porque normalmente fazer unha em salão
em Londres é muito caro, você paga R$ 70,00 só para fazer a mão. Só que a
unha não era bem feita. Lá não pode tirar a cutícula, só empurrar. E o
esmalte também não pode pintar por cima da cutícula. E também não tinha
esse negócio de ficar batendo muito papo. Salão lá é silencioso, não tem
muito “pipipi” não. Inglês, normalmente não fala muito. A tendência é não
saber da sua vida, isso é cultural deles mesmo. É um choque quando as
pessoas vão e acham que o inglês é seco. Eles não são secos, eles
simplesmente não gostam de saber da sua vida se não te conhecem. (Maitê,
auditora)
Falamos até aqui de gênero, idade, classe socioeconômica, cor de pele, profissão e
nação. Cabe agora abordar outro ponto que as pessoas fazem uso para pensar os salões de
beleza. Refiro-me a religião. Embora exista quem afirme que “mulher é igual em todo lugar,
religiosas se destacam pelas restrições que colocam a certos tipos de manipulação estética dos
corpos.
Pessoas religiosas eu acho que não vão muito a salão. Porque pensam: -
“Ah! Está bom assim, Deus quer assim. Então meu cabelo está bom”. Aí não
cortam o cabelo, não fazem sobrancelha. Dependendo da religião, não pode
ficar freqüentando muito salão de beleza. Vejo pela minha mãe que é
evangélica. Unha só pode passar base e tirar cutícula. Não pode ficar
cortando o cabelo. Se o cabelo for escuro, o produto também tem que ser
escuro, não pode mudar radicalmente a cor do cabelo. A religião não gosta.
Já as Testemunhas de Jeová se arrumam muito bem, estão com o cabelo
sempre bonito. Quando eu vou ao salão as Testemunhas de Jeová estão
sempre lá. O pessoal da Igreja Batista também é bem vaidoso. Tem igrejas
que são mais sérias, como a Assembléia de Deus. Agora tem uma, a
Assembléia Renovada e também a Casa da Benção, essas são bem rígidas.
Tem uma religião lá perto de casa que eu não lembro o nome, mas que não
pode cortar o cabelo, não pode usar preto, não pode usar um monte de coisa.
(Rebeca, auxiliar administrativa)
144
Tive a oportunidade de conversar com uma entrevistada que havia recentemente “feito
o santo” na religião Candomblé. Teve os cabelos da cabeça raspados e recebeu uma série de
restrições que deveria seguir, muitas delas relacionadas a seu corpo. O interessante da fala é o
tom de alívio relacionado à permissão para voltar a cuidar de partes do corpo como cabelo e
pêlos.
A pior restrição foi raspar o cabelo. A segunda pior foi ter que dormir no
chão, demorei muito para acostumar. Comer com a mão também foi muito
complicado. Mas a ficha caiu mais quando eu tive que voltar a trabalhar,
porque eu, putz, estava com esse cabelo [refere-se a um corte raspado].
Agora está um pouco melhor, mas eu me senti horrorosa. Nossa senhora!
Antes também não podia pintar unha, agora pode. Mas isso não estava me
incomodando totalmente não. O que incomodava mais era o cabelo muito
curto, porque ele está branco e, por enquanto, não pode passar tintura. É o
santo quem libera o que pode e o que não pode fazer. Nem dar uma aparada
você pode. Está crescendo aqui e começa ficar feio. Raspar cabeça também
nunca mais pode. Passar hena, alguma coisa natural pode. Mas eu queria
voltar a ser loira. Aí quando fui liberada a depilar corri para o salão. Que
desespero! Os pêlos do meu braço, você não tem noção do tamanho que
estavam. Eu usava blusa de manga comprida com medo de alguém reparar.
Eu estava igual a um macaco. (Maura, comerciante)
próprio ambiente dos salões de beleza. No de Ipanema, por todo o espaço se encontram
cristais, mandalas e fontes de água. Segundo um dos cabeleireiros que trabalha lá, tudo tem
um sentido ali. Conta que a dona do salão é muito mística e que uma vez receberam a palestra
de uma astróloga/ numeróloga sobre energias que circulam dentro do salão. Esta mesma
dividem espaço com pequenas estátuas de anjinhos e divindades indianas. Um elefante virado
145
de costas para a porta (denotando prosperidade, segundo a dona) e uma pequena fonte de água
Quanto ao salão do Catete, embora tenha sido o local em que as escolhas religiosas
eram mais verbalizadas, o único elemento no salão que indicava algum tipo de crença era uma
diferentes fases da lua distribuídas pelo calendário anual - para o caso de quem acredita que
Um destaque especial vale ser dado às “energias” que se acreditam ser particulares a
ambientes de salões de beleza, de uma forma geral. Tais percepções costumam ser
público, de estar em contato direto com diferentes pessoas e, sobretudo, pelo fato de existirem
trocas, sejam elas corporais ou verbais, contribui para a crença de que energias mágico-
Em todos os salões de beleza que pesquisei, sem exceção, tal tema foi trazido
espontaneamente pelos profissionais sem que eu precisasse estimular. - “Tem horas que o
ambiente está leve. Tem horas que está pesado. Eu sinto. Sou kardecista”, diz uma
cabeleireira. Outra manicure do salão do Catete diz que às vezes tem que tomar banho de sal
grosso quando chega em casa, porque “volta e meia aparece cliente com ‘zica’, me dá até dor
de cabeça e tontura.”
pelas mãos, ao tocar a cabeça dos outros: - “É muita troca de energia. Tem gente que te passa
uma coisa boa. Outras te sugam”. Uma manicure do salão de Botafogo fala que, por trabalhar
em salão, às vezes a profissional sai “carregada, porque tem muita energia negativa de
cliente”. Peço que explique como é essa energia. A profissional me diz que a pessoa sai “para
Lembro de uma cena que vivenciei no salão do Catete: estava sendo atendida por uma
manicure para de fazer minha unha e se abaixa fingindo que está pegando algo na gaveta de
sua cirandinha. Pergunto o que houve e ela explica que não quer que uma cliente que acabou
Conta que tal cliente cisma em fazer unha com ela, mas que não gosta, por isso tenta
manicure fala que não se trata disso. Não gosta da mulher porque uma vez esta cliente elogiou
suas unhas e, na semana seguinte, todas as unhas começaram a quebrar. Desde então, tenta
um ambiente cercado por espelhos e iluminação, que mais parece um grande e coletivo
camarim. Nestes locais elas compartilham com outras mulheres - a maior parte desconhecidas
- não apenas um mesmo espaço físico, como também experiências, impressões e medidas
comuns. Após passarem por um particular processo de embelezamento, elas deixam aquele
Porém, o que ocorre durante esse tempo que se passa dentro dos salões de beleza? O
que as mulheres dizem buscar nesse local e o que efetivamente encontram? Que formas de
associação entre indivíduos são proporcionadas neste espaço em especial? Ou, ainda, por que
salões de beleza e não outros espaços que a cidade oferece? Muitas são as perguntas e,
igualmente, muitos são os caminhos para tentar compreender o que o universo dos salões de
sociabilidade pública. É neste sentido que podemos considerar os salões como um universo
jogo sutil das distâncias e aproximações que a interação em escala metropolitana produz.
Coloca-se como um espaço privilegiado para pensar as diversas formas de relação entre
indivíduo e cidade.
desenrolam nos salões de beleza, faz-se importante pensar o papel das grandes cidades ao
73
Homens também, porém, em menor proporção e freqüência.
149
sobre os desdobramentos desse acelerado fenômeno de urbanização - que desponta com maior
vínculos de indivíduos que compartilham uma mesma realidade social. Considero este
exercício de contextualização histórica importante por trazer aportes teóricos que se mostrarão
Comecemos tal contextualização por aquele que talvez seja um dos mais importantes
crescente industrialização, seguida por um aumento progressivo da população das cidades foi
74
o palco do nascimento do fenômeno da multidão , um espetáculo que chamou a atenção de
destaca como novidade. A paisagem urbana também muda, em termos de sua arquitetura e
dos novos estímulos sensoriais que oferece. Em poucas palavras, a grande cidade faz surgir
não apenas um novo estilo de vida, como também gera novas formas de sociabilidade e, o
Simmel (1903) propõe enxergar a cidade grande como uma janela interpretativa da “cultura
objetiva e do espírito moderno”. Porém, segundo o autor, tal desenvolvimento só pode ser
O primeiro deles - a economia monetária - Simmel entende como a base de uma nova
74
Vale lembrar que o tema da multidão só emerge a partir de uma concepção individualizante da sociedade.
Enquanto não se tem uma representação da sociedade enquanto composta por indivíduos conduzidos pela razão,
não há o tema da “multidão” e sim o das “coletividades”.
150
quantidade, a objetividade e o espírito contábil, tal economia acaba por organizar a nova vida
citadina, que desponta no horizonte de indivíduos agora nivelados por um item comum que
O segundo aspecto é o que Simmel define como cultura moderna, marcada pela
modernidade cada vez mais mercantilizada e planificada (no sentido de um achatamento dos
diversos níveis da vida social). Tal cenário leva o homem moderno a fugir da massificação e
buscar uma singularização qualitativa, a fim de se destacar diante desta nova realidade social.
Tal dinâmica entre igualar-se e diferenciar-se permite enxergar a cidade não apenas
como realização máxima de uma cultura objetiva, mas potencialmente como locus ideal para
o desenvolvimento de uma cultura subjetiva, para a construção de si. Dessa forma, é colocada
categoria “indivíduo”.
pensador chama atenção para as novas condições psicológicas produzidas pelas metrópoles.
estímulos tão grande que um de seus efeitos se traduz na atitude blasé. De acordo com o
autor, se o homem na cidade pequena reage com o sentimento, na cidade grande ele precisa
fazer uso do entendimento enquanto recurso para preservar sua vida subjetiva, frente à
Esse deslocamento da emoção para a razão engendra, ainda, outras formas de relação.
Ao caráter blasé soma-se o caráter de reserva, traduzido pela evitação de contato entre as
pessoas diante da proximidade corporal que a vida urbana as obriga, com elementos de uma
151
“leve aversão” ou “repulsa mútua”. Nesse sentido, trata-se de um movimento duplo não
Em suma, as relações que unem os homens também são aquelas que os separam. Na
Tal reserva, sob outra perspectiva, é também acompanhada de certa indiferença, o que
Nasce então aquilo que se pode chamar de uma sociabilidade pública moderna. Como
define Boltanski, a grande cidade se torna um microcosmo da sociedade (1993:50). É nela que
irão surgir novos espaços em que novas exigências de comportamento serão criadas e antigas
formas de interação social deixadas para trás. É sob este cenário histórico-social que os salões
de beleza começam a adquirir suas primeiras formas e se consolidam como um dos poucos
Segundo Paula Black (2004:22), os salões de beleza não são um fenômeno atual. De
acordo com os primeiros registros a que se tem acesso (registros estes em que o profissional
75
Com especial destaque para suas análises sobre a coqueteria, no que se refere ao jogo de aceitação e recusa
constituinte da forma de sedução feminina. Cf. SIMMEL (1909).
152
escassas ou se concentram, sobretudo, no contexto dos Estados Unidos, o que por vezes pode
apresentar práticas não encontradas em salões de beleza de outras localidades. Porém, tal fato
não invalida o esforço de localizar a história da emergência dos salões, uma vez que muitas
são as similaridades que podem ser traçadas tendo como referência outros contextos sociais.
emergência dos salões de beleza no contexto brasileiro. No entanto, para mim fica muito claro
da sociabilidade.
tendência para associação em um contexto histórico-social urbano que cada vez mais se
atomiza? Simmel (1903) argumenta que todo o processo de surgimento de uma vida
sociabilidades?
Em um de seus trabalhos sobre o tema, Simmel (1917) define sociabilidade como uma
forma, dentre outras possíveis, de associação. Em sua manifestação mais “pura”, diz o autor, a
associação, ela não busca propósitos objetivos ou resultados, mas apenas o sucesso do
153
momento sociável, a simples satisfação de estar em interação. Sendo assim, o fim último da
Liberta dos conteúdos, a forma que resulta desse processo ganha vida própria e passa a
sociabilidade como a “forma lúdica das associações”. Um jogo em que o prazer de jogar é o
que realmente atrai. “O sentido mais profundo, o duplo sentido de ‘jogo social’ é que o jogo
não é só praticado em uma sociedade, mas que, com ele, as pessoas ‘jogam’ realmente
A conversação é um dos exemplos que deixa clara tal relação: quando se trata de
sociabilidade, diz Simmel, os indivíduos não precisam conversar em razão de algum conteúdo
que queiram comunicar. O falar se torna o próprio fim, sendo o assunto simplesmente aquilo
que o viabiliza. A arte da conversação, nesse sentido, pode ser considerada uma das principais
atividades da sociabilidade.
Uma última consideração do autor vale ser destacada para quando pensarmos mais à
frente o caso específico dos salões de beleza. Refiro-me à sua reflexão sobre a vida moderna.
Segundo Simmel, ela é sobrecarregada pelos conteúdos objetivos e pelas exigências formais.
Porém, somos capazes de esquecer todas essas sobrecargas diárias quando inseridos em uma
reunião social.
entra em cena para compor uma nova ordem, não apenas na relação dos indivíduos com o
154
espaço público, mas também na relação entre indivíduos. A vida na grande metrópole
Como enfatiza Nobert Elias, “O senso do que fazer e não fazer para não ofender ou
chocar os outros torna-se mais sutil e, em conjunto com as novas relações de poder, o
Com especial ênfase nos controles corporais, uma primeira temática é então colocada:
faz-se imperativo realizar uma nova reflexão a respeito da presença do corpo humano no
mundo. Gestos, tom de voz, cheiros, olhares, nada pode ser deixado ao acaso; nada deve
O postulado cartesiano deixa como herança não apenas uma distinção analítica entre
76
duas esferas - espírito e matéria (modelo moral que se desdobra, na cultura ocidental , em
diversas outras oposições e modos de pensar o sujeito em sua relação com os eventos do
mundo), como também instaura uma ambigüidade: a supremacia da alma sobre o corpo.
postulado ocidental, ou seja, o fato de a “natureza” humana ser aquilo que constitui os sujeitos
humana, sob tal perspectiva, torna-se uma ameaça. Colocado em risco pela irracionalidade
dos seus sentidos, o homem cartesiano deve impor, sustentado pelas idéias de reflexividade e
O controle corporal, dessa forma, torna-se um dos caminhos que a civilização deve
fazer uso não apenas para estabelecer um convívio com seus iguais, mas para, em um último
nível, aprimorar sua natureza humana e buscar a perfeição. Porém, este autocontrole não
76
Entendendo como “cultura ocidental” um sistema de significação específico do qual participamos, que implica
certa maneira de perceber e compreender os fenômenos de nossa vida. Cf. DUARTE (1999:22).
155
apenas é fundamentado em sua concepção relacional; torna-se um dever para com os outros e
também para consigo, desvendando tanto sua faceta pública quanto sua dimensão privada.
Em função dessa nova vida social que se aprimora no século XVIII, assiste-se a uma
reorganização da interioridade dos sujeitos. Visualiza-se não apenas um novo espaço público,
mas um novo ambiente interior humano. Para que seja livre, o ser humano precisa ser
uma tecnologia do self, para usar o termo sugerido por Foucault e Sennet, 1981).
refrações desses controles para dentro do próprio sujeito (para seus “horizontes interiores”,
de interação.
As regras de comportamento impostas ao corpo pela via dos hábitos e dos costumes,
sensorializantes. É sob este ponto de vista que a cidade grande promove um de seus
fenômenos mais interessantes: aquilo que podemos chamar de uma ressensibilização dos
sentidos. Uma ampliação das possibilidades sensoriais que se dá, entre outras formas, a partir
Sobre esta questão, Simmel (1908) propõe um aumento das lentes de análise
relationships, sua sugestão é que nos dediquemos a analisar o cotidiano das relações
O ponto para o qual Simmel chama atenção é que cada um dos sentidos humanos tem
Contudo, para o autor, alguns sentidos têm primazia em certos momentos e situações, como
no caso da visão. Ao contrário da cidade pequena, diz Simmel, - onde não há anonimato e
todos se conhecem, sendo a fala o que prepondera - na cidade grande é a visão que se destaca
Para o autor, o anonimato que caracteriza a vida urbana e a atitude de reserva frente
aos diversos tipos de encontro que a cidade promove, tornam o “ver” o meio privilegiado de
sociabilidade. O contato olho a olho implica um movimento mútuo de ver e ser visto,
colocar como sujeito e ao mesmo tempo se oferecer como objeto. Localiza-se aí o potencial
socializante da visão.
Paula Black (2004:26) traz outro ponto de vista ao chamar atenção para a importância
espelhos (que até os séculos anteriores ao XIX era ainda incipiente, o que levava as pessoas a
terem apenas uma vaga noção de suas próprias características faciais). Segundo a autora,
todos estes elementos contribuíram de forma determinante para a mudança na forma como
trabalho reunido dos sentidos humanos é fundamental não apenas para a constituição plena do
objeto, mas como mediador entre experiência e cognição, entre indivíduo e sociedade.
Em função não apenas dos novos tipos de relação que promove, mas também dos
múltiplos estímulos que oferece à percepção, a grande cidade emerge como determinante da
recursos para excitação e intensificação dos sentidos. As gigantescas salas de cinema, o teatro
de palco italiano moderno (com sua platéia, em oposição ao teatro de corte), as coffeehouses,
massa.
elite) a entrada era limitada aos gigantes da burguesia que tivessem sido convidados pelos
anfitriões da aristocracia, nas coffeehouses ou nos cinemas qualquer um que pudesse pagar
É verdade que certos espaços são freqüentados essencialmente por um ou outro grupo
social e que a apropriação desses territórios pelos grupos sociais pode ser bastante sutil,
158
tornando suas fronteiras muitas vezes imperceptíveis. De qualquer forma, nesses espaços
“abertos a todos”, o que está em jogo é o tipo de reunião que promove: um encontro
mais ou menos rígidas, alguns desses espaços se tornam emblemáticos para observar os novos
contornos que a sociabilidade toma no contexto urbano moderno, como é o caso das
da classe média da época é ilustrativo. Com uma economia mais desenvolvida, restrições mais
substituir as antigas, o álcool acaba perdendo espaço para as bebidas quentes que chegam à
Mas o que está em jogo se trata menos do consumo em si, do que a atitude em torno
tom de voz baixo e conter a expansão de seus gestos, ou seja, tudo o que não se costumava
fazer em tabernas. O novo estilo de vida de uma classe média intelectualizada e inflacionada
por ideais do Iluminismo demanda novos espaços públicos para acolher esse novo homem
77
Cf. SCHIVELBUSCH (1993).
78
Schivelbusch (1993:69) atenta, ainda, para o fato de que a clientela das coffeehouses, longe de senhoras de
idade avançada ávidas por bolos, era constituída por homens de negócios, ligados a política, arte e literatura. Na
Inglaterra, por exemplo, o acesso das mulheres às coffeehouses chegava mesmo a ser negado. Contudo, no
século XX os homens abandonam tais espaços, que passam a ser freqüentados por círculos de senhoras que,
159
tratava de um período em que ainda não havia jornal impresso diário), o efeito mais
importante e imediato que as coffeehouses tiveram (e outros espaços públicos de uma forma
mais geral), foi o fato de terem ajudado a criar uma nova “cultura” do diálogo e da
(1993:185).
Mas não era a penas a dimensão dos negócios o que levava as pessoas a se reunirem
valorizado, sendo criada uma série de atividades ligadas à excitação dos sentidos, que
imitariam as excitações do mundo real, mas de uma forma controlada (ELIAS & DUNNING,
1992).
As sensações suscitadas pelas óperas, pelos filmes e pelos esportes, por exemplo, são
como o fato de ser paga ou ser uma atividade voluntária (ELIAS & DUNNING, 1992).
marcam não apenas a concretização de uma nova esfera pública, como também a reinvenção
emergir novos valores atrelados à esfera do lar e da família. A invenção das necessidades de
antes mesmo, já participavam de outro tipo de sociabilidade: as coffee parties vespertinas, no ambiente privado
das residências, da qual participavam apenas mulheres.
79
A respeito da experiência mimética enquanto parte das experiências de lazer, Norbert Elias e Eric Dunning
(1992) consideram que aquilo que foi reprimido pelos controles sociais, que não pode ser satisfeito na vida
cotidiana, precisa entrar nos fluxos da experiência mimética.
160
burguesas e nos palácios da nobreza, que passam a contar com espaços segmentados por
casados...).
Como salienta Eliane Moraes (1994), a privacidade moderna nasce marcando suas
postulando zonas de segredo que não existiam antes. Esse processo de manter a sociedade à
social.
Não apenas a cidade é associada a um local de perigo, poluição e maus hábitos (tema
os salões (mais uma vez, refiro-me às instituições aristocráticas e de elite), são vistos como
lugares de cerimônia, pompa, aparência, valores falsos e máscaras que encobrem a verdadeira
sociedades urbano-industriais nos mostra é que a intimidade é mais um dos elementos que
deslizam por entre as esferas do público e do privado. E alguns espaços sociais são
privilegiados para mostrar como tais separações entre vida social e vida íntima não se dão de
Beleza e estilísticas de si
próprio processo de urbanização. Agora, cabe-nos pensar o caso específico dos salões de
beleza (em seu formato tal como conhecemos atualmente) e buscar os usos e os sentidos
atribuídos a este universo a fim de compreender não somente a qualidade das interações que
ali tomam forma, assim como os diversos significados atribuídos a tais espaços.
Se tivéssemos que definir os salões de beleza em termos dos principais processos que
promovem, seria possível distinguir dois fenômenos centrais. O primeiro deles estaria ligado à
80
questão da perfectibilidade . Quando se pensa em salão de beleza, é a construção social do
corpo belo, no sentido de uma busca por uma fisicalidade cada vez mais melhorada, o que
Embora não seja intenção desta tese privilegiar o tema da beleza (mesmo porque o
tema é tão rico que mereceria uma atenção especial), vale refletir sobre que noções de beleza
e feiúra estão em jogo quando o salão emerge enquanto espaço de correção, produção e
manutenção de corpos belos, especialmente corpos femininos. Como diz a frase escrita em um
Falar sobre beleza é tocar em algumas dimensões importantes para o entendimento dos
processos por meio dos quais uma sociedade se vê e se organiza. Estejam relacionadas a
(conceitos abstratos como bom, bem ou correto), as noções de “feio” ou “bonito” são formas
de atribuir ordem ao mundo. Por mais que se trate de categorias não absolutas, ou seja,
80
O tema da perfectibilidade (improvement), elaborado na passagem do século XVII para o XVIII, com origens
na idéia da razão, parte do princípio de que o ser humano deve fazer uso de sua capacidade de entendimento para
se aperfeiçoar indefinidamente, em um progresso não apenas material mas, sobretudo, físico e psíquico. Cf.
Steinmetz (1988).
162
percepções, atitudes e comportamento em relação aos outros e a nós mesmos. A beleza, neste
A boa aparência é um capital estético, negociável nas mais diversas esferas da vida de
uma pessoa. Diz respeito, entre outras coisas, à manutenção das relações sociais. Ao anseio de
ser desejado não só fisicamente, mas desejado pelo grupo, para interações. A aparência, neste
membro de um ou mais grupos, de fazer parte de algo. Como define Maffesoli, “a estética é
(2000:108).
efeitos visuais. Cirurgias plásticas para arredondar olhos orientais; remoção de costelas a fim
de tornar a cintura mais fina; lipoaspiração nos dedos dos pés; implante de bulbo capilar do
couro cabeludo nos cílios, para deixá-los com aparência volumosa; cirurgia para extensão dos
Estas e muitas outras práticas estéticas já consolidadas apontam não apenas para a
“padrões de beleza” referentes à sua cultura, os indivíduos são capazes de com eles operar de
É nesse sentido que a apresentação de si deve ser compreendida como uma construção
de si. Observa-se nesse processo a vontade de fazer parte de um ou mais grupos, misturada à
e texturas (no caso dos elementos corporais trabalhados no salão de beleza), como também de
um equilíbrio referente a gostos pessoais e convenções sociais. Lembro de uma frase da dona
do salão de Ipanema ao falar sobre sua resistência a permitir cortes mais ousados em seu
salão: - “Eu opto pela beleza. Tenho um compromisso com a harmonia. Não quero mulher
Embora exista uma distinção entre “ser belo” (noção de algo inerente à pessoa) e
“estar belo” (produto de uma intervenção externa), mesmo para os que já nasceram
“privilegiados”, no sentido de mais próximos aos ideais de beleza corporal vigentes, a estes
também é colocada a obrigação da manutenção estética. Manutenção esta que se faz sentir
164
Hoje em dia a mulher tem que estar bela o tempo todo. No trabalho, para
jantar com o namorado, para encontrar a família, para a vida social. Quando
acorda já tem que estar bonita. Até para malhar tem que estar bonita. Ela só
não tem que estar bonita quando não precisa ver ninguém. Aí a mulherada
bota moletom, pega o pote de sorvete Häagen-Dazs e senta na frente da TV.
Acho que quando você é criança, dependendo da família, você já é cobrada.
Se está gorda, se o cabelo é enrolado, se você mastiga de boca aberta, dizem:
- “Isso é feio, isso é bonito”. Adolescente você não tem cabeça pra ter noção
do que é exagero social e do que você realmente precisa. Tem gente que
nunca acha esse ponto. Que obedece as regras da sociedade mesmo: -
“Tenho que ser a mais bonita para pegar o homem que eu que quiser, para
ter o emprego que quiser”. (Dione, diagramadora)
individual e a relação desse desempenho com a ordem social. Ao mesmo tempo em que a
aparência pessoal atribui capital, ela também tira capital. É instaurado assim o medo do
locais de expectativas estéticas. A visibilidade dos corpos estimula uma verdadeira arte de se
mostrar, uma “vontade de atrair o olhar, de fabricar uma estética da presença” nas palavras de
Le Breton (1999:40).
81
Para uma visão sobre o desdobramento da categoria “sexo belo” ao longo da história, Cf. VIGARELLO
(2004).
