Você está na página 1de 355

Aracy A.

Amaral
Aracy A. Amaral

TEXTOS DO
TRÓPICO DE
CAPRICÓRNIO
A rtigos e ensaios (1980-2005)

Vol. 3
Bienais e artistas contem porâneos no Brasil

editoraQ34
ED ITORA 34

Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Copyright © Editora 34, 2006


Textos do Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios (1980-2005) -
Vol. 3: Bienais e artistas contemporâneos no Brasil © Aracy A. Amaral, 2006

A fotocópia de qualquer folha deste livro é ilegal e configura uma


apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.

Assistência editorial:
Glória Kok

Pesquisa:
Regina Teixeira de Barros

Assistência de pesquisa e digitação dos textos:


Valéria Piccoli, Renata Basile da Silva, Ana M aria Mirio

Créditos das fotografias:


Antonio H. Amaral (p. 105), Luisa Strina (p. 169), Pedro Franciosi (p. 182), João Musa (p. 333)
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:
Bracher & Malta Produção Gráfica

Revisão:
N air Kayo, Fabrício Corsaletti, Alberto Martins

Ia Edição - 2006

CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte


(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)
Amaral, Aracy A.
A52t Textos do Trópico de Capricórnio: artigos e
ensaios (1980-2005) - Vol. 3: Bienais e artistas contemporâneos
no Brasil / Aracy A. Amaral — São Paulo: Ed. 34, 2006.
360 p.

ISBN 85-7326-366-0

1. Artes plásticas - Brasil - História e crítica.


2. Arte contemporânea - História e crítica. I. Título.
II. Série.

C D D - 709.81
Textos do Trópico de Capricórnio

Vol. 3: Bienais e artistas contemporâneos no Brasil

Apresentação........................................................................................ 11

Parte 1
A propósito das Bienais

1. Bienal: isto já foi importante........................................................... 15


2. Anotações à margem da XVIII Bienal —
I. O ecletismo da arte de nosso tem po..................................... 20
3. Anotações à margem da XVIII Bienal —
II. Os “históricos”, os latino-americanos e os “avulsos” ........ 24
4. Anotações à margem da XVIII Bienal —
III. O Expressionismo no B ra sil............................................... 30
5. Anotações à margem da XVIII Bienal —
IV. O desafio da grande prom oção................................................... 33
6. Indagações em torno da X IX Bienal.............................................. ........ 37
7. O curador como estrela........................................................................... 51
8. Vinte Bienais de São P au lo ............................................................. ........ 57
9. A X X Bienal: anotações de um observador................................... 60
10. A expansão da Bienal de Veneza:
entre a materialidade e o conceito............................................. 71
11. Expandindo o internacionalismo................................................... 80
12. Grandiloqüência e marketing.......................................................... 84
13. Bienais ou da impossibilidade de reter o te m p o ......................... 89

Parte 2
Artistas contemporâneos no Brasil

14. Hélio Oiticica: tentativa de d iálo go .............................................. ...... 103


15. U m a jovem pintura em São P au lo ................................................ ...... 126
16. João Câmara e a ginástica da ambigüidade......................................... 129
17. Seis artistas............................................................................................... 136
18. U m a nova pintura e o grupo da Casa 7 ............................................... 141
19. Waldemar Cordeiro................................................................................149
20. A nova dimensão do objeto ............................................................. .....152
21. Sérvulo Esmeraldo: além dos sólidos, a ação cultural........................160
22. Treze gravadores de São Paulo........................................................ .....164
23. Cildo Meireles no M A C ........................................................................168
24. “A Trama do Gosto”: uma superprodução paulista..........................171
25. Mira Schendel.................................................................................... .....175
26. Geórgia Creimer......................................................................................178
27. Amilcar de Castro: o vigor da expressividade
fundada na geometria........................................................................181
28. Fernando Lucchesi............................................................................ .....183
29. Emmanuel N assar.............................................................................. .....187
30. Marco G ian n otti.....................................................................................189
31. Leda Catunda..................................................................................... .....191
32. Quatro artistas.................................................................................... .....194
33. A propósito do trabalho de Beralda Altenfelder................................202
34. Uma nova geração............................................................................. .....205
35. A efervescência dos anos 8 0 ............................................................. .....212
36. Guto Lacaz: entre o urbano, a memória e a “Aerobrás” ...................215
37. A mulher nas artes............................................................................. .....221
38. Carmela Gross: um olhar em perspectiva...................................... .....234
39. Jeanete Musatti: do abismo entre o onírico e a m emória................. 242
40. Um a geração emergente.................................................................... .....248
41. Espelhos e som bras............................................................................ ..... 253
42. Voluntarismo de Cravo N e t o ............................................................... 264
43. Visita a Caetano de Alm eida................................................................. 267
44. Geórgia Kyriakakis................................................................................. 269
45. A propósito da arte construtora:
das poéticas visuais às interferências urbanas................................. 271
46. Marcelo Grassmann, gravador........................................................ ..... 279
47. Regina Silveira: vocação internacionalista.......................................... 286
48. Uma trajetória: Giselda Leirner........................................................... 290
49. A mulher é o corpo............................................................................ ..... 293
50. Lugar chamado arte................................................................................ 296
51. Arte paulistana.................................................................................... ..... 303
52. Vik Muniz: o ilusionismo além da aparência especular.............. .....306
53. Artur Lescher: a tática da elegância................................................ .....311
54. Gregório Gruber......................................................................................316
55. León Ferrari: os anos paulistas (1976-1984) ................................ .....321
56. Conversação com Evandro Carlos Jardim:
imagens revisitadas....................................................................... .....331

Sobre os textos deste volume................................................................ .....339


índice onomástico............................................................................... .....343
Relação dos textos da coleção.............................................................. .....351
Agradecimentos.................................................................................... .....357
Sobre a au tora..................................................................................... .....358
para minhas netas Maria Luiza e Gabriela
Apresentação

Esta coletânea reúne artigos, críticas, ensaios, palestras, comunicações e


entrevistas realizados ao longo de aproximadamente 25 anos, do início da
década de 1980 até 2005. Sua publicação visa oferecer aos leitores interessa­
dos um ponto de vista sobre o meio das artes plásticas em nosso país. Tal
como em livro anterior, Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burguer (São
Paulo, Nobel, 1982), que compilava nossos escritos de 1961 a 1981, trata-
se também aqui de proporcionar a futuros pesquisadores da arte brasileira
subsídios para a apreciação de determinados contextos culturais.
Organizar um material extenso — parte do qual se encontrava dispersa
por jornais, revistas e catálogos no Brasil e no exterior, e outra permanecia
inédita — não é tarefa simples. N o preparo desta publicação, que se tornou
possível com o apoio do Programa Petrobras Cultural, contei com o auxílio
de vários colaboradores, aos quais agradeço calorosamente no final deste vo­
lume. De comum acordo, optamos por agrupar esses textos em três volumes,
conforme a recorrência dos temas: Modernismo, arte moderna e o compromis­
so com o lugar (volume 1); Circuitos de arte na América Latina e no Brasil (vo­
lume 2) e Bienais e artistas contemporâneos no Brasil (volume 3).
Tal organização, entretanto, não impede que várias questões que sempre
me foram caras compareçam em mais de um volume. Acredito que nem po­
deria ser de outra maneira, na medida em que o pesquisador realmente inte­
ressado nas artes brasileiras é obrigado a se desdobrar no tempo e no espaço.
Em nosso caso específico, as atividades de crítica, historiadora, profes­
sora, curadora e diretora de museus, nunca constituíram uma “opção profis­
sional” em si, mas parecem-me estreitamente vinculadas umas às outras — e
as posições assumidas foram decorrência natural de um ponto de vista que
tem, como ponto de partida, o Trópico de Capricórnio, conforme assinalam
sempre as placas nas principais vias que cortam o perímetro de São Paulo:
“Aqui passa o Trópico de Capricórnio”.
Dentro de cada volume, os textos foram reunidos por ordem de reali­
zação, trazendo a data de sua primeira redação entre parênteses, logo abaixo
do título, o que permite ao leitor acompanhar o desenvolvimento de nossos
interesses ao longo dos anos.
O presente volume reúne, em sua primeira parte, escritos sobre as Bie­
nais de São Paulo — acontecimento que se revelou fundamental para nossa
formação e nos impeliu ao convívio com o meio artístico.
Ainda estudante de jornalismo, pude presenciar a montagem da I Bie­
nal, no Parque do Trianon, admirada com cada caixa que via abrir — por
Krajcberg, Marcelo Grassmann e Aldemir Martins, vestidos de macacão e
retirando as obras as serem expostas — e, ao mesmo tempo, entrevistava, para
o jornalzinho da faculdade, Alfred Barr Jr., então diretor do M oM A de Nova
York, que viera como comissário dos Estados Unidos.
Rememorando, os anos 50 foram uma época de grande excitação cul­
tural na cidade, quando fazíamos de tudo um pouco: teatro, no T P E (Tea­
tro Paulista do Estudante); mímica, com Luís de Lima; aulas de dramatur­
gia, com Alfredo Mesquita, na EAD (Escola de Arte Dramática); dança mo­
derna, no MASP, e monitoria na inesquecível II Bienal de São Paulo. Ao mes­
mo tempo, eu começava a escrever notas sobre arte e teatro para a sucursal
da Tribuna da Imprensa, e freqüentava a Cinemateca do M useu de Arte
Moderna de São Paulo, cujas sessões eram sempre precedidas por uma apre­
sentação de Paulo Emílio Salles Gomes.
A segunda parte deste volume traz artigos sobre artistas brasileiros con­
temporâneos, muitos dos quais vimos se firmar nas décadas de 80 e 90. Ela
principia, entretanto, com um depoimento anterior: a entrevista que realiza­
mos com Hélio Oiticica em sua casa no Village, em Nova York, em outubro
de 1977. Embora escape ao marco temporal destes volumes (1980-2005),
decidimos incluí-la tanto pelo ineditismo como pela importância de sua per­
sonalidade e obra para o nosso meio artístico.
Parte 1
A propósito das Bienais
1.
Bienal: isto já foi importante
[1981]

Não tenhamos dúvidas. A Bienal de São Paulo não é hoje senão um


pálido salon internacional acontecendo a cada dois anos. Não é a primeira vez
que o afirmamos, tampouco somos os únicos a reconhecê-lo. E com todo o
clima entediado que os salões arrastam desde o século passado... Mesmo os
ligados ao meio artístico acorrem mais às Bienais por uma obrigação profis­
sional, para constatar fatos, e não mais movidos pelo entusiasmo, como por
ocasião dos primeiros eventos em princípio dos anos 50.
Depois de perdidas as esperanças de uma reestruturação real com a atual
presidência, nem mesmo a diretriz tão em voga, “saber mudar para perma­
necer”, interessou à Fundação Bienal de São Paulo. E, assim, anêmica, de-
sinflada de todo o gás, sem razão de ser que interesse a um público maior,
mas apenas a meia dúzia de apreciadores e artistas, a Bienal provavelmente
abrirá em outubro, orgulhosa de se mostrar como rara Bienal que é, inin­
terrupta desde 1951.
Mas o preço dessa continuidade quem a paga é o dinheiro público e não
os empresários que dirigem a entidade e seu Conselho. Talvez já devêssemos
estar habituados a esse fato no Brasil, de que o empresariado, por mais privi­
legiado que seja no sistema em que vivemos, deva somente se prestigiar com
as presidências e os conselhos de entidades como MAM-RJ, MASP, MAM-
SP, Bienal, pois todos são dependentes do dinheiro público.
E o que fazem para o público que financia suas atividades? Em geral ig­
noram-no sumariamente, apresentando mostras de difícil justificação, em
calendários descosidos, sem uma espinha dorsal a imprimir uma diretriz a suas
programações, beneficiando apenas a projeção daqueles que neles se apresen­
tam para o reduzido público que a eles acorre. Tão elitistas quanto nossos
jornais e periódicos — estes, entretanto, frutos do capital privado — , as ex­

