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CURSO DE APERFEIÇOAMENTO

ESCOLA DO RIO DOCE


Contribuição das Ciências Sociais e
Humanas para a reflexão sobre mineração,
rompimento de barragens e revitalização da
Texto Bacia do Rio Doce
trabalhado
Autores: Ana Paula Giavara, Charles Moreira
Cunha, Maria Amália de Almeida Cunha,
Marcelo Donizete da Silva.
Para iniciar a conversa... O Watu, esse rio que sustentou a nossa vida
às margens do rio Doce, entre Minas Gerais
e o Espírito Santo, numa extensão de
seiscentos quilômetros, está todo coberto
por um material tóxico que desceu de uma
barragem de contenção de resíduos, o que
nos deixou órfãos e acompanhando o rio
em coma [...] esse crime – que não pode ser
chamado de acidente – atingiu as nossas
vidas de maneira radical, nos colocando na
real condição de um mundo que acabou.
[...] Isso é um abismo, isso é uma queda [...]
já caímos em diferentes escalas e em
diferentes lugares do mundo.[...] Então,
talvez o que a gente tenha de fazer é
descobrir um paraquedas. Não eliminar a
queda, mas inventar e fabricar milhares de
paraquedas, coloridos, divertidos, inclusive
prazerosos (KRENAK, 2019).
Introdução
Este material produzido pela área de ciências humanas e sociais não
tem a pretensão de aprofundar e muito menos esgotar um tema tão
complexo e mais do que relevante. Nosso objetivo é um diálogo com
todos os sujeitos envolvidos neste projeto cuja temática assenta-se na
tríade Mineração, Rompimento e Revitalização, apostando na formação
de uma rede que possa ecoar nas escolas atingidas pelo Rompimento
da Barragem do Fundão (RBF), escolas do campo em sua grande
maioria.
Uma visão panorâmica do texto

1. Memória e História da Mineração no Estado na


perspectiva dos sujeitos comuns.

2. Impacto da Mineração na Escola.

3. Silenciamento: estigma, rótulo e preconceito.

4. Territórios: formação, conflitos e esperança.


1. Memória e História da Mineração no Estado na perspectiva dos
sujeitos comuns.

Os atingidos pelo RBF ao longo da Bacia do Rio Doce, como


sujeitos comuns das camadas populares, são homens e
mulheres, mineiros e mineiras do presente, trabalhadores e
trabalhadoras do campo, operários e operárias das
empresas mineradoras, mas não apenas. São também
sujeitos históricos, agentes da ação social, são indivíduos,
grupos e classes. Agem em grupo ou isoladamente e
produzem para si ou para uma coletividade.
Com isso, temos um ponto de partida
para que os temas ligados à
mineração, ao RBF e à revitalização da
Bacia do Rio Doce possam ser
analisados, ou seja, a partir da história
desses sujeitos é que nos
posicionamos para analisar o
presente. Tratamos, portanto, de uma
leitura da realidade,
“multiperspectivada e empática”
(Szlachta Junior; Ramos, 2021),
conferida pela apreensão dos saberes
históricos nos processos de ensino-
aprendizagem.
A memória sobre a tragédia...
No caso da população atingida pelo RBF, também possui assento na
construção dessa “consciência histórica” a memória sobre a tragédia
socioambiental decorrente da mineração. No contexto em que houve o
derramamento de 65 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério
de ferro, 41 municípios atingidos diretamente, três povoados
campesinos soterrados, cinco escolas prejudicadas em suas práticas
pedagógicas e 19 mortes (Tarja, 2018; Hunzicker, 2022), buscamos,
primeiramente, maneiras de lidar com o sofrimento experimentado
pelos atingidos. Essa situação de dor é o luto, resultado da mudança
abrupta no modo de vida, e relaciona-se às perdas ocorridas em
diferentes esferas: humanas, ambientais, culturais, sociais e outras.
A seleção e a elaboração das
memórias são processos do
presente, os quais buscam
atribuir respostas às
indagações de agora, em
função dos anseios atuais,
valorizando mais ou menos
os múltiplos objetos
pretéritos, ressignificando-
os, por fim.
A memória é uma construção social
A memória, como uma construção social, abundante de
conflitos e tensões, caracteriza-se por aquilo que foi
escolhido para ser lembrado, com vistas à perpetuação de
uma identidade cultural. Desde novembro de 2015, isso já
está sendo feito pelos múltiplos atores que têm se
relacionado com o RBF (Estado, sujeitos, mídias,
instituições, escolas, associações, organizações, etc.).
Para problematizar...