165
dimensão externa, ligada aos valores estéticos, passa a ser a que primeiro se presta à
formulação de juízos (OTTA & QUEIROZ, 2000:24), certas partes do corpo acabam
adquirindo papel de peso, como o caso de cabelos, unhas e pêlos. É como se quase falassem
pela pessoa. Algo como: diga como é teu cabelo, unha ou pêlo e te direi quem és.
No meio de todo este processo, o consumo acaba por se destacar como variável
fundamental. Deve ser concebido não apenas em termos de mercados e de seus atores
econômicos, mas como um processo que constrói identidades. Sob tal perspectiva, o
a determinado salões de beleza estejam longe de garantir uma situação de equivalência entre
os sujeitos).
novas formas e concepções de corporalidade oculta uma dimensão, tão relevante quanto a
primeira: a dimensão do encontro, da união, da troca. É nesse sentido que podemos definir a
sociabilidade como o segundo principal processo que dá sentido ao espaço do salão de beleza
A sociabilidade pode adquirir muitas formas. No caso dos salões de beleza, ela não é
insere em um circuito de sociabilidade cotidiana, marcada por um forte viés de gênero que
de identificação.
Neste sentido, os usos feitos do espaço do salão de beleza podem ser vistos como uma
estratégia que as mulheres empregam para estabelecer relações sociais bastante singulares,
que não comportam ser vivenciadas em outros espaços públicos da cidade. Termos como
“clima” ou “atmosfera” própria do salão são utilizados pelas mulheres com as quais conversei
para tentar expressar suas impressões a respeito das particularidades dos salões de beleza.
Não sei como explicar, mas eu penso na integração. Essa interação do cliente
com todo mundo. Aí estimula outra coisa também de conversar, de fofocar.
Deve ter muita gente que vai lá para ter o seu momento mulherzinha. Porque
fica um bando de mulher falando, mas não é nem um desabafo não, é mais
descontraído, falando besteira mesmo.
Define esse momento mulherzinha.
É você chegar e cortar o cabelo, é a manicure que está fazendo a unha de
uma cliente e conversando com a outra que está fazendo o cabelo...
Então o momento mulherzinha não é o cuidar de si, é...
Não, é tudo. É o ambiente. É você estar sendo paparicada, digamos assim.
Estão pintando as suas unhas, estão fazendo o seu cabelo e você ainda está
conversando com um bando de mulher, sobre coisas de mulher. Salão tem
essa atmosfera. (Inês, assistente de edição)
167
A primeira dimensão para a qual eu gostaria de chamar atenção no que se refere aos
usos e significados atribuídos a salões de beleza é pensar tais espaços como locais de
possibilitam, enquanto espaços públicos, entre sujeitos com diferentes trajetórias, idades,
condições econômicas, locais de residência, profissões, interesses etc. Neste sentido, o salão
de beleza pode ser enxergado enquanto uma instituição agregadora, uma vez que cria, a partir
Nos salões de beleza a intenção, duração e intimidade das relações variam. É possível,
por exemplo, neles passar algumas horas sem ter que se comprometer muito. No geral, as
relações que ali se dão são abreviadas, ou seja, possuem um caráter mais episódico. Caráter
este que pode ser elucidado pelos termos “amiga de salão” ou “amiga de unha”, usados para
descrever o tipo de interações casuais entre grupos fluidos de companhia que raramente
os salões podem gerar interações que, por vezes, transcendem suas fronteiras e vêm a ter
amizade entre duas clientes que, aos poucos, foram se conhecendo por meio de conversas
vizinhança, serviu como gatilho de aproximação entre tais mulheres: ambas haviam se
mudado recentemente para o Rio de Janeiro (uma residia em Minas Gerais e a outra em
Belém do Pará). Acompanhavam os respectivos maridos que haviam sido transferidos pelas
168
coincidência ou mesmo tendo sido marcado, o salão, por vezes, é utilizado como ponto de
encontro. Observo amigas que se reúnem no salão para colocar o assunto em dia enquanto
têm as unhas feitas. Outras se encontram por acaso e aproveitam para tomar um café e
partilhada, ou seja, são essas múltiplas formas de interconhecimento o que dá o tom especial
aos salões. Uma frase dita pelo dono do salão de Botafogo parece resumir de forma
salão faz o mundo ficar pequeno”, diz ele, referindo-se às redes de relações que ali se formam
ou se entrecruzam, como o caso de uma “coincidência” em que ele e sua cliente descobrem
que têm um amigo em comum, embora nunca tenham sabido de tal ligação.
Um segundo tipo de encontro, que analiticamente considero o mais rico, diz respeito
salão e clientes. Contato este que, no geral, se caracteriza por uma relação transpassada por
vida.
Assisto moradoras da Zona Sul terem acesso a histórias que não fazem parte de seu
Tal contraste se apresenta mais evidente no salão que pesquisei em Ipanema. Recordo
que uma das diversões entre dois assistentes de cabeleireiro era mandar o outro ir à porta de
entrada do salão para dar uma olhada no carro importado da cliente, estacionado na calçada, e
Em outra situação, presenciei uma conversa interessante entre uma cliente e duas
manicures. A primeira falava sobre a importância de cuidar do próprio corpo e dava dicas às
duas funcionárias. Em seu discurso, pautado por ideais de saúde e bem-estar, dizia que elas
sempre de passar um protetor solar no rosto, FPS acima de 30. - “Não pode ser ‘deixa a vida
tom de ironia, uma das manicures quebra o silêncio e sugere à colega de trabalho: - “Viu
Rosana, se duas vezes por semana você vier andando de Rio das Pedras até aqui o salão, já
adianta”.
desalinhamento por vezes gerado neste encontro entre ethos diferentes. A assistente do
colorista, uma mulher muito desinibida que há anos acompanha o profissional, conversa com
as clientes presentes. Conta que havia sido reprovada na prova prática de auto-escola e teria
que refazê-la. Como uma forma de lidar com seu insucesso, reproduz o que disse brincando
para o avaliador que a reprovou: - “Para que aprender a estacionar se os lugares que eu
Era para ser uma piada, mas nenhuma cliente ri. O colorista imediatamente faz a
mediação, dizendo em tom de brincadeira: - “De onde ela tira essas coisas?”. Uma cliente
logo se coloca na situação de interação e completa: - “Muito chique ela!”. A sala toda, só
então, começa a rir. Interpreto os risos como uma forma de colocar a assistente em seu
170
“devido lugar”. Porém, o mais interessante e sutil da história é que a própria assistente, ao
contar sua resposta ao avaliador da auto-escola, estava fazendo graça justamente com este seu
“devido lugar”, sua posição desprivilegiada enquanto moradora da periferia sem condições
Ambas as situações relatadas mostram que este tipo de encontro que o salão de beleza
proporciona, embora coloque em contato pessoas que em outra situação estariam apartadas,
não garante que as fronteiras entre classes socioeconômicas, quando ensaiam se embaralhar
Outro ponto que surgiu com grande recorrência durante a pesquisa de campo foi a
de serviço. Percebo que são os profissionais dos salões de beleza quem mais reforça este
aspecto da relação. Fazem questão de frisar que possuem clientes que, pela empatia e
Convites para festas ou casamentos costumam ser recebidos pelos profissionais dos
salões com grande euforia, como o caso de uma festa de máscaras realizada na residência de
uma cliente para a qual a equipe do salão de Botafogo foi convidada. No salão de Ipanema,
uma foto ampliada pendurada na parede da recepção mostra, como se fosse um troféu, um
171
82
evento social realizado pelas “socialites de terço” para o qual alguns poucos cabeleireiros
No entanto, por parte das clientes, tais idiomas de aproximação parecem não se
podem ser exemplificados pela distinção que uma das entrevistadas faz entre os termos
(...) Eu sei que se eu for a outro salão vou ter um serviço pior. Além disso, as
pessoas não me conhecem, então tentam ficar investigando sobre a minha
vida, o que eu não gosto. Lá onde eu vou semanalmente já me conhecem,
então tem coisas que já nem me perguntam mais.
Como o quê?
- “E aí, o que você fez no seu final de semana? Você namora? Você faz
isso?”. Tentam saber onde você mora, o que você faz normalmente.
E porque que elas tentam?
Eu acho que é para pegarem intimidade com você. Para terem um trabalho
mais saudável, um contato maior com você. Para que ela não seja tratada
como uma manicure e sim como uma pessoa. Ela é uma pessoa com
sentimentos, que também tem problemas. Eu acho que tudo que você diz ali
elas querem te ajudar.
Por que você faz assim entre aspas com os dedos para dizer “querem te
ajudar”?
Porque querem me ajudar, mas não são amigas minhas. Eu não abriria a
minha vida para elas. Porque eu acho que são pessoas que... Tá, tudo bem,
eu conheço esse salão há anos. Mas eu não gosto daquele contato de
amizade, aquela coisa que tem que saber de tudo da minha vida. Ela é uma
colega para mim, não uma amiga. Entendeu a diferença de relacionamento?
Amiga é aquela em quem eu confio, com quem eu posso contar, ligar, sair
para jantar, ir ao cinema.
E por que você não pode fazer essas coisas com a manicure?
Porque a manicure... Primeiro que já vive uma vida diferente da minha. Não
insinuando que ela seja menos ou mais do que eu, mas é alguém com um
mundo diferente. Ela tem um trabalho diferente. Ela não me vê todo dia, eu
não tenho o telefone dela, coisas pessoais dela. As coisas que eu sei, são
aquelas ditas ali. Muitas vezes eu não pergunto, são coisas que eu escuto.
(Maitê, auditora)
82
Termo utilizado internamente pelos cabeleireiros do salão de Ipanema para se referirem às socialites que
possuem forte ligação com a Igreja Católica.
172
(afeição, simpatia, ternura etc.) quanto a uma relação específica. Sentimento este que pode
estar presente em relações que não são caracterizadas como de amizade (2002:69). No caso
Ainda de acordo com Rezende, a amizade é vista em geral como uma relação afetiva e
voluntária, que envolve práticas de sociabilidade, trocas íntimas e ajuda mútua, e necessita de
algum grau de equivalência ou igualdade entre amigos. Sendo assim, as tensões que ocorrem
funcionários dos salões, colocam em questão certas noções de pessoa e realçam o caráter
situacional - em termos de gênero, classe social e fase da vida - dos indivíduos em jogo
(REZENDE, 2002:69).
Goffman ajuda a pensar tal questão quando aponta a oposição e o conflito inerentes a
indivíduo, como vai sua família ou mesmo sobre suas relações amorosas pode tanto ser
interpretado como um sinal de preocupação simpática, como uma invasão da intimidade. Este
último desdobramento costuma indicar que um ator com status diferente teve sua condição
revelada, justamente por perguntar algo que - pela sua posição - não deveria (GOFFMAN,
1976:487).
83
Uma das diferenças pontuadas entre amigas e manicures diz respeito às obrigações
implícitas nas relações de amizade, diferente daquelas que envolvem a prestação de serviço
83
Destaco manicures pelo fato de os próprios entrevistados não trazerem exemplos com outros profissionais do
salão de beleza. Justificam dizendo que a relação com manicures é mais próxima pelo fato de as unhas
demandarem uma manutenção mais constante, o que leva a uma maior freqüência ao salão e, conseqüentemente,
173
(uma troca comercial que se dá, sobretudo, pela via do dinheiro). Na amizade, qualquer tipo
de interesse (seja econômico, material, sexual etc.) deve estar afastado. Uma entrevistada, em
especial, chama atenção pela forma que diz ter encontrado para evitar a constituição de laços
com manicures:
O outro salão que eu fui, eu peguei uma manicure por indicação de uma
amiga. Aí eu fui criando uma relação com ela. Eu já sabia que ela tinha um
filho, que era do Nordeste, sabia dos relacionamentos dela, e isso foi ficando
uma coisa muito pessoal. Eu não gosto. A minha amiga às vezes convidava
essa manicure para aniversário e eu me sentia mal, porque eu não convido.
Eu também não dou gorjeta. Não gosto de ter a obrigação de dar gorjeta para
ninguém, de criar uma relação em que eu me vejo obrigada a fazer coisas
pela pessoa. Quando era aniversário dela eu levava um presente e eu não
quero mais ter essa cobrança. A manicure me presta um serviço, ela não é
minha amiga. Eu compro um presente para as minhas amigas. Se eu não
tenho tempo nem para as minhas amigas, eu não quero ter que disponibilizar
tempo para a minha manicure. Então depois desse salão eu mudei e estou
tentando não ter um relacionamento com a manicure atual. Mas nunca é
fácil. Isso porque você fica meia hora lá e sempre tem alguma coisa para
conversar. Às vezes eu levo meu I-pod e fico escutando música, para não ter
que conversar. Eu não quero me envolver. Quero ter a liberdade de, caso ela
tire um bife, poder trocar de manicure e não me sentir culpada. Ou não ter
que dar presente de Natal. (Jordana, promotora de eventos)
Outro ponto que costuma ser destacado para distinguir a diferença entre os papéis de
manicures e amigas, diz respeito à relação entre as noções de intimidade e confiança. Embora
exigido segredo, uma vez que ela faz parte de um ambiente em que informações circulam, não
por manicures, acaba por revelar a qualidade das relações em jogo, como pode ser observado
maior contato com tais profissionais. No entanto, como saliente Clyde Mitchell, uma alta freqüência de contato
não necessariamente implica em uma alta intensidade de relações sociais (1971:29).
174
A diferença é porque a minha amiga é uma pessoa pra quem eu passei minha
confiança. Ela sabe da minha vida, sabe o que eu passo, as dificuldades que
eu já tive. Ela tem noção de onde eu vim e o que eu fiz. E minha manicure
não é minha amiga, ela é uma pessoa que eu encontro uma vez por semana.
Sento ali, pergunto como foi o final de semana e ponto. Eu não sei da vida
dela e ela não sabe da minha. Então se ela falar mal de mim não vai me
machucar, até porque ela deve falar, mas eu nunca vou saber. Por isso que eu
digo: falar pelas costas todo mundo faz ou já fez. Isso não é só no salão.
(Maitê, auditora)
Um dado curioso que percebi durante as entrevistas com clientes foi que todas faziam
questão de deixar claro que não falavam de suas vidas pessoais para os profissionais do salão
Quando vou ao salão não sou daquelas que ficam fofocando pra me sentir
melhor. Se eu sei da vida das pessoas, ou de alguém do salão, é por escutá-
las conversando. (Maitê, auditora)
Eu, por exemplo, quando vou ao salão, óbvio que não vou falar nada da
minha vida.
Nada?
Não, nada!
E sobre o que você conversa?
Muito pouco, muito pouco mesmo! Às vezes eu falo alguma coisa do próprio
salão. Sobre a minha vida eu não conto nada. (Nazaré, estatística)
clientes que fazem uso dos profissionais do salão como confidentes ou conselheiros. Nesse
sentido, é reconhecido que outras clientes (que não elas próprias) podem sim considerar tais
175
também pode ser destacada em termos profissionais, ao invés de pessoais, como se costuma
colocar.
As pessoas acham que as manicures são suas confidentes. Elas acham que
quem está fazendo a unha delas ali é sua melhor amiga. Justamente por saber
que dali para fora a pessoa não é amiga, talvez ela até fique mais à vontade
para contar certas coisas. Acaba que a pessoa que está lá com você, bem ou
mal, vai ter que te ouvir. Ela está fazendo a sua unha, você vai ficar falando
e ela vai ficar te ouvindo. A pessoa que não tem ninguém para conversar
acaba que chega ali e encontra um ouvido. E fora que quem está fazendo a
unha também vai querer te agradar, né? Ela não vai dizer que não quer
conversar. Elas também puxam papo. Sempre perguntam alguma coisa. Até
porque elas sempre vão querer criar uma relação, um vínculo com a pessoa.
Que tipo de vínculo?
Acho que para quem está lá trabalhando é muito menos o vínculo de
amizade do que para quem está fazendo. Porque elas dependem de
conquistar as pessoas para que sempre as procurem. Se você vai fazer unha e
a manicure fica muda, da próxima vez você pode procurar qualquer outra.
Eu não. Quando volto fico com pena de não fazer com ela. Porque ela
sempre me trata bem. Mas eu acho que para elas é importante criar um
vínculo. Tanto que tem profissionais que saem do salão e levam todos os
clientes junto. (Nazaré, estatística)
Sobre o último trecho da citação, lembro das palavras de uma manicure, que chama
atenção para o fato de várias profissionais conquistarem as clientes muito mais pela simpatia
prestação de serviço), um dos pontos que vale atentar é o fato de que o salão é um espaço para
parte da experiência que elas desejam é ser ouvida e poder falar. Seja por meio de desabafos
desabafam, expõem sua intimidade e ensaiam uma aproximação que poucos ambientes sociais
2000:62).
Por muitas vezes o assunto gira em torno da vida das próprias pessoas que conversam,
com direito a atualização semanal, como se fosse uma novela contada em capítulos. Uma das
manicures de um salão em Copacabana diz: - “As clientes contam um caso, aí acontece algo
durante a semana e elas ficam loucas para te contar, como se fosse uma continuação da
história”.
desperta nas pessoas com quem comento, algum tipo de relato sobre suas experiências
pessoais ou algum salão que elas acham que eu devo ir por considerarem interessante. Em
Mas o que existe de particular no ambiente dos salões de beleza que estimula tal
verbalização de si, muitas vezes de assuntos tão íntimos que não cabem ser comentados em
outras esferas sociais? Algumas direções sobre tal questão podem ser apontadas.
familiaridade. Isto coloca o salão em um status híbrido: poucos são os locais públicos nos
84
É possível afirmar que muitas pessoas que expõem suas intimidades no salão de beleza utilizam tal ambiente
para tornar sua vida conhecida, disseminando informações positivas a seu respeito (lembrando que a
manipulação da identidade para menos também é uma possibilidade), como qualidades pessoais, posses
materiais, status social etc. Tal movimento faz lembrar o indivíduo narcisista, proposto por Christopher Lasch.
Oprimido pela cultura do individualismo competitivo, o narcisista é descrito como alguém hábil em administrar
as impressões que transmite aos outros e ávido por admiração, uma vez que depende de uma audiência para
validar sua auto-estima (LASCH, 1983).
177
quais as pessoas se sentem tão à vontade para relaxar, trocar confissões e contatos físicos ou
mesmo se deixarem ser vistas em estados de relativa “feiúra”, como acontece durante o
Outro fator é que o salão de beleza é um ambiente, no geral, sem ligação com as outras
esferas da vida de uma pessoa (trabalho, família, amizades, relacionamento amoroso etc.). De
acordo com Gluckman (1963), quanto mais estreitos os laços de relacionamento entre os
sujeitos envolvidos, mais atraente a fofoca se torna. Inversamente, quanto menor o laço entre
Sendo assim, por mais que as informações circulem dentro do salão, não costumam
ultrapassar suas fronteiras (embora haja casos em que elas efetivamente transbordem). O
salão, neste sentido, pode ser enxergado pelos seus freqüentadores como um espaço “neutro”
desconhecidas, que não necessariamente estão em contato com os sujeitos que constituem as
que os segredos da vida privada ultrapassem os muros das casas e encontrem nos salões de
Sabe coisas que às vezes você está muito em dúvida e não quer contar para
uma amiga e aí você conta para uma pessoa que você nunca viu na sua vida?
Tem um pouco disso em salão. É a oportunidade que você tem para contar
alguma coisa que você espera a reação de uma pessoa para te dar o “clique”
do que você tem que fazer. Assim você não se expõe. É como se fosse um
pré-teste, para ver a reação da pessoa. (Jordana, promotora de eventos)
A sua única ligação com aquela pessoa é ali, naquele ambiente, naquele
momento em que você está sentada. Não sai dali. Então vira um ambiente
seguro para desabafo. Você pode falar mal do seu marido para a mulher do
salão porque ela não o conhece e nem vai conhecer. São coisas que você não
falaria para sua irmã, para sua amiga, para pessoas com quem você se
85
Cf. MACHADO & VELHO (1977).
178
relaciona de uma maneira diferente, que têm ligação com a sua casa, com a
sua família.
Mas aí não existe o risco da sua intimidade ficar na boca dos outros?
Existe, mas quem está ali falando sobre sua própria intimidade não pensa
nisso. Vê aquilo só como um ambiente de desabafo. Ninguém ali realmente
se conhece, não é preciso dar nomes aos bois. O próprio fato de saber da
vida das pessoas, que outras pessoas também têm questões, já é uma
identificação. A pessoa deve se sentir até mais sossegada: - “Que bom que
tem outras mulheres que também estão passando pelas mesmas coisas!”
Pode ser até falso, ilusório, mas fica um ambiente seguro de mulheres. É
uma coisa de companheirismo mesmo, ali, naquele lugarzinho. Que nem
homem com bar antigamente. (Inês, assistente de edição)
serem considerados mais frágeis, não julgar ou não questionar o cliente se torna um valioso
recurso de manutenção e fidelidade da clientela. Dessa forma, poder se abrir sem ser julgada é
uma situação confortável, difícil de ser encontrada em relações que envolvam pessoas
íntimas, justamente pela liberdade que se tem de questionar ou contrariar a pessoa, quando se
As clientes são muito inseguras, não têm ação. Dá vontade de falar: - “Bota
esse homem para fora de casa! Ele não presta!”. Mas se a gente fala isso,
elas não voltam mais. Falam do mesmo problema o ano inteiro, do filho
drogado.... (Manicure de um salão em Copacabana)
86
Sobre este ponto, Elisabeth Bott (1976) já havia chamado atenção para a diferença de comportamento, por
exemplo, em situações de relação com um grupo mais fechado de amigos - closed networks (onde o sujeito é
consideravelmente influenciado por desejos e expectativas desses amigos) ou quando em relação com grupos
com os quais possui menor envolvimento - open networks (seu comportamento tende a ser mais inconsistente,
uma vez que suas atitudes não o colocam em situações de grande desprestígio).
179
A entrevistada que diz ter passado por situação similar na posição de garçonete atenta
para uma observação interessante, comum a certas profissões que lidam diretamente com o
público. Uma vez que tratar bem a clientela (no sentido de ser paciente e dar atenção, entre
outros aspectos) é fundamental para o sucesso do negócio, alguns clientes acabam por fazer
uso de tal orientação e transformam a pessoa que presta o serviço em algo além de suas
Tal como o “profissional da escuta”, deve imperar idealmente, nas relações dos
profissionais da beleza com as clientes, atitudes como discrição, saber ouvir e guardar
segredos. Podemos identificar aqui não apenas um forte processo de conversação, mas
Tal tema se torna ainda mais evidente nas orientações dadas aos futuros profissionais
1- O profissional deve enaltecer, sem exagero, os dotes físicos da cliente, descobrindo, entre eles,
aquele que mais mereça elogios, como, por exemplo, os olhos, o nariz, a boca, a tez, o formato
do rosto, o próprio cabelo etc.
2- Quanto aos defeitos físicos da cliente, não devem ser “notados” e quando o forem, devem ser
apontados naturalmente e de maneira bastante inteligente para não ferir a sua sensibilidade.
4- O profissional, ao ser interpelado para se manifestar sobre a idade da cliente, deverá declarar
sempre alguns anos a menos do que realmente calculou.
5- O profissional deve ser bom observador e bom ouvinte, pois a cliente, muitas vezes, mais pede
sugestão do que propriamente expõe a sua vontade.
6- O profissional não deve se imiscuir nas conversas sigilosas das clientes, bem como deve
aprender a ouvir desabafos e não expor os seus.
87
Embora se refira às tecnologias do sexo, o tema da confissão, pensado por Michel Foucault (1984b), é
interessante para pensar a sociedade ocidental moderna enquanto uma sociedade da confissão. Falar a verdade
(seja sobre o sexo, seja sobre outras questões da esfera do íntimo- tal como ocorre em salões de beleza) seria
uma relação não apenas entre interioridade e saber de si, mas entre interioridade e construção de si, uma vez que
não se fala apenas de “verdades”, mas de sonhos, desejos e projeções.
180
7- Os assuntos de conversas com as clientes, quando iniciados pelo profissional, devem ser
sadios e proveitosos, sem se estenderem em prolixidades.
fazem parte do universo dos salões de beleza no que se refere às regras gerais que regem as
relações entre clientes e seus profissionais. Dessa forma, a sociedade estabelece modos
feminino.
qualidades, o ignorar de seus defeitos, a comparação com pessoas famosas bonitas, sentir-se
mais jovem, sugestões sobre sua aparência, desabafo de problemas ou simples bate-papos.
Porém, tais sugestões não esgotam o que as pessoas buscam em salões de beleza.
que salão de beleza é um grande teatro, no qual ele tem que desempenhar vários papéis: o
psicólogo, o louco (o que certas clientes falam deve entrar por um ouvido e sair pelo outro), o
campo pela freqüência com que era mencionado por manicures e cabeleireiros com quem tive
contato. “Apesar do nível somente técnico dos profissionais, muitas vezes eles são mais
que ouvi muitos profissionais da beleza afirmarem que, no dia-a-dia, desempenham o papel de
psicólogos e peço que comentem sobre isso. A primeira separação que uma das entrevistadas
faz é distinguir psicólogo de confidente, uma vez que se confundem por ambos terem em
181
comum a questão da escuta. Uma formação acadêmica reconhecida e ética profissional são
Falar que são psicólogos é um pouco forte. Primeiro que eles não estudaram
para isso, não têm o conhecimento acadêmico. Eles não têm uma ética
profissional. Enfim, eu acho que eles talvez se sintam como psicólogos
porque sabem que o psicólogo escuta muito. E a posição deles ali é sempre
de ouvir. Não tem como você ir ao salão e ficar quieta, não falar nada.
Alguma coisa você fala, até a água e o cafezinho que é servido te faz se
sentir mais à vontade. O que aproxima os profissionais do salão do psicólogo
é que eles acabam escutando muitos relatos de vida. E muitas vezes eles se
sentem em uma situação de dar conselhos para o cliente, apesar de psicólogo
não dar conselhos. Então existe um papel mesmo de confidente.
Define confidente.
É uma pessoa que passa confiança. O cliente vai até o salão e encontra um
momento, uma oportunidade de falar da própria vida, de se abrir.
E por que o salão inspira isso? Por que o salão acaba se tornando um
lugar propício pra se abrir?
