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Anais

II Semana dos
Museus
da Univer de de São Paulo
II SEMANA DOS MUSEUS
30 de agosto a 03 de setembro de 1999

PROGRAMA

30 de agosto de 1999

S 8:30 horas
Apresentação do CORALUSP
Abertura pelo Magnífico Reitor Jacques Marcovitch

■S 9:00 às 10:00 horas


Conferência
Tema: “Acervo musealizado: realidade e desafios brasileiros”
Conferencista: Aracy Abreu Amaral (FAU/USP)
Composição da mesa: Maria de Lourdes Parreiras Horta (ICOM) e
Maria Cecília França Lourenço (CPC)

S 10:30 horas
Mesa Redonda
Tema: “Realidade e desafios dos acervos musealizados da USP”
Adilson Avansi de Abreu, José Sebastião Witter, José Teixeira Coelho Netto,
Miguel Trefaut Urbano Rodrigues, Paula Montero.

S 14:30 às 17:00 horas


Mesa-redonda: “Processo Museológico: critérios de exclusão”
Carlos Roberto Ferreira Brandão, Beatriz Góis Dantas, Luiz Fernando Dias
Duarte, Maria Célia Moura Santos, Maria Margaret Lopes.

31 de agosto de 1999

Atividades Setoriais:
MAC - Museu e Universidade (14:30 às 18:00 horas)
MAE - Arqueologia e Preservação Patrimonial (14:30 às 18:00 horas)
MP - Museus de História e Linguagens Museográflcas: Perspectivas
Interdisciplinares (14:30 às 18:00 horas)
MZ - Acervo Zoológico e Capacitação Profissional (9:00 às 18:00 horas)
1 de setembro de 1999

■S 9:00 às 11:00 horas


Mesa-redonda
Tema: “Formação de profissionais de museus: desafios para o próximo milênio”
Maria Cristina Oliveira Bruno, Pedro Paulo Abreu Funari,
Tereza Cristina Moletta Scheiner, Tereza Cristina Toledo de Paula.

■S 14:30 às 17:00 horas


Comunicações
Tema: “Formação de profissionais de museus: desafios para o próximo milênio”
Coordenação: Vera Maria Abreu Alencar (ICOM)

2 de setembro de 1999

■S 9:00 às 11:00 horas


Mesa-redonda
Tema: “Quantos anos faz o Brasil?”
Paulo Antonio Dantas de Blasis, Arno Alvarez Kern, Dennis Albert Moore,
Fernando Novaes

^ 14:30 às 17:00 horas


Comunicações
Tema: “Formação de profissionais de museus: desafios para o próximo milênio”
Coordenação: Magaly Oliveira Cabral (ICOM)

3 de setembro de 1999

■/ 9:00 horas
Entrega do Prêmio Preservando o Futuro. Museus

■S 9:30 horas
Conferência
Tema: “Futuro dos museus no próximo milênio”
Conferencista: Hemán Crespo Toral (Sub Diretor Geral para Cultura UNESCO)
Composição da mesa: Carlos Alberto Dêgelo (DEMA) Jacques Marcovitch (USP)

S 14:30 às 17:00 horas


Encerramento/Avaliação/Lançamentos

S a partir das 18:00 horas


Confraternização dos participantes
SUMÁRIO

11 A Tipologia dos Acervos da Universidade de São Paulo e seus Problemas


Adilson Avansi de Abreu

15 500 Anos de Carência


Aracy Abreu Amaral

23 Realidade e Desafios dos Acervos Musealizados da USP


Museu Paulista
José Sebastião Witter

27 Para um Museu Contemporâneo de Arte


José Teixeira Coelho Netto

31 Realidade e Desafios dos Acervos Musealizados da USP


Museu de Zoologia
Miguel Trefaut Urbano Rodrigues

35 Realidade e Desafios dos Acervos Musealizados da USP


Museu de Arqueologia e Etnologia
Paula Montero

37 Inclusão/Exclusão em Museus: Uma Abordagem Histórico-Cultural


Beatriz Góis Dantas

47 Processo Museológico: Critérios de Exclusão.


O Caso dos Museus de História Natural
Carlos Roberto Ferreira Brandão

59 Processos de Classificação Social nas Coleções de um Museu de Ciências:


O Caso do Museu Nacional, Rio de Janeiro
Luis Fernando Dias Duarte

65 Processo Museológico: Critérios de Exclusão


Maria Célia Moura Santos

73 Os Museus, esses Excluídos da História!


Maria Margaret Lopes

77 Formação em Museologia: Alguns Caminhos para a Especialização


Profissional
Maria Cristina Oli veira Bruno

81 Considerações sobre o Profissional de Museu e sua Formação


Pedro Paulo Abreu Funari

87 Formação de Profissionais de Museus: Desafios para o Próximo Milênio


Tereza Cristina Moletta Scheiner

Além do Politicamente Correto: O Museu Inteligente


Teresa Cristina Toledo de Paula
111 Comunicação: Museologia em Fim de Milênio: que o Passado Sirva de Lição
Ana Maria Gantois e Marcelo N. Bernardo da Cunha

115 Comunicação: Potencialidades Museológicas da USP:


Pesquisa e Formação Profissional
Andrea Paula dos Santos, Claudia Martini Ferrari e Janes Jorge

119 Comunicação: Reflexões sobre a Formação de Profissionais de Museus


- Dificuldades e Acertos na Implantação do Sistema Integrado de
Museus da Secretaria de Cultura do Estado do Pará
Rosangela Marques de Britto e Maria Angélica Meira

123 Descobertas e Colonizações do Brasil: Uma Síntese Sócio-Cultural Iberoindígena


Amo Alvarez Kern

129 Projeto de Documentação Lingüística do Museu Goeldi


Dennys Albert Moore

133 Brasil, 500,5.000,50.000 Anos: Afinal, Quantos Anos faz o Brasil?


Paulo Antonio Dantas De Blasis

139 Comunicação: Alternativas paraFormação de Profissionais da ÁreaMuseal:


O Caso da UFS
Hélia Maria de Paula Barreto

141 Comunicação: A Formação de Profissionais de Museus: O Papel dos Arqueólogos no


Processo Curatorial
Marisa Coutinho Afonso, Silvia Cristina M. Piedade, Dária Elânia Fernandes Barreto e José
Paulo Jacob

145 Comunicação: Centro de Referência em Arte Contemporânea:


uma Proposta de Trabalho e a Experiência do Arquivo e da Biblioteca do
Museu de Arte Contemporânea da USP
Silvana Karpinscki e Dina Elisabete Uliana

149 Futuro dos Museus no Próximo Milênio


Heman Crespo Toral
A TIPOLOGIA DOS ACERVOS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
, - Ê SEUS PROBLEMAS

Adilson Avansi de Abreu*

A Universidade de São Paulo tem incorporado no processo de eniiítóftffesquisa um conjunto


bastante diversificado de. coleções de natuieza científica, c u l q u e pode ser referenciado
de maneira ampla, como acervos museológicos. As ativida ) ou extrovcrsão baseadas
nestes acervos tij§jjg|n. potvni, um crescimento lentc^íle-micio, que começou a se acelerar na
década de setenta, tendo, nos anos noventa, regifcido aumento muito expressivo.

os em espaços sociais com loaajpliMf

É importante registrar que esse movimento, no contexto dos museus, seguiu-se ao


fortalecimento do fenômeno da chamada indústria cultural, cujas primeiras manifestações já
remontavam ao segundo pós-guerra. Esta indústria cultural produziria conhecimentos e valores
padronizados, segundo mecanismos que incluem forte presença do “marketing ”, com perspectivas
claramente globalizantes e dissociadas das classes sociais.

Assim, enquanto emergiram manifestações museológicas com forte objetivo educativo e


função social, ancoradas no espírito crítico, como os ecomuseus, por exemplo, do outro lado
surgiram também iniciativas, associadas à chamada indústria cultural, que aproveitaram, pelo
menos parcialmente, a inspiração daNova Museologia para produzir uma infinidade de parques
temáticos, com forte inserção na atividade econômica e pouco espírito crítico.

É, portanto, relevante considerai', que na Universidade o papel dos acervos museológicos


tem sido progressivamente valorizado no contexto proposto pela Nova Museologia, que destaca
seu papel educativo, no qual a crítica da realidade observada tem um forte componente que conduz
ao conhecimento cultural, artístico ou científico e à transformação das situações vivenciadas.

O acervo museológico que fornece bases para esta ação na Universidade de São Paulo
é bastante diferenciado, possuindo papéis distintos nos processos de ensino, pesquisa e extensão
de acordo com a unidade onde esteja sediado.

A parte mais visível do aceivo museológico da Universidade de São Paulo é, sem dúvida alguma,
a que está sob a responsabilidade dos quati'o museus que a integram, a saber: o Museu Paulista, o
Museu de Zoologia, o Museu de Arqueologia e Etnologia e o Museu de Arte Contemporânea.

Os acervos do MP, MZ e do MAE possuem sua origem em ações pioneiras no campo


da ciência e da cultura no Estado de São Paulo que remontam às últimas décadas do Século
XIX e primeiras do Século XX. Seu núcleo original vincula-se à coleção organizada pelo
Coronel Joaquim Sertório, doada ao Governo do Estado de São Paulo em 1890. Este acervo
ficou, de início, subordinado à Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo, criada
em 1886 sob a chefia do geólogo Orville A. Derby, tendo sido reorganizado por lei de 1893,
orginando o Museu Paulista, inaugurado em 7 de setembro de 1895.

De início o Museu Paulista foi organizado como Museu de História Natural, Arqueologia,
História e Etnografia. Com a fundação da Universidade de São Paulo, em 1934, ele foi articulado

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em seus quadros como Instituição Complementar. Sua organização teve evolução complexa e
seus acervos foram divididos entre diferentes Departamentos e Secretarias de Estado, sendo
progressivamente incorporados à Universidade de São Paulo, fundindo-se no caso do acervo
etnológico e etnográfico posteriormente, com outros acervos da Universidade. Assim em 1963 o
Museu Paulista passa a integrar a USP; em 1969 foi a vez do Museu do Zoologia ser incorporado a
ela e o Museu de Arqueologia e Etnologia, em sua conformação atual surge já nos quadros da
Universidade de São Paulo em 1989.

O Museu de Arte Contemporânea foi criado na Universidade em 1963, a partir da doação


de Francisco Matarazzo Sobrinho, que soube compreender o significado do ensino, da pesquisa
e da extensão a partir do conhecimento crítico da arte e da cultura contemporânea.

Além de passar o acervo pessoal formado por obras suas e de Yolanda Penteado, Ciccilo
Matarazzo, contrariando forças internas do próprio MAM/SP, oferece à Universidade de São Paulo
um patrimônio incomum de arte nacional e internacional. Atente-se que o desafio tem sido vivificar
um acervo extraordinário, se considerarmos que não enviou quaisquer obras, mas sim aquelas
premiadas nas seis primeiras Bienais, as mais significativas para muitos estudiosos do tema.

Observe-se que naquele momento o Museu de Arte de São Paulo procura sem sucesso, na
Europa, conjunto de similares modernistas, já bastante difíceis de serem localizados, enquanto a
Universidade de São Paulo recebe por um ato de confiança todo esse significativo patrimônio
para formar a coleção inaugural do Museu de Arte Contemporânea.

O discurso de Yolanda Penteado, amiga pessoal do então reitor Ulhoa Cintra, na ocasião
é contundente manifestando que o ato se destina ao aprimoramento do futuro do país, para ela
com razão depositado na esperança do desempenho das novas gerações, a serem formadas
pela Universidade.

Os acervos destes quatro museus, embora muito diversificados em face das especificidades
de cada conjunto seguem um modelo que poderia ser chamado de disciplinar e apresentam
como característica comum serem estatutariamente subordinados a Órgãos de Integração, que
por definição, devem explorar suas coleções valorizando seus aspectos interdisciplinares, que
favorecem os processos educativos integrados com as Unidades de Ensino e Pesquisa.

O número de coleções, artefatos e de peças dos acervos destes quatro museus é muito
elevado. As coleções foram organizadas já com perspectivas museológicas a partir de critérios
específicos e seria exaustivo, no momento, enumerá-las. À guisa de exemplo vale a pena,
todavia, registrar a origem e critérios de organização de um destes acervos, interessando, no caso,
ao campo da etnografia.

A formação do acervo etnográfico do Museu de Arqueologia e Etnologia remonta à coleção


Joaquim Sertório, já mencionada. Ela se expande, a partir de 1903, através de aquisição de especialistas,
missionários e pessoas diversas. É um acervo de inestimável valor histórico-documental e permite
estudos e pesquisas a partir de múltiplas vertentes científicas, técnicas, artísticas e estéticas.

Do ponto de vista histórico podem ser citadas como coleções importantes deste acervo,
dentre outras, as coleções C.H.Hofbauer (1904, Karajá); FranzAdams (1909, constituída à
rigor de quatro coleções, a saber: Karajá, Javaé, Kayapó do Araguaia e Guarani do litoral de
São Paulo); C.M.S.Rodon (1923, interessando a grupos do Alto Xingu), Bandeira Anhanguera
(1937, dedicada ao grupo Xavante), C.Lévi-Strauss (1938, sobre os Nambikwára), Irmã
Catarina de Oliveira (1937, Coleção Rio Negro), Instituto de Educação (1936, Bororo) e
J.J.Philipson (1948, Guarani-Kayová).

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Como exemplos de coleções sistemáticas, destacam-se várias organizadas por Harald
Schultz (entre 1942 e 1965, merecendo menção a dos Tukúna do Estado do Amazonas, Karajá
e Krahó do Estado do Tocantins, Waurá do Estado do Mato Grosso, Kaxináwa da fronteira do
Brasil com o Peru e Tukurina do Acre), Curt Nimuendaju [entre 1931 e 1936 interessando aos
Canela (Ramkokamekra)],J. Bach (datada de 1907, referente aos Tukano da bacia do Rio Uaupés),
R.Caron (entre 1968-1969, interessando aos Kayapó-Xikrin) e P.Frikel (1950, referente aos
Tiriyó do Pará e Suriname).

Já, de caráter temático, salientam-se as coleções plumárias munduruku dos Estados do


Amazonas e Pará e kaapór (urubu) do Maranhão, as coleções de máscaras tukúna e a coleção
cerâmica, notadamente bonecas dos Karajá.

Os acervos dos quatro museus, por outro lado, apresentam-se sob a ação curatorial de
quadros técnicos qualificados em todos os domínios do ciclo museológico (aquisição ou coleta
através de pesquisa, preservação, restauração, armazenamento, exposição e ação educativa).

Um outro grande conjunto de acervos museológicos da Universidade está incorporado às


diferentes Unidades de Ensino e Pesquisa, onde a estrutura organizacional tem privilegiado o
conhecimento expresso por suas estruturas curriculares do saber. São acervos, que frequentemente
são utilizados como instrumentos de educação ou pesquisa mais claramente voltados para uma
disciplina. Muitos destes acervos e coleções, inclusive, foram sendo formados por docentes que
associando fortemente o ensino e a pesquisa passaram a coletai' elementos para as atividades de
magistério durante seus trabalhos de campo ou laboratório.

Embora haja muitos exemplos destes tipos de coleções é interessante destacai' os casos
dos acervos museológicos do Instituto de Ciências Biomédicas e do Instituto de Geociências.

Nos dois casos o termo museu é aplicado em sentido bastante diferente do que se usa para
os quatro Órgãos de Integração anteriormente mencionados (MP, MZ, MAE e MAC). Nestes
casos ele designa uma organização acadêmico-administrativa subordinada diretamente à escola,
faculdade ou instituto. Assim no Instituto de Ciências Biomédicas localiza-se o Museu de
Anatomia Humana Professor Alfonso Bovero e no caso do Instituto de Geociências o Museu de
Geociências.

O Museu de Anatomia Humana foi constituído a partir da iniciativa do Prof. Alfonso


Bovero, contratado para a Cadeira de Anatomia Descritiva da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo em 1914. Sua preocupação com o rigor científico e a clareza das
aulas levou-o a se preocupai' com a criação de rica coleção de peças anatômicas, cuidadosamente
preparadas, através de diferentes técnicas. Este acervo foi sendo progressivamente ampliado,
sendo que hoje é integrado por 1.100 peças expostas, 300 peças guardadas na reserva técnica
e 400 crânios destinados à pesquisas nas áreas de Antropologia, Odontologia e Medicina.

Já o Museu de Geociências tem como núcleo original a coleção pertencente ao


Departamento de Minerologia e Paleontologia da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, que formava o chamado Museu de Minerologia, criado por iniciativa do Professor
Ettore Onorato. O acervo iniciou-se com a coleção Araújo Ferraz, tendo-se ampliado pro­
gressivamente através de doações e aquisições. De início seu uso principal era para o ensino
e pesquisa no campo da Minerologia e Cristalografia. Com a criação do curso de geologia em
1960, transformou-se também em laboratório para aulas práticas. A partir de 1981 foi
reestruturado, passando a incluir também em suas coleções amostras de rochas, gemas, me­
teoritos e fósseis. Seu acervo atual conta com 10.000 peças, das quais 5.000 integram a exposição
permanente.

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Um terceiro tipo de acervo de alto interesse, sediado também nas Unidades de Ensino
e Pesquisa, é definido por coleções muito variadas interessando à história da própria escola,
incluindo móveis, equipamentos laboratoriais, documentação fotográfica e artística, objetos pessoais
de professores e pesquisadores ilustres, procurando manter a memória da Escola e da própria
Universidade.

Um bom exemplo deste caso é o Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz, da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Este museu surgiu de uma decisão de 1977
da Congregação da Faculdade, que nomeou uma comissão para implantá-lo e, posteriormente,
dirigi-lo. Foi inaugurado em 5 de junho daquele ano, ocupando hoje uma área de aproxima­
damente 400 metros quadrados. Das salas que compõem sua exposição permanente merecem
destaque a dedicada aos aparelhos e instrumentais médicos, a consagrada ao fundador da
Faculdade, Arnaldo Vieira de Carvalho e as que rememoram os professores pioneiros e os
professores estrangeiros da Faculdade de Medicina.

Entre os três grandes conjuntos tipológicos mencionados, há um número expressivo de


situações intermediárias, entre as quais merece destaque o caso do Instituto de Estudos Brasi­
leiros que possui acervos no campo da arte e literatura que integram tipicamente coleções dos
padrões dos quatro Museus Estatutários.

Este conjunto complexo de acervos, aqui esquematicamente abordados, tem levantado


questões relevantes interessando aos mecanismos de extroversão e extensão do conhecimento,
revelando uma enorme potencialidade nos processos de interação da Universidade com a
Sociedade.

Neste sentido toda a Universidade está valorizando cada vez mais o papel educativo e
integrador do conhecimento a partir das diferentes coleções e acervos, o que está propiciando
um importante debate em torno de um novo conceito de museu para a Universidade. Desta
forma todas as Unidades e Órgãos de Integração da USP estão cada vez mais motivados a
discutir os processos de musealização de suas coleções e do conhecimento científico por elas
produzido, o que está conduzindo à discussão do chamado, ainda preliminarmente, de “Museu
de Ciências”.

Este verdadeiro despertar da Universidade para a vocação educativa do Museu, que


como instituição de ensino e pesquisa é mais antigo que a própria instituição universitária,
traz consigo a necessidade de se superar questões complexas na própria organização da
Universidade de São Paulo.

Sem dúvida alguma uma das grandes tarefas da Universidade nos próximos anos será
potencializar ao máximo a extroversão do conhecimento que ela produz, para atingir um
número significativo de cidadãos. Neste sentido as técnicas e processos museológicas serão
fundamentais, pois através de objetos e formalizações conceituais que ultrapassam os aspectos
materiais dos mesmos, pode-se atingir um público muito numeroso, que poderá mudai' suas
formas de percepção da realidade e agir de maneira crítica em função de uma melhoria de seu
nível de educação.

(*) Pró-Reitor de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo - USP.

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500 ANOS DE CARÊNCIA

Aracy Amaral*

novo modo de pensar e nos incite a descobrir quem somos em uma sociedade que se queira

há mais de cem anos e ainda identificada com os exclüídos ou desqualificados, grande parte
da marginália da população Brasileira? A total faíta de vontade política, aliada à espantosa
ausência de visão por parte de nossos políticos, sao os responsáveis pela situação em que se
encontra este país na área cultural.

Diz bem o escritor e antropólogo Antonio Risério que também percebe abandonada a
discussão dos problemas do Brasil pelo governo federal de hoje: “Esse governo não tem
política para a cultura”, na verdade, este seria o momento “de discutir qual é o nosso projeto de
civilização”, afirmou em recente declaração à imprensa.

Além do mais, as diversas regiões do Brasil continuamos sendo um arquipélago, culturalmente


falando, ilhas mais ou menos distantes ou próximas, com débil articulação, sem regularidade de
iniciativas que mantenham vínculos que esporadicamente se estabelecem.

Ausência de articulação cultural que também significa total desrespeito pelas classes
baixa e média, coletividade que paga impostos descontados na fonte, ao contrário de bancos
e empresas, que, é sabido, pouco ou nada pagam regularmente aos cofres federais. E o que se faz
para combater essa sonegação criminosa? Nada, ao que se saiba. Mas ninguém venha aventar a
hipótese de que no Brasil não há dinheiro. Há, e muito. A prova é a recuperação super-rápida do
país depois de uma crise anunciada como terrível, de conseqüências recessivas, que todos estamos
sentindo, sobretudo os inadimplentes e desempregados, olvidados do governo federal. Dinheiro há
e muito, pelo que se vê nas folhas de pagamento dos vereadores, deputados e senadores deste
país, grande parte comprometidas com interesses que não são benéficos para o povo sofrido, mas
respondem a interesses deles próprios. Quando se mencionam os benefícios escandalosamente
auferidos por juizes, vereadores, deputados, a total ausência de ética campeando por toda a parte,
com aviões da Força Aérea Brasileira sendo utilizados para tráfico de drogas em número de vôos
que pela imprensa, ao longo de meses chegam a dezoito, fatos denunciados sem que, em seu caso,
o ministro da Aeronáutica tivesse se suicidado, se demitido ou sido sumariamente exonerado por
sua responsabilidade moral pela pasta que respondia, a população que lê jornal fica paralisada.
Não se alegue falta de dinheiro, porque o dinheiro corre à solta, em suborno, em corrupção, em
viagens fictícias de vereadores em municípios brasileiros à custa do povão que paga sem o saber
todas essas faturas, calado, submisso como povo escravo, karma que se carrega por gerações sem
fim, desprovidas de qualquer dignidade.

Não se diga que não há projetos de circulação de exposições pelo país - pois nós mesmos já
apresentamos há quase dez anos um esboço de projeto, sem qualquer resposta por parte do
Ministério da Cultura - a tentar elevai' o nível de educação, cultura e mútuo conhecimento

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entre os Estados, tentativa de profissionalizar as equipes profissionais dos museus tão desiguais
deste país desmuseisado. Pois o Ministério da Cultura aparentemente desconhece a importância de
museus devidamente estruturados para a educação, o desenvolvimento do turismo interno, assim
como ignora a premência da auto-afirmação de um povo através de exposições bem realizadas por
todo o país, a fim de projetar nossa cultura, nossa gente, e a cultura de demais povos deste mundo
cada vez menor.

Vão ser celebrados os 500 anos de descobrimento pelos portugueses de um território,


hoje país, que possui uma capital jovem, que cumprirá quarenta anos. Quarenta anos sem que
possua sequer um museu digno deste nome para a visitação pública ou do turismo estrangeiro
em visita a Brasília. Não há um museu de História do Homem Brasileiro, assim como não há
um museu de arte, ou um museu das primeiras populações que viveram em nosso território.
Como explicai' ou justificar tamanha indiferença ou omissão?

Difícil que tenhamos esperanças, pois numa época em que temos como presidente um
político oriundo da mais prestigiosa universidade do país, e um ministro da Cultura idem,
depois de cinco anos de gestão, nada foi feito nesse sentido, embora comissões e promessas
tenham sido assinaladas. Falta vontade política, secundando o “projeto” que possibilite
desencadeai' essa construção.

A que comemoração desejam que façamos referência na área museológica ? É difícil acenar
com esperanças à parcela do povo sequioso por auto-respeito quando depois de décadas temos
somente agora um presidente professor universitário, em quem se depositaram todas as esperanças
de ver à frente do país alguém que tivesse um pouco de sensibilidade para com a educação e a
cultura. E no entanto, não percebemos por parte deste governo nenhuma ênfase num projeto de
desenvolvimento da auto-imagem do povo brasileiro, que sabemos carente de tudo, sobretudo de
emprego, de comida, de assistência de saúde, de dignidade. Será que os membros do govemo não
lêem os jornais, não saem às mas, não percebem o estado da população? É como um enigma.
Talvez nossos governantes se sintam impotentes, diante do tudo por fazer, da corrupção por todos
os lados.

Mas, como conceber um país da dimensão territorial do Brasil com uma capital federal
desprovida de museu, uma entidade que fosse referente a nós mesmos, pólo de identidade, ou
referente às realizações significativas dos outros que nos rodeiam no mundo? Que fosse um
museu histórico, um museu de arte, um museu do homem brasileiro - esta mescla inédita no
mundo de tantas raças e procedências - ou aos povoadores desconhecidos, anteriores em muitos
séculos à presença do ibérico. Ou um Museu do índio, escravizado, acuado, empurrado para o
sertão e para o centro-oeste, e que ainda hoje vaga como mendigo pelo território do Brasil em
nações indígenas que pouco contato têm entre si, em condição denigrante aos olhos de uma
Constituição digna desse nome? Mas até que houve um projeto para um museu de arte popular
brasileira logo após a inauguração de Brasília, porém o projeto foi esquecido, olvidado em meio
à política brasiliense. Até que houve um projeto - realizado, construído - por Niemeyer, é claro,
para um museu do índio, também engavetado, depois cobiçado para ser usado para um museu
de arte contemporânea, espaço que eu saiba abandonado até hoje. Se não o fizeram foi porque
os índios, mais mobilizados que os cidadãos ditos brasileiros fizeram uma pajelança no local, o
que atemorizou as autoridades a fazer uso indevido do espaço a eles reservado. Até que esboçaram
um museu de arte moderna ou contemporânea, que nunca, de fato, arribou, nunca se constituiu
como uma entidade museológica realmente respeitável e atuante no contexto da cidade, embora
tenha sido criado um prêmio nacional que na época de sua implantação - inícios dos anos 90 -
parecia realmente alviçareiro para a classe artística, e interessante para a constituição de uma
coleção possível de arte do fim deste século.

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Porque essa dificuldade em projetar, criar, implantar e dar solidez à cultura na nova capital?
Por um lado, claro está, para não retirar do Rio de Janeiro - a capital por excelência do século
XIX e da primeira metade do seculo XX - suas instituições culturais, pois a grita seria insuportável
para o governo, e talvez impensável transportai' para o planalto ainda meio desértico o patrimônio
da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional, do Museu Nacional de Belas Artes.

Mas nunca se mencione falta de meios. Pois os edifícios públicos, a exemplo dos tribunais
de justiça de Brasília se impõem como se “essa” - a arquitetura suntuária dos tribunais - fosse a
nossa cultura, “cultura” cenográfica de custo nababesco por suas construções. Falta vontade política,
repetimos. Pois não faltam cérebros: aí estão hoje mesmo personalidades como Ferreira Gullar,
Antonio Cândido, Roberto Schwartz, Celso Furtado, Alfredo Bosi, Afonso Ávila, entre tantos,
que sempre pensaram o Brasil a partir de suas realidades, e não a partir de cabeças de burocratas
assentados em seus cargos do ilusório poder efêmero. Mas a ausência de museus na capital federal
é vista de outra forma por um intelectual como Horácio Costa, que não deixa de enfatizai' que “Os
museus são hoje, espaços de alta importância, não só porque neles está uma parte do arquivo
milenar, estável, dos povos, mas também porque, nas últimas décadas, seus espaços passaram a
ser propositivos, transformadores, vivos . Isto é, espaços de resgate e geradores de humanidade”.
Dai porque, “Realmente, hoje em dia, os museus representam tão bem ou talvez, melhor, o espírito
do espaço urbano coletivo, a ágora ateniense. Hoje em dia, uma cidade sem museus não pode
esperai' desenvolver o espírito cidadão de seus habitantes. Mutatis mutandi, uma cidade sem museus
parece querer dizer que tem medo do espírito cidadão de seus habitantes”.2

No momento em que me enviam para revisão este texto vemos publicado no O Estado
de S. Paulo sob o sugestivo título de “Jogo rápido”, nota sobre a concordância de Niemeyer
em rever seu “projeto para o Museu nacional de Brasília, que será construído no terreno vago
ao lado da catedral”, “para ficar pronto em abril de 2001”.3

Pediram-me uma palestra sobre os museus e a problemática de seus acervos. Como esquecer
todos estes temas circunstanciais, que nos afetam, nos chocam, nos impactam no dia a dia? Como
aceitai'matérias ingênuas ou irresponsáveis que nos apresentam os jornais sobre o mérito de doações
a museus? Inchai' os depósitos de museus de doações que jamais ou pouco serão exibidas não é
mérito de diretor algum de museu, nem tampouco para artista algum, ansioso por desocupai' um
espaço com um trabalho de grandes dimensões de seu ateliê. Depois de dirigir dois museus durante
oito anos creio apenas na aceitação de doações de obras quando elas estão rigorosamente dentro
da relação preparada por uma comissão técnica do museu - e aprovada por seu Conselho ou órgão
que o eqüivalha, e não somente por uma pessoa - de obras faltantes de determinado artista, ou de
certa fase ausente da coleção do museu. Do contrário, aceitar por aceitar, para posteriormente
declarar um aumento quantitativo de obras, ou para beneficiai' a veleidade de um artista que pode
colocai' em seu currículo que possui obras em determinada instituição, isso não tem nenhuma
significação positiva. Pelo contrário: é ônus para o Estado, pois toda obra que entra em um acervo
significa investimento em pesquisa, conservação, preservação, divulgação.

Comemorai' o quê do ponto de vista de museus para nossos 500 anos da chegada de
portugueses em nosso litoral? Nestor Garcia Canclini já fez referência à “quase ausência de
museus em nossos países” no caso da América Latina, “como sintoma de nossa relação com
o passado e do contexto no qual se realizam as tentativas modernizadoras. Revela, é claro, o
descaso com a memória. Mas também a falta de outra função mais sutil dos museus: construir
uma relação de continuidade hierarquizada com os antecedentes da própria sociedade”.4

Como falai' sem constrangimentos sobre museus, acervos de museus, luta por implantação
de cadeira de profissionais em museus, curadorias, num país que tem a ousadia de desativai' um

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museu como o Museu de Arte Modema do Rio de Janeiro, durante vários dias a fim de em seu
espaço sediar uma cúpula de chefes de govemo? Por mais relevante que tenha sido, ou que seja,
tal encontro para a cidade, para o país, como imaginar o Metropolitan de Nova York, ou o
MOMA, ou o Whitney, ou o Museu D’Orsay, ou o Louvre, ou o Museu do Prado, ou seja lá
qual seja o museu do mundo culto, retirando suas coleções, fechando suas portas para o seu
público habitual - que, sabem esses países, é um público que gera turismo, gera divulgação de
sua cultura e de sua arte - para que políticos se reunam por alguns dias? Por mais benefícios
físicos - reformas, paisagismo, consertos nas instalações, etc. - com que, imaginamos, o MAM-
Rio teria “lucrado” ao sediar esse encontro, consideramos impensável essa ocorrência em outro
centro urbano. Só no Brasil. É necessário um espaço especial por razões de segurança? Quem
sabe o museu pode atender melhor que outro imóvel. Inimaginável. Que buscassem outro palácio,
outra cidade, um edifício de tradição de hotelaria, por exemplo, como Quitandinha, por exemplo,
distante do buliçoso centro carioca, para essa reunião. Talvez o prefeito do Rio de Janeiro tenha
considerado um privilegio para a capital fluminense essa escolha de sua cidade. Porém, do
ponto de vista cultural e museológico a nosso ver resultou em comprovante a mais do descaso,
indiferença pela cultura, assim como pelo uso descartável do edifício e segurança do museu.
Afinal, para políticos, o que é um museu senão um mero ajuntamento de objetos para fins de
lazer discutível?

Pior ainda ocorreu, a nosso ver, nesse encontro de cúpula do Rio de Janeiro. Segundo
noticiavam os jornais logo após seu encerramento, a desmontagem do Museu de Arte Moderna
como local da chamada Cimeira, assinalava nossa pobreza enquanto patrimônio cultural, pois
foram utilizados móveis de decoradores e antiquários para impor um aspecto de nobreza ao
local da reunião. E pior ainda: móveis do tempo do Império, e ainda arcas e aparadores datados
dos séculos XVn e XVIII, mereceram atenção especial para serem levados de volta ao Museu
Histórico Nacional e ao Museu do Açude após o término do encontro. Ou seja: o desrespeito
não foi apenas para com o espaço desvirtuado do Museu de Arte Modema, porém abrangeu
outras entidades que se curvaram, aparentemente - por razões que desconhecemos - às
solicitações oficiais.5

A Pinacoteca do Estado de São Paulo é outro caso a ser analisado. Seu espaço já está
reformulado: imponente, grandioso, talvez o melhor espaço museológico de São Paulo hoje em
dia. Agora, a coleção. Como compor, formar uma coleção? Por certo não pode resultar da vontade
e gosto subjetivo de uma só pessoa, porém de uma pequena comissão de elevado nível que
assinalasse as lacunas mais graves da coleção existente e relacionasse as obras que precisassem
ser adquiridas a partir de um critério para esse acervo (arte nacional ou internacional?) No Brasil
sempre pareceu mais fácil, infinitamente mais fácil, construir um edifício dito para museu que
estabelecer um conceito de museu a ser implantado (talvez a única estranhíssima exceção seja o
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, porque a Universidade não tem
interesse por cultura, perdoem-me, porém em seus cursos e faculdades. Pois recebeu em 1962 de
Francisco Matarazzo Sobrinho - e depois com doações deste industrial e de Yolanda Penteado -
um acervo que honraria qualquer museu do mundo ocidental, e nunca se preocupou em de fato
realizar a construção de um espaço físico condizente com o valor dessa coleção, nem tampouco
em dar-lhe um orçamento anual para a continuidade do enriquecimento de seu acervo (repetimos:
doações, aquisições esporádicas, não significam atuação regulai-. Daí porque durante nossa gestão
frente ao MAC-USP criamos a Associação de Amigos do MAC, a primeira associação de amigos
de museus de São Paulo, ao que saibamos. Para tentar agilizar a obtenção de recursos fora da
Universidade). A razão pela qual desejamos trazer o MAC inteiro - e não apenas parte - para
dentro do campus foi igualmente para ver se era possível criai-uma empatia até então inexistente
entre a comunidade universitária e esse museu fruto da generosidade de Matarazzo Sobrinho.
Estávamos enganados. A Universidade não se motivou com a vinda do Museu para o campus. E

18
os diretores que nos sucederam mantiveram duas sedes para o MAC da USP, e hoje, embora
reconheçamos que o lugar de fato do MAC é na cidade, e não dentro do espaço da Universidade
indiferente, ainda hoje é difícil enfrentar a possibilidade de projetai' e construir um edifício específico
para o MAC. No entanto, uma coleção nascente, diminuta embora se comparada com a do Museu
de Arte Contemporânea, se bem que com um critério estabelecido, como a de Constantini, em
Buenos Aires, abre um concurso internacional para sediar o novo acervo, e dá inicio orgulhosamente
às obras (e não se diga que a Argentina, ou a iniciativa privada argentina estão em condições
melhores que as do Brasil). Porque a cada dia que passa nossos países latino-americanos se
assemelham mais em crise, pobreza, violência pelo narco-tráfico, corrupção, injustiça social,
impunidade. No entanto, acabo de chegai' da Colômbia onde participei de um júri de artes visuais
patrocinado pela Municipalidade de Bogotá, vejam bem, um país em gueixa civil, praticamente,
pela existência da guerrilha há 40 anos, mas onde a cultura tem seu lugar preservado, estimulado
pela autoridades, em qualquer circunstancia.

Falar de acervos? Novamente me vem à idéia de um grande museu para São Paulo,
conforme escrevi na Folha de S.Paulo há dez anos. Um museu que reunisse os acervos de
arqueologia - o capítulo mais desconhecido e por essa mesma razão o mais intrigante de
nossas artes visuais arte indígena, arte colonial (com outras peças, sem tocar em nosso belo
Museu de Arte Sacra, bem entendido), século XIX, e arte contemporânea. Um museu com
departamentos autônomos, esplendidamente montados, a exemplo dos museus que há décadas
concebe e realiza o arquiteto Iker Larrauri para o México. E , porque não ? Em arquitetura
que se construísse a partir de um concurso internacional de arquitetos, e não algo que nos
trouxesse novamente como espaço aquele concebido poeticamente por um Oscar Niemeyer -
que teve seu tempo áureo nos anos 40 e 50 - mas que não possui mais concentração para
pensar um museu a partir de um conceito ou uma coleção dada. Estas coleções que menciono
e podem parecer utópicas, poderiam ser localizadas em mãos de particulares por todo o país,
adquiridas gradualmente, como o fez um jovem museu como o Getty, na Califórnia.

É preciso que São Paulo se dê conta de que talvez um grande museu pode ser um
atrativo maior que um estilhaçamento de pequenos museus e coleções, e que um museu bem
montado pode gerar divisas, tomar-se um centro de atração turística, gerar empregos, gerar
qualificação para profissionais, gerai' pesquisa e curadoria dentro e fora do país.

Em termos de Brasil continuo com a obsessão de um programa de circulação de


exposições permanentes pelos diversos Estados do país, de forma alternada, buscando atender
a algumas de nossas imensas carências de cultura. Se tivéssemos pelo menos quatro grandes
exposições que circulassem por entidades museológicas por ano, em projeto que pudesse
dotar museus de um mínimo de mão de obra qualificada ou a qualificar para esse fim, espaços
físicos a serem adaptados igualmente para essa finalidade, exposições que nutrissem as
expectativas dos bem jovens e adolescentes para outros lazeres que não fossem o simples e
mecânico perambular por shopping centers, então creio que teríamos algo a oferecer em política
cultural na área de museus ao país.

E que dizer, neste final de século, do Museu de Arte Assis Chateaubriand, de São
Paulo? Museu com um acervo riquíssimo em arte européia de todos os tempos - depois dele,
em qualidade somente o Museu Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires ou os acervos
ricos em pintura colonial seja no Peru, como no México, em suas múltiplas instituições tão
ricas. - Mas que dizer do estado atual das atividades do MASP, museu parado no tempo e no
espaço, sem um projeto cultural definido, sem uma orientação profissional à sua frente, embora
localizado no melhor local da cidade? É o que se comenta, a cultura parece ter mudado de mãos
em nossos dias, e o que ainda na década de 80 era domínio de museus passou hoje para entidades

19
culturais ligadas a empresas, como bancos, SESC, SENAI, etc. O que não significa uma
diminuição de atividades porém por certo um certo desamparo para a área museológica, não
atendida do ponto de vista de formação de carreiras de profissionais nas diversas entidades.

Paralelamente aos museus, saindo um pouco do tema que nos reúne aqui, como explicar,
dentro da inexistência de um projeto cultural para o Brasil, a ausência de um, ou dois, ou três, pela
dimensão física deste país-arquipélago, Corpo de Baile Nacional, permanente em Brasília, num
país tão musical, tão criativo em dança, tão saboroso e pleno de ritmos ? Não há um turista que
deixe de apreciar, na Cidade do México em sua primeira visita, a riqueza das danças e ritmos das
diversas regiões do país. Todos já tivemos ocasião de antever, seja com o grupo Corpo, de Belo
Horizonte, seja com o grupo de J. C. Viola,6 de São Paulo, exemplos da excelência, do prazer e da
beleza da dança através da criação de um grupo permanente, patrocinado pelo Estado, que
divulgasse, em alto nível, com um, ou dois corpos de baile regulares e circulantes pelo país, a
maravilha de nossa criatividade. Que, afinal, não é só futebol e carnaval. O custo dessas iniciativas
mencionadas seria uma parcela ínfima do que o governo dispende anualmente em milhões de
dólares, em publicidade institucional. E seria um dado positivo para a imagem tão arranhada do
país, ao mesmo tempo que abriria frentes de trabalho permanentes - tanto ao nível de exposições
circulantes como ao nível de um Corpo Nacional de Baile - que só reergueriam nossa imagem,
dentro e fora do país.

(*) Departamento de História e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU/USP.


(1) “500 anos/ Greca recebe ‘hino’de Chitãozinho e Xororó/ ‘Chacrinha’ do Planalto exalta neocaipirismo”, Folha
de S. Paulo, 17 jul. 1999.
(2) Horacio Costa, “Carta de Brasil. Brasilia: una ciudad sin museos y con políticos”, Cuademos hispanoamericanos,
numero 587, Madrid, mai. 1999, p. 115. Por outro lado, como comemorar a cultura neste territorio que nos envergonha
à simples observação de novos sêlos de Correio, concebidos como se não projetassem a imagem do país, tal
como se vê recentemente em tiragem sobre frutas brasileiras, mal realizados, de qualidade inferior como nossas
moedas sem peso, ou nossas notas de reais. Como desejar exibir respeitabilidade a um papel-moeda de tão
baixa qualidade, quando um dólar tambem em papel-moeda tem a resistência para anos e anos de circulação,
exemplo de permanência e qualidade ? Não se póde ficar permanentemente na aceitação da frase de Simon
Bolívar no século passado (“el vino de banano és amargo pero és nuestro”) porém na exigencia de dias melhores.
(3) A nota acrescenta que Niemeyer deve se reunir em breve com os ministros Greca e Weffort, “que querem
um projeto simples e de construção rápida” . Qual o conceito para a formação do acervo desse museu? Talvez para
os políticos esse seja um dado secundário, porquanto menciona-se apenas que abrigará em seu “acervo tesouros
escondidos nos cofres do Banco Central, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica, como os três imensos painéis
de Portinari sobre o café, que pertenciam ao Bamerindus, ou a coleção de marfins comprada por Getúlio Vargas,
ou as 12 telas contemporâneas que Portugal vai mandar ao Brasil junto com a carta de Pero Vaz de Caminha”.0
Estado de S.Paulo/Caderno 2, S.Paulo, 9 ago.1999, p. D5.
(4) Nestor Garcia Canclini, “Culturas híbridas/Estrategias poara entrar e sair da modernidade”, trad. Ana Regina
Lessa/Heloisa Pizza Cintrão, EDUSP, São Paulo, 1998, p .141. Acrescenta ainda nesse parágrafo o sociólogo
argentino radicado no México, país de ampla e excepcional tradição museológica no contexto latino-americano:
“O agrupamento de objetos e imagens por salas, uma para cada século ou período, reconstrói visualmente os
cenários históricos, toma-os quase simultâneos. Uma museografia rigorosa destaca as etapas decisivas na fundação
ou na transformação de uma sociedade, propõe explicações e chaves de interpretação para o presente”.

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(5) “Entre as preciosidades que decoraram a sala utilizada pelos presidentes estavam uma mesa de centro que
pertencia à casa de D Jo ão VI, em Paquetá, e uma mesa datada do século XIX que era da princesa Isabel”. Ver
“Governo desmonta estrutura da Cimeira”, O Estado de S.Paulo, 1 jul. 1999. “Sofás, poltronas, tapetes, mesas
e cadeiras foram devolvidos a lojas de docração e antiquarios”, diz ainda a reportagem. Sem falar nas 3 mil cadeiras,
mil lixeiras, 400 mesas e 180 armários mencionados na referida matéria que acrescenta que a companhia de
limpeza urbana recolheu nada menos que “ 160 toneladas de lixo”, equivalente “ao volume removido em oito
jogos de final de campeonado no M aracanã”. Isso tudo sem falar nas varredeiras mecânicas
e jateadeiras de alta pressão utilizados para a limpeza pós-Cimeira, no recinto do Museu. Será que toda essa confusão
não afetaria de algum modo o já combalido acervo do MAM-RJ ? Estaria um colecionador como Gilberto
Chateaubriand, doador da coleção de arte brasileira do MAM de acordo com essa utilização do espaço do museu ? E
a equipe de profissionais do museu ?
(6) O Rio Grande do Sul e a Bahia, dois Estados ciosos de suas tradições, pesquisam e exibem suas danças,
porem a nivel regional, sem um amplo leque demonstrativo da riqueza de danças e ritmos de todo o país.

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REALIDADES E DESAFIOS DOS ACERVOS MUSEALIZADOS DA
USP - MUSEU PAULISTA

José Sebastião Witter*

Talvez o maior desafio de um tema como este seja encontrai', dentro da realidade atual, os
desafios que se apresentam a uma instituição universitária do porte da USP e a manutenção de
seus quatro grandes museus e das inúmeras coleções preservadas%m diferentes unidades de ensino
da Universidade.
\ \ 9
Embora a questão dos museus dentro da universidade seja sempre polêmica e o papel dos
museus, muito discutido, creio que é fundamental que se reserve um espaço, ainda que pe­
queno, para falai' de forma bem ampla dos museus e das universidades. E, dentro delas, do papel
educativo das instituições müseológicas. Então, teríamos ,qüe volver no tempo e buscai- todo o
significado da palavra “museu”. Os gregos antigos definiram os museus, primeiramente, como um
centro de aprendizagem, cornPnos ensina Janet W. Solinger, em seu artigo “Museums and
University - Choices”, um dos trabalhos inseridos no livro Museums anel Universities - New
Pathsfor Continuing Education, 1 de que ela é a editora. E, se fosse meu objetivo, poderia
acompanhar o pensamento de Solinger, mostrando a função dos museus gregos como lugares
destinados ao desenvolvimento dos aspectos intelectuais e educacionais. E poderíamos, ainda,
buscar elementos na biblioteca de Alexandria, que sediou em suas dependências um dos
primeiros museus. Seria ainda interessante lembrar a evolução do conceito e as experiências
notáveis com as instituições müseológicas, nos séculos XVII e XVIII, até chegar às definições e
consolidações das estruturas estabelecidas no século XIX.

Acrescento ainda o pensamento de Robert H. Dyson, Jr., que em seu artigo “Public
Education - The Experience of the University Museum at the University of Pensylvannia”2
diz: “Os museus das universidades são tão diferentes uns dos outros como as conchas numa
praia. Cada museu reflete sua única e própria história, as ambições de seus fundadores, a
riqueza de seus recursos e o objetivo de seus administradores”. Imaginem o quanto se poderia refletir
sobre o exposto e quanto de verdade existe neste pensamento, que pode servir para que todos os
museus e, ao mesmo tempo, cada um dos museus da USP nele se enquadrem.

Embora três dos quatro museus da USP tenham a mesma origem - na Comissão Geo­
gráfica e Geológica (Museu Paulista, Museu de Zoologia e Museu de Arqueologia e Etnologia)
-, cada um deles, ao se desmembrai' em tempos e épocas diferentes, acabou por seguir seus
próprios e diferenciados caminhos. O único que nasce e sempre foi ímpar é o Museu de Arte
Contemporânea. Estou, é claro, pensando somente naquelas instituições consagradas como
museus na universidade e não me preocupo, no momento, com as demais coleções.

Isto posto, detenho-me a partir de agora no Museu Paulista da Universidade de São Paulo,
que é o Museu do Ipiranga pàra a maioria dos paulistanos, e na sua extensão - o Museu
Republicano “Convenção de Itu”.

Não é necessário repetir, porém é necessário reiterai' o fato de ser o Museu Paulista-USP
uma instituição centenária e concebida, como instituição museológica, no final do século XIX.
Embora seus acervos atuais tenham um valor incontestável, é fundamental que se destaque o valor
de seu objeto tridimensional mais valoroso: o próprio edifício, que contém as diferentes coleções
de documentos e objetos, em quantidade significativa e de qualidade indiscutível. Sobre o prédio,
já escrevia Marie Robinson Wright em 1902, citada por Maria José Elias em texto publicado
no livro O Museu Paulista da Universidade de São Paulo, editado pelo Banco Safra em 1984:

23
“...o principal ponto de atração de todos os visitantes da cidade é o Ipiranga, o magnífico
monumento erigido em 1885 no lugar onde foi proclamada a Independência do Brasil em
1822. É a mais bela realização da arquitetura brasileira”. E esta observação do início do
século continua até o presente. Para constatar esta afirmativa, basta acompanhar as diferentes
opiniões de articulistas e repórteres de diversos órgãos de comunicação, nestes últimos quatro
anos de história do Museu.

O Edifício do Museu Paulista, de construção sólida e beleza indiscutível, idealizado e


construído por Tommaso Gaudêncio Bezzi tem resistido ao tempo e até às dificuldades de re­
cursos financeiros para sua manutenção. Nestes últimos anos, com o apoio institucional da FIESP
- Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo e Universidade de São Paulo, o prédio passou por profundas e cri­
teriosas intervenções, o que garante sua integridade. Totalmente recuperado, desde os telhados
de cobre até os porões; com modernas e recuperadas instalações elétricas, pode-se dizer que
ao edifício só falta a construção de um novo anexo ou a incoiporação de algum outro edifício
como extensão física do prédio para que o Museu do Ipiranga venha a ser uma instituição
completa, no seu futuro próximo.

Tanto o Museu Paulista quanto sua extensão ituana necessitam desse elemento arquite­
tônico adicional paia poderem melhor atender ao seu público visitante.

Em São Paulo, depois da iluminação do próprio edifício, num projeto USP-SIEMENS,


que se completará em outubro-novembro de 1999, obrigatoriamente aquilo que, hoje, consiste
nos “bastidores do museu” deverá ser visitado, em dias normais, pelos freqüentadores. Este
talvez seja o maior desafio do Museu Paulista, o de dotar dois novos edifícios de condições ade­
quadas para receber seus laboratórios e toda a burocracia, além de auditórios apropriados para
pequenos, médios e grandes eventos, tanto nas áreas acadêmicas e científicas, quanto nas ma­
nifestações culturais. Sem, naturalmente, deixar de lado as chamadas “praças de refeição”, que
seriam novos atrativos para a maior permanência do público. A integração, nesse momento, será
total com o Parque e o Monumento construído nas proximidades do riacho Ipiranga. O edifício-
extensão, moderno ou não, se impõe para a consolidação definitiva do Museu Paulista na vida
paulistana, com repercussão nacional e internacional.

O acervo do Museu Paulista teve sua origem, como é sobejamente conhecido, na coleção
pertencente ao coronel Joaquim Sertório, rico paulistano que conseguiu, embora sem fins científicos,
reunir espécimes diferenciados de História Natural, além de peças de diferentes gêneros, como
objetos indígenas, moedas, jornais, manuscritos, além de armas e outras curiosidades. Salien-
tem-se, entre estas, indumentária e paramentos do padre Feijó, a cadeirinha da marquesa de
Santos, a espada de Rafael Tobias de Aguiar. Esta coleção, conhecida como “Museu Sertório”,
acabou sendo adquirida, em 1890, pelo conselheiro Francisco de Paula Mayrink e oferecida ao
governo do Estado, que acabaria por repassá-la ao Museu Paulista, criado em 1893 e aberto ao
público em 1895. Era o princípio de tudo.

De museu enciclopédico a museu histórico universitário foi uma longa caminhada, e


agora, no final do século XX e limiar do 3.° milênio, dentro da realidade museológica atual,
estabelecem-se os desafios da continuidade e renovação, tanto na área documental quanto na de
objetos e iconografia.

Na área dos objetos não basta, como já aconteceu, a recuperação das maquetes do edifício
(exposta em sala especial) e da cidade de São Paulo no ano de 1841 (também em sala especial).
Exige-se a continuidade da política de aquisições que permitiu, no setor documental, adquirir:

24
com o apoio da Fundação Roberto Marinho, o acervo de Militão de Azevedo; o da Ferrovia Madeira
Mamoré, por intermédio do BNDES e o de Carlos Eugênio Marcondes de Moura, com o apoio
do BANESPA. Essas aquisições e as exposições montadas a partir' delas têm contribuído para que
inúmeras pequenas coleções de fotos e também de objetos sejam doadas ao museu. Isto sem
falar na grande doação das coleções dos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, em 1996.
Todas essas novas aquisições e o que elas representam acabaram estimulando a área de pesquisas,
tanto por parte de pesquisadores do próprio museu como de outras instituições, ligadas ou não
à USP. A abertura das coleções documentais e dos acervos de objetos à pesquisa são fatores
determinantes na revalorização do Museu Paulista e do Museu Republicano “Convenção de Itu”.

