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Seropédica
Junho de 2018
1
Gazeta de Notícias, 23 de janeiro de 1890, p. 2.
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO – UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
COORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA
Orientador: ___________________________________
Aprovada por:
_________________________________________
Presidente, Prof.ª Fabiane Popinigis
_____________________________________
Prof.ª Dr.ª Adriana Barreto
_____________________________________
Prof. Dr. Fabio Lopes
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Junho de 2018
AGRADECIMENTOS
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ALBINO, Jefferson Nascimento.
“Curandeiro e desordeiro”: a experiência de Juca Breves na sociedade
carioca (1872 – 1911) / Jefferson Nascimento Albino. Seropédica:
UFRRJ/ICHS, 20018. Número de páginas pré-textuais VII, 61.
Orientador: Fabiane Popinigis
Monografia (Bacharelado/Licenciatura) – UFRRJ/ Instituto
de Ciências Humanas e Sociais/ Departamento de História,
2018.
Referências Bibliográficas: f. 67-69.
1. História do Brasil. 2. Primeira República. 3.
curandeirismo. 4. História Social. I. POPINIGS, Fabiane.
II. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto
Ciências Humanas e Sociais, Curso de História. III.
Bacharelado/Licenciatura.
4
“CURANDEIRO E DESORDEIRO”2: A EXPERIÊNCIA DE JUCA
BREVES NA SOCIEDADE CARIOCA (1872 – 1911)
Orientador:___________________________________
Seropédica
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Gazeta de Notícias, 23 de janeiro de 1890, p. 2.
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"CURANDEIRO AND DISORDEIRO": THE EXPERIENCE OF JUCA
BREVES IN THE SOCIETY OF RIO DE JANEIRO (1872-1911)
Orientador:___________________________________
The present work has the main objective of analyzing and historicizing the healer José
Francisco Pinto Breves as an agent of the Carioca society (1872-1911) and his relations with
the state institutions, seeking to identify the mechanisms used by the healer in the midst of a
complex society to which it is inserted. In other words, the central question of this work is:
What was the picture of social relations in Rio de Janeiro in the first decades of the republic,
from the perspective of a healer? Such work was possible to be developed, because as I will
explain, there was a persecution of the state doctors and institutions regarding these
individuals, as they were seen as a problem to be eradicated from Brazilian society. Within
this logic I deem it necessary to analyze and investigate the relations constructed by these
individuals.
Keywords: First republic, Rio de Janeiro, healerism, quackery, medicine, newspapers.
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Junho de 2018
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SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................. 8-12
Conclusão................................................................................................................ 64- 67
Bibliografia............................................................................................................. 68-70
7
Introdução:
Ciganos são presos por estelionato e curandeirismo em Pinhalzinho.
A polícia militar de Pinhalzinho prendeu, na tarde desta segunda feira
19, um cigano de 52 anos, acusado de estelionato e curandeirismo.
A detenção aconteceu depois que a polícia militar foi informada de
que ciganos estariam procurando famílias que tem pessoas com
problema de saúde, e com isso vendiam a promessa de cura com a
cobrança de altos valores. O veículo Montana com placas de São
Miguel do Oeste foi abordado e o homem identificado, e com ele foi
encontrado um cheque de R$ 3.500,00 de uma das vítimas. 3
3
Campo Erê. Ciganos são presos por estelionato e curandeirismo em Pinhalzinho. Pinhalzinho, 20 de junho de 2017.
disponível em: < http://www.campoere.com/noticias/10608/ciganos-sao-presos-por-estelionato-e-curandeirismo-em-
pinhalzinho> Acessado em: <10 de junho de 2018>.
4
G1. USP denuncia pesquisador que criou a 'pílula do câncer' por curandeirismo. 30 de março de 2016. Disponível em: <
http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2016/03/usp-denuncia-pesquisador-que-criou-pilula-do-cancer-por-
curandeirismo.html> Acessado em: <10 de junho de 2018>.
8
construídas através de um longo processo histórico. Neste sentido, o papel da história,
através do historiador, ganha um grande significado, pois nossas análises permitem
compreendermos as relações da construção desse processo histórico através da política,
economia e das relações sociais. Com ênfase na História Social, pois através dela
possuímos os mecanismos necessários para encontrarmos a ação de indivíduos, envoltos
de juízo de valor e julgamentos sociais. Através deste árduo trabalho conseguimos dar
voz às pessoas que antes eram vistas como néscias às questões do seu tempo, e por não
possuírem participação política oficial, não significa que não encontravam formas de
reivindicar, dialogar, exercer força ou se proteger das instituições do Estado.
Tal lógica nos permite compreender o processo histórico da questão levantada
anteriormente, pois através da interdisciplinaridade acadêmica conseguimos reconstruir
interpretações sobre o passado, que nos dão indícios e caminhos que levaram à
necessidade de se criminalizar a prática do curandeirismo.
Isto posto, o presente trabalho foi fruto de uma curiosidade inocente sobre a vida
dos curandeiros na Primeira República. No meu primeiro contato com as fontes eu me
senti perdido, pois eram inúmeros os nomes, casos, denúncias e remédios, então,
busquei sistematizar um banco de dados para melhor organizar meus pensamentos e
formular um problema. Pensei então em fazer um levantamento geral dos indivíduos
que atuavam como curandeiro e curandeira (área de atuação, teia de sociabilidade,
profissões complementares, etc.) e assim, fazer análise da socialização destes indivíduos
em meio ao contexto de uma perseguição declarada a eles através de parte da sociedade.
Ao longo deste processo, me deparei com um curandeiro chamado José
Francisco Pinto Breves, ou curandeiro Breves, que fora visto dando tiros em um
cachorro em Niterói. O periódico Gazeta de Notícias de 16 de setembro 1889 solicitou
que medidas fossem tomadas contra este desordeiro.5 Em um primeiro olhar a
informação me pareceu irrelevante, mas ela foi apenas a primeira de muitas outras que
continham o nome desse “tal curandeiro Breves”.
A partir dessa recorrência de informações, decidi direcionar o foco da minha
pesquisa para a figura do curandeiro José Francisco Pinto Breves, popularmente
conhecido como Curandeiro Breves, Juca Breves ou Juca Machinista. Comecei a traçar
uma linha cronológica das fontes e as ações por elas destacadas, ao mesmo tempo que
mergulhava na imensidão de bibliografias sobre o tema. Era inspirador identificar os
argumentos dos autores lidos nas ações de Breves.
5
Gazeta de Notícias. 16 de setembro de 1889, p. 3.
9
Ao começar minha leitura sobre a relação entre médicos e curandeiros,
identifiquei que haviam duas perspectivas historiográficas. De um lado, publicações da
Editora Unicamp que pensavam a relação entre Estado e sociedade, sendo a Junta de
Higiene pensada como mecanismo destas relações6. E do outro, produções da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), que pensavam questões acerca da institucionalização da
medicina7. Entretanto, há um diálogo entre estas instituições, pois alguns autores
produziam para ambas as perspectivas. Neste sentido, meu trabalho busca dialogar com
ambas as vertentes, uma vez que é necessário para a compreensão das variadas relações,
uma visão ampla sobre as variadas visões.
A partir do cruzamento das fontes com a historiografia eu comecei a pensar as
ações deste agente histórico, não como uma mera reação às ações do Estado, mas sim de
forma dialética, na qual ele era capaz de construir artifícios de conversação ou diálogo
como as várias instâncias e instituições do Estado, pois, além das relações atreladas às
questões da consolidação da medicina, Breves é identificado inserido em manifestações
políticas, contratando um médico para proteger-se da polícia e, por fim, tornasse
membro da polícia. A gama de conteúdo a ser aprendido parecia interminável, mas à
medida que eu ia folheando as páginas dos livros e dos periódicos, descobri um
universo de ações muitas das vezes vistas como subversivas, mas que refletem ações
políticas e culturais de áreas sociais antes silenciadas.
Em suma, o trabalho aqui desenvolvido tem como objetivo central analisar e
historicizar o curandeiro José Francisco Pinto Breves como um agente da sociedade
carioca (1872 – 1911), e suas relações com as instituições do Estado, buscando
identificar quais eram os mecanismos utilizados pelo curandeiro em meio à complexa
sociedade na qual ele estava inserido. Noutras palavras, a pergunta central deste
trabalho é: Qual era o retrato das relações sociais no Rio de Janeiro nas primeiras
décadas da república, através da ótica do curandeiro Juca Breves?
Com o objetivo de responder este questionamento, os capítulos foram
sistematizados em ordem cronológica de acontecimentos e com questionamentos
específicos que estão conectados ao questionamento central. No primeiro capítulo,
intitulado: “Ao Drº entregamos mais estes: as relações entre médicos, curandeiros e
jornais no cotidiano carioca.” Busco fazer um panorama acerca das relações entre
6
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2000; PIMENTA, Tânia Salgado. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira
metade do século XIX. In: ______. CHALHOUB, Sidney (Org.). Arte e ofício de cura no Brasil: capítulos de história
social. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
7
EDLER, Flávio Coelho. Ensino e profissão médica na corte de Pedro II. Universidade Federal do ABC- SP, 2014.
10
médicos e curandeiros, e por quais motivos os jornais tomavam partido ou não dessa
disputa. Atrelado a isto, também explicito as disputas políticas que permeavam o Brasil
naquele momento e como as mesmas influenciaram nas disputas de espaço dos médicos
e curandeiros. Para tal, busquei, na bibliografia pertinente ao tema, entender e expor a
construção do curandeirismo no brasil, assim como a origem da instituição médica e sua
transformação ao longo da Primeira República. Além da bibliografia, busco analisar
como fontes, as denúncias dos periódicos, a constituição de 1890 e o código penal de
1891, pois como poderá ser visto, os curandeiros identificaram formas de continuar
exercendo sua profissão mediante o aumento das perseguições.
No segundo capítulo “Pelas rinhas da cidade: os (des) caminhos do curandeiro
Juca Breves.”, restrinjo a análise às ações de Breves, estas ficam divididas em duas
partes: a primeira, que consta nesse capítulo, vai de 1888 até 1892, a segunda, que será
desenvolvida no terceiro capítulo, intitulado “Prendam este curandeiro, pois é meu
concorrente: Juca Breves, um curandeiro na Polícia Militar do Rio de Janeiro)”,
contém a análise dos anos de 1896 até 1911. A divisão foi desenvolvida para melhor
compreendermos as ações de Breves. O critério de divisão se deu, pois, entre os anos de
1888-1892 Breves aparece nas fontes sempre atrelado ao curandeirismo e manifestações
políticas, sendo este o foco da análise do segundo capítulo, compreender as ações de
Breves enquanto um cidadão da sociedade carioca que exercia uma profissão
juridicamente ilegal.
Posterior ao ano de 1892, Breves reaparece nos jornais novamente, mas desta
vez sua imagem não se encontra atrelada apenas ao curandeirismo; agora, Breves ocupa
o cargo de terceiro suplente do distrito de Niterói no exercício da polícia militar, e no
ano seguinte, ele acumula, também, o cargo de subdelegado do mesmo distrito,
permanecendo no cargo até 1907, quando foi expulso pelo exercício ilegal da medicina.
Para compreender o caminho traçado por Breves, faz-se necessário analisar as demais
instituições e esferas sociais do período de 1872-1911, isso justifica a necessidade do
uso de outras fontes para preencher as lacunas encontradas. Entretanto, algumas
questões não foram respondidas, pois, ou as informações se perderam, ou seria
necessário um tempo mais extenso para a conclusão delas. Mesmo não sendo
respondidas, julgo fazer parte do meu dever, enquanto futuro historiador, apresentá-las,
então ao longo do texto será possível identificar as questões e os motivos que
impediram uma resposta e que podem se tornar novos caminhos de pesquisa.
11
Como pode ser notado, a lógica dos capítulos está em se familiarizar com os
personagens e o panorama político social do período: a transição do governo absolutista
para a República. Dentro deste contexto insere-se a análise de parte da vida de Juca
Breves, com o intuito de responder nosso questionamento central: Qual era o retrato das
relações sociais no Rio de Janeiro nas primeiras décadas da república, através da ótica
de um curandeiro?
12
– CAPÍTULO 1 –
AO Drº ENTREGAMOS MAIS ESTES: AS RELAÇÕES
ENTRE MÉDICOS, CURANDEIROS E JORNAIS NO COTIDIANO
CARIOCA.
8
Gazeta de notícias, 22 de julho de 1888, p. 3.
9
Ibdem, p. 3.
10
Periódicos de grande e pequena circulação como: O Theatro, O Século, O Tempo, Diário de Notícias, O Paiz, Gazeta de
Notícias e o Fluminense, são alguns dos exemplos de periódicos que denunciavam as ações de curandeiros. Todos os jornais
referidos foram analisados no período 1872 a 1911. Estão aqui referidos, pois foram neles que haviam relatadas as denúncias
contra o curandeiro Breves.
13
produção literária das décadas anteriores à proclamação da República, foram
importantes na construção do ideário republicano em oposição ao monárquico. Tais
discursos incorporaram linguagens de ciências, liberdade e democracia11.
Anterior ao trabalho de Mello, José Murilo de Carvalho12 argumenta que a não
participação e a não inclusão social no sistema republicano adotado no Brasil, além dos
ideais racistas e excludentes das políticas da Primeira República, acabaram por desiludir
os pensadores republicanos mais radicais, porque basicamente havia a crença de que a
Proclamação da República (1889) traria um avanço dos direitos políticos, civis e
sociais, em contradição ao antigo sistema imperial. O que foi observado, no entanto, foi
a separação entre a sociedade civil e a sociedade política, com uma exclusão
considerável da maioria da população.13
Os intelectuais republicanos discutiam, além das questões de centralização e
descentralização política14, “apagar” os costumes de uma sociedade “atrasada” e
colocar-se nos trilhos da “modernidade europeia”15. Para tal, houve uma mobilização de
instituições do estado afim de implementar uma ordem embasada nesse novo modelo de
civilidade. Com isso, os curandeiros tornam-se alvos deste projeto à medida que Estado
e médicos se aliam.
Retomando a matéria inicial, os curandeiros eram, por um lado, apontados como
“exploradores” e “charlatães”, e, de outro, a população designada por “ignorante” e
“ingênua”. Embora este público fosse definido neste periódico como ignorante e
ingênuo, características geralmente atribuídas às pessoas não letradas, Gabriela dos Reis
Sampaio mostra, em sua dissertação de mestrado, que nas sessões de curandeiros,
espíritas etc. eram encontradas pessoas das diferentes esferas sociais como membros da
elite, governo e operários.16
Nesse ponto, a Gazeta de Notícias, aqui referido, se coloca no papel do bom
cidadão perante a sociedade, uma vez que o autor da notícia se propõe a denunciar estes
embustes que tentam ferir a ordem. Mas, olhando por outra ótica, ao passo que os
jornais se propunham a denunciar os locais que estes curandeiros estavam atuando eles
11
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A modernidade republicana. Rio de Janeiro: Revista Tempo, nº 26, 2008, p. 1-15.