Não é exclusividade de um determinado salão. Qualquer salão tem isso. Não
importa se é de grande ou pequeno porte, se tem filial ou não. Mas eles
sempre têm pessoas comentando, ou da própria vida ou da vida do outro. A
pessoa está ali sem máscara, sem armadura, na sua essência, com as suas
dificuldades. E acho que passa muito por essa coisa da auto-estima, da
pessoa estar buscando melhorar a aparência. Então quando ela chega ao
salão, ela já está buscando alguma coisa: - “Poxa! Hoje eu não estou muito
bem, então eu queria fazer um corte diferente, levantar o astral”. (Bady,
graduada em psicologia)
ambiente físico, como também na própria disposição física das pessoas envolvidas nas
cabeleireiro é como se fosse um divã. O cliente se olha pelo espelho e, no fundo, ele está
Uma das psicólogas entrevistadas atenta para o fato de o próprio cliente estar sentado
de costas para o cabeleireiro e de frente para a imagem de si, refletida no espelho. Disposição
No entanto, com relação à manicure tal configuração muda. O contato é face a face, sem a
para os clientes. Por vezes, tal jogo pode se inverter, evidenciado que se trata também de uma
relação de troca, como foi o caso ocorrido entre mim e uma das manicures do salão de
Botafogo.
Um dia a percebo mais introvertida do que o usual. Pergunto por que está quietinha e a
manicure revela que não está num dia legal. Começo então a conversar com ela e me coloco
como sua ouvinte. Diz que está muito triste, mas não sabe o porquê. Revela que se mudou
para a casa do namorado há uma semana. Em seguida me mostra a sandália que comprou na
hora do almoço, mas que não está muito convencida se realmente gostou.
Embora eu acredite que a dúvida diz mais respeito à situação nova de coabitação do
que ao novo objeto, tento reanimá-la. Começo então a elogiar a sandália. Falo que é um
modelo clássico, que lembra um estilo Channel, que nunca sai de moda. Digo, ainda, que a
cor é neutra, o que a permite combinar com tudo. Quando estou indo embora do salão, a
manicure vem me procurar e diz que está passando a gostar mais da sandália.
Saio do salão e me sinto feliz, tal como acredito que muitos dos profissionais que
uma cliente que chegou desanimada. No entanto, é preciso enxergar não apenas a satisfação,
183
mas também a dificuldade que deve ser para os profissionais da beleza desempenhar este
“serviço de escuta”.
Sobre tal questão, Paula Black atenta para o fato de os salões de beleza abrigarem
formas de relações que costumam ser mais íntimas que aquelas formadas em outros setores de
serviço. Aponta então duas possibilidades para a compreensão de tal fenômeno: que o contato
íntimo com o corpo, pressupõe uma sensibilidade para lidar com as emoções dos outros; e que
intimidade corporal, o que possibilita uma aproximação com contornos bastante específicos
(BLACK, 2004:81).
como parte vital de seu papel, não apenas pelo bem que costuma proporcionar ao cliente,
competitivo.
No entanto, apesar de cientes dos benefícios trazidos, esse “trabalho de escuta” não
deixa de ser sentido enquanto uma experiência ambígua para o profissional da beleza. Em
termos de sua saúde emocional, tal papel por vezes é uma experiência difícil e exaustiva.
(BLACK, 2004:18) Uma das manicures do salão do Catete desabafa: - “Imagina, você já tem
delas em você ou resolvem contar para a gente. Não é mole não” (Joelma, manicure).
184
outros. Existe quem afirme não gostar do ambiente por estar associado a um lugar de
futilidades, supérfluos, egos exaltados e exibição, como fica evidente nas falas das
entrevistadas.
É um lugar cheio de futilidades, mas quando você não tem faz uma falta!
São papos fúteis, onde a grande preocupação, o foco, é só a aparência.
(Mirela, psicóloga)
Falsidade é outro estigma que o ambiente de salões de beleza carrega. Ao levantar tal
e manicures de estreitar laços de fidelidade com os clientes, seja pela via da conversação ou
pela estratégia do elogio. Destaco uma passagem enunciada por uma cliente que coloca tal
De acordo com a definição de Elias e Scotson (2000:21), fofoca são informações sobre
terceiros, transmitidas por duas ou mais pessoas umas às outras, que podem ter tanto um
caráter depreciativo (blame gossip) quanto elogioso (pride gossip). Definição esta que se
aproxima daquela proposta por Epstein, para o qual fofoca é a discussão de assuntos e
De acordo com as pessoas com quem conversei, fofoca pode tanto ser uma
informação sobre outrem que não deveria ser passada adiante pelo grau de intimidade que
186
revela sobre a vida do(s) sujeito(s) do enunciado. Ainda, a mesma informação pode ser
como fofoca.
Fofoca são coisas faladas pelas costas de uma pessoa. Um exemplo que teve
nesse salão que freqüento: tem um homem que faz unha toda semana. Mas
ele não é viado, tá? Isso tudo eu sei sem perguntar, para você ter noção de
como são essas coisas em salão. Aí ele se separou e depois casou com uma
mulher, que é até uma loira, nada de muito bonita não, mas dizem que ela é
mais nova do que ele. Ele é um engenheiro “bambambam” de uma
construtora. E antes dele se separar já estavam dizendo que ele estava com
uma amante. Isso, para mim, é fofoca. Porque eu tenho certeza que ele não
abriu esse espaço com as manicures. Provavelmente ele só deve ter falado
que estava se divorciando e logo depois apresentou a tal. É isso que eu sei,
eles não são casados, mas moram juntos e que ela é daquelas mulheres que
se cuidam bem. Então são coisas escondidas, faladas por trás de uma pessoa.
Aumentadas, às vezes. (Maitê, auditora)
Em todo caso, o que vale destacar é como a fofoca, seja ela condenatória ou não,
toda fofoca que ouvi nos salões investigados tinha um ar condenatório, o que não significa
que não houvesse implícitos valores e normas sociais. O próprio fato de ser assunto digno de
serem vistos como locais propícios para comentários, diz respeito à associação que se faz
entre fofoca e mulher. Em outras palavras, é atribuída uma “natureza” própria ao gênero
Diferente dos homens, as mulheres são tidas como mais ligadas à aparência e propícias
então como espaço privilegiado para tais características serem potencializadas, não apenas por
ser um espaço onde se trabalha a aparência física, mas também por concentrar muitas
A gente tem o salão e o homem tem o dia de chope com os amigos. Homem
diz que não fofoca, diz que conversa. Eles falam de futebol, trabalho,
dinheiro. Eles não reparam muito se o outro homem está bonito. Já a mulher
é muito mais preocupada com o visual dela e das outras. Preocupa-se muito
toda vez que vai sair, como vai ser vista pelas outras pessoas. O homem põe
a roupa que quer, é muito tranqüilo. (Maitê, auditora)
Outro fator mencionado que justifica o salão ser um ambiente fértil para fofocas é a
convivência. Não apenas aquela que se dá entre os profissionais que compartilham o mesmo
188
espaço físico durante oito horas diariamente, como também a convivência mais fortuita com
ou entre clientes. De acordo com a definição de Gluckman (1963:313), fofocas são feitas por
sujeitos sobre outras pessoas com as quais se encontra em relação social próxima. À medida
comentários e histórias passam a ser não apenas sobre a vida de artistas e celebridades, mas de
Porque no salão você vai sempre. Por exemplo, quando você vai consertar a
torradeira, você não estabelece vínculo nenhum com o cara, porque a sua
torradeira não quebra toda semana. No salão você vai toda semana, todo
mês. Então é um lugar onde, querendo ou não, você vê a pessoa com muita
freqüência. (Jordana, promotora de eventos)
Hábito ou costume são duas outras noções mencionadas. Como se em salões de beleza
o fofocar fosse uma prática naturalizada, parte do cotidiano daquele tipo de espaço. A ponto
de não ser percebida como algo negativo pelos profissionais que se encontram imersos em tal
Talvez o fato de os profissionais ficarem ali tanto tempo sem sair. Eles
acabam não percebendo o que estão fazendo ou, se percebem, já é tudo
muito natural. A manicure fica ali o dia inteiro. Eu acho que isso é uma coisa
que facilita. (Bady, graduada em psicologia)
No salão você está ali sentada, imóvel recebendo um serviço, então você não
pode fazer nada além de falar. E essas pessoas que estão ali fazendo também
levam muito no automático. Elas são especialistas, então conseguem fazer
outras coisas ao mesmo tempo. Elas podem conversar, podem te ouvir,
inclusive fofocar. (Inês, assistente de edição)
Falar sobre a vida de pessoas públicas ou de celebridades é outra atividade tida como
característica de salões de beleza, o que contribui fortemente para sua associação à dimensão
da fofoca.
Outra categoria relacionada a fofoca surge nos discursos dos entrevistados. Diz
respeito não àquela que se dá sobre a vida dos clientes, mas sim entre os funcionários do
190
E quando fica aquela fofoquinha, aquele tititi? Uma funcionária falando mal
da outra. Incomoda demais. A pessoa não está nem fazendo a sua unha
direito porque está olhando se a fulana atendeu fulano, se pegou a cliente
que é dela, reclamando que ganha pouco e vai mudar de salão. Eu vejo isso
muito forte em salão, em todos. Não vejo um único salão que não tenha isso.
(Maura, comerciante)
O cara que cortava o meu cabelo, falou que salão é um dos ambientes de
trabalho mais pesados que se pode imaginar. Pela competição, um falando
mal do outro. Eles também são muito maltratados pelos donos do salão, em
relação à carga horária. Então ele dizia que era um ambiente horrível, um
lugar pesadíssimo. (Rubens, engenheiro)
O salão de beleza carrega uma imagem tão associada a fofocas que, por vezes, uma
simples conversa estimulada pelo profissional do salão, seja para passar o tempo ou para
A minha manicure antiga, toda vez perguntava quando eu ia casar. Acho que
por isso também que fui embora. Cara, eu não agüento mais, senão daqui a
191
pouco ela vai querer que eu a convide para o meu casamento. (Jordana,
promotora de eventos)
Chegamos finalmente a um ponto que vale atenção. Não há como negar que fofoca é
uma realidade encontrada em salões de beleza, embora não seja exclusividade de tais
ambientes. Contudo, o que se encontra nestes espaços voltados para a beleza é muito mais que
e até computador com acesso a internet, contribuem para a circulação de informações. Nas
palavras de uma manicure, “para estar nessa profissão é preciso ser bem-informada”. Refere-
Embora parte importante de tal conversação seja composta por fofocas, o que se
assuntos, contam suas experiências, trocam notícias sobre acontecimentos, discutem idéias
etc.
fato de ser uma “região aberta” (CAVAN, 1966:142), ou seja, um lugar no qual é esperado
das pessoas presentes maior liberdade para iniciar ou aceitar uma conversação, a experiência
do que ocorre em outras situações sociais de encontro, como viagens em ônibus coletivos ou
salas de espera de consultórios médicos, por exemplo. Apesar de, naturalmente, existirem
192
pessoas mais abertas a interação do que outras, prevalece no salão um clima geral de
aproximação, e não de evitação. A comunicação, neste sentido, assume uma forma particular.
Os assuntos costumam ser os mais variados, desde aqueles ligados à vida privada até
prevalência de algumas temáticas. Se eu tivesse que definir aquelas a que tive mais acesso
Elas falam da vida, dos amores, da família, dos amigos. E de alguma forma
esperam conseguir ali conselhos para questões que estão latentes. Acho que
não existe sobre o que não se fale no salão. (Rubens, engenheiro)
Corpo é outra temática que emerge com recorrência, sob os mais variados aspectos.
Seja em conversas sobre dieta, exercícios físicos, troca de informação sobre médicos,
Tal fato se torna possível pelo próprio conteúdo do que está sendo trabalhado ali
dentro dos salões: a beleza corporal. Por se tratar de uma “obrigação” compartilhada entre
mulheres, os esforços empreendidos para a boa apresentação de si por muitas vezes atuam
como dispositivos de conversação. É comum ver mulheres no salão puxarem assunto a partir
de tópicos relacionados a beleza. Um corte de cabelo bonito ou uma cor de esmalte diferente,
por exemplo, podem atuar como gatilho para o início de uma interação.
De qualquer forma, o ponto a que nos devemos ater é que os salões de beleza podem
aprendizagem. A partir dos encontros promovidos por aquele espaço é possível ter acesso a
outros mundos, como saber o que se passa nos bastidores de um hospital público por meio das
193
histórias contadas por uma médica que tem suas unhas feitas. Ou ter conhecimento sobre a
estrutura de uma operadora de telefonia celular e receber dicas de uma pessoa que lá trabalha
sobre como lidar com operadores de telemarketing a fim de conseguir resolver seus problemas
Uma situação vivenciada no salão de Botafogo despertou minha atenção. Uma cliente,
enquanto tinha suas unhas feitas, conversava com sua manicure e mais dois funcionários,
incluindo a dona do salão. Contava sobre a sua luta para remover um tumor no ovário e a
dificuldade de encontrar uma solução rápida, uma vez que seu plano de saúde não cobria tal
cirurgia e o tempo de espera pela rede pública de saúde era muito demorado.
Percebo as pessoas que participam da conversa cada vez mais se sensibilizarem com a
história e se envolverem na busca por soluções. Pensam juntas diversas alternativas e parecem
chegar a uma idéia que parece a mais efetiva: a cliente deveria casar rapidamente em cartório
com o namorado, uma vez que já tinha a intenção de fazê-lo, e entrar como dependente do
plano de saúde oferecido pela empresa do mesmo, que provavelmente cobriria os custos da
operação.
A cliente não apenas sai com uma nova perspectiva, mas com informações valiosas
(por exemplo, que o cartório do bairro Catete costuma ser o mais ágil) e oferta de ajuda (a
dona do salão se oferece para buscar a papelada no Catete assim que ficar pronta, pois passa
toda semana pelo cartório). A manicure que faz minhas unhas e sabe sobre minha pesquisa,
olha para mim e diz quando a cliente vai embora: - “Viu, salão é informação. Aqui você fica
Percebo um esforço por parte dos próprios profissionais da beleza de tentar reverter o
estigma do salão de beleza enquanto espaço de assuntos fúteis. Contudo, alguns o fazem com
uma veemência que beira o tragicômico. Uma tarde, na sala do colorista do salão de Ipanema,
engrena em um papo e fica, pelo menos, 30 minutos falando de forma inflamada sobre
“Tem que passar trator nas favelas, para reconstruir aquilo tudo. Deixar um ano o
pessoal alojado nas escolas públicas. O pessoal perde um ano de aula, mas vale à pena. É só
dar uma bolsa-auxílio para cada família enquanto espera terminar a obra”, diz Jacques, o
“civilizado”, que deveria ser referência para o Rio de Janeiro (havia acabado de voltar de
viagem de lá), sem sujeira, sem população de rua, com pessoas educadas...
O assunto me intriga, pois não sei aonde ele quer chegar com tamanha exasperação de
discurso. Ao final dos 30 minutos o colorista olha para mim e fala: - “Viu, como aqui também
se fala de política?”
Pergunto então sobre o que mais se fala ali. Ele responde: - “Fala-se de tudo, menos
fofoca, porque odeio”. No entanto, minutos antes de engrenar no papo sobre política o
colorista havia me contado a vida de duas clientes em detalhes: a primeira costumava tirar a
roupa no vestiário do salão e ele tinha medo, porque achava que a cliente se oferecia para ele.
Dizia que ele era gostoso e que um dia iria “pegá-lo”. - “Eu dava logo pinta de gay, me
A segunda cliente sobre a qual comenta era uma senhora que havia acabado de chegar
poucos minutos seu drama familiar, sem eu ter perguntado nada. Conta que é uma viúva
muito rica, cujos filhos se aproveitam do dinheiro dela. Quando ficam endividados vão morar
Como define uma cliente para mim, “papo de salão é muito bom”. Confesso que, por
algumas vezes, tive que me conter para não dar uma gargalhada e perceberem que eu estava
atenta às conversas ao meu redor. Os assuntos variam dos mais dramáticos aos mais
195
inusitados. Uma vez observo duas clientes de idade já avançada conversarem em um salão de
Copacabana. O assunto é de que forma desejam que sua morte seja consumada. Ambas
desejam ser cremadas e trocam informações a respeito, inclusive que cremação é “baratinho”
cliente atendido. No entanto, muitas vezes tal esquema de duplas de conversa é quebrado,
“mesa redonda”, nas palavras de uma cliente com quem conversei. - “É pura diversão”,
conclui.
Com a crescente segmentação dos serviços de beleza, os salões hoje se oferecem como
Nas palavras de uma empresária dona de um salão de beleza que concentra algumas
dessas especialidades, “Como Platão no ano 380 AC escreveu: a cura da parte não deve ser
feita sem o tratamento do todo. Não podemos curar o corpo sem considerar a alma e devemos
começar curando a mente porque tanto a mente quanto o corpo deve ser saudável” 88.
88
Matéria jornalística, disponível em <http://www.hairbrasil.com> 28/05/2007.
196
apenas persiste no imaginário ocidental atual como adquire formas concretas no que tange às
profissional da beleza, traz para discussão outra dicotomia: aquela entre “exterioridade” e
“interioridade”.
Acho que as pessoas confundem. Acreditam que estar bonita é estar feliz. O
profissional do salão faz o que? Faz você ficar bonita, o que dá a falsa
sensação de estar bem. Mas nunca poderá ser comparado a um psicólogo.
Porque o que ele faz é extremamente externo, arrumar a casca. O que está
por dentro continua e vai voltar a aparecer. (Mirela, psicóloga)
No entanto, não se pode ignorar o potencial que esta “dimensão externa” possui, em
termos dos efeitos positivos que é capaz de produzir sob os indivíduos, por mais imediatos ou
a curto prazo que sejam. Os profissionais da beleza, melhor que ninguém, sabem disso. Um
dos sócios do salão de Botafogo comenta que a mudança corporal promovida pelo salão é
“quarentona, solteira, toda apagada”. Usava o mesmo estilo de cabelo há anos e um dia
resolveu mudar (coincidentemente, ela havia feito um corte de cabelo no salão de Ipanema
que investigo). Quando a mulher chegou ao trabalho com o novo visual, todos elogiaram com
O ponto destacado na fala do narrador foi justamente o fato de a “nova” mulher ter
passado a agir de modo diferente. Diz que agora ela voltava do almoço e só tirava os óculos
89
Sobre a “obrigação” de notar mudanças na aparência do indivíduo em relação, Cf. GOFFMAN (1976:486).
197
escuros quando sentava em sua mesa, já dentro do escritório. - “Era muito engraçado, ela
chegava como se fosse uma pop star. Porque ela estava se sentido muito bem, ela estava
curtindo muito”.
percepção de que no salão de beleza o sujeito entra uma pessoa e sai outra. Fazendo uso dos
termos empregados pelos próprios entrevistados, “entra feia e sai bonita”. Como se a porta de
Eu entro e penso que quando sair, eu serei uma outra pessoa. Pode ser a
coisa mais ridícula, fazer unha. Sua cara não mudou, seu corpo não mudou,
você tem o mesmo rosto, o mesmo cabelo, mas você se sente melhor, se
sente mais limpa. (Maitê, auditora)
É um lugar onde você entra de um jeito e sai bem melhor. Mesmo que seja
em um detalhe que ninguém vai perceber, mas você já está se sentindo bem.
Eu não gosto de freqüentar, mas eu sempre me sinto mais bonita quando eu
saio com a unha feita, com o pé direitinho. (Jordana, promotora de eventos)
A mudança pode ser vivenciada como uma experiência prazerosa e até lúdica. No
entanto, nem sempre garante resultados positivos. Muitos são os relatos de pessoas que foram
198
ao salão e não tiveram um serviço bem sucedido. Nestas situações específicas, o salão pode
deixar de ser um espaço que gera prazer para se tornar uma fonte de insatisfação.
Mas que mudança é essa que o salão de beleza proporciona? Fazer um corte diferente,
pintar as unhas de uma nova cor ou mesmo mudar a tonalidade dos cabelos pode estar
Pode ser usado para marcar a entrada do indivíduo em um novo status social, para dar
significado a um novo momento da vida, podendo este ser concreto ou algo ainda não
atingido. Em outras palavras, por meio de uma nova realidade corporal dá-se sentido a uma
uma característica física; ela opera, em primeiro lugar, no imaginário e exerce uma incidência
na relação do indivíduo com o mundo” (LE BRETON, 1999:30). O salão, dessa forma,
Se não o faz efetivamente, ao menos serve como motivação para a pessoa se abrir a
novas possibilidades e, mais “segura” com o novo visual, buscar sozinha a mudança desejada.
Tal transformação sugere um fenômeno terapêutico que poucos espaços no contexto urbano
Salão de beleza para mim é um lugar que eu uso quando estou com alguma
chateação que não consigo resolver sozinha. É como um clínico geral, você
vai quando não sabe que remédio tomar para curar algum problema.
Definitivamente, quando a minha aparência começa a me incomodar não é
apenas um problema externo. Tem a ver com necessidade de auto-estima.
Costumo apelar para os salões quando eu quero dar uma mudada na minha
vida. Começo sempre pelo cabelo. (Fabiana, designer)
Salão de beleza é remédio para baixa auto-estima. Pra mim é como comprar
uma boa calça jeans. (Flaviana, publicitária)
199
Desacreditados do poder renovador que uma simples unha feita ou um corte de cabelo
pode ter sobre o humor de uma pessoa, alguns profissionais da beleza revelam certo
comenta: - “O problema, muitas vezes, está na cabeça delas, não no cabelo!”. Resignado, um
cara me coloca um desafio. Assim que entro no salão principal, ouço a seguinte frase de uma
cliente para sua cabeleireira: - “Brigite, eu quero que você me emocione! Vim aqui para você
me emocionar!”. Que emoção é esta a que a cliente se referia? Em um sentido mais geral, que
de espírito”, “auto-estima” ou “beleza interior”, entre outras, confesso que sentia dificuldade
em lidar com elas no contexto em que eram ditas. Precisei me dar conta de que não poderia
pensar os processos produzidos a partir dos salões de beleza sem levar em consideração
O léxico de palavras utilizado para descrever o que as pessoas buscam nos salões gira
O retorno psíquico de fazer as unha ou cortar os cabelos no salão de beleza por vezes é
tão recompensador que muitas pessoas não poupam esforços - no sentido de tempo ou
O salão de beleza enquanto espaço para “cuidar de si”, categoria que emerge diversas
vezes nos discursos das mulheres, pode estar associado a um afastamento temporário das
atividades utilitárias do dia-a-dia. É encarado como um momento que a pessoa reserva para si
201
mesma.
social e temporal do “mundo lá fora”, em termos de uma mudança de cenário, uma fuga da
Ao clamar tempo para si no salão, completa a autora, a mulher está fazendo uma
afirmação sobre seus próprios sentimentos de valia. Esse tempo para si, geralmente, é uma
mensagem aos parceiros ou outras pessoas que fazem demandas sobre seu tempo. Tal
escapismo, conclui, pode ser visto enquanto “um mecanismo de sobrevivência” (BLACK,
2004:56).
Porém, esse cuidar de si, no contexto dos salões de beleza, solicita certa freqüência. É
tido como um processo contínuo que, no geral, deve se dar semanal ou mensalmente (havendo
entanto, sanções simbólicas são impostas quando ultrapassadas as fronteiras do que se entende
por freqüência ideal. “Perdida”, “insatisfeita” ou “volúvel” são algumas formas de classificar
aquelas mulheres que procuram demais o salão. Para as que freqüentam menos, “relaxada”,
cirurgia plástica 90. O que confirma ser o salão de beleza não um fenômeno isolado, mas parte
de um sistema maior que engloba outros espaços. Nas palavras de Paula Black, “diferentes
Podemos considerar que vivemos uma época em que o imediatismo é um atributo cada
vez mais valorizado. Esta busca pelo imediato também se faz sentir na relação das pessoas
unhas ou pêlos, leva fortemente em conta fatores como rapidez, facilidade e custo. A
percepção é que estas partes específicas do corpo são de fácil modificação, uma vez que não
demandam o emprego de grandes esforços pessoais. Em termos práticos, não é a pessoa que
executa, mas executam por ela. É um processo dependente da intervenção de um outro que
academia de ginástica, por exemplo. Seja fazendo exercícios físicos ou dieta, nestes dois
próprio corpo.
90
Para cada um dos ambientes citados indico as seguintes leituras: shopping centers, Cf. FRÚGOLI JR. (1990);
academias de ginástica Cf. SABINO (2004); cirurgia plástica Cf. GONÇALVES (2001).
203
No caso da cirurgia plástica, tal prática se aproxima daquelas empregadas nos salões
mudança empregada: enquanto nos salões trata-se de uma manutenção pequena e regular, sem
se fazem permanentes.
Por fim, a aproximação mais recorrente é aquela que relaciona com compras em
shopping centers. Por diversas vezes o ato de comprar roupas ou acessórios para si foi
associado ao ato de ir ao salão. Vestimentas, cabelos, pêlos e unhas, neste sentido, são
Se você está bem vestida, mas seu cabelo está horroroso ou você está sem
maquiagem, você não vai ficar tão bonita. Você só fica linda se tiver roupa
bonita, sapato bonito, cabelo feito e rosto maquiado. Eu acho que é um
conjunto perfeito: salão e loja de roupa. (Rebeca, auxiliar administrativa)
Por trás do discurso elaborado sobre o cuidar de si, podemos encontrar muitas outras
mesma”. Aceitação e competição são dois pontos que merecem atenção especial. O primeiro
diz respeito à apresentação de si. Os serviços buscados em salões de beleza, por vezes, são
Acho que elas vão atrás de aceitação. Normalmente quem freqüenta salão
regularmente são pessoas que têm uma maior exigência de beleza na vida.
Podem ser pessoas de mundos diferentes, desde a mais ralé que tira parte do
salário pra ir, até a mais madame para quem ir ao salão é um passatempo.