15
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

posições de arte deveriam buscar uma articulação com um público mais vasto,
motivando-o a se aproximar permanentemente delas e não apenas em oca­
siões de apresentação de exposições “estrelas”, quando a divulgação é feita pela
televisão, e, conseqüentemente, contam com uma freqüência incomum.
É necessário, também, que quando isso suceda, a promoção não resulte
numa armadilha, e o público não iniciado possa naturalmente contar com a
intermediação didática — para os que desejarem esse apoio — através de vi­
sitas guiadas que realmente desfaçam a inibição que a entrada de um museu
significa para a maior parte da população.
A Bienal de Medellín, na Colômbia, recentemente aberta (aliás, a ter­
ceira aberta neste ano na América Latina, depois da Bienal de Artes Gráficas
de Cali e da Bienal de Porto Rico, além do súbito cancelamento da Bienal
da Bolívia), também apresentou, pelo que vimos, apesar do anseio de inova­
ção com a abolição da representação por países, uma tranqüila e morna se­
qüência de obras, que se percorria pelo labirinto dirigido de seu espaço. Se a
economia de energia física pelo apreciador foi preservada pelos organizadores,
muitos se queixam da falta de “repousos” visuais, no longo desfile das obras
expostas. Que para os iniciados não era senão uma visão redundante — sal­
vo no que diz respeito às obras de artistas colombianos pouco vistos no exte­
rior, e que eram raros — , de coisas já vistas em outras mostras internacionais
e nacionais.
Medellín, através de Leonel Estrada, desejou assim retomar a realização
das Bienais, abandonada em 1972 (nove anos atrás). Iniciativa totalmente
privada, contando com patrocinadores que levam a termo as Bienais seguin­
tes, pode, evidentemente, refletir o desfibramento, a ausência de vitalidade,
na atual crise de criatividade artística de que o mundo se ressente desde já
algum tempo. Porém, apesar da maneira amadorística pela qual é organiza­
da, pois os critérios para as escolhas dos artistas do exterior são bastante difí­
ceis de discernir, ninguém poderá dizer que Medellín está jogando fora o di­
nheiro público.
Pode-se até criticar os seus organizadores por tratar a Bienal como um
brinquedo de luxo para pequeno público (embora na semana de inaugura­
ção a afluência fosse grande). Porém, é uma realidade que faz sentido dentro
de um país como a Colômbia, mais rançoso que nós porque ainda dentro do
clima “das trinta famílias dominantes”, ao passo que, no Brasil, depois da

16
BIENAL: IST O JÁ FOI IM PO RTAN TE

revolução getulista que trouxe também o poder à classe média oriunda do


jovem tenentismo, parcialmente esse ambiente já se desfez.

O DESINTERESSE PELA AMÉRICA LATINA

Por outro lado, a Bienal de São Paulo, além de desconsiderar em seu


regulamento atual as recomendações do encontro de críticos da América La­
tina (que pediu ênfase para a arte latino-americana), também não tomou co­
nhecimento dos eventos artísticos que ocorreram nesta América do Sul. As­
sim, nenhum observador da Bienal de São Paulo esteve presente ao Simpósio
e apresentações de trabalhos “não-objetualistas” realizados em Medellín, em
promoções de seu Museu de Arte Moderna, para tomar conhecimento do que
se faz em arte na área experimental no continente, área que, ao que parece,
será uma das metas da próxima Bienal. Reafirmam-se, com essa ausência, a
preocupação da vinculação da Bienal de São Paulo com os convencionais
encontros hegemônicos e seu tradicional desinteresse pela América Latina.
Mas, por todas essas razões, a intenção por nós apresentada no malfa­
dado encontro de críticos da América Latina em São Paulo, em outubro úl­
timo, era de que a Bienal deveria se transformar num encontro latino-ame­
ricano (e não mais internacional, caso se devesse optar por uma coisa ou ou­
tra, e a menos que pudesse ocorrer quadrienalmente, de maneira alternada,
um evento latino-americano e um internacional), num grande encontro con­
tinental de cinema, teatro, música, dança, literatura e artes plásticas, com
simpósios e auditórios funcionando, os quais, temos certeza, se tornariam, nos
dois meses que duraria cada evento, um verdadeiro ponto de encontro da
América Latina. Não houve interesse maior pela proposta, que poderia tirar
um pouco do elitismo das Bienais e arejar bastante o ambiente brasileiro.
Porque já é hora de os brasileiros se conscientizarem de um fato real: o
Brasil está culturalmente isolado. Os países da América Latina mais ativos do
ponto de vista de política cultural (como Venezuela, México e Colômbia)
mantêm uma articulação com o exterior desconhecida do nosso meio artís­
tico. Talvez resida aí a razão pela qual muita gente ainda deseja a manuten­
ção das Bienais de São Paulo: elas são a única forma de o meio artístico bra­
sileiro, que dificilmente tem possibilidade de viajar, em função do aviltamento

17
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

espantoso do Cruzeiro, poder entrar em contato com a informação cultural


que vem de fora. Eliminada a Bienal, e tendo como obstáculo maior uma le­
gislação aduaneira que impede o intercâmbio de exposições, o ambiente das
artes visuais ficaria em definitivo estado de incomunicação com o mundo.

AS MUDANÇAS NECESSÁRIAS

Aparecem, então, contraditoriamente, as Bienais de São Paulo e os go­


vernos estadual e municipal que as pagam como os salvadores dessa situação,
os quais devemos aplaudir sem críticas, posto que nos mantêm abertas as
portas para a comunicação necessária com o exterior. Quando, na verdade,
o que se deveria tentar obter seria: primeiro, a imediata reformulação da re­
gulamentação alfandegária em relação à entrada de obras de arte e exposições
em geral (porque sair do país com todas as imagens religiosas, pré-colombia-
nas, arte africana, “cuzquenhos” etc., qualquer um pode, desde que no fun­
do da mala, pois na alfândega ninguém mexe em quem sai, só em quem en­
tra, isto é, desde que não tenha necessária “cobertura” que o isente de qual­
quer responsabilidade, como gente de “bem” quando é processada no país);
e, segundo, procurar definir publicamente por que o empresariado não as­
sume sua parcela de responsabilidade na promoção de eventos culturais (daí
pode-se provavelmente argumentar que “esporte é cultura” e que determinada
empresa assumiu custos de vultosa promoção de tênis no ano passado) em
nosso país.
Por que somente se deve sangrar o Estado? Sangremo-lo em relação à
educação. Mas, num país que vive em regime capitalista como o nosso, cada
museu, cada entidade cultural tipo Bienal, deveria se valer dos recursos da
iniciativa privada para sua programação e existência (sobretudo quando está
instalada em gigantesco próprio do município, sem retorno razoável em ser­
viços para a comunidade).
Como definir este último ponto? Aí está todo um desafio e debate a ser
travado com empresas atuantes no país, multinacionais, em particular, e tam­
bém nacionais. Com participação compulsória, as empresas se alternando no
financiamento dos calendários culturais em grupos de quatro ou seis por en­
tidade, por exemplo, como ocorre em outros países, para dinamizar as ativi­

18
BIENAL: ISTO JÁ FOI IM PO RTAN TE

dades artísticas. É claro que seria dado crédito do financiamento aos patro­
cinadores, que, assim, se beneficiariam com essas promoções veiculando os
nomes das empresas. Mas, em momento de mobilização da sociedade civil,
o capital privado (multinacional, como nativo) participando de fato — e não
apenas com o “prestígio” — , no esforço de atender a uma grande deficiência
de nossa população. Que é carente de cultura.

19
2.

Anotações à margem da XVIII Bienal —


I. O ecletismo da arte de nosso tempo
[1986]

Talvez os dados mais polêmicos desta última Bienal não residam nas
obras em si, e sim na forma como elas foram apresentadas e promovidas. Ou
seja, nem foi o Neo-Expressionismo, sobretudo o de origem e influência eu­
ropéia, em particular alemã, posto que a XVII Bienal de São Paulo também
nos trouxera artistas europeus e norte-americanos expressivos da nova pin­
tura que tanto furor faz no mercado de arte internacional, mas a cenografia
cuidadosamente preparada para o impacto ambiental da chamada “Grande
Tela”, habilmente divulgada e promovida pela Fundação Bienal, como se fo­
ra a única presença válida do evento.
E, na verdade, não o foi. Pensando bem, esta Bienal foi bastante con­
vencional ao utilizar-se dos mesmos ingredientes que têm iluminado as últi­
mas Bienais: uma parte histórica, uma parte eclética, abrigando os artistas de
países que não observam rigorosamente os conceitos propostos pela curado­
ria, uma pitada de arte e tecnologia, uma colher de chá para a faceta popular
da criação plástica, tudo isso ao lado de um núcleo claramente identificado
com a diretriz que a curadoria amaria ver enfatizada no evento. Neste caso,
a pintura neo-expressionista.
O dado mais novo deste evento está vinculado não às obras, mas à or­
ganização de seu espaço físico. N a manipulação do espaço, de forma mais ou
menos feliz, ou desastrada, das obras que compareceram ao evento. Dir-se-
ia que parece que entrou em voga, ao projetista da Bienal, a paginação em
oblíqua, que com tanta infelicidade o Museu de Arte Moderna de São Paulo
passou a se utilizar desde a reforma de seu espaço. A organização labiríntica
também parece ter sido, se não uma solução desejável, pelo menos uma saí­
da para que todas as obras coubessem no espaço do amplo edifício do Pavi­
lhão da Bienal. E mesmo que tivéssemos ouvido que o interessante para o

20
XVIII BIENAL — I. O ECLET ISM O DA AR TE D E N O SSO TEM PO

público seria a descoberta, o desvelar um artista maravilhoso, ao transpor o


espaço de um painel para outro, não podemos, por certo, estar de acordo com
esse critério que ocultou artistas de intensa criatividade — como Nelson Ra­
mos, do Uruguai, no instante mais elevado de sua carreira, e indiscutivelmen­
te o melhor artista presente na Bienal, a despeito de modas artísticas.
Por outro lado, a instalação da Grande Tela — e Sheila Leirner confir­
ma que para ela esse espaço foi realmente uma instalação sua, embora a con­
tragosto reconheça que em co-autoria com o arquiteto projetista do espaço,
no caso o arquiteto Haron Cohen — significa realmente que a curadoria da
XVIII Bienal se apropriou das pinturas dos artistas participantes a fim de
conceber um espaço interpretativo da pintura de nosso tempo pelas gerações
mais novas e consagradas no mercado internacional.
E o que assombra nesse segundo andar, piso nobre desta Bienal, é a cons­
tatação melancólica de que, mais que em qualquer outra época, a informa­
ção internacionalista aparentemente nivelou artistas coesos, embora de con­
textos culturais tão distintos como Austrália, Suíça, Islândia, Espanha, Bra­
sil e Alemanha, por exemplo, este último país, evidentemente, atuando como
carro-chefe das tendências neo-expressionistas. Embora haja diferenciações
bastante ponderáveis entre os artistas, pois seria muito precipitado julgá-los
todos iguais. Assim, à dramaticidade de Daniel Senise, ou à produção de Pau­
lo Monteiro ou Nuno Ramos de um ano atrás, se contrapõe o catastrofismo
gritante de Middendorf, Albert Hien, Borofsky e Joseph Bullas, embora tam­
bém visível em Ana Tamas, da Romênia. E, desta maneira, o dado moral
emerge com força nesta Bienal, de forma particular na grande instalação de
Paul Thek. Se foi inexplicável um tão extenso número de obras — maior do
que fora cogitado a princípio para artistas tão jovens como os da Casa 7, pre­
judicando-os vivamente — , e simplesmente para preencher os corredores
concebidos (e não é por quilômetros que se avalia a contribuição de uma
Bienal, como já se cansou de dizer tantas vezes há tantos anos), como justifi­
car a presença do trabalho medíocre da artista convidada Hella Santarossa em
dois espaços do mesmo andar?
Compensa, por outro lado, a presença, nessas mesmas galerias, de Do-
koupil, jovem alemão de 31 anos, em reflexão sobre possibilidade da imagem
criativa, a nos remeter a um Jasper Johns (em sua exposição em Paris em
1958, amorosamente reconstruindo as bandeiras sobrepostas e os números