12
Doutor em Ciência Política e Sociologia do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
13
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das
Letras,1987.
14
Sobre o tema ver: BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. In: ______. Revista de
Ciências Sociais. RJ, volume 48, n°2, 2005, p. 231-269.
15
Para Melo, modernidade é o conjunto de teorias e práticas cujo objetivo é desenvolver culturalmente, politicamente,
economicamente uma sociedade tendo como base as civilizações europeias. In: _____. MELLO, Maria Tereza Chaves de. A
modernidade republicana. Rio de Janeiro: Revista Tempo, nº 26, 2008, p. 1-15.
16
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2000, p. 35.
14
também estavam, de forma indireta, divulgando para os interessados o local exato onde
encontrar esses mesmos indivíduos, assim como suas especialidades na arte de cura.
Seguindo pela mesma fonte:
[...] João do tal é o nome do novo curandeiro do fonsceca, que está
aproveitando a ausência de Marius e attrahindo á sua barraca a
freguezia do afamado curandeiro da Agua Azul. Chama-se José
Breves o da Ponte de Pedra e consta-nos que veio ele corrido de
Itaborahy e de Porto das Caixas, por haver exercido n’aquellas
localidades a sua rendosa profissão de curandeiro.
Ao zelo do Sr. Dr. Barreto Aragão entregamos mais estes. ” 17[sic.]
17
Gazeta de notícias, 22 de julho de 1888, p. 3
18
BRASIL. Código penal. Organização M. Ferraz de Campos Salles. RJ: 11 de outubro de 1890. p. 29. Disponível em: <
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049>. Acesso em: 30 mai. 2017.
19
BRASIL. Constituição (1890). Constituição Da República Dos Estados Unidos Do Brasil. Texto constitucional
promulgado em 24 de fevereiro de 1891. Brasília: Centro de Documentação e Informação (CEDI), 2017. 464 p. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.ht >. Acesso em: 30 mai. 2017.
15
O caso mais notório encontrado ao longo da minha pesquisa, que demonstra essa
brecha entre a Constituição e o Código Penal, é um artigo do Correio da Manhã de
1909, cujo caso refere-se ao um indivíduo de nome Francisco Nogueira, um “célebre
curandeiro” atuante na freguesia de Jacarepaguá, que sendo preso pelo exercício ilegal
da medicina, conseguiu recorrer e foi liberado logo em seguida. Por conta do ocorrido,
Marcio F. Lacerda, delegado do caso, lançou uma nota no jornal para explicar que esta
contradição entre Constituição e Código Penal possibilitava que tais indivíduos
acabassem por se livrar da real pena de seus crimes, pois outros como Francisco
Nogueira conseguiam, por meio de advogados, justificar seu exercício ilegal.20
A matéria segue mostrando o posicionamento do delegado, que é claramente
contrário às práticas de cura e julga ser esta (ação de recorrer a condenação) uma
interpretação errônea da Constituição de 1891, uma vez que a medicina necessita de um
diploma para ser exercida.
Outro exemplo é o artigo referente à perseguição ao curandeiro Breves, relatada
pelo jornal A Gazeta de Notícias:
Neste trecho podemos identificar que embora tenha sido preso, Breves pôde
recorrer, pois seu direito de exercer sua “profissão”24 era garantido pelo “pacto
fundamental de 24 de fevereiro”25, termo que faz alusão a data da assinatura da
Constituição de 1891. Outra característica que pode ser percebida é a aparição do termo
“perseguição”26 ao se referir a prisão do curandeiro, dando mais uma vez um caráter de
que há uma necessidade em ser prender este(s) indivíduo(s). Em tom de ironia, o jornal
segue prestando honras ao curandeiro.
20
Correio da manhã, 18 de março de 1909, p. 1
21
“Adj. Que merece honra, oficio, etc. em consideração de certos motivos. Digno habil.”. In: _____. PINTO, Luiz Maria da
Silva. Dicionário da Língua Portugueza. 1832 -MG. p. 150
22
“Médico” In: ______. Ibdem, p. 453.
23
Gazeta de Notícias, 18 de outubro de 1896, p. 6.
24
A prática de curandeirismo não era reconhecida como profissão.
25
Gazeta de Notícias, 18 de outubro de 1896, p. 6.
26
Ibdem, p. 6.
16
Anterior a estas perseguições, Tânia Salgado Pimenta elucida que qualquer
indivíduo que, ao longo do Segundo Reinado, possuísse interesse em praticar o ofício de
cura, necessitava de licenças e cartas emitidas pelo cirurgião-mor do Império. Tais
cartas começaram a ser exigidas a partir de 1808 e prevaleceram até 1828. Segundo ela,
também no ano de 1808 foi extinta a antiga Real Junta de Protomedicato, que possuía a
função de melhor definir as atividades destes profissionais de cura, sendo substituída
pela Fisicatura, que estabeleceu diferentes relações com os diversos praticantes não
diplomados, tendo por objetivo condenar e prender qualquer pessoa que exercesse a arte
de cura sem uma carta ou autorização.27
Entretanto, para garantir tal autorização era necessário um investimento
financeiro e, em alguns casos, certo prestígio social. Com esta fiscalização, durante
1820 no Rio de Janeiro eram registrados neste órgão apenas “207 sangradores, 66
parteiras e 27 curandeiros”28, desta forma podemos perceber que nas primeiras décadas
do século XIX não havia diferenciação entre médicos científicos e curandeiros, todos
poderiam exercer o ofício de cura, uma vez que conseguissem uma autorização.
A partir de 1830 a responsabilidade de tais registros passou para as mãos das
câmaras municipais, que iniciaram um novo processo de burocratização. Com a
promulgação da lei de 183229 que transformava as academias médico-cirúrgicas em
faculdades de medicina, começou-se a conceder título de doutor para médicos e
farmacêuticos, o que iniciou a descaracterização das práticas como sangradores,
boticários e parteiras. Sendo assim, podemos identificar que mesmo com pouco
prestígio, ao longo da primeira metade do século XIX ainda havia uma aceitação dessas
práticas – sendo que a partir de 1850 começam as perseguições apontadas pelos jornais
aos indivíduos que praticavam o ofício de cura sem diploma30.
Então, como surgiu a prática de cura no Brasil? Qual foi o caminho percorrido
até a institucionalização desta perseguição ao curandeirismo? Por quais motivos os
jornais denunciavam tais práticas? Essas são as três perguntas que guiam o presente
27
PIMENTA, Tânia Salgado. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do século XIX. In: ______.
CHALHOUB, Sidney (Org.). Arte e ofício de cura no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2003, p. 307-330.
28
Ibdem, p. 310.
29
A lei de 3 de outubro de 1832 transformou as academias médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e da Bahia em escolas ou
faculdades de medicina. Baseada num projeto elaborado por uma comissão de membros da Sociedade de Medicina do Rio
de Janeiro e seguindo o modelo da Faculdade de Medicina de Paris, a lei de 1832 constituiu-se como um dos principais
demarcadores da institucionalização da medicina acadêmica e de seu campo profissional. A lei conferiu às faculdades a
prerrogativa de conceder os títulos de doutor em medicina, farmacêutico e parteira, bem como validar os obtidos em escolas
estrangeiras. In: ______. EDLER, Flávio Coelho. Ensino e profissão médica na corte de Pedro II. Universidade Federal
do ABC- SP, 2014, p. 10.
30
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2000, p. 53.
17
capítulo e que, através da análise das fontes e embasado na historiografia referente ao
tema, começaremos a responder a seguir.
Isto posto, já é possível identificar que houve uma perseguição aos curandeiros
mesmo antes da institucionalização da criminalização desta prática no Código Penal de
1890, e que mesmo com tal criminalização, os curandeiros conheciam e articulavam
com as “brechas” encontradas na Constituição de 1891. Outro aspecto abordado foi o
papel do jornal em torno desta relação, pois ao ponto que se propunham denunciar os
curandeiros, eles também proporcionavam aos seus ávidos leitores as suas localizações.
31
RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Jesuítas e Pajés nas missões do novo mundo. In: ______ CHALHOUB, Sidney
(Org.). Arte e ofício de cura no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. p. 231- 271;
VIOTTI, Ana Carolina de Carvalho. As práticas e os saberes médicos no Brasil colonial (1677-1808). SP, Franca, 2012,
p. 10- 25.
18
surtos, Resende deixa explícito que os indígenas ainda tinham que lutar contra a fome
atrelada à disseminação de doenças e também à escravidão imposta a eles pelos
portugueses. Concordando com este argumento, Viotti complementa dizendo que os
jesuítas ainda teriam um árduo trabalho para se estabelecer como referência nas
comunidades indígenas e também combater os rituais “mágicos” que, aparentemente, se
mostravam bem eficientes entre os grupos nativos.
Em meio ao quadro de epidemia e caos que assolava o século XVI na colônia
portuguesa, os padres dedicavam-se exclusivamente aos enfermos e moribundos,
contudo suas ações evangelizadoras e de cura encontrariam grande resistência nas
aldeias por conta do papel e da figura dos pajés, que norteavam a vida social, cultural e
religiosa dos indígenas. Chaves de Resende aponta que a figura dos pajés na visão dos
jesuítas era relacionada a aspectos negativos, associados a porta voz dos demônios e
inimigo dos servos de Deus, ou seja, para os padres os pajés eram a personificação viva
do diabo, a marca do pecado, e desta forma, os mesmos deveriam ser eliminados,
prevalecendo assim os servos do cristianismo.32
Assim, os jesuítas começaram a desenvolver táticas de confronto, a fim de
acabar com estes inimigos da fé católica. Como primeiro passo, os padres buscaram
uma estratégia que consistia em persuadir os pajés, uma vez que eles se apresentavam
como líderes, a conquista da confiança dos mesmos abriria caminho para que os padres
adentrassem nas comunidades mais facilmente.33
Quando esta prática não se mostrava eficaz, Resende expõe que os padres
recorriam ao exílio dos pajés, prática empregada duramente quando estes se mostravam
resistentes ao processo de catequização. Mas, apesar desses esforços desenvolvidos, tais
medidas não se tornaram efetivamente eficazes e por isso se complementavam com uma
arma comumente encontrada no processo de catequese: a persuasão por meio de
discursos. Os discursos proferidos pelos jesuítas muitas vezes buscavam amedrontar os
indígenas e assim mostrar que o não cumprimento da vontade divina poderia trazer
cólera para seu povo, desta forma estes discursos apocalípticos se tornaram recorrentes
dentre as ordens de catequese. Contudo, a onda de pânico causada pelos discursos de
terror fez os jesuítas adotarem uma postura mediadora nas aldeias que estavam em
32
Ibdem, p. 253
33
Ibdem, p. 255
19
transição para o cristianismo, sendo assim eles “tiveram que se amoldar ao novo
contexto”34.
Nesse sentido, a autora indica que os padres tiveram também que assumir certas
características e atribuições dos costumes nativos, dentre eles alguns rituais de cura
adotados e adaptados por eles para a utilização destes dentro das igrejas. Desta forma,
gradativamente, os jesuítas começaram não apenas a assumir atribuições que antes eram
exclusivamente executadas pelos pajés, como também a adotar práticas de cura das
aldeias que se mostraram eficazes. Sobre isso, Resende nos mostra que:
34
Ibdem, p. 255
35
Ibdem, p. 258
36
“Recentemente, o termo “acomodação” foi ressuscitado, notadamente por historiadores da religião que criticam os
conceitos de “aculturação” (porque implica modificação completa) e “sincretismo” (porque ele sugere uma mistura
deliberada). No entanto, o termo está alterando seu significado de modo a incluir os dois parceiros do encontro, o
“convertido” assim como os missionários, estão ficando cada vez mais convencidos de que o resultado não foi tanto
conversão quanto uma forma de hibridização. [...] Termos alternativos a “acomodação” são “diálogo” e “negociação”,
ambos enfatizando uma visão de baixo para cima e as iniciativas dos convertidos assim como as dos missionários.” BURKE,
Peter. Variedades de Terminologias. In: ______ Hibridismo Cultural. São Leopoldo, RS: Editora UNISINOS, 2006, p. 47.
20
este conceito refere-se ao caso de uma cultura utilizar-se da outra para obter seus fins,
de modo a não ser completamente mudada pela cultura em que está se acomodando. No
caso abordado aqui, vimos que os jesuítas se incluem nos costumes dos nativos, a fim
de catequizar os mesmos. E isso nos mostra que um dos primeiros métodos de cura a
serem utilizados no Brasil foram os dos nativos e dos jesuítas que, por consequência,
acabaram “construindo” um modo próprio de cura.
Isaac Facchini Badinelli colabora com a discussão expondo o argumento de que
não foram apenas os jesuítas que praticaram a arte da cura no início da colonização,
dentre os quais a necessidade de se manter vivo trouxe junto com os colonizadores os
primeiros profissionais como médicos cirurgiões, barbeiros e boticários que chegaram
ainda na expedição de Martin Afonso de Sousa, em 1530, e contribuíram para o
processo de colonização e de reconhecimento da flora e fauna brasileira.37
Já nas primeiras décadas da colonização, chegam ao Brasil as primeiras levas de
escravizados africanos que, juntamente com os jesuítas e médicos portugueses,
contribuíram para a construção de uma medicina popular a modo brasileiro. Para
Badinelli, os métodos de escravos africanos foram muito empregados ao longo do
século XVIII. Os mesmos assumiam posições de parteiros e curandeiros dos seus
senhores e às vezes conduziam essas práticas para além das terras de seus donos.
Contudo, mesmo possuindo conhecimento diferenciado e eficácia de cura, o status de
escravo fazia com que suas ações fossem por diversas vezes reprimidas pela sociedade.
Durante os três séculos de colonização e até mesmo após a construção da escola de
medicina, a sociedade brasileira buscou no curandeirismo, dito como alternativo pelo
discurso científico, uma forma de se precaver ou se livrar dos males que os perseguiam.
O autor nos mostra que até mesmo os europeus buscavam cura nos saberes indígenas e
nos saberes africanos, mesmo tais conhecimentos estando atrelados ao misticismo.
Em relação às questões semânticas, julgo ser necessário definir dois termos que
são encontrados constantemente nos periódicos e que serão utilizados nesse trabalho.
Para tal, foram analisados dois dicionários de língua portuguesa, um do século XVIII e
outro do século XIX, com o objetivo de identificar possíveis mudanças na etimologia
dos termos.