Mas, com certeza, elas têm algo em comum. Acho que porque a beleza, para
elas, abre portas para se sentir bem, para arrumar um namorado rico, um
emprego melhor, adquirir mais confiança, manter uma imagem, segurar o
marido, fazer amigas, não ser motivo de comentários sobre como a pessoa se
descuida e tudo mais. Na vida de algumas pessoas a beleza é uma obrigação,
como escovar os dentes. (Fabiana, designer)
Nem todo mundo precisa de uma academia. Já salão, todo mundo necessita
ir. (Rebeca, auxiliar administrativa)
Salão é um lugar onde eu tenho que ir por obrigação. Eu tenho que ir porque
senão as pessoas ficam comentando que minha unha está horrorosa, que eu
tenho que fazer a raiz do cabelo. Eu não vou porque gosto. É chato, porém
necessário. (Jordana, promotora de eventos)
pessoa a se fazer bela, compartilha-se a idéia de que as mulheres não apenas se embelezam
para atrair a atenção do sexo oposto, como também para se destacar na competição velada (ou
aberta) que existe entre o sexo feminino. A feminilidade, neste sentido, é construída não
205
elaboração de significados sobre gêneros 92, outro tipo de competição é apontado por uma das
esforço das mulheres em tentarem melhorar cada vez mais a própria aparência, processo este
91
A fala do cabeleireiro faz lembrar a leitura de Lipovetsky (1989:136) sobre como o cuidado com o corpo é
distintamente trabalhado por homens e mulheres. O autor sugere que o corpo masculino recebe uma imagem
mais global, existindo pouco interesse pelo detalhe e sendo poucas as regiões a serem cuidadas esteticamente
como elementos separados. Em compensação, na mulher, o cuidado com o corpo é estruturalmente fragmentado.
Seu olhar analítico se encontra mais voltado para as partes que para o todo.
92
Embora também seja identificada uma competição entre homens, a diferenciação feita pelos entrevistados é
que tal competição se constitui menos pela via da apresentação física e mais pelo poder, especialmente no que se
refere à dimensão do trabalho.
206
especialmente entre as clientes, seja por meio de enaltecimento das próprias qualidades e
conquistas ou por meio do olhar que lançam às outras clientes em busca de elementos para
crítica ou comparação.
Durante a pesquisa de campo era possível observar as clientes reparando umas nas
outras. Por vezes, não conseguiam ao menos disfarçar seu olhar ao acompanhar uma mulher
que chamasse atenção por algum motivo. No entanto, acredito que o objetivo de tal atenção
nem sempre se destine a uma posterior crítica. Muitas vezes, o outro atua como espelho, como
o pintar, pela primeira vez, o cabelo de uma adolescente. Ela havia sido levada pela mãe, uma
207
mulher de aparência vaidosa, que insistia para que o colorista convencesse a filha de que seu
De repente, o colorista caminha até mim, pega no meu cabelo e mostra à adolescente o
quanto é ruim ter fios finos e ralos. Ele fala: - “Olha para ela aqui, olha só a quantidade de
cabelo! Desculpa Patrícia, não é por nada não, mas é que ela tem que aprender a valorizar o
cabelo dela”. Com muito esforço consigo ensaiar um sorriso. Considero o silêncio a melhor
Não são apenas os clientes do salão que servem como “vitrine” para imitação. Os
próprios profissionais que trabalham em salão de beleza também se enxergam enquanto tal. -
“Você tem que dar o exemplo”, diz uma cabeleireira do salão de Botafogo. Daí a preocupação
tem notado as mulheres não apenas quererem o cabelo igual ao da amiga ou da artista de
pensar a questão da imitação (Quem imita quem? O que é imitado? Que padrões estético-
corporais estão sendo seguidos?), mas bons para pensar também os limites dos atuais
Voltando à questão do cuidado de si, vale lembrar que o mesmo não se dá sem a ajuda
de terceiros. Neste sentido, o salão de beleza se destaca enquanto espaço não apenas para
cuidar de si, como também para ser cuidada. Nele é criado todo um ambiente de receptividade
e cuidados, no qual muitos dos clientes afirmam se sentirem bem e à vontade. Segundo
Goffman,
208
Pergunto a uma das entrevistadas o que mais gosta no ambiente de salão de beleza.
Ser paparicada (assumindo meu lado fútil). Ficar sentada e todo mundo fazer
tudo por mim. O melhor é quando você faz cabelo, pé, mão, tudo ao mesmo
tempo. Várias pessoas fazendo alguma coisa por você. Deve ser uma
imagem arquetípica da época dos grandes imperadores, que ficavam
sentados e todos fazendo de tudo pra ele se sentir bem, dando uva na boca,
bobo da corte para fazer ele rir... (Mirela, psicóloga)
Dos três salões de beleza em que realizei trabalho de campo, a criação de um ambiente
impossível uma cliente passar despercebida pelos funcionários. Logo quando chega ao salão,
olham e sorriem para os clientes a maior parte do tempo, enquanto os garçons se encarregam
de oferecer bebidas.
Os elogios, por sua vez, não cessam de serem feitos até a cliente ir embora, seja em
relação às suas roupas ou acessórios, à magreza, à beleza de alguma parte específica de seu
corpo e, sobretudo, aos cabelos após terem sido cortados, alisados ou penteados.
todos enaltecem uns aos outros, revelando um importante aspecto dos salões de beleza: um
Eu tenho birra com manicures. Porque elas sempre me dão bronca porque
rôo unha e não tiro cutícula. Já o cabeleireiro nunca fala que o seu cabelo
está uma bosta. Ele fala que vai te deixar linda, realçar seu rosto, ele te dá
confiança, te coloca pra cima. Eu, que sempre fui gordinha, adoro ir a salão,
porque eles falam que meu rosto é lindo, nunca se referem ao meu corpo.
(Fabiana, designer)
Por vezes, são as próprias clientes que entram na dinâmica e fazem questão de elogiar
a si mesmas. Durante a pesquisa de campo ouvi clientes comentarem com os profissionais dos
salões como suas unhas são fortes e bonitas, como seus cabelos são naturalmente brilhosos ou
Um jogo inverso também ocorre, ou seja, as clientes criticam alguma parte de seu
reparou alguma melhoria, como uma vez assisti uma cliente perguntar à sua cabeleireira se
Os profissionais da beleza, por sua vez, não são excluídos de tal dinâmica. Também
recebem elogios referentes à sua aparência pessoal ou à qualidade de seu trabalho, tanto por
parte de clientes quanto de seus assistentes (com maior ênfase) ou colegas de trabalho com os
Maitê, uma das clientes entrevistadas, considera muito ruim quando uma pessoa não
repara que ela cortou o cabelo. Representa o não reconhecimento de toda uma preparação e
questão da obrigação de reparar, ao contar sobre uma colega de trabalho que havia feito uma
Todo mundo elogiou quando ela chegou ao trabalho. Mas eu acho que as
pessoas elogiaram mais do que realmente merecia. Porque a pessoa faz uma
mudança e espera ser notada, elogiada. Então se alguém aparece com uma
210
nova cor de cabelo, o meu papel enquanto pessoa que trabalha com ela, que
se relaciona com ela, é elogiar essa mudança. É esperado isso de mim, o
elogio. (Rubens, engenheiro)
Entretanto, não é apenas o ato de elogiar que é sentido como uma forma particular de
prestar atenção a uma pessoa. A conversa que se dá entre profissionais e clientes no salão é
outra forma de atenção extremamente valorizada. Aída, manicure do salão do Catete, conta
que quando uma cliente está na cadeira sendo atendida não gosta que outra se aproxime e
inicie uma interação com a manicure. - “Elas querem atenção exclusiva, só para elas”, diz a
atenção. Existe um ser humano sentado ali na sua cadeira. Você não pode enxergar só cabelo,
Um fato ocorrido no salão do Catete me ajudou a ter uma melhor compreensão do que
representa tal “atenção”. Ao retornar depois de um tempo sem ir, por conta de ter encerrado
minhas atividades de campo, uma das manicures comenta que estou sumida e que sua outra
cliente perguntou sobre mim dia desses. É então que me dou conta do fato de que nos salões
de beleza existe alguém que percebe a sua ausência, que sente a sua falta. Imagino o quanto
isso deva ser valorizado por pessoas que não costumam ser lembradas ou notadas em outras
ser empregados. O mais efetivo deles parece ser o ato de tratar bem os profissionais da beleza,
proteção de mau-olhado, docinhos feitos por elas mesmas, presentes de aniversário, ovos de
93
Para uma interessante discussão sobre trocas em outro contexto - entre patroas e empregadas domésticas - Cf.
COELHO (2006).
211
Os profissionais, por sua vez, dão para as clientes produtos para cabelo, aplicam
cremes especiais em suas mãos (no caso de manicures), gravam CDs para as clientes ou
prestam algum serviço sem cobrar. Dessa forma, é estabelecida uma série de prestações e
contra-prestações, por meio das quais circulam não apenas coisas, mas também direitos e
A gorjeta dada aos profissionais nos salões de beleza é outro recurso utilizado para
estabelecer laços ou ter acesso a determinados benefícios. O que não deixa de instaurar
assimetrias que incomodam aqueles que deixam de ser privilegiados pelos profissionais, como
Uma coisa que me choca muito é a paparicação das mulheres que têm nome
e dinheiro. Quanto mais nome, dinheiro e poder, melhor você é tratada no
salão. Porque eles sabem que aquela cliente vai deixar uma excelente
gorjeta. Eles não são bobos, conhecem os clientes que são famosos, os que
têm muito dinheiro, o que é dono de empresa ou a dermatologista renomada.
Todos têm um tratamento especial. Toda hora mandam trazer cafezinho com
biscoitinho para eles. Então tem essa paparicação, essa puxação de saco mais
pesada para os que têm dinheiro e nome. (Ivanilde, empresária)
A busca por atenção que se dá no ambiente dos salões de beleza conduz, mais uma
vez, a discussão para o campo das emoções. É muito comum, sobretudo no discurso dos
profissionais da beleza, interpretar tal busca como um indício de carência (embora tal
associação esteja presente tanto nos discursos de profissionais quanto nos de clientes, no caso
acionam variáveis de gênero, hora fazem leituras a partir de variáveis de idade. A carência é
tida como algo inerente ao ethos feminino ou uma experiência a que pessoas idosas estão
212
sujeitas, dado que o passar do tempo é interpretado como algo que reduz a quantidade e a
Os idosos acabam sendo um pouco mais carentes. Porque eles ficam muito
sozinhos. Quem é mais novo tem o ambiente de trabalho, o namorado, os
amigos. Acaba que as pessoas vão ficando mais idosas e não têm mais tudo
isso. Elas ficam mais em casa. Às vezes só com o marido. Não saem.
(Nazaré, estatística)
A sócia do salão de Botafogo, na tentativa de ilustrar o que entende por carência, conta
sobre o dia em que inauguraram o salão. Junto com os funcionários, ela panfletava na frente
do estabelecimento quando uma senhora passa pela calçada naquele momento. A sócia do
salão entrega um panfleto e a convida para entrar e conhecer o lugar. Em poucos minutos de
aquela desconhecida que acabara de conhecer. A sócia finaliza seu relato enfatizando que tal
Este e muitos outros episódios a que tive acesso lançam luz sobre uma questão
emoções que tal ambiente proporciona, especialmente aquele que se dá por meio de desabafos
que podem vir precedidos ou antecedidos por choro. O salão, neste sentido, funciona como
O curioso nos discursos que pude analisar é que tal carência, quando “suprimida” no
ambiente do salão de beleza, costuma ser tomada como ilegítima pelo fato de a amizade
frouxidão de laços.
213
Tem muita gente, muita gente mesmo, que é carente. Precisando de colo,
acaba chorando no colo de qualquer pessoa. Não que manicure seja qualquer
pessoa. Mas, assim... Não criou um laço afetivo, um vínculo de amizade.
Não é nem amizade, acho que as pessoas buscam companhia. (Bady,
graduada em psicologia)
As pessoas são carentes. Elas querem alguém para escutá-las. Mesmo que
você demonstre uma falsa amizade. Para elas é o suficiente, basta isso.
(Mirela, psicóloga)
isolarem cada vez mais uns dos outros, dada a transitoriedade frenética das experiências de
vida cotidianas nos centros urbanos, que parece tornar o tempo dedicado aos outros cada vez
aquelas pessoas com quem se tem um contato (seja esta fortuita ou periódica) pode ser
encarada enquanto um novo tipo de arranjo social. Trata-se de novos grupos associativos que
214
alguém que escute, preste atenção e se interesse por você. Nas palavras de Walter Benjamin,
Por proporcionar espaço a desabafos ou confissões, o salão de beleza pode vir a ser
de um salão que visitei na Barra da Tijuca, “salão é um espaço para fugir da decepção, da
solidão, da traição, do abandono. Aqui as pessoas buscam sua cota diária de amor-próprio”.
minhas investigações. Recordo a primeira vez que tive contato com histórias que faziam
referência a isso. Foi durante uma visita exploratória a um dos mais tradicionais salões de
beleza da cidade de São Paulo. Após me identificar como pesquisadora, fui encaminhada a
Durante o passeio fui fazendo perguntas sobre os tipos de relacionamento que se dão
no espaço do salão de beleza. A funcionária aproveita que estamos em uma parte reservada do
salão e começa a narrar uma série de histórias que vivenciou naquele salão, relacionadas a
215
emoções. São clientes que, ao deitar na maca para um tratamento de beleza facial, em
silêncio, deixam escorrer lágrimas pelo rosto. Ou ligam para o salão solicitando falar com a
funcionária com quem possuem mais intimidade e passam mais de 30 minutos na linha
Uma de suas clientes havia ido depilar a sobrancelha e, na primeira puxada da cera, deu um
grito muito alto e começou a chorar. A depiladora pergunta o motivo pelo qual estava
A depiladora retruca a acusação alegando que a cera não está quente, que ela está
chorando por outro motivo e colocando a culpa injustamente em seu trabalho. A cliente pede
desculpas e fala que vai contar a verdade. Em meio a lágrimas e soluços, revela que foi
cabeleireiras revelam já ter chorado por motivo de grosseria por parte de algumas clientes.
“Elas nos pegam para Cristo. Mas não fazem por mal. No fundo são pessoas que têm
dinheiro, mas não são felizes”, pondera uma manicure do salão de Ipanema.
ponto de perderem controle sobre regras de boa educação, atrevo-me a sugerir que o salão de
forma bastante ilustrativa: - “Aqui, é capaz de uma pessoa super calma e equilibrada virar
No entanto, os salões de beleza não se caracterizam apenas por lágrimas. O riso é parte
olhava ao meu redor e tinha a impressão que as clientes pareciam crianças se divertindo com
216
Lembro do dia em que uma senhora de 80 anos cliente do salão de Ipanema, para fazer
graça, instiga o colorista em relação à roupa íntima que diz estar vestindo: uma calcinha fio
dental com estampa de oncinha. O colorista duvida de sua audácia e a senhora, sem pensar
duas vezes, levanta a sai e comprova o que havia descrito. Clientes, funcionários e
para a diversão, tal como salão de jogos, salão de recreação, salão de festas ou mesmo os
antigos salões da aristocracia. Lembrando as palavras de uma cliente, citada no início da tese,
Os próprios momentos em que os salões ficam mais cheios - finais de semana e épocas
de festividade do calendário anual - apontam para essa relação com a questão do lazer. Seja
costumam ser momentos que incluem a ida ao salão de beleza, marcando uma diferença na
Quanto aos dias da semana, sexta-feira e sábado costumam ser os mais concorridos em
salões de beleza. Alguns motivos são atribuídos a tal preferência. O primeiro é poder passar o
final de semana se sentindo mais “apresentável”, com os cabelos ou as unhas feitas. Sejam
situações de lazer ou de trabalho, o que está em jogo é se colocar bonita para os casos de
interações sociais.
94
Lembrando que essas ocasiões festivas fornecem contextos para as práticas embelezadoras serem utilizadas
uma vez que são marcadas pela atenção ao corpo e apresentação do mesmo. Por meio do adorno corporal,
escreve Turner, a integração na sociedade é dramatizada e reafirmada (TURNER, 1969).
217
motivo mencionado para a maior freqüência se dar nos fins de semana. No entanto, uma das
entrevistadas desafia tal interpretação ao afirmar que, mesmo ocupada, a mulher sempre acaba
arrumando tempo: - “Dá-se um jeitinho. Para fazer um negócio que estava precisando na casa,
nunca sobra tempo. Mas tem uma hora que dane-se o mundo, eu estou indo para o salão! Tem
Uma cliente do salão do Catete, que trabalha em uma rede de varejo, reclama que só tem os
sábados disponíveis para ir ao salão e quando chega lá sempre encontra senhoras de idade: -
“Por que elas têm que vir justamente no sábado? Não podem vir durante a semana? Elas não
Contudo, tanto senhoras de idade quanto mulheres que têm pouco tempo durante a
semana, podem compartilhar a mesma concepção, ou seja, o salão pode ser tido como um
Para as clientes habitués, o salão faz parte da vida quase diária. Para outras, sua
freqüência é semanal, mensal ou ainda mais esparsa. Existem, ainda, clientes que possuem
horário cativo no salão de beleza: toda semana, no mesmo horário, a agenda já conta com sua
presença.
218
freqüência. Para as pessoas que adotam a prática de alisamento de cabelos por escova ou
química, o verão é uma época que as faz procurar mais os salões, dado que lavam o cabelo
com mais freqüência por conta do calor. Já no inverno, por exemplo, a tendência a fazer
depilação ou serviços de pedicure diminui, uma vez que tais partes do corpo se mantêm
costumam ser creditados. No salão de Ipanema sinto dificuldade de perceber tal variação na
freqüência, embora um dos cabeleireiros diga que em início de mês o movimento é menor,
“porque chega a fatura do cartão de crédito para pagar, então as clientes se seguram mais.
Para tentar equilibrar a distribuição das clientes pelos dias da semana e aumentar a
freqüência nos dias mais vazios, alguns salões de beleza costumam oferecer promoções de
Quanto aos horários, é possível perceber maior movimentação no final da tarde, início
mais movimentado. É nítida a mudança a partir das 17 horas: o salão recebe mais crianças
momento de “prazer”, para “relaxar corpo e mente”, para se “distrair”, uma “terapia”.
como se consegue relaxar em um espaço com tantos estímulos sensoriais. No geral, o salão é
95
Lembrando que alguns salões de beleza não abrem na segunda, por o fazerem no domingo.
219
um lugar agitado, com pessoas andando de um lado para o outro; um ambiente barulhento,
com secadores, música e conversas em tom alto, além do cheiro forte de químicas como água
oxigenada, laquê e esmalte que se espalha pelo ar. Mas suas freqüentadoras não apenas
relaxam como algumas chegam mesmo a cochilar sentadas, enquanto têm suas unhas feitas ou
Apesar de algumas mulheres usarem o espaço do salão para trabalhar (fazem ligações
dia-a-dia dão lugar ao prazer de ter os cabelos tocados, os pés massageados e as unhas
pintadas. Especialmente quanto aos cabelos, trata-se de um lavar especial que se aproxima de
algumas representações sobre o cafuné 96. Embora muitas vezes se trate de um serviço rápido
e um tanto brusco.
O ambiente do salão me cansa. Toda vez que eu vou fico com sono. Mas tem
gente que gosta, que sente prazer, que relaxa, que pega a revista pra ler e
esquece do mundo. É o tempo para ela. Mas tem uma coisa que eu amo em
salão: lavar o cabelo. É o momento que eu mais gosto. Eu deito e não tenho
a obrigação de lavar. Aí eu fico relaxando e às vezes a mulher faz uma
massagem. Mas eu não durmo. Porque tem muito barulho, então eu fico
cansada. O número de bocejos que eu dou no salão é maior do que em
qualquer outro lugar. Eu fico com sono, lerda. Ele me relaxa. (Jordana,
promotora de eventos)
Tendo em vista uma realidade de controles corporais tão impositivos, tal como
beleza. Não apenas por ser um local para a elaboração do corpo belo, como também pelo fato
de ser escolhido para o relaxamento desse mesmo corpo vigiado, que deve ser corretamente
96
Cf. BASTIDE (1941) e FREYRE (1936).
220
alcoólicas. No salão do Catete presenciei homens entrarem no salão para terem os cabelos
cortados com uma lata de cerveja na mão. Uma das entrevistadas defende seu ponto de vista:
Sou super a favor de salão que serve bebida alcoólica, porque eu acho que
realmente relaxa o cliente. Lembro de uma vez que fui com uma amiga e a
gente ficou bebendo um prossecozinho. Mas nesse caso era um salão maior e
a gente não ficou de fofoca. Cada uma foi para um canto com sua tacinha e,
no final, a gente se encontrou para ver a transformação nos nossos cabelos.
Funciona. (Inês, assistente de edição)
verbalização de si, quando se trata de uma busca por relaxamento, por vezes a conversação
deve ser suprimida. Tal como clientes que não conversam em salão não é o padrão de
tal como se costuma fazer em salões de beleza, lendo um livro, escutando música no MP3,
221
lendo revistas ou vendo televisão. Porém, uma das formas mais utilizadas para se distrair,
definitivamente, é a conversação.
É muito curioso o fato de algumas clientes possuírem o hábito de irem aos salões
apenas para tomarem café e conversar, sem necessariamente se entregar a um dos serviços de
beleza oferecidos. Tal fato reforça o modo particular de encontro e comunicação que o
Seja como passatempo, lugar para papear ou mesmo para fazer hora quando se precisa
acaba por se tornar uma extensão da própria casa. Algumas clientes mais habituais se sentem
à vontade para fazer uso daquele espaço como se estivessem na intimidade do próprio lar.
Talvez isso ajude a compreender algumas atitudes que, a princípio, só caberiam ser
feitas em lugares ou na presença de pessoas com as quais se tem muita intimidade, como o
fato de algumas clientes irem ao salão de saia e sem calcinha (como relatam, indignadas,
adentra o salão principal em um andar mais apressado, cheia de sacolas de loja de roupas nas
mãos, tira um iogurte da bolsa e, sem ao menos parar, entrega para o primeiro assistente de
cabeleireiro que vê pela frente para que coloque na geladeira. A mesma atitude que
provavelmente ela faz com sua empregada doméstica, sente a liberdade de fazer com
Um dado curioso que pude observar com recorrência no salão do Catete, foi o uso de
tal espaço como lugar de parada para quem se encontra de passagem. O fato de a vitrine ser
também costumam ser recorrentes. Lembro de ter me assustado com um senhor que, ao passar
pela frente do salão, abriu a porta e gritou “nense” em comemoração à vitória de seu time de
futebol. O dono do salão, torcedor do time rival que havia perdido a partida, ri da provocação.
de chiclete com, aproximadamente 14 anos. Presenciei muitas vezes a mesma cena: ela
entrava no salão do Catete, por vezes nem mesmo oferecia chicletes aos clientes, e ia direto ao
banco de espera em busca das revistas de fofocas. Toda semana ela sentava, lia, levantava e
partia. Nunca ninguém a impediu de entrar ou a olhou de forma repreendedora. Sua presença,
de certa forma, se assemelha à de algumas clientes que costumam ir ao salão apenas para
papear e se distrair.
observar não apenas no salão do Catete, como em outros salões mais populares que visitei 97.
A máxima expressão de tal informalidade talvez possa ser expressa pelo uso que se faz do
Engana-se quem pensa que nos salões são comercializados apenas serviços voltados
para a beleza. Existem salões onde se vende de tudo: balas, chicletes, bombons caseiros,
97
A impressão que passa é que o salão do Catete é aberto não só a todos, como também a muitas outras situações
de informalidade que seriam impensáveis em salões mais sofisticados (como a entrada de vendedores
ambulantes, estacionamento irregular de caminhões em cima da calçada na entrada do salão ou até mesmo a ação
de promotores de absorventes íntimos, que entram, distribuem brindes, colam cartazes, tiram fotos e vão
embora). Tal permissividade se espelha, inclusive, na forma como se deu minha entrada em campo, sem uma
apresentação formal.
223
barras de chocolate, alho, salame, empadas, fraldas, DVDs piratas, cosméticos, lingeries,
planos de saúde, sacolé, bijuterias, cartões telefônicos etc. Mais parecem uma feira livre.
respectivos gastos e, pontualmente no dia 5 de todo mês - dia de pagamento dos salários - lá
No salão de Botafogo, tal prática costuma ser mais controlada. Os donos permitem a
aqueles produtos que possam vir a interessar suas clientes, como maquiagens ou bijuterias,
Sob este aspecto do consumo e diversos outros até aqui abordados, o salão de beleza
valores que permeiam a vida dos sujeitos inseridos em uma sociedade urbana contemporânea.
224
Não haveria como fazer um estudo antropológico em salões de beleza sem levar em
consideração um dos elementos mais importantes que compõem tal universo: refiro-me ao
corpo humano. Ao observar os modos pelos quais o corpo se insere e é trabalhado nestes
espaços, é possível ter acesso a práticas e representações que ajudam a compreender não
Comecemos então pelas ameaças a que o corpo se torna sujeito quando em contato
com o ambiente do salão de beleza. Para tal, noções como “higiene” e “saúde” se apresentam
fundamentais para pensar a relação entre corpo e salão. Recordo as palavras de uma amiga,
que definiu salão como “um lugar branco que tenta ser limpo, mas é sujo. Tem cabelo velho
cortado”.
poluente. É um local destinado a práticas corporais que envolvem resíduos. O fato de ser um
ambiente coletivo, em que se está sujeito a proximidade e contato com resíduos corporais de
pessoas desconhecidas - como pêlos removidos, peles, unhas e cabelos cortados - torna o
reflexão. Ficava admirada com a quantidade de pele morta que voava pelo ar e se espalhava
pelas mãos e colo de manicures que lixavam os pés de clientes. Em outra situação, peguei-me
não conseguindo conter a reação de nojo ao ouvir uma cliente falar para a manicure que a
cutilava: - “Meu pé está com tanta pelanca que parece carne de quinta”.