Tudo o que compõe os acervos do Museu Paulista - com elementos do período colonial
- imperial e republicano - e os de Itu, marcadamente com peças republicanas, são a realidade
atual. Os desafios do futuro serão, na verdade, uma mudança significativa no nosso modo de olhar
e vivenciar, por meio de novas abordagens, os objetos da História e o rever dos estudos do co­
tidiano.

Bibliografia

JANET W. Solinger (ed.). 1989. M useum and Universities New Patlis fo r Continuing Education. NUCEA -
National University Continuing Education Association - Americam Council on Education Macmillan Publishing
Company, Nova York, pp. 1 e 3.
ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Vol. 1, Memória —História. Imp. Nacional e Casa da Moeda. Ed. portuguesa.
MARQUES DE PAIVA (ed.). O Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Banco Safra, 1984.
LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História - Novas Abordagens. Liv. Francisco Alves Ed. Rio de Janeiro,
1976, 1988.
LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo, Martins Fontes, 1990.
Museu Paulista - um M onumento no Ipiranga, 1997.

(*) Diretor do Museu Paulista da Universidade de São Paulo - MP/USP.


(1) Janet W. Solinger (ed.). M useum and Universities - New Paths for Continuing Education, NUCEA - National
University Continuing Education Association - American Council on Education Macmillan Publishing Company,
Nova York, 1989, pp. 1 e 3.
(2) Robert H. Dyson, Jr. Museum and University, pp. 59 e ss. In: Janet W. Solinger (ed.). Op. cit.
PARA UM MUSEU CONTEMPORÂNEO DE ARTE

/'J :í José Teixeira Coelho Netto*


/As ':

Um museu de arte contemporânea na universidade enfrenta dois tipos de desafios: um de


natureza substancial, outro de caráter acidental. O primeiro se poderia chamarde desafio próprio,
o segundo, de impróprio. O primeiro, de inevitável; o segundo, (^faMmente evitável. O primeiro
surge do interior!do próprio universo da arte, o segundo nada tem a ver com a arte.

O desafio de tipo substancial deriva da própria natureza da arte contemporânea, arte de


dimensões enormes, arte sem suporte necessário, arte imaterial, arte que não foi feita neces­
sariamente para durar, arte que necessariamente não foi feita para ser guardada e mostrada. A
arte contemporânea quis acabar com a idéia de que arte é patrimônio, coisa de valor econômico
que deve ser retirada de circulação e preservada. Sob esse aspecto, a idéia de arte contemporânea
é, no limite, oposta à idéia de museu. A arte contemporânea é maior que o museu. O museu, no
entanto, fica obsessi vamcntecõrrendo atrás da àrtecontemporânea. Com a cumplicidade de
curadores, historiadores etc. mas também com a cumplicidade dos artistas. Muita arte é feita
intencionalmente pelo artista para não durar - até o momento em que um museu se interessa
pela obra ou até o momento em que o artista se dá conta de que lhe pode ser interessante que
um museu se interesse por guardar e manter sua obra. Aí, aquilo que não foi feito para durar
deve durar - e o museu sai à cata de soluções impossíveis para fazer durar o que não foi feito
para durai-. Inviável.

Um museu de arte contemporânea, para fazer jus ao nome, teria de atualizar-se edilícia
e tecnologicamente com a mesma velocidade das transformações de todos os hards e de todos
os softs. Inviável. Quando podem, os museus crescem - como o MOMA de Nova York.
Quando não podem fazê-lo, ou quando decidem que epistemologicamente não devem fazê-
lo, os museus de arte contemporânea deixam de ser museus e transformam-se em centros de
exposições sem acervo.

Paradoxalmente, a arte contemporânea, que foi em grande parte e desde sua origem
dadaísta, contra o mercado, contra o capital, contra o dinheiro, hoje só parece poder florescer
no meio de muito dinheiro, de muito capital, de muito mercado: só os grandes museus con-
centracionários, como o Getty, a National Gallery de Washington, o Guggenheim, a Tate de
Londres, podem permitir-se ter arte contemporânea. Os museus que não podem tê-la se vendem
para os museus maiores ou são por eles comprados.

Para transformar-se num centro de exposições sem acervo, um museu deveria desfazer-
se de sua coleção em favor de quem possa mantê-la (ou simplesmente abrir mão dela para
permanecer fiel aos princípios da arte contemporânea - mas no mundo do relativismo ético e
filosófico a coerência de princípios é um programa obsoleto). E isto porque manter uma cole­
ção que não se desenvolve é manter uma coleção-múmia. Mas onde uma instituição como a
universidade buscará coragem para desfazer-se de um patrimônio? Para a universidade, a
idéia de patrimônio é evidente por si só (e nisso ela inocentemente revela sua ideologia profunda).
Paia a arte contemporânea, não. Um museu de arte contemporânea que não dependesse da
universidade seria livre para mostrar-se coerente ou não com as propostas contemporâneas de
arte. Um museu universitário de arte contemporânea, não.

Esta é a razão, aliás, pela qual o MAC não deveria nunca ser visto como um museu da
universidade ou como um museu universitário mas como um museu na universidade, como insiste
Aracy Amaral, com toda a razão.

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Mas vê-se aqui que aquilo que começou com uma discussão do desafio de tipo substancial
transformou-se numa discussão do desafio adjetivo.

Já que estamos aqui, discutamos os desafios acidentais. O fato de estar o MAC na


universidade é um acidente, e como tal deve ser encarado - em todos os sentidos da palavra...

Foi um acidente que num país culturalmente mesquinho como o Brasil um empresário, na
época abastado, num gesto que não iria mais repetir-se com a mesma largueza decidisse desfazer-
se de sua coleção preciosa em favor da universidade. Foi um acidente (no sentido de acidente
de trânsito) a vinda do museu para dentro da universidade e portanto para longe da cidade.
Foi um acidente a instalação do museu numa estrutura não concebida para um museu. A lista
é longa...

Algumas dessas Dificuldades Acidentais:

1) Pode um museu de arte ser regido pelas mesmas regras que organizam a vida das uni­
dades normais de ensino e pesquisa de uma universidade?

Não, não pode. Até hoje a universidade não entendeu o processo das artes e o procedi­
mento dos que com elas lidam. A universidade em parte sabe disso - e define o museu como
órgão de integração, quer dizer, alguma coisa diferente de uma unidade de ensino e pesquisa
mesmo que não se saiba exatamente o que é uma unidade de integração. E em parte faz de
conta que não sabe disso - e exige dos docentes e pesquisadores do museu o mesmo procedi­
mento imposto aos docentes e pesquisadores de uma unidade de ensino. Define o museu
como órgão de integração mas lhe dá uma verba de departamento de unidade de ensino.
Um órgão de integração é maior ou menor que uma unidade de ensino? Se for um órgão
sem local físico definido, sem conteúdo hard próprio, pode ser menor que uma unidade ou
departamento e mesmo assim cumprir suas funções. Se for uma instituição com lugar físico
próprio e específico, com conteúdo “hardíssimo”, é maior que um departamento e no
mínimo, no mínimo, igual a uma unidade. Seu orçamento operacional (orçamento geral
menos salários e outros encargos fixos) deve ser portanto no mínimo igual ao de uma unidade.
Não é.

2) Duração do mandato da diretoria. O diretor de um museu de arte relaciona-se com a j


universidade mas, sobretudo, com o mundo exterior à universidade: artistas, patrocinadores, j
curadores do Brasil e do exterior. São relações pessoais, de confiança. É um capital pessoal
que não deriva da instituição e que não é a ela agregado. Sob esse aspecto, quatro anos é um tempo t
curto demais para consolidar essas relações e desenvolver um trabalho adequado.

Os museus dignos desse nome pelo mundo afora têm diretores que ficam anos e décadas |
no cargo: o atual diretor do Metropolitan de Nova York está há 22 anos na função, seu anteces-1
sor lá permaneceu por onze, em média ninguém fica menos de seis, oito anos à frente de umE
museu.

Um bom diretor de museu tem idéias e projetos próprios, não se limita a pôr em execução B
o que instâncias diversas do museu ou a ele exteriores possam planejar. E um projeto numl
museu leva dois, três anos para realizar-se. A interdição de reeleição é uma impropriedade. A l
rigor, uma irresponsabilidade. O princípio básico universal da representação deve seraH
reeleição, em todos os níveis da universidade e fora dela. Se assim não for, a idéia de condução H
dos destinos de um museu é equivocada ou de má fé (i.e., mera criação de ocasiões para una
rodízio de favorecimento: agora vou eu, depois vai você, e assim contentamos todos.)

26
E assim na verdade nada se faz, nada se consolida, nada se estrutura, nada continua..

3) Assim como há uma política para o ensino e a pesquisa, faz-se necessária uma política
cultural para essa entidade peculiar da universidade que é o museu; em que consiste? existe?

Não, não existe. O que é uma política cultural para um museu de arte (não confundir com
a política de um museu de arte)? E traçar planos de curto, médio e longo prazo que permitam
a conservação e ampliação de seu acervo. Sobretudo a ampliação. Um museu não é feito paia
preservai' e preservar-se, i.e., permanecer onde está. Um museu é feito para crescer. Sem isso
não é nada, não tem sentido. E um monumento. Para poder crescer, um museu deve contai' com
apoio para aumentai' suas dependências físicas a cada tanto, para aumentar seu acervo a cada
tanto. A USP, porém, não mais contempla uma verba para aquisição. Tudo o que entra para o
museu depende da iniciativa de doadores particulares, mecenas ou artistas. É bom que seja
assim. Não é suficiente que seja assim. E é um tantinho hipócrita que seja assim (faz-se
caridade com o chapéu alheio). A universidade precisa ter um museu de arte, e um museu de
arte contemporânea? Não, não precisa. Em todo caso, esta universidade não mostrou que
precisa. Ela quis ter um museu de arte. E ótimo que tenha sido assim. Mas assim foi, exatamente.
Portanto, se ela quer ter um museu de arte, deve proceder como real mantenedora. Pagar
salários não basta.

4) Quais as relações a serem mantidas entre a universidade e instituições extra-uni-


versitárias para que um museu de arte possa ser viável?

Um museu de arte não vive fechado dentro da universidade. Diferentemente do que


acontece com uma típica unidade de ensino e pesquisa, um museu existe para voltar-se para
o lado de lá dos muros da universidade. Isto significa que ele deve ter uma agilidade que
normalmente a universidade não tem. Isto significa também que ele deve ter uma capacidade
de auto-representação que a universidade não lhe concede. Aquilo que interessa ao museu
pode não interessai' à universidade (por exemplo, um litígio judicial). As preocupações da
universidade e do museu não são as mesmas. A autonomia do museu deve ser maior.

A autonomia de um museu deve ser de fato ampla. Exemplo são as doações feitas com
cláusulas inamovíveis que limitam a liberdade que todo museu deve ter na manipulação das
obras de seu acervo. Um museu não pode receber uma obra com a condição de mantê-la per­
manentemente exposta. Um museu não pode receber uma obra com a condição de não aliená-la
jamais; uma obra não tem o mesmo valor em toda parte e em todas as circunstâncias; o valor de
uma obra depende em grande parte do cenário onde se apresenta; assim, para um museu pode
ser mais importante desfazer-se de determinada obra, que teria muito mais sentido num outro
contexto, para em troca adquirir outras que iluminam mais e diversamente obras já em seu
poder. Especificamente, e sem receio de despertai' iras, de que vale ter um Modigliani, ainda que
seja um Modigliani único, e não ter Monets, Pollocks e Hoppers e Doves? Faz mais sentido
para um museu de arte contemporânea ter um só Modigliani no lugar de cinco Rotkos? Ter
uma obra de cada é típico de colecionadores privados mas não de um Museu; ter uma obra de
cada é típico do pensamento enviesado que norteia o colecionismo e que faz do colecionismo
muito mais um fenômeno de psicologia individual (e de psicologia individual problemática,
para dizê-lo claramente) que de estética ou história da arte. A coleção de arte moderna do
MAC é fantástica, uma das melhores do mundo, melhor que a da sobrevalorizada Peggy
Guggenheim; mas é uma coleção de colecionador, não uma coleção de museu. É verdade que
dá prazer mesmo assim, e dar prazer é o que importa em arte, é a única coisa que importa em
arte, uma vez que arte não é informação estética, nem informação cultural, nem patrimônio,
nem lição de moral, nem nada do gênero. Seja como for, o MAC não tem nem a ocasião de

29
fazer-se perguntas como essa, porque aceitou doações condicionadas. Um erro. Pior do que não
poder mostrar uma obra por não tê-la é ser obrigado a mostrai' uma obra porque ela está na
coleção, apenas. Mais grave que a ditadura que proíbe dizer é a ditadura que obriga a dizer.

A autonomia do museu é na verdade inexistente até para coisas bem menos graves. 0
museu não pode trocar ou mandai-trocai-uma lâmpada de poste sobre seu Jardim de Esculturas.
Deve solicitá-lo à universidade, abrindo um processo e, depois, aguardando. Num caso mais
recente, a troca dessa lâmpada está demorando, até agora, agosto de 1999, exatos dez meses.
A demarcação de vagas no estacionamento diante do museu está levando quatro meses, e a
abertura de uma porta na parede não sai por menos. Mais: a última reforma dos estatutos trouxe
mais malefícios do que benefícios; digamos que, em todo caso, os malefícios são mais visíveis
que os benefícios. Um deles: a multiplicação das instâncias deliberativas ou de coordenação.
Desdobraram-se as comissões por toda parte e em todos os níveis, com atuações que se chocam,
se sobrepõem e querem se suprimir. Como não há assunto importante em quantidade para
atender a todas as comissões, instala-se a burocracia, visível na forma de requisições de
preenchimento de formulários e de proposição de atividades que não serão executadas por
essas comissões mas por outras instâncias que freqüentemente têm mais e melhor a fazer.
Essa multiplicação foi apresentada como conquista democrática. E um esdrúxulo entendimento j
de democracia, que mais parece a tentativa de criar cargos “importantes” para todos e dar a
todos a sensação de que participam de algo que, de fato, per se non si muove - ou non si muove
piú. Ou si muove em outras áreas que não aquelas que as pessoas têm a impressão de fazer mover.
O museu sofre também com isso.

5) Quer a universidade ter um museu de arte?

A USP quis ter um museu, no passado. Não está claro que a universidade queira ter um
museu no presente. Não está claro se a universidade, nas atuais circunstâncias, deve ou pode
ter um museu de arte. O MAC ficou 36 anos sem climatização e sistema de combate a incêndio,
Como deve ser isso entendido? E 36 anos sem uma sede adequada; a do campus tem um pé
direito que nem sequer permite a exibição de obras do barroco, menos ainda de arte con­
temporânea. Como isso deve ser entendido diante da pergunta acima?

Em todo caso, como a universidade reluta em abrir mão daquilo que tem, mesmo que não
saiba se quer ter aquilo que tem, qual o melhor caminho para um museu de arte dentro da
universidade?

Transformar-se em fundação.

A USP tem uma fundação geral. Não basta. Tampouco adianta uma fundação para os
quatro museus. Uma fundação própria parece a única saída para um museu de arte não se
estiolar e ter um lugar no cenário artístico que, a esta altura, tem de ser internacional ou pouca
coisa significará. Uma fundação parece a única saída para um museu de arte contemporânea,
que não pode nunca ser da universidade nem universitário, encontrar o modo de existir para
a comunidade e com a comunidade. O que está em jogo na arte é muito mais imediatamente
do interesse e do alcance da comunidade do que a maior parte daquilo que é próprio da universidade.
O que está em jogo é a condição de existência de um museu contemporâneo de arte numa
universidade que não vem tendo a oportunidade de ser historicamente contemporânea do
presente.

(*) Diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo - MAC/USP.

30
REALIDADE E DESAFIOS DOS ACERVOS MUSEALIZADOS DA USP:
O MUSEU DE ZOOLOGIA
V
:: Miguel Trefaut Rodrigues*

Criado a partir do pequeno núcleo da coleção Sertório, que reunia objetos diversos de
história natural, ò acervo do Museu de Zoologia abrigou inicialmente pequenas coleções cien-
tíficas que documentavam a diversidade da fauna brasileira. No final do século passado e na primeira
metade deste século, não havia ainda preocupação com a formação de séries de exemplares de
cada espécie para o estudo da variação geográfica. Os coletores, geralmente naturalistas via­
jantes, coletavam um ou poucos exemplares de cada espécie durante suas expedições, para in­
crementar o acerva Seu intuito era possibilitar a descrição das novas formas, expondo as mais
atrativas ao público, e utilizar as eventuais duplicatas para permuta.

A difusão das idéias evolutivas e dos conceitos de variação geográfica entre nossa comunidade
zoológica, fundamentais para se compreender a origem e a manutenção da diversidade, tornaram
necessária a coleta de séries de exemplares co-específicos, política que ampliou consideravelmente
nosso acervo. Embora ainda não houvesse preocupação expressa com a deterioração dos habitats
naturais, parte desse acervo documenta a existência de comunidades de espécies em áreas cuja paisagem
foi completamente transformada pelo avanço das atividades humanas.

Atualmente, a preocupação crescente com aspectos conservacionistas exige que os mu­


seus zoológicos documentem, quando possível, a fauna das áreas que estão sendo alteradas. São
registros valiosos, que além de permitir a realização de estudos clássicos sobre diversidade, va­
riação geográfica, zoogeografia e evolução, fornecem elementos para a compreensão da ecologia
de comunidades e a auto-ecologia. Nos dias atuais, a crescente preocupação conservacionista
exige que a alteração de qualquer tipo de paisagem seja precedida por um relatório de impacto
ambiental do empreendimento. Para sua elaboração, o estudo do acervo do Museu de Zoologia
é fundamental, assim como o é para se traçarem as diretrizes de preservação da fauna even­
tualmente ameaçada. Numa etapa seguinte, é ele também o receptor de coleções testemunho de
áreas alteradas.

Como resultado do esforço realizado ao longo de sua história, o Museu de Zoologia da


Universidade de São Paulo reúne hoje o maior acervo científico para o estudo da diversidade
animal da região neotropical. Ao longo dos anos, os acervos têm sido constantemente enri­
quecidos com novas aquisições, maximizando a representatividade sistemática e geográfica
das coleções. Abrigamos hoje as melhores coleções do continente, que somam aproxima­
damente 7 milhões de exemplares e têm servido a pesquisas nas áreas de sistemática, ecologia e
evolução de nossa fauna e de base de dados para delinear estratégias de conservação.

Apesar desse rico acervo ter crescido muito nos últimos anos à custa de expedições de­
senhadas para amostrar a fauna dos principais ecossistemas brasileiros, ainda há muito a fazer.
A pesquisa oriunda dessas expedições e suplementada pelas coleções acumuladas ao longo da
história da instituição mostra que ainda estamos longe de uma amostragem ideal. Exemplifico
isso com a descoberta recente de uma fauna ímpar de répteis no coração das caatingas. Essa
fauna, reunindo vários gêneros e espécies novas que mostram adaptações completamente
desconhecidas para o continente, foi descoberta justamente no domínio mais bem amostrado
quanto ao grupo em questão. De modo similar, expedições de coleta a regiões da Mata Atlântica
que estão desaparecendo têm revelado a existência de espécies não descritas, muitas delas
cruciais para entender as relações filogenéticas entre grupos de espécies, assim como os meca­
nismos que deram origem e mantêm a diversidade tropical. Esses exemplos, entre inúmeros outros

31
que poderiam ser apresentados, mostram bem o profundo desconhecimento que ainda paira sobre
a fauna de nosso país. Não há como fugir da idéia de que cabe ao Museu de Zoologia um papel
decisivo na amostragem de nossa fauna em áreas pouco exploradas, de modo a preservar informação
para a pesquisa. A tarefa é das mais urgentes, se considerarmos a progressão acelerada da
deterioração em nossos ecossistemas. Não realizá-la seria perder informação da maior importância
para se compreender a evolução de nossa fauna, que geralmente acompanha o desaparecimento
de seus habitais.

O papel do museu na formação de recursos humanos qualificados, seja na graduação,


seja na pós-graduação, tem sido dos mais relevantes. Incontáveis pesquisadores do país e do exte­
rior, alunos de graduação e de pós-graduação, hoje espalhados pelas mais conceituadas ins­
tituições científicas, adquiriram durante o curso de seu trabalho com as coleções do museu os
alicerces de sua formação. Seu estudo permite que o jovem pesquisador se familiarize com os
múltiplos aspectos da diversidade biológica, amadurecendo suas idéias de modo a poder
contextualizar seu trabalho futuro. Foram as várias gerações de sistematas aqui formados que,
com visão da diversidade, da variação geográfica, dos requisitos ecológicos e das relações de pa­
rentesco entre as espécies de determinados grupos zoológicos, deram subsídio a inúmeros tra­
balhos de cunho multidisciplinar, muitos deles envolvendo pesquisas de vanguarda.

Ainda que esse lado científico do museu tenha lhe dado a personalidade e a relevância que
possui hoje, existem ainda algumas importantes lacunas no que respeita a pesquisa e ensino.
Há, por exemplo, carência de pessoal em algumas das maiores coleções de grupos neotropicais.
É necessário supri-las com docentes qualificados, para que possam conduzir a pesquisa,
respondendo à crescente demanda de orientação e ensino qualificados em sua área de atuação.
Este é um dos desafios a cumprir de modo a melhorai" a utilização social e maximizai' a repre-
sentatividade do acervo. Sendo o Brasil o país líder mundial em diversidade biológica, não é
possível conceber que coleções dos grupos mais representativos de nossa fauna não estejam
sendo adequadamente trabalhados. Não há, por exemplo, há anos, docentes especializados em
sistemática de aves ou de mamíferos nos quadros do museu que possam estudar e promover o
desenvolvimento dessas áreas. Considerando a rápida deterioração de nossos habitats, estamos
perdendo para sempre muitas informações valiosas sobre tais grupos. Estamos também, como
resultado da falta de pessoal, deixando de formar recursos humanos qualificados em áreas
extremamente carentes, cuja demanda técnica qualificada vem crescendo muito face aos
avanços da pesquisa evolutiva e ao grande desconhecimento que paira sobre elas. Deixamos
também de produzir novos conhecimentos, cada vez mais solicitados, para se traçarem es­
tratégias de conservação. Ademais, isto ocorre justamente na instituição que abriga as melhores
coleções e que, com a ajuda potencial da FAPESP e sob a responsabilidade de um pesquisador
qualificado, poderia dispor das melhores condições para financiamento e manutenção das
facilidades infra-estruturais para a condução da pesquisa. Não há dúvida de que não há melhor
local no Brasil para o retorno social desse investimento.

Desafio bem maior para o museu é avançai' muito na qualidade dos serviços de extensão
oferecidos à sociedade, uma tarefa comum a outros museus da USP. De modo geral, dotados
de acervos e de docentes que os investigam, os museus universitários funcionam como local
integrador de conhecimentos e devem se tomar a porta de entrada para a sociedade; o local aonde
o povo aflui em busca da tradução das pesquisas realizadas por seus docentes. Não há como
cumprir essa tarefa sem aumento dos espaços expositivos, do quadro de museólogos e edu­
cadores e sem facultar o acesso a suas exposições temporárias e permanentes durante os
finais de semana. A Universidade de São Paulo tem, ao longo dos anos, melhorado muito seus
índices de qualidade, na pesquisa, graduação e pós-graduação. Falta-lhe uma abertura maior
para a sociedade, mostrando mais o que faz, divulgando nosso patrimônio biológico, histórico e cultural,

32
contribuindo assim diretamente para elevai' o patamar cultural da população, que a ela não tem acesso
direto. Parece-me ser este o maior desafio dos museus.

0 crescimento do incalculável patrimônio científico do Museu de Zoologia está hoje seriamente


comprometido por falta de espaço para crescimento das coleções. Ao longo dos anos, para alojá-las,
a área da pequena exposição pública vem sendo sacrificada. Sua distância do campus milita contra a
integraçãocom as unidades afins da USP. Alunos de graduação geralmente não podem seguir programas
deestágio, pois têm atividades didáticas no campus. A distância do campus faz que os seminários e as
atividades realizadas por inúmeros pesquisadores do Brasil e do exterior que consultam freqüentemente
as coleções do Museu de Zoologia para realizai' suas pesquisas não sejam bem aproveitados. Há
necessidade de maior integração.

Visando a enfrentai' os desafios do próximo século, seria indispensável instalai' o Museu de


Zoologiaem novo prédio no campus, mantendo seu acervo e permitindo seu crescimento, mas dotando-
o de uma exposição pública arrojada e modema que divulgue a história da vida ao público, que não
pode ter acesso a esse tipo de conhecimento em outro local. Este museu, ainda que longe do ideal,
lamentavelmente inexiste no Brasil e na maior e mais rica cidade brasileira.

Dotá-lo de uma exposição permanente sobre a história da vida, centrada na evolução,


nos moldes das existentes nos grandes museus de zoologia do exterior, onde o visitante entraria
no Cambriano e sairia nos dias atuais, seria tarefa à altura do país que encabeça a liderança
em diversidade biológica. Moldes de partes e de esqueletos inteiros de vários dos grupos ex­
tintos e atuais poderiam transmitir a idéia da diversidade da vida passada e presente. Dinossauros,
baleias, aves fósseis gigantes, entre outros, com destaque para alguns animais extintos da fauna
brasileira, poderiam, expostos em locais adequados, vir acompanhados de esquemas explicativos
elaborados com técnicas modernas que valorizassem a atratividade visual. A megafauna de
mamíferos sul-americanos que vivia em nossas paisagens até cerca de 10 000 anos atrás, a
exemplo do que ocorre com a fauna das savanas africanas, completamente desconhecida do
público, poderia ser outro dos temas abordados. Os fósseis de gigantescos jacarés que viviam
na Amazônia até o Mioceno mostram outro exemplo de informação completamente ignorada
pelo público. Exposições sobre a diversidade e a evolução dos grupos atuais, sobre os
ecossistemas brasileiros e biodiversidade, pesquisas interdisciplinares realizadas, história da
investigação zoológica, ou temas de grande impacto atual relacionados com o aspecto con­
servação seriam algumas, entre inúmeras outras possibilidades a explorar.

A contribuição dessas exposições para elevai' o patamar da cultura nacional seria incalcu­
lável. Sabe-se que a grande maioria da intelectualidade atuante na área, em outros países,
adquire nas exposições seu interesse pela pesquisa zoológica. Sabemos também que o nível
cultural de um povo tem relação direta com sua capacidade de compreender a necessidade de
explorar racionalmente os recursos naturais. A Universidade de São Paulo, o Museu de Zo­
ologia e o povo somente teriam a ganhar com esta alternativa.

Por ocupar o primeiro lugar mundial no ranking da biodiversidade, esse é um museu


que o Brasil precisa ter: pelo tamanho de seu acervo, pela importância nacional e internacional
que o Museu de Zoologia tem e especialmente porque a biodiversidade será um dos assuntos
que dominarão a pauta de conversações globais durante o próximo século. Será talvez uma
das melhores oportunidades que a USP terá de mostrai' à sociedade onde seu dinheiro é
investido, dando-lhe acesso à cultura e à participação.

(*) Diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo - MZ/USP.

33
REALIDADE E DESAFIOS DOS ACERVOS MUSEALIZADOS DA USP

Paula Montero*

Os museus universitários tem como característica própria, o fato de associarem intima­


mente as atividadps de ensino e pesquisa às atividades inuse()gráficasj'Rssarelação dá um perfil
particular à mussalização. A museografia não é geradora indepe(fcJente de temas e problemas
que orientarão ospToteiros expositivos mas, ao contrário, precisa trabalhar lado a lado com o pes­
quisador obrigando-se ao exercício de traduzir ahnguagMi científica no registro visual. Essa
relação ideal no entanto, nem sempre se desenvolve harmonicamente. No caso do MAE, pode-
se observai- que, por contingências da própria história institucional, a atividade de pesquisa está
muito mais sedimentada e amadurecida do que a muscográfica. A equipe de pesquisadores, sobre­
tudo no caso da arqueologia brasileira que reúne maior número de profissionais, é capaz de definir
o perfil acadêmico dessa área de investigação e exercer sua influência para além das fronteiras
institucionais. A equipe de museografia, ao contrário, é muito reduzida e sua experiência não está
ainda sedimentada a ponto deOT:at.padrões_de referência institucionais.

É a partir desse contexto que se definem as políticas museográficas do MAE. Nosso


primeiro grande desafio é o de conseguir musealizar parte expressiva de seu acervo. A exposição
que hoje oferecemos ao grande público - “Formas de Humanidade” - não chega a fazer uso
de 5% do potencial de nossa reserva técnica. Por outro lado, vários fatores contribuem para o
baixo índice de renovação do acervo exposto. Em primeiro lugar, a concepção e execução de uma
exposição dessa natureza é bastante lenta o que desestimula as iniciativas de renovações
expositivas muito radicais. Para termos algum parâmetro, nossa exposição despendeu apro­
ximadamente dois anos para ser concebida e executada, já está há quase quatro anos em exi­
bição e ainda não mereceu uma avaliação significativa. Em segundo lugar, a manutenção perió­
dica da exposição exige um investimento de tempo e de dinheiro bastante elevado na renovação
dos painéis e vitrines. Pai a termos alguns parâmetros desses tempos e custos, o projeto da Divisão
de Difusão Cultural para a manutenção de nossa exposição “Formas de Humanidade”, prevê
um trabalho de 15 meses para a renovação de suas quinze vitrines, com um custo total de 25 mil
reais. Além disso, a longa permanência dos objetos do acervo nas vitrines por vários anos,
dificulta a sua conservação, muitas vezes até mesmo acelerando sua degradação. É sabido que
a luz é um grande fator de deterioração dos objetos. Além disso, seu efeito é cumulativo: mesmo
em condições técnicas ideais de iluminação os objetos sofrem danos progressivos. No setor
“Manifestações Sócio-culturais indígenas” por exemplo, temos um belo exemplai- de um dia­
dema de iniciação masculina dos Karajá que foi seriamente danificado pela sua exposição
excessiva ao sistema de iluminação elétrico. Neste caso, será necessário a contratação de uma
consultoria especializada para a avaliação do sistema como um todo e elaboração de um novo
projeto de iluminação. Em função do desgaste natural dos objetos em exposição, toma-se ne­
cessário um constante rodízio do acervo. Aqueles mais sensíveis aos fatores de deterioração
(plumária, têxteis, cestaria, objetos pigmentados, etc.) devem permanecer um tempo mais
reduzido nas vitrines.

Para fazer face a esta tendência a inércia, os museus devem investir em um espaço de
exposições temporárias, único caminho para dai-maior dinamismo ao acervo. As exposições de
curta duração tem como vantagem sua capacidade de multiplicação das temáticas sintonizando-
a com o debate mais contemporâneo das disciplinas afins, a autorização da experimentação mu­
seológica na qual novas formas de suportes, de materiais e de ocupação do espaço podem ser
experimentadas. Além disso ela permite o uso de um leque mais amplo de materiais existentes
em nosso acervo que, além de objetos, dispõe de um importante conjunto de documentos histó­
ricos (cartas, monografias, manuscritos, etc.) e fotográficos. Também neste campo há obstá­

35
culos a superai'. A sala destinada à exposição temporária está sendo atualmente utilizada como
reserva técnica. É preciso pois, reacomodar esse acervo em outros setores de nossa reserva e
promover uma reforma para adequá-la às finalidades expositivas cujo orçamento foi estimado
em 100 mil reais.

Um segundo desafio importante para a atividade de musealização do nosso acervo é o de


integrar a pesquisa às mostras expositivas. Como se sabe o tempo da pesquisa é lento e sua
linguagem é basicamente textual. A linguagem visual, ao contrário, é polissêmica e mais sen-
sorial do que conceituai. A tradução de um campo para o outro exige um trabalho coletivo cuja
coordenação e timing é bastante complexo. Assim, a alimentação científica das exposições exige
uma sintonia fina entre duas áreas que na maior parte do tempo trabalham de maneira separada.
E um ponto de vista ideal seria importante que cada área de investigação fosse capaz de propor
uma exposição a pelo menos cada dois anos. Na verdade esse ritmo ideal dificilmente será al­
cançado nas condições presentes do MAE. Em primeiro lugar porque o fluxo de recursos que se
destina à pesquisa é regulai' e expressivo, enquanto são muito poucas as instituições voltadas para
o apoio sistemático de exposições. Em segundo lugar porque a equipe de produção de exposi­
ções é muito pequena, tendo que ser ampliada a cada novo projeto. Em terceiro lugar porque
há entre os pesquisadores, por razões estruturais atinentes as exigências próprias da atividade
de pesquisa, um envolvimento desigual no tempo destinado à escrita e às exposições.

Finalmente é preciso ainda pensar no desafio inverso: como a integração de conhecimen­


tos que a atividade museográfica exige pode contribuir para fazer avançar as fronteiras teóricas
das disciplinas envolvidas. Na verdade, no que diz respeito à Antropologia, depois de uma
comunhão de algumas décadas resultantes da própria história disciplinar, as coleções etnográ- I
ficas se separaram da reflexão teórica dos pesquisadores. No caso do MAE, essa integração
existe para a arqueologia brasileira, mas tornou-se praticamente inexistente no caso da etnolo­
gia. Uma maneira de enfrentai' esse problema é atrair pesquisadores que se voltem para o
estudo de nosso acervo propondo, ao mesmo tempo, uma exposição resultante de seu trabalho de
investigação. Apesar de ser uma forma pouco canônica de publicação (e pouco valorizada pelas
agências de fomento), é um caminho fundamental para dar vitalidade à museografia.

Por estas razões pode-se dizer que a experiência de um museu universitário é única nesse
campo porque ele dispõe ao mesmo tempo de pesquisadores e acervo, permitindo uma integra­
ção particular entre conhecimento e coleção. No entanto, são exatamente essa virtudes que
nos colocam novos desafios. A discrepância entre tempos de produção, linguagem e fluxo de
recursos obriga ao exercício de uma gestão capaz de flexibilidade e imaginação, à invenção de
uma cultura institucional versátil capaz de trabalhar ao mesmo tempo em vários registros - o
estético, o científico e o do senso comum. Este é um horizonte que deve nortear uma instituição
como a nossa, mas que somente poderá ser alcançado através da sofrida experiência de produção
de muitas exposições “científicas”.

(*) Diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo - MAE/USP.

36
INCLUSÃO/EXCLUSÃO EM MUSEUS: UMA
ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL

Beatriz Góis Dantas*

Diante da proliferação de museus que se tem verificado no Brasü^fes últimas décadas e


em face da multiplicidade de temas trabalhados nos vários lugares dè 'memória (Nora, 1984), à
primeira vista, talvez se pudesse considerai-como impertinente a proposta da Mesa. O que pode
estar fora dos museus depois de toda essa floração aparentemente anárquica que passa pelos
museus temáticos e se alonga pelas infindáveis casas de memória dedicadas a intelectuais,
artistas, líderes religiosos, políticos e diferentes personalidades de relevo na vida nacional ou
local? (Abreu, 1996). Nesse elenco de temas que é, certamente, muito mais alongado, podem-
se incluir as etnias e indagar eòmo brancos, negros e índios figuram nos museus. Seguir esta
pista é, de certa formã, refazer, por intermédio dessas instituições, o caminho de uma forte
tradição de estudos que fazem das etnias o fulcro de uma das vertentes interpretativas mais antigas
e persistentes sobre a sociedadè brasileira. É a quelenta explicá-la pela conjunção e influência
das “três raças” ou dos “três grupos étnicos formadores da nacionalidade”. Este projeto remonta,
no mínimo, a 1845, quando o alemão Carl Friederich von Martius deu sua receita de Como se
Deve Escrever a História do Brasil. No seu dizer “...do encontro, da mescla, das relações
mútuas e mudanças dessas três raças, formou-se a atual população, cuja história por isso mesmo
tem um cunho particular” (Martius apud Romero, 1945:47-48). Mas, no Brasil o conceito de raça,
como lembra Roberto da Matta:

“...passou a ser, como o sistema que o abriga, totalizante. De modo que para nós raça é
igual a etnia e cultura. E claro que essa é uma elaboração cultural, ideológica, não tendo valor
científico. Do ponto de vista biológico, raça é uma variação genética e adaptativa de uma mes­
ma espécie. Mas na conceituação social elaborada no Brasil ‘raça’ é algo que se confunde com
etnia e assim tem uma dada ‘natureza’” (Matta, 1981:84).

Dessa forma, confundindo o biológico com o cultural o esquema raça-etnia fornecerá uma
das mais persistentes vias de interpretação sobre o Brasil. Tomando feições diversas e variando a
avaliação feita por diferentes estudiosos quanto ao papel positivo ou negativo atribuído a cada
uma das três etnias formadoras, o estudo do étnico tem tido continuidade até o presente. Ali­
mentou a polêmica de Sílvio Romero com os indianistas sobre a maior ou menor contribuição
de negros e índios (Romero, 1977); e foi ela que forneceu as matrizes para as várias interpreta­
ções históricas e sociológicas de nossa formação social (Skdimore, 1974 e Ortiz, 1985). Em
torno dessa trilogia étnica nasceu a antropologia no Brasil, que no dizer de Roberto Cardoso
de Oliveira “sempre primou por definir-se em função de seu objeto, concretamente definido
como índios, negros ou brancos (...) ou segmentos desprivilegiados da sociedade nacional”,
resultando numa “predominância do objeto real sobre objetos teoricamente construídos” (Cardoso
de Oliveira, 1988:111). Nas duas últimas décadas, sob nova perspectiva, negros e índios
retomaram força no Brasil, associados às questões de direitos e cidadania, aparecendo como
minorias, enquanto o conceito de étnico passa por redefinições.

Nessa sociedade, na qual a questão das etnias tem se constituído historicamente em roteiro
de estudos e forma recorrente de interpretação, ora para afirmar a construção da nacionalidade,
destacando o todo, ora para afirmar a diversidade cultural, pondo em relevo as partes, uma
questão pertinente é perguntar-se como negros, índios e outras categorias étnicas apresentam-se
nos museus. A partir de que recortes e em que momentos se fazem as inclusões? Esta proposta
muito abrangente será aqui restrita ao negro por meio do enfoque das religiões genericamente
denominadas afro-brasileiras. Parte-se da idéia de que a inclusão e a exclusão de temas e objetos

37
em museus extrapolam o campo especificamente museológico, estando relacionadas com
processos mais abrangentes entre os quais se incluem regras culturais, momento histórico e rela­
ções de poder. O próprio ato de indagar-se sobre critérios de exclusão sugere a preocupação com
segmentos, categorias, grupos que se consideram ou são considerados excluídos, ou que se
propõem a questionar/repensar a autoridade do museu como lugar de memória, o que remete
ao campo da política. Mas ele tem também relação com o campo intelectual no qual são
produzidas as coleções. As idéias e os interesses principais e subsidiários de estudiosos e
colecionadores num dado momento histórico influenciam os critérios de seleção dos artefatos e
sua destinação, ou seja, as instituições que as abrigam e conservam (Ribeiro, 1992).

Tendo como pano de fundo essas questões, pretende-se desenvolver algumas reflexões
sobre formas de inclusão/exclusão de objetos relacionados com religiões afro-brasileiras em
museus, conectando-as com descobertas e redescobertas do tema negro pelos estudiosos (Vogt
e Fry, 1982) e os processos de legitimação dessas religiões. Tomando como referenciais de tempo
a Primeira República, marco inaugural dos estudos sobre o negro no Brasil, e a segunda metade
da década de 70, quando há uma retomada do interesse pelo tema, procura-se analisai' a for­
mação de coleções integrantes de museus nesses dois diferentes momentos históricos.

O surgimento de museu temático afro-brasileiro é recente e pouco difundido no Brasil.


Data da segunda metade da década de 70 a instalação do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe,
que divide com o Museu Afro-Brasileiro da Bahia a condição de museus com essa denominação
e orientação específica.1 No entanto, objetos incorporados ao sistema de crenças e à vida ritual
dos terreiros estão integrando diferentes tipos de instituições museológicas há quase cem
anos, datando do final do século passado o recolhimento de peças inspirado por razões diversas
e efetuado por diferentes atores sociais.

Descobrindo o Negro: Estudos e Coleções

Embora a situação do escravo tenha sido tratada por viajantes e pintores ao longo do
século XIX, o negro enquanto objeto específico de estudo é descoberto somente no fim do
século passado. Foi um nordestino, o sergipano Sílvio Romero, radicado no Rio de Janeiro,
que no mesmo ano da abolição da escravatura lançou a advertência sobre a necessidade de
estudar-se o negro e o fez associando-o à África.

“Quando vemos homens como Bleek refugiarem-se dezenas e dezenas de anos nos centros
da África somente para estudar uma língua e coligir uns mitos, nós que temos o material em j
casa, que temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, e a Europa 1,
em nossos salões, nada havemos produzido neste sentido! É uma desgraça.” (Romero, 1977:34,1
destaques no original).

Dessa forma, Sílvio Romero, cujos estudos de literatura e folclore brasileiro (Romero, 1954) |.
tomam as etnias como fulcro de interpretação, anuncia a necessidade da constituição de umÉ
campo de estudos na antropologia brasileira. Este se circunscreve pela presença africana no |
interior de nossa sociedade, diferente, pois, do que ocorria com os europeus, que se deslocavam B
para estudar os negros em suas colônias na África. O distanciamento geográfico-político do [j
outro é, aqui, substituído pelo distanciamento social, metaforicamente marcado pela distância II
que separa a “cozinha” dos “salões”.

Como lidar com os negros, tão próximos e familiares mas ao mesmo tempo tão distantes, j|
é o desafio a que Nina Rodrigues (1862-1906) lança-se, na Bahia, tomando a religião como |
objeto de seus estudos num quadro de referência mais amplo de pensar a sociedade brasileira, n
dar-lhe uma certa ordenação e orientar, a partir de pressupostos científicos, práticas de controle
social (Correa, 1982). É no bojo da montagem de uma nova ordem institucional que coloca
na lei a igualdade do negro, que emergem os estudos sobre as religiões afro-brasileiras,
defrontando-se com questões muito concretas de apreensão policial de objetos dos terreiros e
prisão de chefes e adeptos acusados de práticas de magia que, juntamente com o espiritismo,
a cartomancia e o uso de talismãs tinham penas previstas no Código Penal de 1890. Professor
de Medicina Legal, empenhado em institucionalizar e ampliai" o espaço de atuação de novo
campo de saber e embasar na ciência formas de controle social, questiona a atuação de policiais
nos terreiros. Trabalhando num ponto de interseção entre a Medicina, o Direito e a Antropologia
faz uso de saberes específicos, uns já estabelecidos e outros em fase de formação.

Afinado com as teorias evolucionistas do seu tempo, aceitava a inferioridade da raça


negra, tida como “produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanida­
de” (Rodrigues, 1977:5), e as conseqüências nefastas de sua presença em nossa formação,
entre as quais incluíam-se os feitiços. Estabelecia, contudo, uma seriação evolutiva e hierárquica
de capacidade e graus de cultura entre os negros - os jeje-nagôs2 eram mais adiantados, por­
tadores de “verdadeira religião”, ao contrário de outros mais degradados - nivelando-os porém
ao interpretai' a possessão, o estado de santo na linguagem dos terreiros, recorrendo aos con­
ceitos da Psiquiatria, aproximando-a da anormalidade. Isso reforça seu argumento em favor
do controle científico dos cultos e a ineficácia da simples perseguição policial (Dantas, 1988).

Seguindo os adeptos da relação entre crime e conformação craniana, mantinha entre seu
arsenal de trabalho na Faculdade de Medicina da Bahia a cabeça do Conselheiro e do bandido
Lucas da Feira, entre outros crânios e ossos que foram destruídos por um incêndio em 1905.
Integravam o “núcleo do primeiro museu médico-legal do Brasil”, por ele inaugurado em 1901
(Correa, 1982:vol. 2., p. XIV). Os jornais que tratam do incêndio não fazem alusão a objetos
relacionados com os cultos afro-brasileiros que tenham sido destruídos. É sabido, porém, que
as peças que integram a coleção de Nina Rodrigues, algumas hoje incoiporadas ao Museu
Artur Ramos da UFCE e ao Museu Estácio de Lima em Salvador, são os primeiros exemplares
de objetos de terreiros conhecidos e estudados, pois já em 1904 ele publicava artigo sobre o
assunto (Carneiro da Cunha, 1983:996).

Algumas das peças de sua coleção reproduzidas em Os Africanos no Brasil sugerem que
as coletas seguiam de perto suas preocupações teóricas. Significativamente o que figura no
livro3reproduz escritos-mandingas dos negros islamizados e exemplares da estatuária de cenhos
de culto jeje-nagô. Considerando-os objetos de arte que “revelam uma fase relativamente
avançada da evolução do espírito humano” e ao mesmo tempo “peças de real valor etnográfico”,
seus comentários procuram dar uma idéia da significação desses objetos nos cultos (Rodrigues,
1977:160-171). O recorte sobre o jeje-nagô que permeia os estudos orienta também as coletas
de peças e reafirma o exclusivismo dos sudaneses na Bahia. Desse modo, as mais antigas
representações do negro nos lugares da memória se fazem por intermédio de objetos vinculados
à religião de determinados segmentos étnicos, com exclusão de outros.

Nas décadas de 30 e 40 retomam-se os estudos sobre as religiões dos negros no Nordeste,


enfatizando-se a África como ponto de referência e a superioridade da religião nagô em detrimento
de outras formas religiosas. Segundo Artur Ramos, que trabalhou inicialmente na Bahia e
mudou-se depois para o Rio de Janeiro, os cultos negros iriam das “formas mais puras” de alguns
candomblés baianos que guardam a legítima tradição sudanesa até as alterações mais imprevis­
tas da macumba carioca originária dos bantos e a “menos interessante dessas sobrevivências
religiosas, tal seu grau de diluição, sua rápida transformação no contato com a civilização do
litoral”(1971:104). Seguindo pistas abertas por Nina Rodrigues, mas trabalhando numa perspectiva

39
culturalista em que o sincretismo ganha maior densidade, algumas ilustrações de trabalhos
publicados pelo autor parecem apontar no sentido de que a coleção, que traz o seu nome, também
guardaria relação com os temas privilegiados pelos estudos. O livro que traz o abrangente
título de: O Negro Brasileiro (Ramos, 1988) é ilustrado pelo autor com fotos nas quais são
mostrados o sincretismo, personagens e rituais de tradicionais candomblés baianos, bem como
instrumentos musicais e numerosa estatuária e emblemas das divindades, objetos integrantes
de sua coleção e da coleção de Nina Rodrigues. Há uma solitária estátua de sereia do mar dos
candomblés de caboclos, enquanto a presença banto, identificada na macumba carioca, é ilustrada
com desenho, o que sugere que a coleta das peças seguia de perto a rota dos terreiros vinculados ;
às tradições da África ioruba. Uma consulta específica ao acervo de Artur Ramos, hoje recolhido
à Universidade Federal do Ceará, talvez permitisse aprofundar essa possível relação entre as
idéias e os objetos coletados por estudiosos.

Essa perspectiva de estudos, que no Nordeste converge no sentido de recuperai' a imagem


do negro, sobretudo pela valorização das raízes africanas mais puras, transforma a religião nagô
em “verdadeira religião, em oposição à magia e feitiçaria, características atribuídas aos outros ;
cultos, classificados como “impuros”, “misturados” e “degenerados”, nos quais se abrigariam j
feiticeiros e exploradores da credulidade pública, e tem seus desdobramentos. No embate ;:
com os representantes da lei desenvolvem-se várias tentativas de controle científico dos cultos :
e movimentos de legalização e legitimação dos terreiros mais africanizados. Esse movimento, j,
mais visível na Bahia e em Pernambuco, recorta uma parcela da África como uma referência
positiva e valorizada, enquanto no Sudeste, onde a presença banto teria dado origem à macumba,
o mesmo movimento se desenvolve em sentido inverso, procurando limpai' os cultos da imagem
negativa de uma África bárbara e selvagem (Brown, 1974; Dantas, 1988; Maggie, 1992).

As coleções, quando analisadas em conexão com sua produção intelectual, idéias, interes­
ses e alianças podem iluminai' alguns procedimentos de exclusão e inclusão de temas e objetos
em museus. Enquanto instituições sociais, estes refletem seu meio e seu tempo, de forma que
o modo de formação das coleções relacionadas com objetos de cultos, a tipologia dos museus
que as abrigam e o momento histórico em que elas se constituem são indicativos de múltiplos
arranjos, entre os quais se incluem regras culturais, relações sociais que permeiam os diferentes
níveis do tecido social e também a atuação do Estado na sua relação com os diferentes segmentos
sociais. Tomando como referência dois museus que incluem objetos relacionados com os
cultos, um constituído na Primeira República no Rio de Janeiro, outro criado em Sergipe na
década de 70, pretende-se trabalhar essas relações como elementos constitutivos das cole­
ções.

Museu da Polícia: as Provas Materiais do Crime

No Museu da Polícia do Rio de Janeiro, ao lado de muitos outros objetos relacionados com
diferentes crimes, encontra-se uma coleção de peças apreendidas nos terreiros pelos policiais
entre fins do século passado e os anos 30. Resultante da perseguição a feiticeiros e curandeiros,
a constituição dessa coleção se fez com o concurso de policiais, juizes, promotores, médicos,
peritos, mediante procedimentos inseridos em processos criminais que servem de base ao
bem documentado trabalho de Ivonne Maggie, no qual a autora procura desvendar as relações
entre magia e poder no Brasil (Maggie, 1992). Tomando os objetos de magia negra que estão
no museu como a prova material do crime, ela mostra como a crença comum no feitiço, partilhada
por perseguidos e repressores, permite a estes estabelecer uma hierarquização entre segmentos
mediúnicos que favorece certos grupos e disciplina o campo religioso, cujo entrelaçamento
com as instituições jurídico-burocrático-policiais e médicas é marcante para o entendimento
das religiões mediúnicas.

40
Ao contrário de outras coleções juntadas em delegacias de cidades do Nordeste durante
aPrimeira República, que foram encaminhadas a institutos históricos e museus estaduais,4 a coleção
do Museu da Polícia, se abrigou ao longo do século em órgãos com diferentes denominações,
embora estivessem sempre relacionados com instituições policiais. Vale a pena conhecer sua
trajetória, aqui resumida conforme as informações do citado trabalho de Maggie, que serve de
base ao que se segue sobre o Museu da Polícia.

A delegacia que reprimia os centros e terreiros acusados de feitiçaria era a mesma que
guardava os objetos obtidos durante as investigações num Museu de Magia Negra. Em 1938, essa
coleção de magia negra juntamente com outras relacionadas com jogos, entorpecentes, ativida­
des subversivas, falsificação de notas e moedas, mistificação foram tombadas pelo recém-
criado Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), sob o título de “coleção
de magia afro-brasileira”, passando a ter reconhecida sua existência jurídica, iconográfica e
legal. Encontrava-se então na Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificação da 1 Delegacia
Auxiliai-, sendo guardada no Museu de Magia Negra. Em 1940, essa coleção passou a fazer parte
de um Museu de Criminologia, registrado no Conselho Internacional de Museus como Museu
Científico. Mais tarde, aparece integrando o Museu do Departamento Federal de Segurança
Pública, criado em 1945 e apresentado em 1954 pelo seu diretor como órgão “extra-escolar
destinado ao estudo de criminologia, [que] tornou-se, em virtude de certas peculiaridades dos
espécimes de suas coleções, uma instituição em que predomina o caráter científico, mas que
participa da feição de Museu de Arte Popular” (261).