37
BADINELLI, Isaac Facchini. Saúde, Doença no Brasil Colonial: Práticas de cura e o uso de plantas medicinais no
Tratado Erário Mineral de Luís Gomes Ferreira (1735). Florianópolis, SC. 2014, p. 15.
21
O primeiro termo é curandeiro, que não aparece no dicionário do século XVIII,
mas que consta no do século XIX como: “o que se mette a curar, mezinheiro38”39, ou
seja, curandeiro é qualquer indivíduo que se propõem à arte da cura, independente de
origem, sexo, cor, etc. Gabriela Sampaio explicita que eram consideradas como práticas
curandeiras as ações de espíritas, parteiras, sangradores, barbeiros africanos e quaisquer
indivíduos que se propunham ao ofício de cura.40 Isto significa que o termo era uma
forma genérica para catalogar os indivíduos envolvidos com práticas de cura não
diplomada.
Já o segundo termo é charlatão, e para ele foram encontradas duas definições
nos dicionários. Segundo o Dicionário de Língua Portugueza do século XVIII,
charlatão é definido como “fallado, imporftor [impostor] que fe[se] vende por erudito, e
inculca drogas de muito preftimo[préstimo], e fegredos [segredos] de medicina, e
artes.”41 [sic.]; já no dicionário do século XIX, encontramos por charlatão: “falador.
Que quer incelerar [imputar] erudição, que inculca drogas, e segredos de medicina”42. A
historiadora também explicita que esse termo era utilizado por médicos que propunham
se diferenciar das várias práticas de cura de curandeiros, espíritas, boticários,
homeopatas e médicos estrangeiros.43 Ou seja, para os médicos e alguns periódicos,
charlatanismo e curandeirismo eram utilizados como sinônimos.
O que nos interessa na análise, primeiramente, é que o termo curandeiro só
aparece pela primeira vez no século XIX. Sendo assim, podemos supor que o termo foi
incorporado posteriormente no léxico português, pois o primeiro relato referente ao
termo aparece nos periódicos – disponibilizados na Hemeroteca Digital – pela primeira
vez no Jornal de Coimbra em 181144 e o dicionário é datado de 1832. Todavia, isso não
significa que o mesmo não era utilizado pelos colonos e colonizadores portugueses. Em
contrapartida o termo charlatão, foi encontrado nos dois dicionários com o mesmo
sentido: indivíduo ligado aos segredos da medicina e de suas drogas. Outro aspecto é o
de que o charlatão, em ambas as definições, é posto como alguém imbuído de
determinada erudição, o que, possivelmente poderia justificar o “como” esses
38
Mezinheiro: “Que se mette a curar”. In: ______. PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Portugueza. 1832 -
MG, p. 717.
39
Ibdem, p. 309.
40
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2000, p. 26.
41
BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antônio de Moraes. Dicionário da Lingua Portugueza. 1785 -RJ, p. 263.
42
PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Portugueza. 1832 -MG, p. 230.
43
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2000, p. 26.
44
O termo aparece em uma matéria referente a ações de índios curandeiros no EUA e como as ações dos mesmos tem curado
diversas pessoas. Jornal de Coimbra, RJ 6 de nov. 1811, p. 214-218.
22
indivíduos conseguem “enganar” a população ignorante. O emprego pejorativo do
termo demonstra que havia uma intenção de catalogar ou classificar indivíduos que
exerciam práticas distintas com objetivos comuns de cura como elementos ruins, ou
negativos, afim de se manter a ordem física e social da cidade.45 Ou seja, Assim, fica
claro que a utilização de determinados termos nos possibilita identificar a “intenção”
por de trás da pronunciação; no nosso caso, definir os curandeiros como “charlatões”,
denuncia o objetivo de montar uma imagem negativa e repulsiva desses indivíduos
perante a sociedade.46
Até este ponto, podemos concluir que as práticas de cura, desde a colonização do
Brasil, eram exercidas pelos mais variados indivíduos da sociedade, tendo contribuição
de práticas indígenas, europeias e africanas. Por fim, identificamos que o uso de
determinados termos busca legitimar os argumentos da imprensa e do Estado contra
estes curandeiros, a partir da ação dos higienistas, o que foi reforçado com ideais
republicanos de civilização.
Uma característica percebida nas denúncias de curandeiros identificadas nos
periódicos47 ao longo da análise, é a de que os locais nos quais eles atuavam eram
afastados do centro do Rio de Janeiro, como demonstram as duas fontes aqui já
citadas48. Nossa hipótese é a de que há uma maior concentração dos curandeiros nessas
regiões por possuírem uma menor fiscalização pública, uma vez que eram afastadas do
centro do Rio.
45
Embora estejamos usando os termos totalizante “curandeiros”, estamos nos referindo a um grupo diversificado em suas
práticas de cura, como já fora apontado anteriormente. Tal conclusão pode ser tomada, pois segundo Michel Foucault, a
linguagem poder ser utilizada como um mecanismo de enunciação da ordem. Segundo ele, a ordem é “uma lei interior”
enquanto a linguagem é definida como sua enunciação. In:______ FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São
Paulo: Martins Fontes, 2002, p. IX.
46
Ibdem, p. 1- 20; neste ponto, algumas questões surgiram sobre o perfil destes curandeiros: a que parcela da sociedade eles
pertenciam? Em sua maioria eram homens ou mulheres? Quais eram as suas áreas de atuação? Para respondê-las é
necessário um trabalho a mais longo prazo, para que desta forma possa ser mapeado cada nome, localidade e suas teias de
sociabilidade. Um trabalho que ficará para posteridade.
47
Periódicos de grande e pequena circulação como: O Theatro, O Século, O Tempo, Diário de Notícias, O Paiz, Gazeta de
Notícias e o Fluminense, são alguns dos exemplos de jornais que denunciavam as ações de curandeiros. Todos os jornais
referidos foram analisados no período 1872 a 1911, foram encontradas as denúncias ao curandeiro Breves e alguns outros
casos semelhantes.
48
Ver notas 2, 16 e 19.
49
PIMENTA, Tânia Salgado. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do século XIX. In: ______
CHALHOUB, Sidney (Org.). Arte e ofício de cura no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2003, p. 307-330.
23
Os anos entre 1834 e 1840 tiveram uma maior fiscalização sobre o ofício de
cura, as Câmaras, pressionadas pelos médicos, buscaram cobrar as licenças e pontuar os
praticantes de cura que trabalhavam por quarteirão na sociedade fluminense. Isso fez
com que muitas pessoas fossem autuadas por praticar cura sem autorização. Porém,
mesmo com o aumento da perseguição, os curandeiros não deixaram de exercer suas
práticas, uma vez que se equiparados aos médicos, eles cobravam bem menos por uma
consulta ou remédio. Estas perseguições e burocracias são responsáveis pela polarização
da prática médica em oficial e popular.50
Essa pressão dos médicos sobre as Câmaras é resultado da corrida pela
consolidação da medicina enquanto uma instituição sólida, e também da corrida pela
sua consolidação enquanto única prática de cura. Ou seja, a medicina ainda buscava se
estruturar, tanto interna quanto externamente. Sendo assim, os curandeiros apresentam-
se como obstáculos para concluir tais objetivos. Seguindo nessa lógica, é necessário
definir que não devemos ler “os médicos” como uma classe homogênea, pois haviam
diversas dissensões dentro da mesma.
Sobre a pluralidade dentro das instituições médicas, Flávio Coelho Edler
apresenta em seu trabalho Ensino e profissão médica na corte de Pedro II51 uma
minuciosa construção da medicina desde sua mudança de estatuto em 1832 até 1884.
Segundo ele, desde meados do século XIX, graças ao clima de estabilidade política que
pairava sobre a capital do Império, com o crescimento econômico baseado no café e a
construção das malhas ferroviárias, o Brasil experimentava o “progresso” nos trópicos,
e para o autor isso possibilitou uma restruturação interna das faculdades de medicina no
país. Edler expõe que a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro – FMRJ, fundada em
1808 – buscava fazer uma reformulação no seu ensino e o responsável por tal proposta
foi o diretor Azevedo Americano, que buscou nos modelos do sistema médico francês
uma roupagem nova para métodos práticos e burocráticos da FMRJ.52
Incluso nesse contexto, Edler e Sampaio também nos apresentam a tese de que
não havia um consenso entre os próprios médicos em relação ao projeto de formação
médica na Corte, uma vez que parte do projeto de Americano não obtém continuidade e
as novas reformulações encontram barreiras.
50
Ibdem, p. 310-329.
51
EDLER, Flávio Coelho. Ensino e profissão médica na corte de Pedro II, 2014. Dissertação (Mestrado em História). São
Paulo: Universidade Federal do ABC-SP.
52
Ibdem, p. 15-32.
24
Quanto a isto, cabe a abordagem de Pierre Bourdieu, que define o poder como
um sistema simbólico – aqui representando a medicina institucionalizada. Tais sistemas
desempenham um papel estruturante, isto é, de conhecimento do mundo, pois definem
modelos de compreensão de mundo, na medida em que são também estruturados
internamente, isso significa que possuem uma lógica interna, uma organicidade
específica. Ou seja, podemos compreender que enquanto a medicina buscava se
consolidar como última prática de cura, também buscava unificar os diferentes métodos
de cura internos.53
Este argumento sobre a não estruturação interna da medicina é uma crítica aos
trabalhos de Madel Luz54, Roberto Machado55, Katia Muricy56 e Jurandir Costa57. Estes
autores ao estudarem as relações entre o Estado e a Instituição Médica, apontam a
medicina como social desde sua concepção, ou seja, para eles a medicina surge
enquanto um mecanismo de ação do Estado na implementação da uma nova ordem. Ao
fazerem isso, estes autores acabam por analisar a instituição médica como homogênea
desde sua concepção, isto é, eles apresentam uma medicina única e consolidada desde a
mudança de estatuto em 1832.
A exemplo destas divergências internas, o periódico União Médica da cidade do
Rio de Janeiro no dia 3 de março de 1890 trazia um artigo escrito pelo doutor Joaquim
Cargueira58, no qual ele defendia o livre exercício da medicina pelos curandeiros:
53
BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: ________. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001, p. 7-16.
54
LUZ, M.T. Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições de saúde (1850 – 1930). Rio de Janeiro: Graal,
1982.
55
MACHADO, R. Danação da Norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
56
MRICY, K. A razão cética: Machado de Assis e as questões do seu tempo. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
57
COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
58
Segundo o periódico, o Dr. Joaquim Bargueira era “cirurgião do nosso exército, publicou a 23 de fevereiro passado um
protesto contra a representação que vários médicos fizeram ao Governo pedindo a garantia do monopólio da arte de curar
para os diplomados. O distincto médico pede ao governo da República a revogação das leis que se opõem ao livre exercício
da medicina.”. União Médica. RJ, 1890, p. 81.
25
medicina homeopática. Perante a lei errônea em que se estribam, o
homeopata é um curandeiro.
[...] tenho a dizer: 1º, Nem todo curandeiro é explorador, porque
curandeiros há que curar por amôr á arte de curar, além de que a
maioria d’elles usa de bôa fé. 2º Por que motivos não se poderia
responsabilisal-o? Envenene ele algum individuo, e a polícia deita-lhe
a mão, como o fará a um médico que matar um enfermeiro ou
aleijado, por exemplo, errando por incúria ou por ignorância na
applicação de um aparelho ou na pratica de uma operação.59[grifo da
fonte]
59
Ibdem, p. 81-88.
60
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2000, p. 67-105.
61
Segundo Sampaio, tornou-se Inspetoria – Geral de Higiene, em 1886. SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da
cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2000, p.38.
26
relação aos combates de doenças epidêmicas, com isso, atrelou-se ao projeto de
modernização62. Isto posto, ficaria sob responsabilidade dos médicos higienistas a
imposição de novos valores, formas de organização e o que fosse necessário para a
medicalização da sociedade.
Como argumenta Sampaio, o objetivo da instituição foi o de organizar as
questões de saúde pública – por conta da onda de epidemias –, aliando-se ao
aperfeiçoamento da modernidade. Desta forma, a Junta de Higiene passou a fiscalizar os
diplomas – dificultando assim a ação de médicos estrangeiros no Rio de Janeiro –,
também concedia aval para construção de farmácias e boticários, fiscalizava cortiços e
outras moradias populares, além de prender os curandeiros. Tudo isso, possuindo como
aliado a polícia.63
Isso mostra que a Junta não buscava só resolver as questões de saúde física, mas
também as questões de “saúde social”, ou seja, segundo a concepção de diversos
governantes, as questões de saúde pública estavam na erradicação de costumes
populares que impediam a instauração da lógica republicana. Desta forma, para que
houvesse a repulsa acerca dos curandeiros, seria necessário que a população abrisse mão
de determinadas práticas culturais. Pois assim, poderiam concluir seu objetivo de serem,
os médicos, os únicos a operarem a arte de cura. Segundo Sampaio:
62
“Modernizar a cidade significava não apenas realizar reformas urbanas, mas também medicalizar toda a sociedade, ou seja,
intervir nos hábitos e costumes das pessoas, ditando novas formas de relações familiares e novo padrões de
comportamento.” Ibdem, 2000, p. 43.
63
Para saber mais sobre as ações da Junta de Higiene, ver: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na
Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
64
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2000, p. 41.
27
teorias raciais europeias no contexto histórico brasileiro, que eram bastante singulares.
Para ela, a ciência entrou no Brasil como uma moda e, posteriormente, toma uma forma
prática de produção. As ideias científicas, portanto, adentraram o território com o
objetivo de higienizar e sanear as cidades, a fim de diferenciar o rico do pobre, eliminar
doenças e até mesmo ditar regras de costumes pessoais.65
Somado a isso, foi em meados do mesmo século que a ordem médica ganhou
força através da Junta de Higiene, e então essas teorias firmaram-se com mais força –
pois é o momento em que viajantes europeus descrevem o Brasil como um território de
degenerados, de confusão de raças que levava ao atraso civilizacional. Essa visão
permeou não só a Escola de Cirurgia da Bahia, mas também a FMRJ, que começou a
construir um discurso anti-miscigenação das raças, dado que a miscigenação era a
causadora da degeneração de doenças que poderiam assolar a sociedade brasileira.
Assim, Schwarcz apresenta um Brasil que buscava se consolidar como um progresso de
parâmetros europeus, pautado na teoria de purificação e clareamento da raça.
Sendo assim, podemos concluir que a perseguição do Estado aos curandeiros
estava atrelada aos interesses das instituições médicas, pois estas buscavam se
consolidar como as únicas habilitadas na arte de cura. Com este objetivo em mente, a
classe médica atrelou-se ao Estado e se instituiu através da Junta de Higiene,
possibilitando suas ações e contribuindo para a implantação da ordem Republicana aos
moldes europeus.