21
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

em grandes telas). Jin Georg Dokoupil, desdenhando as marcas consagradas


pelos meios de comunicação de massa, reescreve as palavras correspondentes
às imagens até agora quase automáticas para nossa visualidade já conforma­
da pelos designers da publicidade, como a querer reformular algo: Nívea,
Rolex, Deutsche Bank, Krupp, M aggi. U m a leitura intrigante no estranha­
mento da imagem nova para os apreciadores condicionados.
Duas artistas se destacam, nesses corredores, por seu sarcasmo imagéti-
co: a argentina Ana Eckell, embora aqui mais claramente desenhista, e a pin­
tora portuguesa Paula Rego, representando a Grã-Bretanha, dominando com
mestria o espaço mural com fluência admirável, confirmando sua formação
expressiva já testemunhada no amplo painel que apresentou em abril último
em Lisboa na exposição “Diálogo”, na Fundação Gulbenkian.
Mas longe de nós afirmar que esta Bienal se constitui em apenas esses
três sombrios corredores que não propiciaram a leitura adequada das obras
expostas. À força desse espaço impositivo, e por isso mesmo tão antipático
em seu autoritarismo, se contrapôs, sem qualquer dúvida, a diversidade das
contribuições das ambientações nas instalações de artistas de procedências as
mais diversas.
N a verdade, as instalações dão o recado mais denso de poética e aber­
tura da arte contemporânea nesta Bienal, e, no entanto, foram pouco di­
vulgadas. Seria necessária uma menção à multiplicidade de caminhos que aí
percebemos, na proposta efêmera, a desfazer-se depois de encerrado o even­
to e a perdurar apenas na fotografia, no vídeo e no cinema, e por isso mes­
mo tão mais fiel à alteração da natureza da arte ocorrida de forma mais in­
tensa na segunda metade de nosso século. Assim, na delicadeza de Mika
Yoshizawa, do Japão, embora me incomode a precariedade de seus materiais,
encanta o gesto largo dominando poeticamente a espacialidade branca. As
instalações, por outro lado, propiciaram expressões singulares de persona­
lidades artísticas, muito mais que a pintura, comprometida com as consa­
grações internacionalistas. Desta forma vimos a reflexiva Ultima Thule, de
Mayer, assim como o trabalho de Karavan, de Israel, ou a belíssima propos­
ta de Christian Boltanski, Les ombres (1944), ondulante e mágica como a ca­
verna de Platão para o apreciador — o outsider, no caso. Instigante, igualmen­
te, o ambiente de Stuart Brisley, este artista inglês tão envolvido há quinze
anos com uma expressão violenta e escatológica, e que nos aparece aqui com

22
XVIII BIENAL — I. O ECLETISM O DA A RTE D E N O SSO TEM PO

r
jogos de palavras e sutis imagens a sugerir analogias plenas de interioridade.
Entretanto, a grande vitalidade em instalação esteve, a meu ver, com o no­
rueguês Per Inge Bjorlo, em alta tensão em seu ambiente negro, odoroso e
souple para o visitante inebriado.
Já fazendo uma seleção entre as propostas desta área, que injustamente
parece rodear o núcleo central (a pintura), mas que nos pareceram, como dis­
semos, mais interessantes que o bidimensional exposto, não se pode deixar
de mencionar Flávio Garciandia, de Cuba, que teve sua instalação cindida e
portanto deturpada pelos montadores da Bienal, e que no entanto foi, ape­
sar disso, tão apreciado pelos jovens artistas brasileiros. E se a preocupação
moral transpira da instalação de Borofsky (que já tem quatro anos de apre­
sentações em eventos vários), vemos o mesmo dado claramente emergindo
da Procissão de p az (1985), do norte-americano Paul Thek, com toda a sim-
bologia pacifista bem facilmente decodificável: a jangada, arca de Noé meta­
foricamente representada, as uvas maduras, a terra arada infértil, os mísseis,
a pomba. É difícil abordar a partir de algumas anotações as impressões todas
desta Bienal, mas a escultura, sempre tão em baixa, parece redobrar novo alen­
to na figuração vital de Francisco Loire, da Espanha, sem dúvida o melhor
artista desse país nesta Bienal, rústico e forte como o próprio lenho por ele
sangrado. E mesmo meio sem jeito, não se pode deixar de mencionar o des­
cabido do Neoclassicismo italiano contemporâneo presente através de uma
única obra de Stefano Di Statio, tão típico do ecletismo de nosso tempo nas
artes quanto insondáveis poderiam parecer à primeira vista as razões que fi­
zeram a curadoria da Bienal convidar as releituras da Pinacoteca para parti­
cipar da mostra. Realmente um desafio aos jovens monitores que passaram
meses a se preparar para tentar transmitir aos visitantes não iniciados uma
abordagem no mínimo didática para o que foi apresentado no Ibirapuera.

23
3.
Anotações à margem da XVIII Bienal —
II. Os “históricos”, os latino-americanos e os “avulsos”
[1986]

Em tema tão abrangente como “O homem e a vida”, se também é váli­


do conceituar a arte como uma projeção interior, ou uma representação do
mundo exterior a partir de uma personalidade, ou ainda como o registro de
uma pulsação criativa vital, qualquer tendência, certamente, poderia se en­
caixar em tão amplo espectro. D aí por que esta foi uma Bienal aberta a vá­
rias correntes expressivas. Pela primeira vez, constatamos a presença de qua­
lidade nos envios da Coréia do Sul e do Egito, e percebemos que a Bélgica
fez-se representar de maneira totalmente independente de quaisquer corren­
tes internacionalistas em voga, como aliás também o faria o Uruguai. Isso
ajuda a compor o mosaico eclético da produção artística de nosso tempo, seja
com um artista adocicado como Madlener, inspirado nos espaços e na deco­
ração da arquitetura barroca, ou com dois artistas, um minimalista e outro
conceituai, como Marthe Wery e Didier Vermeiren.
Com alguns artistas presentes no piso nobre (o segundo andar), parti­
cularmente argentinos, venezuelanos, brasileiros e mexicanos; a Grande T e­
la praticamente só acolhendo brasileiros e argentinos, a América Latina tem
uma presença densa nesta XVIII Bienal. O continente está por toda parte,
embora não apresentado em forma de confronto nem tenha valorizada sua
produção, devido aos ambientes labirínticos do piso térreo. Assim, descobri­
mos uma fase recente e para nós desconhecida do mexicano Gironella, foca­
lizado há pouco em livro da historiadora Rita Eder, ao mesmo tempo em que
está diluído o grande envio do pintor Sergio Hernández, um pintor de sem­
pre, distante das modas, mais ligado à tradição formal e mágica de Oaxaca,
cidade também de Tamayo e Toledo, e sede de núcleo amplo de artistas de
escola definida.

24
XVIII BIENAL — II. OS “H IST Ó R IC O S". OS LATINO-AM ERICANOS E OS “AVULSOS”

Ricardo Rocha, também do México, agora figurativo, apresenta uma


obra claramente inspirada em graffiti, comprometida, e denunciadora visível
do drama centro-americano.
D a Venezuela, contudo, em outras Bienais com muito destaque, neste
evento observamos apenas a sensibilidade ecológica de Pedro Terán (a nos
remeter, por afinidade, a um Portillos, da Argentina, ou a Jonier Marin, da
Colômbia), assim como Ernesto León, com os gigantescos cubos que pare­
ciam antes cumprir uma função de mobiliar o espaço da Bienal, sem atrair
maiores indagações para si como obra.
U m a surpresa na América Latina residiu, para nós, no envio de Ana
Mercedes Hoyos, da Colômbia, absolutamente figurativa, depois de longa
ascese abstrata monocromática levada às últimas conseqüências, e agora exi­
bindo um prazer em redescobrir as cores e representar objetos. Aliás, no
mesmo catálogo da Bienal, ela se avoca o direito a essa liberdade, com suas
próprias palavras. A América Central e o Caribe, ainda que amplamente re­
presentados, pouca atenção chamam, embora nos apareçam da Nicarágua
tumultuadas obras surrealizantes, seja em Sobalbarro ou em Montenegro; se
bem que Cuba surpreenda, aos visitantes que esperavam uma “arte compro­
metida”, com o realismo fotográfico de Tomás Sánchez e a instalação, bem
ao sabor da voga internacionalista, de Flávio Garciandia.
Além do gestualismo sarcástico e fluente de Ana Eckell, que já nos cha­
mara a atenção na Bienal de Havana, a dimensão do surreal, sempre uma
“marca” argentina, se faz presente na Grande Tela, seja na introspecção de
Alfredo Prior, seja no espaço mágico cenográfico de Kuitca ou no onirismo
de Pablo Suárez.
O Brasil, sem dúvida, por sua seleção, é uma explosão de estímulo aos
mais novos. Como o Salão Paulista e o Salão Nacional, a Bienal parece ter
adotado, neste evento, a postura de abrir suas portas não a artistas de uma
trajetória reconhecida ao longo de anos, em homenagem que poderia ter sido
prestada (como o poderia ter sido uma sala especial para Iberê Camargo, rea­
lização agora feita pelo M ARGS em Porto Alegre, expressionista abstrato, ou
dedicada ao desenvolvimento de outro expressionista como Flávio Shiró,
ambos raros preservadores de alta qualidade por décadas de produção testa­
da, ou à Marina Caram, recentemente vista em fiel retrospectiva no MASP)
no mesmo espaço em que se dedicou tantos metros à gestualidade argenti­

25
A PROPÓSITO DAS BIENAIS

na dos anos 60. Dessa forma, foi a “nova pintura” a privilegiada pela exibi­
ção de artistas-promessas que em outras épocas jamais sonhariam ter suas
obras convidadas para integrar uma Bienal internacional. Enfim, o ano é da
Juventude. Temos a lamentar apenas, que, na Grande Tela, o mais resisten­
te seja, de fato, Daniel Senise, dentre os brasileiros. Talvez o excesso de soli­
citações e a hiperprodução tenham causado em outros artistas — como os
talentosos pintores da Casa 7 — um descuido momentâneo por seus cami­
nhos mais pessoais. De qualquer forma, parece ter faltado, nessa seleção, um
pintor como Ciro Cozzolino, que ao lado de Fernando Barata desenvolve sua
produção em Paris. É pena um certo esvaziamento momentâneo nas presen­
ças de Leonilson e em particular de Leda Catunda. O primeiro, amplamen­
te identificado com as correntes atuais (e a proximidade física com Eilís
0 ’Connell, da Irlanda, e com Hukkanen, da Finlândia, que acentuavam esse
dado da “aldeia global” artística), e Leda Catunda, diluída, depois de suas
excelentes mostras tanto na galeria Luisa Strina em São Paulo quanto no Rio
de Janeiro.
Parece-nos que os próprios artistas jovens tirarão do confronto interna­
cional uma lição, da qual não deverá estar alheia a importância do rigor que
cada qual deve se exigir para o controle de qualidade, a despeito de sua carga
criativa ou garra de trabalho. N a liberdade concedida a cada artista, Carlos
Matuclc realizou amplo mural homenageando a cultura brasileira, mais ale­
górico em seus referenciais decodificáveis para os iniciados nativos, ao passo
que Alex Vallauri, em ambiente neopop apresentou instalação humorosa em
seu kitsch divertido.
A nosso ver, contudo, o artista brasileiro mais interessante foi, por cer­
to, Guto Lacaz, a espreitar entre apreensivo e divertido a reação dos visitan­
tes ao seu espaço sonoro-visual. Significa bem o artista como inventor, seja
no toca-discos de braço extralongo, como na caixa de sapatos como objeto
criativo, a manipular inteligentemente objetos com um senso de humor e de
leveza raros de encontrar entre os de sua geração. À sutileza da proposta de
Paulo Garcez, em instalação com partituras e desenhos, faríamos reservas à
dificuldade de domínio do espaço dado, bem como em sua relação com o
público. Ao passo que Fernando Lucchesi magnificou de forma impactante
sua proposta plena de religiosidade apresentada já em São Paulo, no MAC,
no ano passado.