226
Mas como compreender esse “medo” ou “repulsa” por resíduos corporais? Como
podem cabelos e unhas, enquanto partes constituintes do corpo, serem objetos de elaboração e
para apreender as formas que usamos para lidar com forças ambíguas, sujas ou anômalas que
interna são um reservatório de símbolos da sociedade. Os limites do corpo humano, por sua
Não podemos desconsiderar o fato de cabelos, pêlos e unhas parecerem ter vontade
imprimir algum tipo de controle sobre tais partes. Segundo José Carlos Rodrigues:
Pela natureza de seu espírito, o homem não pode lidar com o caos. Seu medo
maior é o de defrontar-se com aquilo que não pode controlar, seja por meios
técnicos, seja por meios simbólicos. Este código estruturador gera lei e
ordem, e a expectativa de organização responsabiliza-se por todo o medo à
anarquia e à confusão de domínios que por definição devem se manter
separados. (RODRIGUES, 1980:14)
Outro fator que aproxima pêlos, cabelos e unhas da noção de sujeira é sua localização
ambígua: encontram-se presentes tanto no exterior quanto no interior do corpo humano. Dessa
forma, não estando nem inteiramente dentro nem inteiramente fora, desafiam o sistema de
classificação.
inversas de acordo com o estado em que se encontra. Sugere, por exemplo, que resíduos
corporais como lágrima, cabelo, saliva ou sangue são símbolos de perigo pelo fato de
atravessarem, pela simples saída física, os “limites” do corpo. Fora do seu lugar de origem,
227
ameaçam a boa ordem das coisas, pois ainda carregam um resto de identidade. É neste estado
Sendo assim, quando rompem sua ligação com o corpo (desprendendo-se ou sendo
fonte de recordação (casos de parentes que guardam mechas de cabelo de crianças), elemento
mágico (podem ser utilizados em rituais que acredita-se influir magicamente no destino de seu
Acredita-se que cabelos unhas e pêlos fazem parte do indivíduo e não do mundo.
Dessa forma, desprendidos do corpo a que um dia pertenceram, seu status é modificado,
devendo tais elementos serem removidos de cena, varridos e jogados no devido lugar a que
pertencem: o lixo.
No salão do Catete é comum observar cabelos cortados acumularem pelos cantos. Por
outro lado, no salão de Ipanema não ficam no chão por muito tempo. São varridos até mesmo
quando o cabeleireiro ainda realiza o corte. Tal preocupação em manter longe da vista dos
clientes os resíduos corporais, sugere uma maior sensibilidade a tal “desordem” por parte dos
cabeleireiro, junto com os faxineiros, são aqueles responsáveis pela higiene dos instrumentos
Segundo Rodrigues, “a lógica disso tudo é muito simples: quanto mais próximo do
centro de poder, mais distante da sujeira; quanto mais periférico em relação ao centro de
98
No entanto, Mary Douglas chama atenção para o fato de os resíduos corporais também serem símbolo de
poder. Ao mesmo tempo em que trazem a desordem que ameaça os padrões, fornecem matéria-prima para a
padronização. Dessa forma, a tentativa de controlar a desordem, limpar ou evitar a sujeira, são gestos positivos à
medida que nos forçam, de modo criativo, a organizar o nosso meio positivamente. (DOUGLAS, 1966)
228
A preocupação com a higiene deve se dar não apenas sobre instrumentos (tesouras,
alicates de unha, toalhas, escovas, pentes e bacias) e lugares (lavatórios, chão, banheiros), mas
também se estende às próprias pessoas que trabalham no salão. A apresentação física dos
profissionais passa a ser uma prova de que se está atento às convenções. Uniformes, aventais,
cabelos, dentes e unhas devem estar sempre impecáveis para não gerarem suspeitas quanto à
c) As mãos devem ser lavadas antes e depois de cada trabalho, não só como prova
de asseio, mas de respeito à cliente.
99
Grifo meu.
229
Tais recomendações são interessantes uma vez que colocam em relação três
100
importantes domínios: a higiene, a estética e a saúde . Destaco duas passagens em especial
de tal apostila que apontam para o mesmo caminho: a primeira sugere uma questão de
higiene é indício de boa educação. Uma prática que visa, além do benefício pessoal, o bem-
estar do outro, o que demonstra seu caráter coletivo e de respeito à ordem social.
“inimigo” visível, identificável. Existe um tipo de risco presente no cotidiano de todo salão
que nem todas as medidas profiláticas empregadas parecem conseguir trazer segurança.
Refiro-me ao risco de contrair doenças, desde micoses de pele, impetigo, foliculite, sarna ou
de contaminação, observo que poucas são as clientes que levam para o salão de beleza seus
próprios instrumentos de manicure, não sendo percebida diferença quanto a tal hábito nos três
salões investigados.
Em uma de minhas incursões a campo, ainda durante a etapa exploratória, fui conferir
um salão perto de minha residência que sempre me despertou curiosidade. Entrei e solicitei o
serviço de manicure, como de costume. Já havia sido abordada pela profissional que iria me
atender e encaminhada ao local quando abri a bolsa e percebi que havia esquecido de levar
100
Para uma reflexão mais detalhada sobre as diversas concepções elaboradas a partir das dimensões “saúde” e
“doença”, Cf. HERZLICH (1986). Sobre a associação entre os conceitos de “higiene” e “beleza”, Cf.
VIGARELLO (2004).
230
meus instrumentos pessoais. Não havia como voltar atrás, eu já estava sentada na cadeira da
A profissional surge de uma porta nos fundos e coloca em minha frente o alicate que
seria usado. Eu não havia visto nenhuma autoclave. Esperei então a manicure virar de costas
e, discretamente, peguei o alicate para conferir se estava usado, se havia algum resíduo de
pele ou ferrugem. O alicate tinha acabado de sair do forno de esterilização, estava fervendo.
Levei um susto ao queimar os dedos, soltei um pequeno grito e deixei o alicate cair no
chão. A manicure se virou para ver o que havia acontecido e apenas falou com um ar de
flagrante: - “Cuidado que está quente!”. Nunca mais voltei àquele salão. Minha relação tinha
de beleza podem gerar duas situações: por parte do profissional pode ser sentido como uma
ofensa pessoal, uma vez que coloca em dúvida a assepsia de suas práticas; e por parte do
cliente vergonha, pelo receio de ser estigmatizada como uma pessoa demasiadamente
Uma coisa que acho meio nojenta é quando ela [manicure] machuca a gente.
O que ela faz: pega o mertiolate para colocar no machucado. E mertiolate é a
coisa mais anti-higiênica do mundo! Você já parou para pensar? Você pega
o mertiolate com aquela espatulazinha, coloca no seu sangue e depois mete a
espatulazinha de volta no vidro. Então eu acho muito anti-higiênico. Eu
penso assim: - “Vou falar para ela não fazer isso”, mas na hora fico com
pena.
Pena de quê?
Ah! De ela achar que sou neurótica. Mas eu ainda vou falar isso, porque é
anti-higiênico. (Nazaré, estatística)
As inspeções sanitárias, por sua vez, propõem-se a atuar como uma forma de controle
representam uma ameaça que pode surgir a qualquer momento e multar o salão (ou mesmo
mucosa) ou que entrem em contato direto com sangue ou pus, devem passar por processo de
esterilização por meio de calor úmido (autoclave, 15 minutos a uma temperatura entre 121º e
137º C) ou calor seco (estufa, 60 minutos a uma temperatura entre 160º e 170º C). É
Quanto aos procedimentos de depilação, de acordo com o Decreto, deve ser utilizado
vedada também a utilização de produtos que não possuam registro no órgão sanitário
competente.
Ao observar as diferenças entre os três salões em que realizei trabalho de campo, fica
evidente a maior preocupação com tais normas no salão de Ipanema (desde as escovas de
No salão do Catete parece que as normas de higiene são conduzidas de maneira mais
frouxa. Presenciei a cena de uma manicure que, ao cutucar uma unha encravada do pé de uma
cliente, teve contato direto de suas mãos com o sangue da cliente, que não cessava de
232
quanto se trata de uma profissão arriscada). Após atender esta cliente, logo em seguida
recebeu outra. O alicate utilizado na primeira havia ido para a autoclave. Porém, a espátula de
inox não, tendo sido utilizada no atendimento seguinte sem sofrer nenhum tipo de assepsia.
cliente que atendia e continuar a cutilar e conversar, como se nada tivesse acontecido.
investimento, o que gera impacto às finanças mensais do salão. A noção que algumas clientes
possuem do custo de tal investimento em materiais descartáveis, acaba por levantar suspeitas
Não piso em um salão decente há mais de um ano. O último que fui tive
medo de pegar hepatite cortando cabelo, de tão chulé que era. (Juliana,
desempregada)
Contudo, a questão da higiene não se restringe aos salões de beleza ou aos seus
profissionais. Não podemos esquecer que um dos motivos que leva clientes aos salões é,
101
Refere-se ao salão de Ipanema no qual foi feita a etnografia para esta tese.
233
justamente, a questão da limpeza pessoal. Um corpo belo e asseado é algo que se deve exibir
comenta:
Somente aos poucos, muito aos poucos, é que se foi formando a idéia de que
limpeza física constituísse também limpeza moral. O pensamento que
associava sujeira pessoal e sujidade moral não nasceu socialmente antes do
fim do século XVIII. A partir desse momento, contudo, os seres bem-
apessoados, os homens limpos, banhados, penteados, os indivíduos atentos
aos detalhes de seus corpos começaram, de modo cada vez mais intenso e
sofisticado, a ser considerados também como pessoas confiáveis e
aproximáveis, como gente com quem fosse possível fazer amizade, como
seres a quem se pudesse abrir as portas, com quem fosse admissível partilhar
refeições, casar, negociar... (RODRIGUES, 1999:169)
Freqüentar o salão de beleza com certa regularidade é uma das formas de manutenção
cabelos e unhas bem cuidados são sinônimos de pessoa limpa, saudável, bonita, vaidosa e
feliz. Em uma cultura tão fortemente visual, o corpo externo é lido como um significante de
beleza serem capazes de gerar sensação de higiene para quem os contrata, como evidenciado
em diversos momentos pelas pessoas entrevistadas. Contudo, vale destacar que a associação
com higiene se mostra mais latente quando o serviço em questão é a depilação, especialmente
Os pêlos do corpo, quando se trata de mulheres, são tidos como “sujos”, “feios”,
Uma vez fui ao salão e me depilei toda. Minha pele sem pêlo nenhum, eu
fiquei me sentindo maravilhosa.
Por que maravilhosa?
Ah! Eu acho mais bonito. Eu sou muito branquinha e tenho o pêlo escuro.
Então parece que estou suja. A sensação que eu tenho de pelo é essa, de
sujeira. Eu acho muito horrível. Tive que ficar um tempão sem depilar [por
motivo de um ritual religioso], então debaixo do meu braço estava enorme,
eu estava igual a um macaco. Eu nem olhava no espelho!
Mas homem peludo dá essa sensação de sujeira?
Não, eu só acho estranho. Eu acho que é mais em mulher... Engraçado, não
sei se é preconceito. Em homem eu não tenho essa sensação não. Eu acho
mais bonito. Chama atenção homem com o pêlo lisinho. Um homem mais
peludo eu não teria preconceito nenhum. Já namorei um homem assim e
nunca tive problema. (Maura, comerciante)
As unhas, por sua vez, também são associadas a higiene. A explicação que as pessoas
costumam dar é que se trata de uma parte do corpo muito visível, daí a importância de sua
manutenção. O curioso é que em nenhum momento associam sujeira das mãos com eventuais
resíduos do dia-a-dia. Utilizam o termo “sentir as mãos limpas” como sinônimo para unhas
pintadas e lixadas, com ausência de cutículas. É esse tipo de sensação de limpeza que um
Um fato que sempre me intrigou em relação à discussão sobre higiene era ver as
mulheres que acabavam de fazer as unhas dos pés no salão saírem às ruas descalças, a fim de
evitar borrar o esmalte recém aplicado ao calçar os sapatos para retornarem às suas casas.
Todas as cenas que acompanhei - e não foram poucas - se deram no salão do Catete. Uma das
clientes fala: - “Eu vou descalça, não tem problema. Pé a gente lava”. No salão de Ipanema
de bem-estar causado pela sensação de higiene: - “O olhar fica diferente. Quando eu faço a
sobrancelha me sinto de cara limpa”, comenta Bady (graduada em psicologia). Pintar a raiz do
cabelo que cresceu ou ter os cabelos cortados se enquadram no mesmo caso: - “Eu até gosto
de deixar o meu cabelo crescer um pouco mais, de vez em quando. Porque quando eu vou ao
salão e corto, tenho a sensação de que mudei o visual, de que estou mais limpo. Então às
vezes eu me largo mais. Assim como eu faço com barba também” (Rubens, engenheiro).
de modo a diferenciar uma da outra. Outras vezes tais fronteiras se mostram embaralhadas,
manicure do salão de Botafogo justifica: - “Afinal, a gente também lida com saúde, micose,
terapeuta capilar do salão investigado para minha dissertação de mestrado (BOUZÓN, 2004),
que expressava forte desconforto com a interseção entre as duas dimensões com as quais tinha
Para trabalhar com tratamento capilar você tem que ser muito sincera,
porque não existe milagre. Eu não posso fazer uma análise porque eu não
sou médica, embora existam muitos charlatões por aí. Eu não fiz nenhum
exame para dizer que a queda de cabelo da pessoa é causada por isso ou por
aquilo. Eu não peguei o fio de cabelo e coloquei naquele aparelhinho para
dizer se o bulbo da pessoa está estressado. Não podemos diagnosticar
nenhum caso de clientes. São vários os fatores para a queda de cabelo: a
pessoa pode ser diabética, pode estar anêmica, com câncer, pode ser estresse
ou hereditário. (Julieta, terapeuta capilar)
anos se apresentem tão eficientes quanto os exames laboratoriais. Como observa Boltanski,
A partir dos mais diversos aspectos que se observam atualmente, é possível sugerir
que saúde e estética são dois domínios cada vez mais próximos. Um dos caminhos de
compreensão para tal processo pode ser localizado no fato de o campo da estética estar em
busca de legitimação. Para isso precisa acionar o discurso médico-científico, por este ainda
possuir grande influência e credibilidade social. Um discurso, segundo David Le Breton que,
por vezes, apresenta-se como uma “promessa messiânica - os velhos ficarão novos, os feios
belos e todos alcançarão a juventude.” (LE BRETON, 1999:10). Como observam Goldenberg
e Ramos,
237
Dessa forma, novas definições sobre saúde são criadas para dar conta das diferentes
experiências humanas. Paula Black sugere que, para que as práticas empreendidas nos salões
de beleza façam sentido, é necessário que nos afastemos das compreensões sobre saúde
sentido, ultrapassa a dimensão física e pode se desdobrar em outras variações, como a saúde
psíquica. Sendo os salões de beleza apropriados enquanto espaços para promoção de bem-
Vejamos agora a questão do risco sob outro prisma. Quando se tratam de salões de
beleza, o risco não está apenas relacionado a doenças. A dor física é outro importante
elemento em jogo. Refiro-me ao risco de ter uma parte do próprio corpo lesada, dado o
habituadas à situação. Para outras, a tensão é visivelmente constante, do início ao fim. Vejo-as
tensas ao puxarem a mão ou ao levarem sustos quando o alicate belisca uma parte mais
sensível da pele. Nas diversas falas das entrevistadas, registram-se palavras como “medo”,
um cliente homem, de aproximadamente 60 anos, que eu nunca tinha visto por lá. Estava
inclinado na cadeira de cabeleireiro e era atendido por duas profissionais. Uma cortava seus
cabelos e pêlos do nariz. A outra fazia suas unhas dos pés e das mãos. A conversa girava em
torno de sua vida pessoal: pelo que pude escutar, parece que estava prestes a se casar. Os três
manicure que o atendia correu em direção ao patrão para contar o que havia passado. Disse
que achou estranho enquanto fazia as unhas das mãos do cliente. Toda hora ele agarrava sua
mão [a da profissional] com força, enquanto conversavam. Sentiu-se confusa com a situação,
pois o clima da conversa estava bastante respeitoso e ficou em dúvida se tratava-se de uma
insinuação sexual. Conta que os apertos continuaram até o serviço ser finalizado.
239
Antes de ir embora, o homem chegou perto da manicure, olhou para ela em tom de
vergonha e disse: - “Posso ser sincero com você”? A manicure diz que sim e ele desabafa: -
“Você me desvirginou”. Faz referência ao fato de ter sido a primeira vez que fazia unha em
sua vida. Solucionado o mistério: apertar a mão da manicure era uma reação à situação de
É perigoso, porque eu acho que o pé tem mais carne, mais cutícula, do que a
mão. Tem muito mais pele por dentro e em volta do que na mão. (Maitê,
auditora)
As próprias manicures revelam que o que mantém a fidelidade do cliente é não “tirar
bife”. Uma manicure do salão de Botafogo conta que várias pessoas sempre a perguntam
como ela sabe o limite de não ferir a cliente. Acho interessante a curiosidade das pessoas. É
uma pergunta que eu nunca havia formulado. Acredito que efetivamente exista um limite, cuja
expressas pela clientela, como é sentida e negociada? Cynthia Sarti, ao analisar as formas
mesmo gozo, com maior ou menor distância e intensidade” (SARTI, 2001:1). Entretanto, o
que observo nos salões de beleza é uma reação de relativa indiferença por parte das
profissionais.
A dor faz parte não apenas das práticas de embelezamento (lembrando do caráter
espontâneo de tais escolhas por parte das clientes - questão do livre-arbítrio) como do
cotidiano dos salões. Sem uma atitude blasé frente a tais emoções (SIMMEL, 1903), talvez os
profissionais da beleza tivessem suas atividades profissionais dificultadas por esse excesso de
estímulos.
coordenadora do curso, que fazia questão de ver cada trabalho de manicure e pedicure
finalizado para então lançar uma nota à ficha do aprendiz. Uma aluna em especial era o terror
Um dia ela entra toda feliz na sala da coordenadora e mostra o serviço de manicure
que acabara de fazer. Diz para a coordenadora que está orgulhosa de si mesma porque tirou
poucos "bifes" da mão da modelo: - “Lembra do primeiro dia? O modelo saiu com os dez
dedos pingando em sangue, de tanto bife que tirei!”, compara entusiasmada a aluna.
Curioso também são as correlações que se fazem de acordo com o gênero, no que se
102
referem às distintas formas de lidar com a dor . Embora suportar a dor em silêncio seja um
sofrimento seja não apenas permitida como valorizada (SARTI 2001:6), nos salões parece que
tais performances se inverterem. O homem é visto pelas profissionais dos salões como menos
resistente à dor. Já a mulher apresenta uma atitude contida. Como se no salão de beleza não
102
Embora eu não tenha tido acesso a nenhuma representação sobre sentir dor que diferenciasse classes
socioeconômicas distintas, recordo do comentário de uma única depiladora, sobre uma menina de 9 anos que já
depilava os pêlos da perna com cera e não demonstrava dor. A surpresa da profissional com tal reação aponta
distinções também com base em idade, além de gênero.
241
Homem é muito mais medroso que mulher. Eles têm medo de machucar, de
sair sangue. Mulher não, nem liga. Tem umas que se você não tirar sangue,
se não cutucar muito a unha, acham que não está bem feita. (Alexandra,
manicure do salão de Botafogo)
Uma vez um rapaz veio aqui para depilar a barba pela primeira vez. Foi
muito engraçado, porque ele não conseguiu suportar a dor e desistiu. Foi
embora com apenas um lado do rosto depilado. Ficou super estranho.
(Geralda, manicure e depiladora do salão do Catete)
O rompimento da pele não indica apenas que um limite foi ultrapassado pela profissional.
Muitas vezes, são as próprias clientes que forçam tal limite, exigindo que se remova o
máximo de cutícula possível. O sangue, neste tipo de situação, torna-se uma prova concreta de
que o serviço foi bem feito. Podendo a dor se converter em certo gozo.
Muitas são as manicures que relatam o desconforto que este tipo de cliente gera: - “Eu
já chorei porque a cliente era muito exigente. Ela queria que eu tirasse cutícula muito a fundo,
mas não tinha mais o que tirar. E eu odeio ver sangue” (Alexandra, manicure do salão de
Botafogo).
Outra manicure conta sobre aquele que considera o dia mais angustiante de todos os
cinco anos que trabalha em salões. A cliente queria que a profissional removesse cutícula
além do que poderia sem machucá-la, incluindo sabugo e unha encravada. Porém, tratava-se
A profissional levou duas horas para finalizar apenas os pés (tempo mais que
suficiente para serem feitos ambos os serviços de pedicure e manicure). Conta que a cliente
solicitava a remoção de mais e mais pele. - “Ela sugou toda a minha energia. Voltei para casa
chorando. No dia seguinte eu nem queria ir trabalhar, de tão chateada” (Soraya, manicure do
salão de Botafogo).
242
doença, mas também para a manicure. Sendo um dos sintomas da doença a dificuldade de
cicatrização de feridas, um simples “bife” pode gerar, no caso mais extremo, necessidade de
pouco.
Sabendo do cuidado redobrado que as manicures devem ter com clientes diabéticas,
fiz uso de tal informação em benefício próprio e guardo grande arrependimento. Ainda na
etapa exploratória, entrei em um salão que nunca havia ido com a desculpa de fazer unhas
para poder observar melhor o ambiente. No entanto, a última vez que eu havia ido a um salão,
de cicatrização, não queria que mais uma vez me machucassem no mesmo local.
A solução que encontrei foi pedir para que a nova manicure tomasse cuidado, pois eu
atendimento todo conversando sobre diabetes. Pedia informações sobre a doença que eu não
tinha conhecimento. Descubro que seu extremo interesse era porque a doença havia sido
A manicure relatou todas as dificuldades pelas quais sua irmã e pessoas que possuem
tal doença passam. Senti-me muito mal, especialmente quando ao final do atendimento ela
desejou que Deus me abençoasse, em função da doença que eu disse ter. Nunca mais fiz uso
desse argumento. Preferi continuar sofrendo com os beliscos de alicate. Ossos do ofício.
Existe quem considere fazer unha menos doloroso do que depilação. Muitas são as
reclamações, tanto dos métodos que fazem uso de cera quanto os mais modernos a laser: -
“Depilação a laser dói muito! É muito ruim, você paga para ser machucado. Mas no meu caso
eu não tinha outra opção, porque eu tenho alergia a gilete” (Jordana, promotora de eventos).
243
Uma das entrevistadas levanta uma questão interessante: em alguns casos, a dor pode ser
encarada como um investimento, que se coloca no mesmo nível dos investimentos feitos em
Uma vez que a remoção de certos pêlos do corpo feminino é tida enquanto uma
“obrigação” a ser cumprida, a dor envolvida deve ser colocada em suspenso no momento em
As sugestões de David Le Breton (1995) são valiosas para esta discussão, no sentido
que propõem enxergar a dor, embora vivenciada pelo indivíduo que a sente, como algo
que cada indivíduo tem acerca de seu corpo depende de sua história pessoal e do contexto
Ainda fazendo referência a Le Breton (1995), vale lembrar que as pessoas que sofrem
de dor não conseguem participar dos momentos de prazer e de alegria dos outros que estão à
sua volta. Em seu extremo, a dor gera indivíduos ansiosos, temerosos, enfim, anti-sociais. É
nesse contexto que existe um clima de relaxamento e distração a ser preservado no ambiente
do salão de beleza. Ocultar a dor e agüentar o sofrimento físico não só em nome da beleza,
mas em nome do que representa o espaço do salão em termos de relaxamento para muitas
Por fim, vale lembrar que não são apenas os clientes que se submetem a processos
dolorosos quando o assunto é beleza. Para deixar outras pessoas bonitas os profissionais da
beleza também investem sua saúde. Basta atentar aos diversos problemas que o esforço
Descobri ser comum entre manicures dores de coluna (dada a posição reclinada que
passam a maior parte do dia), bursite entre cabeleireiros (pelo esforço do braço suspenso a
alergias entre coloristas (devido à exposição diária a fortes químicas dos produtos que
manipulam).
245
extrema quando o assunto é depilação. Trata-se, justamente, do único serviço feito de forma
não coletiva, em uma sala separada. Especialmente quando se trata das partes íntimas do
corpo, a depilação é a prática de beleza que mais parece gerar vergonha nas clientes.
“É uma relação que não é boa. Quando ela vai fazer a sua virilha, dependendo do que
você vai fazer, é uma área sua que ninguém vê, só a mulher e o seu namorado” (Jordana,
promotora de eventos). Para evitar se expor a mais de uma depiladora, existe quem prefira
estão acostumadas: - “Sinto-me igual uma ginecologista”, diz Luciene, do salão do Catete. A
mesma aproximação com tal especialidade médica é feita por parte das clientes. No entanto,
medicina minimizasse o peso negativo de lidar com as partes íntimas do corpo ou atribuísse
Ninguém investe a vida nisso. A pessoa cai nisso. O salão está precisando?
Eu sei fazer. Então vamos lá. (Inês, assistente de edição)
vergonha parece ter um peso menor, embora não se mostre ausente. Presenciei uma cliente no
plástico na cabeça, mesmo sabendo que era importante para acelerar o efeito da coloração que
estava fazendo. A insistência do colorista foi em vão. Disse a cliente: - “Tenho que ter o
mínimo de dignidade, não é? Não uso touca, nem para tomar banho! Prefiro prender com uma
Recorro a um episódio que presenciei quando fazia campo para minha dissertação.
Visitei uma das maiores feiras de negócios voltadas para cabeleireiros da América Latina, que
cosméticos era oferecido ao público um rápido diagnóstico sobre o cabelo da pessoa, por meio
de um aparelho que filmava o couro cabeludo e reproduzia em tempo real a imagem ampliada
em uma televisão. Tal imagem era visível a todos que passassem pelo local.
Uma pequena ferida na cabeça de uma mulher que se habilitou a ter o couro cabeludo
examinado roubou a cena: o atendente que manipulava a micro-câmera parecia estar em busca
das “imperfeições”, mantendo por muito tempo o foco nas pequenas feridas. A curiosidade do
247
seguinte frase para a amiga que a acompanhava, referindo-se ao próprio corpo: - “O ser
humano é nojento!”.
social, que geralmente surge quando o indivíduo percebe que um de seus atributos é impuro.
Neste sentido, a mulher participante falhou duplamente: não apenas em manter a saúde
perfeita de seu corpo - livre de feridas - como também em permitir que seu “defeito” fosse
É incrível como tal parte do corpo é capaz de fazer uma pessoa não sair de casa até ter seu
problema estético solucionado, como o caso de uma entrevistada que comentou sobre o
processo de passagem de uma química a outra: teve que ficar quatro meses sem passar
determinado tipo de alisante e conta que abriu mão temporariamente de sua vida social.