No Museu da Polícia, onde hoje se encontram, os objetos da feitiçaria estão expostos “ao
lado de objetos de falsificadores, de defraudação, de tóxicos, do jogo do bicho, de “fazedores de
anjos”, de fotografias de crimes famosos no Rio do anos 50, como os de Luz dei Fuego e Dana
de Tefé. Ao lado também de bandeiras integralistas e pertences de comunistas e integralistas
célebres, como a cadeira que pertenceu a Plínio Salgado” (262). Os objetos de feitiçaria estão
assim associados a sujeira, erotismo, a objetos de pessoas com posições políticas derrotadas e
ao crime.

A disposição atual dos objetos da coleção no espaço do museu procura seguir as regras de
terreiro, mantendo separações entre imagens de orixás e de exus, entre imagens e atabaques, entre
trabalhos para fechar e para abrir caminhos. “Dispostos de outra forma perderiam seu sentido
deobjetos de feitiçaria, pois é a ordenação mágica que o determina. Imagens de santos católicos,
roupas, cruzes etc. não são em si objetos de magia negra” (263). Dessa forma, os objetos do
Museu contam a história da repressão, o nascimento das religiões mediúnicas no Rio de Janeiro
eainda “contam como elas venceram os perseguidores”, salvaguardando a crença na feitiçaria
(263-264). Ainda hoje, são correntes os relatos de como freqüentadores, funcionários e admi­
nistradores, deste ou de outros museus que abrigam peças provenientes de terreiros, acreditam
que os objetos estão carregados de feitiço, exigindo, portanto, cuidados especiais.

Museu Afro-Brasileiro de Sergipe: Revalorização da Herança Negra

A criação do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe e sua localização na cidade de Laran­


jeiras, por decreto do governo do Estado de 1976, atendem a demandas locais articuladas à po­
lítica cultural de caráter mais geral, que busca associar patrimônio cultural, folclore e turismo.

A crise de legitimidade que atinge o regime político autoritário no início da década de 70,
jáprenunciado nos protestos urbanos de 1968 e explicitada com a vitória das oposições em 1974.
(Falcão, 1982:31 apud Miceli, 1982), leva o governo a tentar alternativas com vistas ao esta­
belecimento de uma hegemonia cultural. Em 1975 é aprovado o plano de uma Política Nacional
de Cultura, mas políticas culturais mais localizadas já vinham sendo adotadas pelas universida- I
des por intermédio de programas de extensão que geraram, entre outras iniciativas, grandes festivais
de arte realizados em cidades históricas,5 ou pelos governos estaduais, incentivados a associar
políticas de preservação de patrimônio cultural ao turismo (Sistema Nacional de Turismo - 1967
e Compromisso de Brasília de 1970).

No plano local, em 1970, é criado um órgão voltado para as questões de cultura e patri- I
mônio histórico, abrindo-se, desse modo, um espaço específico em que a cultura passa a fazer
parte da agenda pública estadual. Laranjeiras, cidade localizada na antiga e decadente zona
açucareira, com uma arquitetura marcadamente do século XIX e forte presença negra, é elevada
à condição de Cidade Monumento (1971). Planeja-se sua restauração e utilização com fins
turísticos, idéia reforçada pelo titular do Ministério de Educação, que em visita à velha cidade
a chama de Museu a Céu Aberto. A frase foi retida, apropriada e difundida com uma sobrecarga
de sentido. Ela expressava e resumia o sentimento de afirmação de identidade de Laranjeiras, | \
uma cidade que fora rica, tivera destacada vida cultural, em função do que fora cognominada
Atenas Sergipana, e tentava recuperar seu prestígio. Nesse clima, são incentivados os grupos
folclóricos, sobretudo os de raízes negras, evocadas a animação cultural da cidade do fim do
século XIX e a vida senhorial fixada na antiga Casa de Laranjeiras - pequeno museu que na
década de 40 celebrava a memória da cidade cujas peças tinham sido deslocadas, nos anos |
60, para um Museu Histórico Estadual localizado em São Cristóvão, aprofundando o sentimen-'
to de perda dos laranjeirenses. É nesse contexto que o Estado dá início à restauração da cidade,
sob os auspícios do Programa Integrado de Reconstrução de Cidades Históricas do Nordeste
(1973) e, consoante com os interesses da época, procura dar-lhe destinação que justifique os |
desembolsos e tragam retornos econômicos e políticos. Nessa lógica, em que o turismo teria
importante papel a desempenhar, são criados vários equipamentos culturais, entre os quais o Museu
Afro-brasileiro em Laranjeiras, concebido como um resgate da presença negra marcante não só t _
na economia, mas na vida cultural local, na qual persistem várias manifestações com referências |
afro-brasileiras, expressando-se através do catolicismo popular, de vários terreiros e rituais
diversos. Estes são estudados, apoiados, revitalizados, e o folclore passa a constituir-se no|
suporte de um grande festival que, sob a denominação de Encontro Cultural de Laranjeiras, se h
inicia em 1976, mesmo ano de abertura do Museu Afro-brasileiro (Nunes, 1993).

Instalado no prédio onde funcionara, na década de 40, a Casa de Laranjeiras, o Museu l


Afro-brasileiro abriga mobiliário, instrumentos de trabalho e castigos de escravos e uma varie- v
dade de outras peças relacionadas com a presença negra. A exemplo de muitos outros, teve ‘
seu acervo constituído com a compra de coleções já formadas por particulares, doações diversas Í
ou aquisições de peças nos mercados, apresentando hoje uma configuração diferente de quando fc
foi inaugurado, devido às incorporações de peças e seus novos arranjos. Não é nosso objetivo |
fazer uma análise do museu como um todo (Santos, 1997), mas pensai- nas formas de inclusão/ f
exclusão de objetos vinculados aos cultos afro-brasileiros e sua articulação com esse momento £
histórico em que se faz uma nova descoberta do negro. Ki
í
No último quartel do século atual, momento em que nas entrelinhas do universalismo |
reaparecem as chamadas minorias, multiplicam-se os estudos sobre o negro em diferentes campos ' j
disciplinares, e os movimentos organizados em tomo de questões étnicas ganham visibilidade, *
Entre as políticas governamentais de preservação, atenta-se para uma conceituação mais abran gi
gente de patrimônio cultural no sentido de incluir as realizações das diferentes etnias (MiceliM
1984). Ampliado e diversificado, o campo das religiões afro-brasileiras .gozava de outro estatutoB
na sociedade brasileira. Uma ampla rede de entidades civis, tecida ao longo de décadas e or-fe
ganizada em tomo de federações de cultos de diferentes abrangências e denominações, passoiiB
a intermediar a relação dos centros e terreiros com o Estado, dispensando assim a mediação dl t<

42
Polícia e a necessidade de fichamento nas Secretarias de Segurança Pública. Os terrenos tinham
uma situação legalizada e, durante o período autoritário, enquanto setores da Igreja Católica
entravam em confronto com o governo, este, muitas vezes, recorreu às religiões mediúnicas em
busca de legitimidade popular no campo religioso, respaldado na caracterização da Umbanda
como religião brasileira e apoiando rituais mais espetaculares com potencial turístico.

Em Sergipe, sob a chancela de importante liderança política e de chefias religiosas locais,


organiza-se em 1968 a primeira federação e, na década seguinte, os terreiros ganham maior
visibilidade com os festejos dedicados a Iemanjá e realizados nas praias com apoio dos órgãos de
turismo e cultura do Estado. Nesse processo destaca-se um pai-de-santo cujo trânsito na buro­
cracia era facilitado pelos contatos com políticos, setores culturais e imprensa, tomando-se conhecido
como elo de articulação na relação dos terreiros com as autoridades e segmentos diversos da
sociedade (Maia, 1998). E por intermédio desse pai-de-santo - Gilberto da Silva, conhecido como
Lê, chefe do Terreiro Oxosse Tauamin, localizado em Aracaju, que se faz a inclusão da maior
parte dos objetos da coleção sobre as religiões afro-brasileiras no referido museu. Há várias versões
sobre a procedência das peças. Segundo uns, ele teria vendido ao museu os objetos de seu terreiro
e renovado a parafernália dos seus objetos de culto, mandando confeccionai" novas peças, ou
comprando-as no Mercado Modelo, em Salvador, onde se abastecem muitos dos terreiros de
Sergipe. Noutra versão, as peças novas teriam sido enviadas para o museu, pois ele não abriria
mão de seus objetos sagrados, carregados de “força” e necessários aos rituais. O mais provável -
e esta é a versão de uma ex-diretora do Museu - é que tenha feito uso dos dois expedientes,
conservando no terreiro os objetos mais sacralizados e desfazendo-se daqueles que, a seu critério,
poderiam ser substituídos. A documentação disponível não permite elucidai' essa questão, uma
vez que nas fichas das peças o que consta como procedência é o terreiro Oxosse Tauamin, localizado
em Aracaju. Identificado como de tradição angola, esse terreiro serviu também de modelo para a
montagem da sala principal da exposição sobre cultos (Santos, 1997:75). No museu, atualmente,
estão também representados dois outros terreiros tradicionais de Laranjeiras, que têm sido objeto
de alguns estudos (Bezerra, 1971, Dantas, 1988). Centenários, esses dois centros de culto invocam
uma mesma origem africana e desenvolveram ao longo dos tempos intensa rivalidade, em que a
pureza africana era ponto de discordância e muitas acusações, sendo hoje tidos, um como “nagô
puro” e o outro como “nagô-toré” ou “nagô misturado”, em vista de ter incorporado o culto dos
caboclos. Essas diferenças e dissensões são repostas no museu, onde o terreiro de Santa Bárbara
Virgem, tido como “nagô puro”, ocupa uma sala; nela estão expostas, sobretudo, fotos e réplica de
altar e de peças, pois suas lideranças pouco doaram ao museu, considerando os objetos necessários
ao culto. Noutro espaço estão depositados os vários objetos doados pelo terreiro Filhos de Obá, o
“nagô-toré”, entre os quais a cadeira de seu falecido pai-de-santo mais famoso, que na década de
40, acusado de feitiçaria, teve vários embates com a polícia. Tombado como patrimônio cultural
de Sergipe na década de 80, esse terreiro já não realiza festejos públicos há mais de vinte anos,
embora mantenha os objetos rituais em seus espaços e nas velhas e novas edificações que foram
restauradas pelo poder público. Transformou-se em ponto de visitação de pessoas de destaque que
passam pela cidade e dos intelectuais que participam do Encontro Cultural anualmente realizado
na cidade. Com o objetivo de voltai' a funcionar como uma unidade de culto, com diligente e um
coipo de fiéis, e realizar os antigos rituais sob orientação de entidades do movimento negro, vem
pleiteando ajuda extema dos poderes públicos para financiai- os rituais dos chefes falecidos e
reabrir o terreiro.

Concebido e instalado como um lugar de memória negra a ser preservada juntamente


com a nova identidade que vai sendo construída da cidade de Laranjeiras - antes Atenas
Sergipana, agora Museu a Céu Aberto -, o Museu Afro-brasileiro, ao contemplar de forma
individualizada terreiros de diferentes “nações” auto-identificadas como angola, nagô e nagô-
toré, amplia o leque de tradições religiosas aí representadas, mas, paradoxalmente, aumenta a

43
PROCESSO MUSEOLOGICO: CRITÉRIOS DE EXCLUSÃO O CASO
DOS MUSEUS DE HISTÓRIA NATURAL

C. Roberto F. Brandão*

0 chamado Relatório “Jobson”, preparado pela comissão desi, port. USP GR 2073
de 15/07/1986 por ocasião das discussões que levaram à criaç: Sl Museu de Arqueologia
e Etnologia da USP, definiu o conceito de curadoria cie : que vem sendo adotado pelos
museus da Univ irsidade de São Paulo.

“Curadoria envolve um ciclo completo de atividades, desde a formação e desenvolvimen­


to dos acervos (segundo racionais pré-definidas que levam em conta os acervos já existentes
eas perguntas que se pretende investigai'), a conservação física das coleções (o que implica soluções
pertinentes de armazenarnenio e eventuais medidas de manutenção e restauração), a documenta­
ção, a pesquisa e a explor^ão dos diversos meios de divulgação e acesso à informação pelo
público, desdeo visitante evenraíl ao mais especializado”.

Ainda segundo esse relatório, se o que dá especificidade a um museu é o acervo, o que dá


especificidade ao acervo é a problemática científica (objetos do conhecimento) que ele permite
desenvolver. O acervo, assim, tem que ter sistemática, coerência e abrangência (representativi-
dade mínima dos problemas propostos).

No caso dos museus cujo acervo constitui-se de objetos naturais, o conceito de espécie
biológica determina os critérios de exclusão. O histórico do conceito de espécie biológica
influenciou decisivamente as políticas de coleção, inclusive sua própria arquitetura. Espécie é
entendida hoje como uma entidade genética natural, ocorrendo em determinada área geográfica
e mostrando uma amplitude de variação; para representar essas entidades, os acervos devem
incluir representantes de toda área de distribuição das espécies e de toda gama de variação aceita
para elas. O estudo científico desse tipo de acervo deve ainda, forçosamente, levar em conta o
cenário evolutivo biótico e abiótico onde se desenvolveu a história das espécies, o que requer a
articulação inter-institucional, já que nenhum museu conseguiria reunir coleções representativas
de toda a biota mundial. Isto exige muitas vezes o desenvolvimento de ações multidisciplinares,
por envolver diferentes técnicas e profissionais especializados.

Os Códigos Internacionais de Nomenclatura determinam também o tipo de cuidado


que os exemplares importantes nomenclaturalmente devem receber, condicionando os crité­
rios para aceitação dos nomes das espécies e as garantias de acesso ao acervo por pessoal espe­
cializado.

Compartilhamos a Terra com, seguramente, milhões de outras espécies de animais, ve­


getais e microrganismos, cuja diversidade de formas e relações complexas foram moldadas du­
rante os mais de três bilhões de anos de evolução da vida. Esses organismos estão interconecta-
dos por processos ecológicos que modificaram e modificam a atmosfera, o clima e as caracterís­
ticas físicas do planeta, que por sua vez formam a base para a própria vida. As populações de
uma destas espécies, a humana, dependem de um grande número de outras espécies para obten­
ção de alimento, roupas, medicamentos e outros bens essenciais. O conhecimento sobre essa
diversidade de organismos vivos é portanto fundamental.

Este ensaio baseia-se em parte em texto elaborado por Constantino & Brandão (in press)
a ser publicado em volume especial da revista Humanidades da UnB sobre os avanços recentes
nas disciplinas que compõem a Biologia.

47
O primeiro passo em direção à sabedoria, diz um ditado chinês, é poder chamar as coisas
pelos seus nomes corretos (Wilson, 1998). Dar nomes às coisas é tão fundamental, que a Taxo-
nomia talvez possa ser chamada de a verdadeira “profissão” mais antiga do mundo. A Taxo-
nomia pode ser definida como a ciência da classificação, e o termo deriva do grego taxon ,
(arranjo) e nomus (lei), primeiramente formulado por Candolle (1813) para a classificação das
plantas. É a disciplina que estuda e nomeia os organismos e que continua sendo a base de toda
a Biologia, que adota um sistema de classificação firmemente enraizado no Huminismo do século
XVB3, quando se acreditava ser possível catalogar todas as espécies vivas que existem na Terra.

Esse sistema de nomenclatura, desenvolvido pelo médico e botânico sueco Carolus Linnaeus
(1707-1778), é aparentemente muito simples. Trata-se de um sistema hierárquico em que grupos
menores são reunidos dentro de grupos maiores: espécies em gêneros, gêneros em famílias,
famílias em ordens, ordens em classes, classes em filos e filos em reinos. Em 1758, Linnaeus
listou 4236 espécies animais em 312 gêneros, distribuídos em 34 ordens, e estas seis classes: Mammalia,
Aves, Amphibia, Pisces, Insecta e Vermes (Papavero, 1994). Naquele momento era possível a
um zoólogo (e considerado como mínimo) conhecer o nome de todas as espécies descritas, mas
isto durou pouco. O último catálogo mundial das formigas (Bolton, 1995), por exemplo, lista
9536 espécies atuais reconhecidas até 31 de dezembro de 1993, reunidas em 296 gêneros e estes
em 16 subfamílias, que compõem a família Formicidae, enquanto Linnaeus reconhecia apenas ■
o gênero Formica com 17 espécies.

Até o presente, são conhecidas da ciência cerca de 1,4 milhão de espécies agrupadas em
6 reinos: Animalia (animais multicelulares), Plantae (plantas superiores), Fungi (fungos e leve­
duras), Protista (protozoários e algas unicelulares),Monera (bactérias e cianofícias) zArchaea
(reino proposto recentemente para um grupo de organismos unicelulares previamente incluídos
em Monera). Além disso, estima-se que o número de espécies a serem descobertas e descritas
esteja entre 10 e 100 milhões. Esses números impressionantes contrastam com o pequeno número
de plantas e animais que conhecemos em nossa vida cotidiana. A maior parte dessa diversidade
compreende organismos de pequenos a microscópicos, principalmente insetos, que correspon­
dem a dois terços de todas as espécies conhecidas, e também ácaros, nematóides, fungos, bacté­
rias e outros microrganismos. Numa única árvore de uma floresta tropical vivem centenas de
espécies de insetos, e centenas de espécies de árvores podem ser encontradas numa pequena ;
área de floresta tropical. Num punhado de solo podemos encontrar uma infinidade de pequenos
insetos, ácaros, nematóides, fungos, bactérias e outros organismos.

A Sistemática é a parte da Biologia dedicada ao estudo da diversidade biológica e à com­


preensão das relações entre espécies. A palavra “Taxonomia” é muitas vezes usada como sinô­
nimo de Sistemática, mas refere-se à teoria e prática de classificação, não necessariamente envol­
vendo o estudo das relações entre os organismos. Os sistematas ou taxonomistas produzem
classificações que servem de base para a organização de todo o conhecimento biológico sobre
essas espécies. Essa classificação pode também ser usada para prever características das diferentes
formas de vida, mesmo as ainda não descobertas. Embora nosso conhecimento sobre a diversi­
dade biológica esteja incompleto, os métodos de análise disponíveis, em conjunto com as coleções j
zoológicas, botânicas e de outros organismos, permitem a compreensão da diversidade bioló­
gica numa escala global.

Ao longo dos últimos cem anos, pesquisadores brasileiros acumularam expressivo material
zoológico em coleções. Ainda que não exista uma comparação formal com a situação em outros I
países em mesma fase de desenvolvimento sócio-econômico, em termos absolutos, a situação
brasileira no que tange a material zoológico depositado em coleções oficiais é muito superior.
Por isso, e considerando o fato de o Brasil ser um país concentrador de diversidade, urge o
estabelecimento de políticas oficiais que não só preservem adequadamente os recursos já dispo­
níveis ex-situ, mas que também contribuam para identificai' e sanai' lacunas importantes neste
conhecimento.

A importância da manutenção de coleções já foi assinalada diversas vezes (Cohen & Cressey,
1969; Marinoni et ai, 1988; Systematic Agenda 2000,1994; Lane, 1996; Oliveira & Petry, 1996,
entre outros). Mesmo assim, vale lembrar alguns pontos que justificam o investimento da socie­
dade na preservação desse valioso patrimônio científico, em vista do que as coleções represen­
tam e dos benefícios que podem gerai'. Assim, a importância das coleções pode ser vista sob
vários aspectos:

- Registro permanente da herança natural do planeta, representando um investimento


contínuo da sociedade no esforço de entender o mundo natural;- Base para a pesquisa em muitas
disciplinas científicas, em particular as que estudam a descrição, classificação e reconstrução da
história evolutiva das espécies;
- Preservação dos elementos para a comprovação de pesquisas pregressas, possibilitando
a verificação da validade da informação científica;
- Fonte de informações críticas para diversos campos da ciência, como Agricultura,
Biogeografia, Biologia
- Pesqueira, Conservação e Manejo de recursos naturais, Bioquímica, Biotecnologia, Ecolo­
gia, Epidemiologia,
- Evolução, Genética, Medicina, Toxicologia, mudanças globais, Legislação etc.;
- Base de planejamento para pesquisas futuras;
- Valor didático, dando suporte a atividades de ensino secundário (feiras de ciências),
universitário e pós-graduação;
- Apoio a programas de educação ambiental, auxiliando a promover a conscientização
do público para as questões ambientais e de preservação da biodiversidade.

As coleções científicas sumarizam as informações sobre as espécies que, incorporadas a


bancos de dados informatizados e gerenciadas eficientemente, podem gerai' uma série de
benefícios. Alguns desses benefícios são:

- Melhor documentação sobre extinção e alterações de distribuição de espécies;


- Análise e monitoramento a longo prazo de mudanças ambientais; - Descoberta de
novos recursos biológicos, direcionando melhor a pesquisa de genes, agentes biocontroladores e
espécies potencialmente úteis para a humanidade;
- Subsídio a políticos, legisladores, técnicos e tomadores de decisão no estabelecimento
de prioridades em políticas conservacionistas e de manejo de recursos naturais sustentáveis;
- Possibilidade de acesso imediato ao conhecimento sistemático para a resolução de
problemas;
- Melhora na relação custo-benefício do manejo de recursos biológicos já que bancos
de dados on line possibilitam um acesso mais eficiente a informações sobre Sistemática e
disciplinas relacionadas;
- Promoção de novas possibilidades de comparações e associações entre os dados bioló­
gicos e os de outras fontes, como biotecnologia, geologia, ecologia, genética molecular etc., que
promovam uma melhor compreensão, preservação e uso sustentável da diversidade biológica
em escala global;
- Fornecem o contexto científico para o entendimento dos processos de especiação, extin­
ção e adaptação que produziram a atual diversidade da vida;
- Incremento da comunicação e colaboração global, com conseqüente redução da
duplicação de esforços eaumento da produtividade científica;

49
- Estímulo ao ecoturismo, ao fornecer elementos para exibições sobre a história natura
ecossistemas de uma região.

A grande demanda de informações sobre a biodiversidade brasileira, decorrente principal­


mente dos compromissos do país perante a Convenção da Diversidade Biológica, e a crescente
valorização dos recursos biológicos devido às novas técnicas de biotecnologia aumentam a de­
manda de informações e serviços das coleções científicas em geral. Para atendê-la, será essen­
cial o estabelecimento de uma política oficial de apoio que ofereça as condições para que as
instituições mantenedoras de coleções preservem, organizem e expandam seus acervos, bem
como gerenciem adequadamente e ponham amplamente à disposição as informações neles
contidos.

Recentemente, pelo menos três iniciativas procuraram diagnosticar as condições de


armazenamento, preservação, documentação e acesso público das coleções zoológicas brasilei­
ras, listando ainda o pessoal técnico, estudantes de graduação e pós-graduação, além de pesqui­
sadores em atividade e inativos que trabalham nas diversas etapas relacionadas com a curadoria
desses acervos. Tais iniciativas foram patrocinadas pelo Ministério do Meio Ambiente em
associação com a Organização dos Estados Americanos e Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento. Alguns dos resultados estão disponíveis eletronicamente na página: http:/
/bdt.org.br/bdt/oeaproj e em Brandão & Yamamoto (1997) e Guedes (1998).

Histórico

A Taxonomia é uma das práticas científicas mais conhecidas. O homem primitivo tinha
um envolvimento muito maior com o ambiente natural do que o homem urbano atual, e um
conhecimento substancial sobre as plantas e animais que ocorriam localmente era essencial para a
sobrevivência. Esse fato reflete-se num rico vocabulário sobre os organismos de importância
imediata, como grandes predadores, fontes de alimento e vestimenta e os detentores de propriedades
medicinais ou mágicas. Tribos indígenas atuais possuem um conhecimento surpreendente
sobre plantas, aves, peixes e outros animais, especialmente aqueles de interesse para sua vida
diária. Os índios caiapós, por exemplo, são capazes de reconhecer 54 espécies diferentes de
abelhas, várias delas usadas como fonte de mel (Posey, 1983; Camargo & Posey, 1990).:
Além disso, a classificação das abelhas empregada pelos caiapós apresentou uma concordância
de mais de 80% com a reconhecida atualmente pela ciência.

Os primeiros naturalistas conheciam apenas a fauna e a flora da região em que viviam. J


Aristóteles menciona apenas cerca de 550 tipos diferentes de animais, e os manuais de ervas
medicinais da Renascença continham entre 250 e 600 espécies de plantas (Mayr, 1982). Mas |
mesmo os antigos gregos já sabiam da existência de fauna e flora diferentes em outras regiões |
pelo relato de viajantes. A descrição de animais estranhos como elefantes, girafas e tigres exci-1
tava a imaginação dos europeus. Descobrir e descrever essas criaturas extraordinárias era a grande I
paixão de viajantes e escritores, da Grécia antiga à Europa do século XVIII. A medida que os I
exploradores europeus começaram a descobrir e explorar novos territórios, a perspectiva sobre a
riqueza e a localização geográfica de fauna e flora exóticas foi se ampliando. Com o desco-1
brimento da América, da Austrália e das ilhas do Pacífico abriu-se uma nova dimensão paia |
a apreciação da diversidade biológica.

No século XVIII começaram as grandes expedições, que se aceleraram no século XIX. j


Elas percorreram todos os cantos do mundo, trazendo amostras de animais e plantas de todo §
tipo, enchendo museus particulares e induzindo a criação de grandes museus nacionais. 0 1
trabalho de Humboldt e Bonpland na América do Sul, de Darwin no Beagle, de Wallace nas

50
índias Orientais e de Bates na Amazônia é bem conhecido, mas milhares de outros investiga­
dores participaram desse esforço global. O conhecimento sobre a diversidade aquática começou
a avançar mais tarde. Expedições oceanográficas passaram a ser organizadas no século XIX
e abriram novas fronteiras, revelando a existência de muitos novos grupos de organismos. A
invenção do microscópio no século XVII abriu outra fronteira importante: o mundo dos orga­
nismos não visíveis a olho nu.

Aristóteles pode ser considerado o pioneiro da classificação biológica. Ele viveu por alguns
anos na ilha de Lesbos, onde se dedicou ao estudo da Zoologia, particularmente de animais
marinhos. Estudou sua morfologia, embriologia, hábitos e ecologia, reconhecendo grupos como
aves, peixes, baleias e insetos, e mesmo grupos menores como Coleoptera e Diptera. No en­
tanto, ele não propôs uma classificação ordenada e consistente de todos os animais e empregava
algumas divisões consideradas hoje artificiais por não refletirem a história evolutiva, como
animais com sangue e animais sem sangue. Aristóteles também escreveu sobre plantas, mas
esses escritos foram perdidos. Dioscórides, um médico grego, viajou muito e adquiriu vasto conhe­
cimento sobre as plantas úteis ao homem, descrevendo cerca de 500 plantas de uso medicinal
ou que forneciam temperos, óleos, resina ou frutos. O trabalho de Dioscórides foi a principal
referência na Botânica por cerca de 1500 anos. Apenas no século XIII começaram a aparecer
obras com algum conteúdo original, basicamente manuais de plantas úteis e medicinais pro­
duzidos por herbalistas.

A classificação das plantas sofreu grande avanço no período entre os séculos XVI e XVIII,
com os trabalhos de Cesalpino, Magnol, Tournefort, Rivinus, Bahuin, John Ray, Linnaeus e
outros. O método de classificação que esses botânicos empregavam era o da divisão lógica,
emque um grupo grande é dividido em dois menores com base numa característica, por exemplo,
plantas com flores e plantas sem flores. Essas classificações funcionavam também como esque­
mas de identificação, mas são hoje consideradas artificiais. Linnaeus é considerado o pai da
Taxonomia por ter desenvolvido um método prático e eficiente de classificação. Seu sistema
binomial de nomenclatura e a classificação hierárquica são empregados até hoje. Cada espécie
recebe um nome composto de duas palavras, sendo que a primeira corresponde ao gênero e a
segunda, ao nome específico. Linnaeus era adepto do essencialismo de Aristóteles e Platão e
acreditava que as espécies biológicas refletiam a existência de tipos eternos e imutáveis, ou
essências, e por isso seu conceito de espécie é chamado de tipológico. Como homem religioso, ele
também acreditava que um dos objetivos da classificação era revelai' o plano da criação divina.

O método de classificação por divisão lógica começou a se mostrai' ineficiente quando


os botânicos e zoólogos europeus foram inundados por um número expressivo de novos grupos
de organismos encontrados nos trópicos. Ficou então evidente que essas classificações, que
eram na verdade esquemas de identificação, funcionam bem apenas quando aplicadas a fauna
e flora limitadas. Gradualmente o método de divisão lógica foi substituído por um agrupamento
empírico de organismos com características semelhantes. Os grupos assim formados eram
considerados mais “naturais”, embora o significado exato do que seria uma classificação
natural não fosse bem estabelecido. Essa questão foi respondida em 1859 com a teoria da
evolução do inglês Charles Darwin, segundo a qual os grupos naturais são aqueles cujos
membros descendem de um ancestral comum. Espécies descendentes de um ancestral comum
mais próximo tendem a ser mais semelhantes entre si do que espécies mais distantes. Em sua
obra A Origem das Espécies, Darwin também propôs um conjunto de critérios claros para a
construção de uma classificação natural.

No entanto, nos quase 100 anos após a publicação da obra de Darwin, muito pouco foi
feito no sentido de empregar métodos objetivos para produzir classificações naturais que

51
refletissem a história evolutiva. Por algum tempo os taxonomistas continuaram a tratar espécies
dentro do dogma tipológico de Linnaeus. Só no início deste século o conceito de populações
passou a ser incoiporado à Sistemática, e espécies passaram a ser entendidas como grupos de
populações, com distribuição limitada no tempo e no espaço.

Na década de 50 deste século surgiu uma nova escola na Taxonomia, a chamada


Taxonomia Numérica, também chamada de Fenética ou Fenética Numérica. Devido à insatisfação
com os métodos tradicionais empregados pelos taxonomistas, considerados muito subjetivos,
foram desenvolvidos métodos quantitativos de classificação, que supostamente produziriam
resultados mais objetivos. Isso foi possível, em parte, pela disponibilidade de computadores
eletrônicos, uma novidade na época. A Taxonomia Numérica começou com o trabalho de Robert
Sokal na Universidade de Kansas, ganhou muitos adeptos e se popularizou nas décadas de 60
e 70 (Hull, 1988). Esse método é baseado no agrupamento de indivíduos com base numa estimativa ,
numérica da sua similaridade total. Críticas a esse método começaram a surgir quando se
concluiu que a similaridade total não é um bom indicador da proximidade evolutiva entre
espécies e pode produzir classificações artificiais. Além disso, diferentes métodos de análise ma­
temática começaram a produzir resultados diferentes, retornando à questão da subjetividade:
diferentes taxonomistas chegariam a resultados distintos dependendo do método preferido.

Mais ou menos na mesma época, um entomólogo alemão chamado Willi Hennig desenvolveu L
um método objetivo para o estudo das relações evolutivas (filogenéticas) entre os organismos, ;
Seu método baseia-se no conceito de que apenas semelhanças derivadas compartilhadas
(apomorfias) fornecem evidência sobre as relações filogenéticas e que outros tipos de semelhanças,; |
originadas em ancestrais mais distantes (plesiomorfias ou caracteres primitivos) e as causadas
por evolução independente (convergências), apenas mascaram essas relações. O método de Hennig j
foi exposto pela primeira vez num livro lançado em 1950, que foi publicado apenas em alemão
e praticamente ignorado pela maioria da comunidade científica. Apenas após a publicação de
uma segunda edição em inglês em 1966, seu método começou a se tomai' mais conhecido e a j
ganhar adeptos, particularmente na América do Norte. A partir da década de 70 começaram a
ser desenvolvidos programas de computador implementando o método de Hennig, e iniciou-
se uma verdadeira guerra entre os adeptos desse novo método, chamado de cladismo, e as!
duas outras escolas da Sistemática, a chamada escola Evolutiva e a Taxonomia Numérica, |
Atualmente, a escola Cladista, também chamada de Sistemática Filogenética, tende a ser ■
dominante, pelo menos como método de reconstrução filogenética.

Com o desenvolvimento de métodos acessíveis de manipulação e estudo do material |


genético, em particular do DNA, foi iniciada uma nova linha chamada de Sistemática Mole- H
cular, que procura estudar as relações entre os organismos com base em semelhanças encon-1
tradas nas moléculas. Para isso foram desenvolvidos novos métodos de análise e programas | '
específicos de computador. Essa área tem crescido rapidamente, principalmente devido à| |
progressiva popularização e redução do custo desses métodos. No entanto, a análise de dados R
de DNA apresenta problemas novos e ainda mal resolvidos, e às vezes produz resultados absurdos B
ou incompatíveis com os obtidos pelos estudos de morfologia, comportamento etc.

Importância da Sistemática

Agricultura. A Sistemática é importante na agricultura em dois aspectos: no controle det.


pragas e doenças e no melhoramento de plantas cultivadas. Muitos dos organismos mais f:|
importantes na agricultura são ainda pouco conhecidos no contexto da Sistemática. Um exem- É
pio recente foi a descoberta que o importante complexo de mariposas Heliothis virescemM
que atacam o fumo e o algodão, é composto de 13 espécies, e não de 5 como se imaginava I

52
(Miller & Rossman, 1995). Com o crescimento do interesse em métodos de controle de pragas
não baseados em pesticidas, a necessidade de compreender a grande variedade de organismos
que ocorrem em nossos agro-ecossistemas é cada vez mais crítica. Provavelmente milhares de
organismos potencialmente úteis no controle biológico de pragas são desconhecidos da ciência.
Antes de se tomarem economicamente úteis, esses organismos precisam ser descritos e integra­
dos em sistemas de classificação e informação. Em muitos casos existe uma relação muito específica
entre o organismo controlador e a praga, e a identificação precisa de ambos é essencial para o
sucesso dos programas de controle. Por exemplo, uma cochonilha que atacava as plantações
de café no Quênia foi erroneamente identificada como Planococcus citri e mais tarde como
Planococcus lilacinus. A introdução de inimigos naturais destas duas espécies não surtiu nenhum
efeito, e só depois que um sistemata estudou essa cochonilha e a identificou corretamente
como uma espécie nova nativa de Uganda os verdadeiros inimigos naturais foram descobertos
e introduzidos no Quênia, controlando a praga.

Existem cerca de 250 mil espécies conhecidas de plantas, das quais mais de 7 mil foram
em algum tempo usadas como alimento pelo homem. A compreensão da Sistemática dessas
plantas certamente aumentará a variedade de produtos agrícolas e pode também resultar na
descoberta de plantas mais resistentes a doenças e pragas. Em 1977, um botânico mexicano
descobriu uma população de uma espécie de milho silvestre numa floresta nas montanhas do
México. Enviada a especialistas, determinou-se que era uma espécie nova, batizada de Zea
diploperennis. Essa espécie provou-se resistente a sete doenças virais que afetam o milho doméstico,
Zea mays (Systematics Agenda 2000,1994). Por meio de cruzamentos controlados, foi possível
transferir essa resistência ao milho cultivado, resultando em novas variedades resistentes,
algumas delas já disponíveis comercialmente. Estudos detalhados de Sistemática são também
muito importantes para o uso medicinal de plantas. Uma substância anticâncer foi isolada de
Maytenus buchananii, uma planta encontrada numa única localidade no Quênia, mas a
população conhecida desta planta era muito pequena, e novas coletas poderiam resultar na
sua extinção. Um botânico foi consultado e indicou uma espécie da índia, Maytenus rothiana,
como a espécie mais próxima e que possivelmente teria também essa mesma substância. Essa
predição mostrou-se correta e só foi possível porque alguém já havia estudado esse grupo de
plantas. Tal fato ilustra bem o poder de predição de uma classificação biológica baseada em
grupos naturais.

Crise da biodiversidade. O crescimento da consciência sobre a importância da biodiversi­


dade para o bem-estar humano ocorre, paradoxalmente, na mesma época em que a atividade
humana está acelerando a redução de tal diversidade. As populações humanas crescem rapida­
mente, especialmente em países tropicais, onde a biodiversidade é maior, convertendo habitats
naturais para outros usos a velocidades cada vez maiores. Estudos recentes revelaram uma
alarmante redução da biodiversidade e aceleração do processo de extinção, principalmente
por meio da destruição de ecossistemas naturais pela ação humana. A preservação da biodiver­
sidade exige um grande esforço na identificação e proteção de áreas críticas para conservação.
A Sistemática desempenha um papel central no desenvolvimento de planos de longo prazo
para a criação de políticas públicas para o uso sustentável da biodiversidade. É necessário
conhecer os organismos envolvidos em que ocorrem e como se relacionam entre si. Estudos
recentes na Sistemática baseados em análises filogenéticas e biogeografia histórica oferecem
novas abordagens na definição de políticas de conservação. Uma estratégia baseada em
considerações filogenéticas envolveria a preservação do maior número possível de linhagens
de organismos, considerando seu potencial científico, econômico e ambiental. O número
total de espécies seria menos importante que o número de linhagens evolutivas mais antigas
e singulares, muitas vezes representadas por uma única espécie de distribuição geográfica limi­
tada. Isso contrasta com estratégias empregadas até recentemente, baseadas apenas em algumas

53
poucas espécies de maior apelo popular, como o mico-leão-dourado ou o panda. Atualmente
os sistematas tendem a ocupai- um espaço cada vez mais importante na definição de políticas
e prioridades para a conservação da biodiversidade do planeta.

Importância de Museus e Coleções

Além das atividades expositivas e educativas, os museus de história natural mantêm coleções
científicas, em geral não acessíveis ao público. Esses acervos desempenham um papel funda­
mental como centros de documentação, oferecendo um registro permanente e ordenado de
flora e fauna, incluindo a biota de localidades de difícil acesso ou onde os ecossistemas naturais
já foram destruídos. Grande parte do material preservado em museus poderia ser reposto apenas
a um custo muito elevado, sendo que em alguns jamais poderia ser reposto por representar ;
espécies ou habitats já desaparecidos. Para cada espécie descrita é necessário depositar espé- I
cimes de referência em museus e coleções, os chamados tipos, de acordo com os Códigos Inter- I
nacionais de Nomenclatura, que serão discutidos a seguir. Os tipos devem ser preservados :
com cuidado e permanecer disponíveis para reexame por especialistas. Do ponto de vista moderno, l
a coleção biológica é uma amostra de populações naturais, devendo ter abrangência geográfica
e um número de espécimes que permita o estudo da variação dessas populações.

Apenas alguns poucos grandes museus tentam cobrir toda a fauna e a flora do mundo.
Neles estão incluídas instituições como o American Museum of Natural History em Nova
York, o Smithsonian Institution em Washington, o Natural History Museum em Londres e o
Museu Nacional de História Natural de Paris. A maioria dos museus restringe-se a uma
determinada área geográfica ou a certos grupos de animais e plantas. No Brasil temos o
Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, o Museu de
Zoologia da USP, em São Paulo, e numerosas coleções e herbários menores em universidades
e institutos de pesquisa.

A Profissão de Sistemata

Os sistematas profissionais trabalham em museus, universidades e institutos de pesquisa,


Alguns dedicam-se à Taxonomia Aplicada, lidando com grupos de organismos de importância
econômica como pragas agrícolas, causadores ou transmissores de doenças etc. A demanda i.
de especialistas numa determinada área pode mudar rapidamente. Por exemplo, durante algum
tempo o domínio do uso de defensivos químicos no controle de pragas agrícolas reduziu a de­
manda de taxonomistas de insetos, mas agora, com a tendência crescente de utilização de controle
biológico, a necessidade de taxonomistas aumentou consideravelmente. No entanto, o número
de posições para pesquisa pura em Sistemática é muito limitado. A maioria dos sistematas
são professores ou trabalham com Biologia aplicada. Mesmo nas universidades o número de
oportunidades para sistematas é muito pequeno, já que a maioria não mantém vagas específicas
para esta área. Isto ocorre porque não existe tradição de oferecer Sistemática como uma dis­
ciplina regular nos cursos de graduação em Biologia, apesar de ser ela uma das disciplinas mais
básicas. Por essa mesma razão, a maioria dos biólogos tem apenas um conhecimento muito
superficial sobre Sistemática.

A formação de novos sistematas é um processo demorado, pois inclui o aprendizado de


aspectos téoricos gerais e também de especialização num determinado grupo de organismos, com
características próprias de classificação, terminologia, métodos de coleta, preparação e estudo,
Cursos regulares de pós-graduação em Sistemática são um fenômeno recente, e tradicionalmente
o treinamento era feito de maneira artesanal, no qual o aluno trabalhava como aprendiz de um
sistemata mais experiente. Um sistemata modemo deve ter um conhecimento amplo de Biologia, "
uma formação sólida em Sistemática teórica, domínio de métodos de reconstrução filogenética,
biogeografia e de morfologia comparada do grupo em que se especializa e um bom conhecimento
de Biologia Evolutiva e Genética. É necessário também ter boas noções de estatística e de uso de
computadores. Atualmente existe a tendência de empregai' métodos moleculares em Sistemática,
que passam a fazer parte do treinamento desses profissionais.

Os Códigos de Nomenclatura Biológica

As regras para atribuição de nomes às espécies, gêneros e grupos superiores estão conti­
das em cinco códigos independentes de nomenclatura para plantas, animais, bactérias, vírus e
plantas cultivadas. O Código Internacional de Nomenclatura Zoológica (Ride et al., 1985) e o
Código Internacional de Nomenclatura Botânica (Greuter et al., 1994) originaram-se a partir
da metade do século XIX e sofreram muitas modificações até as versões atuais. Embora
baseados nos mesmos princípios gerais, eles diferem bastante em detalhes. Os três princípios
mais importantes desses dois códigos são (Mayr & Ashlock, 1991): 1) exclusividade: cada
organismo deve ter apenas um nome; 2) universalidade: as mesmas regras e nomes devem ser
usadas em todo o mundo; e 3) estabilidade: os nomes dos organismos devem permanecer constantes
ao longo do tempo. Uma regra importante é a da prioridade de publicação, segundo a qual os
nomes publicados primeiro têm precedência sobre os posteriores. Ou seja, o nome de um novo
organismo precisa ser publicado para ser reconhecido e colocado em uso, e outros nomes atri­
buídos ao mesmo organismo publicados posteriormente devem ser rejeitados. Um terceiro con­
junto de regras, o Código Internacional de Nomenclatura de Bactérias (Sneath, 1993) foi
proposto na metade deste século e publicado pela primeira vez em 1958. Aproximadamente
na mesma época surgiu o Código Internacional de Nomenclatura de Plantas Cultivadas
(Trehane et al., 1995), como um conjunto de regras subordinado ao Código de Nomenclatura
de Plantas. A nomenclatura dos vírus e agentes subvirais (príons etc.) é regulada por um
conjunto de regras e recomendações publicadas pela Comissão Internacional de Taxonomia
de Vírus (Francki et al., 1990).

A existência de vários códigos independentes é uma fonte de confusão porque eles contêm
convenções diferentes para citar nomes, diferentes formas de nomes no mesmo nível hierár­
quico e diferentes maneiras de definir qual o nome correto para um determinado organismo.
Isto é ainda mais sério no caso dos organismos que não são claramente plantas, animais ou
bactérias, e que tendem a ser tratados por mais de um código ao mesmo tempo. Outro problema
é o fato de que pode haver plantas e animais com o mesmo nome, ou seja, os códigos não impe­
dem a homonímia entre os diferentes grupos. Devido a todos esses problemas, a International
Union of Biological Sciences (IUBS) iniciou um trabalho, ainda em andamento, no sentido
de preparar um código unificado, que seria chamado de Código Internacional de Nomenclatura
Biológica (Greuter et. al. 1996). Se tudo correr bem, o novo código deve entrar em vigor
dentro de alguns anos.

Tendências Atuais e Perspectivas na Sistemática

O estudo da diversidade biológica será sempre uma parte importante e ativa da Biologia,
independente da evolução de outras disciplinas. A Sistemática é ao mesmo tempo a parte
mais elementar e mais integradora da Biologia. Mais elementar porque nada pode ser discutido
sobre um organismo sem que algum trabalho taxonômico seja feito, isto é, ele precisa ser
enquadrado na classificação formal, com alguma idéia de suas relações filogenéticas. A Sistemática
também integra tudo o que é conhecido sobre os organismos, seja morfologia, ecologia, fisiolo-
gia, comportamento etc., permitindo que essas informações sejam armazenadas e recuperadas
de forma ordenada e que possam ser interpretadas no contexto de sua história evolutiva.

55
A missão da Sistemática é gigantesca e ainda resta muito a ser feito. No período de 240 anos
desde a publicação do trabalho de Linnaeus (1758) foram descritas cerca de 1,4 milhão de espécies,
mas mesmo as estimativas mais conservadoras indicam pelo menos outros 10 milhões de espécies
desconhecidas. O estudo das relações evolutivas entre os organismos começou bem mais
recentemente, e boa parte das classificações em uso necessitam de revisão. O estudo da diversidade \
biológica do planeta toma-se cada vez mais urgente com o avanço das populações humanas, que
destroem os habitats naturais, causando sua fragmentação e conseqüente extinção de espécies, a
maioria delas ainda desconhecidas da ciência. Muitas inovações têm surgido na Sistemática nos :
últimos anos, com avanços teóricos no estudo das relações entre os organismos e com o emprego
cada vez maior de métodos moleculares. Os museus de história natural tendem a se informatizai-,
pondo à disposição do público, via Internet, bases de dados sobre suas coleções. No entanto, ainda
não existe substituto para o trabalho do especiali sta e de métodos tradicionais de coleta, preservação
e estudo de animais, plantas e outros organismos. Na Sistemática, o modemo tem que conviver
com o antigo, e bibliografia e coleções antigas são ainda indispensáveis.

Questões Éticas e Curadoria de Coleções de História Natural

No início da formação das atuais coleções dos museus de história natural, a coleta de
qualquer animal e sua inclusão nos acervos era aceita sem questionamento. Talvez o exemplo
mais conhecido sejam as várias “expedições de coleta” realizadas pelo então presidente dos j
EUA, Theodore Roosevelt, cujos resultados, na forma de inúmeros mamíferos de grande
porte taxidermizados, são orgulhosamente expostos em diversos museus norte-americanos, ''
numa atividade que hoje seria vista como escandalosa por confundir-se com uma prática cada:
vez menos aceita, que é a caça esportiva, em especial de grandes mamíferos e aves.

Com o reconhecimento da fragilidade dos ecossistemas e do processo de desaparecimento


de muitas espécies, não teria mais sentido um museu atual decidir, por exemplo, pela obtenção
de uma boa série representativa de onças pintadas, ou de micos-leões-dourados. Entretanto,
ainda se aceita sem problemas a coleta de invertebrados ou de vertebrados de “sangue frio”,
apesar de os processos de extinção também estarem afetando suas populações, que vêm atingindo:
níveis preocupantemente baixos e de nossa ignorância sobre suas conseqüências.

Critérios de Exclusão em Coleções de História Natural

Finalmente, consideradas as questões discutidas anteriormente, inclusive as éticas, paia'


que um espécime seja incluído numa coleção, ele deve vir acompanhado de três informações!
básicas, sendo a mais importante delas, sem dúvida, a procedência do material. Sem isso, não g;
será possível associar a informação contida no espécime a um ponto na distribuição da espécie, í
e seu valor para o tipo de análise tradicionalmente feita em museus desta natureza torna-se f
nulo. As informações sobre o(s) coletor(es) e data de coleta permitem o resgate de dados sobre |
a maneira como o exemplar foi obtido e situam no tempo o espécime num determinado estágio ■
de seu ciclo de vida. Informações adicionais são bem-vindas, porém não condicionam em geral |
a incoiporação do material à coleção.

É importante frisar que apesar de o reconhecimento dos diferentes táxons, em especial


no caso de coleções, ser baseado na maioria das vezes na morfologia externa, a definição de uma |
espécie se dá por uma soma de caracteres que ela não esgota de forma nenhuma. O desenvol-I
vimento e a universalização de novas técnicas de estudo, entre elas a análise a nível molecular,
geram novos desafios aos museus de História Natural. É necessário preservai' não apenas o|
aspecto externo dos exemplares, mas seus tecidos, que abrigam informação por vezes essencial J|
à compreensão de determinados fenômenos que se pretende investigai'.

56
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(*) Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo - MZ/USP

50
PROCESSOS DE CLASSIFICAÇÃO SOCIAL NAS COLEÇÕES DE UM MUSEU
DE CIÊNCIAS: O CASO DO MUSEU NACIONAL, RIO DE JANEIRO

Luiz Fernando Dias Duarte'*-

Resumo

Coletar é cljassificar. Classificai- é aplicai- uma grade de valores culturais. Nas ciências naturais
esse processo é mediado por um complexo protocolo défíímvérsalização, coerente com as crenças
hegemônicas na realidade natural, presentes na cultura ocidental moderna. Nas ciências antro­
pológicas abre-se a discussão sobre o estatuto do “humano”: entre a “natureza humana” e a
“cultura”. O referencial empírico deixa de ser obviamente “natural”, e se abre uma fascinante
luta classificatória pela representação das sociedades/culturas, reveladora dos grandes processos
ideológicos a que servimos. As coleções de antropologia do Museu Nacional (e sua relação com
atividades científicas) permitem-nos observar algumas propriedades desse processo - para uma
discussão heurística.

Coletar é classificar, e classificar é aplicar uma grade de valores culturais. Os museus,


arquivos, bibliotecas, centros de documentação, bancos de dados, são sistemas constituídos
por estratos sucessivos e complexamente interligados de teias classificatórias lançadas sobre
os fenômenos, fatos e entes e apresentadas posteriormente como óbvias e necessárias.

E inevitável que seja assim: nenhuma cultura seria viável sem uma certa dose de realismo
psicológico que permita a seus sujeitos a cada momento agir de conformidade com convenções
dotadas de indiscutível autoridade. Não é senão em situações muito especiais (como as ca­
tástrofes ou aflições públicas e privadas), ou para personagens especiais (como os xamãs), ou
certas culturas muito singulares (como a ocidental moderna) que a consciência da arbitrariedade
das classificações se impõe - assim como a inquietação que acarreta.

A cultura ocidental moderna tem entre seus fundamentos ontológicos justamente uma
“inquietação” instituinte (veja-se a uneasiness de Locke, por exemplo), essa disposição para­
doxal da “dúvida” sobre a qual se assenta o empreendimento da “ciência” - com seus múltiplos
corolários e implicações sobre a organização das sociedades modernas desde o século XVIII.

A dúvida metódica não seria porém tão inquietante se não tivesse que se articular com um
outro traço fundamental de nossas crenças: a ambição universalista. Com efeito, embora saiba­
mos que o melhor caminho para a verdade seja a dúvida e a desconfiança, acreditamos funda­
mentalmente que aquela existe e que dela é sempre possível se aproximai- tendencialmente (como
na connaissance approchée de Bachelard). Sem tal horizonte - a que a crítica “romântica”
chama “positivista” - não teríamos ativado o empreendimento científico-tecnológico que tão
radicalmente vem caracterizando nossa cultura.

O universalismo descreve mais diretamente nossa atitude cognitiva em relação ao mundo


chamado de “natural”, uma vez que nossa cosmologia oficial considera a “matéria” como
imediatamente “real” e, portanto, apropriável diretamente pelo pensamento científico.

Ao se voltar porém para a “natureza humana” e suas propriedades específicas não-


físicas, tais como a linguagem, a cultura, o estado de sociedade etc., o pensamento esbarra no
arbitrário do “construído” e se produz uma zona de tensão extraordinária, permanentemente
ativa e irresolvida entre nós.

59
Seria impossível resenhai' nesta comunicação as inúmeras implicações desse estado ou
zona de tensão que constituem as “ciências humanas”. Creio que a mais importante para
nossa discussão é a da relação entre “universalismo” e “igualitarismo”. Desde o século XVII, a
nova atitude cosmológica que caracterizou a “modernidade” ocidental se fez aplicai' sobre todas
as dimensões da experiência humana. O fundamental dessa atitude era a recusa da espessura
diferencial a priori dos fenômenos e entes, que se via encarnada nas representações “religiosas”
do mundo. O “universalismo” passava a autorizar a busca do conhecimento sem qualquer
qualificação ou restrição prévia em todos os quadrantes do cosmos. Tudo era “igual” ante o
olhai' científico. O “igualitarismo” passava a autorizai' a consideração de todos os seres humanos
como isentos de qualquer qualificação ou restrição prévia em todos os rincões da Terra.
Todos eram partícipes da “universalidade” da “humanidade”.