26
XVIII BIENAL — II. OS “H IST Ó R IC O S”, OS LATINO-AM ERICANOS E OS “A VU LSOS"

E que dizer de Herman Braun Vega, o pintor peruano que pode se men­
cionar como o campeão da Bienal em comunicação e vendas? Sem qualquer
dúvida, as suas foram as obras mais fotografadas deste evento nos períodos
brasileiros, e com seu achado, mais inteligente que sutil, conquistou o gran­
de público. Do Paraguai, no trabalho de Margarida Mosell, vemos herança
da estirpe do pintor Carlos Colombino.
Indiscutivelmente, o destaque como país da América Latina, se pre-
miação para isso houvesse, caberia ao Uruguai, ostentando também a mais
importante contribuição individual do evento, com Nelson Ramos, artista
que acompanhamos há mais de vinte anos (participou também em 1978 da
exposição “Geometria Sensível”, devorada pelo fogo que destruiu a coleção
do MAM do Rio) e que, partindo do papel como suporte, há já alguns anos,
aqui exibe a caixa como constante, a precariedade como qualidade — vela­
da, diáfana — de verdadeiro poema visual. A preocupação tectônica, assim,
se articula harmoniosamente com a poética, o quadrado dominante e as oblí­
quas do triângulo trabalhadas como formas plenamente dominadas pela mão
sensível do artista. Coerente, em sua trajetória ascética, e exemplar como
criatividade e postura diante da arte.
Os argentinos da nova figuração dos anos 60 (Deira, Macció, De La
Vega e Noé) testemunham agora, para as novas gerações de nosso tempo, a
importância de sua contribuição, a cuja linhagem pertence também, pelo
caráter da obra, a pintura, do mesmo período, de Wesley Duke Lee. Para os
artistas em questão, a continuidade de sua obra se impunha, mas poderia ter
sido dispensável a apresentação de sua produção atual.
E veio finalmente Fernando Botero, da Colômbia, embora as duas pri­
meiras telas de seu espaço sejam de longe as mais densas — e as demais, pin­
turas boterianas. Curioso o desaparecimento da carga energética de um ar­
tista a partir de determinado momento de sua produção restando apenas a
manutenção de sua “marca”, pois parece esvaziada de alma a sua pintura.
Embora cruel como constatação do final do ciclo criativo, trata-se de algo real
e perceptível nos mais variados artistas (e sobretudo entre os brasileiros do
primeiro e segundo tempos modernistas).
Um dos gigantes da fotografia da América Latina, Manuel Álvares Bra­
vo, parece ter tido sua apresentação como um trailer de sua vasta contribui­
ção, tão pouco difundida entre nós e, agora, com uma localização tão ingrata,

27
A PROPÓSITO DAS BIENAIS

tão malvista e apreciada. Um ambiente propício à observação da fotografia


poderia ter sido previsto para a justa projeção deste grande artista mexicano.
A exposição Wifredo Lam, por sua vez, foi um dos pontos altos da
Bienal, verdadeira descoberta para muitos artistas brasileiros, conforme pude­
mos constatar, apesar do reduzido número de telas: a dimensão deste artista
internacional, mestiço latino-americano a dominar o ambiente cosmopolita
europeu (como Roberto M atta hoje em dia), pode ser analisada e respeitada
pelo meio cultural de nosso país.
Mas, nesta Bienal, onde de tudo um pouco contribui para torná-la
atraente — e são as regras do jogo e não há crítica nenhuma a isto — , o ter­
ceiro andar apresentou representações “avulsas” bastante desiguais. Se, por um
lado, foi importante a presença maciça da gravura de literatura em cordel, do
acervo precioso da Universidade do Ceará — ainda a exigir um estudo à al­
tura — , atração de máxima curiosidade residiu, para os atentos, nas imagens
instrutivas do periódico Cabichui, publicado por ocasião da Guerra do Pa­
raguai, e que mostra a imagem da guerra e dos inimigos, em particular do
Brasil, a partir da ótica paraguaia.
O mesmo não poderia dizer do hibridismo do território limítrofe entre
as investigações visuais a partir dos avanços tecnológicos, com algumas curio­
sidades, porém sem nenhum dado artístico ou criativo do ponto de vista for­
mal propriamente dito, embora atraente para o público em geral. Ao mes­
mo tempo, causou-nos espécie a apresentação de inflável a nos remeter às
bolhas também infláveis de Marcelo Nitsche, criadas em meados dos anos 60
e exibidas na Bienal de São Paulo de 1967, sem qualquer repercussão inter­
nacional. Um a das mais criativas realizações de nosso meio artístico daquela
década, por certo, e que aparece agora, de maneira muito similar, quase vin­
te anos após sua apresentação nacional.
E difícil comentar tudo, assim como exigiria uma reflexão especial a re­
trospectiva do grupo Cobra, de colecionador residente em Caracas e que apre­
sentou neste segundo semestre, cuidadosamente preparadas, duas mostras de
sua coleção, uma na XVIII Bienal de São Paulo e outra no Museu Nacional
de Arte Moderna de Osaka, no Japão, a qual tivemos a oportunidade de ver
em novembro último.
A exposição de Maureen Bisilliat, “Futurista Aprendiz” — título tirado
da viagem à Amazônia brasileira e peruana (não boliviana) empreendida por

28
XVIII BIENAL — II. OS “H IST Ó R IC O S”, OS LATINO-AM ERICANOS E OS “A VU LSOS”

Mário de Andrade, dona Olívia Guedes Penteado (patronesse dos modernis­


tas brasileiros), sua sobrinha M ag e Dulce, filha de Tarsila — , traz como in­
teresse maior, a nosso ver, o espaço onde essas fotografias da viagem históri­
ca dos anos 20 são exibidas. Em torno, a ambientação exagerada de caverna
fantástica, com vestes, objetos e máscaras, parece mais um deslumbramento
para o turista europeu diante do “exotismo” sul-americano, um mundo má­
gico das práticas religiosas e estranhos comportamentos de um universo mar­
ginal, do que uma articulação didaticamente concebida para informar o vi­
sitante que pela primeira vez tem acesso a esse acervo reunido.

29
4 .

Anotações à margem da XVIII Bienal —


III. O Expressionismo no Brasil
[1986]

Não é tarefa fácil organizar a retrospectiva de uma tendência sem a de­


limitação rigorosa das datas dentro das quais se pretende enfocar a produção
que nela se encaixe ou com a qual existam afinidades. E difícil também a de­
finição dessas datas e a conceituação do limite das afinidades possíveis. Mes­
mo com todos esses cuidados tomados, a curadoria, por mais experiente que
seja, corre sempre o risco de sair arranhada no processo. É o preço da em­
preitada. Que sempre vale a pena como desafio. Mas, como disse certa vez o
crítico argentino Damián Bayón, quem expõe, se expõe.
A crítica maior que se pode fazer a esta tentativa de apresentar o Ex­
pressionismo no Brasil em nosso século, com o subtítulo “heranças e afini­
dades”, foi expandir em demasia o tempo. Em segundo lugar, quer-nos pa­
recer que o espaço foi, lamentavelmente, o menos resolvido: o percurso foi
mal concebido, as obras se viram em sucessão cansativa de corredores e es­
paços pequenos mal-arranjados em função das obras. Aqui se repete o gran­
de pecado do arquiteto que projetou as instalações no piso nobre (segundo
andar), colocando-as projetadas para o exterior da Bienal numa das faces do
edifício, como se fossem ser apreciadas como vitrines, e não para um espec­
tador que percorre o espaço interno do prédio, onde a relação deve ser não o
interior do exterior, mas do espectador diante da obra, ou desta diante do es­
pectador. Parece que o projeto do espaço, neste caso, foi mais prejudicial para
a mostra. Ou seja, resolvido sobre uma prancheta por metros lineares e não
de acordo com a especificidade de cada conjunto de trabalhos. O encontrar
uma obra de boa qualidade “atrás da porta”, assim, foi algo corrente nesta
exposição. Mas deixemos isso de lado, fundamental do ponto de vista mu-
seográfico, e cogitemos a respeito das obras propriamente ditas.

30
XVIII BIENAL — III. O EX PRESSION ISM O N O BRASIL

Uma dupla indagação de Sheila Leirner na apresentação do catálogo


desta mostra é (questionável em si): “Existe um imaginário expressionista bra­
sileiro? Seria este o lado selvagem e irracional de um Brasil conhecidamente
con cretista, p o sitiv ista?” .
O pragmatismo positivista brasileiro, utopia das classes dirigentes em
nosso país desde fins do século passado, se contrapõe ao clima caótico, sur­
realista, do desencontrado ambiente em que se acotovelam, sobrevivem, são
sugados e usufruem os dominados e os dominantes nesse imenso território.
Enquanto esta situação não sofrer alteração, o que só pode ocorrer diante de
uma conscientização generalizada dos brasileiros, o que se nos afigura como
meta bem distante diante de nossa realidade atual, “um Brasil conhecida­
mente concretista” inexiste. Pelo menos para quem conhece bem o país fora
das capitais, em seus estados mais distantes, sua população suburbana, o in­
terior mesmo de nosso estado. N a verdade, o Concretismo sempre foi uma
aspiração de identificação com o Primeiro Mundo, encarnado, no pós-guer-
ra, com os avanços de países industrializados, como a Suíça e a Alemanha,
uma revelação desejável da segunda metade dos anos 40. O Brasil nunca foi
concretista, e o racional em nosso meio artístico foi sempre limitado no es­
paço e no tempo: um desejo de fuga de nossa realidade, ou uma ânsia expli­
cável de matematizar os nossos problemas insolúveis, de construção de uma
sociedade nova, na qual ocorreria a integração harmoniosa das artes. “Uma
utopia necessária”, como disse Mário Pedrosa. Mas extremamente delimita­
da, correspondendo a uma época desenvolvimentista, tal como ocorrera na
Argentina e ocorreria posteriormente na Venezuela, com o boom do petró­
leo, a partir de fins dos anos 50.
N o Brasil, quais os artistas nascidos após 1925 que não tiveram uma fase
geométrica, com essas aspirações de perfeccionismo e rejeição do artesanal e
do emocional? Quais os que não tiveram uma fase de preocupação social?
Quais os que não foram expressionistas? Quais os que não apontam aqui e
ali no conjunto de sua produção um período de introspecção, mesmo sur-
realizante? N a verdade, raro é o artista entre nós que se mantém numa linha
única, de coerência. Não que a coerência seja uma meta a seguir dentro des­
te tumulto em que nos debatemos, mas raros são as Marina Caram, os Flá-
vio Shiró, os Lothar Charoux, os Grassmann, os Odriozola, os Iberê C a­
margo. A inquietação do artista brasileiro lança-o em tendências sucessivas,
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