Por quais motivos os jornais denunciavam tais práticas de curandeiros?
Até aqui, vimos o percurso desenvolvido para a criminalização do curandeirismo
e quais foram as relações estabelecidas entre médicos e estados. Junto a isto, ao longo
do capítulo, vimos que a Junta de Higiene e a Polícia Militar poderiam contar com a
ajuda de determinados jornais no combate contra o charlatanismo. Neste ponto da
análise buscamos avaliar o jornal enquanto agente auxiliador e propagador destas
perseguições; como é possível constatar nas fontes, a exemplo da citada a seguir:
65
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Espetáculos das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 30-105.
66
Gazeta de Notícias. O curandeiro Juca Machinista. 11 de novembro de 1888, p. 6.
28
Cenas como estas são relatadas repetidas vezes e em diversos jornais da cidade,
só em relação ao Breves, seu nome apareceu 8 vezes relacionado à prisão entre os anos
de 1888 e 189067. Isso demonstra que este curandeiro via na arte de cura uma fonte
lucrativa, ou a necessidade de sobrevivência o colocara neste caminho, e que também
conhecia a sociedade em que estava inserido e sabia como articular com determinadas
instituições do Estado, pois como será analisado no capítulo seguinte, Breves inclusive
já contratou um médico para assinar as receitas por ele emitidas, pois, desta forma, ele
[Breves] não poderia ser preso pelo exercício ilegal da medicina, uma vez que as
receitas vinham assinadas por um médico diplomado.
Para podermos compreender os motivos que levam determinados jornais a
executarem tais denúncias, é necessário nos aprofundarmos neles, contudo não
pretendo, aqui, analisar todas as instituições jornalísticas da cidade que condenavam as
práticas curandeiras. Assim, para podermos exemplificar, optamos por selecionar um
jornal específico para contribuir com nossa análise, A Gazeta de Notícias. A escolha
deste periódico se deu por conta da grande quantidade de matérias referentes à
criminalização, pois, se comparada aos outros jornais, já referenciados anteriormente, o
Gazeta possui uma quantidade consideravelmente maior – veja na tabela a seguir:
Tabela 1: NÚMERO DE OCORRÊNCIA DE DENÚNCIAS DE CHARLATANISMO.68
1850-1859 -* - - - - - -
1860-1869 - 0 - - 0 - 0
1870-1879 45 9 - - 0 - 1
1880-1889 115 25 0 - 44 0 14
1890-1899 40 51 13 - 38 0 6
1900-1909 116 - - - 43 21 25
1910-1919 111 - - 1 102 0 15
Total 427 85 13 1 227 21 61
* Os anos que se encontram com um traço (-) referem-se ao fato de que neste período não haviam
publicações do referido jornal.
67
Tais relatos foram encontrados nos seguintes periódicos: O Theatro, O Século, O Tempo, Diário de Notícias, O Paiz,
Gazeta de Notícias e o Fluminense.
68
Fonte: HEMEROTECA DIGITAL. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 01 jun.
2017.
29
A tabela foi dividida estruturalmente em oito colunas, sendo uma delas referente
aos anos das ocorrências e as outras sete são os periódicos selecionados para a análise.
A coluna dos anos foi dividida em sete subtópicos com variação de dez anos para cada
um, totalizando 69 anos de análise (1850-1919). Os periódicos que compõem a tabela
foram selecionados porque apresentam relatos referentes ao curandeiro Breves. Uma
vez selecionados esses periódicos, realizei um levantamento da quantidade de vezes em
que os termos charlatão e charlatanismo aparecem atrelados às práticas de cura.
Segundo esta tabela, podemos identificar que as denúncias sobre as práticas dos
curandeiros, assim como a associação da imagem deles ao charlatanismo, se deu a partir
da segunda metade do século XIX e, desta forma, foi crescendo até as primeiras décadas
do século XX. Em uma chave somatória, podemos identificar que embora surja após os
anos de 1870, a Gazeta de Notícias69 se mostra um aliado destemido na cassação a estes
charlatães. Desde a sua fundação até os anos de 1919 foram totalizadas 427 ocorrências
do uso destes termos e de referências a curandeiros. Enquanto o jornal O Fluminense70,
que surgiu em um período próximo, apresenta um total de 61 ocorrências.
Por este motivo, optamos por nos aprofundar mais na Gazeta de Notícias, com o
objetivo de entendermos os motivos que o tornou um aliado da Junta de Higiene e da
polícia nesta cruzada.
O Gazeta de Notícias foi fundado em 1874 por Ferreira de Araújo. Desde a
concepção, este periódico apresentava uma certa diferenciação dos demais, segundo
Nelson Werneck Sodré, o Gazeta era considerado “barato, popular, vendido a quarenta
réis o exemplar”71, além de ser vendido em série, enquanto seus concorrentes custavam
mais caro e eram vendidos por assinatura. Tal inovação possibilitava que um maior
número de indivíduos tivesse interesse em comprá-lo, permitindo que no ano de 1888,
apenas oito anos depois de sua primeira aparição, ele se tornasse um dos três mais
importantes jornais da cidade do Rio de Janeiro.72
Primeiramente atrelado aos interesses abolicionistas, a Gazeta foi mostrando-se
aos poucos um simpatizante das ideias republicanas, emitindo notas que denunciavam
as ações do Império, ou seja, ele expunha sua opinião enquanto jornal.73
69
A Gazeta de Notícias foi fundado em 2 de agosto de 1875.
70
O Fluminense foi fundado em 8 de maio de 1878.
71
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p.241.
72
Ibdem, p. 260.
73
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira (Momentos Decisivos). 8 ed. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro:
Editora Itatiaia, 1997, p. 34.
30
“Escandalo com Ostentação”
Ao diretor da assistência, severo como quer ser, pedimos a sua atenção
para o escândalo cometido nos olhos do publico, pelo curandeiro
Breves, que, zombando do poder das autoridades, ainda continua; não
queira ser agradável ao Breves faça justiça, se há lei que puna quem
delinque, é o que queremos. Não vê que ele exerce cumulativamente
duas profissões, que o regulamento prevê a punição para elas. 74
74
Gazeta de Notícias. Escandalo com ostentação. 6 de maio de 1892, p. 2.
75
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Trad. De Carlos Nelson Coutinho. 3 eds. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 188.
31
Contudo, embora houvesse os periódicos que denunciavam as práticas de
curandeiros, encontramos também os que se mostravam favoráveis à causa deles, como
o aqui já citado artigo do Dr. Joaquim Bargueira, do periódico União Médica76. Além
deste, destaco um artigo escrito no O Combate em defesa do curandeiro Juca Breves.
Dizem que há neste paiz uma cousa que se chama constituição. Cousa
commoda, cousa feita para ser manejada facilmente por quem
encherga um quarto de palmo adiante do nariz. Ahi esta Madureirinha,
chefe de polícia do feudo do sr. Paulino, que não encherga um quarto
de um palmo, mas um quarto de legoa adiante do nariz corado, e que
sabe como ninguém haver-se com essa cousa. Imaginem haver-se em
Nitheroy um homem chamado Juca Breves, que era curandeiro, como
Madureirinha é chefe de polícia, como o Paulino é politico, como d.
Carlos é almirante, como eu sou chronista, como o dr. A. é advogado,
como dr. B. é medico, como o dr. C. é engenheiro.
O homem era curandeiro: era essa sua profissão. E o artigo 72. §24º da
constituição – dessa tal cousa que o Floriano, o Custodinho e o
Madureirinha nunca viram mais gorda nem mais magra – garante aos
cidadãos plena liberdade de profissão. Mas que faz Madureirinha?
Manda um delegado, chamado Hermenegildo, que é delegado como o
Juca Breves é curandeiro, prender violentamente o curandeiro.
Hermenegildo obedece, prende Juca Breves, e Madureirinha, ainda
por cima, em officio, elogia e louva Hermenegildo.
Oras, eu sempre queria saber si é ou não é profissão – ser curandeiro,
como profissão é ser medico, engenheiro, Madureirinha, advogado,
Hermenegildo, dentista, d. Carlos, sapateiro, o diabo! E se
Madureirinha, como é de esperar, confessa que realmente a profissão
de curandeiro é profissão como qualquer outra [...].77 [sic.]
76
Ver notas 50 e 51.
77
O combate, 19 de fevereiro de 1892.
78
BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 07-16.
32
assim como o Gazeta de Notícias, o Combate foi um periódico republicano79,
entretanto, eles divergiam quando o assunto era o curandeirismo80.
Entender o campo dos periódicos como heterogêneo nos possibilita identificar as
visões sobre as ações de José Pinto Breves, ou Juca Breves, e assim, nos permite
acompanhar estes indivíduos através das suas redes de sociabilidade e relação com
agentes e esferas administrativas do Estado. Outros personagens que se encontram no
meio destas relações são os leitores dos periódicos e pacientes, pois ao passo que eles
identificam esses posicionamentos, eles buscavam dialogar com os acontecimentos, pois
não estavam a parte da sociedade81. Contudo, não é o foco deste trabalho analisar as
relações de sociabilidade entre médicos-curandeiros-paciente-periódicos, mas sim
identificar através da figura de José Francisco Pinto Breves, as suas relações nos
diversos níveis da sociedade carioca.
Sendo assim, este trabalho se inspira nos trabalhos de Gabriela Sampaio, Tânia
Pimenta e outros historiadores82 que entendem existir uma teia de relação de poder entre
as instituições e a sociedade, na qual esses diferentes indivíduos exercem ações e sofrem
reações entre si.83
Portanto, o que se buscou com este capítulo, foi situar o leitor dentro desta
complexa relação em que se encontram nosso personagem, Juca Breves, ou seja,
buscamos apresentar que em meio aos conceitos universais de “médicos”, “curandeiros”
e “jornais/periódicos” havia uma heterogeneidade tanto dentro de sua lógica interna
quanto na sua lógica externa. Assim como apresentar uma trajetória das práticas de cura
no Brasil ao longo do período colônia.
Junto a isto, mostramos os desdobramentos da perseguição ao curandeirismo na
sociedade carioca. Como já apresentado, esta perseguição deu-se através da relação
79
Fundado por Lopes Trovão e Silvio Romero em 12 de abril de 1880, e para o qual colaboraram muitos opositores da
monarquia. O objetivo primacial da publicação era lutar pela instalação do regime republicano.
80
VENEU, Marcos Guedes. Enferrujando o sonho: partidos e eleições no Rio de Janeiro, 1889-1895. (FGV) Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 30, n. 1, p. 45-72. Disponível em:
<http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/o-z/FCRB_MarcosGuedesVeneu_Enferrujando_sonho.pdf> Acesso
em:<04 jun. 2017>.
81
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2000, p. 77-79.
82
FERREIRA, Luiz Otávio. Ciência Médica e medicina popular nas páginas dos periódicos científicos (1830 – 1840). In:
______ CHALHOUB, Sidney (Org.). Arte e ofício de cura no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2003, p. 97.
PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina. São Paulo: Editora Record, 2004; RESENDE, Maria
Leônia Chaves de. Jesuítas e Pajés nas missões do novo mundo. In: ______ CHALHOUB, Sidney (Org.). Arte e ofício de
cura no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
83
Foucault exprime que o poder não deve ser pensado de forma absoluta e unilateral. Para ele o poder é exercido através de
uma teia, uma malha na qual os indivíduos exercem e sofrem ações do poder. O que ele nos apresenta é que há relação de
poder nos mais diversos âmbitos da sociedade, como entre curandeiros e médicos e entre relações sociais das mais amplas.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1979.
33
entre médicos e Estado, pois os médicos buscavam se consolidar como uma medicina
oficial, e o estado buscava nas ciências médicas o “aval” que respaldasse suas medidas
republicanas e definidoras de progresso. E, como também já foi exposto, dentro desta
construção do progresso e âmbito de perseguição, encontramos exemplos de
curandeiros que conseguiram se articular contra o Código Penal (1890) apoiando-se na
Constituição de 1891 para continuar exercendo suas práticas.
Expus também que muitas denúncias contra curandeiros partiam de periódicos
que se posicionavam como comprometidos com civilidade e ordem da sociedade, e por
isso buscavam conscientizar a população sobre os perigos de consultar os “charlatães” –
e que alguns posicionavam-se defendendo as práticas destes “profissionais” de cura. E
por fim, apresentei a visão de Pierre Bourdieu que o status de ciência pressupõe-se um
discurso de verdade e desta forma possui o poder de silenciar outros discursos, e usar da
coerção com o objetivo de defender seus ideais. Junto a isto, vimos que a medicina dava
respaldo para o exercício de poder das esferas públicas, pois seu discurso de ciência era
posto acima de qualquer tipo de interesse particular.
Isto posto, José Francisco Pinto Breves torna-se uma fonte relevante, porque nos
permite enxergar essas teias de relação de poder, pois como já referido na introdução
deste trabalho, Breves, além de curandeiro, foi identificado como um dos organizadores
de uma manifestação em 1892 contra o governo de Floriano Peixoto – que provocou a
promulgação de estado de sítio por 72 horas na capital do país – e em 1896, apenas
quatro anos após este ocorrido, ele se tornou Terceiro Suplente da Polícia Militar em um
distrito próximo à freguesia de Niterói. Além disto, Breves é relatado por diversas vezes
como envolvido em ações imorais para os parâmetros daquela sociedade, como um
assalto realizado na cidade do Rio de Janeiro e até ações de coerção contra eleitores em
eleições na cidade de Niterói e adjacências. Estes e outros aspectos relacionados a
Breves serão desenvolvidos nos capítulos seguintes.
34
– CAPÍTULO 2 –
84
Informações encontradas nos seguintes periódicos: Gazeta de Notícias. Exercicio ilegal de medicina. 22 de julho de 1888,
p. 3; O tempo, 16 de fevereiro de 1892, p. 5; Jornal do Comércio. Magé, 14 de maio de 1872, p. 2.
35
Este “célebre”85 curandeiro aparece em uma considerável quantidade de matérias
dentro dos periódicos da cidade do Rio, nestas, podemos identificar as peculiaridades e
contradições que Breves carrega. Tais particularidades foram o que nos permitiu
problematizar e construir o trabalho aqui escrito. Sendo assim, para entendermos os
resultados desta pesquisa é necessário conhecer as ações de Juca Breves, e destas ações
remontar sua teia de sociabilidade.