Assim, desde muito cedo esses dois princípios classificatórios demonstraram sua solida­
riedade mútua, a despeito das gravíssimas vicissitudes da convivência de alguns de seus as- i
pectos ao longo destes três últimos séculos. Os primeiros museus ocidentais, do final do século j
x v m , testemunhavam a ação combinada dos dois princípios: tudo recolher e apresentai' do mun­
do natural, tudo recolher e apresentar do mundo cultural. Em 1818, a criação do então Museu
Real (depois Museu Nacional), no Rio de Janeiro, testemunhou esse espírito abrangente e ;
onívoro: ah se recolhiam pinturas da família real, aves empalhadas da antiga Casa dos Pássaros, j
amostras de minerais e outras matérias naturais de coleções particulares de membros da corte, |
objetos de outras culturas presenteados ao rei etc. Tratava-se naquele momento, numa situação
cultural tão periférica quanto a da corte portuguesa no Rio de Janeiro, de um universalismo
“passivo”, digamos assim. Não havia ainda coleta sistemática de nada. A única exceção talvez
fosse a coleção mineralógica encomendada pela coroa ao cientista alemão Wemer, que a
compusera com todo o requinte dos recursos da nascente classificação geológica, e que - após
muitas vicissitudes - arribou nas coleções do Museu Nacional (onde ainda hoje está).

Um pouco antes, bem na passagem do século, saíra da França uma expedição naturalista
que pode ser considerada até hoje a mais típica desse curto período em que o universalismo foi
sinônimo de igualitarismo. A chamada expedição Péron (cf. Jamin, 1979) pretendia atravessar
o mundo trazendo uma amostragem de todas as manifestações do “humano”, e o empreen­
dimento - formulado coerentemente com a proposta teórica do barão De Gérando à Sociedade f
dos Observadores do Homem - buscava testemunhar a diversidade cultural numa perspectiva \
de grande respeito aos modos de sua manifestação.

Já por essa época, porém, começavam a se articulai' as teorias diferencializantes do hul


mano que se consubstancializariam nas hipóteses “evolucionistas” e fisicalistas predominantes
ao longo de todo o século XIX. Elas imporiam à coleta antropológica uma grade de classificaçãl
bastante mais seletiva, impondo inclusive o grande desenvolvimento da coleta de ossos hu­
manos (e de mensurações físicas) que sustentaria a Antropologia Física até a II Guerra Mundia|
(cf. Santos, 1996).

As coleções arqueológicas e etnológicas manteriam permanentemente uma fundamenl r


tação ambígua: testemunho da classificação universalista-igualitária por todas as manifestaçõesM| a
do humano, testemunho da classificação diferencializante dos “estágios” do progresso d)J
civilização. Cabe sublinhar porém que - mesmo do ponto de vista positivo, universalista-H
igualitário - sua constituição interna apresentava os sinais de uma classificação fortemenlí
excludente, que não se mostraria como tal senão muito mais tarde. Os produtos da alta civi;
lização se concentravam progressivamente nos museus de história e arte (e nos sistenii m
nacionais de monumentos e patrimônio), e os produtos das “culturas primitivas” ou “exótici re
se concentravam nos museus etnológico-arqueológicos. Ao longo do século XIX, comíl “a

60
progresso da urbanização-industrialização e a valorização romântica do passado perdido, o mundo
rural ocidental foi progressivamente sendo incorporado a essa zona de preservação, com a
constituição dos primeiros museus de folclore e costumes locais. É claro que permaneceu
totalmente fora desse esforço classificatório-preservacionista o novo mundo urbano - e,
particularmente, a “classe operária”.

O caso brasileiro não foi diferente. O acervo tão múltiplo inicial do Museu Nacional foi
pouco a pouco despojado das manifestações da alta cultura ocidental, nele permanecendo ape­
nas os que tivessem uma eventual relação direta com as ciências ou os que compusessem a zona
ambígua da “arte” das civilizações antigas.1

As ciências naturais (Botânica, Zoologia, Geologia e Paleontologia) continuaram sendo


cultivadas no museu segundo os protocolos de coleta e classificação compartilhados por todo
o mundo ocidental, consolidando sem maiores indagações a representação de uma realidade
“natural” independente da razão e prática analítica aplicadas ao mundo envolvente do humano.2

A tarefa era muito mais praticamente exercitada, porquanto seus agentes eram funda­
mentalmente cientistas estrangeiros (os “naturalistas viajantes”) que depositavam parte de seus
despojos nas coleções do Museu Nacional.

As ciências humanas (ou antropológicas) se valiam de contribuições bem menos estru­


turadas - em geral doações de artefatos culturais isolados considerados insólitos - e só passaram
ase beneficiar de coletas sistemáticas a partir dos anos 1860, quando a famosa “Comissão
Científica do Império” trouxe para a instituição um volumoso acervo etnológico e arqueológico
do Norte do país. Foi a Exposição Antropológica de 1882 que sugeriu porém à instituição um
trabalho articulado de expedições, concebido por Ladislau Neto, que procurava compensar
os confusos resultados da campanha nacional de doações inicialmente desencadeada.

A análise que fez Fátima Nascimento (1991) dessa exposição revela a amplitude do
empreendimento, a intenção de mostrai' sob todos os aspectos possíveis “os nossos indígenas”
e a dificuldade de fazer aplicai' uma grade analítica, classificatória, sobre um material tão
disparatado. Embora a intenção fosse a de contribuir para a “ciência”, o resultado prático
parece ter sido uma combinação de princípios estéticos, ergonômicos ou francamente empírico-
descritivos. E não poderia ser de outra forma, dado o estado dos modelos de interpretação da
diferença cultural então em vigor em toda a cultura ocidental moderna. Não seria senão na
passagem para o século XX que Boas lançaria o novo conceito de “culturas” (no plural), como
unidades do sentido a ser buscado no emaranhado de dados, objetos, registros acumulados
sobre as formas “exóticas” da experiência humana. E - ainda assim - que imensas dificuldades
encontraria para convencer seus interlocutores nos museus americanos da razoabilidade de
sua proposta (cf. Jacknis, 1985).

Ao longo da primeira metade do século XX, a etnologia passou a ser mais cuidadosa­
mente servida por coleções analiticamente constituídas, como foram - paradigmaticamente -
as de Curt Nimuendaju e as que advieram da condição de museu depositário do material
recolhido em nome da Comissão de Fiscalização das Expedições Científicas (cf. Grupioni,
1998).

Foi também nesse período que se constituíram as primeiras coleções sistemáticas de


material relativo à “cultura popular” brasileira, aí incluídos os materiais relativos às “culturas
regionais” (que compõem até hoje uma das salas da exposição pública do museu ) e à cultura
“afro-brasileira”. Não tenho informações claras sobre as iniciativas que levaram à sua consti­
tuição.3 Certamente se hauriam da grande transformação ideológica nacional ocorrida no entre-
guerras de valorização pela intelligentzia de alguns elementos da cultura popular para a con­
solidação de uma nova imagem da Nação (cf. Vianna, 1995). Esse impulso se extinguiu porém
rapidamente, sem dúvida em função da substituição desse “cultural-nacionalismo” pelo modelo
baseado nas “classes sociais” e “desenvolvimento nacional” que ganharam hegemonia a partir
de 1950 (cf. Duarte, no prelo).

Foi assim que as coleções de etnologia do Museu Nacional logo voltaram a incorporar
apenas materiais de culturas indígenas, a não ser durante um curto período de curadoria de
Heloisa Fenelon Costa, no começo dos anos 80, em que um projeto paralelo de etnografia
urbana foi ativado.4 O grande desenvolvimento da Antropologia Social no museu (desde a
criação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social em 1968) tem correspondido
a um considerável e crescente desprezo pelas coleções e exposições antropológicas (com algu­
mas exceções por paxte de “etnólogos”), repetindo assim os impasses enfrentados por Boas no
início do século (cf. Jacknis, 1985).

Recentemente, ao propor a revalorização das exposições permanentes do museu, entre


os inúmeros desafios ponderáveis, como diretor, enfrentei o de encontrar um meio de enca­
minhar a discussão das novas e mais abrangentes exposições que a instituição deseja montar
em sua sede (paralelamente a uma intervenção cosmética nas exposições hoje existentes), tão
logo se concretizem seus atuais planos de expansão física.

As atuais exposições, montadas quase totalmente entre os anos 40 e 50, encontram-se


desastrosamente envelhecidas. Na verdade, cerca de um terço do circuito tradicional encontra-se
já fechado, desmontado por motivos de degradação física ou de desatualização científica.

Algumas condições parecem inevitáveis para essa expansão das exposições: uma
ocupação mais extensiva do Palácio de São Cristóvão (dos atuais 3 000 para cerca de 9 000
m2), o continuado respeito à estrutura e características de prédio histórico de sua sede e uma
intensificação dos recursos de informação audiovisuais paralelos às mostras. Outras vêm se
impondo nas discussões, por força das características da instituição: de sua tradição científica,
de seu papel no imaginário nacional, de sua dimensão histórica.

É assim que já em 1995, como resultado de um Seminário internacional sediado no mu­


seu para discutir seu papel e destino, tinha surgido a sugestão de reservai' o coipo da fachada do
palácio para a memória de sua condição histórica e artística específica. As exposições propria­
mente científicas ocupariam o restante do prédio, cujas reformas do início da República tinham
afetado mais profundamente suas características originais.

Desde o ano passado, com a iminência da liberação de novos espaços e recursos, consoli­
dou-se aquela decisão e procurou-se compreender como articulá-la com as demais dimensões
da identidade institucional. Uma categoria classificatória chave veio se impondo desde então:
a da “historicidade”.

A tomada de consciência da dimensão “histórica” fundamental de nossa tarefa, eviden­


temente, decorre em primeiro lugar das características primeiras da identidade da instituição.
Tendo sido criada em 1818 pelo rei d. João VI, trata-se da primeira instituição de ciência
geral do Brasil (o Jardim Botânico a antecede em dez anos no reino específico da Botânica).
Suas coleções congregam fundos históricos desde o momento da fundação. E é claro que a
continuidade das atividades da Casa por esses 181 anos conferem a todo o seu acervo (científico,
bibliográfico, patrimonial e artístico) uma profundidade histórica sem par. “Histórica” pela

62
mera distensão temporal; mas “histórica” sobretudo pela associação de suas atividades com per­
sonagens, eventos, questões fundamentais da história política, social, econômica, científica e cul­
tural da nação. Boa parte das coleções a serem utilizadas nas exibições envolve a remissão ilus­
trativa a condições de aquisição, classificação e interpretação, que ultrapassam em muito o inte­
resse estritamente “científico” - sobretudo as “antropológicas”.

A atividade científica convencional em nossa cultura é comumente concebida como do­


tada de uma racionalidade não-histórica ou mesmo anti-histórica: o avanço da “razão” aplicada
ao conhecimento da “realidade” natural dá-se numa cadeia progressiva inevitável desde que
os véus da superstição foram universalmente rasgados no alvorecer da modernidade e que os
protocolos da pesquisa sistemática foram estabelecidos. O progresso concomitante das tecnolo­
gias e seu serviço à afirmação das identidades nacionais e à promoção do bem-estar do ser
humano - apesar de parecer um pouco mais ancorado nas contingências da história -, acaba
também subordinado a uma historicidade empobrecida, a da pura linearidade evolutiva.

Seria excelente que uma instituição tão marcada pela “historicidade” como o Museu
Nacional pudesse vir a demonstrai- que não apenas as condições “exteriores” da atividade
científica estão subordinadas à contingência histórica, mas aquilo mesmo que de mais interno
caracteriza a prática científica: a concepção de suas hipóteses, o desenho de seus instrumentos
analíticos, a definição dos campos perceptivos a serem trabalhados, as grades de retenção da
informação consolidada, a determinação dos modelos de realidade a serem divulgados nos
saberes públicos. Enfim seus critérios de inclusão e exclusão, em todos os níveis.

Essa “historicidade” mesma, por sua vez, subordinar-se-ia à compreensão de que é ela
própria um valor estruturante de nossa cultura ocidental moderna (juntamente com outros tão
fundamentais como “universalismo”, “igualdade”, “humanidade”, “universo”, “ciência”, “nação”
ou “progresso”). Isso permitiria que as novas exposições do Museu Nacional viessem a articular
de um modo complexo e inovador as suas ciências “naturais” e “antropológicas”. A apresen­
tação dos quadros demonstrativos dos saberes sobre os “reinos naturais” e a vida social humana
seria feita assim sempre com informação contextualizadora sobre as condições (1) em que esses
saberes se constituíram como modos legítimos de produzir conhecimento em nossa cultura (inclusive
aqueles relativos às outras culturas enquanto objeto de observação); (2) em que seus procedimentos
analíticos se construíram, produzindo modos classificatórios consolidados; (3) em que esses saberes
e procedimentos se instalaram ou se desenvolveram em circunstâncias específicas da história da
sociedade nacional brasileira (afetando inclusive a identidade ou a dinâmica da nação); (4) em que
os materiais ou as informações que o museu apresenta vieram a se tornar disponíveis em
determinados momentos dessa instituição; ou (5) em que as novas exposições vieram a ser
concebidas, em oposição ou continuidade às diversas outras que as precederam.

Esse procedimento permitiria, no nível mais prático, articular razoavelmente as partes do


palácio dedicadas mais diretamente à exposição “histórica” ou “científica”, provavelmente lan­
çando mão de materiais científicos associados a membros da família imperial ou ao contexto
histórico da ciência no Império. Permitiria ainda transmitir como informação relevante e
contextualizada o fato de que tal peça etnológica foi coletada pela Comissão Rondon; tal outra,
mineralógica, por Orville Derby; e ainda uma terceira, botânica, pela primeira expedição cien­
tífica brasileira à ilha de Trindade.

Esse princípio organizatório permitiria sobretudo pesquisar recursos museográficos


capazes de apresentar ao público uma exposição mais densa, com diversos níveis justapostos de
informação, em que se pudesse ir do mais básico impacto mágico de peças isoladas (que não
se pode menosprezar) à mais sofisticada percepção dos sistemas classificatórios de nossa

63
cultura, passando pela apreensão dos códigos classificatórios e esquemas cognitivos intrínsecos à
tarefa educativa regulai' de um museu de ciências naturais e antropológicas.

Quaisquer critérios de inclusão são necessariamente critérios de exclusão, pois as grades


classificatórias só retêm na medida em que rejeitam. Podemos buscar hoje algumas grades mais
politicamente corretas do que outras, o que - no campo das ciências humanas, sobretudo - vem
impondo consideráveis contorsionismos às instituições culturais que assumem uma anacrônica
“culpa” pelas classificações de seus antecessores. É neste ponto que o “igualitarismo” evidencia
suas mais prementes exigências ideológicas, como forma peculiar do “universalismo” aplicada
aos fenômenos humanos.

Corretos ou não, não podemos garantir porém que nossos sucessores não nos venham
igualmente a criticar, tal como fazemos com tantos de nossos ingênuos antepassados. Tudo o
que podemos fazer de um modo geral é ser o mais explícitos possível sobre o caráter arbitrário
de nossos privilégios e exclusões. No caso de uma instituição como o Museu Nacional essa
explicitação poderá vir a ser produzida por uma sistemática “historicização” - que é provavel­
mente a mais includente das classificações.

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(*) Antropólogo, Diretor do Museu Nacional, UFRJ


(1) Veja-se que no Louvre as antiguidades mediterrâneas continuar am junto com o acervo da “arte” ocidental,l
enquanto no caso brasileiro (assim como no norte-americano) esse tipo de coleção foi agregado às coleções |
“científicas”.
(2) Como é notório, a relativização da “realidade natural” não surgiria senão no campo da Física teórica já neste |
século, por meio de um recurso analítico justamente chamado de “teoria da relatividade”.
(3) Comunicação pessoal de Mariza Corrêa, que, fazendo uma consulta sobre essas coleções, informa sobre oI
modo de incorporação de um conjunto de bonecas de pano representando figuras do candomblé baiano: teriam
sido encomendadas por Heloisa Alberto Torres para figurar numa exposição brasileira em Portugal durante os[
anos 40.
(4) É interessante ressaltar que a pesquisadora que dele se ocupava, Ana Heye, acabou por se fixar no Museu do|
Folclore (da FUNARTE).

64
PROCESSO MUSEOLOGICO: CRITÉRIOS DE EXCLUSÃO
\

Maria Célia Teixeira Moura Santos

Introdução

■ * i A <v^
Nos últimos anos, as reflexões em tomo da construção (^conhecimento, na área da
Museologia, têm áumentado consideravelmente, permitindo-iiôs lançar vários olhares sobre nossas
ações, e, consequentemente, nos capacitando a estabelecer um debate mais amplo em torno
de nosso campo de atuação, diminuindo nossa exclusão no meio acadêmico - museólogos
reprodutores do conhecimento produzido em outras áreas.

No presente trabalho, abordaremos algumas questões relacionadas com o processo


museológico, tomando çomo referencial vários estudos sobre o tema, que, devido ao tempo
destinado à presente mesa-redonda, não poderiam ser reaprcsentados para discussão, mesmo porque,
em publicação de nossa autoi íaf'intitulada Processo Museológico e Educação: Construindo um
Museu Didático-Comunitário, destinamos um capítulo a essa abordagem. Optamos por fazer uma
reflexão sobre a exclusão, olhando para o interior da instituição museu e para a aplicação dos processos
museológicos; ou seja, realizando uma autocrítica, na qual me incluo, contendo uma análise, que
será aqui debatida, que também leva em consideração que os museus e as práticas museológicas
estão em relação com as demais práticas sociais globais, portanto, são o resultado das relações
humanas, em cada momento histórico.

Por fim, com base na experiência vivida, daremos continuidade ao nosso processo de
reflexão, destacando a importância da produção do conhecimento, para a área da Museologia, e
arelevância da relação teoria-prática, pontuando alguns aspectos que consideramos que poderão
contribuir para a construção de uma ação museológica que se traduza numa elaboração histórica
na conquista de um espaço de autodeterminação.

Processo Museológico: uma Ação de Exclusão?

A análise do processo museológico pressupõe a explicitação de que sua aplicação se dá


nos contextos mais diferenciados, na relação do homem com o mundo; portanto, esse processo
está impregnado, marcado pelos resultados da própria ação, imerso na realidade concreta,
cultural, na qual estão inseridos os sujeitos sociais; assim, a aplicação das ações museológicas
de pesquisa, preservação e comunicação, a partir da qualificação do fazer cultural, está
condicionada histórico-socialmente.

A relação entre processo museológico e exclusão não pode ser entendida de forma dissociada
da tentativa de aproximação com uma visão real da sociedade como uma construção histórica
trespassada por conflitos, antagonismos e lutas, em que a questão do poder está sempre presente,
exigindo ser equacionada e socializada. A relação museu-sociedade tem sido evidenciada pela atuação
detécnicos que cumprem, bem ou mal, a política cultural estabelecida pelo sistema vigente, por meio
do atendimento a metas e objetivos propostos por determinados segmentos, e que trazem, no seu
bojo, na maioria das vezes, a ausência de uma ação comprometida com o desenvolvimento social, ou,
quando muito, especificam metas e direüizes que traduzem uma preocupação com uma aproximação
maior entre as instituições museológicas e os anseios da sociedade, permanecendo em geral no papel,
devido às diversas barreiras que inviabilizam sua execução.

Falai- de exclusão é falar de desigualdades sociais, tema por demais discutido e aprofundado por
vários autores, o que nos isenta da responsabilidade de discuti-lo, em profundidade, mesmo porque

65
I
não teríamos a competência necessária para fazê-lo. Estamos buscando, a partir da produção
bibliográfica existente, alguns suportes necessários para a relação com nosso campo de atuação -
aMuseologia.

Nesse sentido, apropriei-me da categoria pobreza, analisada por Pedro Demo (1996) 11
como sinônimo de desigualdade social, quando analisa o bem-estar social, buscando lançar 1
um olhar crítico, de avaliação das nossas ações. O autor chama a atenção para o fato de que
pobreza não se restringe ao problema da carência material, percebido sobretudo pela fome.
Salienta que se observarmos bem, nossa visão de pobreza é muito “pobre”. De um lado,
ficamos apenas com a manifestação física, material, deixando de lado a “pobreza de espírito”.
De outro, enfatiza ainda, ignoramos aquilo que é marcadamente o cerne da pobreza; o fundo
político da marginalização opressiva. Pobreza, define Demo, “E o processo de repressão do
acesso às vantagens sociais”. Prosseguindo, distingue dois horizontes mais típicos da pobreza:
pobreza sócio-econômica e pobreza política, chamando a atenção para o fato de uma estar
relacionada com a outra. O autor caracteriza a pobreza sócio-econômica como a carência I
material imposta, traduzida na precariedade comumente reconhecida do bem-estar social:
fome, favela, desemprego, mortalidade infantil, doença etc., destacando que esse horizonte é
mais pesquisado, possuindo as vantagens metodológicas utilizadas nos trâmites acadêmicos
do tipo “indicadores sociais”, porque são quantificáveis. Como pobreza política caracteriza a |
dificuldade histórica de o pobre superai- a condição de objeto manipulado, para atingir a de
sujeito consciente e organizado em torno de seus interesses. Destaca que a pobreza política j
se manifesta na dimensão da qualidade, apesar de estar também condicionada pelas carências í
materiais, mas sem se reduzir a essas, o que aponta para o déficit de cidadania. Como qualidade
política não se mede, chama a atenção para o fato de que esse horizonte é menos estudado
devido às dificuldades metodológicas para sua mensuração, e que, por outro lado, há sempre i
a intervenção do Estado, que tem dificuldade de entender que nem sempre a política social |
deve ser estatal. Enfatiza que é politicamente pobre o povo que é massa de manobra, ou seja, I
não é propriamente povo, mas objeto de manipulação pelas oligarquias, e chama a atenção I
para o fato de que, mais do que nunca, a superação da pobreza política só pode ser iniciativa I
primeira do real interessado (o grifo é nosso).

Como já dedicamos algum tempo a refletir sobre as características da política educativo-cultural I


brasileira, nos contextos social, político e econômico do país, analisando sua influência na atuação dasffi
instituições museológicas, em trabalhos já publicados (Santos, 1993, 1996), procuraremosH
abordar, neste momento, a relação: Processo Museológico-exclusão, situando, inicialmente,o fl
fazer museológico a partir de um olhar para dentro, ou seja, de avaliação de nossas ações, H
enquanto técnicos e em interação com o outro; a exclusão, provocada por nós mesmos, emII
nossa probreza política e, também, sócio-econômica; encará-las na prática cotidiana da açãol
museal e que irá refletir, conseqüentemente, nos objetivos e metas de nossas instituições. Ari]
escolha desse enfoque está relacionada com a carência, por nós constatada, de uma análise quei
permita caracterizar a ação social do museu a partir do seu interior. Sempre deslocamos o eixo!
da discussão em tomo do tema museu e sociedade para a relação com o público, com a comu-J
nidade, esquecendo-nos de que nós também somos público e comunidade, e que é somenteal
partir de um processo de crítica e autocrítica, interna e externa, que poderemos assumir nossoj
compromisso social.

Tomarei a gestão das instituições museológicas e a aplicação das ações de pesquisa, pre]
servação e comunicação como parâmetros para discussão de nosso problema, qual seja:procesm
museológico: uma ação de exclusão? Esclarecendo, entretanto, que, para nós, a aplicação doí
processo museológico não está restrita à instituição museu, ele pode anteceder à existência objeÉ
do museu ou ser aplicado em qualquer contexto social. Estamos assumindo, neste trabalho, a defmiçiB

66
de fato museal como a qualificação da cultura em um processo interativo de ações de pesquisa,
preservação e comunicação, objetivando a construção de uma nova prática social.

A partir desse momento, tentaremos inserir as ações müseológicas no contexto da


organização e gestão das instituições museais, por considerarmos que devem estar integradas
aos objetivos e metas da instituição. Na organização e gestão de nossos museus ou dos projetos
desenvolvidos em nossa área, ou em relação a outras áreas do conhecimento, percebe-se que
os sujeitos envolvidos são considerados categorias estanques, em que a cada um cabe a tarefa
de executar as ações previstas e pensadas por algumas “cabeças iluminadas”, pois em geral
estão excluídos do momento da concepção, definição dos objetivos e metas do plano diretor
da instituição, se é que eles existem, ou nem sequer foram ouvidos e devidamente esclarecidos
sobre o plano de ação a ser executado. Não há espaço para contribuição do grupo, troca,
enriquecimento mútuo, crítica salutar, porque nossa pobreza política não nos permite ver além de
nossos interesses e de nosso próprio umbigo. Além disso, nossa pobreza sócio-econômica é
utilizada para justificar a acomodação, a estagnação e a ausência de ações criativas que apontem
para as soluções de nossos problemas.

Das atividades de organização e gestão, são excluídas, completamente, as ações museo-


lógicas, como em um “quebra-cabeça” mal formulado, em que as peças nunca se encaixam,
porque as atividades técnicas de pesquisa, preservação e comunicação também são aplicadas
em compartimentos estanques, em completa dissociação entre meio e fim (Santos, 1996,
Chagas, 1996) ou discriminadas por “pesquisadores, cabeças pensantes efechadas” de outras
áreas, que nos consideram meros reprodutores do conhecimento. Sendo assim, as aplicações
das ações müseológicas têm sido muito mais resultado da aplicação da técnica pela técnica do
que resultado de um processo.

Nesse contexto, do ponto de vista da gestão, estão colocadas as condições para a com­
petição desenfreada, que facilita a inclusão ou a exclusão, por meio de práticas impróprias, que
a ausência de qualidade política nos faz aceitar passivamente, como por exemplo nossa tão
conhecida “puxada de tapete”. A ausência de liderança para administrar os conflitos,
identificando-os e tentando superá-los, sem os camuflar, talvez seja uma de nossas grandes
carências. Imperam a desigualdade, o estrelismo, o individualismo, a falta de cooperação e a
falta de visão da instituição como um todo.

Outro aspecto que nos parece interessante ressaltar é a falta de intercâmbio entre as instituições
müseológicas. A ausência de projetos integrados, mesmo entre as instituições da mesma esfera
administrativa, quer seja no âmbito municipal, estadual ou federal, demonstram a falta de correlação
entre os nossos acervos, que deveriam ser explorados, trabalhados por meio de uma ação
transdisciplinar que fosse além das organizações internas de cada disciplina, buscando os elos
indispensáveis à compreensão do mundo, na sua integridade. Nosso isolamento, marcado muitas
vezes pelo preconceito, talvez seja uma das causas que impedem o crescimento do processo
museológico. Não é raro, entre os profissionais da área, o uso de rótulos e atitudes separatistas
entre os adeptos da nova Museologia, dos museus comunitários, dos museus “tradicionais”, o que
demonstra nossa pobreza, nossa pequenez, e impede a troca salutar, o enriquecimento com a
experiência do outro, o incentivo à criatividade e à abertura de novos caminhos, sem ter que
desprezai' o conhecimento historicamente já construído. Esse processo interno de desigualdade e
exclusão tem provocado, muitas vezes, o desencanto, a baixa auto-estima, a desmotivação para a
busca de soluções e, até mesmo, o afastamento de profissionais de nossas instituições.

Comentando, ainda, o isolamento das instituições müseológicas, cito um exemplo que


estou vivenciando: há seis anos venho atuando em um projeto, em uma escola pública da cidade

67
de Salvador, cujas ações resultaram na implantação de um museu em seu interior, cujos resultados l
alcançados têm-nos permitido avançai' em relação às questões teórico-metodológicas nas áreas da
Museologia e da educação. Com o objetivo de alargar os horizontes, permitindo a interação com
outros processos, por iniciativa da nossa equipe, executamos vários projetos com outras categorias de
museus de nossa cidade, a cujas instituições alunos e professores, de diferentes níveis de ensino, ;
tiveram acesso pela primeira vez. Da escolha dos temas, passando pela operacionalização das
ações, até a avaliação, atuamos como provocadores, ou seja, “forçando a barra” para que
acontecesse a interação necessária com os técnicos dos outros museus, que, com raras exceções, j
nem sequer demonstram interesse em conhecer os objetivos de nossas programações.

Outro dado que serve de parâmetro para nossa análise, em relação ao isolamento de
nossas instituições, à redução de seus espaços de atuação, bem como em relação ao nosso i
museu, é que, desde sua implantação até o presente momento, nunca fomos procurados por
profissionais das demais instituições museológicas de nossa cidade com o objetivo de realizar
projetos conjuntos ou para conhecer os processos por nós desenvolvidos, embora já tenham
ocorrido solicitações nesse sentido, por parte de instituições do exterior e por parte de escolas
de diferentes níveis, da cidade de Salvador; o que nos faz concluir que essa necessidade não I
é sentida nem faz parte dos objetivos e metas das instituições museológicas. Infelizmente, I
não há nenhum movimento nesse sentido.

Tentar refletir sobre nossas desigualdades e nossos processos de exclusão é tarefa II


necessária, no sentido de diminuir nossa pobreza política e sócio-econômica. Consideramos
que é quase impossível uma relação aberta com o outro, no caso, a relação do museu com os i
diversos segmentos da sociedade, se não encararmos de perto nossas contradições, em um
processo constante de auto-avaliação. Ingênuo seria pensar que elas não existem ou que serão |
exterminadas, como em um passe de mágica, a partir de uma ação isolada do técnico. Identificá-
las e nos sentirmos também público, comunidade, cidadão, é em nossa opinião o primeiro
passo. Consideramos que existem alguns caminhos a serem apontados no sentido de que cada {
um de nós possa construir, dentro de um contexto histórico concreto.

Desafios e Perspectivas

Acho que um dos primeiros desafios a se considerar é tomar os pontos relevantes,


apontados pelo processo de avaliação, como indicadores para nossa ação. Nesse sentido, |
considero que nossos problemas podem ser situados nos campos da qualidade formal (desafio
tecnológico e instrumentação científica) e da qualidade política (desafio educacional, no sentido !;
de conceber futuros alternativos para a sociedade). “O intelectual não vale apenas pelo que :
‘sabe’ em termos de domínio técnico, mas igualmente pelo que ‘vale’ em termos de agente de i
mudança”. (Demo, 1996).

Ao analisarmos o curso da História, percebemos que as recentes transformações inter-;


nacionais são o resultado do trabalho de muitas pessoas e comunidades organizadas de j
diferentes contextos econômicos e culturais. Nesse sentido, Sander (1995) destaca a !
importância da capacidade de criação e ação humana coletiva na construção e reconstrução I
de perspectivas intelectuais e na adoção de soluções políticas, por meio da ação governamental
e da participação cidadã, exercida desde os mais diversos cenários culturais. O referido autor
chama a atenção para o fato de que esses elementos são observados, diariamente, nas organizações j
sociais, nas quais a intencionalidade humana e a ação organizada e concreta da sociedade [
política e da sociedade civil são fatores decisivos para a construção de um mundo livre e i
eqüitativo. Sendo assim, enfatiza que a nova matriz de poder mundial que necessitamos
constmir coletivamente deve suplantai' tanto a perspectiva dicotômica quanto a visão unidimensional

6&
na política e na sociedade, cedendo lugar a uma orientação multidimensional ou multiparadigmática,
com crescente conteúdo cultural e uma estratégia eqüitativa de ação baseada na participação
democrática.

No momento atual, a Museologia deve sintonizar-se, em qualquer de suas correntes,


com os caminhos da ciência na contemporaneidade. Sendo assim, a problematização de temas,
mediante os acervos institucional e operacional, questionará também o sentido da ciência,
contribuindo para que a própria Museologia e sua prática sejam submetidas igualmente a
reflexão, uma vez que os museus devem ser considerados como locus para a produção do
conhecimento.

A consolidação de uma política museológica deverá ser processada, tendo como


referencial um quadro teórico inerente aos museus e aos processos museais, dando lugar a que
se desenvolvam as diretrizes das instituições, preservando suas especificidades, devendo ser
um suporte essencial para a exploração adequada de potenciais ainda não trabalhados.

Portanto, a aplicação das ações müseológicas deve estar embasada na teoria e na


relação necessária entre a teoria e a prática, possibilitando que ambas sejam fortalecidas e enri­
quecidas. Retornamos ao conceito de fato museal, já explicitado anteriormente, qual seja:
“a qualificação da cultura em um processo interativo de ações de pesquisa, preservação e co­
municação, objetivando a construção de uma nova prática social”, buscando um melhor
entendimento desse conceito, já que o consideramos o suporte essencial para o desenvolvi­
mento do processo museológico. Salientamos, mais uma vez, que em nossa concepção o pro­
cesso museológico pode anteceder a existência objetiva do museu, e deve ter, na pesquisa, o
suporte essencial para seu desenvolvimento. O processo de construção do conhecimento nos
conduzirá, então, à musealização, processada na prática social - no interior do museu ou fora
dele - em sua dinâmica real, considerando as dimensões de tempo e espaço, abordando a cultura
deforma integrada às dimensões do cotidiano, ampliando suas dimensões de valor, de consciência
e de sentido. Assim, as ações müseológicas de pesquisa, preservação e comunicação não
objetivam a representação cultural, entendendo a cultura como um domínio à parte, em forma
de eventos, ou separando os objetos das práticas culturais que lhes conferiram significado,
marcada pela dissociação entre o produtor e o consumidor. Nesse processo, busca-se de
maneira efetiva, a interação dos técnicos com os demais sujeitos envolvidos, motivando a rea­
lização de novas práticas sociais, ou seja, nossa proposta teórico-metodológica está pautada
no diálogo, no argumento e em contextos interativos, compreendendo que o processo de
comunicação permeia todas as ações müseológicas, permitindo a integração e o enrique­
cimento, reconhecendo no patrimônio integral um instrumento de educação e desenvolvi­
mento.

As ações de pesquisa, preservação e comunicação referenciadas no patrimônio cultural


não podem estar dissociadas da participação e do desenvolvimento. Sendo assim, a aplicação
da técnica pela técnica está superada; pelo menos reconhecidamente superada em nossas
atividades de reflexão e avaliação, embora, na prática, ainda seja o mais recorrente.

A preservação da identidade é necessária, pois é patrimônio comunitário básico, devendo


ser o suporte essencial para o desenvolvimento. Demo (1996) ilustra a relação identidade-
desenvolvimento, salientado que o índio quer sua identidade, mas também quer trator, e destaca:
“identidade que cultiva a pobreza está na direção errada”. Por outro lado, não há por que se
voltar contra a cultura da elite, porque esta também é patrimônio social e histórico importante.
0 reconhecimento e o respeito à pluralidade e à diversidade cultural e, conseqüentemente, às
diversas categorias de museus e aos diversos processos museais se fazem urgentes e necessários.

69
Trata-se de um dos desafios colocados no sentido de diminuir as desigualdades e a exclusão.

Consideramos, também, que outro desafio a ser vencido, com qualidade formal e qualidade
política, é a gestão das instituições museológicas, alimentada por uma concepção, ou por várias
concepções, compreendendo a construção do conhecimento como processo. Destacamos, nesse
sentido, o poder realizador da teoria, tomando real os conceitos, ao passai' do universo simbólico que
os concebeu ao fazer cotidiano dos envolvidos no processo. As instituições museológicas são o resultado
dos avanços da construção do conhecimento na Museologia, em vários momentos históricos.
Compreendendo os museus como instituição, como o resultado da criação de um grupo, em constante
reflexão e, conseqüentemente, em permanente transformação, reconhecemos que seu processo será
sempre dinâmico, no sentido da recriação.

Necessário, pois, se faz refletir sobre a atuação dos cursos de Museologia destacando que
seu compromisso maior deva ser com o desempenho qualitativo, preparando profissionais que
sejam capazes de produzir conhecimento, buscando também a interseção criativa de
contribuições conceituais e analíticas de outras disciplinas, contribuindo com a necessária j
renovação dos processos museais, reconhecendo as especificidades dos diferentes contextos,
adequando os procedimentos metodológicos e técnicos às diferentes realidades, com a abertura i
necessária para a avaliação e para a reflexão crítica.

Urge reconhecer a importância dos cursos de formação, no sentido de contribuir, efe­


tivamente, para os avanços teórico-metodológicos em nosso campo de atuação, ressaltando
entretanto a necessidade de uma abertura maior no sentido de dotar seus currículos de conteúdos
substantivamente relevantes, sem perder de vista que sua maior missão é a politicocultural. E I
esse objetivo maior não pode ser alcançado somente nos espaços fechados da academia. Sirvent IJ
(1984), analisando a relação entre a educação formal e a não-formal, sugere que é possível I
organizar uma ação educativa complexa, que seja resultante de uma rede de interação entre |
diversos recursos educativos. Não se trata de somai' ou adicionar componentes isolados, mas I
de os integrar ao redor de objetivos educacionais comuns. Nessa rede insere-se a educação |
formal ou uma redefinição de seu papel frente à comunidade e aos seus recursos educativos [
não-formais. Sugere ainda a referida autora que as instituições do macrossistema constituir-se- \
iam num sistema aberto em contínua comunicação, tanto entre si como com o meio em que j
estão inseridos. Infelizmente, as experiências até o momento mostram que as instituições
menos flexíveis para se modificar dinamicamente neste processo são as escolares.

Comentando a gestão democrática e a qualidade da educação, Sander (1995) registra que


a construção e reconstrução do conhecimento na educação e na gestão educacional, comprometida j-
com a qualidade e a eqüidade, implicam um grande esforço. Chama a atenção para o fato de queesse j

esforço assume proporções enormes na América Latina, cujos países necessitam multiplicar, urgentemente, i
seus conhecimentos científicos e tecnológicos para poder participar ativamente e beneficiar-se, !
eqüitativamente, das transformações política e econômica, sem precedentes no mundo moderno. Em j

trabalho realizado em 1988, Espínola analisa o que foi escrito sobre a qualidade da educação na América i
Latina a partir de 1980 e, dentre outros aspectos, analisa o impacto da educação em termos de estrutura
social. Reconhece-se o sistema educacional como uma engrenagem a mais na esüntura social, e a !
qualidade é avaliada em termos dos efeitos da educação no sistema social, mais amplo, questionando-se j

o peso ou o impacto da educação na estrutura social e avaliando-se sua capacidade para produzir
mudanças globais. Os estudos realizados coincidiram em três aspectos:

- a qualidade dos sistemas educacionais na América Latina é deficiente;


- é necessário realizar diagnósticos dos níveis de qualidade existentes, ou seja, avaliara ,
qualidade disponível;

70
- a situação é tão crítica, que não é possível ater-se aos esforços de medição de qualidade,
sendo preciso produzir qualidade.

No esquema a seguir apresentamos alguns indicadores para a discussão em torno do


perfil para o profissional museólogo, tendo como referencial a prática social qualificada como
patrimônio cultural, musealizada em interação com os diversos segmentos envolvidos no
processo, resultado de nossa experiência, no interior e fora da universidade, enriquecendo e
sendo enriquecida, trabalhando a educação, a capacitação e a pesquisa de forma integrada.
Acreditamos que os mesmos possam contribuir, como referenciais para a discussão em tomo
dos currículos dos cursos de Museologia, em diferentes níveis, e para repensar a nossa atuação
" enquanto profissionais da área, salientando que buscamos contemplar a qualidade formal e a
qualidade política.

Considerações Finais

Ao refletir sobre o processo museológico, inserindo-o nas demais práticas sociais globais, a
partir de uma autocrítica de nossa vivência, objetivamos, com a análise aqui efetuada, apontar
alguns caminhos para que possamos assumir nosso compromisso social com qualidade, o que
implica participação, imersa em nossa prática cotidiana. Demo (1994) salienta que qualidade é
participação; com efeito, é conquista humana principal, tanto no sentido de ser mais do que nunca
uma conquista - dada a dificuldade de a realizar de modo desejável - quanto no sentido de ser a
mais humana imaginável - porque é, especificamente, a forma de realização humana. É a melhor
obra de arte do homem em sua história, porque a história que vale a pena é a participativa, ou seja,
com o menor teor possível de desigualdade, de exploração, de mercantilização, de opressão. No
ceme dos desejos políticos do homem está a participação, que segmenta metas etemas de autoges-
tão, de democracia, liberdade, convivência.

Os desafios são muitos. Entretanto, falar dos processos museais e de sua aplicação nos
diversos contextos, visando ao desenvolvimento social, sem encarar nossas contradições, nossas
fraquezas, é uma falácia. A redução das desigualdades e, conseqüentemente, dos processos de
exclusão em nosso campo de atuação está diretamente relacionada com nossa mobilização para a
participação, desde que estejamos interessados em construirá participação. Só assim estaremos
contribuindo para diminuir nossa pobreza política e sócio-econômica.

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(*) Universidade Federal da Bahia/UFBA

72
OS MUSEUS, ESSES EXCLUÍDOS DA HISTÓRIA!

Maria Margaret Lopes*

Uma das pos idades Lilvrtas pela reflexão sobre os diversos aspegtgs das exclusões com
as quais convive: nuiM-u.s contemporâneos é a perspectiva h i s ^ ^ V '

Talvez ret ii.speclos d.i história dos museus brasileiros tenha algum sentido para
nos possibilitar endimeiuos dos mecanismos cíé exclusão mantidos pelos museus
hoje em dia. Se jjh:? brevemente para as grandes narrativas clássicas que foram for-
jando nossas con jric;is sobiv u EJrasil. salla à \ ista o quanto os museus estão com-
pletamente ausent cursos.

No que caiacteríz^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ M M I ^ ^ ^ ^ ^ y ’. Cristina Bruno (1995) já apontava


o quanto nos diversos asvÊÊÊSÊÈíkonMmcão da história da cultura brasileira foi sistemática a
exclusão das fontes de c u ltu ra l!flt||t||^ |j^ li!ó g ic a s , neste caso - de tais naiTativas. Nesta
“estratigrafia do abandono” mai'cada pela opção e pela imposição das letras, da linguagem escrita,
“que sufocou os vestígios arqueológicos, outro elemento passou a representai' uma sólida e, por
que não afirmar, impenetrável camada, ou seja, a visão de que os processos preservacionistas
representam oposição ao progresso” (Bruno, op. cit.: 15).

Talvez visões como essas possam ser ampliadas também para o caso dos museus, fiéis
guardiães de diferentes concepções e processos preservacionistas, muitas vezes de fato contra o
progresso. E assim, nos museus - mesmo que em inúmeras outras vezes tenham conservado
o passado de culturas e naturezas cuja destruição o progresso exigiu -, sedimentaram-se esque­
cidos objetos de diferentes culturas, locais e épocas, produtos minerais, vegetais, animais,
coleções de tudo, excluídas de qualquer repensai' de nossa cultura.

Se retomamos os poucos esboços existentes sobre histórias dos museus no país fica evi­
dente, que mesmo aí, até recentemente, os museus - de História Natural - foram excluídos de
certas tradições históricas e museísticas. Isso se agrava, se lembrarmos que durante pratica­
mente todo o século XIX os principais museus que se organizaram no país e se mantiveram até
hoje são ou foram museus de História Natural.

Trigueiros, em sua “evolução histórica dos museus no Brasil” do final dos anos de 1950,
considerou todo o período, da instalação do Museu Real em 1818 à criação do Museu Histórico
Nacional em 1922, embora maior cronologicamente, como “não tendo a importância dos de­
mais” (Trigueiros, 1958:76).

Visões como esta talvez justifiquem a exclusão das tradições de origens de museus históricos
brasileiros - como o Nacional do Rio de Janeiro e o Paulista, de São Paulo - de seus estreitos
vínculos com os velhos Museus de História Natural, então já eles próprios excluídos de suas
funções de instituições fundamentais de desenvolvimento das pesquisas em ciências naturais,
substituídos que foram pelos institutos de pesquisa, com seus laboratórios altamente especiali­
zados nos diversos ramos das ciências (Lopes, 1997).

Excluídos até muito recentemente das historiografias das ciências no Brasil, esses museus
foram os principais loci institucionais de consolidação das ciências naturais no Brasil. Particular­
mente integrados aos movimentos de museus europeus e norte-americanos, estabelecendo relações
estreitas com os museus latino-americanos desde meados do século passado, primeiro o Museu
Nacional do Rio de Janeiro e, posteriormente, o Museu Paulista e o Emílio Goeldi estabeleceram-

73
se fundamentalmente como instituições de pesquisas científicas. Nesses museus, além dos tradici­
onais estudos mineralógicos, botânicos e zoológicos gestaram-se e consolidaram-se áreas disci-
plinares tais como a Paleontologia, a Antropologia e a Fisiologia Experimental (Lopes, 1993).

Já na década de 1920 - período em que podemos tomai' a preparação e as festividades


de comemoração do centenário da Independência do país como um marco referencial -, inaugurou-
se o processo até certo ponto sui generis na história dos museus de ciências naturais no Brasil
a que nos referíamos. Os museus de ciências naturais cumpriram papéis decisivos na organiza­
ção de nossos museus históricos.

A esse respeito, uma das tônicas dos discursos comemorativos do centenário do Museu
Nacional do Rio de Janeiro (1818-1918) foi exatamente a inexistência e a importância de se
constituir um Museu Histórico Nacional.

Uma disposição transitória dos estatutos do Museu Nacional, do início do século, já dizia
que embora não existisse ainda no Rio de Janeiro um Museu de História, o Museu Nacional
teria uma seção, dirigida por um professor, encarregado de colecionai' e conservai' os objetos
históricos referentes ao Brasil (Lopes, op.cit.).

E, em 1918, em seu discurso na solenidade de comemoração dos 100 anos do Museu


Nacional, Bruno Lobo - o então diretor - levantaria a questão da importância da criação de
um Museu Histórico Nacional, para o qual o Museu Nacional já teria importantes coleções a
doar. Em 1920, foi inaugurada no Museu Nacional a sala “Pedro II”, expondo todo o acervo
histórico disponível e, em 2 de agosto de 1922, foi criado o Museu Histórico Nacional, no con­
texto das comemorações da Independência do Brasil, a partir, entre outras, de tais coleções existentes
no Museu Nacional (Santos, 1989).

Diferentemente do Rio de Janeiro, a capital do país nesse início do século, em São Paulo
não havia a mesma tradição cultural, e seus intelectuais não tinham o mesmo compromisso de
criar uma imagem de cidade “tropical civilizada” que se ajustava ao Rio de Janeiro. “Faltava,
entretanto, a São Paulo uma identidade cultural coerente com seu papel na sociedade e na
economia brasileiras” (Ribeiro, 1993).

Ao lado de iniciativas “revolucionárias”, inovadoras, como a Semana de Arte Moderna de


22, o Museu Paulista daria também sua contribuição para a construção dessa nova identidade
cultural. A musealização da identidade local, então também referencial nacional, excluía agora,
porque não interessava mais, a exibição da heterogeneidade e do exotismo das riquezas natu- j
rais do território e de seus primeiros habitantes, que aliás o café e o progresso, quando não exter­
minaram, já haviam homogeneizado. Interessava agora musealizar o discurso dahistória oficial,
dos heróis paulistas, como José Bonifácio diretamente ligado à Independência, ainda mais no sítio
em que esta se consumara.

É nesse novo contexto que se enquadram as transformações pelas quais passaria o Museu
Paulista, após a saída de Hermann von Ihering (1850-1930), oficialmente seu primeiro diretor.
Em continuidade aos planos de transformar o Museu Paulista em um Museu Histórico, Taunay
afirmava, em 1922, que a natureza das festas comemorativas do Centenário da Independência
colocava “a História Natural em segundo plano para pôr em vivo destaque a necessidade da
glorificação das tradições brasileiras e paulistas” (Taunay, 1920).

Aproveitando os festejos da Independência, Taunay - que dirigiria o Museu Paulista


por quase trinta anos -, “capitalizou os benefícios simbólicos da Independência, que deveri-

74
am estar em harmonia com o projeto hegemônico de São Paulo no período da chamada Re­
pública Velha. Nessa ocasião Taunay inaugurou a estátua de d. Pedro I - a mesma que até hoje
é visível ao subirmos a escadaria monumental do museu exaltando-o não como fundador
do Império, mas enquanto autor do gesto gerador da nacionalidade que ocorrera naquele local,
numa das províncias mais republicanas do país. Temos então a rememoração do Império
por meio da interpretação dos republicanos, não como apologia da monarquia, mas como um
marco do nascimento da Nação e da consolidação do Estado Nacional” (Almeida e Vascon-
cellos, 1997:112).

O historiador Taunay imprimiu sua marca e assentou-se muito bem no papel de dirigir
o novo Museu Paulista, assim como Ihering o fizera na transição do século, com sua instituição
científica especializada, recolhendo zelosamente e expondo no museu os troféus das gueixas de
extermínio dos indígenas, ao mesmo tempo que armazenava cuidadosamente suas valiosas
coleções de estudo de moluscos sul-americanos.

O Museu Histórico Nacional e o Museu Paulista de Taunay inauguraram de fato um


novo período da história dos museus no Brasil. Nesse período de “musealização da história
oficial” (Lopes, 1995), que persiste em diversos de nossos museus até hoje, estão as raízes de
outras exclusões. A musealização da história oficial, apoiada em visões de mundo positivistas,
consolidou a proposta de exclusão de seu contexto de um objeto, diferenciando-o de centenas
de outros similares, baseada na concepção histórica dos grandes feitos e grandes homens (e em
geral nunca de grandes mulheres), reunindo peças consagradas como raras, únicas, originais,
autênticas.

E a invenção de uma história musealizada em São Paulo continuou com os novos museus
que se criariam nos institutos de pesquisa e posteriormente nos departamentos da Universidade
nas décadas de 1930 e 1940, que excluíram de seus própositos a investigação científica. Já não
eram mais locais de “produção” do conhecimento científico - os meros “apêndices” tão bem
explicados por Waldisa Rússio (1977). Locais de exibição que, freqüentemente, até hoje excluem
públicos, conservadores de coleções de estudo ou de ciências sancionadas, prontas para serem
ensinadas, esses museus compartilharam em certa medida a “inércia”, em termos de constituição
de museus, que Waldisa atribuiu ao período. Inauguraram o momento em que localizamos as
raízes de seus processos de escolarização (Lopes, 1991), ainda tão presentes em nossas instituições
müseológicas, que delas excluíram imensas possibilidades de criatividade e produção de ciências
e cultura.

E essa perspectiva dominante, que orienta a grande maioria dos trabalhos educacionais
em museus de qualquer tipo no país até hoje, exclui de forma epistemológica, sistemática e
hierárquica o conjunto de trabalhadores e usuários de museus.

Os especialistas de áreas de conhecimento científico específico que detêm o poder de desenhar


e redesenhai' as fronteiras entre o que se investiga e o que se divulga, se excluem de qualquer obrigação
de um contato mais próximo com educadores ou um público leigo.

Dada a exclusão das pesquisas nos museus, aos educadores de museus fica excluída
qualquer possibilidade de desempenhar papéis criativos e participativos no processo de construção
do conhecimento. Esses agentes culturais, educadores, monitores, professores, por sua vez, vão
excluir o público até de compartilhar o pouco poder que lhes resta. Aliás, ao público muitas
vezes nem sequer se permite que elabore suas próprias perguntas, trace sua própria experiência
de construção de conhecimentos, siga sua própria trajetória no interior de um museu (Lopes,
1997).

75
Retomar mesmo que de forma sucinta aspectos da história dos museus de História Na­
tural no Brasil, e particularmente em São Paulo, tem o sentido nesta exposição de, mais do que
dar respostas, levantar indagações sobre o alcance dos mais variados mecanismos de exclusão
herdados de diferentes trajetórias e com os quais convivem nossos museus. Mecanismos de exclusão
de histórias, pesquisa, público, perspectivas.