não raro conflitantes entre si, talvez por razões de inexistência de um mercado
de arte que o prenda a um conformismo de aceitação, e nem sei se até posi­
tivas, demonstrativas, estas razões, da geléia ainda não endurecida de nossas
incertezas e indefinições, tanto éticas como culturais, sociais e econômicas.
Tudo isso para dizer que parece que quase todo o meio artístico brasi­
leiro, nessa abertura esgarçante, pode ser inserido nessa mostra. Mas por que
Antonio Bandeira?, como nos perguntava outro dia Roberto Pontual. Ao que
posso retorquir: e por que Odriozola?, e por que Boi?, e por que Brennand,
se não está aqui Farnese? Tudo é relativo, porém, e sem dúvida pareceu-nos
extremamente exagerado convidar também para a retrospectiva os artistas-
promessas de primeira juventude, já privilegiados para representar o Brasil no
andar inferior. A nosso ver, ainda prematuro incluí-los historicamente, se
apenas se iniciam em nosso meio artístico (como Cláudio Fonseca, Nuno Ra­
mos, Ana Horta, Fábio Miguez, Francisco Cunha, Daniel Senise), embora
fosse correta uma menção, no ensaio introdutório, às novas tendências e aos
nomes que emergem no cenário nacional. H á vacilaçÕes negativas, por ou­
tro lado, como a inclusão em dois tempos dos mesmos artistas (como foi o
caso de Gerchman, Antonio Henrique Amaral e Iberê Camargo, por exem­
plo), quando se deveria ter buscado outra solução para abordar a permanên­
cia ou retorno da tendência expressiva em suas obras. Por todas essas razões,
o que pudemos ver por ocasião da Bienal foi uma grande mostra de afinida­
des e heranças expressionistas no Brasil, em panorama, e não em retrospecti­
va, no sentido estrito e monográfico da palavra. Assim, o trabalho de Stella
Teixeira de Barros e Ivo Mesquita, nos quais reconheço o desejo de acertar,
trouxe uma contribuição valiosa para uma reflexão ainda por concluir, pois
certamente estes dois pesquisadores terão muitas insatisfações diante deste
projeto que tão bravamente destrincharam após o desaparecimento de Luiz
Carlos Daher.

32
A n o tações à m arg e m d a XVIII B ien al —
IV. O desafio d a g ran d e p ro m o ç ã o
[1986]

Um saldo positivo resulta da observação desta Bienal para com Roberto


Muylaert: nunca uma Bienal de São Paulo foi tão bem organizada quanto esta
XVIII Bienal, em detalhes que não escapam, em sua complexidade como
empreendimento, aos que militam na área de iniciativas culturais. Somente
um homem de empresas, com sua experiência, é capaz de projetar, cobrindo
tantas áreas, todas as minúcias que fizeram, para o público e visitantes con­
vidados, sentir que a Bienal era um evento sob controle de sua direção.
Exemplo disso é sua apresentação escrita para o evento, na qual garante
200 mil visitantes até a última semana da grande exposição, baseando-se em
levantamentos prévios, contatos já firmados, e garantindo, mediante as pro­
moções previstas, esse montante de visitantes. Com a exceção da Grande
Bienal do IV Centenário, de 1953-1954, em que o evento foi um aconteci­
mento de primeira grandeza internacional, com artistas que nunca mais po­
deremos, por certo, reunir num país da América Latina, esta foi a Bienal da
qual se pode dizer que teve uma visitação regular, do primeiro ao seu último
dia de exibição. Não sofreu, como todas as demais até agora, o esvaziamento
tácito depois de duas semanas de abertura, após ter sido vista pelo diminuto
meio artístico e os eventuais interessados que nem se sabe por que ali entra­
vam ou o que viam.
Isto significa que a Fundação Bienal de São Paulo (FBSP) se deu conta,
através de um homem de iniciativa, de que a crise de público é uma resposta
à ausência de divulgação, ou seja, do domínio dos meios de comunicação de
massa. Participação com que a FBSP contou com toda nitidez, através de um
profissional habilitado, que fez dela um êxito de público, independente até
mesmo de seu conteúdo artístico, válido para os iniciados.

33
A PR O PÚ SITO DAS BIENAIS

Assim, do anúncio em grande estilo para a imprensa, Conselho e visi­


tantes ilustres, alguns meses antes de sua abertura, informativo de suas dire­
trizes nas diversas áreas, encontro civilizado e impositivo de sua organização,
à abertura ao evento com grandeza — embora não tivesse faltado uma pita­
da de violência, pouco desejável para a Nova República, frente a jovens de
nenhuma periculosidade — , aos catálogos bem programados e bem impres­
sos, seguiu-se uma impressionante avalanche de promoções para a melhor
difusão do evento cultural: camisetas, broches, canetas, “Visite a Bienal” em
nossas contas de luz, reportagens durante todos os dias do evento em toda a
imprensa escrita, falada e televisionada, mobilizada tanto para sua divulga­
ção como para uma operação de guerra, desde antes de sua inauguração até
seu encerramento final.
N a área promocional, nada é inocente quando o impacto é tão inten­
so: deve-se então conceder que a habilidade e o poder atuaram juntos para
tornar no mínimo mais divulgado o evento em geral tão restrito a um nú­
mero pequeno de pessoas. Pode-se argumentar que pouco mais de 200 mil
visitantes não é comparável à afluência à Bienal de Havana, capital com pouco
mais de um milhão e meio de habitantes, se levamos em conta que a grande
São Paulo tem cerca de 12 milhões de almas. Mas pode representar o come­
ço de uma divulgação intensa.
E claro que envolvendo todo esse esforço promocional vem a frase en­
contrada por Muylaert para definir o empreendimento — “A Bienal é uma
festa” — , caracterizando-a como evento otimista, positivo, apetitoso como
programa de lazer. E a exposição como espetáculo, referida por Sheila Leirner
em sua apresentação do evento, está aqui bem marcada e se abre no Brasil
com esta Bienal, depois de anos de existência na Europa, Estados Unidos e
México, com as exposições de Tesouros de Tutankamón, Picasso, Cézanne,
Moore, entre tantas outras no Centro Georges Pompidou, em Paris.
N o decorrer do processo, temos a lamentar apenas os feridos e atrope­
lados pela passagem do trator promocional da Bienal: os museus e as entida­
des culturais que programaram exposições em sua contínua regularidade e
que, em função da Bienal, não tiveram a divulgação correspondente a seus
esforços pela imprensa, e, portanto, ficaram às moscas, pois a relação é dire­
ta, em função dos meios de comunicação de massa estarem mobilizados to­
talmente — ou quase — na empreitada de apoio à iniciativa de Muylaert.

34
XVIII BIENAL — IV. O DESAFIO DA G RA N D E PROMOÇÃO

Que provavelmente tem a chave do filtro mágico que lhe abriu não apenas o
capital da iniciativa privada como desses meios de divulgação. Ou talvez seja
tudo isso o resultado do antigo pensamento de que “dinheiro faz dinheiro”,
e que portanto as coisas se atrelam quando existem as possibilidades de fi­
nanciá-las, e, algo muito importante e respeitável, a organização por trás do
em p re en d im en to .
O setor de Arte-Educação pareceu-nos, por outro lado, de suma impor­
tância nesta Bienal, e o resultado de seu trabalho neste evento deve ser exal­
tado, não apenas em função do número de visitantes registrado, porém pela
iniciação à fruição e fazer artístico, impecavelmente exibido aos visitantes ao
final da Bienal, em montagem agradável e reveladora da sensibilidade dos
visitantes e monitores.
Vivemos um momento bastante auspicioso no Brasil, e particularmen­
te em São Paulo, onde a iniciativa privada se abre, com interesse, aos projetos
culturais, dispondo-se a torná-los realizações. Não é a primeira nem a segunda
vez que abordamos este tema que nos parece preocupante pelo desafio que
encerra. Acreditamos que existam hoje mais empresas dispostas a investir no
meio cultural que projetos de fôlego ou de bom nível para receberem esse fi­
nanciamento. O que torna muito grave a responsabilidade de intelectuais,
críticos, pesquisadores e dirigentes de entidades culturais diante de uma si­
tuação que tende a tornar-se mais séria, caso seja passada a Lei Sarney para
deduções de imposto de renda mediante esse apoio. As autoridades deveriam
atentar, isso sim, seria para um trabalho a longo termo (mas que urge já ser
iniciado) para a formação de animadores culturais, promotores e organi­
zadores, ligados à elaboração, coordenação e acompanhamento de projetos.
De nível universitário, dinâmicos, e com ambições que os possam levar in­
clusive à arena internacional, e, para tanto, com conhecimento de idiomas e
gradativo entrosamento na área cultural de outros países. Caso não se realize
essa conscientização, correremos o risco, já perceptível em escala inicial, de
vermos um sem-número de publicações e eventos magnificamente financia­
dos e absolutamente vazios como contribuição para nosso autoconhecimento
do meio cultural, e nossa necessária divulgação no exterior.
Ou seja, o perigo existente seria o da promoção mais preparada que os
meios da cultura, e, portanto, passível de manipulação indevida diante das
possibilidades de realização empresarial. O u o meio intelectual se torna mais

35
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

fértil, mais rigoroso e mais prolífico através de novos profissionais qualifica­


dos, ou a parada estará perdida para uma contribuição séria que a iniciativa
privada está oferecendo.
Estas reflexões nos vêm à mente diante da empreitada realmente positi­
va que, como saldo, nos pareceu esta Bienal, sob a entusiasta curadoria de
Sheila Leirner, batismo de fogo em organização de exposições. Pois após esta
Bienal, com este nível de promoção e organização, difícil é imaginar um re­
trocesso na montagem dos próximos eventos.

36
6.