A primeira aparição de Breves nas notícias, com base nos periódicos disponíveis
na Hemeroteca Digital86, aconteceu no Jornal do Comércio em 1872; na ocasião, o
advogado Francisco Antonio da Rocha lançou uma nota aberta sobre as falsas acusações
que seu cliente, José Francisco Pinto Breves, estava sofrendo por parte dos jornais
locais, que o acusavam de feitiçaria e curandeirismo. Na nota, o advogado aponta que as
reais autoridades deveriam melhor aplicar a lei e averiguar a veracidade das
acusações.87 A partir desta nota, podemos retomar o argumento de que, os redatores que
compunham os jornais, buscavam denunciar estas práticas, mesmo que elas não
estivessem criminalizadas por leis.
Após isso, Breves reaparece nos jornais somente em 1885, ou seja, treze anos
depois. Nesta nova aparição, identificamos ele envolvido com a prática ilegal de cura.88
Reportagens como esta aparecem por seis longos anos, na qual Breves fora denunciado
por ser curandeiro e charlatão. Com isso, inúmeras foram suas passagens pela polícia, o
que aumentava ainda mais a indignação da opinião de seus inimigos expressa nos
jornais, pois os processos eram arquivados ou desapareciam e Breves continuava
circulando livremente, fazendo novas “vítimas inocentes”. A exemplo, no periódico
Gazeta de Notícias identificamos a seguinte matéria:
85
Gazeta de Notícias. Exercicio ilegal de medicina. 22 de julho de 1888, p. 3.
86
Disponível em: <Site: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>
87
Jornal do Comércio. Magé, 14 de maio de 1872, p. 2.
88
Jornal do comercio, 25 de outubro de 1885, p, 4.
36
Na porta do curandeiro huma taboleta de medico, o que claramente
significa que o espertalhão, ou fantasiou um nome precedido do
indicativo Dr. Para chamariz, ou realmente conseguiu associar um
médico á sua indústria, o que não nos parece possível.
Ainda ante-hontem tomaram a barca, em direção a esta corte, as 4 ½
horas da tarde, cerca de 60 individuos de ambos os sexos, carregando
garrafas e embrulhos de hervas e raízes. Vinham do consultório do
curandeiro Breves, onde provavelmente haviam deixado os magros
vinténs arranjados em uma semana de trabalho.
Mas se os pobres clientes vão pouco a pouco lá deixando o fructo de
suas economias, em compensação o curandeiro engorda, nas barbas da
polícia, e não tardará muito que seja capitalista, E digam que ele não
sabe o nome aos bois.
Consta-nos que o Sr. Dr. Henrique Baptista, digno inspector de
Hygiene, vai multar o curandeiro. Infelizmente não da isso resultado
algum. Mais de uma vez temos dito e ainda repetimos. – só uma lei
especial poderá dar cabo d’essa praga.89
89
Gazeta de Notícias. Sabe o nome aos bois, 10 de abril de 1889, p.1.
90
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: um pai-de-santo na Corte imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, p.
118.
91
Gazeta de Notícias. Sabe o nome aos bois, 10 de abril de 1889, p.1.
92
Sobre os ofícios de ambulantes, ler: POPINIGIS, Fabiane. Aos pés dos pretos e pretas quitandeiras. Afro-Ásia, nº46, 2012;
POPINIGIS, Fabiane. Maria mina e as disputas pelo mercado de trabalho em Desterro, século XIX. Revista de História
Comparada, Rio de Janeiro, 7.1. 115-135, 2013.
37
crendice. Com isso, o único caminho viável para explicar aquilo, seria a placa e os
dados do doutor serem falsos. Porém, como foram identificados nas matérias que se
seguiram, havia sim um médico que compactuava com as ações de Breves.
Por fim, a matéria aponta para uma indignação de que possivelmente, mais uma
vez, a polícia iria multar o afamado curandeiro e ele retornaria para os seus clientes, e
por isso seria necessária uma ação jurídica para acabar com ele, ou seja, esta matéria
nos permite problematizar uma questão mais geral: quais foram os caminhos tomados
por Breves no exercício da medicina popular no Rio de Janeiro entre a última década da
escravidão e a primeira década republicana, após a abolição? Através deste
questionamento, buscarei analisar seus passos pelos dos jornais, a fim de identificar
suas ações enquanto agente ativo.
Contudo, é válido ressaltar que, ao longo da pesquisa, outras questões
permearam o trabalho, mas as fontes até então identificadas não nos permitiram
respondê-las. A exemplo, não consegui identificar se o curandeiro Breves seria negro ou
descendente de escravos. Porém, sustento a hipótese de que possivelmente Breves fosse
branco ou mestiço, pois os indivíduos que atuavam com o curandeirismo, e eram
negros, comumente vinham com essa informação destacada nas denúncias, como pode
se notar no trecho a seguir retirado da Gazeta de Notícias:
Como pôde ser visto, o redator dá uma ênfase na cor do curandeiro João
Mendonça. Esta não foi a única reportagem a discriminar a cor do indivíduo, por isso
desenvolvi a hipótese acima.94 Junto a isto, também revemos o argumento explicitado
por Sampaio que aponta uma linha tênue entre as práticas de curas e religião.
93
Gazeta de Notícias. 15 de setembro de 1890, p. 1
94
Ao longo da pesquisa foram encontradas noticias como essas principalmente nos periódicos: Gazeta de notícias, o Paiz, o
Fluminense e Jornal do Comércio. Todos analisados entre os anos de 1890 – 1900.
38
Na porta da casa havia uma placa que dizia: “Dr. F. da Rocha, médico e operador”. Ao
entrar na casa, o Sr. Araujo se deparou com uma grande quantidade de pessoas que ali
estavam aguardando, ele identificou que em meio a estas pessoas encontravam-se
cidadãos famosos, matronas, crianças, cavaleiros respeitáveis, brancos, pretos, histéricos
e paralíticos. Após essa breve percepção o mesmo dirigiu-se ao balcão e pegou seu
cartão – este era o bilhete de ingresso para as consultas e tratamentos ali oferecidos -, no
verso mesmo lia-se: Dr. F. da Rocha. Número 185.95
Vendo que haviam 184 pessoas na sua frente – que chegaram para garantir sua
consulta às 4/5 horas da madrugada, o Sr. Araújo começou a andar pelo espaço no qual
o tal Dr. F. da Rocha fazia as consultas. Ali ele encontrou câmaras escuras onde haviam
espectros, letras de fogo, vozes soturnas, galinhas pretas comendo milho espalhados
sobre cartas de jogos, corvo de plumas negras como a ave do desespero, duendes,
alçapões e caveiras humanas.
Ao longo da expedição, o Sr. Araújo encontrou uma mulher que acabou tendo
um ataque epilético e, na ocasião, o afamado curandeiro Juca Breves veio ao socorro
dela e por meio de rezas e passes magnéticos expulsou uma possível entidade de dentro
da mulher. Após este episódio, o Sr. Araújo, impaciente com a espera, saiu da sala de
consulta, fez um sinal previamente combinado e bradou: “Salve-se quem puder!”. Os
apitos começaram a soar e a polícia de Niterói, fardada e secreta, invadiu a casa e deu
voz de prisão a todos quantos ali se achavam, realizando setenta e nove prisões. Dois
grandes bondes mal puderam conter os consultantes, que foram transferidos para a
delegacia de polícia militar onde o Dr. Militão, o Primeiro Delegado, procedeu com o
inquérito, interrogando devidamente cada uma das pessoas.
No ato da prisão o Dr. Francisco Batista da Rocha, nome completo do médico
que aparecera na porta do consultório e no cartão de consulta, declarou que nunca
receitava nem dava consultas e que, em troca do seu nome, acobertava o crime e a
especulação do curandeiro Breves, indivíduo que lhe dava duas vezes por semana a
quantia de 10$500 réis. Após o ocorrido, as pessoas que haviam sido presas foram
liberadas e o Curandeiro Breves fora solto dois dias depois após pagar uma fiança de
800$.
A narrativa anterior remonta o episódio de prisão de Breves e nos permite
retomar algumas questões já explicitadas no capítulo anterior, e outras novas que nos
O relato acima foi retirado dos periódicos: O Paiz, um curandeiro em apuros – setenta e nove prisões. 16 de fevereiro
95
39
ajuda a entender as redes de sociabilidades das quais o curandeiro Juca Breves
encontrava-se inserido.
Como vimos anteriormente, a busca pela prática da medicina popular não se
restringia única e exclusivamente às classes populares, como sugeriam os jornais e
autoridades da época, mas sim a uma variedade de pessoas que pertenciam a nichos
sociais diferentes. No episódio narrado, retirado do periódico o Paiz, o senhor Araújo
encontrou uma variedade de pessoas que estão à espera de sua consulta com o
curandeiro Breves. Este relato levanta uma problemática: o que levara estas pessoas, das
mais variadas classes sociais, à recorrerem a práticas de cura realizadas por curandeiros,
mesmo correndo risco de serem presos, como aconteceu no caso citado?
Sobre esta questão, identificamos que estes espaços, além de proporcionarem um
encontro de pessoas de diferentes camadas sociais, também possibilitava a manutenção
das práticas populares das classes baixas, na qual, segundo Leonardo Pereira, criavam-
se redes de sociabilidade96. Outra perspectiva, apontada pelo historiador Thiago Gomes,
é de que, dentro destes e outros espaços de sociabilidade, formulava-se resistência
política e resistência contra o processo de modernização e saneamento social.97 Noutras
palavras, estes espaços reproduziam as práticas culturais que eram vistas como um mal
social, da mesma forma que ampliava seus alcances, uma vez que grupos diferentes
entravam em contato nesses espaços. 98
Outro fator que contribuía para a busca deste tipo de medicalização, seria a
cultura herdada desde os primórdios da colonização atrelada às desconfianças das
práticas médicas, pois, como já abordamos, não existia uma homogeneidade dentro da
classe médica, o que acabava por desqualificar, em algumas vezes, as suas práticas.
Sendo assim, podemos apontar que o Senhor Araújo se deparou com uma
variedade de pessoas naquela manhã que, assim como ele, estavam buscando algum tipo
de ajuda para curar suas moléstias físicas, da alma ou sociais. No caso do Sr. Araújo era
uma cura social, pois ele estava de complô com a polícia afim de apontar o momento
exato em que o cerco deveria ocorrer.
Outro ponto de análise a ser explorado baseia-se na relação das práticas de cura
oferecidas por Breves, e outros curandeiros, com o religioso, pois existem elementos
96
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “A Flor da União: Festa e Identidade nos Clubes Carnavalescos do Rio de
Janeiro (1889-1922)”. TERCEIRA MARGEM: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-Graduação, Ano X, nº14, 2006.
97
GOMES, Tiago de Mello. Para Além da Casa da Tia Ciata: outras experiências no universo cultural carioca, 1830 –
1930. Revista Afro-Ásia.
98
SILVA, Caio S. de M. Santos e. As Práticas Religiosas Africanas (candomblé) na Primeira República no Rio de
Janeiro – 1900 a 1910. 1ª Ed. Seropédica/RJ. UFRRJ, 2013, p. 23.
40
que nos possibilitam identificar se o curandeirismo exercido está ligado, ou não, a
alguma prática religiosa. Entretanto, não é nosso objetivo analisar esses elementos
religiosos, sendo este um trabalho em potencial a ser desenvolvido.
Junto a isto, vimos no início deste trabalho que a polícia exerceu um papel
importantíssimo nas ações que buscavam eliminar o curandeirismo da cultura nacional.
Neste ponto, surge uma nova problemática: como agia a polícia na repressão destas
práticas?
Podemos identificar na análise das fontes, até aqui apresentadas, que a polícia
enfrentava essas pessoas, pois como um aparelho normativo do poder público, eles (a
polícia) deveriam coagir tais práticas e punir seus executores. Entretanto, não podemos
generalizar a polícia como uma instituição única e homogeneizada. Tal lógica pode ser
entendida, pois assim como identificamos reportagens parabenizando a ação da polícia
no enfrentamento contra os curandeiros, também foram identificadas fontes nas quais
houve reclamações da falta de atitude da polícia. As denúncias eram feitas através dos
periódicos, de ocorrências nas próprias delegacias; a polícia dirigia-se ao local,
averiguava a situação, e caso a denúncia fosse confirmada, o curandeiro/feiticeiro e
quem ali estivesse era detido.
Porém, como aponta João do Rio99, muita dessa negligência por parte da polícia
se dava, pois havia um “medo” em relação ao misticismo, ou pelo respeito que parte dos
policiais tinham por essas figuras e crenças religiosas.100 Outra hipótese levantada é a de
que as ações policiais poderiam sofrer interferência de pessoas poderosas – uma vez que
estas frequentavam os centros de cura.101
Outro aspecto importante de se observar, é que uma prática muito comum nas
prisões de curandeiros, feiticeiros e pais de santos era a de apreender os objetos
utilizados por eles nas sessões de cura. Isso ocorria pois, primeiramente, poderiam ser
utilizados como provas de que estes indivíduos estavam sim exercendo a medicina
ilegal, e também, caso eles fossem soltos, seria uma forma de se dificultar a retomada
destes indivíduos às suas práticas.102
Neste ponto vimos que, embora a sociedade carioca fosse composta por diversos
nichos sociais, determinadas práticas culturais possuíam a capacidade de construir um
99
João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, foi um jornalista, cronista, tradutor e
teatrólogo brasileiro.
100
João do Rio – As Religiões no Rio – Editora Nova Águia – Coleção Biblioteca Manancial nº. 47 – 1976, p. 13.
101
SILVA, Caio S. de M. Santos e. As Práticas Religiosas Africanas (candomblé) na Primeira República no Rio de
Janeiro – 1900 a 1910. 1ª Ed. Seropédica/RJ. UFRRJ, 2013, p. 30.
102
SILVA, Caio S. de M. Santos e. As Práticas Religiosas Africanas (candomblé) na Primeira República no Rio de
Janeiro – 1900 a 1910. 1ª Ed. Seropédica/RJ. UFRRJ, 2013, p. 32.
41
sentimento de pertencimento e, consequentemente, de resistência política que não
buscava defender uma dada ideologia política, mas sim defender uma prática que estava
sendo arrancada à força da sociedade. Também apresentamos que os policiais,
personagens efetivos desta história, embora possuíssem determinações diretas do
Estado, estavam inseridos dentro deste contexto de práticas culturais, ou seja, não
podem ser vistos de forma homogeneizada, mas sim devem ser analisados dentro das
suas especificidades – análise essa que deixaremos para o próximo capítulo.
Ao longo do trabalho abordamos que “os médicos” também devem ser
compreendidos em sua heterogeneidade, porque haviam aqueles que eram contra as
práticas de cura não científica, mas também haviam os médicos que abertamente
defendiam o livre exercício da medicina por parte dos curandeiros. Isto posto, os
caminhos tomados por Breves nos permitem identificar um médico que alugava seu
nome para que este curandeiro exercesse sua profissão “ilegal”. Não cabe aqui analisar
os motivos que levaram o médico a auxiliar Juca Breves, mas sim perceber que existia
ali uma figura médica que era utilizada como artifício de proteção contra a repressão.