Bibliografia

ALMEIDA, A. M. e VASCONCELLOS, C. de M. “Por que Visitar Museus” . In: Bittencourt, C. (org.) O Saber
Histórico na Sala de Aula. São Paulo, Contexto, 1997, pp. 104-116.
BRUNO, M. C. O. “M usealização da Arqueologia: um Estudo de Modelos para o Projeto Paranapanema” (tese
de doutorado, USP, São Paulo, 1995).
LOPES, M. M. “A Favor da Desescolarização dos M useus”. In: Educação e Sociedade, n. 40, dez., 1991, pp.
443-455.
__________. “As Ciências Naturais e os Museus no Brasil no Século XIX” (tese de doutorado, Depto. de História,
EFLCH-USP, São Paulo, 1993).
_________ . “Le Rôle des M usées, de la Science, et du Public au Brésil”. Les Sciences Hors d ’Occident au XXe.
Siècle, Paris, ORSTOM, 1995, pp. 262-274.
__________. “Resta algum Papel para o (a) Educador(a) ou para o Público nos Museus?” In: Boletim do CECA
-B ra s il, a. I, n. zero, mar. de 1997.
__________. O Brasil Descobre a Pesquisa Cientifica: os Museus e as Ciências Naturais no Século XIX, São
Paulo, Hucitec, 1997.
RIBEIRO, M. A. R. História sem Fim... Inventário da Saúde Pública. São Paulo - 1880-1930. São Paulo, Ed.
UNESP, 1993.
RÚSSIO C. G., W. “Museu, um Aspecto das Organizações Culturais num País em Desenvolvimento” (disser­
tação de mestrado, FESP, 1977).
SANTOS, M. S. DOS. “História, Tempo e Memória: um Estudo sobre Museus a Partir da Observação Feita no
Museu Imperial e no Museu Histórico Nacional” (dissertação de mestrado, IUPRJ, Rio de Janeiro, 1989).
TRIGUEIROS, F. dos S. Museu e Educação. 2. ed. Rio de Janeiro, Irmãos Pongetti Eds., 1958.
TAUNAY, A. DE. “Resposta à Consulta do Governo do Estado sobre um Projeto de Alargamento do Museu,
Atendendo-se às Próximas Comemorações do Centenário”. In: Rev. Mus. Paulista, t. XII, 1920.

(*) Instituto de Geociências, UNICAMP.

76
‘FORMAÇAO EM MUSEOLOGIA: ALGUNS CAMINHOS
PARA A ESPECIALIZAÇÃO PROFISSIONAL”

Maria Cristina Oliveira Bruno*

‘...les autorités dont dépendent les musées et les universitésdaíí&cbáque pays devraient
reconnaítre immediatement la museologie comme une discipline decaractère et de valeur acadé-
miques, constitui : en tant que telle une spécialisation professionnelle ouverte aux étudiants
qualifiés de toute les disciplines scientifiques..,” (Patrick Boylan, 1987)
\ \
Os limites e\as conexões entre os diferentes campos científicos têm sido profundamente
alterados nas últintas d é c a d a s ^ a p ^ ^ s ^ a le g ^ a^i^eliatas na organização e no desenvolvi­
mento dos cursos universitários: As especializações que dividiram os campos do saber já consa­
grados permitiram novas e articulação e despe itíreciprocidades acadêmicas inéditas.

Dessa forma, constata-sei ícação de novas disciplinas, desdobramentos


de áreas acadêmicas já existentes e um grande esforço teórico-metodológico para novas delimitações
dos espaços específicos de cada área. O universo do conhecimento científico tem alargado suas
fronteiras, levando a uma necessária especialização dos interesses e olhares sobre os mesmos
fenômenos.

“Esta partilha dos sentidos e significados, este litígio pela apropriação dos fenômenos e o
contínuo cruzamento de olhares especializados, têm sido responsáveis por novos processos de
trabalho e por instigantes problemas ligados à formação profissional” (Bruno, 1997:12).

O campo técnico-científico dos museus vem passando por mudanças consideráveis ao longo
deste século, atraindo novos profissionais, articulando distintas áreas acadêmicas, mas, em especial,
enfrentando muitos desafios no que se refere ao estudo, tratamento e extroversão da herança
patrimonial em suas múltiplas vertentes.

É possível considerar que, após mais de um século de formação especializada, os museus


têm colaborado para os estudos e os trabalhos práticos vinculados à decodificação e conservação
da cultura material e dos espécimes da natureza, às questões ligadas à classificação e organização
desses bens patrimoniais, à elaboração de discursos expositivos e ação educativo-cultural, aos
processos avaliatórios relativos à fruição da herança patrimonial, aos problemas de marketing e
gestão institucional. Da mesma forma, o desenvolvimento dos museus tem estabelecido desafios
para a Arquitetura, para a conexão de linguagens mistas no que tange à comunicação visual, para
as estratégias educacionais que não dependem do ensino formal, entre inúmeros outros desafios.
Direta ou indiretamente, muitas áreas científicas têm dependido das ações e transformações dos
museus, e outras têm sido influenciadas pela questão preservacionista de uma forma mais ampla.

Ao longo desse mesmo período, a Museologia vem se afirmando como uma disciplina
independente e essencial para a ação dos museus.

“A história da Museologia - ou a saga de uma disciplina que ao mesmo tempo que tenta
se estruturar procura se desvincular de preconceitos ligados ao seu universo de estudos (instituição
museu) e passa por uma necessária revolução de princípios - demonstra com muita clareza
todos os conflitos que emergem da produção acadêmica contemporânea. Compreende, hoje, que
a Museologia tem um espaço próprio de experimentação, análise e sistematização de seu objeto
de estudo. Articula-se em função dos processos de musealização das referências patrimoniais que
têm sido preservadas e tem potencialidade de transformá-las em heranças culturais. Por sua

77
vez, estes processos estão voltados, especialmente, para a relação entre o Homem (público/sociedade)
e o Objeto (coleção/patrimônio) em um Cenário (museu/território)... A preocupação dessa disciplina
está centrada em dois grandes fenômenos. Por um lado, a necessidade de compreender o compor­
tamento individual e/ou coletivo do Homem frente ao seu patrimônio e, por outro, a potenciali­
dade de desenvolver mecanismos que possibilitem que, a partir desta relação, o patrimônio seja
transformado em herança e esta, por sua vez, contribua para a necessária construção das identidades
(individual e/ou coletiva).” Bruno (op. cit.: 13-14)

Os especialistas em teoria museológica (L. Stransky, K. Schreiner, A. M. Razzon, P. van


Mensch, A. Gregorová, W. R. C. Guarnieri, W. Gluzinski, entre outros) identificam, na
contemporaneidade, cinco tendências de estudos dessa disciplina aplicada: tratados sobre a
finalidade e organização dos museus; abordagens referentes à implantação e integração de um
conjunto de atividades visando à preservação e uso da herança cultural e natural; estudos espe­
cíficos sobre objetos e coleções; análises inerentes à musealidade dos bens culturais e, especialmente,
o estudo da relação do Homem com a realidade.

Essas tendências têm sido discutidas, particularmente, no âmbito das reuniões científicas
do Conselho Internacional de Museus - ICOM, desde a sua criação na década de 40. As
preocupações relativas às definições dos perfis profissionais e relacionadas com os cursos de
formação estiveram sempre presentes. O documento de base, que estabeleceu o papel do ICOM,
já evidenciava essa preocupação, e na primeira Conferência Geral, realizada em Paris (1948),
seu presidente Georges Salles afirmou que essa reunião permitiu “...de mieux compreendre
les qualifications requises à notre époque d'un conservateur de musée si l'on veut qu'il s'acquitte
convenablement de ses fonctions”. (P. Boylan, 1948)

No Brasil, os cursos destinados à preparação qualificada de profissionais de museus


existem desde 1932,noRiode Janerio1e,em 1958, esta mesma cidade sediou um grande seminário
internacional do ICOM, quando Georges-Henri Rivière apresentou um dossiê identificando
três níveis para essa profissionalização (formação de base, formação geral em Museologia e
formação especializada). Ainda nesse seminário discutiu-se que a qualificação do profissional de
museu deveria ser universitária e voltada para um conhecimento profundo sobre os museus e
coleções e as respectivas disciplinas científicas ligadas a esses recortes patrimoniais. Considerou-
se, também, a importância da formação pedagógica e da conscientização em relação ao trabalho
voltado para o público. Nas décadas subseqüentes, não só essas discussões se aprofundaram, como
se tomaram mais complexas em função dos novos desafios que têm sido impostos aos museus.

Essa trajetória tem sido mapeada por novas definições sobre os acervos e os espaços mu-
seológicos, que têm, sistematicamente, alterado suas relações com a sociedade. Nesse sentido, os
cursos de formação têm sofrido expressivas mudanças curriculares e metodológicas, com o objetivo
de preparar profissionais para as diferentes instâncias técnico-científicas dos diversos modelos
de processos museológicos. Essas mudanças, por sua vez, têm refletido o aprofundamento das
discussões epistemológicas.

Segundo Stransky (1980:39)

“...la museologie est une discipline scientifique distincte et indépendante dont Tobjet de
connaissance est une approche spécifique de lliom me à la réalité, exprimée objectivement en
des formes de musée variées au cours de rhistoire, et qui sont une expression et un reflet partiel
des systèmes de la mémoire. La nature de la museologie est celle d "une science sociale; elle
se rattache à la sphère des disciplines scientifiques de documentation de la mémoire, et contribue
spécifiquement à la compréhension de la societé humaine”.


Assim, algumas considerações devem ser sublinhadas, no que se refere ao perfil epistemo-
lógico dessa área de conhecimento e às decorrentes conseqüências na estruturação dos cursos de
formação profissional. Um dos primeiros aspectos a ser considerado corresponde à compre­
ensão de que, por estai' ligada à administração da memória, a Museologia, portanto, se vincula
aos estudos que contribuem para a construção e compreensão de um sistema que norteia a trajetória
das sociedades. Outro ponto relevante diz respeito à especificidade preservacionista desse
gerenciamento da informação patrimonial.

“...As atividades museológicas básicas, vinculadas à coleta, conservação, documentação,


armazenamento, exposição, ação sociocultural e avaliação devem estai- relacionadas a dois
grandes blocos, a saber: salvaguarda e comunicação dos indicadores da memória. O desempenho
desses dois blocos está vinculado a problemas éticos sobre o uso da herança patrimonial, às questões
de como uma sociedade enfrenta e estabelece um diálogo com seus traços culturais - mesmo
os museus sendo universais e, sobretudo, à compreensão da vocação educacional de todas as
tarefas museais” (Bruno, 1996:21 e 22).

Dessa forma, a articulação entre os dois blocos de ações e reflexões possibilita, por um lado,
a organização dos indicadores da memória e, por outro, a consolidação de fenômenos comunica-
cionais. Em um primeiro momento, os processos museológicos colaboram com a seleção,
triagem, organização e conservação da documentalidade, testemunhalidade e autenticidade
impressas nos objetos musealizados. Em um segundo momento, constroem novos valores e signi­
ficados para esses objetos, por meio de ações expositivas e educativas.

Cabe salientai-, então, que as discussões científicas sobre Museologia, Fenômeno Museológico
e Processo de Musealização são fundamentais para a estruturação dos museus, e os cursos de formação
profissional de Museologia permitem a dinamização de uma cadeia operatória de experimentos
e análises essenciais para as instituições museológicas.

A partir dessas considerações e assumindo a opção pelos cursos de especialização, o


Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo está implantando uma
nova opção para a formação profissional.2

O Curso de Especialização em Museologia do MAE-USP tem cinco bases estraturadoras,


a saber: disciplinas básicas, seminários (intensivos e temáticos), visitas técnicas, estágios e
monografias. Espera-se que as disciplinas transmitam a problematização essencial dos processos
de musealização, que por sua vez será desdobrada pelos seminários, a partir de distintos
blocos temáticos. Já as visitas técnicas e os estágios têm o objetivo de colocar os estudantes em
contato direto com as questões técnicas inerentes ao cotidiano profissional. As monografias serão
dedicadas a ensaios analíticos voltados a distintas linhas de pesquisa.

Pretende-se com esse curso possibilitar a especialização em Museologia e, ao mesmo


tempo, preparar novos profissionais para o diálogo interdisciplinar, para a sensibilização do
olhai- em relação a outras vertentes patrimoniais, para a conexão entre os acervos e as novas
tecnologias, mas, principalmente, para a compreensão de que a Museologia aproxima a
preservação patrimonial do desenvolvimento sócio-econômico-cultural.

Bibliografia

BOYLAN, P. “La Formation du Personnel des Musées: une Préocupation Mayeure de 11COM et de 1TJNESCO
depuis Quarente Ans. In: M useum n. 156, Paris, 1987.

79
BRUNO, M. C, O. “M useologia: Algumas Idéias para a sua Organização Disciplinar”. In: Cadernos de
Sociomuseologia, n. 9, Universidade de Lusófona Humanidade e Tecnologia, Lisboa, 1996.
_____ . “Teoria Museológica: a Problematização de Algumas Questões Relevantes à Formação Profissional.
In: Cadernos de Sociomuseologia, n. 10, Universidade Lusófona de Humanidade e Tecnologia, Lisboa, 1997.
STRANSKY, Z. “Museology as a Science (Athesis)” . In: Museologia, Brno, vol. 11, n. 15, 1980.

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia - MAE/USP.


(1) Após o surgimento do Curso de Museus no Museu Histórico Nacional, hoje na UNI-RIO, surgiram outros
cursos, na Universidade Federal da Bahia (Salvador), na Escola de Sociologia e Política (São Paulo) e na Uni­
versidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), além de outros de curta duração ou de reciclagem profissional.
(2) Refiro-me ao Curso de Especialização em Museologia que terá início em agosto de 1999.

&0
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROFISSIONAL DE MUSEU E SUA FORMAÇÃO
.
Pedro Paulo A. Funari*

A multiplicic
qualquer generaliz
como os há de pequenas localidades, há museus de arte, como os áá-dé rua. Nesta vaiiedade de
situações, multiplicam-se os profissionais de museus, de curadores a restauradores, de educadores
a biólogos. E pur há algumas questões genéricas que se referem ao ceme da atividade em museus,
aquilo que diz respeito à essência da ação patrimonial. No umbral do terceiro milênio, os desafios
dos profissionais cie museus podem ser resumidos em quatro grandes temas, inter-relacionados:
E t ......
1. o pluralismc
2. a relação coni% corhúnidade na criação de conhecimento de interesse social;
3. a relação necessMa entre o profissional de museu e as ciências;
4. a luta pelo saber contra as hierarquias burocráticas.

Os museus representam o mundo como parte da ordem social (Fyfe, 1998:326), com
sua Taxonomia refletindo, de forma mediada, a táksis da própria sociedade. Não é casual que
uma palavra chave na organização dos museus seja, precisamente, Taxonomia, “ordenação segundo
uma regra”,1 pois tudo no museu é classificado e ordenado. Os setores, da reserva técnica à
exposição, cada um subdividido e classificado. Essa concepção acompanha os museus ab origine,
desde sua fundação, refletindo a própria hierarquia social na qual surgiu. No entanto, no umbral
do terceiro milênio, mais do que uma única ordenação e Taxonomia, o mundo pós-moderno
caracteriza-se pelo mais radical pluralismo,2 programa explícito da proposta do Aktives
Museum. O tema central do trabalho didático do Museu Ativo consiste em transformar os
consumidores de conhecimento em produtores. As visitas guiadas deveriam, sempre que possível,
ser dissolvidas em participação ativa, um meio para que a confrontação com o mundo material
gere o sentimento inesperado, a indignação e a curiosidade (Fahmel-Beyer, 1993). Como em
uma sociedade aberta há pluralidade de opiniões, deveria, pois, haver diferentes relatos do mundo
material exposto no museu (Baker, 1991:58-59). Esse pluralismo implica subverter o discurso da
autoridade que prevalece na exposição de uma única versão, a verdade dos que controlam o poder
(Potter, s. d.:3-7).

O pluralismo não se restringe à exposição e à proliferação de narrativas,3 mas estende-se às


próprias divisões do saber no interior do museu. A segmentação dos setores reproduz uma separação
artificial entre os profissionais do museu, como se fosse possível dissociar exposição e reserva,
programa educativo e pesquisa de campo, reflexão pedagógica e científica, reproduzindo dicotomias
estranhas à prática crítica. Não se trata de adorar o acervo, mas pensar sobre ele (Potter, s. d.:39).4
Não se trata de isolar especialistas, cujo conhecimento hermético deveria ser preservado, mas é no
confronto de perspectivas que se produz conhecimento (Funari, 1997, com bibliografia anterior).
Assim, no interior da instituição museu, nada justifica a falta de diálogo entre os diversos
profissionais, senão a acomodação. A produção de conhecimento5 implica a disposição a aprender
com os outros, sejam os profissionais colegas de instituição, seja o público em geral. Ainda “é
tempo de fazer museu com a comunidade e não para a comunidade”, como dizia, há quinze anos
Waldísia Rússio (1984:60). A busca de um museu gerido com a comunidade é uma tarefa que
implica romper as barreiras disciplinares e as formalidades das compartimentações acadêmicas
(Oliveira, 1999), bem como superar o modelo do museu desligado da sociedade, mera “Torre de
Observação”, como propõe uma vertente elitista (Meneses, 1993:218). Para produzir conhecimento
impõe-se interagir com o educando (Giroux & McLaren, 1986:234) e o púbüco está muito mais
aberto a essa interação do que, normalmente, se supõe (McKee & Thomas, 1998:7).

Ô1
A comunidade não é, por sua parte, uma unidade, um conjunto homogêneo. Esse modelo
normativo de cultura já tem sido bastante criticado e não se pode idealizar a comunidade
(Jones, 1997, com literatura a esse respeito), composta de heterogêneos interesses. No entanto,
pode-se afirmar que, de maneira sistemática, são excluídos dos processos de decisão na
sociedade e, por conseqüência, nos museus, todos os que não estão no poder, de favelados a
judeus, de negros a nordestinos (Jones, 1993:203-215). Esses diversos públicos compõem
uma comunidade, ela também plural e pouco afeita a generalizações que possam dai' conta de
sua heterogeneidade. Os profissionais de museu não podem ignorar essa diversidade, nem
deixar de reconhecer no museu um instrumento a serviço dos que estão fora do poder (Vargas
& Sanoja, 1990:53), sob pena de continuarem a ser servos desse mesmo poder (Funari, 1996:18).
Para que o profissional de museu consiga atingir esse público e com ele interagir, “é necessário
tomar o seu universo cultural como ponto de partida, permitindo que ele se reconheça como
possuidor de uma identidade cultural específica e importante”, nas palavras de Paulo Freire
(em entrevista a McLaren, 1988:224). Nessa diversidade da comunidade, destaque-se o público
infantil, tanto por se tratar dos futuros cidadãos, como pela necessidade de levar-se em conta
o caráter lúdico a ser adotado pelo museu (Oliveira, 1999).

O profissional de museu sempre tem uma pergunta em mente: preservar para quê? Há
alguns anos, quando de uma homenagem póstuma ao obstinado defensor do patrimônio e humanista
Paulo Duarte, Maria Cristina Bruno (1991) evocava uma bela imagem sobre a preservação:
“Patrimônio, para Paulo Duarte, era visto com muita abrangência. Sinônimo de qualidade de vida,
pesquisa e ensino, erudito e popular, antigo e moderno e, acima de tudo, preservação para a in­
formação”.

Informação, criação de consciência, ação no mundo, transformação, eis as metas da preservação


(Funari, 1992/1993:18-19). Seria até mesmo o caso de se propor que se deve preservai' para
transformar a sociedade, pois o conhecimento não é apanágio de classe ou g r u p o , e qualquer
museu pode levar à reflexão crítica - abrir a cabeça, talvez a meta maior de um museu (Hudson,
1994:55). A começar por uma exposição que se contraponha à alienação da moda e à descon-
textualização derivada da mercantilização generalizada dos objetos em nossa sociedade pós-
modema (Durrans, 1992:14), que contribua para a autonomia do público (aquilo que os ingleses
tão bem definem como empowennent, cf. Giroux & McLaren, 1986:238). O passado, conser­
vado no museu em forma de patrimônio, serve ao presente (Luc, 1986:118). Mas não é apenas
na exposição que se busca transformar, nem só na superação das barreiras entre os setores do
museu: há que se insurgir contra a separação entre o museu e as ciências, divisão oitocentista
artificial e pouco afeita à atual busca de integração das disciplinas.6

As Wissenschaften surgidas na criação da moderna Universidade, em fins dos oitocentos,


acostumaram-se a relacionar-se com o museu e seus profissionais de forma instrumental e ana­
lógica à Taxonomia social. Assim como há os que pensam e os que trabalham, os que mandam e
os que obedecem, assim, também, o cientista se relaciona com o museu. Como se o museu fosse
um local a serviço dos verdadeiros cientistas, como se os profissionais de museu fossem servos,
à maneira dos gregos, definidos como instrumentos a serviço dos cientistas. No entanto, os cientistas
que trabalham em museus são, também, profissionais de museus! A dicotomia, de toda forma,
tende a permanecer sob o manto diáfano da cüvagem entre os pesquisadores científicos e os outros
profissionais. Nem todos os museus possuem cientistas em seus quadros, ainda que todos
tenham, por definição, profissionais de museus. Em qualquer dos casos, a clivagem existe, seja
interna ou externa ao corpo funcional do museu. Essa dicotomia separa dois aspectos indis­
sociáveis do conhecimento: teoria e prática, mundo das idéias e prática cotidiana. O conhe­
cimento científico é essencial, em especial naquilo que tem de propriamente científico, que é
o desafio às idéias recebidas e ao senso comum, para vivificar o museu. Por outro lado, não se

g>2
pode esquecer que o museu pode fornecer um manancial de desafios práticos que apenas po­
dem servir para o avanço do conhecimento acadêmico (cf. Haas, 1996: S l-S ll; Jones,
1993:203).

Nesse contexto mais amplo, como se pode situar a formação do profissional de museu e
que museu será por ele criado? Em primeiro lugar, há que se superar concepções estreitas e rígidas
do que seja e, principalmente, do que deva ser o museu. A formação do profissional de museu
não pode prescindir de um amplo e variado contato com as ciências, em geral, e do homem,
em particular. Um conhecimento crítico da história dos museus pode ser o ponto de partida
para a reflexão sobre os fundamentos pedagógicos que devem estai- subjacentes a uma educação
patrimonial (Tamanini, 1998). A formação desse profissional não se pode furtar ao
internacionalismo e ao cosmopolitismo, pois há uma imensa experiência estrangeira, que vai
dos ecomuseus aos museus de rua, cujo conhecimento é imprescindível.

A formação do profissional inclui um conhecimento, de primeira mão, das diversas ciências


envolvidas com o patrimônio e os museus, tão numerosas que, provavelmente, apenas uma amostra
poderá ser estudada pelo futuro profissional de museu.7 Essas disciplinas seriam mais bem
agrupadas por grandes eixos, deixando, ainda, que o estudante pudesse escolher áreas de
maior interesse e vocação. Tendo em vista a disparidade de situações, importante atenção deve
ser dada à variedade de museus e ao seu gerenciamento igualmente variado. O estágio torna-
se, nesse sentido, uma experiência prática que permite ao estudante tomar contato com uma
gama de instituições, de diferentes tipos, do grande museu universitário ao simples museu local.
O relacionamento com a comunidade e as formas de interação com os grupos sociais também
devem ser objeto de atenção. A patrimonialização dos bens individuais e coletivos das comu­
nidades insere-se na dinâmica de integração do museu na coletividade e, paia tanto, são neces­
sários estudos específicos, incluindo aspectos técnicos (como o registro de relatos orais e a
preservação de fotografias) e teóricos (como tudo o que se refere à criação de memórias popu­
lares). A legislação de proteção do patrimônio e tudo o que diz respeito aos aspectos jurídicos
da preservação incluem-se no necessário cabedal do profissional de museu. Esse aspecto de
sua formação conduz ao grande âmbito das implicações sociais do museu. Em que museu
atuará o profissional? Esse museu será o resultado da ação do próprio profissional. No presente,
os museus, como a própria academia, encontra-se eivada de relações de poder, de estruturas
burocráticas cuja finalidade, muitas vezes, pouco tem a ver com o conhecimento e a sociedade.8
Esta é uma situação que resulta de séculos de uma estrutura social hierárquica, patriarcal,
autoritária e voltada para a conservação do status quo (cf. Funari, 1996, com literatura).
Naturalmente, os museus, como órgãos burocráticos do Estado, em sua maioria, reproduzem
essas relações iníquas e inibem tanto a reflexão como a ação crítica. Os profissionais de museus,
como também os cientistas, aliás, são incentivados ao conformismo, à aceitação das verdades
correntes, tão pouco verdadeiras, mas tão correntes. As estruturas burocráticas dos museus,
ainda mais do que aquelas acadêmicas stricto sensu, são infensas ao mérito e à dedicação ao
conhecimento e à sua socialização. Isto se explica pela importância política, no sentido pequeno
da palavra, associada aos cargos, a começar da direção das grandes instituições de Estado. Há
até, como se sabe, museus criados para indivíduos dirigirem! Além desse caráter político da
direção, e como decorrência seguem-se cargos, chefias e eminências pardas que vicejam nos
museus, naquilo que se chama de atividades de corredor e de bastidores. Não é de estranhai' que,
ainda mais que na academia, nos museus a convivência pessoal seja tão pouco profissional.

Nesse contexto, o profissional de museu deve, necessariamente, lutar pela transformação


do próprio museu, à luz do que se faz e discute no mundo, a esse respeito, mas, também, na
interação com a comunidade que deve dar vida ao museu. Não se trata de tarefa fácil, nem a
luta se mostra ligeira. No entanto, cabe ao próprio profissional de museu, já em atividade e, a

<33
fortiori, em formação, buscar a profissionalização da atuação no museu. Isto implica atuar
para que o mérito suplante o compadrio, a busca do conhecimento supere a inércia burocrática,
que pode, se não matar o museu, inviabilizai- sua efetiva função científica e crítica. Para isto,
impõe-se a instituição de um plano de carreira, baseado na titulação, com hierarquias fracas e
coletivos acadêmicos fortes, sempre a partir de critérios científicos. Para o profissional de museu
em formação, este é um aspecto essencial: a deontologia associada à prática em museus. A dura
realidade dos museus pode induzir ao desânimo e ao conformismo, se não houver, na formação
do profissional, um projeto crítico e acadêmico que permita a transformação da própria instituição.
Nesse sentido, a situação do futuro profissional de museu assemelha-se muito à do futuro professor,
pois, em ambos os casos, apenas uma luta pela transformação da estrutura burocrática e de seus
objetivos permite antever um futuro criativo.

A formação do profissional de museu, portanto, não se restringe ao saber técnico, e, menos


ainda, ao domínio das artimanhas do micropoder. O desafio que se impõe é formar profissionais
que sejam autônomos, críticos, infensos à inércia, propensos à luta pela transformação. Aparen­
te paradoxo, esse, que se busque a transformação em uma profissão voltada para a preservação.
No entanto, para que se possa, efetivamente, preservar, é necessário transformai' uma realidade
que contribui para destruir o patrimônio. O primeiro e decisivo passo é formai- profissionais
autônomos, independentes e transformadores do mundo.

Agradecimentos

Agradeço à Professora Maria Cristina Bruno, cujo convite para participar deste encontro
sobre “O Profissional de Museu no Umbral do Terceiro Milênio” incentivou-me a escrever este
texto. Devo mencionar ainda os seguintes colegas: Dione Bandeira, Brian Durrans, Bemd Fahmel-
Beyer, Siân Jones, Parker B. Potter, Jr., Nanei Vieira Oliveira, Brian W. Thomas, Elizabete
Tamanini. As idéias apresentadas são, naturalmente, de responsabilidade exclusiva do autor.

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(*) Livre-docente do Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual
de Campinas, UNICAMP.
(1) Cf. Platão, Leis, 925b, katà tèn táksin tõu nómou, “segundo a ordenação de uma regra”. Taxonomia deriva
de táksis, “arranjo”, do verbo tássein, “arranjar”, originalmente, os soldados para uma batalha; cf. Heródoto, 8,
86: katà táksin, “ordem de batalha”.
(2) Cf. Lorenz (1998: 619): Postmodernismus ist deshalb immer eine radikale Version des Pluralism us (ênfase
no original).
(3) Keine Ausstellung ohne Erzãhlungen, como se propõe na concepção do Museu Ativo (“não há exposição
sem narrativas).
(4) Cf. Potter (s. d.: 39): “Ifw e can encourage ourselves (sc. museum professionals) and our visitors to see the
objects in our museums as fra g ile ’ - as culturally constructed and a culturally contested rather than as self-
evidently important and in possession o f inherent meanings - then perhaps we ali will begin to treat those
objects better, thin kin g about them rather than worshiping them ”.
(5) Cf. H aiganuch Sarian (1999:1934): “Produção e reprodução do saber se expressariam nos M useus
Universitários, por meio de responsabilidades inerentes à natureza de um Museu, de tal modo que os Professores
destas instituições fossem igualmente Curadores - Curator-Professors -jpara lembrar a designação americana”.
(6) Ainda que alguns dos grandes museus brasileiros, voltados para as Ciências Naturais, no século XIX, tenham
atuado na pesquisa científica (cf. Lopes, 1997).
(7) Museologia, História, História da Arte, Ar queologia, Antropologia, Etnologia, Biologia, Geografia, Etnologia,
Estudos da Cultura Material, Folclore, Geologia, Botânica, História Oral, Iconografia, Semiótica, entre outras.
(8) Cf. M. C. Bruno, C. Rizzi e M. X. Cury (1999:46): “...apesar do grande esforço, muitos museus estão longe
da consciência do equilíbrio entre o cuidado com os acervos e a atenção com as expectativas das sociedades”.

<35
FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE MUSEUS:
DESAFIOS PARA O PRÓXIMO MILÊNIO

Tereza Cristina Scheiner*


IS
INTRODUÇÃO
p y
A Museologia encontra-se, hoje, num momento m pècial, caracterizado pelo forta-
lecimento dos fór is nacionais e internacionais epel^pgionalização dos debates e da troca de
experiências. Estás tendências vem sendo estimuladas peia atual diretriz de trabalho do ICOM, não
só no que se refere ao estudo teórico da Museologia, mas também - e principalmente - no que
tange às interfaces ehtreap
^ * ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ s C f f i q u g s t ^ |) ( $ Í í f í S s e econômicas que influenciam
as sociedades neste 1 Ide séei

Tendo em vista a relevância dada, na atualidade, às questões ditas ‘culturais’, cresce no mundo
ocidental o interesse pelos museíise pelo potencial que apresentam alguns museus (quase sempre
vinculados ao modelo tradicional) de realizar ações múltiplas e simultâneas de documentação,
valorização, interpretação e difusão da produção humana, ao mesmo tempo em que se definem
como espaços turísticos e/ou de animação cultural. O museu aparece hoje, nas mídias, com freqüência
e intensidade inimagináveis há apenas vinte anos, alinhando-se entre as agencias de produção cultural
que melhor associam cultura ao lazer. Alguns museus incluem-se, mesmo, entre as agencias de
cultura de massa - recebendo um público anual que pode contar-se aos milhões e veiculando seus
projetos e produtos em rede, via Internet.

Esta tendência tem influenciado diretamente a prática “museológica”, ou seja, o conjunto de


metodologias e ações de planejamento, organização, gerência, pesquisa e desenvolvimento vinculadas
aos museus. Influencia também, diretamente, a configuração dos perfis profissionais vinculados a
essas práticas, hoje - mais do que nunca- definidos pelas demandas de um mercado instável e em
permanente mutação.

Há também uma influencia crescente, na prática ‘"museológica ”, das políticas, diretrizes e tendências
mundiais (e regionais) com relação ao patrimônio. Cada vez mais, profissionais de museus devem
conhecer e atuai-no sentido de proteger, valorizar e difundir os testemunhos materiais e não materiais
daquilo que cada grupo cultural define, para si mesmo ou para o mundo, como “patrimônio’. Políticas
mundiais de salvaguarda e ação patrimonial vem incluindo uma visão ‘museológica’ - como ocorreu
recentemente com o Segundo Protocolo da Convenção de Haia (1954) sobre a Proteção de
Patrimônio Cultural em Casos de Conflito Armado, assinado em maio último por 27 Estados
da ONU (Boylan: 1999).1

Neste ambiente, falar dos desafios da formação profissional para museus no próximo milênio é
tarefa arriscada. Este poderia ser, de certa forma, um exercício de futurologia-área do conhecimento
que “oferece possibilidades de prever mudanças no meio-ambiente social e econômico (...),
com o objetivo de “ganhar controle sobre as variáveis existentes no presente e usá-las para
predizer ofuturo”(Spielbauer: 1989).2 Mas o que desejamos aqui não é prever o futuro, mas identificai;
na complexidade do presente, alguns aspectos da teoria e da prática museológica que - imaginamos
-poderão constituir desafios profissionais nos próximos anos, com o objetivo de colocá-los em
debate.

Para fazê-lo, é necessário, inicialmente, buscai' compreender como se dão, no presente, as


complexas interações entre homem, cultura e sociedade - para caraterizar o cenário em que se
desenvolve a Museologia. Em seguida, analisar as principais tendências dos museus no presente e sua

bl
influencia sobre a Museologia, para finalmente definir quais as tendências que influenciam ou poderão
influenciar, hoje e no futuro, a formação profissional.

1. MUSEOLOGIA E CONTEMPORANEIDABE

1.1 - M apeando Territórios - definindo cenários

Ao fazer a síntese do cenário contemporâneo, verificamos que as tendências analisadas


por Tofler em 19893 transformaram-se em realidades. Os sistemas políticos nacionais vem sendo
substituídos pela hegemonia dos blocos econômicos regionais e dos grandes mercados
consumidores, onde a circulação de bens se faz de modo extremamente dinâmico; a agricultura
não mais depende do solo e do clima: tudo pode crescer em praticamente qualquer espaço, com
base em tecnologias adequadas; a indústria gera processos e produtos a partir de novas tecnologias
e de fontes alternativas de energia e trabalho. Além dos produtos eletrônicos e da informática,
desenvolveram-se os estudos espaciais e a biologia molecular. Os computadores se populari­
zaram e as comunidades eletrônicas colocam o mundo em rede, em tempo real - levando à
criação de novos estratos comunicacionais, com um formidável desenvolvimento das trocas de
informação: cada indivíduo é agora um consumidor potencial de informação em todos os níveis.

As sociedades são agora reconhecidas não como totalidades, mas cada vez mais como
conjuntos de comunidades ou segmentos específicos, com características definidas muito além dos
tradicionais aspectos éticos, econômicos e de desenvolvimento cultural. A expansão da diversidade
cultural culminou na geração de uma enorme e complexa rede de comunidades, identificada por
traços comuns tais como gosto cultural, formas de lazer, tendências musicais e até características
morfológicas. Consequentemente, a cultura de massas se especializou. As mídias tradicionais vem
sendo aos poucos substituídos pela mídia especializada, dirigida a clientelas específicas: TV a cabo,
jornais e revistas especializados, estações de rádio para grupos - tudo definido de acordo com as
expectativas, gostos e necessidades específicas de um mercado fragmentado e de grupos setorizados
de consumo.

Os computadores são cada vez mais responsáveis pela memória social da humanidade
e pelo registro da dinâmica produtiva - o que ocasionou uma revolução nas relações de trabalho,
permitindo aos profissionais trabalhar em casa e obrigando empresas e organizações a adaptar sua
dinâmica operacional apadrões mais flexíveis, comconsideráveis mudanças nos padrões de liderança e
de administração.

No setor industrial, a fragmentação dos mercados fez com que a produção em massa tivesse
como concorrente a produção de séries personalizadas de bens, de acordo com as necessidades
específicas de grupos segmentados. A unidade familiar foi reforçada como padrão produtivo
econômico e as atividades compartilhadas dentro do grupo familiar tomaram-se populares, não apenas
no que se refere ao trabalho doméstico, mas também com relação ao trabalho profissional e ao
estudo. Mas a família nuclear, organizada nos moldes tradicionais, já não é mais o modelo: uma
grande diversidade de formas de organização familiar coexiste. Alteraram-se também as regras
fundamentais da vida social: ocupações de tempo parcial são uma forte tendência, e novos padrões
de consumo se desenvolveram.

Este surto de individualismo eclode como movimento de resistência ao advento de uma


sociedade global - totalidade abrangente, complexa e contraditória (Ianni, 1998),4 onde as
novas tecnologias produzem novas redes de articulações, por meio das quais se desenham oscontomos
do capitalismo global. As relações de produção se retenitorializam, euma nova cartografia geopolítica
revela a ascensão de cidades globais - onde estão sediados os núcleos das verdadeiras instancias

òò
contemporâneas de poder: os bancos e empresas transnacionais. Diluem-se as linhas divisórias entre
indústria e serviços: as práticas do cotidiano são reformuladas pelo consumidor, seja ele indivíduo,
corporação ou instituição. Modificam-se profundamente os modos de ser e de estar no mundo: não
há um conjunto aceito de paradigmas ou de crenças - o cotidiano é permanentemente atravessado
pela mudança. Alguns analistas do contemporâneo identificam, neste contexto, a emergência de
novas culturas de dominação. A distribuição de riquezas e de tecnologia torna-se cada vez mais
desigual, e nos países menos desenvolvidos agravam-se os problemas ligados à manutenção de uma
qualidade básica de vida: saneamento, habitação, alimentação, educação.

A influencia da mídia impressa e eletrônica a tudo atravessa, e as redes de comunicação


povoam o mundo de imagens - que substituem as palavras. Atuando como grandes instrumentos de
articulação simbólica, as redes inventam, modificam, transmitem e recodificam signos e mensagens
em escala global. Esta percepção ilusional do acontecimento como próximo e imediato revela uma
nova relação do homem com o tempo, ‘reinventado’ e redefinido agora como tempo real.
O novo modo de apreensão da realidade instaura também uma nova relação do homem com a
matéria: pela primeira vez após o aparecimento da escrita, a informação prescinde da impressão
física, concretizando-se numa explosão de mensagens por via eletrônica. Ambientes, objetos e
personagens são criados em espaços desmaterializados: a ferram enta básica já não é o objeto,
mas a palavra e a imagem digitalizadas - que veiculam, em escala planetária, a fabulosa massa
de informação agora disponível ao homem comum. Todas essas mudanças provocam tambémnovos
tipos de relação entre o homem e o espaço. Historicamente vinculado ao território - espaço de
construção do local, do nacional, da identidade, referencia tradicional da cultura - o homem se
desterritorializa, toma-se nômade.

Ianni identifica a sociedade global como um universo de objetos móveis e fugazes, que
atravessam espaços e fronteiras, culturas e civilizações, causando o abandono (ou pouca percepção)
dos traços identitários mais profundos de muitos grupos sociais. Pois “globalização não significa
homogeneização: este é um universo de diversidades, desigualdades, tensões e antagonismos,
de articulações e integrações. Só que agora toma-se cada vez mais difícil, para cada indivíduo
ou coletividade, poder contar sua história, identificar o que o define em si e para si, resgatar
suas matrizes culturais e civilizatórias - ainda que como pontos de referencia através dos
quais se esboçarão as novas identidades”?

No âmbito cultural, a mundialização se expressa basicamente como indústria cultural e se organiza


como setor produtivo, no qual as diferentes expressões da cultura são tomadas como mercadoria.
E cada vez mais são cooptadas as expressões de cultura popular, transformadas agora em fenômenos
transnacionais - o que resulta na fragilização dos conjuntos de bens simbólicos reconhecidos como
‘cultura nacional ’ou ‘patrimônio cultural nacional’. A indústria cultural pode ser assim entendida
como um intelectual orgânico destemtorializado, identificado com os grupos de poder dominantes
na sociedade global. Outras formas culturais são mutiladas ou destruídas - num processo às vezes
brutal e aparente, outras vezes surdo, subjacente a outros processos, disfarçado em avanço tecnológico,
modernização econômica ou acesso aos ideais da comunicação.

Neste novo desenho político do mundo, a comunidade regional emerge como ator e se define
por meio de regionalismos, provincianismos e etnicismos; novos intercâmbios e alianças se tecem na
esfera econômica e cultural. Uma das conseqüências é a expansão daindústria do turismo, que ‘‘promete
as mais diferentes voltas pelo mundo dos museus, palácios e catedrais, monumentos e ruínas,
imagens e simulacros ”6 Para Canclini (1997), neste mundo em transformação, a cultura é entendida
como “uma articulaçãoflexível de partes, uma colagem de traços”, onde os significados de ‘tenitório’,
‘patrimônio’, ‘bem cultural’ ganham uma novaperspectiva. A construção das identidades se faz pelas
relações com o consumo, pela capacidade de criar e manter articulações e pela aceitação das diferenças.7

39
Novas diretrizes para a política mundial de cultura e desenvolvimento acompanham essas
tendências. No âmbito da UNESCO, criam-se programas internacionais de apoio à biodiversidade, ao
multiculturalismo, às identidades de grupos específicos e ao patrimônio mundial. Difunde-se o conceito
do planeta Terra enquanto ecossistema global, do qual a economia mundial é subsistema. A
natureza e o homem passam a ser entendidos como capital (natural) e a adoção de medidas de
desenvolvimento que levem em conta o equilíbrio entre economia, homem e natureza passam a constituir
meta política prioritária em todos os níveis: nacional, regional, mundial. Multiplicam-se os estudos
sobre etnias e grupos culturalmente diferenciados. Um inventário internacional dos povos indígenas
revela que estes estão representados por cerca de 250 milhões de indivíduos, configurando cerca de
4% da população mundial. Busca-se ainda reforçai'o conceito do “nacional”, com a criação de grandes
“museus nacionais ”, ou “museus do Homem e da Civilização”, bem como a reformulação dos
já existentes (Scheiner, 1998).8

1.2 - Museus e Museologia - tendências atuais

...Qual o lugar do Museu, neste cenário? Esta é uma questão que vem ocupando espaços
cada vez mais significativos no ambiente acadêmico. Integram a produção intelectual das ciências
humanas, hoje, o estudo dos museus e de sua inserção nos sistemas sócio-econômicos deste final de
século; a análise dos seus recursos enquanto formas de expressão social; a compreensão do seu
significado enquanto máquinas institucionais de narrativa de um discurso autorizado pelas agencias
hegemônicas. Acrescentem-se aqui outros conceitos de igual relevância para a análise sociocultural:
os conceitos de cultura, de objeto, de memória, de patrimônio... responsáveis pela utilização do termo
‘Museu’ nos mais diversos campos do conhecimento. Especial importância é conferida, ainda, à
possibilidade de percepção do Museu pela Filosofia, através da qual tomou-se possível entender
que o campo de atuação do Museu não é a sociedade, o homem, ou a cultura, mas o Real
em toda a sua complexidade - o que implica no reconhecimento de uma dimensão ontológica do
Museu, jamais antes imaginada. É também pela filosofia que se toma possível estudai' as relações
entre o Museu e o Homem, na dimensão dos sistemas específicos de pensamento.9

Usando como referencia a análise sociocultural, poderíamos dizer que cabe hoje, ao
Museu, atuar de modo mais efetivo como instancia de representação e preservação dos valores
culturais dos grupos humanos. Mas esta já é, desde 67, a proposta da Museologia - tão bem
expressa nos trabalhos de Kinard e Cameron, e internacionalmente difundida por Rivière, Évrard e
Varine, apartir de 1969, com o Ecomuseu.10Elaborar a atividade museística não apenas como atividade
intelectual, mas como iniciativa comunitária, valorizadora de identidades e valores de grupos
específicos, é portanto uma das tarefas que a Museologia vem desempenhando (com maior ou
menor sucesso) há cerca de trinta anos. É necessário fazer mais - e para tanto, urge identificai' mais a
fundo as tendências seguidas, nos últimos anos, pelos museus e pela Museologia.

Do ponto de vista prático, podemos identificai' as seguintes tendências:

a) pluralização deformas de museus - experiências tais como museus comunitários, museus


de sítio, ecomuseus, instituições de memória coexistem com os museus tradicionais e com os grandes
centros interativos de ciência, biodomos e parques naturais. O museu virtual é uma realidade.

b) combinação de experiências - museus estão cada vez mais se relacionando com outras
agências culturais, e das formas mais diversas, aponto de indiferenciar-se enquanto instituições: em
alguns casos, combinam suas características com as de bibliotecas, arquivos, centros de pesquisa e
de comunicação. Alguns centros de ciências contemporâneos e os centros de memória encontram-
se nesta categoria. Aqui podem ser vistas duas tendências opostas, uma à pluralidade, e outra ao
desenvolvimento de grandes centros holistas, ou à implementação de experiências de “museu integrar.

90
c) atuação dos museus como centros produtores de cultura - através do desenvolvimento
de novos padrões culturais e do estímulo ao conhecimento em assuntos específicos.

d) atuação como centros educativos - museus vem assumindo cada vez mais sua missão
como agencias de educação, através da oferta de programas educativos dirigidos a todos os segmentos
de público. Uma nova responsabilidade acrescentou-se a sua atuação tradicional: a de introduzir
o cidadão comum nas complexidades de temas controversos, tais como os supercondutores, a
ocupação da Amazônia ou o efeito estufa. Nos países onde a educação básica ainda constitui um
problema, amplia-se a tendência dos museus em atuar como centros de aprendizagem - não
apenas para indivíduos em idade escolar, mas para o cidadão comum.

e) hiper-especialização - numa sociedade caracterizada pela segmentação dos mercados


e onde a diversidade cultural aponta para a ênfase à pluralidade, museus, como qualquer outra
representação social, tendem a especializar-se - oferecendo a cada grupo ou coletividade alternativas
compatíveis com suas necessidades e expectativas. Há uma tendência de segmentos específicos em
não apenas utilizar os modelos de museus já existentes, mas em criar e manter seus próprios museus.

f) espetacularização - num ambiente cultural em que o cotidiano se transforma em espetáculo,


em que os meios de comunicação subordinam o poder à imagem e à palavra, o Museu se teatraliza -
gerando exposições que oferecem, às grandes massas, a visão cenografada dos ícones materiais das
diversas culturas. São projetos milionários, onde a mão do especialista deixa a marca do exclusivo:
suportes com ‘design’ especial, ambientações sofisticadas, complexos recursos de segurança e de
iluminação cênica e uma elaboração gráfica que transcende o próprio espaço físico do museu, espalhando-
se sob a forma de folhetos, cartazes, convites, logomarcas e tudo o mais que puder servir de suporte às
principais estrelas desses bem montados shows: os objetos de coleção. Ser capaz de encenar uma
exposição-espetáculo é hoje uma das formas de poder do Museu, e um dos recursos de sobrevivência
de museus específicos: o custo operacional dessas operações sejustifica pelo enorme retomo de mídia,
que automaticamente garantirá a obtenção de recursos para futuros projetos. Pouco importa se, nestas
experiências, houver predominância dos planos de expressão sobre os planos de conteúdo.

g) descentralização - por outro lado, toma-se cada vez mais difícil desenvolver e manter
estruturas complexas, com todos os problemas de gerenciamento, financiamento e manutenção.
Seguindo a tendência à descentralização dos mercados, alguns grandes museus tendem adescentralizar-
se, formando núcleos especializados com dinâmicas específicas e fontes independentes de
financiamento, até mesmo em países diferentes - como ocorreu com o Museu Guggenheim em
Bilbao, Espanha.

h) diversificação de serviços, com a incorporação das novas tecnologias - as mudanças


no comportamento dos grupos sociais vem afetando os serviços oferecidos pelos museus. A infor­
matização da sociedade amplia as oportunidades de lazer no ambiente doméstico (TV a cabo,
vídeo, CDs, disco a laser), e os museus passam a gerar produtos e serviços para consumo extra-
muros: hoje já é possível acessar grande número de museus via Internet, ou obter informações
sobre museus através de CD roms. Produtos como vídeos, material gráfico e reproduções de
objetos das coleções podem ser multiplicados ad infinitum. Museus vem-se tomando também
uma das melhores opções de lazer fora de casa, atuando como centros múltiplos de lazer cultural,
com novas formas de interação com o público - cinema, livrarias, restaurantes, clubes, parques,
atividades exploratórias.

i) atuação em rede - a possibilidade de atuai' em rede é uma das alternativas que se apresentam
para os museus nos dias de hoje. Redes são criadas para o desenvolvimento de programas de
documentação, informação e exposição. Museus entram em rede com o mundo, via Internet.

91
j) terceirização dos serviços especializados - esta é uma questão que afeta diretamente o
desenho dos perfis profissionais. Em muitos casos, museus vem substituindo suas equipes permanentes
de especialistas pelo trabalho terceirizado, a cargo de pequenas ou médias empresas. A diminuição
dos postos estáveis para profissionais especializados acarreta uma necessidade de redefinição de
saberes e de comportamentos por parte dos profissionais de museus, hoje mais próximos do modelo
empresarial de prestador de seiviços, onde a precisão do conhecimento, a rapidez na tomada de
decisões e a capacidade de atender simultaneamente a vários projetos são fatores fundamentais
para o sucesso profissional.

2. MUSEU E M USEOLOGIA - DESAFIOS PARA O PRÓXIMO MILÊNIO

Todas essas mudanças vem influenciando de forma espetacular as bases conceituais e éticas da
Museologia. Em conseqüência, as categorias conceituais em uso até cerca de dez anos atrás - e nas
quais baseavam-se a classificação de museus e os códigos específicos da Museologia- tiveram que
ser revistas e diversificadas, dando origem a novos conceitos, mais adequados às novas realidades.

A Nova Museologia, paradigma dos anos setenta e oitenta, coexiste agora com novas
teorias e novas práticas, algumas das quais já legitimadas como linhas conceituais e metodologias de
trabalho museológico. Há um a tendência a com preender o M useu já não mais como
instituição, mas como fenômeno social, de profundo significado educativo - capaz de
atuar não apenas no estudo e na conservação da cultura mas também de gerar novos conhe­
cimentos e influir de modo positivo no desenvolvimento social. Um fenômeno que se expressa de
forma dinâmica e plural - ora adotando a feição tradicional do museu-prédio, com seus aceivos, ou
aparecendo sob a forma de jardins botânicos, zoológicos, biodomos, ora estruturando-se enquanto
museu de território - sítio arqueológico, parque nacional ou ecomuseu. Novas categorias
conceituais (ora em estudo) vem-se somai' a estas: o museu interior, o museu virtual, o museu
global. Um dos desafios da M useologia p a ra o próxim o milênio será justam ente
com preender e aceitar o Museu p ara além de suas bases institucionais - como fenômeno,
como obra aberta, como experiência, cuja identidade se constitui nas diferentes formas
de relação entre homem, sociedade, cultura e natureza.

Outros desafios podem ser identificados através do reconhecimento das questões relevantes
para a Museologia contemporânea. Um rápido olhar sobre as pautas de discussão dos organismos
internacionais vinculados, direta ou indiretamente, aos museus e à Museologiajá nos daria indicadores
muito precisos sobre quais são os temas que constituem, no momento, o seu universo de
preocupações:

a) no ICOM

. Museus e Globalização
. Museus e Diversidade Cultural - incluindo apoio ao debate multicultural
. Museus e Sociedades em Transformação
. Museologia para o Desenvolvimento e a Paz
. Combate ao Tráfico Ilícito de Bens Culturais
. Museus e Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação
. Museus, Museologia e Desenvolvimento Sustentável
. Museus e Patrimônio Mundial (incluindo o patrimônio intangível)
. Museologia e Participação Social
. Museus e Turismo
. Museus, Museologia e Ética

92
b) nos demais organismos vinculados ao patrimônio cultural: ICOMOS, ICCROM

. Políticas e diretrizes de ação relativas ao patrimônio preservado


. Sociedade, desenvolvimento e patrimônio mundial
. Combate ao Tráfico Ilícito de Bens Culturais
. Preservação e recuperação do patrimônio cultural da Humanidade
. Proteção do patrimônio mundial em casos de conflito armado
. Aproveitamento turístico dos bens patrimoniais preservados

c) nos organismos vinculados ao patrimônio ambiental: WWF, IUCN, MAB,


BIOSPHERE/GEOSPHERE PROGRAM, MOST, HABITAT - inserção do debate sobre
museus e Museologia nas questões relativas a:

. Cambio global
. Análise do Patrimônio Ambiental
. Educação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável
. Interpretação do Meio Ambiente Integral
. Definição do uso cultural de áreas protegidas
. Análise do desenvolvimento humano em áreas urbanas
. Patrimônio, cidadania e desenvolvimento tecnológico
. Impacto do cambio global nas populações e seu comportamento
. Cultura, meio ambiente e diversidade

Torna-se clara, assim, a expressiva vinculação da Museologia às diretrizes mundiais de


cultura e desenvolvimento - o que revela uma imagem bastante nítida do seu potencial de
mobilização cultural. Bem atuada, ela é fundamentalmente transformadora, pois trata da produção
de conhecimento e da constituição de novas estratégias do saber. A questão é compreender, com
nitidez, que vínculos se estabelecem, em cada sociedade, entre a prática museológica e as estruturas
hegemônicas - já que o Museu, por sua forte expressividade enquanto meio de comunicação, é
freqüentemente utilizado por setores cujos discursos raramente correspondem à ação. A análise
das praticas ditas “museológicas” vem apontando para uma séria contradição: a um discurso
nitidamente sintonizado com as mais atuais tendências de pensamento, corresponde ainda,
em muitos casos, um conjunto de práticas tradicionalistas e muito pouco renovadoras.