Indagações em torno da XIX Bienal


[1987]

Tendo testemunhado já dezenove Bienais, nos parece tão impressionan­


te quanto miraculosa a constância desse grande evento internacional de São
Paulo, em país onde a descontinuidade parece ser antes a tônica dos proje­
tos, das revistas, da qualidade de obra dos artistas etc., no que tange ao meio
cultural brasileiro. Ou seja, o que permanece, como realização e manuten­
ção de nível qualitativo, deve ser observado com atenção e respeito. Isto é
também um elogio à Bienal de São Paulo, embora saibamos que é errôneo
se pensar numa tradição de “fazer Bienais”, embora isto exista, relativamen­
te, na forma de compromisso, posto que cada Bienal é uma nova experiên­
cia que se empreende, no tocante aos aspectos de sua organização.
Se já fomos fervorosos entusiastas das primeiras Bienais, passamos, na
seqüência, por um período de crítica a elas nos anos 60, por considerar com
suspeita esse figurino que nos chegava bienalmente com os modelos da moda
artística, visível, a cada dois anos, nos artistas brasileiros que expunham no
Ibirapuera. Nos anos 70, só se podia, é claro, denunciar a época “das vacas
magras” da Bienal, sem curadoria, com as Bienais nacionais nos anos pares,
como um grande salão nacional, sem contribuir maiormente às representa­
ções imensas do Brasil. A Bienal Latino-Americana de 1978 foi uma tentati­
va de sair desse impasse, e chegamos a desejar vê-la como um caráter especí­
fico das Bienais de São Paulo. Não aprovou. Mas a Bienal adquiriu hoje ma­
turidade, a partir das edições dos anos 80, que nos remetem ao desejado
profissionalismo numa entidade desse nível.
Assim, depois de ver este ano a Documenta de Kassel, percebe-se que a
Bienal de São Paulo, de fato, apresenta uma abertura, um horizonte, que nem
a Bienal de Veneza ou a Documenta podem apresentar, por sua localização
européia. Ela adquire uma amplidão que pode ou não interessar ao crítico e

37
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

aos artistas mais sofisticados — do Brasil ou do exterior — que a visitam, mas


que está aí, a oferecer um panorama do que se passa em arte hoje em dia (com
toda a carga de cansaço inerente a essas manifestações). Evidentemente, isso
só é possível por ser a Bienal de São Paulo, Brasil, país da América Latina,
no Terceiro Mundo, importadores de informação desde o nosso surgimento
(conforme já escreveu uma estudiosa brasileira, com razão, o Brasil já nasce
Colônia), importadores de bibliografias e tendências, de comportamento e
filosofias, até o momento em que economicamente se adquire maturidade
suficiente para nossa afirmação como identidade. Até lá, nos interessaremos
vivamente por tudo o que ocorre à nossa volta, e nesse vício reside igualmente
uma qualidade de nosso meio artístico e intelectual que nossos colegas dos
grandes centros hegemônicos não possuem, pois conhecem a si próprios e a
seus competidores mais fortes e ignoram pomposamente tudo o mais.
Estas considerações não impedem que se perceba que não é necessário
que este evento seja Bienal, e sim Trienal, nao apenas por razões de ordem
econômica como de maneira a garantir uma expectativa maior, com um
espacejamento que não retiraria sua permanência. Porém, seria, sem dúvida,
bem-vinda por todos os países participantes, que, por vezes, reduzem a im­
portância de seus envios em função, exatamente, da solicitação excessiva.
A questão que nos parece de relevância maior é a da restauração dos prê­
mios de aquisição para que obras de interesse, selecionadas por um júri in­
ternacional, permaneçam em museus brasileiros que já possuem uma cole­
ção contemporânea estrangeira (M AC-USP, MAM-RJ). Doados esses prê­
mios por empresas que poderiam deduzir sua generosidade do imposto de
renda, essa iniciativa seria fonte para atualização e alimentação de nossas co­
leções, datadas e anêmicas e, até o momento, sem orçamentos compatíveis
com os fins desses museus.
Mas a transformação das manifestações artísticas após a “morte da arte”
provoca também no visitante da Bienal um questionamento inevitável sobre
os rumos que assumiu a expressão visual nos artistas contemporâneos e tem
influência direta sobre a espécie de evento que temos hoje diante dos olhos.
É claro que não nos referimos exclusivamente à Bienal de São Paulo, mas sim
a todas as grandes manifestações internacionais do gênero (no trem de Frank­
furt para Kassel, ao perguntar a um companheiro de compartimento se já ti­
nha ido visitar a exposição, recebi uma resposta seca do jovem alemão de uns

38
IN DAGAÇÕES EM T O R N O DA X IX BIENAL

25 anos: “Não. Eu gosto de arte verdadeira.”). Por outro lado, a exposição


como espetáculo, vigente desde a década passada a partir de Nova York e
Paris torna desejável essa grandiosidade no evento, mais discernível na últi­
ma Bienal do que nesta. Assim, anos-luz do escândalo do 1° Prêmio Inter­
nacional de Pintura dado em 1951 a Namorados do café (1950), de Roger
Chastel (hoje no M AC), o que se capta antes, ao contrário, é certa frustra­
ção do público que não encontra nada de extraordinário nesta Bienal. Ou
seja, como outros já o disseram com palavras diferentes, houve tantas van­
guardas que mesmo o público não iniciado hoje já está neutralizado diante
de eventuais “transgressões” ou audácias por parte dos artistas. Talvez esse seja
um dos motivos que faz com que certos artistas comecem novamente a se
preocupar com o métier, tipo citacionistas italianos, num maneirismo fora de
época, como reação diante da atitude do público que está suficientemente
anestesiado para sentir alguma coisa diante das “afrontas” que o abalaram há
décadas. Ou, quem sabe, para os jovens, as audácias maiores, por várias ra­
zões, estão mais ligadas ao som, aos grupos de rock ou às tendências dele de­
correntes mais recentes? Algo, entretanto, é indiscutível: mais que em Vene­
za ou Kassel (porque na Europa, onde tudo é organizado, há espaço para cada
atividade, que complementa as demais numa sociedade mais harmônica,
mesmo quando se trata de exorbitância), numa macroexposição como a Bie­
nal, o choque é mais violento, entre nós, em vista das contradições do meio
ambiente, da virulenta luta do povão pela sobrevivência, ou pelo sucesso pro­
fissional, assim como em vista da desinformação total por parte de 90% do
grande público visitante.
Assim, o panorama das atividades que uma Bienal exibe — o fazer ar­
tístico, lúdico e permissivo em seu “tudo-ousar” aparente, “aparente”, frisa­
mos, “sem vinculação” com o universo utilitário e consumista que nos en­
volve, parece, de fato, um espaço dedicado ao sonho (ou pesadelo, na impo­
nente orquestração sinfônica de Kiefer), ou à reflexão existencial por via in­
tuitiva (Roman Opalka), ou às catarses mais agressivas em seu mau gosto
(Nakle, do Uruguai), ou ao resgate de uma realidade criativa sem presunção
de artisticidade (nas fachadas das casas nordestinas projetadas em fotografias
por Anna Mariani); e mesmo ainda no intelectualismo mais elaborado (Iannis
Kounellis, distante de suas performances do tempo de When attitude becomes
forrn, por volta de 1969). Como a demonstrar ao visitante incauto (além dos
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

escolares, quem mais? Outro dia um visitante mencionava, ao sair da Bienal,


vindo em excursão de Sorocaba, que no ano passado a visita fora mais diver­
tida, pois a U D — Feira de Utilidades Domésticas — fora a escolhida para
a viagem a São Paulo...) que existe sempre em nosso universo pragmático um
espaço para voltar-se para os demônios interiores ou para a livre expressão e
a especulação formal sem aplicação imediata.
E se tomarmos como ponto crucial que a Bienal realmente é visitada
sobretudo por despreparados — é o nosso público! — e por um micronúcleo
de iniciados aos quais ela se destina, na verdade, e o aceitamos como ponto
pacífico, não há nisso tudo uma grande contradição? Quem sabe. D aí talvez
a procedência da relação da arte com a utopia, escolhida por Sheila Leirner
como tema deste evento de 1987. O u então trata-se de levar em conta, seria­
mente, o papel formador da Bienal, no sentido do processo de preparo de
uma mentalidade respeitosa em relação às manifestações artísticas de nosso
tempo. Mas que manifestações?
Como nos lembra Baudrillard em sua palestra em São Paulo, na di­
ficuldade de assinalar “obras de arte” quando não há mais parâmetros para
reconhecer o talento, nem há tampouco julgamento de valor, observa-se
simultaneamente um movimento convulsivo e uma inércia na arte contem­
porânea; assiste-se à ruptura com a estética quando ocorre a estetização geral
das coisas. Assim, vivemos num tempo em que há, como diz ele, uma proli­
feração de eventos, mas somos iconoclastas, não porque destruamos imagens,
mas por fabricarmos uma profusão de imagens em que não há nada para se
ver. Ausência de formas, ausência de estética, sem necessidade de nos colo­
carmos a pergunta se há ou não o Belo, como fizemos em outras épocas, mas
continua-se assistindo a um conjunto de ritos habituais e, neste processo, es­
tamos condenados a uma espécie de indiferença... Em um tipo de crise, ou
de situação que, na verdade, abrange, além da arte, o comportamento, a po­
lítica, o sexo, a publicidade; enfim, é vigente em todas as áreas da atividade
humana.
É inevitável estremecer diante das hordas de estudantes de primeiro e
segundo graus que invadem o espaço da Bienal como um playcenter, des­
governados em sua ansiedade, numa velocidade que nunca os curadores, co­
missários e artistas jamais realizam ao projetar seus espaços e eventos. Esse cli­
ma, entretanto, é coerente com a rapidez da execução da grande maioria dos

40
IN DA G AÇÕ ES EM T O R N O DA X IX BIENAL

trabalhos expostos, com o timing de nossa época, ou com a média de idade


dos artistas, em sua grande parte nascidos na década de 50.
O que pode significar a velocidade e a presença jovem cada vez mais
marcantes numa Bienal de arte contemporânea? Uma íntima ligação do pon­
to de vista do ritmo, como tempo real; além do que, a valorização dos jovens
traz implícita a abertura de espaços internacionais para a “promessa” e não
para a realização comprovada através de uma trajetória, em detrimento de
artistas reconhecidos de nossa época.
N a verdade, se na “aldeia global” se desbarataram totalmente as tradi­
ções regionais da prática artística — antes dizíamos que a Inglaterra era terra
de poetas e escultores; a França, de escritores; a Itália, de pintores e de músi­
cos; a Alemanha, de músicos e filósofos etc. — , inclusive por tendências e
gêneros (a tradição realista norte-americana, o paisagismo holandês, o cere-
bralismo na arte francesa, o surrealismo entre os flamengos), assistimos no
mundo das artes ao rompimento das inclinações genuínas. Ou seja, os no­
vos que se encaminham para a arte e que emergem no cenário internacional
como na jogada tratorizada das transvanguardas, ou aceitam as regras infer­
nais do jogo da arena do gosto imposto/insinuado, ou não têm possibilidade
de outra alternativa senão recolher-se ao anonimato. E quando o momento,
como agora, é de transição, quando tudo é válido dentro das revivescências
de tendências, torna-se extremamente difícil ao artista aprender a se recolher
dentro de si para tentar produzir um discurso pessoal.