No ocorrido que fora relatado no início deste tópico, vimos que, além do
curandeiro Breves, outras setenta e nove prisões aconteceram, infelizmente não
encontramos os inquéritos e depoimentos do caso, mas as páginas dos periódicos
relataram qual trabalho o Dr. Francisco Baptista da Rocha efetuava nas sessões do
curandeiro.
Dada voz de prisão ao curandeiro Juca Breves pelo Sr. Souza Araujo,
á ordem do Dr. 1º delegado de polícia, foi o curandeiro Breves
conduzido á polícia juntamente com o Dr. Franscisco Baptista da
Rocha, medico, sendo também conduzidos á polícia 77 individuos,
mulheres e crianças, que na ocasião achavão-se na consulta do
curandeiro, sendo aprisionado grande quantidade de vidros com
diversos remédios e raízes.
O Dr. Baptista da Rocha, sendo interrogado, declarou que recebia do
curandeiro Breves, todas as segundas-feiras e quintas, 10$000 para,
usar Breves do seu nome por causa da polícia, e que ele não examina
pessoas alguma, nem receitava, não tomando nenhuma
responsabilidade pelos remédios que Breves dava aos seus clientes. 103
O que tal declaração nos possibilita enxergar é que, além de existirem alguns
médicos que defendiam a prática do curandeirismo, haviam aqueles que compactuavam
com estas práticas, não através de artigos de jornais ou teses médicas, mas sim através
de ações cotidianas, pois embora inseridos em um período de conflitos entre ambos os
grupos, o Dr. Francisco articulou-se ao curandeiro Breves e permitiu a ele uma maior
103
Jornal do Brazil. 16 de fevereiro de 1892, p.1.
42
“segurança” no exercício do curandeirismo, pois aparentemente era um médico e não
um curandeiro que atuava na casa no centro de um terreno gramado.
Esta preocupação em proteger suas sessões, possivelmente se deu, pois antes
desta prisão Breves havia passado por muitas outras – pelo mesmo motivo – e o mesmo
também sofrera denúncias por parte dos periódicos. Com isso, podemos identificar que
as experiências vividas por Breves possibilitaram que ele adquirisse conhecimento
necessário para construir os mecanismos de articulação dentro deste “estado de
repressão ao curandeirismo” para continuar exercendo livremente sua profissão.
Corroborando com esta lógica, identificamos também que, embora o Dr.
Francisco colaborasse com Breves, ele conhecia as discussões e consequências jurídicas
das ações que estava tomando, pois como alega no depoimento apresentado pelo Jornal
do Brazil, ele não receitava e nem consultava nenhum dos pacientes, apenas permitia
que Breves usasse seu nome.
O fim do episódio narrado se deu com a soltura do curandeiro Breves apenas
dois dias depois do cerco, mediante o pagamento de uma multa como previa o Código
Penal de 1890. Após ser solto, como analisaremos nas próximas páginas deste capítulo,
Breves retoma suas atividades de curandeiro e as notícias de alguns jornais se mostram
mais uma vez indignadas com os “privilégios” que a justiça concebia a ele.
***
Retomando o que foi analisado até aqui, o curandeiro Breves gozava de certo
conhecimento do contexto em que estava inserido e se utilizava disso para articular suas
estratégias de ação. Um exemplo disto foi a reportagem encontrada no periódico O Paiz
do dia 12 de abril de 1892104, dois meses depois de sua prisão relatada anteriormente.
Na ocasião, identificamos Breves ligado à um levante na capital da República, cujo
objetivo inicial, segundo o periódico, havia sido homenagear o ex-presidente Marechal
Deodoro da Fonseca. Contudo, a homenagem adquiriu uma outra proporção e se
reformulou e uma manifestação que reclamava a saída do presidente Marechal Floriano
Peixoto e o retorno de Deodoro para a presidência.
Segundo o periódico O Paiz do dia 12 de abril de 1892105, o levante se iniciou
em frente à casa do Senhor Marechal Deodoro da Fonseca, que não se encontrava lá no
momento, e, posteriormente, começou a obter adeptos pelas ruas da capital. Com o
104
O Paiz.12 de abril de 1892, p. 1-2.
105
Ibdem, p. 1-2.
43
crescente número de pessoas, o mesmo foi se dirigindo até o palácio do Itamaraty com o
objetivo de depor o Senhor Presidente Marechal Floriano Peixoto.
O periódico aponta que ao mesmo tempo em que se acumulava o grupo de
manifestantes em frente ao Palácio do Presidente, também em frente aos 10º, 23º, 24º
batalhão de infantaria e no 9º batalhão de regimento de cavalaria, oficiais e civis davam
gritos de ordem em favor do então ex-presidente do Brasil.
Na primeira parte da reportagem, publicada dois dias após o levante, o redator
preocupa-se em deixar claro para os leitores que o corpo editorial não apoiava as
atitudes dos grupos criminosos que buscavam ferir a pátria republicana com suas ações:
106
O Paiz. 12 de abril de 1892, p. 1.
44
texto, apresentados como “indivíduos, cuja falta de civismo é bem conhecida”107. Junto
a isto, o redator da matéria convida os seus leitores a confiar e esperar que as devidas
autoridades cuidem do caso da melhor forma possível.
Como apontado, o fato deste periódico possuir uma trajetória dentro do
pensamento republicano, seria argumento suficiente para este não apoiar tais práticas.
Sendo assim, tinha também um determinado público leitor e, de acordo com as
efervescências políticas do período, posicionar-se poderia mobilizar um maior número
de leitores ao seu jornal, uma vez que as ideias políticas também eram definidoras de
relações sociais.
Embora deixado claro seu posicionamento, o corpo editorial aponta, ao longo do
texto, um tom de ironia e reprovação em relação a figura do Presidente Marechal
Floriano Peixoto. Termos como “o chefe do poder executivo das relações sediciosas” e
“o Sr. Marechal vice-presidente da República”108 aparecem corriqueiramente ao se
referirem a figura de Floriano. Nossa hipótese aqui é de que a lealdade política estava
ligada à “essência” republicana e não aos representantes do sistema, o que tornaria
plausível a condenação das ações, ao mesmo tempo que era condenada a figura do
Marechal Presidente.
Nas horas seguintes à manifestação, relata-se que houve uma organização
política a fim de controlar a situação e evitar danos permanentes ao governo. Na ocasião
o “vice-presidente da República dos Estados Unidos do Brazil”109 considerou os
seguintes pontos:
107
Ibdem, p. 1.
108
Ibdem, p. 1.
109
Ibdem, p. 1.
110
Ibdem, p. 1.
45
Art. 118. (...) a reunião de mais de 20 pessoas, que, embora nem todas
se apresentem armadas, se ajuntarem para, com arruido, violência ou
ameaças: 1º, obstar a posse de algum funccionario publico nomeado
competentemente e munido de titulo legal, ou prival-o do exercicio de
suas funcções; 2º, exercer algum acto de odio, ou vingança, contra
algum funccionario publico, ou contra os membros das camaras do
Congresso, das assembléas legislativas dos Estados ou das
intendencias ou camaras municipaes; 3º, impedir a execução de
alguma lei, decreto, regulamento, sentença do poder judiciario, ou
ordem de autoridade legitima; 4º, embaraçar a percepção de alguma
taxa, contribuição, ou tributo legitimamente imposto; 5º constranger,
ou perturbar, qualquer corporação politica ou administrativa no
exercicio de suas funcções: Pena? aos cabeças, de prisão cellular por
tres mezes a um anno.111
111
BRASIL. Código penal. Organização M. Ferraz de Campos Salles. RJ: 11 de outubro de 1890, p. 14. Disponível em: <
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049>. Acesso em: 28 fev. 2018.
112
BRASIL. Constituição (1890). Constituição Da República Dos Estados Unidos Do Brasil. Texto constitucional
promulgado em 24 de fevereiro de 1891. Brasília: Centro de Documentação e Informação (CEDI), 2017, p. 34. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.ht >. Acesso em: 28 fev. 2018.
113
FAUSTO, B. (Org.). Dos governos militares a Prudente Campos Sales. In:______História geral da civilização
brasileira. São Paulo: Difel, t.III, v.8, 1977.
46
Isso se expressa na medida tomada em relação aos membros do congresso, que
se encontravam em meio às manifestações contra Floriano. Segundo o artigo, “Que
entre os autores e promotores da sedição se acham membros do congresso nacional, que
gozam de imunidade por lei prescriptas”114, tal medida nos reflete uma tentativa de
aproximação com a oposição em meio as tensões políticas que o novo presidente se
encontra. Além disso, aponta-se que membros políticos gozavam de certos privilégios
em relação aos demais cidadãos.
Isto posto, mesmo declarando o estado de sítio como aponta o periódico, o
presidente manteve a inviolabilidade do sigilo das correspondências e a liberdade de
imprensa e locomoção. Dar voz aos jornais dentro desta situação significava buscar o
apoio dos redatores em divulgar as informações necessárias para a população, pois
como encontramos na fonte, após o decreto o Sr. Capitão Francisco Baptista da Silva,
ajudante às ordens do Sr. Marechal Floriano Peixoto, convoca uma reunião com chefes
de jornais a fim de que fosse divulgada uma lista com o nome de todos os sediciosos:
114
O Paiz. 12 de abril de 1892, p. 1
115
Ibdem, p. 1.
47
migravam para a Capital em busca de oportunidades de trabalho, junto a este fato, o
autor também aponta o crescente número de imigrantes acumulando-se na cidade.116
Com este crescimento populacional, os trabalhadores tinham que se adaptar às
novas condições de habitação e trabalho, condições estas, precarizantes tanto para a
saúde destes indivíduos – no ano de 1891 a cidade fora acometida por epidemias de
varíola, febre amarela, malária e tuberculose – quanto para a cidade do Rio, que sofrera
com a construção de novos cortiços e falta de saneamento básico.117 Para Carvalho, os
primeiros anos da República foram de inúmeras agitações:
116
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, p. 15-41.
117
MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e Livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca.
Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008, p. 26-28
118
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, p. 22-23.
48
ao então primeiro presidente. Tais situações lhe renderam inúmeras críticas jornalísticas
e proporcionaram as primeiras fissuras do poder.119
Essas divergências geraram um mal-estar dentro do sistema político, que
sutilmente obtinha adeptos que se organizavam com o intuito de reverter esse
desconforto. Dentre a aliança civil militar que buscava esta solução, estava o então vice-
presidente Marechal Floriano Peixoto. Noutras palavras, praticamente todo o governo
de Deodoro caracterizou-se pelos impasses políticos, que acabaram com o “golpe de
Lucena” que se caracterizou pela dissolução da Câmara e a implementação do Estado de
Sítio por parte do presidente, com o objetivo de sufocar a oposição política de Floriano.
Contudo, este golpe acarretou na renúncia no dia 23 de novembro de 1891,
complementada com inúmeras manifestações ao longo do país.120
Ainda segundo Fausto, as tensões políticas do governo de Deodoro impediram
que se colocasse no centro das discussões a causa principal: o povo – que em sua
grande maioria ficou à margem das disputas e da participação política. Neste período,
“houve referência à greves e forças populares, chegando a haver, em contados casos, a
efetivação dessa presença popular. Mas, politicamente, as articulações davam-se nos
quartéis, nos palácios ou casas aburguesadas.”121
Neste ponto podemos refutar o argumento de Boris Fausto e José Murilo de
Carvalho. Ambos os autores apontam uma ausência de participação política do povo,
sendo o governo republicano repressor e excludente. Como foi visto até aqui, articular-
se com médicos, sendo curandeiro, greves (como aponta o próprio autor), manifestar-se
contra o governo, ou apoiar outros governantes, pode sim ser lido como uma ação direta
de participação política popular.
Ao longo do governo de Floriano Peixoto, ocorreu o sentido contrário do
governo de Deodoro da Fonseca. Ele, aliado às forças armadas, que detinham uma
maior participação política, buscou solucionar os impasses deixados pelo governo
anterior. Para isso, o novo Presidente articulou-se com figuras exponenciais no cenário
político, como a “Presidência da Câmara (Bernardino de Campos) e do Senado
(Prudente de Moraes), bem como será um homem estritamente ligado à política de São
Paulo quem irá para a pasta de Finanças (o conselheiro Rodrigues Alves.)” 122
. Neste
ponto, Floriano buscou, através de coligações, o fortalecimento do poder presidencial,
119
FAUSTO, B. (Org.). Dos governos militares a Prudente Campos Sales. In:______História geral da civilização
brasileira. São Paulo: Difel, t.III, v.8, 1977, p. 44-45.
120
Ibdem, p. 45-46.
121
Ibdem, p. 46.
122
Ibdem, p. 47.
49
com o objetivo de sufocar os movimentos revoltosos, fossem eles advindos das ruas ou
do âmbito político.123
Contudo, embora Floriano buscasse fortalecer seu poder e “limpar” a política
republicana, seu governo também foi marcado por insatisfação política porque, com
base na Constituição Federal, seu poder poderia ser considerado ilegítimo:
123
Ibdem, p. 47-50.
124
BRASIL. Constituição (1890). Constituição Da República Dos Estados Unidos Do Brasil. Texto constitucional
promulgado em 24 de fevereiro de 1891. Brasília: Centro de Documentação e Informação (CEDI), 2017, p. 40. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.ht >. Acesso em: 03 mar. 2018.
125
O Paiz. 12 de abril de 1892, p. 1.
126
FAUSTO, B. (Org.). Dos governos militares a Prudente Campos Sales. In:______História geral da civilização
brasileira. São Paulo: Difel, t.III, v.8, 1977, p. 50-51.
50
argumentos dos historiadores José Murilo de Carvalho e Boris Faustos, pois havia uma
participação politica popular através desses processos de resistência.
Neste sentido, ao analisarmos a gigantesca lista de envolvidos no “crime de
sedição” podemos identificar pessoas das mais variadas parcelas da população.
Capoeiros, condes, cirurgiões, senadores, generais, redatores, curandeiros, alfaiates,
coronéis e muitos outros uniram-se com um ideal comum que transpassou a barreira das
classes sociais; e este contato permitiu a construção de um sentimento comum de
pertencimento que permeava as relações na cidade do Rio de Janeiro. Como apontado
por Maria Tereza Chaves de Mello127, as ruas eram compostas pela efervescência
política republicana, contudo, como apresentado neste capítulo, tal efervescência não se
restringia às ruas, bares ou coligações, mas também ao fato de pessoas dos mais
diferentes escalões frequentarem as casas de curandeiros, o que possibilitava a
construção de mais um mecanismo de manutenção dessas ideias.