Identificaríamos, então, como um dos desafios para o próximo milênio, a possibilidade


de identificar, com nitidez, as novas dimensões e limites éticos do Museu e da Museologia.
Com a responsabilidade de ser um agente de transformação social, o Museu pode atuar como espaço
de criação, produzindo saber - e 1saberfazer' ; mas deve faze-lo de forma aberta e democrática,
tomando possível que deste processo participem amplos segmentos da sociedade. Para tanto, seria
necessário que cada sociedade pudesse situar de maneira nítida o lugar do Museu no seu sistema
de representações, compreendendo-o como espelho de suas identidades e identificando suas
diferentes formas de inserção no coipo social. Pois hoje os museus têm uma opção: a de ajudar as
sociedades a reconhecer-se e a fazer-se representar, em pluralidade e diversidade, em multiplicidade
e contradição - valorizando as iniciativas culturais autênticas e efetivamente reveladoras dessa
complexidade. Também atuando efetivamente como representação das múltiplas possibilidades do
homem - seu eterno referente.

A busca da dimensão ética do Museu contemporâneo leva, ainda, à necessidade de iden­


tificar-se as influências da globalização cultural na Museologia, bem como as suas possibilidades
de atuação num mundo globalizado, onde a produção de saberes é muitas vezes suplantada pela
importância dos movimentos de articulação. Fundamental é desenvolver-se a capacidade de atuar

95
a Museologia em rede, não apenas através do fortalecimento das redes de ação museológica já
existentes, mas também - e sobretudo - pela implementação de redes transdisciplinares de reflexão
e ação, onde a Museologia se identifique enquanto domínio lógico e disciplinai'. Este é, ao meu ver,
um dos mais Importantes desafios para a Museologia enquanto campo do saber: fortalecer
e legitimar sua Identidade, não aceitando ser considerada mera prática, subordinada a disciplinas
como a História ou a Ciência da Informação.

Outra questão que merece análise é a dos espaços do saber: tradicionalmente vinculados ao
mundo acadêmico, às elites produtivas, às agencias hegemônicas, em todas as sociedades e em
todas as épocas, os espaços autorizados do saber vêem-se subvertidos, no mundo contempo­
râneo, pela enorme vitalidade das redes de comunicação. Neste contexto, é fundamental
abandonar-se a percepção do M useu como espaço autorizado de saber, de conhecimento
e de informação, buscando percebê-lo como um a Instancia relacionai, onde tudo o que se
dá é processo.

Um outro desafio será atu ar os museus em diversidade e complexidade. Tradicional­


mente entendidos enquanto instâncias de consagração de identidades, os museus devem substituir
a visão singular e unificada de identidade, consagrada pelas etnografias clássicas, pela aceitação da
diferença e pela narrativa da interculturalidade, cumprindo seu papel enquanto instância
fundamentalmente ética de valorização do Homem. É interessante ressaltar, aqui, o papel desempenhado
pelos profissionais de museus: na maioria dos países, alinham-se tradicionalmente entre os intelectuais
- uma vez que detém saberes específicos e dominam os códigos que permitem o acesso às práticas
museológicas. Com o advento das redes virtuais, subverteu-se o processo do conhecimento, e
também o acesso aos códigos de informação sobre epara museus. A hegemonia do especialista
tornou-se questionável, e o poder do profissional sobre a elaboração de um discurso museológico,
dirigido a um ‘público-alvo’, vem sendo cada vez mais relativizado.

3. FORMAÇÃO PROFISSIONAL - DESAFIOS E PERSPECTIVAS

As atuais tendências vem acarretando novas responsabilidades e novos desafios para os


profissionais de museus. Hoje, faz-se necessário que eles sejam capazes de perceber os museus
como entidades em mudança permanente e a Museologia enquanto processo; conhecer as dinâmicas
interacionais entre ambiente natural e ambiente cultural, identificando os cenários socioculturais em
que se insere o Museu; analisar as influencias dessa dinâmica na prática "museológica’. Esta
compreensão pode ser atingida por meio de interfaces com outros campos do conhecimento, pelo
trabalho em redes e/ou em grupos transdisciplinares. Mas a verdadeira qualificação profissional
acontece com um conhecimento aprofundado do Museu e da Museologia.

Definiu-se portanto um novo perfil p ara os profissionais de museus - agora


plenamente conscientes de seu papel enquanto agentes ativos de mudança da Museologia. O mu-
seólogo, hoje, não é quem trabalha nos museus, mas quem pensa o Museu, quem atua para
transformá-lo. A relação do profissional não é apenas com o patrimônio material, mas com os sistemas
de poder - e espera-se que neste novo lugar social ele cumpra um papel relevante, atuando o
Museu como agencia formadora de mentalidades e como síntese das muitas realidades que definem,
no tempo e no espaço, as identidades comuns aos grupos culturais; que leve em conta os padrões
de identidade, trabalhando a diferença numa relação não apenas dialética com os diferentes grupos
sociais, mas também de afinidade, empatia e verdadeira participação.11

O novo profissional de museus deve saber atuar no ambiente globalizado, atuando o Museu
em processo e como instancia relacionai, através de redes de reflexão e de ação, por meio de uma nova
ética onde estejam valorizadas as identidades grupais, locais, nacionais e regionais. A grande meta

94
profissional é apoiar as iniciativas de desenvolvimento, em programas de ação que
efetivamente contribuam para a melhoria do bem estar das sociedades.

Neste final de século, a qualificação de pessoal para museus é uma questão de


importância estratégica, não apenas para o desenvolvimento da Museologia, mas para o de­
senvolvimento das sociedades. Permitir que museus permaneçam sem tratamento adequado ou que
estejam sob os cuidados de pessoal não qualificado é, no mínimo, colocar em risco o patrimônio das
próximas gerações. Reduzir a qualificação profissional às metodologias aplicáveis aos museus tradicionais
é imaginai' que seja possível abranger o todo pelo uso de uma de suas partes. Imaginai' que profissionais
de museus são apenas ‘técnicos especializados ’ é negar a importância política da Museologia,
conüibuindo para que os museus não tenham voz - ou para que permaneçam repetindo um discurso
não identificado com o corpo social.

Do ponto de vista genérico, sabemos que a qualificação de pessoal para museus consi­
dera a necessidade de iniciativas permanentes e temporárias de treinamento profissional, que atendam
aos seguintes requisitos:

• treinamento para funções básicas, de nível técnico - a serem desempenhadas dentro e


fora dos museus;
• formação profissional a nível de graduação - em Museologia ou áreas afins;
• treinamento especializado - em nível de pós-graduação latu-sensu e strictu-sensu;
• atualização de profissionais que já trabalham em museus ou com questões vinculadas à
Museologia;
• desenvolvimento de programas de intercâmbio, em nível nacional e internacional - por
meio de redes de intercâmbio para qualificação.

Mas, enquanto a compreensão dos museus e da Museologia se dá pela análise dos fenô­
menos em âmbito global, o ponto de partida para o desenho de programas de formação
profissional é a identificação das necessidades regionais, nacionais e locais de qualificação.
Isto porque a formação profissional ainda se faz, hoje, por meio de um processo educativo formal,
disciplinai' - que deve levar em conta as especificidades ambientais e culturais do educando, bem
como as necessidades de atendimento aos problemas práticos dos museus, numa perspectiva geo­
gráfica.

Nesta perspectiva, a identificação e análise das características socioculturais de cada grupo


deve ser necessariamente levada em conta. No caso do Brasil, nosso perfil multicultural precisa
ser conhecido e considerado, assim como nossa consciência identitáiia- apenas emergente. Precisamos
também admitir nossaforte relação histórica, cultural e econômica com a América Latina, sob
pena de nos isolarmos cultural e politicamente. Precisamos, ainda, lembrar o espetacular patrimônio
formado pela população brasileira e pela riqueza natural do país - tão desconhecido e desconsiderado
pela maioria dos profissionais de museus. Estes são aspectos fundamentais, que não podem ser
esquecidos ao formular-se programas de qualificação de profissional para museus.

Em cada caso, deve-se identificar quais as experiências que devem estar vinculadas à academia
e quais as que podem ser levadas a cabo no âmbito de museus ou em outras esferas de atuação.
Embora predominem no país os programas formais desenvolvidos em meio universitário, acredito -
como já venho afirmando há vários anos - que nem todos os problemas relativos à qualificação
profissional possam ser resolvidos com cursos de graduação ou pós-graduação. Imaginar tal coisa
é negar a realidade do conhecimento contemporâneo, onde os meios de comunicação vem
sistematicamente subvertendo os espaços autorizados do saber, e onde cada vez mais se valoriza a
expressividade da comunicação nas práticas sociais.

95
Na verdade, nem toda qualificação profissional para museus necessita ou deve pas­
sar, necessariamente, pela academia —nem é possível às universidades dar conta de todas as
necessidades de qualificação profissional para museus, em todos o mundo. Muitas experiências
bem sucedidas vem acontecendo em museus, institutos de pesquisa, centros culturais ou de
conservação de vários países. O próprio ICTOP - Comitê Internacional de Formação de Pessoal
para Museus do ICOM - trabalha desde 1974 sob uma perspectiva de pluralização de espaços de
ensino-aprendizagem, no campo da Museologia Aplicada. Projetos e experiências de qualificação
profissional com este perfil já vem sendo implementados desde os anos 70, em países com diversos
graus de desenvolvimento. Em alguns casos, a criação de redes de experiências de aprendizado
e de oportunidades teórico-práticas de qualificação está vinculada a sistemas nacionais e/ou regionais
de credenciamento, nos quais um conjunto de módulos de ensino, seminários práticos ou estágios
supervisionados habilita o indivíduo à obtenção de certificados oficiais de qualificação. Em outros
casos, tais experiências podem levai' à obtenção de créditos de graduação ou de pós-graduação. Isto
vem ocoixendo no Canadá, nos Estados Unidos, na Escandinávia e até na África, onde uma rede
continental de treinamento básico para museus - denominada PREMA - vem operando, com
resultados muito satisfatórios.12

Este seria, a meu ver, o primeiro desafio da qualificação profissional para museus no próximo
milênio: redefinir e am pliar a rede mundial de experiências de qualificação, fora do espaço
universitário - principalm ente no que se refere ao treinamento p ara a identificação,
documentação e preservação do patrimônio integral de cada grupo ou sociedade. Dada a
imensidade dos problemas vinculados ao trabalho com o patrimônio, e considerando a crescente
complexidade das questões técnicas que devem ser de domínio profissional, tais programas poderão
implantar uma sistemática de trabalho que leve à qualificação de pessoal para lidar com estes
problemas, em ações emergências de curto prazo. Esses programas poderão ser oferecidos em
diversos níveis: nível básico (para aqueles que não tem nenhum conhecimento do universo da
Museologia), complementai' (nível de extensão) ou de atualização (para os que já atuam em museus
e necessitam atualizar seus conhecimentos). Outra tendência diz respeito aos programas de educação
ambiental para o desenvolvimento sustentável, que deverão vincular-se mais e mais ‘a
Museologia, permitindo a comunidades específicas identificai' suas raízes, sua memória e seu patrimônio
comum. Num país que não se identifica com suas referências, não há programa de qualificação que
impeça os danos constantes ao patrimônio material e a perda sistemática de referências culturais - já
que zelar por este patrimônio não compete apenas ao profissional de museus, mas é responsabilidade
e dever de todo cidadão.

Quanto aos programas de qualificação de nível universitário, devem propiciar uma dis­
cussão mais ampla e abrangente sobre museus e Museologia, permitindo um acesso mais rápido à
literatura especializada; a discussão com especialistas; e a oportunidade de implementação de projetos
de estudo, pesquisa e extensão. O ambiente acadêmico permite também que a Museologia seja
reconhecida, por profissionais de outras áreas do conhecimento, como disciplina acadêmica, o que
sem duvida concorre para a sua afirmação e legitimação dentro dos sistemas de conhecimento nacionais
e internacionais.

Na área acadêmica, tanto são importantes os programas de graduação como os de pós-


graduação: uns não podem substituir os outros - ao contrário, devem complementar-se. Programas
em nível de Graduação devem, por natureza, dedicar-se aos estudos de Museologia Geral, bem
como as aplicações da mesma com relação às várias funções do Museu. Programas de Graduação
em Museologia são e devem ser abrangentes, permitindo uma formação sistêmica no campo das
Humanidades e oferecendo um conjunto de experiências pedagógicas que permitam ao estudante
perceber o Museu em sua organicidade, e ao mesmo tempo entender as suas relações com a
natureza, o homem, a sociedade e a produção cultural. Devem promover uma reflexão

96
permanente sobre o Museu e suas diferentes manifestações no tempo e no espaço, oferecendo
possibilidades de análise de todas as vias de atuação do museu. É nos programas de graduação que o
futuro profissional de museus se dá conta da incrível complexidade do Museu e das questões a ele
relativas, e isto é fundamental - especialmente em países como o Brasil e a Holanda, onde a profissão
museológica se apoia, do ponto de vista profissional e legal, na existência de cursos de graduação.

Naturalmente, cursos de graduação em Museologia necessitam ser oferecidos por universi­


dades credenciadas e contar com professores altamente qualificados, com sólidos conhecimentos
teóricos e muita experiência pratica. Os currículos plenos de Museologia deverão estar sintonizados
com diretrizes curriculares que resumam as tendências mundiais já mencionadas para este campo
do conhecimento, e que atendam às necessidades gerais da formação e também às especificidades
de cada região onde os programas forem implantados.

O grande desafio dos cursos de formação profissional em Museologia já existentes


vem sendo, portanto, atualizai' seus conteúdos e metodologias de trabalho, contribuindo pai a o desenho
das diretrizes que nortearão, nos próximos anos, o trabalho museológico e viabilizando uma formação
pluralista, que leve em conta o acesso às novas tecnologias da informação e o debate sobre a
inserção dos Museus e da Museologia no cenário global.

No Brasil, uma das metas para o próximo milênio deverá ser a multiplicação dos cursos
de Museologia em nível de Graduação, permitindo o acesso à formação profissional em todas as
regiões do pais e garantindo uma formação profissional que atenda, de maneira mais efetiva, às
necessidades intra-regionais.

Os programas de pós-graduação em Museologia deverão também multiplicar-se, e sua


tarefa maior será estudar o Museu em suas relações com a Teoria do Conhecimento, o sistema das
ciências e as diferentes estruturas e conjunturas socioculturais, no tempo e no espaço. Tais programas
deverão definir linhas específicas de pesquisa sobre Museu e Museologia e sobre o Museólogo -
contribuindo, de maneira significativa, para o desenvolvimento científico da Museologia e para o
debate permanente sobre a inserção do Museu nos sistemas políticos, econômicos e sociais, com
destaque para a análise da função do Museu como categoria de representação nos sistemas simbólicos
de diferentes culturas. É fundamental contai' com um coipo acadêmico com produção significativa
na área, e desenvolver programas de ensino que resultem na implementação de projetos de pesquisa
em rede.13

O grande desafio desses programas para o próximo milênio será fortalecer a inserção do
Museu e da Museologia na pauta oficial de discussões sobre as relações entre homem, cultura
e natureza, em nível nacional, regional (considerando-se aqui as macro-regiões) e
internacional, garantindo e fortalecendo a presença do especialista em museus nos fóruns de
discussão sobre temas globais. A capacidade de atuação em rede deverá ser reforçada, com o
estabelecimento de programas em rede de longa distancia, nos quais participarão universidades,
museus e institutos de pesquisa de vários países. No Brasil, apontamos como um dos desafios
para o próximo milênio a implantação de programas de pós-graduação em Museologia,
lato e stricto sensu, capazes de articular as tendências já mencionadas e de articular-se
entre si, propiciando uma nova via de relacionamento entre os profissionais de museus.

... Qual o perfil desej ado para os profissionais de museus no próximo milênio? Aqui menciono
um estudo realizado, entre 1997 e 1998 pelo ICTOP, em rede com a Smithsonian Institution e com
museus e centros de formação profissional de diversos países, para identificação das realidades e
necessidades que configurariam este novo perfil. Apresentado na última Conferência Geral de Museus,
em Melbourne, Austrália, em novembro de 98, este estudo - do qual participei - define alguns

97
aspectos fundamentais para os profissionais, no futuro próximo. Considerando as necessidades dos
diferentes países e a complexidade do cenário cultural contemporâneo, o estudo optou por identificar
diretrizes muito genéricas, que apontam para as seguintes capacidades: adaptação ao meio cultural
local e regional; desenvolvimento de relações interpessoais e interinstitucionais; desenvolvimento de
ações comunitárias e de desenvolvimento sustentável; acompanhamento das mudanças do meio, com
absorção de novas práticas. Mas enfatizou também que devem ser estimuladas e atualizadas as
competências relativas à implementação, avaliação e gestão dos museus de todos os tipos e do
patrimônio sob a sua guarda - o que deixa bem claro que as tradicionais competências
permanecem indispensáveis à formação profissional14

O profissional do novo milênio deverá estai' ainda capacitado a atuar em sinergia com as redes
profissionais já existentes, através da participação em grupos de trabalho e da interlocução com os
organismos locais, nacionais, regionais e transnacionais, vinculados à cultura, à educação e ao meio
ambiente integral.

Em resumo, o que se pretende, p ara o Início do próximo milênio, é poder qualificar


profissionais para o exercício de um a Museologia inclusiva, que:

a) contemple a pluralidade de formas que assume o Museu na contemporaneidade, e que


possa, ainda, vir a contemplar formas emergentes de Museu;
b) se realize num ambiente de diversidade cultural, onde seja possível a participação de todos
os tipos de coletividades, respeitadas as diferenças entre grupos;
c) desenvolva, junto a essas coletividades, formas de aproximação e de comunicação que
sejam a expressão de seus perfis identitários;
d) se realize, na teoria e na prática, dentro de padrões éticos e metodológicos que valorizem as
tradições culturais das coletividades, sem deixar de lado os aportes das novas tecnologias;
e) seja capaz de repensar-se continuamente, definindo-se de maneira cada vez mais nítida
enquanto área do conhecimento.

O profissional do presente e do futuro deverá, portanto, ser criativo, capaz de adaptar-se às


mudanças do seu meio cultural e profissional e também de provocar mudanças, desenvolvendo um
compromisso permanente com o pluralismo cultural e com uma ética da diversidade - e comunicando-
se de modo a transformar museus e Museologia em verdadeiros instrumentos de socialização e de
educação para a liberdade. Deve ser capaz de mobilizar os recursos do Museu e da Museologia para
a identificação, salvaguarda e valorização do patrimônio integral, ajudando a definir novas estratégias
de desenvolvimento, em defesa do bem-estar das coletividades e da paz.

Finalmente, este profissional deverá atuar Museu e Museologia sempre... “como uma série
de começos, e não como uma série definais”15 - consciente de que o que faz o bom profissional
é a constante busca de aprimoramento, e que o melhor conhecimento e a melhor qualificação são
os que ainda estão por adquirir.

Rio de Janeiro, agosto de 1999.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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98
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Museos de las Américas. Costa Rica, abril 1998.
11. MUNIZ SODRE. Reinventando a Cultura. A comunicação e seus produtos. Petrópolis. Vozes, 1996. 180p.
12. O d a k O .-Kenya: the museum functions ofKAERA. in: Museum. 159. XVÍ3-): 150-154.
13. Scheiner, T. Editorial - Repensando os Limites do Museu. In: Boletín ICOFOM LAM . Ano m no. 6/7, dez. 92/
abril 93, p. 1-2.
14 . . (coord.)InteraçãoM useu-ComunidadepelaEducacão Ambiental. RJ,TACNET, 1991.200p.
il. Reprod. UNI/RIO.
15 . . Museologia y Formación para Protección dei Patrimônio Integral. In: El tráfico Ilícito de
Bienes Culturales en América Latina. ICOM, 1996.
16 . . Museu e Identidades: dimensões e perspectivas. RJ, Mestrado em Comunicação e Cultura,
ECO/UFRJ, dezembro de 1996.
17 . - On Museum, Communities and the Relativity o fitA ll, in: ICOFOM Study Series no. 25,
Svmposium M useum and Communitv II. Stavanger, Norway, July 1995. p. 95-98
18. Tavares do Amaral, Márcio. Comunicação e Cognição: as novas tecnologias e a mediação generalizada na
cultura comunicacional contemporânea, in: Contemporaneidade e Novas Tecnologias. RJ, Sette Letras, 1996, p.
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19. THE HAGUE REPORT. Sustainable Development from Concept to Action. UNDP, March 1992,32 p.
20. UICN. Borrador de la Estratégia v Plan de Trabaio de la CEC 1997-1999. UICN, Documento de Trabalho da
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21. UNESCO. Nuestra Diversidad Creativa. Informe de la Comisión Mundial de Cultura y Desarrollo. Paris,
UNESCO, Septiembre 1996.
22. Vaz, Paulo. A História: da experiência de determinação à abertura tecnológica, in: Contemporaneidade e
Novas Tecnologias. RJ, Sette Letras, 1996, p. 129.

(*) Diretora, Escola de Museologia / UNIRIO Presidente, ICOFOM / ICOM


(1) Boylan, Patrick. Informações sobre o Segundo Protocolo à Convenção de Haia. Londres, CHDEV-L, 1999.
(2) Spielbauer, Judith. Museology and Futurology. In: ICOFOM STUDY SERIES no. 13 Hague, The Netherlands,
1989.
(3) Tofler, Alvin. A Terceira Onda. Trad. João Távora. RJ, Record, s/d. 491 p.
(4) IANNI, Octavio. A Era do Globalismo. RJ, Civilização Brasileira, 2a ed. 1997.
(5) Ibid., in op. Cit.p,120
(6) Ibid., p. 122
(7) Canclini, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais de globalização. RJ, Ed. UFRJ, 1996.
(8) Scheiner, Tereza. Museologia, Globalismo e Diversidade Cultural. In: Anais do VII Encontro Regional de
Museologia. ICOFOM LAM, México, México. Maio de 1998.
(9) Ibid.,, inO p.C it.
(10) Desvallés, André. Vagues: une antologie de la Nouvelle Muséologie. MNES, Collection Museologia. Vol. 1,
1992.
(11) Scheiner, Tereza. Museologia, Dissertação de Mestrado apresentada à UFRJ. UFRJ/ECO, novembro 1998.

99
(12) Scheiner, Tereza. Formação Profissional para Museus. Graduação ou pós-graduação? Palestra apresentada
no Congresso Nacional de Museus. Florianópolis, Santa Catarina, 1997.
(13) Ibid., inO pC it.
(14) Fuller, Nancy et al. Proposed ICO M Curriculum GuidelinesforProfessional Development in Museiims, and
other ICOMprojects. In: ICTOP - Museum Training and Cultural Diversitv. ICOM General Conference, Melboume,
Australia, 1998. P: 115-139
(15) Perez de Cuéllar, Javier. In: Nuestra Diversidad Creativa. Informe da Comissão Mundial para Cultura e
Desenvolvimento. Paris, UNESCO, 1996.

100 325
ALÉM DO POLITICAMENTE CORRETO: O MUSEU INTELIGENTE

Teresa Cristina Toleclo de Paula*

Resumo

A opção por um perfil inteligente de profissional, por indivídjüós dispostos a reconsiderar e


ampliai- o conhecimento auto-evidente, parece-nos o principal desafio da Universidade e de seus
museus neste futuro próximo: superar o ideário politicamente correto que invadiu o pensamento
preservacionista dos anos 90 e lhe atribuiu seus principais qualificativos (necessário, indispen­
sável, transigente, ético), ultrapassando, assim, o discurso less is more que passou a reger con-
sensualmente (e infelizmente)' o trabalho dos museus universitários em todas as suas áreas de ativi-
d a d e . ^■E U L T "
Nesse contexto incentivai' a formação de profissionais de museus tal qual ela aconteceu no passado
e ainda acontece aqui e acolá, seria investir apenasno mínimo, no muito pouco. O que ainda temos
hoje, o pensamento básico, clonador do que já existe no estrangeiro, sempre existirá, não precisa ser
incentivado. Espera-se dos museus e escolas da Universidade de São Paulo iniciativas que proponham
e exerçam formações diferenciadas, simples e, quem sabe, inteligentes.

Breve comentário 1: os museus politicamente corretos

Os anos 90 trouxeram consigo novas idéias e propostas para o fim do milênio. A ecologia,
o politicamente correto, o respeito ao “diferente” e ao natural, influenciaram as idéias de
preservação tal qual fizeram com tudo o mais no mundo. A idéia menos é mais1 passou a
permear o discurso de preservação nos museus mundo afora. Um novo ideário baseado em
atitudes menos intervencionistas passou a predominar nas práticas de trabalho e na conservação
de bens culturais como um todo.2

No estrangeiro - de forma quase generalizada - a conservação de bens culturais apre-


senta-se, hoje, como uma atividade científica e não como uma ciência. As novas tecnologias,
a pesquisa dos diferentes materiais, a melhor compreensão dos processos de degradação aliadas
a uma ética e uma visão de mundo do profissional conservador e da instituição que ele repre­
senta,3 juntos, é que formam a atividade de conservação.4 Mas será que entre nós (Brasil-
SãoPaulo-USP) também é assim?

Somos fruto de nosso tempo e nosso tempo acredita na conservação preventiva. Não se
trata de insinuar, aqui, que a conservação preventiva seja uma idéia inadequada: ela é uma
idéia importada, como tantas outras, e a expressão do ideário politicamente correto, acredi­
tamos, nas práticas de conservação de bens culturais. O politicamente correto, em sua origem
se é que podemos falar assim, - apresentou-se, exatamente, como uma filosofia legisladora,
autolimpante, sobre o mundo dos exageros. Era preciso podar arestas, evitar abusos, promover
a sutileza de práticas e discursos. Mas ironicamente, constata-se, o politicamente correto trans­
formou-se em uma moral não de sutileza, mas de exagero. Todas as instâncias da vida social
passaram a ser observadas e patrulhadas por uma ética ranheta e tola em seus excessos: fuman­
tes passaram a ser perseguidos, crianças estão sendo condenadas por “assediarem” sexualmente
outras crianças e há indícios de que, brevemente, o chocolate será taxado como droga. Tudo em
nome do bem, do que é certo e verdadeiro. Velhos não podem mais ser chamados de velhos,
crianças transformaram-se em pré-adolescentes, e assim por diante. A noção ultrapassada da
construção de uma sociedade em nome da fé e da moral foi substituída pelo discurso ético,
moralizante.

101
Seguindo os novos tempos e a sensibilidade atual, portanto, a conseivação de bens culturais não
tardou a se fazer politicamente correta, elaborando um discurso e uma prática que alternam, o tempo
todo, sutileza e exagero. O discurso less is more, politicamente correto, passou a reger o trabalho dos
museus formadores da opinião mundial, e portanto da maioria dos museus mundo afora, inclusive no
Brasil e na Universidade de São Paulo. Inclusive no Museu Paulista.

A importação de tendências tem sido uma característica determinante, no Brasil, nos


últimos anos. O pequeno número de cursos de conservação e restauração no país e, principal­
mente, a ausência de uma reflexão consistente sobre nossa realidade patrimonial têm contri­
buído para que venha se instalando entre nós uma série de idéias estrangeiras, com endereços
e filosofias diversas, muitas vezes contraditórias. Não há o que fazer sobre o assunto, é uma de­
corrência destes dias: vários profissionais brasileiros têm deixado o Brasil para se especi­
alizai- em diferentes países, em escolas que trazem, naturalmente, abordagens e práticas de
trabalho diferenciadas. Ao retornar, nada mais natural que reproduzam, apliquem, divulguem
e ensinem aquilo que aprenderam no estrangeiro. Isto é comum em todas as áreas do conhe­
cimento em que não existe maturidade profissional, não sendo exclusividade, portanto, da
área de conservação/restauração.

Breve Comentário 2: tempos de especialismo: da restauração arte à conservação ciência....


ou ainda.... quando o homem de gosto cedeu o lugar ao especialista.5

A idéia de que o mundo da arte foi preterido pelo mundo da ciência apresenta-se sempre
como uma possibilidade instigante de análise. Em todas as áreas de atividade, em graus e cro­
nologias diferenciadas, mencione-se, tal passagem pôde ser verificada: medicina, química, bo­
tânica, astronomia. A idéia também sempre sugeriu uma questão elementar: mudou o mundo,
ou mudaram as coisas do mundo?

O mundo politicamente correto, dentre outras coisas, trouxe aos anos 1990 a proposta
de compaitimentação total do sujeito, do assunto e do objeto. Se desde o pós-guerra verificara-se
uma transformação paulatina nos perfis sociais e profissionais dos indivíduos, assistimos nesta
década, com maior rapidez, ao triunfo do especialismo e da visão de mundo ISO 9000. No
contexto da conservação/restauração não aconteceu diferente; a frase de Hegel “o homem de
gosto cedeu o lugar ao especialista”, se transportada para esse contexto específico, soa válida e
pertinente. O restaurador-artista, homem de talento, cedeu lugar ao conservador-cientista. Cer­
tamente tal mudança no perfil do profissional não ocorreu rapidamente. A idéia corrente, hoje,
é que ela teve início após a Segunda Gueixa Mundial.6

Mais importante do que tentarmos datai' tal transformação, todavia, talvez seja pensarmos
as idéias de passado t futuro que os diferentes perfis trazem associados. Nas últimas décadas
o restaurador-artista, homem de talento,7 passou a ser associado dentro do imaginário específico
da área, - a um tempo passado e, certamente, ultrapassado. O artista muitas vezes associado à
figura de Michelangelo, Rubens ou Aleijadinho - no contexto local -, deitado sobre andaimes
sujos de tinta, passou a ser encarado como um amador, alguém não qualificado e inapto a dedicar-
se ao trabalho de restauração.8

O conservador-cientista, por outro lado, é um especialista, um homem do futuro, de hoje,


portanto. E curioso como esstas noções se fundiram nesta última década: estamos vivendo um
tempo presente que não é exatamente o presente - tal qual o entendíamos na década anterior,
- mas um presente que já é futuro, aquele futuro que nosso imaginário social e afetivo fez cons­
truir sobre todas as coisas do mundo. Nem artesão, nem cientista: espera-se que o conservador
seja, hoje, um profissional especializado, pesquisador, pós-graduado, que se apóie em toda a

102
tecnologia e assessoria científica disponíveis para utilizar-se, entao, de técnicas manuais tradi­
cionais.9

No Brasil e outros países sul-americanos vemos conviver os dois perfis profissionais que,
peculiarmente, atuam com segmentos diferenciados. Embora não possamos reduzir a realidade
brasileira a uma mesma e única representação, o fato é que no país, hoje, formam-se profissio­
nais para atender ao mercado de arte e formam-se profissionais para atuar junto ao patrimônio
público. Quase sempre os profissionais que atendem ao mercado de arte são associados e se
fazem associar ao perfil do restaurador-artista, do profissional de talento, cujo aprendizado
apenas reforçou um dom nato. E é este o imaginário da profissão que, sem dúvida, prevalece no
Brasil. Bonito, chique, elegante, criativo, são comentários comuns associados à prática pro­
fissional no país.

Ao mesmo tempo os poucos cursos de formação existentes, bem como os profissionais que
trabalham em instituições públicas e/ou museológicas, esforçam-se por transformar esse ima­
ginário local - internacionalmente ultrapassado, - e firmar a imagem do conservador-cientista,
do especialista completo, up-to-date. Esse esforço pode ser verificado na simples construção
de discursos e atitudes institucionais cientificizadas, como também em ofensivas bastante ques­
tionáveis, como a desqualificação pública do outro perfil profissional, geralmente em nome de
uma pretensa Ética.

Contudo, no caso do Brasil, tal setorização de perfis profissionais não significa que os
indivíduos a eles associados possuam qualquer coesão em suas práticas de trabalho. A falta
de um pensamento e uma prática locais fizeram com que idéias e metodologias de diferentes
países, muitas vezes radicalmente divergentes, fossem transplantadas para cá e imediatamente
absorvidas por aqueles profissionais mais jovens ou oriundos de regiões de menor contato com
o estrangeiro. Estes, na maioria das vezes, não são informados sobre a origem daquilo que lhes
é ensinado e tampouco da existência de outras abordagens igualmente válidas. Na Universidade
de São Paulo não ocorreu diferente; é o background do especialista e não a diretriz da instituição
o fator determinante na adoção deste ou daquele perfil profissional e de uma ou outra meto­
dologia de trabalho.10

Breve Comentário 3: conservando aqui, destruindo ali: científico, pero no mucho.


A Conservação como um rito social: será que isto faz entido?

Outro ponto sobre o qual todos nós precisamos pensai", sobretudo nos museus universitá­
rios, é se realmente sabemos o que estamos dizendo quando falamos em preservação de ar­
tefatos. Vejamos a afirmação abaixo:

Se um laboratório de conservação levar um ano examinando ou tratando um objeto


importante, do começo ao fim sob uma iluminação de 750 lux, ele será responsável por um
clano equivalente ao causado por meio século de exposição desse objeto sob luz con trolada.11

E inegável que os museus da USP, nos últimos anos, têm buscado aprimorar seu conhecimento
e sua prática preservacionistas. Contudo, talvez mais uma vez pela inexistência de discussões e revisões
necessárias, verifica-se cotidianamente a adoção de procedimentos “caricaturais” de conseivação: o
que deveria ser conhecimento aplicado transforma-se em regra mal utilizada, em equívoco e desperdício.
Mas que procedimentos equivocados seriam esses?

Segundo afirmam os cientistas, a máquina é a grande metáfora deste século que termina.
Passamos, segundo dizem, da metáfora orgânica para a metáfora mecânica, para o maquinis-

103
1r\
mo.L/ A máquina ter-se-ia tomado indispensável à nossa compreensão da natureza, trazendo
associada a ela, necessariamente, a idéia de avanço tecnológico ecientífico. Nosso cotidiano encheu-se
de máquinas de todos os tipos sem que ao menos tenhamos reagido com estranhamento. Finalmente
chegamos à era JETSONl13 Essa interpretação do mundo equipado, sem dúvida, também envolveu
os museus, oferecendo inúmeras vantagens em diversas áreas: educação, difusão, segurança, pesquisa
e... conservação. A conservação-ciência pressupõe o uso de equipamentos.

A conservação pode dispor hoje de uma série de métodos de análise a lhe garantir maior
segurança e eficácia na obtenção dos resultados pretendidos: fluorescência por raio-X, espectros-
copia, endoscopia, reflectografia, termografia, difração por raio-X são apenas alguns exem­
plos.14 Maior o número de análises, maior o grau de cientificidade “atribuída” a uma interven­
ção, pensa-se.

No hemisfério norte, note-se, toda essa tecnologia a serviço da conservação é utilizada


dentro de um quadro de coerência, ou seja: exagerados ou não, tais procedimentos de alto custo
têm continuidade assegurada nas práticas subseqüentes. Os investimentos realizados na conser­
vação de um objeto para uma exposição temporária, por exemplo, nunca são comprometidos
pelo próprio projeto de exposição temporária: mobiliário, iluminação, materiais a serem
utilizados, segurança e pessoal especializado garantem que o objetivo principal seja alcançado: a
preservação do artefato está garantida. No Brasil, dentro e fora da Universidade de São Paulo,
quase nunca isso ocorre.

Poderíamos afirmar que a prática da conservação, hoje, não apenas nos museus da uni­
versidade mas em quase todo o país, é uma atividade apenas ritual: museus e profissionais re­
conhecem a importância de praticá-la, exibem e propagandeiam seus esforços nesse sentido...
mesmo que, de fato, eles nada acrescentem naquela direção. Mais importante que garantir
que suas práticas sejam técnica e cientificamente competentes, exibir tornou-se uma preo­
cupação, ou uma política preocupada. Milhares de dólares foram gastos, nesta década, em
equipamentos, novas formas de acondicionamento, materiais acidfree , 15 sistemas de clima-
tização e iluminação, num gigantesco ritual preservacionista que talvez apenas socialmente
se justifique. Do ponto de vista científico, entretanto, da preservação de fato dos materiais e
acervos envolvidos, tal ritual quase nunca se sustenta ou justifica. Causa-nos estranheza,
sempre, o discurso consensual e romântico que ainda vige na Universidade em relação aos bens
culturais: os binômios preservação/destruição, bom/mau, favorável/desfavorável parecem reger
todo o ideário praticante. O ponto central das discussões está sempre no mérito da intenção e
jamais no conteúdo da ação. Não será que diferentemente do ocorrido em todas as outras áreas
do conhecimento representadas nesta Universidade - em que toda sorte de releituras se verifi­
caram nas últimas décadas as áreas de Mmuseologia e conservação continuaram apenas repe­
tindo o que sempre existiu, quase sempre tão antigo?

Talvez seja hora de pensarmos um pouco, de pensarmos diferente e simples, de ampliar­


mos a mesma discussão de sempre, já tão restrita. Não se trata de defender o final disso ou daquilo,
de destituir as importâncias: trata-se, apenas, de pensar em vez de apenas clonar.

Façamos um paralelo com outra área de atividade. Uma emissora de televisão, por exem­
plo, dificilmente investiria em equipamentos sofisticados de geração de imagem sem investir
igualmente em todas as demais atividades e pessoal envolvidos na geração dessas imagens, por
saber que basta um elemento da rede não apresentai' o mesmo nível de qualidade para que todo
o investimento seja comprometido e seu objetivo não seja alcançado. Um só aspecto negligen­
ciado pode colocai' tudo a perder. Assim procedem, todos aqueles que têm claros os objetivos de
suas ações e sabem identificar toda a rede defatores envolvidos para alcançá-los. E os museus?

104
Será que os que nele trabalham realmente compreendem o porquê de suas ações? Será que eles
compreendem, afinal, o que significa conservação? As práticas de trabalho na Universidade
vêm sugerir que não. Tomemos um exemplo: o uso de luvas e demais equipamentos de segurança.

O uso de materiais de segurança nos museus ainda é bastante eventual. São vários os
casos de intoxicação, alergias, danos à visão causados por fungos etc., recentemente na Univer­
sidade! Mais do que simples negligência, este mau hábito é uma questão cultural: no Brasil a
idéia de segurança jamais foi levada a sério, em nenhuma situação. Consumimos produtos
químicos perigosos, depressivos, material explosivo cotidianamente e de forma abusiva. Fuma-
se em postos de gasolina, armazenam-se garrafas de álcool em todo e qualquer lugar, ingerimos
diariamente o excesso de detergente que deixamos em nossos utensílios domésticos etc. A
segurança é pensada ainda como um exagero, como um luxo ou preciosismo. E assim sendo
por que os museus seriam uma exceção? Por que a Universidade seria uma exceção? Infeliz­
mente, mesmo na Universidade, a idéia de segurança é uma questão legal no pior sentido:
faz-se, apenas, o muito pouco exigido por lei. Uma simples questão é um grande indicativo dessa
situação: quantos de nós sabem operai- um extintor de incêndio, uma operação que após trei­
namento é mais elementar do que usar um computador?

Na maioria das vezes o que encontramos são comportamentos ou hábitos caricaturais de


segurança e limpeza: máscaras, luvas, óculos de proteção etc. são usados apenas sob pressão ou
vigilância. Faz-se porque sim; não existe a noção de para quê.

Se do ponto de vista da segurança do trabalho as atitudes sob pressão resultam em algum


benefício, do ponto de vista da conservação dos objetos raramente nota-se alguma vantagem.
Vejamos por exemplo a recomendação quanto ao uso de luvas durante a manipulação de ar­
tefatos. Tal recomendação segue dois princípios básicos: proteger o objeto da gordura e sujidade
das mãos e proteger o dono das mãos contra qualquer substância presente no objeto que possa
ser nociva à saúde. Limitemo-nos aqui ao primeiro princípio.

O uso de luvas de algodão é especialmente recomendado no manuseio de materiais


porosos sob uma condição básica: elas precisam estai' limpas. Contudo, a despeito da recomen­
dação geral, é evidente que no caso de tecidos, cerâmicas e metais em decomposição, por exem­
plo, seu uso pode acarretar um dano ainda maior devido à aderência entre o suporte e o tecido
da luva; isso deveria ser elementar. Para esses casos existe a opção por outro tipo de luvas ou
mesmo por nenhuma luva. Uma vez mais voltemos ao paralelo com a situação doméstica: ima­
ginemos que tenhamos que apanhar um caldeirão sem alça, há muito tempo sobre o fogo. Qual
o material que escolheríamos como intermediário entre o metal quente e nossa pele? Será que
algum adulto pensaria em usai' uma luva de plástico? E claro que não, porque ele saberia o que
está acontecendo e do que precisa. Pois é, é simples assim. O problema é que nos museus as
pessoas não sabem do que precisam porque não entendem o que estão fazendo (e espan­
tosamente, em muitas operações isso se aplica inclusive aos conservadores).

A reprodução de procedimentos estereotipados de conservação aincla é uma prática


constante dos museus; mais do que um momento dentro de um processo de amadurecimento,
digamos, ela é urna tendência. Existe uma grande hipocrisia e uma grande ignorância no
comportamento de trabalho dos museus em relação à conservação das coleções. Tentamos
exibir uma preocupação que não existe de fato: nossos procedimentos são apenas rituais, e
ritual, neste contexto específico, significa equivocado.

E um comportamento profissional equivocado sugere, evidentemente, uma formação


igualmente equivocada, deficiente, pobre em recursos, resultante quase sempre do modelo

105
dolly de pensai', do pensamento apenas clonador de informações e procedimentos adotados
no estrangeiro.

Breve Comentário 4: por cm perfil profissional inteligente

A busca de uma prática diferenciada e teoricamente consistente por parte dos


profissionais de museus apresentar-se-ia, hoje, como a opção mais promissora e o maior
desafio da Universidade a médio e longo prazos. Seria desejável, agora, buscarmos um perfil
profissional mais adequado às atividades de salvaguarda patrimonial, compreendendo nesta
busca não só aquele perfil que desejamos para nós mesmos mas, principalmente, aquele que
gostaríamos de ver acompanhando nossos futuros profissionais. A palavra chave agora parece
ser aprimoramento.

Aceitemos que o politicamente correto hoje já tenha invadido boa parte do pensamento,
dos trabalhos e da atitude da Universidade de São Paulo, nas mesmas proporções e intensidade
verificadas fora dela. Da administração aos esportes, das salas de aula aos museus, somos todos
reprodutores dessa tolice fim de século. Pensando nesses termos, nada mais natural que o
trabalho de preservação na Universidade e mundo afora tenha tomado esse rumo. Será possível
rompemos com um entomo tão vigoroso, tão estabelecido de influências? Será possível cons­
truir um trabalho diferente?

Talvez apenas uma postura pautada num auto-engano16 temporário, instrumental, possa
viabilizai' uma perspectiva de mudança. Toda e qualquer chance de mudança futura, seja das
práticas seja das idéias, está associada necessariamente ao surgimento de novas oportunidades
de educação e formação profissionais. Dificilmente alterações significativas na área de conser­
vação ocorrerão nos museus da Universidade, enquanto não contarmos com cursos sistemáticos
de especialização e programas permanentes de estágio. O formato dessas atividades, sem dú­
vida, necessita ser estudado e amplamente discutido, mas sua criação deve ser seriamente consi­
derada. O ideal seria contarmos com uma formação comum que pudesse ser desdobrada, em
seguida, nas diferentes especialidades possíveis. Num primeiro momento, um curso teórico com­
petente; numa segunda etapa, um aprendizado já direcionado poderia ter prosseguimento nos
diferentes museus, nos moldes, talvez, do trabalho realizado entre a Royal School ofArt e o
Victoria & Albert Museum em Londres.17

Experiências sistemáticas e bem-sucedidas de formação de profissionais em áreas tão distintas


como pintura mural e têxteis já ocorrem na USP desde 1988 e 1994, respectivamente.18 Na
área de pintura mural - pioneira com seu Canteiro-escola - os estudantes do programa, ao longo
dos anos, vêm atuando em diferentes projetos de unidades da USP, como os do Museu Paulista,
da Escola Superior de Agricultura Luís de Queiroz, da Casa de Dona Yayá, da Vila Penteado,
entre outros. A capacitação dos alunos acontece por meio de cursos teórico-práticos desenvol­
vidos sob a coordenação da especialista em pinturas parietais da USP.

Na área de têxteis os estágios de longa duração, oferecidos no Museu Paulista desde


1994, têm oferecido resultados bastante positivos. Neles os interessados desenvolvem um
projeto de trabalho em conservação em todas as suas etapas: pesquisa histórica, pesquisa bi­
bliográfica, caracterização da tipologia e dos materiais, documentação, possibilidades de inter­
venção, projeto de acondicionamento etc. No planejamento dessas atividades entende-se que
tanto os trabalhos do Museu na área quanto o aprendizado do estagiário avancem num ritmo
paralelo, articulado e mutuamente vantajoso. Além desse trabalho específico, os estagiários
acompanham outras atividades do setor e participam de atividades externas, como produção
de exposições e assessorias a outras instituições, por exemplo.

106
Ambas as iniciativas citadas preocupam-se, principalmente, em formai' profissionais nessas
áreas, cujo aprendizado formal ainda inexiste no país. Ensinar a pensar, a pesquisar e a compreeiider
a conservação para somente então trabalhar com conser\>ação. A transmissão de procedimentos ou
soluções para determinados problemas práticos surge, apenas, como contraponto ou argumento do
trabalho desenvolvido pelo estudante. O objetivo, nesses estágios, é formar profissionais conservadores
independentes e não assistentes; é estimulai- a criação bem orientada e não a clonagem.

Se resultados tão satisfatórios têm sido obtidos em programas isolados e mesmo informais,
no caso de têxteis, e orientados em cada caso por um único profissional, imagine-se o resultado
que poderíamos obter caso envolvêssemos outros especialistas da USP e do estrangeiro!A atividade
de conservação no Brasil ainda é uma atividade de poucos, e isso precisa mudar: a Universidade
de São Paulo tem toda a infra-estrutura necessária ao desenvolvimento de um centro de formação
que teria por endereço natural a Escola de Comunicações e Artes. Por que não!

Hoje o trabalho de conservação na USP encontra-se num momento no qual ainda é im­
prescindível que outros profissionais viagem ao exterior para se especializai-em diferentes áreas,
como metais, plumária, cerâmica, vidro, couro, mecanismos, por exemplo. Apenas com um gru­
po mais amplo de profissionais, constituído e preparado, é que teremos assegurada, de forma
competente, a continuidade dos trabalhos institucionais. Temos tudo por aprender e pesquisai-,
ainda, e os museus da USP são as instituições apropriadas, o endereço certo ao desenvolvimento
dessas atividades. Juntos, curso de formação e trabalho institucional poderão introduzir novos
parâmetros de atividade profissional àqueles interessados que agora pouca escolha têm, garan­
tindo também, quem sabe, a renovação das práticas e idéias tão cansadas de hoje.

Falta-nos, finalmente, considerai-o perfil profissional que gostaríamos de incentivai-. Acre­


ditamos que as diversas especialidades da conservação requeiram determinadas especificidades.
Entretanto se quiseimos generalizai-um perfil ideal, diríamos que ele viria de uma mistura - 70%
conservador-cientista e 30% restaurador-artista - nos termos mencionados anteriormente
neste texto. De modo algum deveríamos incentivai-o modelo norte-americano, do conservador
quase virtual; ao mesmo tempo não precisamos incentivar a formação de restauradores criati­
vos, pois eles sempre existirão, longe dos cursos e universidades. Sem dúvida alguma os diver­
sos modelos de formação profissional europeus são bem mais interessantes tanto do ponto de
vista teórico quanto do prático. Em termos metodológicos, acreditamos, parece ser mais sadio
incentivarmos possibilidades diversas, múltiplas e mesmo antagônicas. A opção única, ex­
clusiva, é redutora e perigosa por definição.

Prioritário talvez seja optarmos por um perfil inteligente de profissional, por indivíduos
dispostos a reconsiderai- e renovar sempre aquilo que se mostra como certeza, como auto-evi-
dente. Incentivai- a foimação de profissionais nos moldes em que ela acontece hoje em outras
especialidades seria no mínimo insensato: o que existe aqui e acolá não precisa ser copiado,
tampouco incentivado pela Universidade de São Paulo. É preciso construir diferente, construir
mais simples e quem sabe melhor.

(*) Museu Paulista da Universidade de São Paulo - MP/USP.


(1) A expressão original, inglesa, é “less is m ore”.
(2) Estaremos adotando uma determinada idéia de conservação e restauração - dentre as muitas possíveis - ,
idéia esta que afirma o seguinte: “a conservação tem como objetivo manter a integridade física e visual de um objeto,
removendo-lhe e/ou acrescendo-lhe o mínimo de material. A restauração tem uma ordem diferente de priorida­
des: o aspecto visual ou funcional é predominante. Seu objetivo é recriar (no objeto), a aparência visual e física
que se acredita tenha ele originalmente exibido”. A diferença básica entre os dois modos de preservação, percebe-
se, está no objetivo da ação.