No caso das localidades e dos sujeitos que tiveram o curso de suas vidas alterado pelo derramamento da
lama tóxica, como as memórias (afetivas, familiares, da mineração, do local, do rompimento, entre outras)
serão resgatadas? Como a escola pode auxiliar nessa recuperação? Quais os papéis individuais e coletivos? E,
principalmente, como garantir que esse processo de recuperação esteja isento de violações, profanações e
indelicadezas de todo tipo?
Podemos pensar, por exemplo,
no tombamento das ruínas de
Bento Rodrigues como sítio
arqueológico de “patrimônio
de memória sensível” (ver
glossário ao final do texto),
ocorrido em 2019, a partir da
compreensão de que aquele
local e os objetos que ainda
existem ali foram
ressignificados de tal forma
pelo RBF que hoje nos contam
uma História e, por isso,
precisam ser preservados.
A amnésia na história dos excluídos

O historiador Ulpiano Meneses (1992, p. 18) utiliza-se do conceito de “amnésia


na história dos excluídos” para se referir à ação de silenciamento de mulheres,
crianças, minorias raciais e sociais, povos escravizados, loucos, trabalhadores e
oprimidos de todo tipo em um movimento de expropriação do direito de
pertencer a uma História. Esse silenciamento é repleto de significados e está
ligado à exploração de grupos considerados inferiores pelos detentores do poder
em diferentes sociedades, cabendo a nós a seguinte indagação:

Qual história possível da mineração no Estado de Minas Gerais, considerando o


protagonismo exercido pelas camadas mais populares da sociedade?
2. O impacto da
mineração na escola
O objetivo será o de analisar como
a atividade mineradora, impacta na
realidade da escola e influencia na
formação sociocultural de crianças,
jovens e adultos da região, de
modo especial da participação dos
atores na organização desta grande
rede de reflexão?
Questões para pensar:

1) Como os processos de organização da vida, no contexto da exploração das


mineradoras são absorvidos na escola, de modo especial nas escolas dos 41
municípios que margeiam o Rio Doce? 2) Com o RBF, quais foram e são os
impactos na formação da consciência dos jovens quanto à sua condição
histórico social? 3) Como a cultura da mineração influencia na produção do
pensamento dos jovens que se encontram marginalizados do processo social na
realidade dos municípios atingidos pela lama? 4) Quais os desafios da docência
para se pensar em projetos de vida para esses jovens, que se encontram em
processo de vulnerabilidade social e econômica? 5) Como os atores-rede podem
auxiliar na compreensão dos fatores que determinam a realidade dos/das
atingidos/atingidas pela mineração?
Somos convocados a compor
ações em curso, junto com os
mais diversos atores/atrizes de
movimentos sociais diversos, a
formar o que aqui nomeamos
de “redes engajadas” e
múltiplas, que se pautem pelos
diálogos e fortalecimentos
pedagógicos nas escolas, tendo
como fontes de trabalho,
suportes teóricos, políticos,
culturais, legais e
institucionais, a fazer uma
outra construção social, que
busque educar em coletivos, a
intervir de maneira perene e
diversa, entre atores diversos.
O que fazer?
Para a mineração não virar tema
complementar na “semana de
meio ambiente”, ou ficar
encantonada no currículo, o que
podemos fazer? Como transformar
a escola e seus sujeitos, alunos/as,
professores/as, gestores e
comunidade escolar, como atores
que dediquem parte dos seus
tempos de vida para estudar e
intervir junto à mineração que é
tão exploratória e impactante nas
vidas de centenas de milhares de
pessoas, nos mais diversos
territórios que compõem a bacia
do Rio Doce? Por onde
começamos?
Um primeiro passo é tomar a
decisão na escola, agendar no
calendário escolar – criar e pautar
a mineração em reuniões em dias
letivos, discutir internamente,
Algumas convidar especialistas, dialogar
com pais e mães afetados/as,
pistas... moradores/as e trabalhadores/as
da bacia do Rio Doce, e assim por
diante.
Superar o silêncio curricular se faz
superando o espontaneísmo. A escola,
assim agindo, construirá outro lugar e
função social, aqui indicamos o que
podemos chamar de um “engajamento
em redes”, ou “malhas político-
pedagógicas”, que visam dialogar,
aprender e tornar-se escola-protagonistas
vinculados à tantos movimentos
envolvidos na construção de uma vida
comum com dignidade, para o presente e
para o futuro. O que fazer em
coletividade, para impedir que novos
crimes ambientais se repitam?
3. Silenciamento:
estigma, rótulo e
preconceito
A lama que arrastou e soterrou lugares, rios, gente,
animais e uma vida inteira de trabalho continua a
produzir suas marcas. Aqueles que sobreviveram a um
dos maiores acidentes de trabalho ampliados (ver
glossário ao final do texto) da história, carregam consigo
o que Goffman (1966) chamou de “estigma” (ver
glossário ao final do texto). O autor define como
estigmatizado o indivíduo que apresenta um atributo
que o desqualifica em suas interações com outrem. Esse
atributo estabelece o descrédito, consiste em um desvio
em relação às expectativas normativas dos outros a
propósito de sua identidade.
Assim, emprestando de Goffman a
ideia do estigma, é possível
perceber o sofrimento social
vivenciado pela população
atingida, desde a pressão imposta
pelas mineradoras diante da luta
pela reparação, até o
cadastramento para as
indenizações e os olhares de
estranhamento dirigidos aos
atingidos.
O silenciamento pode ser percebido
como uma das consequências
vividas a partir de uma situação de
estigma. Goffman mostra
justamente como esses processos de
interação são constituídos de uma
profunda carga emocional: situações
que geram vergonha, desconforto,
medo e embaraço. São situações em
que os indivíduos se tornam
desacreditáveis.
4. Territórios: formação,
conflitos e esperança.
Os territórios são construídos
socialmente, são hierarquicamente
organizados e administrados pelos
poderes públicos, que regulam as
dinâmicas complexas da vida social,
que por sua vez, expressam
interesses comuns e divergentes,
gerando disputas diversas entre os
mundos privado produtivo e
público, ou seja, a dinâmica social
tem construído ao longo dos anos,
territorialidades em disputas.
• Os diversos territórios
são cartografados
representando
fronteiras próprias,
conformando
ordenamentos jurídicos,
econômicos e culturais.
Os territórios são
históricos, feitos de
passados e futuros
possíveis.
O rompimento do depósito de
rejeitos tóxicos, como ocorreu
em Mariana-MG, despejou cerca
de 65 milhões de metros cúbicos
de lama que invadiu e afetou
muitas cidades, zonas rurais,
matando pessoas, produziu
danos à saúde coletiva,
impactando moral, emocional e
psicologicamente milhares de
pessoas com meio de perdas
sociais e também para práticas
econômicas e culturais,
somando-se ainda a poluição de
rios, morte e adoecimentos de
animais, destruição e ou
contaminação da flora, por
centenas de quilômetros.
É nesse mesmo contexto, que
encontramos na sociedade brasileira e
estrangeiras, as mais diversas ações da
sociedade civil, são instituições também
privadas, poder público, escolas,
universidades, etc., formando o que aqui
nomeamos de “rede engajada”, que
interroga e se propõe a construção de um
outro mundo enquanto utopia possível
por meio da insuprimível esperança
humana.
Muitos dos autores citados neste material trazem
como questão justamente que para pensarmos
sobre a possibilidade de um novo recomeço é
necessário admitir que, hodiernamente, vivemos a
ausência de um mundo comum a compartilhar
(Latour, 2012; Krenak, 2019). Se não reservarmos
um lugar central à questão do clima e à sua
denegação, se não tivermos consciência de que
entramos em um Novo Regime Climático, não
poderemos compreender nem a explosão das
desigualdades, nem a amplitude das
Considerações finais desregulamentações, nem a crítica à globalização.
Latour diz que precisamos “aterrar” em algum
lugar e, para isso, a importância de uma espécie de
mapa das posições ditadas por essa nova paisagem
na qual são definidos não apenas os afetos da vida
pública, mas também as suas bases, pois a questão
climática está diretamente ligada à questão das
injustiças e das desigualdades.

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