OS ARTISTAS DA BIENAL DE 1987

Um a Bienal como a de São Paulo, se visitada com atenção, oferece ao


visitante interessantes observações do ponto de vista da padronização das
preocupações formais e temáticas, ou do estágio dos meios artísticos em paí­
ses distantes dos nossos roteiros habituais de viagens, como Bangladesh, An­
gola, Cuba, Panamá, Bulgária, Egito, Porto Rico e Romênia, por exemplo,
que nos enviaram um grande número de obras e artistas, a expressar a viva­
cidade de seu ambiente cultural. Mas pensada em termos de “espetáculo”,
pressupõe-se, na Bienal, a existência de “estrelas” . E Kiefer apresenta-se como
‘a personalidade” da X IX Bienal de São Paulo. Seu destaque, sem contar a

41
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

qualidade dramática e poderosa de sua obra, talvez se deva, igualménte, à au­


sência de outros grandes nomes. N o entanto, um deles é Iannis Kounellis, o
grego-italiano, em evidência desde sua atuação na vanguarda dos anos 60. Por
trás de seus trabalhos, arquiteturados conceitualmente, Kounellis utiliza ma­
teriais que hoje são correntes no meio artístico internacional (chumbo, estopa,
parafina, carvão, ferro, metal). E nesta sua produção atual, o material se ex­
põe, a partir de um desenho como projeto, reordenado e transfigurado pelo
artista em sóbria alquimia construtiva.
No entanto, ao ver as participações mais instigantes desta Bienal, per­
cebemos o quão longe estamos do ambiente do artista no qual as telas, chas­
sis e o cheiro das tintas eram referenciais obrigatórios para os nossos senti­
dos. Hoje os materiais nos remetem não a ateliês, mas a oficinas, vinculadas
a usinas industriais, como se percebe no resgate de grande impacto da insta­
lação do austríaco Erwin Wurm, que trabalha com objets trouvés de sucata reu­
nidos em assemblages, nas quais o estranhamento toca a sensibilidade do ob­
servador, inclusive na acoplagem das peças, a nos revelar corpos unificados
pela cor “de fábrica”, estetizados de forma singular na espacialidade estuda­
da com que o artista distribui por sua área as diversas peças, na criação de um
“clima” próprio na cenografia concebida.
Essa vinculação com a oficina e seu instrumental, visível em vários ar­
tistas, especulando problemas de equilíbrio, tensão, construção, ou em re-
batimento visual em relação à arquitetura, que já vimos na última Bienal, na
obra de Meyer, dos Estados Unidos, reaparece neste evento, seja nos dolmens
de José Pedro Croft, de Portugal, com placas empilhadas de pedra mármo­
re, algumas até marcadas por delicados relevos, seja nos materiais “ao dia”
(madeira, feltro, carvão) de Ebizuka, do Japão, ou ainda nas construções de
sucata de madeira de Kari Cavén, da Finlândia; e também Rui Sanches, de
Portugal, que apresenta estruturas com ripas e dobradiças e aplicação de lâm­
padas. Mas talvez nesta vertente de instalações a partir de material natural
(madeira, pedra), a contribuição mais interessante seja a instalação de Singer,
dos Estados Unidos, em cujo trabalho ripas e pedras se alternam na busca de
delicado equilíbrio, com ritmos verticais/horizontais, diante do observador
atento à fragilidade mais do que efêmera desta construção que tangencia o
rito, por seu próprio título, bem como na colocação dos diversos elementos,
a partir de um projeto que se refaz a cada montagem. O trabalho de Singer é

42
IN DAGAÇÕES EM TO R N O DA X IX BIENAL

a única participação que se destaca do envio americano, neste ano inexpli­


cavelmente débil — além deste artista, compuseram a representação dos Es­
tados Unidos os neons de Antonakos, que pouco ou nada acrescentam a esse
meio já tão explorado há vinte anos por Dan Flavin ou Chryssa, da pintura
panorâmica abstrata de Pat Steir e do tão gigantesco quanto inexpressivo am­
biente de Stackhouse.
Por sua vez, a sutileza do gesto e da transparência não deixa de estar pre­
sente na instalação com desenhos de Munoz, da Colômbia, em cujo traba­
lho o suporte industrial banalizado é valorizado por sua transfiguração atra­
vés de uma técnica exemplar, que individualiza a atmosfera obtida em seu es­
paço, sem cair no maneirismo artificioso. Essas mesmas qualidades de gesto
e transparência poderiam ser aplicadas ao se mencionar o envio de Lyth, da
Suécia — um pintor maduro — , na finura de sua expressão abstrata a partir
de uma interioridade. U m a obra intimista, visível na Bienal exclusivamente
pelo cuidado com sua apresentação, em meio ao “ruído” ensurdecedor das
cenográficas instalações à sua volta.
Que não se pense, contudo, que nesta Bienal desaparece a arte como
denúncia, ou ligada à problemática antropológica ou ecológica. O tema maior
da última Documenta de Kassel — da responsabilidade social do artista — ,
reaparece aqui em obras de artistas do Terceiro Mundo, como em artistas de
Angola, no barroco excessivo do “trem-fantasma” de Nakle, do Uruguai, em
obras da Polônia, assim como em Brandão e Juraci Dórea, do Brasil. Em meio
a essas tendências, sobressai a sobriedade plena de odores da terra de Marta
Palau, do México, ao mesmo tempo que Juraci Dórea vem mais uma vez
demonstrar que arte-documento não é artes visuais (mas neste vale-tudo de
hoje pode-se exigir essa diferenciação?); embora nos interesse eventualmente
como uma proposta de trabalho social através da arte. O mesmo poder-se-ia
dizer a José Bedia, de Cuba, pois o fato de estar envolvido há anos com a
cultura e a problemática indígena, sem maiores preocupações de ordem for­
mal, debilita sua contribuição como as de outros dessa tendência. Mas o ex­
cesso parece ser, nesta Bienal, o pecado de vários jovens artistas, ao apresen­
tarem obras que parecem versões brasileiras inspiradas, aparentemente, em
Joseph Beuys, como é o caso de Brandão: instalação superacumulada com um
universo para decodificações insinuantes (carne-seca, mel em favo, pêlo de
coelho, buchas, pergaminhos, o indefectível carvão, madeira, arame etc.).
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

Já um artista que enxuga sua instalação reduzindo-a a um mínimo pos­


sível de elementos para privilegiar sua metáfora é, sem dúvida, Alfredo Jaar,
do Chile, que vive em Nova York e cujo trabalho conhecemos em Kassel,
onde foi o único latino-americano convidado(I). Nesta Bienal, com ironia,
coloca com clareza atributos do meio artístico: molduras — integradas ao
agressor, ou seja, vinculadas aos fazedores de conflitos, contra o mundo da
natureza e da prosperidade.

A PINTURA NA BIENAL

Também não é verdade (o que pode parecer por alguns aspectos da X IX


Bienal aqui comentados) que inexiste a pintura nesta edição de 1987. Ao
contrário: ela é visível, heterogênea, qualitativamente falando, sem destaques
maiores -— além da força de Kiefer e da presença de Opalka — , desencontra­
da em suas tendências, expondo ao visitante um momento de crise ou transi­
ção (quando não ocorre nenhum “ismo” com a carga de poder mercadológico
impondo-se). À pintura imponente da Sicília, da Espanha, se contrapõe um
transvanguardista como Luciano Castelli (Itália), ou a presença marcante de
Clorindo Testa (Argentina), além de termos anotado Larrain (Chile), e ho­
landeses de especial interesse como Han Schuil, além do belga Maet. E, de
repente, nossa atenção se detém no figurativo expressivo de Gerard Garouste
(França), com sua conotação simbolista. O u seja, a pintura a ilustrar temas
abordados de forma alegórica, como em Kiefer, assunto sobre o qual “disser-
ta” visualmente o pintor. Voltamos, no caso de Kiefer, à pintura que repre­
senta uma idéia, desde a alegoria até a pintura, através da paleta alada, às
mulheres da Revolução, à Mesopotâmia — Tigre e Eufrates — , à Via Lác­
tea, em obras de clima sinistro, temperaturas intensas, dramáticas em sua for­
ça que se detém na agressividade da matéria, vigorosa em sua fatura mista. E
a explorar, no contraste do branco e do negro, a comunicabilidade mais di­
reta para suas propostas visuais de grandiloqüência inaudita.
Ao lado desses pintores, há espaço para o universo à parte de um Ra-
mirez Villamizar, trabalhando agora com massas, espessas lâminas de ferro
soldadas, estruturas deixando a nu o material duro, planos geométricos, agora
mais compactos que seus jogos com o espaço, de dez anos atrás.

44
IN DA G AÇÕ ES EM TO R N O DA X IX BIENAL

Diante do perfeccionismo do hiper-realismo topográfico da Família


Boyle se impõe a singularidade emocional da obra aparentemente “vazia” de
Roman Opalka, na terribilitá de sua pintura obsessiva, a nos falar do tempo,
a nos remeter inevitavelmente à morte — obra dolorosa que expõe o proces­
so a que está ligada a inexorável trajetória humana, a inutilidade do fazer,
como o mito de Sísifo. Conforme atesta o próprio autor: “Não estou diante
do cavalete como um artista que se questiona sobre o que vai empreender,
como vai ser seu próximo quadro, como terminá-lo, que diferença formal ou
conceituai lhe dar, formulando incessantemente perguntas sobre a pertinên­
cia da novidade e a qualidade de minhas pesquisas”. E neste “vazio”, que se­
ria o tédio de hoje já aludido por Juan Acha, embora “cheio de presença”,
sua obra nos mostra, nesta segunda participação na Bienal de São Paulo, a
raridade, cada dia maior, do artista com universo próprio, embora conceituai
como postura.
Por sua vez, as microesculturas do grego George Lappas nos remetem
ao espaço, com seus recortes de chapa de ferro, através da multiplicidade
imagética que o artista parece ludicamente buscar, de certa maneira a repro­
duzir intuitivamente réplicas ou variações das tendências formais dos que tra­
balham com o tridimensional na arte contemporânea. Vocabulário extenso,
em comentário que também pode ser irônico diante do domínio do quanti­
tativo em nosso tempo.
Se a América Latina se faz notar na pintura — Peru, Chile, Equador,
por exemplo — , é importante revelar o cuidado observado nos envios do
México, da Polônia, de Luxemburgo, de Cuba e mesmo da Argentina.
E se Lyth, da Suécia, se perde diante do caráter assumido pelo espaço
cenográfico das Bienais internacionais, idêntica observação é válida para as
fotografias do suíço Bosshardt sobre Alcântara, o que nos leva a refletir so­
bre a forma equivocada da Bienal de São Paulo tratar os envios antológicos
de maneira igualitária, como se fossem artistas contemporâneos.
Por que não assumir as salas especiais? Referimo-nos às representações
de Remedios Varo, Siqueiros, Domela, Amélia Peláez e Mareei Duchamp.
Embora também se possa incluir nessa crítica o conjunto minimalista e o es­
paço concedido aos artistas brasileiros de tendência mágica ou fantástica.
Quando o México nos envia um belo conjunto de Remedios Varo, sig­
nificativa representante do movimento surrealista que lá emerge a partir de

45
A PROPÓSITO DAS BIENAIS

1940, como uma reação ao muralismo, com suas telas de pequenas dimen­
sões, óleo sobre madeira, em pintura filigranada de detalhes, também nesses
aspectos a nos lembrar os flamengos do século XV, como explicar que a Bienal
não tenha tido o cuidado de preparar-lhe um espaço arquitetônico diferencia­
do? E a mesma pergunta que nos fazemos diante do envio de quatro pinturas
de Siqueiros, ou de Amélia Peláez e de Mareei Duchamp, todos a demandar
uma introdução didática para o visitante desavisado: quem são estes artistas?,
por que estas obras?, qual seu interesse no contexto da arte contemporânea?,
como não ter cogitado de um tratamento diverso do espaço, a distingui-los
dos demais artistas, em meio aos quais nos deparamos com suas obras?
Desde as primeiras Bienais, “sala especial” é sala especial, no catálogo
inclusive, por que então tentar desfazer o sentido da homenagem ou exposi­
ção didática? No corredor de Amélia Peláez parece-nos mais grave essa au­
sência de diferenciação, posto que foram enviados 55 trabalhos, de 1928 a
1967, inclusive com quatro belas peças, “fora do tempo”, datadas de 1933,
seu período cubista — colagem e lápis — , de finura que ombreia, como
modernidade, com os melhores D i Cavalcanti em desenho dos anos 20, os
mais refinados Xul Solar ou Pettoruti desse período, com o melhor e rarís-
simo Gomide dessa década (coleção Gilberto Chateaubriand), ou com os tra­
balhos cubistas de Rivera, a nos mostrar o elevado nível de métier e com­
preensão do fenômeno cubista por artistas da América Latina, embora essas
técnicas, para os artistas da Escola de Paris, tivessem ocorrido na segunda
década do século. Mesmo que suas obras posteriores não possuam um inte­
resse maior, no caso de Peláez trata-se, a nosso ver, de tentar valorizar, mu-
seograficamente, a representação enviada.
Descabida é a presença, sem explicações, das quatro pinturas de Siquei­
ros, e o dizemos em função do alto custo do seguro para sua vinda enigmática.
Domela, igualmente, é mais um dos artistas antológicos, aqui representados
por produção tardia (anos 50 e 60), e que, no despreparo da apresentação,
pode chocar a uns raríssimos que conhecem sua trajetória coerente de ex-par-
ticipante do grupo De Stijl, permanecendo totalmente despercebido como
personalidade à maioria dos visitantes.
O mesmo, é claro, se poderia dizer de Mareei Duchamp, abridor de ca­
minhos e mito da arte em nosso século XX; tão pobremente representado na
Bienal que é como se tivesse o organizador desse espaço se disposto a desfa­