107
(3) Apesar de sabermos que hoje, cada vez mais, cresce o número de profissionais conservadores privados, ou
seja, que não trabalham dentro de uma instituição determinada, estaremos pensando, neste texto, nos profissi­
onais de museus e naqueles que trabalham com museus.
(4) Esta idéia, de uso corrente, aparece definida por Konstanze Bachmann na introdução de Conservation Con-
cerns. A G uidefor Collectors and Curcitors, Nova York, Cooper-Hewitt National Museum of Design - Smith-
sonian Institution, 1992.
(5) Esta afirmação encerra as considerações de Hegel sobre o gosto “Ter gosto é, pois, ter o sentimento, o sentido
do belo; é uma apreensão que, sem sair do sentimento, passa por uma tal formatação que descobre o belo imedia­
tamente, qualquer que seja e onde quer que esteja. A teoria das belas-artes e das ciências do belo destina-se a
formar o gosto, e tempo houve em que esteve muito em voga. mas o gosto é um modo sensível de apreender o belo,
adotando, para com ele, uma atitude sensível.
Fala-se, hoje, menos do gosto porque, como meio de apreensão e juízo imediatos, ele se mostrou incapaz de nos levar
muito longe e aprofundar o que quer que seja. Tudo exige um juízo em profundidade; o gosto, o sentimento,
não perfura a superfície e contenta-se com reflexões abstratas. O gosto não vai além dos pormenores, a fim de
que estes concordem com o sentimento, e repele a profundidade da impressão que o todo possa produzir. São os
aspectos exteriores, secundários, acessórios, das coisas que importam ao gosto, e são-lhe suspeitos, porque
repugnam ao seu amor pelas minudências, os grandes caracteres e as grandes paixões que o poeta nos descreve.
Perante o gênio, o gosto recua e esvai-se.
Renunciou-se, pois, à tentativa de formar o gosto para adquirir um juízo fundado sobre a própria coisa e sobre
seus aspectos. E assim se chegou a uma fase mais adiantada, a do especialismo. O homem de gosto cedeu o
lugar ao especialista.”
G.W.F. Hegel, Estética: a Idéia e o Ideal,. São Paulo, Abril Cultural, 1980 (“Os Pensadores”).
(6) Como referência a essa idéia, ver Paul Philippot, Restorationfrom the Perspective o fth e Humanities, apud
Nicholas Stanley Price et alli (eds.), Historical and Philosophical Issues in the Conservation o f Cultural Heritage
(Readings in Conservation). Los Angeles, The Getty Conservation Institute, 1995, 500 pp., p. 217.
(7) Uma distinção bastante interessante entre talento e gênio surge no romance de Allen Kurzweil, Uma Caixa
de Curiosidades, passado no século XVIII, durante a discussão de dois homens a respeito da natureza das
qualidades de Claude Page, um habilidoso restaurador de objetos com mecanismo: ‘“ Embora não deseje
polem izar’, ele polemizou, ‘devo dizer que as qualidades que iguala são muito diferentes, meu caro amigo.
Muito diferentes. O talento qualifica alguém para um serviço específico. Trata-se de uma manifestação comum
na capacidade externa de realização. O gênio é um dom raro, a posse dos poderes da invenção. Assim temos
gênios na poesia e na pintura, mas talentos para falai- e pintar. Os possuidores de talento na relojoaria nem
sempre são gênios na mecânica”. São Paulo, Cia. das Letras, 1993, p. 106.
(8) No Brasil, principalmente nos anos 1980, várias polêmicas foram criadas, principalmente nas cidades his­
tóricas de Minas Gerais, quando artistas locais - ensinados por seus pais a manter e recuperar as pinturas das
igrejas - , foram impedidos de trabalhar sob a alegação de não possuírem a especialização necessária.
(9) “There seem to be an international agreement amongst conservation specialists that conservators/restorers
should be trained at university or a comparable technical levei. Much care should be taken to establish a sound
equilibrium between practical training and theoretical knowledge. To compare again with the world of medicine:
the physician who has no skill in his hands is no good. The physician and perfect craftsman who doesn’t
understand the chemistry of the human body or can not find the appendicitis is equally frightening”, Agnes
Grâfin Ballestrem, Palestra sobre Gerência de Conservação, em Anais do Seminário da Associação Brasileira
de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais - ABRACOR, 7, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1994, p. 17.
(10) Vale a pena comentarmos que na recente reforma de carreiras da Universidade de São Paulo, as profissões
de nível universitário, então denominadas Técnicas em... - como no caso da conservação/restauração - , passa­
ram a ser denominadas Especialistas em...
(11) Stefan Michalski, “The Lighting Decision”, em Fabric o f an Exhibition: an Interdisciplinary Approach,
Textile Symposium 97, Canadian Conservation Institute, Ottawa, 1997, p.101.
(12) Esta é uma idéia recorrente em autores como Oliver Sacks, por exemplo. Com referência a essa idéia, ver
as entrevistas e debate organizados por W im Kayzer em Maravilhosa Obra do Acaso para Entender nosso
Lugar no Quebra-cabeça Cósmico, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, 352 pp.
(13) JETSON refere-se à série homônima, futurista, de desenhos animados produzida na década de 1960.
Alguns autores como J.G. Ballard defendem a idéia de que o discurso ficcional das últimas décadas foi tão
vigoroso que retirou do real todo o impacto científico e tecnológico sobre o nosso cotidiano. Ver “Back to the
Heady Future”, em A U ser’s Guide to the Millenium, Essays andReviews, Londres, Harper & Collins, 1996,
pp. 192-194.

108
(14) Para um quadro completo dos métodos analíticos e estruturais de investigação científica, ver o livro de
Marco Ferretti Scientific Investigarions o f Works o fA rt, Roma, ICCROM, 1993, p. 3.
(15) Será que aqueles que se utilizam de materiais a cidfree sabem, ao menos, o que isso quer dizer? Por que um
papel é acid free? O que NÃO EXISTE nele?
(16) Auto-engano aqui entendido nos termos desenvolvidos por Eduardo Gianetti: “O que aconteceria se o
auto-engano fosse inteiramente banido da existência e da convivência humanas? Como seria viver num mundo
em que a verdade objetiva prevalecesse sempre? Um mundo em que ninguém jam ais se enganasse_a si mesmo
(local) ou sobre si mesmo (global)?(...) A crença de que conseguiremos realizar muito (ou o impossível) é
muitas vezes a condição necessária para que realizemos pelo menos um pouco (ou o possível). ”, Auto-engano,
São Paulo, Cia. das Letras, 1998., pp. 56 e 61.
(17) Nessas instituições, poucos alunos são admitidos anualmente, cerca de um ou dois por especialidade. Após
um núcleo comum de aprendizado, os estudantes passam a estudar e desenvolver um projeto de trabalho nos
laboratórios do museu, sob orientação direta e constante de um profissional.
(18) “O program a Canteiro-escola de Restauração de Pinturas Murais, criado em 1988 pela Comissão de
Patrimônio Cultural da USP (CPC), é mantido pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão. Este programa visa
formar, aperfeiçoar e especializai- estudantes, de nível médio e superior, em identificação, conservação e restau­
ração de elementos e materiais componentes da arquitetura e de pinturas murais, com o duplo objetivo de suprir
a carência de profissionais qualificados nesta área de trabalho e promover, ao mesmo tempo, a conservação e o
restauro dos edifícios de valor histórico-cultural pertencentes à Universidade.” Regina Tirello, “O Canteiro-
escola: uma Experiência Pioneira”, em CPC (org), Conservação e Restauro I. Recomendações e Projetos em
Andamento na Universidade de São Paulo (1997).

109
MUSEOLOGIA EM FIM DE MILÊNIO: QUE O PASSADO SIRVA DE LIÇÃO
COMUNICAÇÃO APRESENTADA NA 2.a SEMANA DE MUSEUS DA USP

: Ana Maria Gantois*


Marcelo N. Bernardo da Cunha**

Quando pensamos em formação profissional em Museologia, projetando-a para o


próximo milênioi, fica evidenciado que é urgente, e de certaSjptàa já tardio, que se estabeleça
um projeto de forpiação que prime pelo entendimento(ipquéstões como multidisciplinaiidade,
integração e, basicamente, um projeto que atente para as novas necessidades socioculturais e
possibilidades tecnológicas, buscando entender ás novas dinâmicas de interação entre os in­
divíduos e o patrimônio, beíh cqm pisuasjniá^^^figurâções e utilizações.

A globalização projetada e afirmada por muitos implica que se atente para as questões
locais e sua id e n tific a ç ã o p a ra auxiliai- esse processo^em que as populações percam suas
marcas distintivas, diluindo-se CTn um caldeirão réferencial volátil e pouco consistente.

Nessas marcas, que em nosso entendimento constituem a sociedade contemporânea,


algumas questões apresentam-se como essenciais, e no entanto os cursos de Museologia ainda
as exploram timidamente ou até mesmo não as entendem.

Segundo as idéias de Canclini, em sua obra intitulada Culturas Híbridas, pode-se


caracterizar a sociedade atual como um espaço em que convivem situações a princípio
contraditórias, mas que neste cenário configuram-se como constituintes e inerentes.

Entre tais situações, podemos indicar a convivência, nem sempre em diálogo e muitas
vezes em conflito, entre tradição e modernidade, estando cada uma dessas categorias acompanhada
de uma série de preconceitos e equívocos que acabam se refletindo na questão da preservação
patrimonial e conseqüentemente nos cursos e política de preservação, entre os dedicados à
Museologia.

Tal relação provoca posturas que vão do saudosismo autoritário que impõe programas
de salvamento e preservação patrimonial, inteiramente alheios às necessidades atuais das
populações ou às novas demandas culturais, ou ainda programas inteiramente destrutivos e
modernizantes, nos quais, ainda em nome de uma “ideologia do progresso”, anulam-se referên­
cias marcantes do quadro cultural.

Nesse caso, uma nova formação em Museologia e ciência do patrimônio deve estar
voltada para a compreensão dos referenciais culturais, enquanto elementos que marcam a
memória social, ao mesmo tempo em que auxiliam na projeção e concretização de novos pla­
nos e diretrizes, na realização de novas abordagens sobre o ambiente e articulações entre ps
indivíduos.

Uma nova formação deverá estar atenta ao crescente achatamento do tempo em que
vivemos, no qual as dimensões do passado, presente e futuro confundem-se na velocidade das
inovações e necessidades constantemente renovadas, bem como à permanência de mentali-
dades na longa duração e às inevitáveis e insubstituíveis necessidades básicas do homem.

Outro elemento presente neste quadro é a convivência entre concretude e virtualidade.


Virtuais são agora as relações, os contatos, as viagens os processos de comunicação, em um
processo ágil de adequações e retomada de decisões que se configuram a todo tempo. Neste

111
caso, vem à tona a questão relacionada com o concreto, o objeto materializado, o patrimônio.
Qual será seu lugar nesta sociedade fluídica? Qual o seu papel e atração para pessoas que vivem
o tempo pontual da era da informática?

Segundo Pierre Levy, o tempo circular da oralidade, ou ainda o tempo linear da história dão
agora lugar a um novo tempo, o denominado tempo pontual, que sintetiza os anteriores, numa
velocidade que é momentânea, potencial. Nesta nova era, tudo está à mão, ao alcance do toque,
potencializado nas redes de informações. O conhecimento, ou sua busca, transforma-se em um
jogo de buscas e investigações. Acessá-lo ou não dependerá muito da capacidade de manipulação
dos recursos tecnológicos, mas além disso fará diferença qualitativa a capacidade crítica da leitura
desse emaranhado de informações permanentemente renovadas, anuladas ou ressaltadas.

Uma formação em Museologia atenta para esta questão deverá considerar que a realidade
é um complexo de níveis que se articulam e se complementam, no qual o concreto e o virtual
enfrentam-se e interagem a todo momento. Não há possibilidade de se anulai- qualquer um
dos três níveis. As bases virtuais apóiam-se na concretude e nas materializações. Portanto, tan­
gível e intangível estabelecem uma relação de dependência que garante sua sobrevivência.

Temos ainda que considerar que por mais velozes que sejam as tecnologias atuais, as
mudanças sociais de base, relacionadas com a ética e as práticas sociais, não se dão tão brus­
camente; logo, idéias e produtos com elas relacionados e que as embasam permanecem muito
bem fundamentadas na realidade concreta. Nesse sentido, sempre teremos lugar para monumentos
concretos e suas marcas. O que marca esse novo tempo é a convivência de diversos níveis de
realidade e patrimônios, bem como sua construção, apreensão e entendimento.

Este deve ser um ponto que merece atenção na formação do museólogo: a relação atual
dos indivíduos com o tempo e o espaço, sua interação e transformação.

Outro ponto que se destaca nesse quadro é a ânsia do descarte, na qual se apregoa o pouco
tempo de vida e permanência das coisas, numa utopia de renovação e jovialidade permanentes,
em que o passado e suas referências materiais apresentam-se como eminências pardas do processo
de renovação, no caminho para o futuro.

Uma formação museológica voltada para esse problema deverá preocupar-se com um
programa que inclua ações de educação patrimonial, que redimensionem essas referências
culturais, evidenciando e provocando sua permanente reapropriação social e seu caráter como
elemento fundamental para projeção do futuro.

Há ainda outro aspecto, que está relacionado com um projeto de globalização das referên­
cias culturais, em um trabalho utópico de derrubada de fronteiras geográficas, econômicas,
políticas e todas as outras - uma ideologia que prega a estandardização da vida e seus elementos
componentes. Neste caso, surge uma pergunta: qual será a importância de elementos
diferenciais em uma sociedade desejada como igual, global? Este momento demonstra que,
ao invés das preocupações alarmantes do passado em torno da possível homogeneização da
sociedade, a cada dia toma-se mais evidente a preocupação e o recurso aos elementos culturais
diférenciadores para a manutenção e desenvolvimento social.

Neste caso, a formação deverá propiciai" o surgimento de agentes e processos que


provoquem a reflexão sobre a alteridade e a identidade - o patrimônio vivenciado como
elemento definidor de diferenciações, de afirmação de identidades, propiciador de reivindica­
ções e transformações.

112
Por fim, vem à tona uma questão bastante complexa, como pano de fundo neste quadro.
Ao tempo em que se afirma que estamos construindo uma nova sociedade, igualitária, demo­
crática, com respostas para as necessidades coletivas, tornam-se cada vez mais evidentes neste
quadro estruturas arcaicas, muitas delas já acreditadas, em desuso e obsoletas, que se apresentam
novamente no cenário mundial.

Os avanços tecnológicos não garantiram, até o momento, nem mesmo a melhoria efetiva
da qualidade de vida ou o fim de problemas cruciais para a humanidade. Por outro lado, nem
mesmo propiciaram uma mudança de mentalidade, que permanecem inteiramente arraigadas
a idéias e propostas das mais conservadoras e tradicionais. Vivemos em um tempo de grande
desenvolvimento tecnológico e informático que ainda não deu conta, e talvez jamais venha a dar,
de questões básicas relacionadas com o espírito humano, seus desejos e anseios.

A multiplicidade de desafios que se apresentam acarreta a necessidade de uma formação


referenciada em uma proposta que entenda as instituições de preservação da memória, entre
elas os museus, como parte da superestrutura da cultura, extremamente marcada pela estratifi-
cação intelectual, social e econômica. A formação desejada deve buscai' a solução de questões
relacionadas com uma prática profissional inteiramente marcada por disputas intelectuais e
anseios de poder, tão fugaz e relativo mas extremamente almejado. Uma nova abordagem im­
plicará então o entendimento do patrimônio e seus espaços de preservação como um centro de
referencias diversificadas, justapostas e coordenadas e não exatamente hierarquizadas, como
têm sido.

Por fim, podemos afirmai' que uma formação em Museologia voltada para a nova confi­
guração social que se apresenta nesta virada de milênio deve estai' fundada em um processo co-
municacional. A Museologia há muito vem privilegiando a informação centrada na frag­
mentação, no olhai' especializado, com todo o sentido de limitação que neste caso o termo possa
ter. O pensamento, a formação e a prática museológica devem estar voltados paia a busca do
entendimento da realidade como um sistema de referências permanentemente construídas,
reconstruídas, em um processo dialético de abordagens, considerando que as referências são múl­
tiplas e constantemente renováveis.

Uma formação que estimule a ação transformadora, em uma prática transdisciplinar,


reconhecedora da complexidade dos jogos de poder, na luta pela conquista e afirmação dos es­
paços ou locais que se ocupam e se devem ocupai' nesta sociedade, não mais baseado na tirania
e intolerância, aos quais o patrimônio tantas vezes foi útil, mas em uma nova configuração deter­
minada pelo reconhecimento de competências e direitos.

É nesse caminho que acreditamos que o patrimônio, seu estudo e preservação devem ser
encarados, como mais um elemento de um jogo comunicacional que pode levai' à alienação ou
à transformação. Tais são algumas das questões que evidenciam nossa responsabilidade pro­
fissional enquanto agentes sociais.

(*) Museóloga, Diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia, UFBA


(**) Museólogo, Coordenador do Museu Afro-Brasileiro, CEAO-UFBA

113
COMUNICAÇÃO: POTENCIALIDADES MUSEOLÓGICAS DA USP:
PESQUISA E FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Andrea Paula dos Santos


Claudia Martini Ferrari
, <> Janes Jorge
^ 0
O objetivo desta comunicação é fazer um breve relato de nosso trabalho em torno do Diag­
nóstico sobre as Potencialidades Museológicas dqiJJniversidade de São Paulo, sob orientação
da Prof.a Dr.a Maria Cristina Oliveira Bruno.

A idéia da realização de um Diàgnóstico surgiu em 1998, no decorrer de um intenso


processo de debate entre vários docentes e pesquisadores no âmbito da Pró-Reitoria de Cultura
e Extensão, da Coordenação de Museus e da Comissão de Patrimônio Cultural, para a implan­
tação de um Museu de Ciências da USP. Partia-se da premissa de que esta Universidade pos-
suia uma produção científica que, embora expressiva, era pouco aberta à comunidade.

Os participantes desse fórum de debates deliberaram que para se estabelecer um novo perfil
de museu universitário seiia necessário realizar um Diagnóstico, para mapear os museus e co­
leções já existentes na Universidade. Esse Diagnóstico buscaria identificai- as condições de orga­
nização dos processos museológicos da USP no que se refere à salvaguarda e comunicação, vi­
sando à proposição de uma rede de museus e núcleos museológicos.

A articulação dessa rede de museus e núcleos museológicos definiria o grau de envolvi­


mento e participação de cada instituição na proposta de um grande museu que congregasse a
todas. Assim, a pesquisa ofereceria subsídios à elaboração de diretrizes para a implantação do
Museu de Ciências da USP.

Nosso trabalho, em caráter de estágio, iniciou-se no final de maio, com previsão de con­
clusão até novembro de 1999. No breve período de pouco mais de três meses - quase metade
do tempo proposto para o Diagnóstico - desenvolvemos várias atividades que nos habilitaram a
realizá-lo. Entre elas, destacam-se:

- discussões teóricas e metodológicas sobre a área de Museologia e a história dos museus


e coleções da USP a partir de bibliografia e de outros documentos a que tivemos acesso;
- concepção e preenchimento de Quadros Referenciais.

Durante a pesquisa encontramos o mais antigo diagnóstico produzido sobre as coleções e


museus da USP, realizado por estudantes da ECA sob orientação do Prof. Walter Zanini, em
1982. Apesar de ser muito recente, foi por meio deste trabalho que traçamos o histórico da
evolução dos museus e coleções da USP, especialmente no período de 1982 a 1999, e cons­
tituímos os seguintes Quadros Referenciais:

- Quadro Referencial 1. Comparação das estruturas dos questionários de 1982 sobre


museus e coleções-USP e de 1999, museus-CPC-Vitae} Neste quadro analisamos em ambos
os questionários: a natureza dos trabalhos propostos; as formas de encaminhamento; as estru­
turas; as formas de análise e a utilidade das respostas obtidas; o que foi ressaltado em cada
um deles; o que tinham em comum e quais as concepções de museus subjacentes a ambos.
Anexamos a este quadro uma tabela comparativa dos blocos temáticos dos questionários dos
levantamentos de 1982 e 1999, bem como a estrutura do questionário de 1982 e o Manual
CPC-Vitae 99.

115
- Quadro Referencial 2. Museus e coleções da USP: mudanças no período 1982-1999.
Este quadro é composto por uma breve apresentação, organogramas e um quadro geral que
indicam a trajetória dos museus e coleções da USP. Encerram o quadro comentários sobre as
transformações ocorridas nesses dezessete anos.
- Quadro Referencial 3. Levantamento de unidades da USP que não possuem infor­
mações sobre museus cadastradas no Banco de Dados da CPC. Neste quadro obtivemos
informações sobre acervos e coleções da universidade, que embora constando do levantamento de
1982 não estavam cadastradas no Banco de Dados da CPC, e também dados sobre coleções e
acervos até então desconhecidos.
- Quadro Referencial 4. Museus e coleções nos campi da USP não pertencentes à
Universidade. Neste quadro, uma série de organogramas indicam museus e coleções que não
pertencem à USP mas estão localizados próximo ou mesmo dentro de vários de seus campi.
Os organogramas são seguidos de um comentário que destaca a importância de se estabelecer uma
interlocução com essas instituições.
- Quadro Referencial 5. Perfil atual dos museus e coleções da USP (1999). Baseado
nas respostas do questionário CPC-Vitae 99, este quadro compõe-se de tabelas demonstrativas
sobre itens dos blocos temáticos considerados relevantes para a elaboração do diagnóstico sobre
as potencialidades museológicas da Universidade de São Paulo. Cada tabela é seguida de um
comentário.

Com o objetivo de aprimorar os instrumentos de pesquisa de que dispomos para realizar


nosso trabalho, estamos desenvolvendo outros quadros referenciais.

Por ora, constatamos que a Universidade de São Paulo possui um patrimônio cultural
de grande valor no que concerne a museus e coleções, mesmo que muitos deles não se adeqiiem
plenamente aos parâmetros museológicos propostos pela Coordenação de Museus quando da
aprovação em 1994 dos “Pré-requisitos para a criação de museus na USP”.

Cabe ressaltar que houve nos últimos dezessete anos algumas transformações favoráveis
e outras negativas quanto aos rumos dessas coleções e museus. Algumas das coleções, que
constituíam-se em acervos importantes - como o Museu do Folclore da ECA - “desapareceram”.
Seria interessante descobrir por que isto ocorreu, se estes acervos ainda estão na Universidade
e se poderiam voltar a cumprir sua vocação museológica.

Dentre os que tiveram continuidade - no caso, a maioria deles - alguns permanecem sem
muitas mudanças além do acréscimo de novas peças. Outros, entretanto, conheceram transfor­
mações radicais, como os acervos que deram origem, em 1989, ao atual Museu de Arqueologia
e Etnologia (MAE), resultado da fusão do Instituto de Pré-História, do antigo Museu de Ar­
queologia e Etnologia, dos setores de Arqueologia e Etnologia do Museu Paulista e do Acervo
Plínio Ayrosa. Devido ao seu caráter pioneiro e raro, essa fusão constitui um marco na evolução
dos museus e coleções da USP, estabelecendo conceitos básicos, normas e parâmetros que podem
subsidiai- futuras experiências do mesmo tipo.

Além disso, nota-se que há um movimento para atualização na área de Museologia de


muitas das coleções e museus. Observa-se também o interesse, cada vez mais presente, na contra­
tação de museólogos, conservadores e educadores, assim como a preocupação de se pensar o
diálogo do museu com a comunidade, principalmente mediante atividades didático-educativas.

Quanto à nossa formação profissional, ressaltamos que este estágio em Museologia,


com a finalidade de se fazer o “Diagnóstico das potencialidades museológicas da USP”, acres­
centa um outro olhar, seja quanto à nossa percepção da Universidade e suas possibilidades de

116
atuação junto (e em conjunto) com a comunidade, seja quanto às nossas áreas específicas de
formação, a saber: História, Arquitetura e Ciências Sociais, as quais complementam-se em suas
especificidades com este diálogo aberto com a Museologia e suas propostas de ação.

Bibliografia e Fontes de Pesquisa

ALMEIDA, M aria C. B. de (coord.). Guia de Museus. São Paulo, USP-CPC, 1997.


ARAÚJO, M arcelo M attos e BRUNO, M aria Cristina Oliveira (orgs.). A Memória do Pensamento
Museológico Contemporâneo. Documentos e Depoimentos. São Paulo, Comitê Brasileiro do ICOM, 1995.
ARRUDA, José Jobson de Andrade e outros. “Relatório elaborado pela Comissão designada pela Portaria
GR 2073, de 15 de julho de 1986”, USP,
“Base de Dados sobre Museus da USP”, Banco de Dados da CPC-USP (dados de maio/1999)
GUARNIERI, W aldisa Rússio Camargo. “Conceito de Cultura e sua Inter-relação com o Patrimônio
Cultural e a Preservação”. In: Cadernos Museológicos, IBPC, n. 3, 1990, pp. 7-12.
___________. “Museu, Museologia, Museólogos e Formação”. In: Revista Museo. 1(1), 2.° sem., 1989,
pp. 7-11.
BANCO DE DADOS DA CPC-USP. “Manual da Base de Dados Unificada sobre Museus”. Pró-Reitoria
de Cultura e Extensão Universitária-Vitae, 1999.
COORDENAÇÃO DE MUSEUS. PRÓ-REITORIA DE CULTURA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA,
“Pré-Requisitos para a Criação de Museus na USP”, 1994.
USP-CPC. “Diretrizes para implantação do Museu de Ciências. Relatório final do grupo de trabalho
constituído para elaboração de proposta de novo formato de museu”, São Paulo, 1998.
ZANINI, W alter (org.). Situação dos Museus e Coleções da Universidade de São Paulo (levantamento
realizado entre agosto e novembro de 1982), São Paulo, ECA-USP, 1982. 355p. il.

(1) Este questionário, proposto pela Comissão de Patrimônio Cultural da USP (CPC/USP) com o apoio da Funda­
ção Vitae, foi elaborado de forma a mapear o perfil dos museus em todo o Brasil. Enviado às instituições no
início deste ano, visa a alimentar a Base de Dados Unificada sobre Museus da CPC.

117
REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE
MUSEUS - DIFICULDADES E ACERTOS NA IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA
INTEGRADO DE MUSEUS DA SECRETARIA
DE CULTURA DO ESTADO DO PARÁ

Rosa ífa^Marques de Britto*


ária Angélica Meira**

Segundo Mário Chagas (1990:39-44) em-á Formação Profissional do Museólogo: 7


Imagens e 7 Pervgos, esta formação implica uma determinada Imagem Museal, que tem como
foco de reflexão sua formação em cursos de graduação em Museologia. O termo “Imagem
Museal” aqui será aplicado como parâmetro de avaliação qualitativa das dificuldades e acertos
na implantação do Sistema Integrado de Museus - SIM, desvelado a partir de duas vivências que
tiveram experiências conjuntas em funções museais diferenciadas.

São histórias de vidas tranversalizadas em duas trajetórias, iniciadas profissionalmente


em 1993 no Museu de Arte de Belém, continuadas a partir de 1997 no Museu do Estado do Pará
e novamente redirecionadas em 1998 com a criação do SIM. Essas histórias pretendem pontuar
a compreensão de um ciclo de vida profissional em museus de Belém, associando a não formação
em Museologia às vivências refletidas e aos acertos e dificuldades vivenciados.

Vivências Desvelando Imagens Idealizadas

As vivências são os saberes vividos; o universo simbólico e cultural de um saber sobre este
mundo. E, ao mesmo tempo, a visão de homem e de uma realidade, assim como um desvelai' da
subjetividade produzida e a busca da produção de subjetividade; é o ser em si (ontológico) e o
ser para si (gnoseológico). Parafraseando Merleau-Ponty (1996:569), o ser para-si e o ser-no
mundo não é senão um ser em relação.

Os sets de vivências são as paisagens presentificadas pelo memorial da pessoa, compre­


endendo que nossa ação e o saber profissional são objeto, sujeito e ator da investigação-fonnação.
E o cotidiano da vivência museal, abordado como uma (auto)biografia que está presente e interliga
a maneira de atuar do profissional com sua maneira de ser.

Na primeira trajetória foi construído um espaço museal relacionai imaginário, concebido


como a tramatura das experiências refletidas da prática profissional de atelier, da sala de aula e
da sala expositiva. A construção desta Imagem Museal é iniciada a partir do primeiro encontro
com a área de conhecimento da Museologia, em 1990-1992, destacando o curso dt Museologia
Popular, orientado por Waldiza Rússio, apresentando conceitos sobre a função social dos museus
e sua relação didática, que vieram, mais tarde, fundamentar sua prática museal. A segunda
tem sua Imagem Museal construída a partir da experiência de trabalho na área de documentação
museológica, museografia e preservação.

Contexto

O período de 1993-1996 eqüivale ao momento de descoberta da área de conhecimento


da Museologia. Em função da não formação profissional em Museologia, em virtude da
inexistência na região de cursos específicos para esta área, a construção das Imagens Museais
fez-se associada a outras áreas do conhecimento, a partir da graduação em Arquitetura. Como
cita Fazenda (1995:28-29):

119
...a atitude interdisciplinar não seria apenas resultado de uma simples síntese, mas sínteses
imaginativas e audazes (...) não é categoria de conhecimento, mas de ação (...) nos conduz a
um exercício de conhecimento: o perguntai' e o duvidar (...) é a arte do tecido que nunca deixa
ocorrer o divórcio entre elementos, entretanto, de um tecido bem trançado e flexível.

Em 1997, na direção do Museu do Estado do Pará, o grande desafio para o desenvolvi­


mento do trabalho museal mais uma vez se apresenta: a contraposição entre a Imagem Museal
conformadora, cristalizada em conteúdos e práticas regressivas e a configuração de uma imagem
museal transformadora, projetada no aqui e agora, no devir da sociedade (Chagas:39).

Com a implantação do Sistema Integrado de Museus - SIM, criado pela Lei n.° 6 104, de
14 de Janeiro de 1998 e regulamentado pelo Decreto n.° 3 473, de 26 de maio de 1999, veio
finalmente se concretizar como parâmetro a Imagem Museal Transformadora. Com o objetivo
de implementai' a ação sistêmica de gerenciamento e a articulação entre os Museus do Estado,
respeitando a diversidade e o estabelecimento de planos comuns de trabalho, o SIM gerencia as
ações do Museu do Estado do Pará - MEP, Museu da Imagem e do Som - MIS e o Museu de
Arte Sacra - MAS.

Entendendo-se que a principal função dos museus é propiciar a interação público-objeto


museal, ocorrendo em três vias: função educativa (desenvolvimento integral do homem);
científica (na coleta sistemática do material, catalogação e anáüse mediante exposições e ativi­
dades paralelas), e a função social (entrelaçamento das duas) (Giraudy e Bouilhet, 1990), o
SIM está estruturado em níveis:

- o primeiro, de direção superior e de atuação colegiada, composto pelo conselho consul­


tivo de Museologia, que tem como finalidade auxiliar o pleno funcionamento das ações mu-
seais;
- o segundo, de gerência superior, função de direção do sistema;
- o terceiro, função de direção dos diversos museus;
- e o quarto, de atuação operacional, composto pelos chefes de divisões de Preservação,
Conservação e Restauração; Pesquisa; Curadoria; Educação e Extensão.

Epílogo Labiríntico

Os parâmetros de avaliação qualitativa das dificuldades e aceitos de oito meses de vivência


do SIM nos permitem construir a imagem da Busca Labiríntica, compreendendo que nossa
história de vida coletivizada em um pensai' sistêmico encontra-se como uma representação
mutante em equilíbrio meta-estável. Os fechamentos possíveis se transformam em um epílogo
labiríntico, que nos conduz a um horizonte de possíveis a horizontes de realidades, percurso
este pulsionado por histórias de vida e vivências individuais que são coletivizadas na Imagem
Museal Transformadora. Em síntese, é o caminhar de um horizonte sempre à procura de espaços
museais vivos, contínuas reflexões que possibilitem mutação de horizontes possíveis de liberdade,
educação, preservação e mudança.

O desafio para o próximo milênio em relação à formação de profissionais de museus está


galgado em uma atitude interdisciplinar e em constante reflexão e mudança, que necessaria­
mente está consubstanciada em um aprender a aprender ao longo da formação inicial, considerando
que oprofissional mobiliza um capital de saberes, de saberfazer e de saber-ser que não estagnou,
pelo contrário, cresce constantemente, acompanhando a experiência e, sobretudo, a reflexão
sobre a experiência (...) conhecimentos teóricos como respostas a situações vividas, escla­
recimentos, grelhas de leitura da experiência (Perrenoud, 1983:186).

120
O SIM, pensado atualmente, já não atende à imagem projetada de museus em integração,
mas encontra-se em constante avaliação qualitativa que convive com os parâmetros das
Imagens Museais refletidas.

Referências Bibliográficas

BROTO , Rosangela. Colagem & Cartografia de Vivências: O Percurso de uma Artista Plástica-Professora-
Museóloga Transversalizado em um Continuum Coletivizado, Vida e Profissão. Belém, UNAMA, 1998, 185 pp.
CHAGAS, Mário. A Formação Profissional do Museólogo: 7 Imagens e 7 Perigos. In: Cadernos Museólogicos.
Rio de Janeiro, out., n. 3, 1990.
FAZENDA, Ivani; SEVERINO, Antonio etál. Novos Enfoques da Pesquisa Educacional. São Paulo, Cortez, 1992.
GIRAUDY, Daniéle & BOUILHET, Henri. O Museu e a Vida. Rio de Janeiro, Fundação Nacional-Pró-Memória,
1990.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução de Carlos Alberto de Moura. São
Paulo, Martins Fontes, 1994.
PERRENOUD, Philippe. Práticas Pedagógicas Profissão Docente e Formação - Perspectivas Sociológicas.
Portugal, Dom Quixote, 1993.
VARINE-BOHAN, Hugues de. (Entrevista). In: Os M useus do Mundo. Rio de Janeiro, Salvat Editora do Brasil,
1979.

(*) Rosangela M arques de Britto. M estre em educação, artista plástica, arquiteta, atualmente diretora do Sistema
Integrado de Museus da Secult.
(**) Maria Angélica Meira. Especialista em preservação, conservação dos bens culturais; «jrquiteta, atualmente
diretora do Museu do Estado do Pará - MEP.

121
DESCOBERTAS E COLONIZAÇÕES DO BRASIL:
UMA SÍNTESE SÓCIO-CULTURAL IBEROINDÍGENA*

Am o Alvarez Kem**

1. Introdução.
ÊÊk ^
Um dos episódios da expansão ultramarina luso-espanhòla foi a descoberta da América
Meridional e sua conseqüente colonização, a partir do século XVI. Este processo de ocupação
do território deu origem a um processo extremamente complexo de relações entre as sociedades
indígenas, que aqui se haviam instalado nos últimos dez mil anos, e os grupos populacionais
ibéricos que aqui chegaram durante pj período colonial, julgando-se as descobridoras deste
Novo Mundo. Nenliuma destas sociedades que aqui se estabeleceram, entretanto, são
autóctones. Os grupos^tndígenas vieram da Ásia, provavelmente em migrações sucessivas,
no decorrer da última glaòiação. Foram pouco a pouco descobrindo e colonizando ocupando
o imenso território americano e- procurando formías mais eficientes de adaptação às paleo-
paisagens frias e secas da época glacial. Ão longo dos milênios, terminaram por ocupar toda
a América do Sul. Alguns grupos permaneceram nômades e caçadores-coletores-pescadores.
Outros, deram origem a sociedades muito complexas e diferenciadas, estabelecidas em aldeias
no Amazonas ou mesmo em cidades nas montanhas dos Andes e no altiplano boliviano.
Estes grupos nativos sul-americanos, no limiar da Idade Moderna, não poderiam ter idéia de
que seus destinos históricos estavam relacionados com outros grupos provenientes de duas
longínquas nações ibéricas, Portugal e Espanha.1

Quando os portugueses e os espanhóis aqui se estabeleceram nos inícios do século


XVI, encontraram paisagens diversificadas e sociedades indígenas muito diferentes umas
das outras. Os contextos ambientais nos quais os grupos indígenas estavam instalados eram
muito diversos, variando não apenas no que diz respeito ao relevo mas igualmente quanto ao
clima, à flora e à fauna. Nas alturas geladas dos Andes, nas imensas extensões da floresta
equatorial amazônica, ou nas vastas paisagens cobertas de gramíneas dos pampas, estes
ambientes distintos exigiam dos grupos indígenas adaptações culturais muito específicas.2 Nestas
paisagens estavam instalados grupos nômades de caçadores-coletores-pescadores, parcialida-
des étnicas formadas por aldeões horticultores semi-sedentários e mesmo sociedades organiza­
das militarmente, com suas cidades, templos e palácios. Todos estes grupos, direta ou indireta­
mente, entraram em contato entre si ou por intermédio de seus vizinhos. Realizaram trocas através
de intercâmbios culturais e comerciais, ou chocaram-se entre si em guerras de conquista e em
expansões colonizadoras. A partir da colonização e do povoamento encetado pelos portugueses
e pelos espanhóis, nos momentos posteriores à expansão ultramarina, os grupos indígenas
começaram a sofrer alterações sociais e culturais profundas e muitas vezes traumáticas, como
conseqüência dos impactos e dos contatos decorrentes.3No passado, nenhuma empresa de conquista
fora de tal modo extensa nem uma exploração econômica realizada com tal intensidade, nas
imensas paisagens desta América Indígena. Esta colonização foi a responsável pela migração
forçada de outros grupos, de origem africana, que aqui chegaram como escravos.

Deste complexo processo emergiu uma nova sociedade colonial iberoindígena, a qual ter­
minou sendo a base da organização de nossa atual América Latina.

Muitas das afirmações que constantemente são difundidas, principalmente em jornais e


revistas, mas igualmente em muitos livros didáticos, relacionadas ao processo de descoberta
e colonização da América , não passam muitas vezes de chavões e afirmações superficiais,
interpretações subjetivas e carregadas de emoção, mas com muito pouco de conteúdo histórico.4

123
Assim, designam-se os protagonistas desta história como europeus e vencedores, de um lado,
como indígenas e vencidos, de outro lado, esquecendo-se dos vencidos e vencedores dos
conflitos existentes no seio das próprias sociedades européia e indígena. Afirmam igualmente
terem os europeus aniquilado as culturas nativas e dizimado as populações indígenas. Enquanto
isto, em toda a América, os grupos nativos e sua rica cultura ainda hoje são presença constante
em alguns lugares, e uma herança cultural não negligenciável subsiste mesmo em zonas onde
são raros ou inexistentes seus descendentes.5 Estas generalizações são feitas de maneira muito
simplista e, mesmo que contenham parcelas de verdade. Em primeiro lugar, nenhuma análise
maniqueista destas sociedades nos esclarece muito ou amplia o nosso conhecimento, pois o que
se ganha em simplificação, é perdido em conteúdo histórico. Em segundo lugar, é necessário
situai- a expansão ultramarina e a colonização da América em seu contexto histórico e a partir de
uma dupla perspectiva, européia de um lado e indígena de outro. São complexos os contextos,
nos quais múltiplas variáveis devem ser levadas em conta e analisadas em suas interrelações
dialéticas. Apenas poderemos reconstituir historicamente esta realidade passada se soubermos
utilizai' modelos de múltiplas variáveis e um raciocínio complexo.

2. A formação da sociedade iberoindígena colonial.

Não podemos ignorar a complexidade do processo histórico que deu origem à sociedade
americana colonial, a partir de seus segmentos indígena e europeu. Não nos basta afirmar sim­
plesmente que houve miscigenação, quando as duas sociedades entraram em contato, como conse­
qüência da expansão ultramarina ibérica. Esta nova sociedade apresenta uma série de elementos
sócio-culturais específicos. Neste imenso continente sul-americano, as especificidades dos
contatos e dos impactos nos permitem desvelai' historicidades diferentes.

Numa primeira abordagem, somos obrigados a levar em consideração, que as paisagens


onde se desenvolveram estas relações interétnicas foram muito diferenciadas, com relevos,
climas, flora e faunas distintos. Com suas formas enérgicas de relevo, os picos, as montanhas
e os vulcões dos Andes se antepõem às imensas planícies do Amazonas e dos Pampas, localiza­
das no lado atlântico. O clima equatorial quente e úmido do norte do continente sul-americano,
contrasta com os ventos frios, os gelo e as neves das alturas dos Andes ou das latitudes meri­
dionais da Patagônia. As paisagens vegetais apresentam igualmente diferenças muito grandes,
quando comparamos por exemplo os infindáveis tapetes de gramíneas dos Pampas e da Pata­
gônia, com as densas florestas tropicais e subtropicais das vertentes atlânticas.

Os grupos indígenas estavam estabelecidos nestes diversos ambientes com padres


adaptativos diferenciados, a partir de tradições culturais estabelecidas desde muitos séculos. A
base para a formação destas sociedades nativas foram os primeiros grupos de caçadores, cole­
tores e pescadores que aqui se estabeleceram, em plena glaciação. Entretanto, no decorrer do
período pós-glacial, nos últimos 10.000 anos,6 estes grupos se transformaram de maneira ex­
traordinária, diferenciando-se entre si, até os momentos que antecederam a descoberta da América.

Importantes processos de colonização e de integração cultural já haviam ocorrido ante­


riormente à chegada dos europeus. As margens do Oceano Atlântico foram o palco no qual se
desenrolaram as extensas migrações colonizadoras dos grupos Tupi e Guarani, que terminaram
ocupando áreas imensas, impondo sua cultura e sua língua. Mais recentemente, no litoral do
Oceano Pacífico, os Incas se apoderaram militarmente de imensas áreas andinas. Assim,
muito antes de se iniciar o processo histórico provocado pelo descobrimento da América pelos
europeus, este continente já possuía uma história de longa duração, na qual as sociedades indí­
genas americanas desenvolveram profundas diferenças étnicas e culturais, após muitos milênios
de processo histórico e desenvolvimento específico em cada um destes ambientes. Como exemplo,

124
poderíamos destacar as sociedades andinas estabelecidas em suas cidades, os grupos de horti­
cultores instalados em aldeias localizadas em meio às matas tropicais, e os caçadores nômades
das paisagens abertas dos pampas, e que coexistiam lado a lado, quando as primeiras velas
européias despontaram no horizonte do Atlântico. As sociedades ibéricas que invadiram e
colonizaram esta América ainda indígena, ao longo do século XVI, estabeleceram formas
diferenciadas de relações sócio-culturais com estas variadas populações indígenas. Umas
foram escravizadas e dizimadas, outras foram cooptadas como aliadas ou simplesmente igno­
radas, para só serem contatadas recentemente.7

Quais as motivações que impulsionavam as caravelas e as naus, de velames desfraldados ao


vento, e que os indígenas pensavam ser ilhas flutuantes? Porque estes colonizadores brancos
chegavam tão longe dos litorais europeus, com suas terríveis armas de fogo, suas ambições de
conquista de riquezas e de homens, seu espírito de cruzada, suas idéias de combater o paga­
nismo e difundir o cristianismo à luz mesmo das fogueiras da inquisição? Visavam atingir obje­
tivos tão diferenciados como a riqueza de Eldorado ou a salvação das almas indígenas “para a
maior glória de Deus”. Na conquista da América, imediatamente atrás dos colonizadores ou mesmo
com eles, chegaram os missionários. Os que realizaram as suas atividades de cristianização
do indígena pertenceram basicamente a quatro ordens religiosas. Foram principalmente os
mercenários, os franciscanos, os carmelitas e, os últimos a chegar, os jesuítas. E foram exata­
mente estes últimos que oportunizaram uma das mais extraordinárias experiências históricas
de gradual inserção dos indígenas Guarani na sociedade espanhola, através da experiência
dos Trinta Povos das missões Jesuíticas platinas. Milhares foram os europeus que aqui
chegaram. Uns eram conquistadores e missionários, outros mercadores e funcionários da corte.
Todos, entretanto, eram os enviados ou dos reis ou dos papas, e em nome destes personagens
históricos eram justificadas as suas ações. Todos pretendiam a conquista, seja do ouro e da
prata, seja das almas dos índios. Alguns buscarão o Eldorado, dentro do espírito mercantilista
da época. Outros pretenderão uma “conquista espiritual” bem de acordo com as idéias de
cruzada contra os infiéis. Todos terminaram mudando significativamente a face deste novo
continente.8

As relações interétnicas estabelecidas foram muito diversificadas, porque os diversos grupos


indígenas tiveram reações muito diferenciadas em relação aos novos invasores. Na América
Latina atual ainda vivem grandes contingentes de população indígena, filhos dos sobreviventes
da conquista. Entretanto, alguns grupos fizeram uma resistência constante e terminaram sendo
dizimados, como conseqüência do impacto das guerras de extermínio feitas pelos conquistado­
res, quase imbatíveis com seus cavalos e armas de fogo. Os indígenas igualmente colaboraram
com o branco invasor colocando a seu serviço a força de trabalho de seus braços, alguns de
livre vontade como nas missões, outros esmagados pela escravidão nas minas de prata ou nas
lavouras de cana. Geraram igualmente uma nova população de mestiços, a partir das relações
interétnicas entre os europeus e os nativos. A interação entre brancos e índios, terminou dando
origem a uma herança genética indígena não negligenciável em milhares de mestiços, muitos
dos quais terminaram por ascender socialmente.

Por outro lado, se os contatos interétnicos levaram à miscigenação, as doenças dos brancos
e suas formas extremas de exploração do braço indígena levaram ao impacto mortal e à crise
demográfica das populações nativas. Após um rápido decréscimo da população indígena, ao
longo do século XVI, foi ao longo do período colonial e de maneira muito lenta que as popu­
lações indígenas puderam pouco a pouco tomar a crescer.

A conquista e o povoamento implicaram, portanto, em duas facetas aparentemente


contrastantes. Por um lado, no etnocídio de centenas de grupos indígenas, aniquilados física

125
e culturalmente. Por outro lado, deu origem a um lento, gradual e ininterrupto processo de agre­
gação forçada ou integração parcial dirigida dos grupos indígenas. Neste processo, as comu­
nidades indígenas sobreviventes foram sendo cooptadas e inseridas nas instituições formais
dos impérios coloniais espanhol e português, assim como nas da Igreja Católica Romana.

3. A síntese cultural iberoindígema

Um novo e imenso mundo se abria frente aos novos colonizadores europeus, povoado por
milhares de grupos indígenas, com costumes e padrões culturais absolutamente novos para estes
cristãos. Saídos há pouco da Idade Média, alguns pensavam ter chegado no paraíso, enquanto
que outros se debatiam em dúvidas religiosas, questionando se este continente inteiro, jamais
citado na Bíblia, não seria a terra de Satã, e se seus habitantes não estariam todos ainda mar­
cados pelo pecado original. Alguns padrões culturais foram descritos em relatos da época como
sendo aterrorizantes e bárbaros. Dentre eles se deu ênfase aos sacrifícios humanos dos Astecas
ou à antropofagia dos Tupiguarani, fazendo tremer homens que, entretanto, achavam justos
os atos de fé da Inquisição, e não se perturbavam ao assistir à queima em praça pública de “infiéis”
judeus e muçulmanos.

Portugueses e espanhóis herdaram muito dos padrões culturais indígenas, ao mesmo


tempo em que iam impondo os seus costumes europeus. Os indígenas ocultaram dos europeus
muitos de seus traços culturais, principalmente os relacionados com os ritos e os mitos, enquan­
to que exigiam dos brancos exemplares de sua tecnologia avançada, tais como as lâminas de
machado de ferro. Somos portanto obrigados a levai' em conta a complexidade social e cultural
destes diversos tipos de contatos que se estabeleceram entre estes grupos, de origens diversas.
Muitos indígenas tiveram que aceitai' de maneira autoritária os padrões de comportamento
dos europeus. Por outro lado, temos que considerai* que algumas das inovações técnicas trazidas
da Europa pelos luso-espanhóis eram desejadas e exigidas por eles, como é o caso das armas
de fogo e dos instrumentos em ferro. Apesar da exploração mercantilista e do combate aos
paganismo indígena, a sociedade ibérica não deixou de agregai', também, inúmeros padrões
culturais dos nativos, como se evidencia ainda hoje na maioria dos países americanos.

Tanto a sociedade européia como a indígena eram, nesta época, curiosas sínteses
culturais, entre o tradicional e o moderno. Por um lado, as sociedades indígenas mantinham
inúmeros padres sócio-culturais antigos, tradições muito arraigadas de épocas em que predomi­
navam os caçadores-coletores-pescadores, com seus artefatos de pedra lascada e osso. Entretan­
to, muitas sociedades já haviam acrescentado a esta herança as inovações modernizadoras
oriundas do processo de neolitizaçâo, dentre as quais a vida em aldeias, a cerâmica, a pedra polida,
e a domesticação de plantas e animais. Outros grupos, localizados na zona andina, acres­
centaram a este legado tradicional as inovações modernizadoras do estado, da realeza, da
vida em cidades com seus templos, palácios e uma cultura muito sofisticada. Nesta América
Indígena as sociedades mesclavam as tradições arcaicas com inovações modernizadoras muito
originais em complexas resultantes sócio-culturais.9

Os contatos entre a sociedade ibérica luso-espanhola e as sociedades indígenas deram


origem, portanto, a um processo de múltiplas influências culturais, no qual os diversos grupos
indígenas americanos tiveram importante contribuição a dar. A domesticação de plantas nativas
nos evidencia como foi fundamental esta herança cultural, ainda hoje encontrada em maior
ou menor grau nos hábitos dos europeus aqui instalados. A mandioca doce (aipim), o milho,
as abóboras, os feijões, o cacau, as pimentas e a batata doce, são exemplos desta contribuição
cultural, e ainda hoje fazem parte de nossa dieta alimentar. O abacaxi, a goiaba, o caju, o amen­
doim, o coco, o abacate, o butiá e o araçá são algumas das frutas que eram coletadas e que pas­

126
saram igualmente para nossos cardápios. Apesar de não contar a América com muitos animais
domesticáveis, o controle sobre o peru, domesticado na América do Norte, e alguns camelídios
andinos tais como a alpaca, a vicunha e a lhama, na América do Sul, nos mostram também a sua
importante colaboração neste setor. Por outro lado, os europeus que aqui chegavam e se ins­
talavam, traziam igualmente complexas combinações de elementos sócio-culturais antigos e
novos. Por um lado, podemos destacar as inovações modernizadoras geradas pela efervescência
cultural dos séculos XVI e XVII. São exemplo disto: a imprensa e o plano urbanístico em
forma de grade e com a “plaza mayor” das novas cidades renascentistas; as linhas sinuosas,
decorativas e teatrais da ornamentação barroca; e as inovações técnicas dos grandes desco­
brimentos, tais como os conhecimentos náuticos, a bússola e a técnica de construção de grandes
embarcações. Ao lado destas, podiam ser encontradas formas sócio-culturais muito tradicionais
e arcaicas, oriundas do mundo greco-romano ou fruto da herança medieval. Dentre elas, um
desenvolvido artesanato, especializado na metalurgia do ferro, na elaboração da cerâmica em
torno de oleiro, no uso da roda e do arado. Foram os europeus que introduziram na América
muitos animais domesticados, tais como o gado cavalai' e vacum, as ovelhas e os galináceos.
Trouxeram também legumes e verduras, tais como o repolho e a alface, e frutas como os limões
e as laranjas, os pêssegos e as pêras. Além desta complexa herança cultural, os europeus intro­
duziram na América muitos outros elementos culturais que estavam recebendo a partir dos
descobrimentos e dos contatos com outros povos, tais como o arroz, o café, a banana e a cana de
açúcar, os quais tiveram crescente importância econômica.

Assim, as contribuições culturais aqui citadas como exemplo nos evidenciam as mútuas
influências exercidas entre estas sociedades em presença. Os europeus que para aqui vieram
não tiveram sucesso em recriar totalmente a Europa na América, mas terminaram se adequando
a uma série de circunstâncias ambientais e históricas, bem como tendo de fazer muitas con­
cessões sociais e culturais.10 Do norte ao sul deste continente americano, cada vez que tomamos
o nosso banho diário, deitamos em uma rede, comemos pratos feitos com milho e mandioca,
preparamos um chimarrão ou fazemos um churrasco, estamos diante de padrões culturais des­
conhecidos na Europa dos descobrimentos e típicos da América Indígena.

4. Conclusões:

Ao longo da história indígena da América, fronteiras culturais e ambientais separaram


grupos indígenas diversificados e muitas vezes antagônicos. Durante muito tempo, na América
Indígena que pouco a pouco se transformava em América Latina, coexistiram estas sociedades
diversificadas. Por um lado, as complexidades da sociedade européia que emergia da Idade
Média e que estava ainda dando origem ao Mundo Moderno. De outro lado, os grupos indígenas
que emergiam da Pré-História como caçadores nômades ou como aldeões horticultores,
penetravam no seio destes impérios coloniais em pleno mercantilismo e barroco. Cada grupo
parece se encontrai' em um momento diferente do tempo, caracterizando muito bem a problemá­
tica que os historiadores denominam de “a contemporaneidade do não contemporâneo”.

Desta maneira, ocorreu na América um complexo processo de transculturação, ou seja, de


transformações culturais que ocorreram quando dos contatos entre a sociedade ibérica e os grupos
indígenas americanos. Como vimos, um processo de interações sócio-culturais ocorreu entre as
diversas sociedades em presença, cada uma em sua situação ambiental específica e com certas
características de organização sócio-cultural singulares. Por meio destas relações, a cultura
da sociedade dominante ibérica, pouco a pouco, foi amoldando e se impondo às culturas das
sociedades dominadas, além de receber influências destas. Os contatos culturais permanentes
deram origem a formas diferentes de alterações dos padres tradicionais indígenas. A assimilação
dos instrumentos de ferro, do tomo e do fomo de oleiro, das técnicas de construção arquitetônica

127
européia, da domesticação de animais através do pastoreio, dos valores do cristianismo, dentre
outros traços culturais, provocaram mudanças estruturais muito importantes. Os indígenas ame­
ricanos deixaram de ser caçadores nômades ou horticultores da floresta subtropical, sem que por
isto tenham se transformado em espanhóis ou portugueses. Estes últimos, por sua vez, termi­
naram dando origem a uma nova sociedade colonial americana, sensivelmente diferente daquela
que lhes tinha dado origem. Estas especificidades históricas somente puderam ser perfeitamente
compreendidas pelos portugueses e espanhóis da península ibérica, quando a América ibe-
roindígena decidiu realizar a sua independência política, rompendo com muitos dos laços de
dependência em relação às metrópoles e decidindo seguir um caminho autônomo.