Foram os piores dias da minha vida! Fica horrível Patrícia. É porque o seu
cabelo é bom 103. O meu fica horroroso. Eu dava graças a Deus que nessa
época eu não estava trabalhando e não precisava sair de casa. Porque é muito
horrível, muito horrível mesmo. Quando esteve duro eu não saía para lugar
com muita gente, rejeitei festa, não ia na praça comer pizza. Se eu fizesse
escova e em duas horas suasse um pouquinho, ou se batesse um vento,
acabava-se tudo. Aí eu não ia para lugar nenhum. (Rebeca, auxiliar
administrativa)
Uma história que me marcou foi narrada por uma enfermeira (entrevistada para minha
pesquisa de mestrado) que cuidou de uma senhora em situação de coma vígil. Por
momentos em que a paciente recuperava sua lucidez, a primeira coisa que fazia era passar as
mãos na cabeça para se certificar que estava com a mesma coberta. A enfermeira conta:
Ela tinha turbantes de várias cores. Então quando passava a mão, a gente já
sabia o que ela queria. Não gostava de ficar carequinha, mesmo na cama.
Então a gente colocava o turbante para fazer a vontade dela, mesmo que logo
depois ela apagasse de novo. Era impressionante: passava a mão, sentia o
turbante e só assim relaxava. Era uma coisa que ela não aceitava, de jeito
nenhum. É gozado, a pessoa chega a aceitar a doença, mas não aceita a
queda do cabelo. (Rosa, enfermeira)
Ainda sobre o tema da vergonha, vale lembrar que, para muitas mulheres, o salão de
beleza é um espaço em que se sentem bastante à vontade. Tão à vontade que é comum ouvir
reclamação por parte de manicures em relação a clientes que vão ao salão de saia e sem roupa
íntima, deixando mais do que pernas à mostra ao apoiar seus pés sobre os joelhos das
A falta de constrangimento, por vezes, pode ultrapassar as portas dos salões e tomar as
ruas. Vi cliente sair do salão para fumar na calçada da Nossa Senhora de Copacabana, uma
das mais movimentadas ruas do Rio de Janeiro, sem aparentar o mínimo desconforto por estar
em público vestida com capa-protetora e ter os cabelos e fronte cobertos por tinta. Cabelos
enrolados em grampos, toucas plásticas na cabeça e pés descalços recém-pintados não são
cenas incomuns nos arredores de alguns salões de beleza, embora eu não tenha presenciado
Se existe uma especificidade dos salões de beleza, difícil de ser concebida em outras
valorização e intimidade entre clientes (mulheres) e profissionais (de ambos os sexos), com
observadas. Dentre os três salões de beleza que investiguei com maior profundidade, nos do
celebridades e socialites) e permitiam tal alvoroço, a festa era ainda maior. Os beijos se
faziam quase obrigatórios, os abraços eram longos e apertados e a felicidade pelo encontro era
expressa a ponto de ser escutada na extremidade oposta do salão principal. Porém, nem
sempre tal encenação parte dos profissionais. Por vezes são as próprias clientes que fazem a
manicures, o que sugere uma separação entre as hierarquias profissionais existentes dentro de
exclusões, distinguindo quem está dentro e quem está fora de tais associações.
A partir da observação dos diferentes salões, presumo que tal encenação pública de
intimidade é muito mais oportuna em relações nas quais a distância social entre clientes e
104
Para uma reflexão histórica sobre os códigos e convenções relacionados a beijos e abraços, entre outros
gestos, Cf. BREMMER &ROODENBURG (1993).
250
profissionais é maior (como no caso do salão de Ipanema). Interpreto-a como uma tentativa de
aproximação e equilíbrio da relação, para que tal encontro possa se dar da forma mais
harmônica possível, já que os profissionais possuem algo de grande valor para as clientes -
práticas e saberes específicos - ao passo que as clientes podem ser portadoras de fama, status
ou dinheiro, para remunerar o serviço prestado. Observo que quando a distância social entre
clientes e profissionais é menor (como no caso do salão do Catete), quase nenhum esforço é
Lembro de uma cena peculiar ocorrida com um cabeleireiro do salão de Ipanema. Ele
falava justamente sobre esta questão da demonstração pública de afeto. Comparava-se aos
outros colegas de trabalho dizendo que se considerava mais frio, talvez por sua formação
profissional ter se dado em Londres. Diz que se abraçasse uma cliente sua e a colocasse no
colo (em alusão ao que alguns colegas de trabalho fazem) elas nunca mais voltariam.
cabeleireiro se vira, abre um sorriso de uma orelha a outra, se lança em um longo abraço e
começa então o atendimento à cliente. Não consigo enxergar a diferença entre sua atitude e
Além dos beijos e abraços, outro tipo de contato corporal bastante particular se dá no
ambiente dos salões de beleza. Diz respeito aos toques que se dão entre corpos de clientes e
de profissionais durante a execução do serviço. São pés de clientes que encostam no colo ou
mesmo nos seios de manicures, abdômen de cabeleireiros ou de coloristas que tocam braços
de clientes, mãos que tocam mãos, pés, ombros, nuca e cabeça, em uma aproximação que
cabeleireiros, médicos e alfaiates, são socialmente autorizadas a tocar as pessoas, uma vez que
suas funções são claramente definidas como não-sexuais e, por isso, tidas como menos
251
perigosas. No entanto, por mais que tais papéis sejam validados, o risco de que a fronteira do
palavras, mãos, pés, cabelos e pele são elementos corporais passíveis de elaboração estética e
comumente utilizados em situações de conquista sexual. Logo, tais partes do corpo são dignas
de atenção, uma vez que, em outras situações fora do salão de beleza, o ato de tocá-las
corpo humano e multiplicar o número de pessoas que participam do evento, a fim de eliminar
os cabelos lavados ou pés e mãos cuidados, por vezes, podem vir a despertar emoções mais
intensas. Como definiu uma cabeleireira de um salão, “o toque mexe com a emoção das
pessoas”.
De acordo com os relatos a que tive acesso, posso afirmar que manicures e depiladoras
são, dentro dos salões de beleza, as duas profissões mais sujeitas a situações de paquera ou de
cantada por parte de clientes. A maior proximidade física entre os corpos ou a própria posição
em que manicures se encontram (sentadas frente a frente com o cliente, estando sua cadeira
105
Sobre a diferença entre “zonas públicas” e “zonas privadas” do corpo, Cf. MORRIS (1977). A partir da
observação de que apenas amantes ou pais em relação a seus bebês têm acesso livre a todas as partes do corpo do
outro, o autor chama atenção para a complexa combinação de áreas do corpo passíveis ou não de serem tocadas -
“zonas tabu” - de acordo com a qualidade das relações em questão.
106
Presenciei duas cenas inusitadas, ocorridas com crianças. Uma delas no salão do Catete tratava-se de um
menino de oito anos que se contorcia de cócegas ao ter os cabelos enxaguados no lavatório. Outra se deu com
uma criança de aproximadamente quatro anos que não podia sentir o pente do cabeleireiro se aproximar de sua
cabeça que ria de nervoso da sensação que experimentava.
252
em um nível mais baixo, em uma postura que remete submissão) pode ajudar a explicar a
clientes homens que olham para seus seios durante o atendimento, roçam as pernas contra as
suas, alisam ou apertam suas mãos e chegam mesmo a pedir seu número de telefone.
Porém, não são apenas homens que costumam flertar com manicures em salões de
beleza. Tal como em outras situações da vida social, no salão também há espaço para
conquistas homossexuais. Uma das manicures do Catete conta sobre uma cliente de 46 anos
que costumava enviar mensagens românticas anônimas por SMS e no Natal lhe deu R$
200,00 de gorjeta. Um dia tal cliente decidiu se declarar pessoalmente e não foi correspondida
intensificada pela reserva e intimidade da sala de depilação. Muitos são os relatos de homens
que solicitam tal serviço e o encaram como uma forma de estímulo erótico. Alguns também
Por vezes, a depilação é encarada como um fetiche. São namorados ou maridos que
pedem às depiladoras para entrar na sala privativa e acompanhar o serviço feito em suas
que fazia questão de ver a esposa ser depilada: - “Não sei se era ciúme ou fetiche, mas eu
No salão do Catete, embora fosse restrita a entrada de casais na sala de depilação, uma
depiladora conta a história de um casal de namoradas, em que uma delas pediu para assistir a
parceira ser depilada: - “Aí nesse caso eu deixei, porque é mulher né!? A namorada dela tirou
não gostarde levar os namorados a salão de beleza, para evitar que sejam paquerados pelas
outras clientes ou profissionais. Rubens, um dos homens entrevistados, conta ter passado por
situações em que duas profissionais de um salão, sempre que ele ia cortar cabelo, faziam
Desmond Morris possui uma leitura bastante particular sobre contato corporal. Ao
insegurança, Morris sugere que, paradoxalmente, quanto mais somos forçados a nos manter à
parte, mais necessitamos de contatos corporais, uma vez que a intimidade acalma tais
Sendo assim, completa o autor, uma das estratégias é fazer uso do que chama de
algum serviço, são obrigados a tocar nosso corpo” (Ibid., p. 120). Esse exército de tocadores
desembaraçar, alisar, e friccionar corpos ávidos por proximidade física. Nas palavras de
Morris, “visitar um salão de beleza moderno não é nada se não for uma experiência tátil”
(Ibid., p. 130).
campo em salão de beleza. Ficava extremamente incomodada com o hábito dos cabeleireiros
mexerem em minha franja quando conversavam comigo ou passavam por mim. Não era
preciso pedir permissão, afinal, eu estava em um dos poucos lugares em que tal contato não
apenas é permitido como faz parte do ethos de tal profissão. A impressão que tenho é que,
Por fim, outro elemento entra em cena como mediador para o toque entre corpos de
cena de clientes que possuem maior intimidade com os profissionais colocarem as notas de
gorjeta no bolso de trás da calça (geralmente justa) dos cabeleireiros ou coloristas, caso estes
transparente, fechada a cadeado, onde os clientes podem depositar em envelopes brancos com
de dar a gorjeta pessoalmente não desaparece. Nos outros salões investigados, apesar da
prática também ser comum, não vejo clientes colocarem notas ou moedas nos bolsos dos
Observo outro hábito muito comum em todo salão de beleza: cliente pedir que a
manicure abra sua bolsa para pegar a carteira ou que pegue no próprio bolso da calça ou na
alça de seu sutiã o dinheiro reservado para pagar o serviço, uma vez que o esmalte recém-
Em outra situação, uma manicure do salão do Catete passa com as mãos ocupadas
carregando uma bacia de água. Ela para na minha frente e pede que eu arrume sua calça na
altura da cintura, pois havia descido à medida que ela andava, por motivo do elástico estar
frouxo. Fiz o solicitado, embora tenha me sentido constrangida, justamente por achar que não
possuía um grau de intimidade suficiente que permitisse tocar tal parte de seu corpo. Os
exemplos são muitos, o que nos mostra que nos salões de beleza os toques não se restringem a
Gostaria aqui de chamar atenção para uma discussão que localiza o corpo a partir de
outros aspectos. Mais especificamente, a proposta é fazer uma reflexão sobre o tema dos
saberes do corpo. A primeira vez que atentei para tal aspecto, encontrava-me no salão de
Ipanema fazendo trabalho de campo. Sentada em um lugar estratégico, em que conseguia ter
acesso visual a diversas partes do salão, uma cena chamou minha atenção.
Nas escadarias que ligavam o salão principal ao segundo andar, uma cliente descia
vagarosamente cada degrau enquanto ouvia com muita atenção os conselhos do cabeleireiro
sobre cuidados especiais na manipulação dos cabelos, seguindo literalmente seus passos. A
imagem do profissional vestido de branco, que para tornar a acena ainda mais interessante
guia ou líder, não espiritual, mas corporal, que dava importantes conselhos à sua seguidora.
A partir deste dia, comecei a perceber com mais atenção a forma como os
altamente valorizado, demonstrar aos clientes que possuem tais informações não deixa de ser
“consultores do visual”, um dos cabeleireiros do salão de Ipanema diz: - “Hoje sou muito
mais um educador. Esse é o caminho para o qual a profissão está caminhando” (Armando,
cabeleireiro).
256
Por sua vez, a interpretação da ciência sobre cabelos, pêlos e unhas sai dos
laboratórios e ganha os salões, caindo no conhecimento não apenas dos profissionais como
também dos consumidores que, além de produtos e serviços, também passam a consumir
conhecimentos científicos.
maior o grau de uso profissional (leia-se médico) que irão fazer de seu corpo. Isto porque,
segundo o autor, quanto menor a intensidade do uso físico do corpo, maior a atenção, a
estratos privilegiados da hierarquia social, são justamente os que parecem mais preocupados
Os salões, neste sentido, atuam como importantes meios para aprender como
Tais informações sobre corpo se encontram disponíveis por toda parte. Especialmente
cabelos e unhas se tornaram assuntos dignos de ocupar colunas fixas em revistas femininas e
entanto, a rede de circulação de informações não se restringe apenas às grandes mídias. Tais
Porém, por maior que seja o conhecimento sobre o próprio corpo, o sujeito nem
profissional da beleza fazem com que a manipulação do corpo, idealmente, deva ser entregue
257
Mesmo que o sujeito se sinta capaz para fazer determinado procedimento estético em
si mesmo, seja pintar as próprias unhas ou cortar o próprio cabelo, o resultado gerado pelo
profissional da beleza é visto como mais “perfeito”, um trabalho que possui “técnica”, feito
Pelo menos para mim funciona assim: eu fico satisfeita com a maquiagem
que eu faço em mim em casa. Só que eu tenho total consciência de que não
sei fazer uma porção de coisas que o maquiador sabe fazer. Então fica
melhor em salão. (Inês, assistente de edição)
Por vezes, o profissional é visto enquanto detentor de uma “fórmula mágica”, o que
Tem vários salões por perto onde eu moro. Mas é aquele negócio: eu só faço
meu cabelo com a menina de um salão. Porque eu fico com medo de mudar
a química. Eu faço cabelo tão bem quanto ela, só que ela tem um produto
secreto que eu não sei qual é. Não tem nem rótulo na embalagem. Ela não
conta de jeito nenhum. Eu sei fazer relaxamento porque eu faço na minha
sobrinha e nas minhas amigas. Mas eu tenho medo de colocar outro produto
no meu cabelo e não ficar legal, cair. (Rebeca, auxiliar administrativa)
Funciona mais ou menos como uma receita: você explica que o bolo vai ter
que ser batido dessa forma, a pessoa bate e mesmo assim não fica bom.
Então a pessoa não tem jeito para aquilo. Teve um salão que eu fui e falei:
quero unha quadrada com redondo em volta. Quando eu vi, a manicure tinha
deixado a unha torta. Poxa! O trabalho dela é lixar unha, como é que ela
deixa a minha unha torta? Então você olha e fala: essa mulher não é uma boa
manicure, ela tem que procurar um novo emprego, porque deixou a minha
unha torta. (Jordana, promotora de eventos)
negociação entre dois sujeitos, entre dois pontos de vista distintos. Além de preferências e
107
gostos pessoais , o que está sendo negociado nestes momentos é a autonomia sobre o
próprio corpo (no caso dos clientes) e a autoridade sobre o assunto (no caso de cabeleireiros,
manicures ou depiladoras).
Neste duelo de argumentações e expectativas, que tem como arena o salão de beleza,
não interessa saber quem é vencedor ou quem é vencido, mas observar seu processo, ou seja,
costuma empregar. Diz que lê nas clientes roupa, tom de voz, postura corporal e, a partir de
então, sabe o que aquela mulher deseja. Pega como exemplo a gerente do salão que,
107
Para uma discussão sobre preferências e gostos sociais, Cf. GANS (1974).
259
Vê aquela ali? Olha bem para o cabelo dela, comprido e castanho claro. Olha
a roupa, repara no decote. Se ela senta na minha cadeira, sabe como consigo
que ela deixe eu trabalhar o cabelo dela do jeito que acho melhor? É só dizer
algumas palavras mágicas, como “comprido”, “volume” e “sexy”. Ela deixa
eu fazer qualquer coisa. (Armando, cabeleireiro)
fazer algum tipo de serviço que não considere adequado. Contudo, as definições do que é
representações sobre cor de pele, gênero, idade, entre outras. O relato de um colorista, feito
É muito comum uma mulher de pele morena querer ser loira, porque isso é
status. Em todos esses anos de experiência, eu já vi até mulata querer ficar
loira. Eu tive que ser cara-de-pau e falar: - “Meu bem, vai para outro terreno
porque aqui eu não vou fazer”. Mas tem que ter muita sensibilidade para
falar com a pessoa. Você tem que explicar que o cabelo loiro não fica bem
em tom de pele moreno. Mas se a mulher tem a pele mais branquinha você
pode abusar, botar ela mais loira. Mas só vai até o grau em que o cabelo da
pessoa agüenta. Nem todo cabelo agüenta um loiro claríssimo. (Francis,
colorista)
Mesmo sendo a palavra final a do cliente (com exceção de casos em que o profissional
se recusa a fazer o serviço solicitado), o processo de negociação pode ser vivenciado, para
Se eu pudesse dar uma dica para o pessoal de salão seria a seguinte: não
insiste. Detesto quando a pessoa tenta me convencer que devo fazer aquilo
que não quero. Eu não acho que vou ficar bonita. Então eu não gosto quando
eles tentam forçar a barra. Falam: - “Ah, pinta a unha não sei de que cor”. Eu
não quero, eu não estou a fim! Pode ser que daqui a duas semanas eu passe a
gostar. Pô, me dá um tempo! Eu não gosto de pressão, eu não gosto de me
sentir assim, invadida. (Jordana, promotora de eventos)
260
Por maior que seja a oferta de produtos do tipo “faça você mesmo”, muitas pessoas
declaram sentir dificuldade muito grande para manipular os próprios cabelos, unhas ou pêlos
108
. Especialmente no caso feminino, tal falta de destreza pode ser tomada como uma falha no
próprio desempenho de ser mulher, que implica, entre outras coisas, uma boa coordenação
motora e um olhar atento capaz de identificar as melhores formas estéticas de acordo com
Para aqueles que conseguem manipular o próprio corpo e optam por fazer unha,
depilação ou cabelo em casa, tal escolha pode estar associada a, basicamente, três fatores:
falta de recursos financeiros; comodidade de não ter que se deslocar fisicamente; não gostar
do “ambiente” do salão. Para estes dois últimos motivos, vale lembrar a possibilidade de
Desde criança eu achava lindo aquela mulher dos Jetsons 110 que enfiava as
unhas em uma máquina e saía tudo prontinho, pintado e seco. Ela já tinha na
própria espaçonave dela, onde ela morava. Eu gostaria de ter um aparelho
desses em casa, para não ter que sair à rua só para fazer isso. (Ivanilde,
empresária)
108
Os banheiros residenciais podem ser vistos, sob determinados aspectos, como uma versão privada e solitária
dos salões de beleza. Embora não tenha me dedicado a um trabalho comparativo entre estes dois ambientes,
considero a temática da domesticação de práticas e de objetos, particularmente interessante, especialmente para
pensar as relações entre manutenção doméstica e manutenção pública do corpo.
109
Nesses casos, outros tipos de relações são estabelecidos, especialmente no que tange às dimensões do público
e do privado. Embora a proposta desta tese não se estenda a tal variação de oferta de serviços, acredito que o
tema da “beleza em domicílio” possa ser rico em possibilidades de reflexão antropológica.
110
Série animada de televisão produzida pela Hanna-Barbera em 1962. Essa série introduziu no imaginário da
maioria das pessoas o que seria o futuro da Humanidade: carros voadores, cidades suspensas, trabalho
automatizado, toda sorte de aparelhos eletrodomésticos e de entretenimento, robôs como criados etc.
261
próprio corpo, especialmente no que se refere aos serviços em que são especialistas?
Surpreendeu-me conhecer manicures que afirmam não fazer a própria unha porque acham que
“fica ruim”. Preferem ir a um salão e pagar pelo serviço. O mesmo ocorre com cabeleireiros.
Porém, a prática mais recorrente é fazer uso do próprio local de trabalho e da mão-de-obra dos
Apesar de alguns salões restringirem a certos horários o uso do espaço para cuidados
pessoais dos funcionários (como é o caso do salão de Ipanema, que apenas o permite em
horários fora do expediente, sem a presença de clientes), em muitos outros é comum ver os
profissionais de cabelos molhados, nas cadeiras de manicure sendo atendidos ou saindo das
salinhas de depilação.
(MAUSS, 1934). Tais reflexões viabilizam enxergar penteados de cabelo, tratamentos de pele
e cuidados com as unhas, entre outras práticas encontradas em salões de beleza, como algo
muito além de meras manifestações estéticas, mas como partes constitutivas de um universo
simbólico maior.
construção de variáveis basilares, tais como as de indivíduo, gênero, idade, classe social etc.
262
perspectiva para pensarmos o lugar do corpo no salão de beleza. Sugiro, a partir de agora,
trabalharmos a noção de corpo a partir de sua fragmentação. Ou seja, olhar para suas partes,
111
mais especificamente aquelas usualmente trabalhadas nos salões , a fim de apreender o
modo como as representações sobre unhas, cabelos e pêlos se abrem a novas questões ou vão
Como observam Otta & Queiroz (2000:23), na cultura ocidental o corpo humano é
mapeado de acordo com critérios simbólicos ou classificatórios e suas diferentes partes são
tratadas separadamente, dando margem a várias representações. Para ilustrar tal suposição,
O que chama atenção na distinção que a entrevistada traça entre cabelos, unhas e pêlos
- em contraste com uma noção de “corpo” mais global - são menos os afastamentos
estabelecidos e mais as aproximações realizadas. A frase nos leva a refletir, entre outras
coisas, sobre as especificidades que levam cabelos, pêlos e unhas a se destacarem enquanto
Uma primeira sugestão aponta para o caráter de contínua renovação que estas três
111
Embora outras partes do corpo também sejam ser trabalhadas em salões de beleza, optei por privilegiar a
análise daquelas que conduzem com maior freqüência as pessoas aos salões de beleza: refiro-me a cabelos, unhas
e pêlos.
263
112
unhas, cabelos e pêlos sempre será temporária ; mais cedo ou mais tarde, será desfeita pela
renovação. Sob tal perspectiva, elas começam a “desfazer” nosso trabalho no instante seguinte
outras partes do corpo. Parecem não respeitar por muito tempo as intervenções estéticas que
Sob outra perspectiva, esse caráter de renovação contínua que caracteriza tais partes do
corpo parece cair como uma luva para as dinâmicas que a vida nas grandes metrópoles
estabelece. Esclareço melhor o ponto a que pretendo chegar: pensando nos diferentes mundos
113
e “províncias de significado” que se sobrepõem nas sociedades complexas, muitas são as
diversos planos, simultaneamente. Em função dos diferentes planos em que se movem, podem
então vivenciar diferentes papéis e jogar com múltiplas identidades, sendo a manipulação da
apresentação desse corpo nos diferentes mundos. Justamente por se tratarem de elementos
112
Com exceção de depilação definitiva a laser, embora mesmo esta técnica não garanta que o ciclo de
crescimento dos pêlos cesse por completo.
113
Cf. SCHUTZ (1979).
264
corporais múltiplas. Volto a chamar atenção para as inúmeras possibilidades de variação que
unhas, cabelos e pêlos permitem, em comparação a outras partes do corpo. Ao brincar com
suas infinitas possibilidades de formas, além da transformação, outros processos podem ser
Unhas
serem estudadas. Interessa-nos aqui menos as reduções e mais as expansões que unhas,
são a manicure (do francês manucure) e a pedicure (do francês pédicure) que, na realidade
polimento das unhas, remoção das cutículas e esmaltagem. No entanto, que significados tais
lotarem os salões de beleza? A partir das investigações em campo foi possível ter acesso a
algumas sugestões.
114
Para uma reflexão a respeito de criação e personalização Cf. CAMPBELL (2004).
265
constituído, no geral, por três etapas (já mencionadas), a esmaltagem se destaca. Talvez pelo
relação a outro acessório, mais especificamente a roupa. A cor de esmalte escolhida para as
unhas não apenas entra em cena para compor um elaborado quadro de combinação junto às
cores de outras peças de vestuário, como a ausência de esmalte, por vezes, é sentida enquanto
Eu me sinto outra pessoa de unha feita. Posso estar de chinelo, com uma
camiseta tosca e se eu estiver com a minha unha sem estar feita vou me
sentir muito mais desgrenhada. Porque eu acho que a unha é quase como um
acessório. É que nem você estar acostumada a usar brinco: no dia em que
você sai sem, você se sente nua. Eu fico muito tensa se estiver com a unha
ou por fazer ou com o esmalte já saindo. Eu preciso das minhas unhas feitas.
Faz toda a diferença do mundo uma mulher com a unha feita. A unha vira
um “a mais”. E faz toda a diferença de combinação com roupa. Tem roupa
que fica muito apagada se eu estiver com a unha normal, sem esmalte. (Inês,
assistente de edição)
Quando eu tiro o esmalte parece que estou pelada, passo logo uma base, para
segurar até eu poder ir à manicure outra vez. Sei lá, é que eu já estou
acostumada com a “roupinha” na unha. Porque parece uma roupinha que a
gente veste na unha, você sente que a unha está protegidinha, maravilhosa,
bonitinha. (Ivanilde, empresária)
Quando pergunto o porquê de tal constrangimento quando a unha não está feita, as
Quando você faz as unhas, os outros reparam mais. Porque você mesma
passa a dar mais atenção às suas unhas. Então quando elas estão feitas você
as expõe mais, gesticula mais. Não fica envergonhada de verem as suas
266
Especialmente as unhas das mãos, por se acreditar ser uma área muito exposta e
visível, são consideradas sujeitas a uma manutenção mais constante, diferente das unhas dos
115
pés : - “Eu acho que a importância da mão é muito maior. Porque ela é mais vista e o pé às
vezes está com sapato fechado ou a mulher acha que ninguém vai olhar para o pé. É
faz suficiente para explicar a predominância de cuidado das unhas das mãos sobre as unhas
visualização de tal parte do corpo feminino é capaz de despertar os mais libidinosos desejos
116
.