Sendo assim, até este ponto vimos que o curandeiro Breves buscou, dentro da
classe médica, uma forma de legitimar e praticar a arte da medicina, e que, além disto, o
mesmo não se apresentava como um simples nécio e alheio às tensões políticas que o
circundavam, sendo ele encontrado no levante que reuniu inúmeros indivíduos a fim de
reivindicar a legitimidade do governo presidencial. Junto a isto, também analisamos que
um jornal republicano, não necessariamente, é um jornal partidário, pois como
apresentado pelo O Paiz, condenava-se o crime de sedição ao mesmo tempo que se
questionava o governo de Floriano.
Outro ponto apresentado é de que, embora a República tenha sido um sistema
político excludente, existiram diferenças governamentais que possibilitaram a
articulação de determinados setores sociais, o que justifica as ações civis e militares em
apontar um ou outro representante executivo.
Assim sendo, podemos concluir que o pensamento político republicano não
restringia-se aos intelectuais da época ou aos homens da política, mas também era lido e
difundido em todos os níveis sociais e das mais variadas formas possíveis, ou seja,
embora os periódicos apontem os curandeiros e pacientes como ignorantes, miseráveis
ou com falta de civismo, as fontes até aqui mostram que não havia, na prática, uma
diferença nítida entre cidadão ativo e inativo e que a participação política pode se dar
das mais variadas formas possíveis – como uma simples manifestação nas ruas da
capital que questiona a legitimidade do governo, ou com o entendimento de um
127
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A modernidade republicana. Rio de Janeiro: Revista Tempo, nº 26, 2008, p. 1-15.
51
curandeiro, que busca dentro da própria classe médica, uma forma de se manter a salvo
das penalidades que perpassam as suas práticas ilegais.
Em suma, analisar os caminhos e descaminhos seguidos por Juca Breves nos
possibilitou compreender, de forma mais nítida, as relações existentes dentro da
sociedade e a problematização das ações de cidadãos que, há muitos, foram silenciados
ou vistos como indivíduos sem consciência política ou social.
52
– CAPÍTULO 3 –
PRENDAM ESTE CURANDEIRO, POIS É MEU CONCORRENTE:
JUCA BREVES, UM CURANDEIRO NA POLÍCIA MILITAR DO
RIO DE JANEIRO (1896 – 1907).
53
uma ordem social. Com o intuito de acabar com estes elementos, Estado e médicos
juntam-se e em 1850 e criam a Junta Central de Higiene Pública. Esta, por sua vez,
articula-se com delegados da polícia e alguns jornais, no processo de sufocamento de
tais práticas. Neste sentido, a Junta Central de Higiene Pública havia como objetivo a
implementação da ordem republicana através da remoção das práticas culturais,
apontadas como atrasadas, e a implementação da medicina científica como única prática
de cura. Isso se dava, pois o pensamento republicano estava atrelado ao pensamento
positivista. Tal pensamento atribuía à ciência o papel definidor do progresso,
possibilitando assim uma maior participação dos médicos nas questões políticas, o que
se refletia, muitas das vezes, nas medidas sanitárias tomadas ao longo da primeira
república – como a fiscalização dos cortiços da cidade do Rio, analisadas por Sidney
Chalhoub.128
Neste ponto, também foi possível identificar, através das análises apontadas
aqui, que as ações da Junta de Higiene, e polícia militar, não eram tão eficazes, pois ao
denunciar os curandeiros, os periódicos também apontam uma ausência das ações destas
duas instituições. Como podemos ver no trecho a seguir, retirado da Gazeta de Notícias
do dia 6 de maio de 1896:
“Escandalo com Ostentação”
Ao diretor da assistência, severo como quer ser, pedimos a sua atenção
para o escândalo cometido nos olhos do publico, pelo curandeiro
Breves, que, zombando do poder das autoridades, ainda continua; não
queira ser agradável ao Breves faça justiça, se há lei que puna quem
delinque, é o que queremos.129
128
Sobre o assunto ler: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo, Cia da
Letras, 1996.
129
Gazeta de Notícias. 6 de maio de 1892, p. 2.
130
Ibdem, p.2.
131
O Fluminense. 16 de fevereiro de 1896, p.1.
54
confirmar tal argumento, seria necessária uma análise aprofundada sobre a estruturação
interna da polícia. Uma pista encontrada está no trabalho de Thomas Holloway que
explicita que, durante o Império, os suplentes eram nomeados pelos chefes de polícia.132
No final do mesmo ano, o jornal Gazeta de Notícias publica uma matéria no dia
18 de outubro, cuja argumentação central do seu redator seria mostrar a indignação
sobre o fato de Breves conquistar regalias e espaço, não só diante da população de
Niterói e arredores, mas também estender essa conquista de espaço dentro de um órgão
que antes o havia prendido algumas vezes. Segues o trecho:
“Auctoridade e curandeirismo”
Há pouco mais de um anno, o chefe de polícia do Estado do Rio de
Janeiro, Dr. Alfredo Madureira, em pleno exercício de suas
atribuições, entendeu tomar energigicas providencias contra o
curandeiro Breves, sucessor do conhecido caboclo da Praia Grande, e
depois de sucessivas queixas que recebera relativamente ás curas
praticadas pelo milagroso esculápio, se não nos falha a memoria,
concluiu as suas diligencias políciaes com a prisão de Breves.
Essa prisão, porém, e as medidas tomadas contra a exploração da bia
fé de muita gente infeliz tiveram de cessar, porque appareceram os
advogados do curandeiro Breves, em nome da liberdade de profissão
garantida pelo pacto fundamental de 24 de fevereiro, e em nome da
arte sobrenatural de cura com benzeduras e raminhos de alecrim.
E assim, findaram as perseguições ao benemerilo esculápio que, de
fronte erguida, continuou a sua carreira de triumpho, interrompida por
um curto espaço de tempo.
D’ahi pra cá a clientela do Dr. Breves tem augmentado e o seu nome
está n’este momento, rodeado de tamanha aureola, que o governo do
Estado acaba de nomeal-o autoridade em um dos districtos da visinha
cidade de Nictheroy, como se vê dos actos officies publicados no
jornal do commercio de 15 do ocorrente.
O curandeiro está pois investido das altas funções de autoridade
polícial e o chefe de polícia que o metteu um dia no xadrez que
procure no incorrer no seu desagrado133
Além dos pontos já abordados nos capítulos anteriores, este trecho nos permite,
mais uma vez, reafirmar a hipótese de que o cargo assumido por Breves é um cargo
dado por indicação ou bons méritos, pois segundo o periódico o curandeiro possui tanta
fama que o governo do Estado acaba o nomeando como uma das autoridades de uma
cidade vizinha a Niterói.
Também é importante salientar que Breves é apontado como substituto de um
conhecido curandeiro chamado “caboclo da Praia Grande”134, e que, embora seja
referido como “o conhecido”, nos periódicos disponíveis na Hemeroteca Digital foram
132
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de
Janeiro: FGV, 1997, p. 50.
133
Gazeta de Notícias. 18 de outubro de 1896, p. 1.
134
Ibdem, p. 1.
55
encontradas apenas duas notas sobre este curandeiro.135 Desta forma, o presente capítulo
busca analisar os relatos dos periódicos sobre Breves entre os anos de 1896 até 1907,
afim de identificar possíveis, ou não, mudanças nas ações e redes de sociabilidade, pois,
como pôde ser visto até aqui, as relações na Primeira República são muito mais
complexas do que a dualidade perseguidor e perseguido, então nossa hipótese a ser
respondida é de que Breves conseguiu dialogar com as variadas distinções destes
universos que se relacionavam cotidianamente
135
Neste ponto surge uma problemática que será respondida em um futuro trabalho. Ao longo da minha análise observei a
recorrente utilização de termos como “celebres”; “afamado”; “conhecido” ao se referir a alguns curandeiros em específico.
Tal recorrência me permitiu construir o seguinte questionamento: O que define um curandeiro como celebre? Para responder
este questionamento vejo a necessidade de mapear os indivíduos atuantes como curandeiros da cidade do Rio afim de
identificar sua área de atuação, gênero, especialidades, relações pessoais e outras, pois com o cruzamento desses dados
poderemos identificar possíveis alianças, rivalidades e elementos comuns que os definem como “célebres”. Para isso,
estruturei um banco de dados contendo as informações encontradas nos periódicos da cidade do Rio de Janeiro entre os anos
de 1889 – 1900, o banco ainda não está completo, pois a quantidade de informações encontrada é extensa.
136
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de
Janeiro: FGV, 1997, p. 46.
56
medo, estabelecido entre o povo e a Guarda Real, a mesma acaba sendo extinta em 1831
e substituída pela Guarda Municipal que possuía funções semelhantes a anterior, ou
seja, manter a ordem nos espaços públicos da cidade. – A Guarda Municipal foi criada
meses antes da extinção da Guarda Real.137
Neste mesmo ano, todas as instituições anteriores foram substituídas pela nova
Guarda Nacional que contaria com o apoio de um Corpo de Guardas Municipais
permanentes, criado no mesmo ano, para exercer as mais variadas funções atreladas à
polícia. Tal medida se deu, pois identificava-se a ineficiência das instituições diante da
necessidade de um controle das ruas, que se iniciou após a renúncia de D. Pedro I e o
início do período regencial.138
Neste ponto, Holloway defende que o fato de a Guarda Nacional se envolver em
variados assuntos e atividades, permitiu que ela transitasse por todo cotidiano da cidade
dentro da esfera pública e privada. Já no início do período Regencial (1831), cria-se um
corpo policial estritamente militarizado, cuja função seria o policiamento das ruas.
Semelhante à medida anterior, esse é um reflexo das disputas de poder dentro do
cenário político referidas no capítulo um.139
A relação entre estas duas instituições era envolta em tensões, pois os membros
da Guarda Nacional gozavam de certo prestígio social em relação aos membros da
Polícia Militar, uma vez que para ingressar nos serviços da Guarda era requisito mínimo
a qualificação de eleitor. Ou seja, era necessário possuir uma renda mínima que
permitiria a esse indivíduo possuir o reconhecimento de cidadania ativa, pois, assim
como voto, o serviço militar na Guarda tornara-se obrigação de cidadão, enquanto que a
composição da Polícia Militar era formada de cidadãos da classe popular e que
recebiam uma renda bem pequena. 140
Junto a isto, surgiram questões burocráticas, pois a polícia militar respondia ao
Ministro da Justiça, mas, após 1832, o novo Ministro da Justiça passa a subordinação da
polícia para a Guarda Municipal, tal medida aumenta ainda mais o status da Guarda
mediante os policiais militares.
Nos primeiros anos da República, o Corpo Militar de Polícia da Corte passa a se
chamar Brigada Policial da Capital Federal (1889) e só em 1905 torna-se Força Policial
137
Ibdem, p. 47-77.
138
Ibdem, p. 76-77.
139
Ibdem, p. 92-93.
140
Ibdem, p.89-98.
57
do Distrito Federal.141 Além dessas instituições, existia um grupo de forças que
auxiliavam o trabalho militar na proteção das ruas. “Grupos de cerca de 60 pessoas,
entre vigias de parque, fiscais do comércio e guardas de edifícios públicos e outras
instalações, cuja autoridade é muito restrita.”142
Sendo assim, através dos estudos de Holloway, podemos perceber que a criação
e reformulação das instituições policiais estão atreladas aos interesses de seu tempo; e
que a atuação de Breves se encontra inserida no processo de transição da Brigada
Policial da Capital Federal para tornar-se Força Policial do Distrito Federal. Ao longo
desse processo de transformações internas sofridas pela polícia, surge um
questionamento: qual era a relação estabelecida entre cidadãos e policiais?
Holloway aponta que a extensa gama de atividades exercida pelos policiais nas
ruas acabava por desenvolver certos comportamentos de ação, que aos olhos da própria
polícia eram tidos como ilegais ou imorais; e muitas das ações policiais possuíam o
objetivo de intimidar para se manter o respeito da figura do Estado na Rua.143
Além disto, alguns elementos dessa relação já foram explicitados no capítulo
dois, pois no que se refere ao curandeirismo, havia os policiais que buscavam executar
medidas que possibilitassem o fim das práticas, e havia aqueles que não atuavam, pois
viam nas “religiões místicas” um simbolismo de respeito ou superstição. Essa relação
pode ser explicada, segundo os historiadores Thomas Holloway e Marcos Bretas, pelo
fato de que os policiais eram originários das camadas livres e pobres e que estes não
demonstravam considerável instrução, o que nos permitiram questionar se a vida fora da
polícia seria melhor do que a de dentro.144
Sendo assim, podemos compreender que as relações entre as classes pobres e as
práticas de curandeirismos são mais íntimas devido à sua história de construção,
baseada na correlação das práticas de indígenas, católicos, escravos africanos e
barbeiros africanos e afrodescendentes; e os relatos das fontes os denunciavam como
frequentadores, junto das pessoas pertencentes às classes mais abastadas. Sendo assim,
a possível relação dos indivíduos policiais com estes praticantes, muitas das vezes era
estabelecida anteriormente ao exercício da profissão. Esta relação possibilitava uma
possível resistência dos policiais em combater determinados curandeiros, o que, por sua
141
Ibdem, p. 93-98.
142
Ibdem, p. 165.
143
Ibdem, p. 170.
144
BRETAS, Marcos Luiz. A polícia Carioca no Império. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 12, nº22, 1998,
p. 2; HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de
Janeiro: FGV, 1997, p. 93-98.
58
vez, se refletia nos periódicos em forma de reclamação ou indignação. Outra
interpretação, também, é de que, através deste contato entre elite e povo, os policiais
construíam relações extraoficiais com esses indivíduos que muitas das vezes utilizavam
essas relações para impedir ações policiais.
Também devemos lembrar que a ideologia da instituição policial está atrelada ao
pensamento científico-positivo, que buscava uma transformação da sociedade afim de
direcioná-la para o progresso Republicano. Ou seja, a polícia respondia a um plano
maior de higienização da sociedade à qual pertencia. Compreender isso nos permite
entender a figura de Breves atuando dentro da polícia, imbuído da mais alta autoridade
do Estado nas ruas.
Após tornar-se terceiro suplente, Breves continua sendo notícia, mas desta vez
suas ações começam a aparecer um pouco mais violentas. No periódico O Fluminense
do dia 15 de março de 1905, encontra-se uma coluna dedicada exclusivamente para
relatar as ações de Breves em período de eleições.
145
O Fluminense. 15 de março de 1905, p. 1.