(*) Conferência apresentada no MAE / USP, 1999.


(**) Historiador e Arqueólogo. Professor dos Cursos de Pós-Graduação e Graduação em História da FFCH da
PUCRS. Pesquisador do CNPq.
(1) Este estudo foi extensamente desenvolvido em: KERN, Arno Alvarez. Antecedentes indígenas. Porto Alegre:
Editora da UFRGS (Série Síntese Riograndense, n. 16-17), 1994.
(2) COUTO, Jorge. A construção do Brasil. Lisboa, Ed. Cosmos, 1995. Especialmente os capítulos 1 - “As
sociedades indígenas” (p. 39 e seg.) e 2 - “A aculturação” (p. 309 e seg.).
(3) KERN, Arno Alvarez. “Descoberta e colonização da América: impactos e contatos entre sociedades indígenas
e européias”, Anais (I Encontro de Cultura Ameríndia), Santo Ângelo: URI 1: 9-14, 1992.
(4) Um exemplo disto foram diversas publicações realizadas em reuniões científicas durante as comemorações
da descoberta da América. Veja-se, como exemplo, o ensaio de: IGLESIAS, Francisco. “Encontro de duas
culturas: América e Europa”. In: AZEVEDO, Francisca L. N. e MONTEIRO, John M. (org.). Confronto de
culturas: conquista, resistência e transformação. São Paulo, Edusp., 1997. p. 23 e seg.
(5) KERN, Am o Alvarez. “Os índios: no limiar da América Latina”. In: KERN, Arno Alvarez et alii. Rio
Grande do Sul: continente múltiplo. Porto Alegre: Marprom/Riocel, 1993, p.33-60.
(6) O estudo sobre as paleopaisagens e as adaptações culturais dos grupos indígenas foi realizado em: KERN,
Am o A. Arqueologia Préhistórica do Rio Grande do Sul (org.). Porto Alegre, Ed. Mercado Aberto, 1991.
(7) Ver os estudos publicados em: CUNHA, M anuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo, Cia.
das Letras, 1992.
(8) SILVA, M aria B. N. (coord.'). Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa, Ed. Estampa, 1995. Ver
especialmente os trabalhos publicados na Parte 1 - “Portugueses e índios” (p. 25 e seg.)..
(9) COUTO, Jorge. A construção do Brasil. Lisboa, Ed. Cosmos, 1995. p. 309 e seg. KERN, Amo Alvarez. “Os
índios: no limiar da América Latina”. In: KERN, Arno Alvarez et alii. Rio Grande do Sul: continente múltiplo.
Porto Alegre: Marprom/Riocel, 1993, p.33-60.
(10) KERN, A. A. Antecedentes indígenas. Porto Alegre: Editora da UFRGS (Série Síntese Riograndense, n.
16-17), 1994.

126
PROJETO DE DOCUMENTAÇÃO LINGÜÍSTICA DO MUSEU GOELDI

Dennys Albert Moore*

A grande maioria das línguas indígenas faladas no tempo dos primeiros contatos com euro­
peus já estão extintas, especialmente no leste do país. Muitas línguas foram substituídas pelo
português ou uma língua geral, por exemplo, o nheengatu, que ainda se fala no Alto Rio Negro.
Muitas dessas línguas desapareceram sem documentação. Existem hoje em dia no Brasil
aproximadamente 180 línguas indígenas, muitas das quais estão em condições precárias. Num
levantamento feito por Moore e Storto em 1992, em relação às vinte e cinco línguas indígenas
de Rondônia, a situação era a seguinte:

- 10% não são mais faladas;


- 30% têm um numero reduzido de falantes e carência de falantes jovens;
- 25% têm ou um número reduzido de falantes ou carência de falantes jovens;
- 35% têm falantes suficientes, incluindo falantes jovens.

Segundo uma estimativa, no século que vem, se nada se fizer, cinco por cento das
espécies de aves, dez por cento das espécies de mamíferos e noventa por cento das línguas do mundo
estarão em perigo de extinção. Essa perspectiva é preocupante, dada a carência de estudos e
documentação das línguas nativas do Brasil. Cerca de dez por cento das línguas indígenas
atuais têm uma descrição completa e adequada e aproximadamente a metade tem algum
trabalho descritivo publicado. Mesmo quando existe documentação, ela nem sempre é correta.
Por exemplo, a língua gavião de Rondônia possui um rico sistema tonal que não foi detectado
durante anos. Alguns grupos que não falam ativamente sua língua, como por exemplo os mura
do Amazonas, procuram qualquer documentação de sua língua ancestral, porém, em geral, sem
muitas chances de achar o que querem.

Frente a essa situação, os museus podem contribuir de uma maneira importante para a
documentação de tais línguas. Vários museus e bibliotecas no Brasil têm documentos com re­
gistros de línguas indígenas do passado. Além desses registros, é possível agora utilizar tecno­
logias novas que possibilitem a gravação de amostras das línguas, com alta precisão e baixo
custo. Os camcorders Hi-8 ou digitais, apesar do seu tamanho reduzido, gravam imagens
com mais de 400 linhas horizontais de resolução, com som de alta fidelidade. Os gravadores
digitais (DAT) portáteis gravam áudio com qualidade de CD. Infelizmente, até agora, esses
meios tecnológicos não têm sido utilizados de uma maneira organizada no sentido de realizar
documentação sistemática das línguas nativas do Brasil. De fato, até onde sabemos, inexiste
qualquer campanha sistemática de gravação de fitas de documentação lingüística em qualquer
região do mundo.

A Área de Lingüística do Departamento de Ciências do Museu Goeldi pretende realizar


o primeiro projeto de grande escala para documentai' as línguas indígenas do Brasil por meio
de fitas de vídeo e de áudio. Os equipamentos necessários já foram adquiridos, principalmente
por intermédio do programa “Centros de Excelência” do G-7. O projeto está ainda em fase de
planejamento e busca de recursos, mas podemos traçar o perfil do projeto e as contribuições
científicas e culturais que daí podem resultar.

Pretende-se obter dois tipos de documentação: gravações padronizadas e gravações


não padronizadas. A meta preliminar da documentação padronizada será dez horas de material
gravado de cada uma das 180 línguas indígenas e dos vinte dialetos principais do país - um total
de 2 000 horas de gravação, em vídeo Hi-8 e em áudio DAT. Pensamos em gravar o suficiente

129
para ter uma amostra interessante de cada língua, mas não tanto que tomasse a realização do trabalho
difícil e demorado demais.

A gravação padronizada seguirá um protocolo. A maioria das informações coletadas


serão de natureza lingüística, mas pretende-se incluir também perguntas sobre o informante,
sua comunidade, sua cultura, a história de seu povo e sua situação atual. A maior parte da gravação
será feita próxima a centros regionais da FUNAI. Uma vez que a gravação se baseará num protocolo,
ela pode ser feita por alunos ou outras pessoas sem formação avançada. As fitas originais serão
catalogadas e arquivadas, protegidas contra umidade e campos magnéticos. Fitas em duplicata
serão guardadas em outro lugar. Futuramente pretende-se investigar a possibilidade de arma­
zenar as informações em forma digital, talvez em CD ou em DVD, uma vez que a armazenagem
a laser é mais permanente.

As gravações não padronizadas serão realizadas no campo, em cooperação com as comu­


nidades indígenas. Muitos grupos indígenas gostariam de documentar sua língua e cultura
tradicionais, sem ter, entretanto, os meios tecnológicos para desenvolver tal trabalho. Temas
para documentação freqüentemente sugeridos pelos índios são música, narrativas tradicio­
nais, história oral e conhecimento tradicional. O projeto de documentação oferecerá às comu­
nidades indígenas a possibilidade de preservai', na forma de gravações, aspectos de sua cultu­
ra. Por exemplo, um pesquisador afiliado ao Museu Goeldi documentou em vídeo Hi-8 a festa
Kwaryp entre os aweti do Xingu em 1998, a pedido da comunidade.

Claramente, gravações para documentação não podem substituir pesquisas de campo


intensivas envolvendo as línguas. Dados gravados são limitados, e as conclusões que eles per­
mitem são limitadas. Além disso, o tempo necessário para transcrever e analisar, por exemplo, dez
horas de fitas, é enorme. Por outro lado, fitas bem planejadas têm certas vantagens. A gravação
permite a coleta de grandes quantidades de dados em relativamente pouco tempo, possibilitando
a amostragem de muitas línguas, com prioridade para aquelas em perigo de extinção. Fitas
têm a vantagem de ser dados originais; quem duvidar do conteúdo pode escutai* (ou ver, no
caso de vídeo) uma cópia da fita e verificar os dados por si mesmo, usando espectrografia de som
ou outra análise instrumental apropriada.

Uma consideração importante é que os dados da documentação padronizada serão com­


paráveis, aumentando seu valor para estudos comparativos. O contrário aconteceu no passado
com vocabulários tradicionais. Por exemplo, se uma lista de itens lexicais de uma língua tem
200 palavras e uma lista de uma língua irmã tem 150, pode haver somente cinqüenta palavras
compartilhadas nas duas listas, se elas não foram padronizadas.

Além do valor científico, as gravações servirão como amostras permanentes da língua


para as gerações futuras das comunidades em que ela é falada. O protocolo de elicitação ainda
está sendo formulado, mas podemos observar alguns princípios importantes na seleção de
material para gravar.

Itens lexicais devem ser agrupados semanticamente. Existe uma lista de palavras
especialmente estáveis ao longo do tempo, em diversas línguas e regiões. Muitas dessas pala­
vras serão incluídas na lista do protocolo. No entanto, palavras culturais também devem ser
incluídas, apesar de serem menos estáveis, uma vez que essas palavras são essenciais para o
conhecimento das culturas do passado e suas interações. Por exemplo, dentro do tronco tupi
várias línguas têm palavras parecidas para “rede”, e já foi comprovado que elas descendem de
uma palavra antiga, fato que indica que o povo ancestral dos presentes grupos tupi possuía redes,
talvez cerca de 3 000 a 4 000 anos atrás. A distribuição de palavras cognatas para “mandioca”,

130
“batata-doce” e “roça”, entre as línguas tupi, indica que o povo ancestral praticava agricultura.
Uma situação diferente é a de empréstimos. Por exemplo, a maioria das línguas indígenas do
sul de Rondônia tem palavras parecidas para “milho”, foneticamente semelhante a atiti. Uma
vez que tais línguas pertencem a troncos e famílias variadas, a distribuição das palavras indica
que “milho” antigamente foi emprestado, de um grupo a outro na região, junto com seu nome,
atiti. Um problema na seleção de itens lexicais é a diversidade regional de um país grande como
o Brasil.

As fitas de documentação fornecerão uma base para lingüistas determinarem, de uma


maneira preliminar, as propriedades estruturais das línguas gravadas. Palavras isoladas e construções
gramaticais simples fornecem evidências sobre a fonética, fonologia, morfologia e sintaxe. Textos
espontâneos com tradução são excelentes como amostras da língua e para estudos mais
aprofundados de sintaxe. Perguntas não lingüísticas incluem informações sobre o informante
(idade, lugar de nascimento, residência, identidade étnica), sua comunidade (número,
localização e tamanho das aldeias, nome[s] da comunidade e existência de subgrupos), a situação
atual da comunidade, sua história e pré-história e vários aspectos da cultura tradicional.

Esse tipo de projeto cabe bem ao papel de um museu de pesquisa como o Museu Goeldi,
com suas extensas coleções científicas. O banco de dados que resultará do projeto fornecerá a
base para se investigarem muitas questões fundamentais sobre línguas indígenas e Pré-história.
Um aspecto feliz desse acervo é a possibilidade de copiar as fitas da coleção, para compartilhar
com outros especialistas.

(*) Departamento de Ciências Humanas, Museu Paranaense Emílio Goeldi. Coordenador da Área de Lingüística.
BRASIL 500,5 000, 50 000 ANOS: AFINAL,
lÜANTOS ANOS FAZ O BRASIL?

w .
Paulo A. D. De Blasis*

_ _ .. A
Ao ser convidado a participar desta mesa cujo tema é a idade.ao Brasil, ou melhor, a
comemoração das quinhentos anos do Brasil, necessariamenté% ^ei que “a história está mal
contada”, ou que i “quando os europeus chegaram cájájÇpm índios”, enfim, c o i t o o risco de
ser repetitivo e fazer soar um velho bordão. P ^ fè ç c i^ N ã o poderei deixar de retomar coisas
que não são novidade alguma, populações nativas, datas antigas, migrações pleistocênicas
etc., mas tentarei fazer aqui iimi^i reflexão de um ponto de vista mais propriamente arqueológico.

A idéia de que eferasiHiasceu no ano de 1500 é senso comum no imaginário popular,


e não é à toa que a mídiarem se aproveitando disso de maneira maciça e massificante. Não era
para menos, já que a historiografia tradicional, de cunho romântico, que predominou no período
de consolidação da nacionalidadeBr^^^ra, e posteriormente - digamos até meados deste
século, mais ou menos - atribuía à famosa carta de Pero Vaz de Caminha o apelido de “certidão
de nascimento do Brasil”, título este cunhado por Capistrano de Abreu.

Ou seja, nossa história se iniciaria com a chegada dos europeus, e são justamente os
sucessos da colonização desta nova terra brasilis que caracterizam os primeiros episódios
tradicionalmente narrados de nossa história. E, é claro, essa história iniciar-se-ia com a introdução
da escrita, referência básica para a historiografia nacional, daí a idéia da “certidão de nascimento”,
pois trata-se do primeiro texto escrito a fazer referência explícita à nova terra descoberta.

Assim sendo, quinhentos anos depois de Pedro Álvares Cabral ter aportado no sul da
Bahia com suas caravelas, aqui estamos nós comemorando com alegria televisiva a ocorrên­
cia daquela chegada anunciada. Anunciada, sim, pois a chegada dos portugueses - e, antes
deles, dos espanhóis - na costa brasileira insere-se no bojo de uma seqüência de navegações
plenamente conhecida que, mais do que descobrir, antes “tomou posse” da nova terra.

Mas... é curioso observar, como já muitos observaram, que desde os primeiros e mais
antigos documentos escritos ou iconográficos sobre o Brasil aqueles tipos curiosos, seminus,
tão tropicais mesmo, que nos acostumamos a designai- como ‘índios”, ou “ameríndios”, já
por aqui de fato se encontravam. Eles estão presentes na “certidão de nascimento” e não
faltarão nos documentos subseqüentes, sendo inclusive um dos temas prediletos das gravuras
sobre a nova terra que vão aparecendo na Europa, sobretudo a partir da virada do século
XVII. E tão pouco faltarão no imaginário dos escritores e pintores românticos do período de
consolidação de nossa nacionalidade.

A presença, nada desprezível, de grandes quantidades de habitantes nativos, que não raro
se percebe serem bastante diferenciados entre si, é também marcante nos relatos de inúmeros
cronistas da vida colonial nos séculos XVIII e início do XIX, assim como na voz dos viajantes
que atravessaram as vastidões territoriais do novo império brasileiro. E, se em alguns são referidos
como “selvagens”, já em outros, como Carvajal referindo-se aos povos da calha do rio Amazonas,
aparecem como verdadeiros “reynos”, percebendo-se aí sua expressividade demográfica e
territorial, assim como a considerável complexidade de sua organização social.

No entanto, o universo das culturas nativas sempre se manteve na periferia da historiografia


brasileira. Embora possa ser viável arrolai- diversas razões para esse fenômeno, certamente o

133
fato de serem essas populações ágrafas as impediu de construir sua própria história nos moldes
ocidentais. Tudo o que delas se escreveu e documentou historicamente foi feito pelo olhai' e
pela pena de outrem, que não aquelas mesmas sociedades que aqui viviam.

Se as populações nativas não tinham história (ao menos história escrita), isso não as
toma menos presentes no território brasileiro no momento do contato e no período subseqüente,
e tampouco deveria justificar a desconsideração de seu papel enquanto agente formador - e
talvez mais importante do que se costuma imaginar - das características que compõem o
perfil do Brasil de hoje, sobretudo aquele Brasil rural, ligado às sociedades tradicionais que
ainda resistem nas mais diversas regiões do país.

Assim sendo, se admitimos que a história do Brasil, do povo brasileiro e da cultura bra­
sileira, tem raízes nas populações que por aqui viviam antes de 1500, como documentar sua
presença antes da chegada dos europeus com sua habilidade de escrever e, desta forma,
documentar a história? Como contar a história daqueles que não têm história?

A resposta a esta questão está na Arqueologia, e na noção de cultura material enquanto


documento. De fato, se narrativas textuais acerca das populações nativas brasileiras estão
ausentes antes de 1500, uma grande quantidade de objetos, coisas, ferramentas e utensílios
daqueles povos, ligados à esfera material de sua cultura (ou, como costumamos dizer, sua
cultura material), ainda podem ser encontradas por todo o território deste país. E, se
adequadamente investigados, constituem-se em documentos valiosos e não raro bastante
eloqüentes, informando seu interlocutor acerca de inúmeros aspectos da vida cotidiana, das
atividades econômicas e dos conhecimentos tecnológicos de seus produtores.

Mais ainda, falam também de suas relações com o ambiente, quantos eram, como se
expandiram pelo território ou desapareceram. Nas paredes dos abrigos que usavam nas
montanhas deixaram grande variedade de pinturas, como testemunhos extraordinários de
gosto estético e artístico, assim como em objetos que, saindo dos usos do dia-a-dia, revelam
formas de organização social elaboradas, manifestando-se materialmente com requinte estético
surpreendente.

Todas essas coisas, sobretudo quando examinadas de maneira articulada, discorrem


sobre a vida das populações antigas e ágrafas e são o objeto de estudo da Arqueologia. É a
Arqueologia, portanto, que está habilitada a contar a história daqueles que não têm História.
E o que nos conta a Arqueologia acerca da História do Brasil, dessa história certamente mais
antiga que 500 anos?

A Arqueologia conta muitas coisas, mas muitas mais há para contar. A prática ar­
queológica é bastante recente no Brasil, e ainda há imensas lacunas a preencher. Mas o que já
se sabe é suficiente para abalar a idéia de que nossa história se inicia com a chegada dos
europeus. Sem dúvida, a conquista portuguesa (e espanhola) do território brasileiro tem um
impacto gigantesco, instaurando uma nova fase e, certamente, uma ruptura brutal com os
estilos de vida anteriores. No entanto, não pode ser considerada o início da ocupação humana
deste território e, portanto, o início de sua história.

Para remontai' sinteticamente essa história, fizemos um joguinho de datas: 500,5 000,50
000 anos. Vamos usar estas datas como referência para três recortes cronológicos: 50 000 anos,
ou as origens do povoamento do Brasil e de todo o continente americano; 5 000 anos, quando se
consolida um conjunto de padrões culturais que caracterizam o estilo indígena que os europeus
aqui encontraram; e, finalmente, 500 anos atrás, quando esse estilo é subitamente interrompido

134
pelos invasores d’além mar. Estes recortes falarão um pouco sobre essa história anterior aos
supostos 500 anos do aniversário do Brasil e, assim, o leitor poderá escolher qual data considera
mais adequada para “comemorar” o evento.

50 000 anos

O início desta história é ainda obscuro, como aliás costuma ser o início de quase todas
as histórias. Não se sabe quando os primeiros grupos humanos atravessaram a Beríngia e
penetraram no continente americano, mas é lícito supor que o fizeram em sucessivas levas e
em diferentes momentos. Alguns pesquisadores pleiteiam datas tão antigas quanto 50 000
anos para as primeiras incursões de grupos humanos, e esta hipótese é viável a partir de
considerações paleoclimáticas - o corredor de gelo ter-se-ia formado em diferentes momentos
ao longo da última glaciação, permitindo assim a passagem e migração de diversas espécies,
inclusive bandos de homo sapiens.

No entanto, os vestígios arqueológicos para datas tão recuadas são escassos e pouco
confiáveis, o que, afinal, não chega a surpreender, se consideramos que esses hipotéticos
bandos de pioneiros seriam pouco numerosos, deixando portanto vestígios bastante fugazes.
Mais ainda, tais vestígios teriam sido extremamente desfigurados pelas transformações
geológicas e ambientais que se seguiriam, reconfigurando as paisagens com o movimento de
geleiras nas regiões frias, as oscilações do nível dos oceanos e a tropicalização das porções
centrais do continente a partir do final do Pleistoceno e início do período holocênico mais
recente.

O fato é que, se as evidências arqueológicas muito antigas para as ocupações humanas


no continente americano ainda são incertas, é fora de disputa que, há cerca de 12 000 anos,
este mesmo continente encontrava-se já totalmente ocupado, do Oiapoque ao Chuí - ou,
melhor dizendo, do Alasca à Tierra dei Fuego. Ou seja, se considerarmos os 50 000 anos
(aqui usados apenas para compor o “joguinho” de datas do título desta comunicação) pouco
confiáveis para o aniversário do Brasil, os 12 000 anos são inquestionáveis, com evidências
seguras em Minas Gerais, Piauí e Mato Grosso, pelo menos.

Essas mesmas evidências arqueológicas falam de sociedades cuja economia baseava-


se na caça e na coleta, com grande mobilidade territorial - afinal, ocuparam todo o continente
- e que, mais ou menos a partir do grande ciclo de mudanças climáticas que caracteriza a
passagem do Pleistoceno para o Holoceno, foram regionalizando e diversificando suas
estratégias adaptativas, e assim preparando o terreno para o cenário de grande diversidade
cultural que se percebe por volta do Holoceno médio, que corresponde ao nosso próximo
recorte, dos 5 000 anos.

5 000 anos

Por volta de 5 000 anos atrás diversas sociedades bastante bem articuladas e organizadas
socialmente, com características culturais próprias que as distinguem perfeitamente umas
das outras, podem ser encontradas por todo o território brasileiro. Não há rincão do Brasil,
por mais remoto que seja, que já não estivesse ocupado nesta época. Mais que isso, muita
gente já vivia por aqui, talvez alguns milhões de pessoas, e de maneira bastante organizada, com
economias tropicais, estáveis e eficientes, sedentárias.

Poucos grupos, por essa época, permaneciam levando uma vida nômade em grande
escala. Mesmo que ainda tivessem na caça, pesca e coleta sua principal base de subsistência,

135
já possuíam, em sua maior parte, territórios estáveis, fronteiras com outras sociedades. Aspectos
de interação cultural vão aparecendo neste período e, com o passar do tempo, vão se tornando
mais intensos. Fronteiras e relações intertribais são nítidas à época do contato.

Traços culturais típicos - como os que possam ser identificados pelo recorte ma­
terial de sua cultura, ou seja, por intermédio do olhar arqueológico -, como as indústrias de
pedra lascada das populações do Planalto Central, por exemplo, são muito distintos dos
sambaquis construídos pelas sociedades litorâneas do Brasil meridional. É mais ou me­
nos nesta época que alguns desses traços mais notáveis das culturas nativas, tais como
foram descritos a partir de 1500, foram se consolidando. As características complexas da
organização tribal dos grupos jê, a grande dispersão dos povos de língua tupi - cuja
influência nos processos de colonização foram marcantes -, a produção de cerâmica e o
cultivo de alimentos como o milho e a mandioca e outros, cujo verdadeiro significado na
manutenção das primeiras colônias luso-espanholas ainda não foi suficientemente
estudado.

Toda a diversidade cultural registrada pelos cronistas, inclusive a configuração de grandes


complexos demográficos na Amazônia, uma região tão menosprezada nos primeiros tempos
da prática arqueológica no Brasil, tem sua origem neste período, em que a expansão das
técnicas agrícolas e das sociedades que tinham na “roça” sua principal base de subsistência
seja talvez sua característica mais marcante. E, caro leitor, é possível imaginar algo mais
tipicamente brasileiro do que a roça, que ainda hoje sobrevive onde sobrevive a cultura
tradicional brasileira?

Enfim, talvez fosse correto situar nessa época, 5 000 anos atrás, o verdadeiro momento
para se comemorar o aniversário do Brasil, já que aqui se originam, sem dúvida, muitos
daqueles elementos que hoje se confundem com a verdadeira “brasilidade”, como o mate no
sul, a rede de dormir na Amazônia e a farinha de mandioca em todo canto deste país. E esses
povos foram crescendo, suas sociedades se expandindo, até o momento em que, do outro lado
do oceano, chegam finalmente a este continente os europeus.

500 anos

Como se vê, há 500 anos, quando chegam Cabral e seus conterrâneos, muita história já
havia para ser contada. Mas este é, certamente, um momento marcante, de profunda
transformação. As culturas nativas foram quase totalmente destruídas ao longo destes cinco
séculos de Brasil que hoje se comemora. Destruídos pela guerra da conquista, pela guerra da
escravidão, mas talvez sobretudo pela guerra bacteriológica das doenças européias que se
disseminaram rápida e profundamente entre as populações antigas do país.

No entanto sua cultura esteve presente, com muita força, nos tempos da colônia.
Sustentou os primeiros colonos, guiou os europeus nos caminhos do continente, ensinou-lhes
as táticas de sobrevivência nos trópicos. Mostrou-lhes como é que se faz, lição esta talvez
nunca aprendida, quando se vê nos jornais notícias de assentamentos rurais criados pelo
governo abandonados sem sucesso, com desastrosas conseqüências ecológicas.

Não é à toa que aqui em São Paulo, pelo menos até o início do século XIX, o nheengatu era
a língua que predominava nas ruas. Em um momento anterior ao advento das grandes migrações
a partir de meados do século passado, que deram a esta cidade o ar tão italianado que hoje a
caracteriza, os paulistas (e paulistanos) certamente tinham muito mais sangue indígena do
que os livros de história tradicionais contam.

136
E se hoje a cidade e o país são o que são, não deveriam esquecer suas origens, mas buscar
reaprender alguma coisa de seu passado ainda quase que totalmente ignorado, sobretudo pelo
senso comum. Quando se anda por este país afora, muito ainda se observa dos remanescentes
de uma cultura nativa cujos conhecimentos e valores talvez pudessem ser muito mais
aproveitados do que são, de maneira vantajosa para todos.

Ao apagar as velinhas dos 500 anos, talvez pudéssemos colocar alguns milhares mais
delas sobre o bolo, reconhecendo assim raízes que vão muito além do navegar das caravelas
e dos interesses mercantis dos navegadores quinhentistas.

(*) M useu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).

137
ALTERNATIVAS PARA FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DA
ÁREA ML SEAL: O CASO DA UFS

Hélia Maria de Paula Barreto*

Prestes a entrai-num novo milênio, as sociedades humanas encontrání-se diante de diver­


sos desafios. A busca de novos caminhos, com a preparação d g ^ Jp ^ io n ais mais capacitados
para pensar o futuro a partir do passado e do presente, é uma das exigências feitas aos espaços
museais, que sãq justamente apresentados comc^ocíMpgeradores de questionamentos.

Nos museus, espera-se que públicos diversificados, diante dos resultados das ações e
pensamentos constitutivos aáj si|a f cal idade ou de outras sociedades, reconheçam-se como
sujeitos de universos construídos, podendo então pensar e escolher ações adequadas visando
à existência de um mundo menos conflitante.

Na Universidade Federal de Sergipe, apesafda existência de um espaço museal no or­


ganograma elaborado em 1978, somente em 1983, houve a destinação de duas salas para fun­
cionamento de um embrião museológico, chamado então de “Sala de Cultura Popular”. Surgia
como resultante de pesquisas sobre o fazer social das “camadas populares” dos diversos municípios
sergipanos.

Sabíamos então que os museus universitários são centros privilegiados na busca de soluções
para problemas educativos, especialmente dentro de um envolvimento interdisciplinar, e na
divulgação dos resultados dos conhecimentos acadêmicos. No entanto, não tínhamos nenhum
profissional com formação dentro da área em questão. A professora Hélia Maria de Paula
Barreto deslocou-se então para a Fundação Joaquim Nabuco, em Pernambuco, para assimilar
conhecimentos sobre pressupostos teórico-metodológicos ligados a uma nova Museologia,
para fundamentai' a proposta conceituai a ser utilizada e conhecer as técnicas de montagem das
exposições. Ali ficou cerca de três meses. Retomando a Aracaju, o espaço foi montado, com a
ajuda de outros profissionais: antropólogos, arquitetos e decoradores etc.

Em 1987, o professor José Arnaldo Vasconcelos Palmeiras, retomando de seu doutorado,


realizado na USP, trouxe a idéia da implantação do Núcleo de Museologia da UFS, que deveria
atrair pesquisadores das diversas áreas de conhecimento, especialmente aqueles preocupados com
a democratização do saber.

Conforme o próprio cientista: “Como não tínhamos conhecimentos suficientes para a


estruturação de uma obra desse porte, fomos buscar na Universidade de São Paulo a experiência
e dedicação da museóloga do Instituto de Pré-história, a professora Maria Cristina Oliveira
Bruno. Entre abril de 1987 e março de 1990, ela ministrou quatro módulos de cursos, freqüentado
por funcionários de diversos setores da UFS, professores e profissionais ligados a museus e esferas
da preservação e divulgação do patrimônio do Estado.

Os cursos foram intitulados: “Herança Cultural: as Possibilidades do Tratamento Mu­


seológico” (36 horas); “Museografia: Etapas de Elaboração de uma Exposição” (60 horas);
“Ecomuseologia: as Perspectivas da Nova Museologia”(36 horas); “Educação: uma das Fun­
ções do Museu” (60 horas).

Em seu relatório, a professora Cristina Bruno relaciona como objetivos “o apresentai- a


Museologia como uma área de estudo em formação, sua evolução a partir do desenvolvimento
dos museus e, principalmente, sua atenção prática vinculada aos diferentes exercícios museo-

139
gráficos”. E continua afirmando: “pretende-se também mostrai' a potencialidade da Museologia
no tratamento da herança cultural, da preservação das diversas formas de socialização do conhe­
cimento e divulgação dos bens culturais e naturais”.

Desde então, a citada profissional tem realizado atividades de consultoria e assessoria em


variados campos de atividade, ressaltando-se aqueles ligados à montagem de mostras, tanto a
de longa duração, com o tema “O Homem Sergipano”, de cuja proposta museológica foi autora,
quanto às diversas mostras temporárias. Desde 1981, as profissionais ligadas às diversas
experiências museais daUFS - “Sala de Cultura Popular” (1983-1988); “Núcleo Museológico”
(1990-1992); “Museu de Antropologia” (1992-1996); “Museu do Homem Sergipano” (desde
novembro de 1996 ) - montaram cerca de quarenta diversas exposições temporárias sobre
temas variados, tais como: Antropologia, Indianidade, Negritude, Folclore, Paleontologia,
Arqueologia e Pré-história.

Na sua fase atual, como Museu do Homem Sergipano, uma média de oito estagiários, pagos
pelo município, pertencentes a cursos diversos (História, Ciências Sociais, Arte Educação), recebem
treinamento periódico em cursos introdutórios e realizam práticas como pesquisadores, partici­
pantes das montagens de mostras e atendimento aos freqüentadores do espaço museal. Alguns
têm feito estágios em outras instituições museais e freqüentado congressos e encontros relacio­
nados com a área. Após quatro anos de práticas, tomaram-se profundos conhecedores das varia­
das atividades concernentes à Museologia. No entanto, após a licenciatura, não estão sendo apro­
veitados no mercado de trabalho. A própria Universidade Federal de Sergipe está impossibi­
litada de os absorver devido à política do govemo federal. Somente durante este ano, quatro
memoriais foram inaugurados no Estado de Sergipe, no entanto, inexiste uma política cultural
visando ao estímulo e aproveitamento desses profissionais com formação na área museal. Os que
detêm poder decisório continuam associando os espaços culturais principalmente aos circuitos
elitistas e turísticos. Perde-se a interação entre a ciência e a sociedade.

O Museu do Homem Sergipano, na atualidade, é o espaço mais visitado do Estado. Para


que isso continue sendo possível, vem adotando uma política de aproximação com os educado­
res e aprimorando suas práticas pedagógicas. Os profissionais são conscientizados das diferen­
tes possibilidades de uso do espaço museal. Seu crescimento requer a presença de profissionais
das mais diversas áreas. O fato de o espaço cultural pertencer a uma universidade acaba sendo
um grande facilitador. Arquitetos, desenhistas, profissionais da área de informática, equipes
ligadas à cinematografia e comunicação, pesquisadores das diversas áreas do conhecimento
poderão ser treinados quanto à identidade e especificidade de seu espaço museal. E no soma­
tório das realidades próprias a cada um dos diferentes profissionais podem ser encontradas
soluções mais viáveis, de acordo com as distintas realidades vividas pela variedade de freqüen­
tadores.

E assim os museus encontrarão formas particulares para expressar-se, tornando-se mais


significativos para suas comunidades. Estas, enxergando-se como sujeitos da história, poderão
pensar melhores caminhos para o seu devir.

(*) Diretora do Museu do Homem Sergipano, UFS

140
A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE MUSEUS:
O PAPEL DOS ARQUEÓLOGOS NO PROCESSO CURATORIAL

/: Marisa Coutinho Afonso*


tina M. Piedade**
Di landes Barreto***
/ José Paulo Jacob***
■ K . A _ (X *
Os museus de arqueologia têm enfrentado uma quéstão bastante controversa nos últimos
anos com relação\aos seus acervos. A arqueologia “acadêmica” e a arqueologia por contrato têm
proporcionado um crescente aumento na quantidade de materiais arqueológicos trazidos para estas
instituições, além dás informações referentes ao acervo, na forma de diários de campo, fotografias,
mapas etc.

Como “as coleções arqueológicas estão na gênese da história dos museus” (Bruno, 1996),
o futuro das instituições museológicas vai depender da definição de políticas de acervo que
contemplem as mudanças na arqueologia e na preservação do patrimônio. Na literatura museológica
e arqueológica, são constantes as preocupações com a curadoria das coleções arqueológicas
(Novick, 1980;Pearce, 1990).

Museus tradicionais têm investido em ampliações das áreas destinadas àsReservas Técnicas,
no melhor aproveitamento do espaço e do mobiliário para armazenai' seus crescentes acervos.
Neste século, os museus passaram por mudanças conceituais que permitem, atualmente, selecionai'
peças de sua coleção, sem ter que, necessariamente, exibi-las por completo ou de uma única vez.
Para guardai' essas coleções de maneira adequada e controlada foram criadas reservas técnicas,
onde as peças que não estão em exposição permanecem em um meio ambiente controlado e
adequado às suas características estruturais. Neste local, são armazenadas e ficam à disposição
para o uso em pesquisa, ensino e atividades de extroversão museológica.

É crescente também o número de arqueólogos preocupados com a grande quantidade de


dados provenientes das pesquisas de campo e, segundo Pebbles & Galloway (1981, p. 226),
“...there are two crucial challenges ojfered by ali these data that have not been met: 1)
appropriate and ejficient data management, and 2) long-term documentation and adequate
curatorialfacilities Para estes autores, uma das maneiras de evitar o colapso dos sistemas de
museus seria produzir os documentos necessários à curadoria durante a escavação, ou seja, apontam
para uma mudança no processo do trabalho do arqueólogo, mediante o gerenciamento dos dados
a partir de sua coleta em campo.

Os museus, devido ao acúmulo de material, estão discutindo normas sobre métodos de coleta,
possibilidades de descarte e “planejamento por meio da definição de uma política de acervo, traçada
a partir do próprio estudo das coleções existentes e dos problemas científicos inspirados pelas
mesmas” (Bruno, 1995).

O MAE-USP abriga grande parte do material proveniente das pesquisas arqueológicas do


Estado de São Paulo e que representa o maior segmento do do acervo do museu, além das coleções
arqueológicas provenientes dos Estados do Amazonas, Mato Grosso, Santa Catarina e Tocantins
(pesquisas em andamento), tapajônicas e marajoaras.

Diariamente chegam aos laboratórios de arqueologia materiais de diversas categorias


provenientes de pesquisas de campo que, após tratamento de limpeza e identificação, são analisados
e enviados para as reservas técnicas.

141
O grande desafio é formai'profissionais, especialmente arqueólogos e técnicos, que pensem
no gerenciamento da informação arqueológica, desde o momento da coleta na pesquisa de campo.

O Projeto CAB

O projeto “Organização e Gerenciamento do Acervo Arqueológico Pré-Histórico do Museu


de Arqueologia e Etnologia da USP” (CAB) foi desenvolvido de 1997 a 1999, apoiado pela
FAPESP, com os objetivos de definir uma sistemática de trabalho, organizar a documentação
primária, possibilitar o controle sobre acervos e documentação e acondicionar as coleções
arqueológicas na Reserva Técnica (Afonso, Bottallo, Piedade & Morais, 1997; Morais & Afonso,
1999). Este projeto exemplifica um dos aspectos da formação de profissionais em museus.

A equipe foi composta por: Prof.aDr.aMarisa Coutinho Afonso (coordenadora, arqueóloga,


MAE-USP); Prof. Dr. José Luiz de Morais (vice-coordenador, arqueólogo, MAE-USP, responsável
pelo Centro Regional de Pesquisas Arqueológicas Mario Neme); Silvia Cristina Piedade (especialista
em curadoria de acervo arqueológico); Marilúcia Bottallo (museóloga com especialização em
documentação de gestão, MAE-USP); Dária Elânia Fernandes Barreto (técnica especializada em
arqueologia, MAE-USP), José Paulo Jacob (técnico especializado em arqueologia, MAE-USP),
João Carlos Alves (técnico especializado em arqueologia, CRPA-MAE-USP), Clementino Virgínio
da Silva (técnico especializado em conservação, MAE-USP); Armando Olivetti Ferreira (consultor
em informática e arquivística); Wagner Souza e Silva (fotógrafo, MAE-USP) e dezessete estagiários
(alunos de graduação e pós-graduação).

A proposta do projeto foi organizar o acervo arqueológico pré-histórico brasileiro, depositado


na sede do MAE-USP e no Centro Regional de Pesquisas Arqueológicas Mário Neme-MAE, situado
em Piraju e já estudado por arqueólogos, como recorte inicial e necessário, por se tratar da maior
parcela do acervo em termos numéricos, por ser o que mais aumenta, e por representai' um dos
segmentos com maior diversificação interna e as mais variadas formas de documentação primária.

Este acervo nunca passou por um processo de documentação de gestão museológica, tendo
recebido apenas o tratamento de pesquisa por parte dos próprios pesquisadores.

Considerando a diversidade e a quantidade de materiais envolvidos, o projeto privilegiou as


170 coleções provenientes de pesquisas arqueológicas sistemáticas realizadas ou em
desenvolvimento, que datam da década de 50 até o ano do início do projeto.

A Curadoria das Coleções Arqueológicas

Os trabalhos de curadoria, treinamento da equipe, levantamento e sistematização dos dados


e organização do acervo na Reserva Técnica foram desenvolvidos e coordenados por Silvia Cristina
Piedade, especialista em curadoria de acervo arqueológico.

Foram traçados procedimentos gerais para o tratamento e a organização das peças, levando
em consideração a natureza, coleção e projeto a que pertencem. Optou-se, inicialmente, pela sua
aplicação em uma coleção “piloto”, a do sambaqui Piaçagüera, visando direcionar de forma segura
os trabalhos posteriores com as demais coleções.

Foram processados artefatos líticos - lascados e polidos - osteodontomalacológicos (ossos,


conchas, dentes), cerâmicos e amostras de fauna, além do teste de embalagem em um esqueleto do
sítio Tenório.

142
Em seguida à localização da coleção, solicitava-se ao arqueólogo responsável a documentação
primária relativa ao material (listagens, planilhas, cademo de registro, fichas de campo, etc.) fundamental
para a conferência e resgate de informações que haviam sido perdidas. Inúmeras vezes foram encontradas
peças com numeração ilegível (ou apagada) e graças à documentação conseguiu-se, pela descrição,
dimensões, dados de localização e data da coleta recuperai' o número perdido e inserir a peça na coleção.

Os artefatos foram ordenados, conferidos com as planilhas/caderno de registro, relacionadas


as ausências e embalados em sacos plásticos e pequenas mantas de polietileno, acondicionados em
caixas na Reserva Técnica.

Terminada esta etapa, passava-se para o levantamento bibliográfico, o preenchimento da


ficha catalográfica, a redação de pequeno histórico sobre a coleção e o lançamento dos dados na
“tabela resumo”.

A partir de 1995, uma nova ficha, em substituição às outras existentes foi desenvolvida por
Marilúcia Bottallo, visando, por meio de seus descritores, a determinar que as coleções poderiam
ser tratadas de maneira equivalente, tendo em vista exigências de caráter museológico nos níveis da
comunicação e salvaguarda (Bottallo, 1998).

Dessa forma, a primeira modificação substancial objetivando uma compreensão real das
coleções do MAE foi estabelecida mediante a ficha catalográfica única para todo o seu acervo.

Foram organizadas 102 coleções compostas por artefatos osteodontomalacológicos, líticos,


cerâmicos e amostras de fauna. Perfazem um total de 1 005 amostras e 66 570 peças, das quais 1
404 encontram-se ainda ausentes. Como o acervo do MAE já foi objeto de várias mudanças, tanto
em São Paulo como em Piraju, há a possibilidade de se encontrai'peças de uma coleção junto com
outra, como de fato tem acontecido rotineiramente.

Na sede do MAE-USP foram tratadas 44 coleções, num total de 41 719 peças e no Centro
Regional Piraju 58 coleções, num total de 24 851 peças. A porcentagem de ausências atingiu
2,10% do total de peças organizadas. Do número de coleções a serem trabalhadas, inicialmente
propostas no primeiro recorte efetuado no projeto, ou seja, 170 coleções, 60% foram atingidas.

Coleções Número de peças N. peças ausentes


MAE/USP 44 41 719 791
CENTRO REGIONAL 58 24 851 613
Total 102 66 570 1404

Considera-se ponto positivo, mais do que o número de peças organizadas, o pioneirismo do


projeto, a implantação de uma sistemática de trabalho, a proposta de uma metodologia testada e
aprovada e, acima de tudo, a criação e implantação de um sistema informatizado para o gerenciamento
de toda a informação produzida.

No Centro Regional de Pesquisas Arqueológicas Mário Neme, o processo de trabalho foi o


mesmo, comandado por João Carlos Alves (técnico, MAE-USP), que conhece em muita
profundidade os materiais dos sítios arqueológicos do Projeto Paranapanema.

Verifica-se que o número normalmente fornecido institucional mente como correspondente ao


acervo do MAE -120 000 peças - é um número “mágico”, já que não se sabe a quantidade exata.

143
Mas um grande passo foi dado ao se conhecer pelo menos o número parcial de peças organizadas
pelo projeto CAB. Se o número estiver correto, o projeto CAB trabalhou com 55,5% do acervo
do MAE, demonstrando que o maior volume é o segmento da arqueologia pré-histórica brasileira,
que não pára de aumentai', graças ao trabalho dos dez arqueólogos especialistas nesta área, técnicos
e estagiários (alunos de graduação e pós-graduação).

Um dos reflexos importantes do projeto é a conscientização dos pesquisadores sobre as


atividades curatoriais na pesquisa de campo e após esta fase, seja no acondicionamento do acervo
segundo a sistemática do projeto CAB, seja na inclusão de verbas destinadas ao tratamento das
coleções nos projetos de arqueologia acadêmica ou por contrato. Se a idéia de organizai' o acervo
arqueológico pré-histórico brasileiro do MAE era assustadora inicialmente, pela infinidade de
problemas a enfrentai' - recursos humanos, financeiros, vontade política - atualmente a situação já
se tomou mais fácil, o nó começou a ser desatado.

O projeto contou com a participação de vários estagiários, especialmente estudantes de


graduação, que tiveram a oportunidade de entrai' em contato com um acervo valioso e importante
para a compreensão da ocupação pré-histórica do território paulista. Neste sentido, o projeto teve
um caráter educativo, permitindo aos estudantes conhecer o processo curatorial tal como é
desenvolvido do MAE.

Bibliografia

AFONSO, M. C.; BOTTALLO, M.; PIEDADE, S. C. M. & MORAIS, J. L. “Curadoria das Coleções Arqueológicas
Pré-históricas Brasileiras no M AE-USP”. In: Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n. 7. São Paulo, pp.
199-201,1997.
BOTTALLO, M. “As Coleções de Arqueologia Pré-Colonial Brasileira do MAE-USP: um Exercício de
Documentação M useológica”. In: Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n. 8. São Paulo, pp.: 257-268,
1998.
BRUNO, M. C. O. Musealização da Arqueologia: um Estudo de Modelos para o Projeto Paranapanema (tese
de doutorado apresentada na FFLCH-USP, São Paulo, 1995).
BRUNO, M. C. O. “Museus de Arqueologia: uma História de Conquista, Abandono e Mudança” . In: Revista do
Museu de Arqueologia e Etnologia, n. 6, pp., 293-313, 1996.
MORAIS, J. L. & AFONSO, M. C. Arqueologia Brasileira no MAE-USP: Pesquisa, Ensino, Extensão e Curadoria.
In: Anais da I Semana dos M useus da Universidade de São Paulo, 1999, pp. 37-43.
NOVICK, A. L. “The Mangement of Archaeological Documentation”./«: Curator, n. 23/1, pp. 30-42,1980.
PEARCE, S. M. Archaeological Curatorship. Leicester Museum Studies Series. Leicester University Press,
1990.
PEEBLES, C. S. & GALLOWAY, P. “Notes from Underground: Archaeological Data Management from Excavation
to Curation”. In: Curator n. 24/4, pp. 225-251,1981.

(*) Arqueóloga, M useu de Arqueologia e Etnologia/USP


(**) Especialista em curadoria de coleções arqueológicas
(***) Técnicos especializados em Arqueologia, M AE/USP

144
CENTRO DE REFERÊNCIA EM ARTE CONTEMPORÂNEA: UMA PROPOSTA
DE TRABALHO E A EXPERIÊNCIA DO ARQUIVO E DA BIBLIOTECA DO
MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DA USP

ilvana Karpinscki*
íisabete Uliana**

Introdução

Em 1963 fói criado o Museu de Arte Conti 3orânea da Universidade de São Paulo, com
sede no 3.° Piso dò Pavilhão da Bienal no Parque Dirapuera. A partir de 1992, grande parte das
Divisões que com] ra]do museu foi transferida para sua nova sede na Cidade
Universitária.

Com essa inauguração, ficaram no Pavilhão da Bienal atividades ligadas à área de


Exposições, Arte Educação, Biblioteca e Arquivofalém da Reserva Técnica, com parte das obras
de arte pertencentes ao MAC.

Isto acarretou uma mudança nos objetivos e utilização do prédio, modificando o perfil da
instituição no Parque do Ibirapuera.

Nesse contexto, tanto o Arquivo quanto a Biblioteca diagnosticaram a necessidade de rea­


lizar em conjunto um trabalho que permitisse tanto a resolução de problemas relacionados com o
gerenciamento do acervo documental do Arquivo (documentos textuais, iconográficos e sonoros)
e de parte do acervo da Biblioteca (cartazes, catálogos e bibliotecas particulares doadas ao museu,
obras raras e especiais, além do setor de intercâmbio), como também das instalações físicas.

Como a Biblioteca do MAC já tinha uma estrutura consolidada e obtivera apoio da FAPESP
para a renovação de suas instalações na Cidade Universitária, aproveitou-se essa experiência
para elaborar um projeto em parceria com o Arquivo que atendesse tanto as necessidades de
seu acervo existente no Parque e que também auxiliasse o mesmo na implantação de seu novo
perfil, agora destinado ao processamento dos documentos de guarda permanente e responsável
pelo atendimento da comunidade em geral.

A solução para realizai' o gerenciamento de forma cooperativa foi definir segmentos que
pudessem ser processados em comum, respeitando-se os Princípios da Arquivística e da Biblio­
teconomia, e que, ao mesmo tempo, permitisse ao cliente/usuário a recuperação da informação
na sua totalidade. Assim, surgiu a idéia de se constituir um centro de referência virtual.

Com base nessa estratégia foi possível, a partir de 1996, captar recursos para aquisição de
mobiliário, equipamentos de informática, e num segundo momento, em 1997, verbas para conser­
vação, restauro, acondicionamento e digitalização das imagens dos cartazes.

Projeto piloto: Coleção de Cartazes

O objetivo do Projeto Piloto é estabelecer uma metodologia de trabalho que permita integrai',
por meio de um banco de dados associado a imagem, tanto os cartazes que estão sob a custódia do
Arquivo quanto os da coleção da Biblioteca.

A Coleção de Cartazes existentes na Biblioteca do MAC mostrou-se ideal para iniciar


o projeto piloto, isto porque, com a definição do novo perfil do Arquivo, tornou-se obrigatório

145
que ele recolhesse todos os cartazes dos eventos acontecidos no MAC. Com o objetivo de não
duplicar acervo, a Biblioteca repassou os exemplares de sua coleção para o Arquivo.

Os profissionais envolvidos nesse processo estabeleceram as metas desejadas e as etapas


necessárias para desenvolver um banco de dados associado a imagens que permitisse ao
cliente/usuário o acesso integral às informações. Como estratégia para viabilizai' o projeto,
buscou-se captar recursos para processai' o material e também para garantir a conservação
do original.

Com a apoio da FAPESP foi possível então iniciar o trabalho.

A primeira etapa foi selecionar e separar da coleção geral de cartazes da Biblioteca os


exemplares referentes aos eventos do MAC-USP e os que participaram de mostras organizadas
pelo museu; os cartazes de mostras de artistas da coleção do MAC, de artistas brasileiros não
integrantes da coleção e de eventos de artes plásticas no Brasil. Após essa seleção, foi iniciado o
trabalho de limpeza, acondicionamento e catalogação.

A etapa seguinte já foi iniciada com a fotografação dos cartazes, para posterior digita­
lização e armazenamento das imagens em CD-ROM.

A última etapa será a informatizai' os dados catalográficos e associá-los às imagens. Esse


banco de dados será de consulta local. Pretende-se, futuramente, torná-lo disponível on line,
assim que a questão ligada ao direito de reprodução de imagens pela Internet estiver solucio­
nada.
Ao concluir o projeto piloto, teremos elementos para avaliai' tanto a metodologia adotada
quanto o impacto desse novo instrumento sobre nossos clientes/usuários, estabelecendo com maior
segurança o perfil do centro de referência desejado.

Conclusão

A precariedade de instrumentos de acesso disponíveis nas instituições voltadas para a


arte contemporânea no Brasil motiva os profissionais da área da informação a desenvolver
projetos que superem os entraves decorrentes da falta de recursos. Além disso, eles também
são obrigados a gerenciar informações produzidas por múltiplos agentes em diferentes
meios.

Essa situação obriga os profissionais envolvidos com o tratamento da informação a


superar seus limites para buscai' soluções que satisfaçam não só os novos paradigmas impostos
pela revolução tecnológica como também um público cada vez mais exigente com a qualidade
da informação que recebe.

Diante desse desafio, o papel do profissional de museu deve ser repensado, para que ele
possa se preparai' técnica e cientificamente para não ser atropelado pelas novas exigências do
mundo da informação.

Nesse sentido, a parceria estabelecida na experiência do Arquivo e da Biblioteca do


MAC mostrou-se uma alternativa viável e altamente positiva para os profissionais responsáveis
pelo projeto e para a instituição, pois motivou a troca de conhecimentos, a busca de soluções
cooperativas, a racionalização dos recursos disponíveis e a realização de um trabalho que
deverá alicerçar as bases de um centro de referência que poderá servir de modelo para outros
profissionais.

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Bibliografia

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the South African National Gallery”. In: Arts Libraries Journal, vol. 20, n. 2, 1995, pp. 4-12.
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Routledge, s. d., p p .187-197.

(*) Mestre em História e responsável pelo Arquivo do MAC.


(**) Diretora Técnica do Serviço de Biblioteca do MAC.

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