Essa “menor importância” dos pés em comparação às mãos atualiza uma noção de
superiores e inferiores do corpo que, embora tenha perdido fôlego ao longo da história, ainda
Confirmando tal sugestão, as unhas dos pés são neutralizadas frente à predominância
das unhas das mãos. Daí o costume de muitas mulheres com quem conversei de usar cores
neutras nos pés e coloridas nas mãos. O inverso raramente ocorre, embora também seja
considerado dentro das convenções pintar unhas dos pés e das mãos da mesma cor.
115
Para considerações mais específicas sobre mãos, Cf. HERTZ (1980).
116
Seja pelo conto da Cinderela, que data de pelo menos 2000 anos, cuja heroína feminina conquista o príncipe
pelos pés que se ajustam com perfeição ao sapatinho de cristal, seja pela antiga tradição Chinesa de deformar pés
femininos desde a infância para que quanto menores mais atraentes se tornem, ou mesmo observando na
atualidade os sofríveis pés femininos equilibrados em stilettos, é possível ter uma noção do quanto tal parte do
corpo pode ser valorizada e engendrar as mais diferentes práticas (MORRIS, 1971).
267
Você não vê muitas cores diferentes na unha do pé, não vê muitas cores
escuras. Geralmente você pinta a mão de vermelho e o pé de clarinho. As
unhas das mãos às vezes querem transmitir alguma informação. As unhas
dos pés não têm muito esse objetivo. Eu sinto que o pé, com um esmalte
mais claro, tem um aspecto de mais limpo. (Fabrícia, trainee)
Outra distinção feita entre unhas dos pés e das mãos diz respeito a comprimento.
Enquanto para as mãos femininas unhas compridas costumam ser valorizadas, o inverso é
crianças o façam. A entrada na vida adulta, especialmente para as mulheres, muitas vezes
pode ser marcada pelo abandono de tal hábito, seguido da adoção de práticas de manicure.
Lembro da primeira vez que fui a um salão fazer unha. Eu tinha 15 anos e a
minha prima havia me convidado para ser madrinha do casamento dela. Eu
tinha exatos doze meses para ter uma unha decente, pois além de roer eu
comia a pele. (Flaviana, publicitária)
especialmente no que se refere a atividade profissional e classe social. Uma das elaborações
acerca do tema é a distinção feita entre “unha de dona-de-casa” e “unha de madame”, sendo a
268
A maioria das mulheres que trabalha muito em casa tem aquela unha colada
no dedo, rente ao dedo, quebradiça, esfacelando dos lados, sempre feinha.
Tem dona-de-casa que faz faxina em casa, que lava louça. Por outro lado,
tem as unhas de perua de shopping, que não faz nada da vida, está sempre
em shopping o dia todo, madame. (Ivanilde, empresária)
No caso masculino, unhas feitas costuma ser uma prática atribuída a homens de classe
Homem não faz unha. A não ser dono de padaria, motorista de ônibus,
trocador... E trocador ainda deixa aquela unha do dedo mindinho bem
comprida, que é para contar moeda, tirar meleca e sujeira do ouvido.
Você já fez unha?
Não! Porque eu sou macho, homem-alfa. Eu não tenho porque fazer unha.
Para quê eu vou fazer unha? Eu corto e fica bem feita. Às vezes eu mordo a
pelinha.
A cutícula?
Pelinha, cutícula, dá tudo no mesmo. (Rubens, engenheiro)
e admirada por ser tida como um tom que “está na moda”, não deixa de carregar associações
negativas.
269
da sedução. Transitam pela fina linha entre o sensual e o vulgar. Ao pesquisar os nomes de
Unhas vermelhas dão uma idéia de uma coisa mais audaciosa, fatal, sedução.
Mas se você tem as unhas curtas não fica assim, fica até meigo. Fica fofo,
Hello Kitty 117. Eu não acho nem um pouco vulgar a unha vermelha curta.
(Inês, assistente de edição)
Quando eu era mais nova gostava de esmalte escuro, mas não colocava
porque o meu pai e a minha avó não gostavam. Eles associavam um pouco
com piranha. Mas o vermelho que era associado a prostituta, há algum
tempo atrás, hoje está na mão de todo mundo. Não sei como quebraram as
barreiras e agora vermelho é moda. Não sei como funciona, acho que é
muito difícil ser antropóloga, esse negócio de você não poder julgar as
pessoas. Porque não tem como, sabe? É um exercício diário. Porque você é
isso, você nasce e já estão estabelecidas algumas coisas. É feio, mas, por
exemplo, o judeu é associado a pão-durismo. Ele pode ser mão-aberta a vida
inteira, mas se foi pão-duro um dia é por que é judeu. Eu não sou judia, mas
garanto que eu sou mais pão-duro do que muito judeu. Mas já está
estereotipado. Você já nasce com certos conceitos que a sociedade tem
preguiça de mudar. No caso das unhas: não é certo associar vermelho a
prostituta, mas em determinada época, quando só elas pintavam as unhas de
vermelho, ficou associado a isso. Embora agora a sociedade já não enxergue
dessa forma, é muito difícil você não se prender a estereótipos que já
existem. (Jordana, promotora de eventos)
despertar. Associada a mulheres exuberantes e poderosas, tal cor costuma ser evitada por
117
Hello Kitty é uma personagem criada pela empresa japonesa Sanrio em 1974. Trata-se da figura de uma gata
branca com traços humanos que usa um laço na orelha esquerda e não possui boca.
270
O vermelho mais aberto, assim como o rosa, não combina comigo. É para
uma mulher mais despojada. Eu sou toda na minha, mais quietinha, então
acho estranho. Associando com religião, por exemplo: filho de Inhasã são
essas mulheres mais poderosas. Elas chegam arrasando, tipo “ninguém mexe
comigo porque eu rodo a baiana”. São mulheres mais exuberantes. É uma
pessoa que não está nem aí, ela chega mesmo. Já comigo, quanto menos
pessoas olharem para mim melhor. Não sou desse estilo, não adianta. Eu já
tentei colocar o esmalte vermelho, mas não sou eu. É como se eu tivesse
vestido uma máscara, mas eu não vou conseguir interpretar aquele papel por
muito tempo, por muitas horas. (Maura, comerciante)
Fazendo um contraponto à cor vermelha, os tons de esmalte mais claros (cores como
branco, rosa ou bege) são associados a mulheres discretas, recatadas, sóbrias, clássicas ou
mesmo meigas. Os próprios nomes de esmaltes sugerem tais leituras. São termos que
(“Paris”, “Mônaco”, “Nice”), figuras castas (“angélica”, “fada”, “sonho”, “neném”) ou bons
A pessoa que só usa cor clarinha é a certinha, que gosta de tudo padronizado.
Querem manter um padrãozinho, como se fosse um uniformezinho de unha.
(Fabrícia, trainee)
Lembro quando fui fazer minha entrevista para seleção no Museu Nacional. Sinto um
pouco de vergonha em revelar, mas cada detalhe de minha apresentação pessoal foi pensado
para tentar passar uma imagem positiva à banca de seleção. Prendi o cabelo em um coque
(suspensão da sexualidade), coloquei roupas de tons escuros misturados com beges neutros
(sobriedade), tive a preocupação de deixar as unhas das mãos em tamanho médio (nem muito
insegura, nem muito fatal) e pintar todas em um tom claro (seriedade). Acho que foi isso que
deu certo.
271
As cores claras também recebem leituras de acordo com variáveis de idade. Tais tons
costumam ser associados a mulheres idosas ou muito jovens. A chave analítica, nestes dois
casos, é a sexualidade. No primeiro caso, trata-se de assinalar uma sexualidade que se acredita
cada vez menos presente com o avanço da idade. No segundo, distinguir uma sexualidade que
ainda deve se manter em suspenso, uma vez que não se chegou à fase considerada ideal para
seu desenvolvimento.
Teve uma época em que as mulheres andavam com esmalte de velha. Aquele
tom champanhe ou rosa clarinho, cor de velha. Pareciam que estavam todas
mortas. (Ivanilde, empresária)
No entanto, entre o vermelho e o claro existe uma imensa gama de cores que não
deixam de ser consideradas. As cores “fantasia” - cores que fogem aos tons mais tradicionais -
são relacionadas a mulheres corajosas, menos preocupadas com convenções sociais e que se
casos de cores como amarelo, azul, cinza, verde, laranja e roxo, entre outras.
Quem usa azul, amarelo, são pessoas mais despojadas, até com a maneira de
se vestir. Que não estão pensando muito naquela coisa certinha, gostam de
mudar, de coisas diferentes. (Fabrícia, trainee)
A estação do ano é outra variante que influencia na escolha da cor de esmalte a ser
usada. Para o inverno a preferência é por cores mais escuras, como marrom, café, vinho ou
preto. Já para o verão, a convenção aponta para cores mais claras ou “abertas”, como o
vermelho e o rosa.
pessoa que o porta. No geral, às mulheres de camadas populares é atribuído o uso de esmaltes
perolados ou com efeito cintilante. Além de produtos com qualidade inferior. Unhas artísticas
(desenhos feitos nas unhas, tais como borboletas, flores etc.) é outra modalidade utilizada para
Formato e tamanho das unhas são duas outras características sobre as quais se
denota sedução e poder. Já a unha curta pode remeter a uma aparência infantil.
Eu não sei muito explicar, mas quando eu faço a unha me sinto muito mais
bonita. Parece que todo mundo vai olhar. É uma coisa de poder, não sei que
poder é esse, mas é uma coisa assim de mais poderosa. Principalmente
deixar a unha comprida. (Maura, comerciante)
273
Eu acho que eu sou muito baixa, muito mignon, toda pequena, magrinha.
Então eu não consigo ter a unha grande. Porque me sinto uma perua mirim.
Eu gosto de unha curta e já até me acostumei. Só que fica parecendo mão de
criança quando fica curtinha. (Inês, assistente de edição)
Apesar de valorizada por algumas, outras mulheres abrem mão de ter unhas grandes
não apenas por uma questão de preferência estética, mas também pelo desconforto que o
no teclado do computador. Unhas curtas, nesse sentido, além de consideradas belas, também
Muitas mulheres poderiam ter unha grande e não têm por causa do
computador hoje em dia. Eu, pelo menos, não gosto do barulho que faz, tic
tic tic. Escorrega. Não é confortável. Até no dia-a-dia de quem tem filho,
pode arranhar. A unha curta é praticidade. Não é preciso ter curta no sabugo,
mas um pouco mais curta. (Maitê, auditora)
Eu acho lindo, mas não deixo muito comprida porque me enrolo para tirar a
lente de contato e enfio a unha no olho. Sou muito desastrada. (Maura,
comerciante)
Unha comprida também pode ser relacionada à ausência de trabalho manual. Uma vez
que o uso do corpo para atividades remuneradas é desvalorizado, acredita-se que esforços
podem ser empregados no sentido de manter a unha forte, comprida e pintada para não
quebrar.
As classes mais baixas têm tendência a enfeitar mais. Usam florzinha ou jóia
na unha. E normalmente elas têm unhas maiores, engraçado isso.
Por quê?
Isso é uma coisa que até eu queria saber, porque eu acho interessante como
as unhas delas não quebram. Elas lavam prato, esfregam chão, isso tudo
acaba com a unha. Então eu acho que esse negócio da classe popular com a
274
Quanto a formato, quadradas e redondas são duas formas de lixar as unhas que
também dão margem para diferentes leituras. O tipo arredondado é relacionado a uma moda
antiga, ultrapassada. Daí ser recorrente a associação de tal formato com mulheres de idade
avançada.
As senhoras eu vejo mais com a unha arredondada. Mas não sei se é uma
coisa que vai mudar daqui para frente. Elas usam redonda pela força do
hábito. Não tem tanto tempo assim que unha quadrada virou moda. Antes
todo mundo usava redonda. (Jordana, promotora de eventos)
Por fim, aos formatos das unhas também são atribuídos gêneros. São as chamadas
unha “fêmea” e unha “macho”. O tipo fêmea, também conhecido pelo nome “menina-moça”,
é a unha naturalmente curta, que não costuma avançar muito além do dedo. Já a unha macho é
modelo.
Pêlos
Trataremos agora de outro elemento corporal que ganha destaque em salões de beleza.
Refiro-me aos pêlos que revestem partes específicas do corpo, especialmente do corpo
feminino. De um modo geral, possuímos pêlos por quase toda a extensão do corpo (algumas
275
pessoas mais, outras menos), com exceção das palmas das mãos, solas dos pés, boca e parte
No entanto, os pêlos que revestem o ser humano não são considerados todos da mesma
espécie. Os significados atribuídos variam de acordo com as diferentes partes do corpo das
quais fazem parte. Raymond Firth (1973) comenta a existência de pêlos comuns a homens e
mulheres que, porém, são tidos como neutros para eles e inconvenientes para elas.
Superfluous hair é o termo utilizado pelo autor para se referir aos pêlos que costumam
ser removidos do corpo, como pêlos da perna, axilas, buço e virilha (especialmente no caso
feminino), peito, costas e barriga (no caso masculino em geral). No entanto, o que se observa
hoje é uma expansão cada vez maior da categoria de superfluous hair, ou seja, um processo
que amplia para ambos os gêneros as significações acerca dos pêlos a que devemos nos livrar.
dúvida atributos de higiene relacionados à sua pessoa. Já em relação aos homens, a tolerância
quanto à presença de pêlos parece ser um pouco maior, embora também não escapem de
atribuições negativas.
Por que se remove? Ah! Eu acho que fica esteticamente mais bonito. Uma
perna cabeluda é feia. A mulher fica parecendo masculina. Não tem aquela
coisa delicada de mulher. (Fabrícia, trainee)
Os homens hoje em dia estão fazendo muita depilação. Virou moda depilar o
peito. Tem também muito homem que malha e, para mostrar mais a
definição dos músculos, tira o pêlo do corpo. Eu não gosto, acho horroroso.
Mas, por outro lado, tem homem que é horroroso, tem muito pêlo. Tanto
para o homem quanto para a mulher, se você vê uma pessoa muito peluda dá
rejeição. Mulher fica parecendo largada, que não se cuida. Infelizmente
mostra falta de higiene. E homem muito peludo fica uma pessoa bizarra,
estranha. Então muita gente tem nojo de pêlo. As pessoas estão tirando cada
vez mais. (Maitê, auditora)
276
Sobre as técnicas empregadas, podemos citar lâminas gilete, aparelhos elétricos, ceras,
método empregado e do ciclo de crescimento do pêlo da pessoa, a remoção pode ser feita
diariamente ou levar mais de um mês, com exceção dos casos de remoção definitiva. Sendo
assim, os pêlos, para algumas pessoas, podem vir a se tornar uma preocupação diária.
“paranóia” ou “obsessão”. Algumas das pessoas entrevistadas afirmam não conseguir explicar
o porquê dessa busca por corpos cada vez mais lisos. Outros sugerem que se trata de um
afastamento simbólico de uma animalidade que se acredita ligada às origens do ser humano.
Depilação é a melhor coisa do mundo! Eu, se pudesse, tirava tudo, não tinha
nada. Porque eu detesto pêlo, eu sou muito peluda. (Maura, comerciante)
Essa paranóia com pêlos eu acho que é para fingir que não somos
mamíferos. (Juliana, desempregada)
Tem que ser tranqüilo, sem a coisa da rejeição. Mulher não tem que estar
com a depilação em dia. A depilação tomou uma dimensão, que virou uma
coisa obsessiva. Você não pode relaxar mais. Tem que estar sempre
depilada. E uma obsessão masculina também. O homem passou a se depilar,
a não gostar de pêlo. Virou uma tara. As mulheres começam a competir para
ver quem depila mais. Agora toda mulher só faz virilha cavada com faixa.
Eu acho feio. Ou a mulher está toda depilada ou só com um fiozinho. Aí
você pensa: Gente, pára! Vocês estão criando um monstro! A mulher não
precisa ser cabeluda, mas ter algo ali é representativo, um triangulozinho que
indique mulher. (Inês, assistente de edição)
brincar com diferentes formas por meio da depilação artística. As possibilidades são
inúmeras, embora não se trate de uma prática corriqueira, como revelam as depiladoras com
277
quem conversei. Este tipo de depilação, por vezes, é associado a profissionais do sexo, como
Prostituta então deve ter de tudo: estrelinha, o rosto do cafetão... Acho que
cada vez ela deve fazer um desenho. Deve ser personalizada, ao gosto do
cliente, a bandeirinha do país. (Nazaré, estatística)
Cabelos
Justamente por se tratar de uma parte do corpo cujas práticas e representações sempre
me despertaram curiosidade, dedico esta parte da tese a fazer uma análise sintética, porém, um
pouco mais elaborada (comparada àquela feita com unhas e pêlos) com base em minhas
118
investigações realizadas em salões de beleza para a elaboração de minha dissertação .
Vejamos então como a análise desta parte específica do corpo também pode se estender a
Abro um pequeno parêntese aqui para lembrar que, pelo fato de estar trabalhando com
acerca de pêlos, unhas e cabelos apresentam certa especificidade. São expressões de um ethos,
de uma taste culture específica de pessoas que costumam compartilhar com freqüência o
sentir com maior intensidade, o que não significa que outras leituras ou preferências
nó, arrancamos fio a fio, acariciamos e até comemos, numa múltipla e curiosa arte de utilizar
Ao longo da vida de uma pessoa, os cabelos passam por diversos momentos, podendo
variar de acordo com o papel que ela desempenha no interior de um determinado grupo social,
Tendo em vista o contexto social contemporâneo, um bom caminho para se dar início
a uma investigação sobre o tema é atentar para a expansão e a segmentação nunca antes vistas
sociedade que “julga” e “condena” as pessoas pela aparência física, o indivíduo passa a ser o
maior responsável pela sua imagem corporal. O que exige um cuidado constante e uma
O cabelo “mal cuidado”, por exemplo, pode diminuir a aceitação social. É considerado
indicativo de preguiça, desleixo, baixa auto-estima e até falha moral, tal como apontado por
uma pessoa, inabilitando-a para a aceitação social plena (GOFFMAN, 1975). Como veículo
exclui e inclui, aproxima e distancia, deixando pouco espaço para indefinições. Nas palavras
O cabelo pode ser uma arma. Com ele você pode conseguir muitas coisas:
um bom emprego, um bom amigo, um bom namorado. Mas você também
pode se destruir com o cabelo. Ele pode te fazer ficar completamente à parte
da sociedade, ninguém te querer mais. É possível. Ou você pode chegar com
um cabelo que fará com que todo mundo te adore, te ame e te queira para o
grupo deles. Com o cabelo você pode conseguir muitas coisas. (Théo,
cabeleireiro)
ater a duas em especial: à cor e à textura dos cabelos. Por meio da análise dos discursos acerca
simples se abrem às mais diversas dimensões sociais, revelando concepções sobre idade, cor
de pele, classe social, comportamento sexual, entre outros. Veremos que loiras, morenas e
ruivas estão longe de serem meras colorações de cabelo. Assim como cabelos crespos ou lisos
branco é a única que quase toda pessoa irá experimentar, se a morte não se antecipar. Esta cor
forte - que se faz de cabelos brancos é com a velhice, simbolizando maturidade, experiência e
sabedoria. A expressão popular “respeite meus cabelos brancos” confirma tal representação.
Daí também ser comum representar imageticamente cientistas, gênios, magos e deuses com os
cabelos esbranquiçados.
Por outro lado, os fios brancos podem assumir representações negativas: anunciam o
início de uma trajetória de perdas físicas e simbólicas. Especialmente nos dias de hoje, em que
280
juventude - tendência que, segundo Lipovetsky (1989), caminha junto ao culto do corpo.
papel de estigma. Seu não-disfarce pode ser interpretado como sinal de desleixo, pouca
119
vaidade ou mesmo sujeira . Neste contexto, as práticas de tintura são estimuladas, fazendo
muitas mulheres se sentirem “escravas da coloração”, tal como definem tal relação. Disfarçar
pode ser igualmente condenada. É esperado que mulheres de idade avançada “aceitem” a
própria condição da idade e “assumam” seus cabelos brancos. A idéia é que não se deve lutar
Podemos sugerir que essa exigência moral é um dos meios que a sociedade encontra
para marcar o corpo de tais pessoas, justamente com um dos mais fortes signos de
enquadramento na categoria social de velhice. Dessa forma, torna-se mais fácil identificá-las e
convêm.
da vida social, acredita-se afastar para longe a lembrança de finitude da vida. Curiosamente, a
colocando-se quase como uma interdição cultural. Compartilha-se da concepção que “homem
que é homem não pinta cabelo”. Os cabelos grisalhos, por sua vez, são considerados sinal de
119
Isto demonstra o quanto o simbolismo das cores varia de acordo com o objeto em questão. O branco, cor por
excelência da pureza, da limpeza e da assepsia, pode se tornar, inversamente, significante de sujeira quando
situado no campo polissêmico dos cabelos.
281
homem maduro e até vistos como certo charme. Dessa forma, o cuidado com o corpo segue
Voltemo-nos agora para reflexões sobre outra cor que se abre a um outro mundo de
representações. Refiro-me aos tons de cabelos claros. Ser loiro, sobretudo quando se trata de
representações. É se submeter a certas atuações e domínios sugeridos pela cultura. Ser objeto
dos cabelos, ser loira, mais do que nunca, é uma opção. A partir do momento em que a pessoa
faz parte de uma cultura, por concordância ou por discrepância, ela compartilha de seus
valores e representações. Sendo assim, a opção pela cor loira de cabelos vem carregada de
imagens, crenças e desejos específicos, ainda que tal processo não se dê por meios
estritamente conscientes.
Num país em que a grande maioria das mulheres é morena, o cabelo loiro se tornou
símbolo de um ideal de beleza pouco próximo de um biótipo brasileiro. O simples fato de ser
pouco comum ou diferente, entretanto, não é suficiente para explicar tal idealização. Sua
associação com uma origem européia certamente é uma pista que revela não apenas algumas
questões do presente como também conduz a representações de um passado que ainda parece
nos influenciar.
nesta época, predominantemente de origem européia, eram esposas de imigrantes que viveram
e prosperaram no país. Ligadas aos estratos mais altos, elas não só pertenciam a um status
social valorizado como também eram detentoras de estilos de vida, maneiras, costumes e
282
hoje. Prova disso é que o cabelo loiro continua a ser associado aos estratos superiores da
hierarquia social - sendo a cor da pele outro fator determinante. Não por coincidência, no
salão de beleza do Leblon pesquisado, ao abrir o armário onde ficam armazenadas as tintas
para cabelo, o colorista confirma minha impressão de que a sala de coloração mais remete a
uma fábrica de produção em série de mulheres loiras: vê-se apenas duas caixas de tinta
Sendo os cabelos loiros símbolos de status social, não é toda mulher que “pode” ou
“deve” tê-los. A opção por ser loira, entre outras coisas, pode ser interpretada como a
cabelos de loiro, portanto, seria uma tentativa simbólica de desempenhar novos papéis,
efetivamente ou não.
Um dos mais efetivos meios de controle sobre a ameaça de uma “anarquia estética” é
estabelecer e difundir regras de combinação de colorações de cabelo “corretas” para cada tipo
de pele. Às negras e orientais devem ser evitadas cores de cabelo claras, como o loiro. A
exceção se abre apenas a alguns tipos de morenas, preferencialmente de pele alva. O que não
faltam são discursos e práticas sociais que hierarquizam os sujeitos a partir de seus corpos.
(anteriormente mencionado) ilustra um dos modos de interdição que se dá por meio das cores
de cabelo. É uma das maneiras que se encontra para colocar o negro “em seu devido lugar”.
Dessa forma, a separação social entre brancos e negros, no Brasil, reafirma um de seus
econômico, mas também na cor de pele, cor e textura de cabelo, infringir o esquema de
coloração de cabelos, não é nada fácil, como expresso pelas palavras de uma informante
negra: - “Para a minha raça, pintar o cabelo de loiro eu acho que é preciso coragem” (Rosa,
enfermeira, negra).
As cores de cabelo não são utilizadas apenas para dar forma a concepções racistas.
É neste sentido que emergem interessantes classificações de cores, tais como: o “loiro-
puta” (descrito, de forma geral, como muito claro, ressecado e sempre com o retoque da raiz
por fazer); o “loiro-vulgar-sucesso” (também muito claro, associado a mulheres que ascendem
“loira-falsa”, para a qual o cabelo loiro é uma opção e não uma herança genética 120).
Em síntese, de todas as cores de cabelo, a loira certamente é aquela que recebe mais
121
eroticidade . Acredita-se que a loira seja sexualmente mais livre e ativa em comparação às
outras mulheres, sobretudo morenas. A atração que parecem exercer sobre o sexo oposto
Podemos indagar se este também não seria um dos motivos que leva mulheres mais
122
velhas a pintarem os cabelos de loiro , em uma tentativa de resgate da atratividade sexual
que se acredita perdida com o passar da idade. Segundo relato de um entrevistado, “minha
amiga virou loira e falou que ouvia coisas dos homens que ela nunca tinha ouvido quando era
morena” (Théo, cabeleireiro). Sob tal perspectiva, a passagem de morena para loira, entre
Mesmo sendo a cor loira desvalorizada socialmente, sob vários aspectos, esta
tendência “albinizante” - para usar a expressão de Gilberto Freyre - que leva proporções
consideráveis de mulheres a lotarem os salões todo mês para terem seus cabelos pintados de
loiro, apenas comprova que tal cor gera um retorno compensatório bem maior do que os
Porém, cabe perguntar: O que é que a morena tem? Sejam as de cabelo castanho ou
preto, também possuem lugar especial em nosso imaginário, estimulado, especialmente, pela
sexual ou erótico que por muito tempo foi objeto de fascinação dos portugueses que
Pode-se, entretanto, afirmar que a mulher morena tem sido a preferida dos
portugueses para o amor, pelo menos para o amor físico. A moda de mulher
loura, limitada, aliás, às classes altas terá sido antes a repercussão de
121
De uma forma geral, os cabelos da cabeça, como um todo, encontram-se fortemente ligados a dimensões
libidinosas. Cf. LEACH (1983).
122
Tendo como referência a expressão cada vez mais difundida de que “brasileira não fica velha, fica loira”.