59
Como pôde ser lido, ao obter certa autoridade, Breves estende seu controle para
além da arte de cura, pois organiza uma espécie de milícia que funciona como seus
olhos pela cidade e que busca manter a definição de ordem para si. Além disso,
encontramos Breves envolvido em ações políticas; o que nos permite reafirmar o
argumento de que esses indivíduos possuíam conhecimento do que estava envolto de si,
e construíam mecanismos próprios de expressão e manifestação, quando estes lhes eram
negados pelo Estado. Outro ponto a ser destacado é a voz ativa de Breves, pois
mediante à confusão, o simples relato do curandeiro é tido como prova suficiente para
se prender Arthur Ignácio. Recorrendo às autoridades acima de Breves, Arthur consegue
sua liberdade, mas possivelmente sua figura estaria marcada na freguesia de São
Lourenço, em Niterói.
Meses depois, Breves é identificado fechando uma sessão eleitoral que ocorria
em uma escola, os motivos para esta ação não são apontados pelo repórter, mas no ato,
Breves invade o local com seus capangas e manda todos que ali se encontravam saírem,
pois, as eleições não iriam acontecer.146 Essa atitude e a anterior mostra o intenso
envolvimento de Breves nos processos políticos e eleitorais.
Como aponta a fonte, ele não ocupa só o cargo de terceiro suplente, mas também
o de subdelegado. Tal mudança aconteceu em 1897, sob o comando do Capitão João
Corrés de Azevedo Coutinho.147 Tal condecoração mostra que, aos olhos da instituição
policial, Breves era um merecedor de ascensão profissional. Desta forma, como pode
ser notado, embora Breves tenha se tornado uma figura polêmica e famosa, a notícia de
sua mudança de cargo foi negligenciada pelos jornais da época, pois o único a comentar
sobre o ocorrido foi O fluminense e em uma pequena nota na página três – quase no
final do jornal – sem nem esboçar uma opinião sobre o caso; e nada foi achado nos
outros periódicos.
Outra questão levantada na análise das fontes, gira em torno do exercício dos
curandeirismos – estaria ou não Breves atuando como curandeiro enquanto exercia
funções policiais? Pois embora os periódicos atribuam a imagem de curandeiro ao
subdelegado Breves, as informações sobre suas ações nesse âmbito não são encontradas
nas páginas dos jornais. Dentre os novos relatos dos passos de Breves, o periódico O
146
O Fluminense. 8 de outubro de 1905, p. 2.
“Passou hontem a vara de subdelegado do 4º districto sr. Capitão João Corrés de Azevedo Coutinho ao 3º suplente José
147
60
Século do dia 20 de abril de 1907, lança uma pequena nota que nos permite uma
possível resposta para este questionamento.
61
policial para articular uma milícia, que observava e implementava a ordem na sociedade
de Niterói, e que funcionava em prol dos interesses pessoais de seu líder. Uma hipótese
aqui levantada é a de que as ações desta milícia poderiam justificar os méritos
conquistados por Breves dentro da polícia, como o cargo de subdelegado, pois ela (a
milícia) poderia exercer as atividades delegadas por ele, representando uma ramificação
não oficial da polícia, uma vez que poderiam usar este argumento para coagir seus
alvos, mas era o nome de Breves que recebia o crédito, pois era o representante oficial
da polícia.
Essa argumentação é sustentada, pois, segundo Bretas, a polícia funciona como
aparelho repressivo do estado atrelado ao ideário republicano, mas não era o único.
Sendo já referidos, outros órgãos oficiais complementavam a polícia, o que
burocratizava as ocorrências e permitia pontos cegos para ações extraoficiais dos
policiais.153 Atrelado à isto, sendo Breves um membro da polícia e, ao mesmo tempo, de
uma milícia, isso lhe possibilitava um certo prestígio social, o que justificaria a ação do
subdelegado em prender Arthur Ignácio sem nenhuma contestação, e o ganho do cargo
de subdelegado.
Outro ponto importante é que Breves utilizava sua autoridade para eliminar os
possíveis concorrentes no exercício do curandeirismo, como consta no caso do dr.
Cesar. Sendo assim, Breves conseguiu articular duas forças que, na lógica do Estado
deveriam ser opostas – curandeirismo e polícia – para fazer a manutenção da ordem à
sua volta e proteger suas práticas. Esta visão nos permite vislumbrar uma possível
justificativa para a não aparição das ações dele enquanto curandeiro. Os periódicos que
propunham-se a denunciar as ações de Breves, podem ter se “dado por vencidas”, uma
vez que suas denúncias sobre ações de curandeiros, como o Breves, eram direcionadas a
polícia, mas agora ele [Breves] encontrava-se “infiltrado” nela.
No que diz respeito à relação do corpo policial com a população, Bretas nos
mostra que a polícia, na Primeira República, é pensada através do cientificismo que vem
por montar seus pensamentos de ação em ofício. Logicamente, se o Estado está
passando por transformações que o desconecte do Antigo Regime, a polícia também
passaria pelas mesmas. Contudo, essas mudanças vão mostrar a incapacidade do Estado
153
BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas. Povo e Polícia na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional,
1997, p. 36.
62
em manter a ordem na sociedade, o que, por sua vez, acaba por esfumaçar as limitações
de quem é policial, miliciano ou criminoso.154
Para o autor, os policiais articulavam os modos de agir, legais, com ações
imediatas, pois devido ao fato do exercício policial abarcar uma variedade de ações, o
treinamento recebido não era capaz de prepará-los para todas as situações. Sendo assim,
em tais situações onde se necessitavam medidas instantâneas, o policial construía novas
formas de interação e reação, pois eles representavam a autoridade máxima nas ruas.155
Depois do ocorrido em 1911, José Francisco Pinto Breves não aparece mais nas
páginas dos periódicos da capital, não tendo sido possível saber sua trajetória e sua
morte. O curandeiro, porém, nos deixa pistas de quais caminhos trilharmos para
descobrir o que lhe aconteceu. Esses caminhos estão personificados na figura de seus
dois filhos, que começam a ganhar holofotes nas páginas dos mesmos periódicos que
outrora empenhavam-se em denunciar as ações de seu pai. Contudo, diferente de
Breves, Rezirio Pinto Breves156e Agenor de Souza Breves (Nonô Breves)157 não
estavam ligados à arte de cura. Através deles, podemos identificar que Breves manteve
parte de suas ações, ou até mesmo envolvido diretamente, perpetuadas em seus
herdeiros, que são relatados envolvidos em roubo, assassinatos, liderança de milícias e
outros mais.
Destarte, podemos concluir, com a análise aqui desenvolvida, que Juca Breves
manteve suas ações de exercer o curandeirismo mesmo depois de ingressar na polícia
militar, e que se utilizava de seu poder para fazer as manutenções que, a seu ver, eram
necessárias como intervenção em eleições, prendendo indivíduos que opunham-se a ele
e concorrentes no exercício da cura. Esse mesmo processo nos permite identificar que a
polícia era composta por membros da população mais pobre, e isso vinha a pesar em
algumas medidas por eles tomadas.
154
Ibdem, p. 37.
155
Ibdem, p. 38.
156
O Periódico O Fluminense de 19 de maio de 1906 apresenta Rezirio Pinto Breves, ao lado de seu pai,
Francisco Pinto Breves como réus de um crime na coluna referente as decisões tomadas pelo Juiz
municipal. Um ponto a ser notado é que Breves aparece como réu de um possível crime no exercício da
profissão de polícia. Infelizmente nada mais foi encontrado nos periódicos sobre o caso e nem nos
documentos catalogados e disponíveis no Arquivo Nacional Rio de Janeiro.
157
Os periódicos O Século 14 de abril de 1910 e Jornal do Brasil 15 de abril de 1910, lançam
respectivamente uma matéria, sem assinatura, cujos títulos eram “Vários feridos”; “conflito e morte”, na
qual Nonô Breves havia matado um senhor de nome Antônio Henrique Braga com tiros e ferido seu
cunhado João Alves da Motta com a mesma arma, e um outro individuo de nome Manoel Soares, este
último apanhou de um grupo de indivíduos a mando de Nonô.
63
Outro ponto importante, é o de que a posição assumida por Breves mostra que as ações
de indivíduos comuns podem impactar nas reações das inúmeras instituições do Estado.
Pois, no caso exposto aqui, vemos um curandeiro, perseguido pelos redatores de jornais
e policiais, se tornar não só uma autoridade na arte de cura, mas também uma
autoridade do Estado na rua.
Conclusão:
As primeiras décadas do período republicano, como apontado, foram recheadas
de inúmeras manifestações políticas, culturais e sociais. Tais manifestações ocorrem em
um movimento de ação e reação que se origina do contato das diferentes classes sociais
e das diferentes ideologias que giram em torno do Estado. Sendo assim, para
compreendermos as relações cotidianas destes indivíduos comuns na cidade do Rio de
Janeiro, é necessário entender que, em meio aos discursos oficiais, opinião pública e
discursos científicos, podemos escutar suas vozes há muito silenciadas.
Isto posto, o presente trabalho buscou apresentar através da figura do curandeiro
José Pinto Breves, as relações entre indivíduos que compunham o cotidiano da cidade,
ao mesmo passo que buscamos entender os jornais da época como um espaço de
diálogo, debates e denúncias-propagandas das práticas de curandeirismo. Essas práticas
foram criminalizadas após a assinatura do código criminal de 1890, que, atrelado a uma
lógica repúblico-cientifica, buscava implementar a ordem e progresso. Neste contexto, o
curandeirismo se tornava uma pedra no caminho do Estado e dos médicos diplomados.
A relação entre médicos e curandeiros é uma relação tênue, mesmo antes da
implementação do código criminal, o que justifica a criminalização aparecer nos
periódicos bem antes do código entrar em vigor. Tais médicos se dividiam quando o
assunto eram as práticas de cura popular, pois haviam aqueles que defendiam o
exercício único e exclusivamente por pessoas diplomadas, e aqueles quem defendiam o
exercício por todos, desde que não manchassem a honra e a moral. Essa divergência nos
denunciou os problemas que a ordem médica passava, na busca por sua legitimação, e é
dentro destas discussões que surge a aliança entre médicos e Estado, expressa na
construção da Junta de Higiene em 1850.
Também correlacionado a estes interesses, vimos que a polícia se torna uma
peça fundamental na caçada desses charlatões. Porém, assim como os médicos, a
instituição da polícia militar, que ainda passava por processos de transformação, era
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composta por membros da população pobre, por sua vez, tais policiais desenvolviam
inúmeras formas de correlação com a população, que nem sempre eram dadas em forma
de opressão. No que nos diz respeito ao curandeirismo, identificamos denúncias que
apontavam a ineficiência da força policial em conter as ações destes” inimigos”.
Junto a tudo isto, vimos que as práticas populares de cura nasceram no Brasil,
tendo um processo de construção aglutinando saberes diversos – indígena, africano e
europeu; e que embora os periódicos apontem os frequentadores de tais sessões como
ignorantes, pobres e ingênuos, haviam pessoas das mais diferentes classes sociais.
Assim, percebemos que estes centros de atuação de curandeiros também eram espaços
de manutenção da cultura popular e da difusão de ideias entre os mais variados
indivíduos.
Sendo assim, a República se constitui mediante um caráter excludente e
repressivo, o que nos permite identificar as ações da população nos espaços de conflitos,
e seus entendimentos sobre a sociedade em questão. A exemplo disso, analisamos o
caminho percorrido por Breves através dos periódicos, e buscamos compreender como
este curandeiro se relacionou com as instituições do estado e os diferentes grupos
sociais que o procuravam afim de buscar uma cura.
Tal experiência nos permitiu contrapor uma dada historiografia que apontava a
ausência de participação política popular, mas, uma vez que encontramos Breves
envolvido em manifestações políticas e confusões em áreas eleitorais afim de obrigar
uma pessoa a votar, ou fechando a zona eleitoral, concluímos que isso pode ser sim
interpretado como ação política. Também nos foi permitido identificar Breves
recorrendo à contradição entre constituição e código criminal, para se safar da polícia e
continuar exercendo sua profissão. Para isso, Breves inclusive contratou um médico
para ocultar as reais ações que ali aconteciam.
Outro ponto aqui analisado, foi o fato de as questões políticas gerarem
manifestações populares afim de questionar o poder do Presidente Marechal Floriano
Peixoto e reivindicar o retorno do Marechal Deodoro da Fonseca. Essa oposição política
perpassava por toda sociedade, pois, como mostramos, foram encontrados nomes de
médicos, políticos, generais, operários e curandeiros. Todos unidos pelo sentimento de
insatisfação do novo governo.
Neste mesmo momento identificamos os periódicos, que estavam alinhados com
a lógica republicana e empenhados em denunciar o curandeirismo, se voltando para a
reinvindicação do povo e questionando abertamente o poder presidencial. Essa ação era
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possível, pois tais pensamentos republicanos, por trás dos jornais, não eram ligados a
um ou outro partido e nem a uma figura política, mas sim ligado à ideologia
republicana.
Por fim, encontramos Breves ingressando dentro da polícia militar e acumulando
funções ao mesmo tempo que exercia a profissão de curandeiro. Ele utiliza o poder que
lhe é atribuído e constrói uma milícia que o permita manter a ordem em sua área de
atuação, entre essas ações de ordem, as que destacamos na pesquisa foi a ação de forçar
Arthur Ignácio a votar, sendo que o mesmo alegava ser votante em outra região, o que
gerou uma confusão generalizada acarretando a prisão de Arthur; e a ação de Breves de
mandar prender outro curandeiro que atuava na mesma região que ele. Ou seja, Breves
utiliza seu poder não só para manter a ordem, mas também para proteger suas ações
ilícitas diante do poder jurídico.
Também vimos que poucas foram as mudanças das ações de Breves antes e
depois de ingressar na polícia militar. Agora, com mais poderes, ele não abandona o
exercício de curandeiro e utiliza seu prestígio para afastar inimigos e concorrentes. Esta
análise nos permitiu concluir que as relações sociais, no Rio de Janeiro da Primeira
República, eram dadas de forma multilateral e não de forma unilateral, na qual só existe
o perseguidor e o perseguido, sem que houvesse outros fatores e entendimentos.
Isto posto, a resposta para nossa pergunta central – Qual era o retrato das
relações sociais no Rio de Janeiro nas primeiras décadas da república, através da ótica
do curandeiro Juca Breves? – gira em torno do argumento de que as práticas culturais
permitiram um maior contato entre membros da elite política, intelectual e indivíduos
comuns. Tal contato contribuiu para a construção de ações de resistência e luta ao longo
deste período. Isto é, embora as instituições do estado buscassem implementar, mesmo
através da repressão, uma lógica republicana científica, diversos indivíduos sócios aqui
apresentados articulavam-se entre si defendendo uma ou outra lógica que possibilitava a
construção de novas visões de mundo, e novas formas de saber e vivência.
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