285
atualidade ela não divide parte de seu trono com as loiras. À medida que os papéis sociais não
são estáticos e estão sujeitos a variações ao longo da história, pode-se sugerir que a melhor
opção, hoje, numa alusão ao ditado popular citado por Freyre, é: “morena para casar e loira
para f...”.
comparação com a loira seu principal processo de criação. Atributos como “discrição”,
respeito sobre sua aparência e sobre sua moral. Segundo interpretação de um entrevistado,
intelectualidade. Entretanto, como beleza e inteligência são duas dimensões que costumam ser
(Paula, modelo). “Morena eu acho que é natural. São as pessoas mais naturais. Como dizia a
minha mãe, um cabelo castanho é cor de quê? Eu acho que ninguém pinta o cabelo de
Pode-se sugerir que tal dificuldade de definição esteja associada ao fato de os cabelos
castanhos não terem representações simbólicas tão fortes quanto os cabelos loiros. Para a
indiferente, o loiro se encontra longe de tal interpretação. A beleza do cabelo castanho - tida
como discreta, quase “sem sal”- faz contraste com a beleza do cabelo loiro - que se destaca,
chama a atenção.
tal construção binária colocando-se como um terceiro elemento, diferente dos outros dois e,
ao mesmo tempo, semelhante em diversas características. A opção por ser ruiva passa, então,
a ser uma forma de fugir de certos estereótipos, mas não evita que se caia em outros. Na
definição de um cabeleireiro,
Mais uma vez, a questão da sexualidade se mostra presente por meio das cores de
cabelo. A ruiva, assim como a loira, é tida como uma mulher que deseja se destacar e
despertar atração sexual: - “Aquela que pinta o cabelo de vermelho geralmente quer parecer
gostosona, mulher fatal” (Isa, tradutora). Tanto que a categoria “vermelho-piranha” também
Mais do que qualquer outra cor, a ruiva é indicada como a que mais fica marcada
como “artificial” quando se trata de tintura de cabelo. Não só pela raridade de ruivas
“legítimas” no Brasil, como também por uma série de elementos corporais que caracterizam
Como indicado pela entrevistada, ser ruiva, diferente de ser morena ou loira, é mais do
que uma simples opção; é um conjunto estruturado de indícios corporais: cabelo vermelho,
A cor de cabelo vermelha possui uma excepcionalidade que desperta reações tanto de
valorização quanto de desvalorização. “A pessoa tem que ter muita coragem para pintar o
cabelo de vermelho. É uma cor que chama muita atenção. Se o tom de pele dela não combinar
com essa tonalidade fica muito esquisito”, diz Paula - modelo que possui os cabelos pintados
de preto.
288
que quer. Uma vez que ela sabe que o vermelho combina com a pele dela, então ela sabe que
tem bom gosto” (Francis, colorista). “Corajosa”, “decidida”, “bem resolvida”, os atributos não
param por aqui, demonstrando que para ser ruiva não se pode ter medo de encarar as
Voltemo-nos agora para outra dimensão tão reveladora de aspectos de nossa sociedade
características do cabelo, a textura aparece como aquela que, com maior freqüência, leva as
pessoas a desejarem modificação. Nas palavras de uma entrevistada, “quem tem cabelo liso
quer enrolar e quem tem cabelo enrolado quer alisar” (Mara, gerente de marketing).
mudar simplesmente pelo prazer da modificação, de estar na moda ou de se sentir bem com
uma textura diferente. Não existe explicação única para a vontade da mudança, mas
O alisamento dos cabelos aparece como um caso à parte. Uma vez que o racismo se
aplicados no sentido de modificar a textura crespa para evitar a exclusão pela aparência física.
duro”, explica a entrevistada Maria Carolina, estudante, branca. Tal representação pode ser
123
Cf. GOMES (2006:241) para uma discussão mais densa sobre os diferentes significados atribuídos às texturas
de cabelo lisa e crespa.
289
resumida pelo seguinte esquema: Ruim = negro = crespo = duro; Bom = branco = liso =
macio.
Entretanto, tais expressões não dizem respeito apenas à textura. “Cabelo bom é aquele
que tem movimento, brilho, que não amassa, não enrola. É um cabelo que toda mulher
desejaria ter. Cheio, com bastante volume, com caimento. Você amarra, solta e ele está lindo,
No entanto, a indústria trata de criar formas de contê-los, por meio de cremes que prometem
domar os cachos revoltosos e que ganham curiosos nomes, tais como: “disciplinantes”,
Em suma, o “cabelo ruim” é tido como um estigma que “mancha” a aparência de seu
portador (GOFFMAN, 1975). As pessoas que possuem tal cabelo tentam fugir desse estigma
recorrendo aos mais variados recursos. No entanto, quando ultrapassam certos limites de
“limitadas”.
A minha amiga tem o cabelo ruim, mas ruim por causa da raça. Então ela dá
uma importância tão grande ao cabelo, que se ela fizer uma escova hoje,
amanhã ela não vai à ginástica. Como a filha da minha amiga, que na
Disneylândia não foi aos brinquedos que caíam na água porque o cabelo ia
encolher. Tem gente que se sacrifica por causa do cabelo. (Kássia, dona-de-
casa)
O medo de perder o controle sobre a própria aparência e sua “fachada” ser revelada
leva muitas mulheres a adotarem uma vigilância constante sobre a textura dos cabelos. O que,
por vezes, extrapola o frágil limite do plano simbólico, fazendo-se sentir no plano biológico.
“A minha cunhada já deu tanta importância ao cabelo, já tacou tanta coisa ali que acabou
ficando careca, quase teve que implantar cabelo. Cada hora ela estava com uma forma ou uma
290
cor de cabelo” (Rosa, enfermeira). Porém, ao mesmo tempo em que a sociedade não permite
que se dediquem atenções excessivas a esta parte do corpo, também não admite desleixo ou
falta de atenção.
De uma forma geral, podemos dizer que a valorização da textura lisa ultrapassa o
domínio dos cabelos: se, por um lado, o que se assiste atualmente é uma busca incessante pela
cabeleira lisa, por outro, é exigido do corpo o mesmo tipo de textura. Sob essa perspectiva,
rugas, celulites, estrias, pêlos, flacidez, enfim, tudo que coloque em risco o corpo liso, leve e
social (DOUGLAS, 1966:143). É neste sentido que cabelos, unhas e pêlos constituem um
universo simbólico, heterogêneo e plural. Caem, crescem, mudam de cor e de textura, em uma
transformação constante e sem tréguas que coloca em movimento não apenas pessoas, lugares
CONSIDERAÇÕES FINAIS
292
Reduzir o mundo dos salões de beleza ao seu uso em termos estritos de vaidade é
ignorar toda a complexidade e ambigüidade que torna este fenômeno urbano, justamente,
justificativa para a procura por salões. Mas desconfiar de qualquer motivação que se declare
única, sem perder do horizonte que, por mais que compartilhem os mesmos serviços e um
espaço físico comum, os sujeitos podem atribuir uma enorme gama de possibilidades de
O primeiro processo mais geral a ser identificado é aquele que faz referência ao corpo.
Que papel os salões desempenham frente a esta idolatria do corpo que se observa nos dias
atuais? Quais os impactos da beleza na vida cotidiana, tendo como ponto de referência a
quantidade de salões que habitam as esquinas das grandes cidades e os milhões gastos em
Uma das pistas a ser seguida diz respeito à própria noção sobre corpo que se
pronto por completo (LE BRETON, 1999). Demanda vigilância atenta, revisão constante e
Mas não é apenas a noção de corpo o que ajuda a explicar o fenômeno dos salões de
sensibilidade na cultura ocidental moderna. Em outras palavras, estar atento às aparências que
Não atender às expectativas sociais é uma possibilidade que faz parte deste processo
de construção de si. Logo, ela instaura uma vulnerabilidade simbólica que pode ser
para mostrar que algo está fora do lugar -, quanto pelos próprios elogios que, ao enaltecer o
exigência, ao mesmo tempo). O que os rituais de cuidado do corpo no salão revelam, entre
relação a categorias de gênero, idade, classe e cor de pele, entre outras (BLACK, 2004).
analisado dentro de seus contextos de enunciação, a escolha que o indivíduo faz, dentro da
sociais específicos, como também é um importante indicativo sobre estilos de vida, valores e
crenças.
Como observa Paula Black (2004), o self moderno foi institucionalmente demandado a
construir sua vida através do exercício da escolha entre as alternativas. Cada aspecto da vida,
124
Lembrando que as obrigações colocadas aos sujeitos não se limitam à esfera do corpo, sendo também
esperado destes obrigações quanto à felicidade e ao bem-estar, entre outras. Os salões de beleza, à medida que
trabalham não somente sobre o corpo, mas sobre as emoções dos clientes, acabam por transcender o dualismo
mente/corpo inerente a muitas tradições do pensamento Ocidental (BLACK, 2004).
294
cada produto que consumimos possui um sentido auto-referencial; cada escolha que fazemos
é um emblema de nossa identidade, uma marca de nossa individualidade, uma mensagem para
nós mesmos e para os outros sobre o tipo de pessoa que somos. Na definição de José Carlos
corpo de uma sociedade em que não é possível não optar” (RODRIGUES, 1991:157).
A temática do desejo versus obrigatoriedade é aqui colocada para pensar não somente
a agência dos sujeitos, mas o campo de possibilidades que se coloca à disposição para a
construção do self. Em outras palavras, é preciso lembrar que não são todos os indivíduos que
fazem uso do espaço ou dos serviços disponibilizados por salões de beleza; que existem
diferentes graus de adesão às pedagogias estéticas predominantes e que muitas são as margens
de manobra possíveis para lidar com tais coerções (VELHO, 1981 e 1994).
experiências sobre beleza e identidade estão sendo negociadas e produzidas, sem deixar de
Talvez uma das melhores surpresas que tive ao estudar o mundo dos salões de beleza
foi perceber não apenas a riqueza das relações humanas, como a capacidade dos sujeitos de
“clube” - durante a pesquisa de campo tive acesso a essas e muitas outras definições que
tentam dar conta das várias possibilidades de arranjo possíveis no interior desses espaços.
Definições estas que sugerem uma multiplicidade de usos voltados não só para a
295
informações, a conversação etc. Sob tal perspectiva, o salão pode ser enxergado enquanto um
valioso e importante microcosmo das relações sociais mais gerais (BLACK, 2004:10).
Ainda sobre situações ocorridas durante o trabalho de campo, recordo-me de certa vez
em que fui apresentada a uma cliente de um salão que pesquisava. Quando tomou
conhecimento sobre meu tema de estudo, disse-me a seguinte frase: - “Existem cinco coisas
que não vivo sem: (na seguinte ordem) família, amigos, trabalho, celular e salão”. Achei a
frase extremamente interessante pelo fato de jogar luz sobre uma dimensão fundamental que
permitem estabelecer contatos (celular) e a instituições que atuam como mediadoras para se
travar encontros sociais (no caso do salão), está sendo colocada uma das principais
salões de beleza possibilitam pensar teoria social a partir do mundo cotidiano das mulheres
(BLACK, 2004:9).
E talvez o que o estudo das formas de sociabilidade tragam de mais valioso seja pensar
as trocas que compreendem os tipos de associação que se dão no ambiente dos salões. São
trocados não apenas serviços de beleza, mas informações, experiências de vida, presentes,
contatos corporais e afetos, entre muitas outras coisas. A troca, neste sentido, deve ser vista
enquanto o nexus das relações. Justamente por ser na atuação, na troca, na relação, que os
sujeitos se constroem.
296
“Toda etnografia apresenta-se como uma tensão entre aquilo que é familiar e aquilo
que é estranho” (BEAUD & WEBER, 1997:36). Esta frase consegue verbalizar com
tantos espetáculos que a cidade encena diariamente, o salão se oferece enquanto universo
escala metropolitana produz. No entanto, apesar de sua intensa presença na paisagem urbana,
é possível afirmar que essa grande visibilidade que os salões possuem, por vezes, os tornam
invisíveis.
O mundo dos salões é algo particular, um fenômeno com densidade própria que
desperta (ainda que de forma modesta) curiosidade aos olhos das ciências sociais. Talvez sua
beleza esteja em se mostrar um híbrido entre as esferas do público e do privado, em fazer uma
mediação entre o universo do íntimo e o “mundo lá fora” ou por tornar menos nítidas as
metropolitano. Integram um fenômeno de massas maior e mais complexo, por meio do qual
1990). Não são meros reflexos da sociedade abrangente, mas produzem sociedade.
salões de beleza na Zona Sul do Rio de Janeiro são extensíveis a outros contextos sociais,
apenas novas pesquisas poderão responder. É certo que estamos falando de estilos de vida, de
um ethos muito particular. Porém, acredito que generalizações poderão ser feitas para outros
contextos que não sejam os específicos dos salões de beleza investigados. Sobretudo se o
297
horizonte das preocupações se assentar não sobre o universo dos indivíduos, mas sobre o
universo de relações que constitui o mundo dos salões (BEAUD & WEBER, 1997:187).
Quando cheguei ao campo, possuía noção sobre algumas pistas que deveria perseguir.
Porém, diariamente fazia um exaustivo esforço para deixar que os próprios salões de beleza
como uma unidade coesa, optei por prestar atenção nas dinâmicas que o constituem. O
resultado foi ter acesso a uma miríade de experiências, que tive o prazer de poder trabalhar.
considero minha proposta inicial concluída. Espero que, a partir deste trabalho, ao olhar pelos
espelhos que circundam o espaço dos salões de beleza, seja possível olhar para nossa própria
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FILMES CINEMATOGRÁFICOS
BEAUTY Shop. Direção: Mark Brown. EUA: 2004.
INSTITUTO de Beleza Vênus (Venus Beauté). Direção: Tonie Marshall. França, 1998.
GLOSSÁRIO
Autoclave – aparelho utilizado para esterilizar objetos (no caso dos salões, alicates, tesouras,
pinças, espátulas, empurradores de cutícula ou palitos em inox) ao submetê-los a temperaturas
acima de 120º C.
Baby liss – Penteado feito com auxílio de um instrumento modelador cujo efeito é o de
cachos nos cabelos. Os cabelos são umedecidos e mechas são separadas para então serem
enroladas no aparelho de formato circular que, por meio de ação do calor, molda os fios.
Balayage – Técnica de coloração que consiste em tingir mechas, a fim de criar contraste com
o tom predominante do cabelo. Uma prancheta é colocada embaixo de alguns fios e o
descolorante aplicado. Retira-se a prancheta para o produto agir por alguns minutos. A
diferença entre a balayage e o reflexo é que a primeira é mais irregular.
Cauterização – Tratamento capilar de hidratação profunda que sela as escamas dos fios e
suaviza as pontas duplas, o que permite eliminar o aspecto arrepiado dos cabelos. O objetivo
principal é repor a queratina perdida dos fios que passaram por processos químicos, a fim de
deixar os cabelos com mais brilho.
Cirandinha – Cadeira baixa com rodinhas e gaveta embutida comumente utilizada por
manicures para fazer o atendimento a seus clientes.
Escova – Penteado que consiste no alisamento do cabelo pela ação do calor do secador, no
qual os fios são manipulados por escovas de formato circular. Os fios são umedecidos antes
da ação do secador. Pode-se também fazer uso de produtos modeladores ou termoativadores.
Eyelash – Processo de alongamento no qual cílios sintéticos são colados um a um na base dos
cílios naturais. As extensões possuem diversos tamanhos, cores e espessuras. Podem durar de
três semanas a três meses.
Francesinha – Técnica de decoração de unha que consiste na coloração das pontas com
esmalte geralmente de cor branca, a fim de fazer contraste com o resto da base da unha,
pintada em tom claro mais suave.
311
Lavatório – Mobiliário que consiste em uma cuba com ralo para escoamento de água
acoplada ao topo de uma cadeira onde os clientes se sentam e apóiam a cabeça inclinada para
trás para que seus cabelos sejam lavados.
Permanente de cílios – Procedimento que muda a estrutura dos fios tornando-os curvados
através da aplicação de um produto especial e com a ajuda de um instrumento que promove a
ondulação. O efeito dura cerca de dois meses.
Pintura de cílios – Processo de coloração dos cílios. Indicado para quem possui cílios claros.
Diferente das máscaras tradicionais (produtos cosméticos) que são removíveis na primeira
lavagem ou com demaquilantes, a pintura de cílios possui duração prolongada.
Reflexo – Técnica de coloração que clareia de 80 a 90% dos fios e trabalha com cores claras
mais fortes e definidas. O resultado final são mechas bem marcadas e espalhadas pelo cabelo.
Luzes – Técnica de coloração em que mechas finas por toda a cabeça ganham fios mais claros
que se misturam à cor original do cabelo. Cerca de 50% dos fios são descoloridos neste
processo, que produz mechas sutis, clareando o cabelo até três tons.
312
ANEXOS
BADY
Idade: 28 anos
Sexo: Feminino.
Peso corporal: 75 quilos
Altura: 1,75 metros
Cor dos olhos: castanhos.
Cor dos cabelos: loiros.
Textura dos cabelos: finos.
Cor da pele: morena.
Tipo de unha: quadrada.
Estado civil: solteira.
Filhos: ø
Profissão / ocupação atual: Coord. de campo.
Profissões anteriores: Vendedora, Técnica de atendimento social, Psicóloga.
Classe social: B
Grau de escolaridade: Superior.
Religião:
Bairro em que reside atualmente: Ipanema.
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: Além Paraíba
(MG).
319
DIONE
Idade: 34 anos
Sexo: feminino
Peso corporal: 86 quilos
Altura: 1.69 metros
Cor dos olhos: castanhos escuros
Cor dos cabelos: castanho escuro
Textura dos cabelos: ondulado
Cor da pele: morena
Tipo de unha: curta
Estado civil: solteira
Filhos: n
Profissão / ocupação atual: diagramadora
Profissões anteriores: designer gráfico, diretora de arte…
Classe social: não sei, talvez média
Grau de escolaridade: 3º grau completo
Religião: católica não-praticante
Bairro em que reside atualmente: Humaitá (Rio de Janeiro)
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: Centro (SP),
Lagoa (Itapecerica da Serra – SP), Fonseca (Niterói – RJ)
320
FABIANA
Idade: 23 anos
Sexo: fem.
Peso corporal: 90 quilos
Altura: 1,71 metros
Cor dos olhos: castanhos
Cor dos cabelos: pretos
Textura dos cabelos: liso
Cor da pele: branca
Tipo de unha: grande
Estado civil: juntada
Filhos: não
Profissão / ocupação atual: designer
Profissões anteriores: -
Classe social: média alta
Grau de escolaridade: graduação
Religião: católica
Bairro em que reside atualmente: Pinheiros (SP)
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: Ipanema
321
FABRÍCIA
Idade: 22 anos
Sexo: Feminino
Peso corporal: 70 quilos
Altura: 1,63 metros
Cor dos olhos: castanhos
Cor dos cabelos: castanhos
Textura dos cabelos: ondulado
Cor da pele: clara
Tipo de unha: -
Estado civil: solteira
Filhos: ø
Profissão / ocupação atual: Trainee
Profissões anteriores: -
Classe social: média
Grau de escolaridade: Superior
Religião: Católico
Bairro em que reside atualmente: Catete
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: -
322
IVANILDE
INÊS
Idade:
Idade: 27
52 anos
anos
Sexo:
Sexo: Feminino
Feminino
Peso
Peso corporal:
corporal: 44
60 quilos
quilos
Altura:
Altura: 1,59
1,65 metros
metros
Cor dos
Cor dos olhos:
olhos: Castanho
castanhos Escuro
Cor dos
Cor dos cabelos:
cabelos: castanhos
Antes Castanho Escuro agora Dourado
Textura dos
Textura dos cabelos:
cabelos: cabelo
Fina cacheado / fino / ralo
Cor da
Cor da pele:
pele: Amarelada
Branca
Tipo de
Tipo de unha:
unha: Masculina
curta
Estado civil:
Estado civil: Casada
solteira no papel
Filhos: Duas
Filhos: não
Profissão // ocupação
Profissão ocupação atual:
atual: Empresária
Assistente de edição
Profissões anteriores:
Profissões anteriores: Do
Produção;
lar Pesquisa
Classe social:
Classe social: Média
Média baixa
Grau de
Grau de escolaridade:
escolaridade: cursando
Superior graduação
Religião: Espírita
Religião: Não tem
Bairro em
Bairro em que
que reside
reside atualmente:
atualmente: Ipanema
Flamengo
Outro(s) bairro(s)
Outro(s) bairro(s) // estado(s)
estado(s) // país(es)
país(es) em
em que
que residiu
residiu até
até hoje:
hoje: Tijuca,
Grajaú, Centro
Tijuca,e
Jardim Botânico, Pendotiba, Nova Iorque.
Barra.
323
JORDANA
Idade: 25 anos
Sexo: Feminino
Peso corporal: 70 quilos
Altura: 1,65 metros
Cor dos olhos: castanhos
Cor dos cabelos: castanho claro com luzes
Textura dos cabelos: fino
Cor da pele: branca
Tipo de unha: quadrada
Estado civil: solteira
Filhos: não
Profissão / ocupação atual: promotora de eventos
Profissões anteriores: -
Classe social: classe média alta
Grau de escolaridade: pós-graduada
Religião: Espírita
Bairro em que reside atualmente: Recreio dos Bandeirantes
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: Barra da Tijuca
324
JULIANA
Idade: 32 anos
Sexo: feminino
Peso corporal: 45 quilos
Altura: 1,58 metros
Cor dos olhos: castanho claro
Cor dos cabelos: castanho escuro
Textura dos cabelos: Eu acho ondulado, mas os outros acham liso.
Cor da pele: parda
Tipo de unha: ex -roída.
Estado civil: solteira
Filhos: não tenho.
Profissão / ocupação atual: desempregada
Profissões anteriores: estudante remunerada
Classe social: média baixa
Grau de escolaridade: pós-graduação (mestrado)
Religião: não tenho
Bairro em que reside atualmente: Flamengo
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: Icaraí - Niterói.
325
LEANDRO
Idade: 43 anos
Sexo: M
Peso corporal: 71 quilos
Altura: 1,70 metros
Cor dos olhos: castanhos
Cor dos cabelos: castanhos
Textura dos cabelos: liso
Cor da pele: branco
Tipo de unha: curta
Estado civil: solteiro
Filhos: 0
Profissão / ocupação atual: analista de mkt
Profissões anteriores: analista de sistemas
Classe social: B?
Grau de escolaridade: superior completo
Religião: ateu
Bairro em que reside atualmente: Laranjeiras (RJ)
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: Leblon (RJ)
326
MAITÊ
Idade: 24 anos
Sexo: Feminino
Peso corporal: 54 quilos
Altura: 1,68 metros
Cor dos olhos: Castanhos/ mel
Cor dos cabelos: Loiro escuro
Textura dos cabelos: Liso
Cor da pele: Branca
Tipo de unha: Quadrada e curta
Estado civil: Solteira
Filhos: 0
Profissão / ocupação atual: Auditora
Profissões anteriores: Auditora
Classe social: Alta
Grau de escolaridade: Superior completo
Religião: Católica
Bairro em que reside atualmente: Ipanema / RJ
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: Londres e
Manaus
327
MAURA
Idade: 39 anos
Sexo: Feminino
Peso corporal: 55 quilos
Altura: 1,57 metros
Cor dos olhos: Castanhos
Cor dos cabelos: Castanhos
Textura dos cabelos: Lisos
Cor da pele: Branca
Tipo de unha: Curta
Estado civil: Solteira
Filhos: 1 filha
Profissão / ocupação atual: Comerciante
Profissões anteriores: A mesma
Classe social: média
Grau de escolaridade: Pós-graduação
Religião: Espírita
Bairro em que reside atualmente: Botafogo
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: RJ: Vila Isabel,
Jacarepaguá – SP: Morumbi, Centro.
328
MIRELA
Idade: 30 anos
Sexo: feminino
Peso corporal: 55 quilos
Altura: 1,66 metros
Cor dos olhos: castanhos
Cor dos cabelos: loiros
Textura dos cabelos: lisos
Cor da pele: branca
Tipo de unha: -
Estado civil: solteira
Filhos: Nenhum
Profissão / ocupação atual: psicóloga
Profissões anteriores: garçonete
Classe social: Média-alta
Grau de escolaridade: Superior
Religião: Nenhuma
Bairro em que reside atualmente: Washington - EUA
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: Copacabana e
Flamengo.
329
NAZARÉ
Idade: 29 anos
Sexo: Feminino
Peso corporal: 75 quilos
Altura: 1,60 metros
Cor dos olhos: Castanho Claro
Cor dos cabelos: Castanho Claro
Textura dos cabelos: Liso
Cor da pele: Clara / Branca
Tipo de unha: Fêmea (porte redondo)
Estado civil: Solteira
Filhos: Não
Profissão / ocupação atual: Estatística
Profissões anteriores: -
Classe social: Média
Grau de escolaridade: Pós Graduação
Religião: Católica
Bairro em que reside atualmente: Catete
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: Copacabana
330
REBECA
Idade: 35 anos
Sexo: feminino
Peso corporal: 75 quilos
Altura: 1,72 metros
Cor dos olhos: preto
Cor dos cabelos: preto
Textura dos cabelos: grosso
Cor da pele: negra
Tipo de unha: normal
Estado civil: casado
Filhos: 2 filhos
Profissão / ocupação atual: auxiliar adm.
Profissões anteriores: copeira
Classe social: C
Grau de escolaridade: Ensino médio (técnico)
Religião: não tenho
Bairro em que reside atualmente: Duque de Caxias
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: não
331
RUBENS
Idade: 31 anos
Sexo: Masc.
Peso corporal: 75 quilos
Altura: 1,80 metros
Cor dos olhos: castanhos
Cor dos cabelos: castanhos
Textura dos cabelos: crespo
Cor da pele: morena
Tipo de unha: -
Estado civil: casado
Filhos: -
Profissão / ocupação atual: engenheiro
Profissões anteriores: -
Classe social: A
Grau de escolaridade: 3º completo
Religião: católico não praticante
Bairro em que reside atualmente: Botafogo
Outro(s) bairro(s) / estado(s) / país(es) em que residiu até hoje: Belo Horizonte /
RJ / Angola / RJ (Flamengo – Ipanema – Jardim Botânico – Laranjeiras – Leblon –
Lagoa)
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