46
IN DAG AÇÕES EM TO R N O DA X IX BIENAL

zer o “mito Duchamp” . Adorada e seguida pelas vanguardas desde a segun­


da década do século XX, a obra de Duchamp não resiste a uma mal realiza­
da exposição, a menos que se trate de um observador iniciado e cúmplice. A
impressão que se tem é que Arturo Schwarz despendurou de salas e corre­
dores de sua casa na Itália alguns objetos emoldurados, colocou-os numa va-
lise e pendurou-os aqui em São Paulo, sem outra preocupação de apresen­
tação. Preocupação que, na verdade, a Bienal deveria, do ponto de vista
museográfico, ter tido. Porém, também quando se vai a Filadélfia expres­
samente para ver a grande sala do museu dessa cidade — a maior reunião
de obras de Duchamp — , fica-se com uma impressão de frustração, mesmo
diante de Etant donnés (1966). O importante em Duchamp foi seu ato inau­
gural, de apropriação, diante de ready mades, a mudar o caminho da arte, des-
mistificando a obra de autor e abrindo um caminho novo, da antiarte. Ve­
mos, contudo, ao longo do tempo, que à desmistificação do artista, reconhe­
cido até então, se seguiu um outro tipo de “aura” a envolver seu nome, exa­
tamente a partir de sua retirada da pintura. Pois, como se sabe, ele perma­
neceu no circuito artístico, inclusive como ligação permanente entre Paris e
Nova York, a colocar nos Estados Unidos as obras de seus colegas franceses
da Escola de Paris. O que não deixa de ser também uma contradição nesta
genial personalidade...
Entendemos que a Bienal de São Paulo pode e deve apresentar salas
antológicas — no passado isto já constituiu uma polêmica — , pois são pou­
cas as exposições importantes da História da Arte contemporânea que nos
chegam, e sem regularidade (estamos, neste aspecto, distantes do México que
pode apresentar retrospectiva de Henry Moore ou obras cubistas do Museu
Hermitage, de Leningrado). Mostras que não vêm ao Brasil pela nossa au­
sência de tradição museística, de articulação internacional regular, e de or­
ganização sedimentada ao longo dos anos.
O vídeo e a música, nesta Bienal, embora discretamente apresentados,
não tiveram, como todo o evento, o apoio que deveriam ter merecido dos
meios de comunicação de massa, e da imprensa diária, como em especial da
TV. Não bastam, como todos sabemos, uma súbita cobertura no vernissage
e umas raras chamadas na televisão. O apoio deveria ser como uma campa­
nha, um concerto de várias empresas, quiçá obtendo esse espaço como se as­
sistiu na última Bienal, com a garra de Roberto Muylaert.

47
A PR O PÓ SITO DAS BIENAIS

BRASIL: A OPÇÃO PELOS NOVOS

E o Brasil? Mais uma vez assistimos à opção, considerado o evento como


um todo, pelos artistas jovens, evidente que em conseqüência de a Bienal
desejar enfocar as últimas tendências da arte e pelo fato de os novos estarem
sempre expressando as novas vogas. Embora pessoalmente sintamos, cada vez
mais, que um artista somente interessa a partir da manutenção do nível de
criatividade de seu trabalho ao longo dos anos. Toda promessa tem seu fas­
cínio e, na verdade, as últimas Bienais têm enfatizado os valores no instante
de sua emergência. D e uma geração com trajetória mais sedimentada, estão
presentes somente Michalany, Dudi M aia Rosa e Ivens Machado.
A nosso ver, o grande desafio que a Bienal apresenta a um artista é, sem
dúvida, o problema da escala. Raros são os que experimentam satisfação em
relação ao espaço, sobretudo, no caso das instalações. Assim, se Angelo Ve-
nosa soube valorizar seus trabalhos na dosagem correta de número, força e
dimensão das peças, o mesmo não poderíamos dizer de Ana Maria Tavares,
cujo projeto foi, a nosso ver, prejudicado pelas paredes recobertas de azule­
jos a sobrecarregar sua instalação. Milton Machado aparece-nos como uma
surpresa, explorando o impacto visual-auditivo do empilhamento de oito
mapotecas sobre estrutura tubular. Trabalho conceituai, a partir de ready
mades, apropriados pelo artista. A instalação em sua concisão é completada
com música eletroacústica composta por Rodolfo César.
Por outro lado, não podemos deixar de registrar que Albert Hien pare­
ce ter provocado muitos admiradores com seu trabalho visto na Bienal de
1985, mas, desses seguidores, por certo Isa Pini é a que nos traz a obra mais
criativa como forma e ocupação do espaço, embora incompleta — o que pode
parecer inaceitável...
De alta criatividade, informadíssimo, Tunga nao chegou a apresentar
um resultado réussi em seu corpo-a-corpo com o pé direito total do espaço
da Bienal, com uma peça que pode impressionar pela presença dos materiais,
mas não por sua concepção, chegando a incomodar vivamente a pequena ca­
beça figurativa presente na composição. A descrição literária do trabalho pelo
artista pode, eventualmente, fornecer uma chave para a leitura da peça gigan­
tesca, porém a poética desse móvel primeiro não consegue transmitir, atra­
IN DAGAÇÕES EM T O R N O DA X IX BIENAL

vés dessa instalação, a mensagem deste artista precocemente apoiado (aos trin­
ta anos, já representava o Brasil em Veneza).
Como Ana Tavares, também Geórgia Creimer criou desnecessariamente
uma “instalação” para suas pinturas de clima metafísico, de inusual universo
intimista.
O visitante, no entanto, respira um momento de emoção pelo sabor de
autenticidade concentrado nas salas de Anna Mariani, que, pelo que já per­
cebi nesta Bienal — e mais uma vez em nossa vida profissional — , se toca
aos brasileiros, independentemente de sua formação, não chega a sensibili­
zar muitos dos estrangeiros que nos visitaram, a confirmar mais uma vez a
relatividade da comunicação em decorrência da diferença de repertório cul­
tural. Isso não impede que consideremos esse espaço como o mais belo da re­
presentação brasileira.
Quanto às duas exposições “Em busca da essência”, abordando os re-
ducionistas brasileiros, e “Imaginários singulares”, sobre as quais caberia ou­
tro texto, diria que emerge insegurança na formulação dessas mostras, não
diferenciadas como espaço, para poder “passar” a concepção de seus cura­
dores. N a primeira, os critérios de seleção não estão corretamente definidos,
o espaço é exíguo, atravancando, com um excesso de peças, a possibilidade
de observação das obras presentes, sendo, boa parte, versões brasileiras de ten­
dências internacionais. Já a segunda mostra parece antes uma apresentação
de substanciosas individuais, justapostas, como no caso de Maria Martins, não
ficando claras as analogias de linguagens entre os artistas selecionados. Mas,
da forma como o conjunto está montado, nem isso é necessário, pois bem
poucos se apercebem de que as diversas individuais constituem uma única
exposição.
Por todas as reservas que apontamos nesta tentativa de observação crí­
tica desta Bienal, no que tange ao espaço, conclui-se que a realização deste
evento tem uma de suas maiores dificuldades no projeto de sua fisicalidade.
Será realmente sem solução o espaço do edifício da Bienal? E, se na Bienal
de 1985 fizemos críticas aos espaços criados, percebemos, entretanto, concep­
ções vinculadas ao projeto da curadoria. Ao passo que, nesta edição, a Bienal
parece ter agredido o edifício em sua espacialidade mesma, cindindo-o ao
meio, com o fechamento de áreas de fluxo de visitação, e concentrando ape­
nas em torno às rampas a única área de amplidão maior para uma visão pano­

49
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

râmica do conjunto. Em decorrência do elevado número de participantes, será


impossível obter soluções que poupem o visitante, possibilitando também
espaços de pausa para melhor apreciação dos expositores de cada Bienal, ao
mesmo tempo em que valorizem mais a montagens dos artistas?
As interrogações são muitas, da mesma maneira que é difícil orquestrar
uma organização nem sempre harmônica em sua participação e apoio, dian­
te da complexidade de toda ordem para a concretização deste grande evento
que, com todo o realismo de nosso momento, nas áreas cultural, econômica
e financeira, aí está, a marcar sua permanência, a despeito desse contexto crí­
tico de nossa circunstância.

50
7.

O curador como estrela


[1988]

Em torno deste tema, “Surveying Contemporary A rt”, gostaria de en­


fatizar dois pontos: as características das grandes exposições ou eventos e os
artistas que trabalham fora dos grandes centros.
Quanto ao primeiro item, assim como vivemos uma época de cinema
de diretores — e nao cinema de histórias ou atores — , nas artes visuais tam­
bém vivemos, ao que parece, um tempo de exposições de curadores, e não
mais de artistas. Os grandes personagens do meio artístico internacional pa­
recem ser, de fato, os curadores. Parece importar, portanto, menos a obra de
arte em si, e o artista que se coloca como seu autor, mas a manipulação dos
movimentos artísticos pelos curadores que produzem esses eventos milio­
nários que provocam filas diante de museus, centros culturais, Bienais ou
Documentas.
Em conseqüência, neste fenômeno vinculado a uma sociedade altamente
consumista, não é o produto que importa, mas a maneira como ele é apre­
sentado. Talvez mesmo o excesso de produtos, ou, no caso, de tendências,
caracterize com uma fadiga peculiar as imagens de nosso tempo. E, assim sen­
do, o que é importante é a forma de apresentação de novos trabalhos — ou
de trabalhos que exalam o ritmo veloz de nossos dias — , embora o déjà vu
esteja presente nessa mesma produção. Por essa mesma razão o revival na arte,
lembrado por Giulio Cario Argan como um sinal da arte de todos os tem­
pos, está mais do que nunca presente na contemporaneidade.
Mas o que significa a manipulação de obras de arte ou de produtos de
artistas por um curador? Significa que, nas grandes exposições, este profissio­
nal se porta como um régisseur do espetáculo, constituído pelas grandes retros­
pectivas e exposições internacionais como Kassel, Veneza ou São Paulo. O

51
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

projeto do evento reflete, desta forma, “seu” ponto de vista pessoal, a maneira
como esse curador pinça um fragmento ou um enfoque da produção artísti­
ca a fim de corporificá-la, através de um grande show, hoje autogerador de
renda, lucrativo mesmo. E que se insere, como um entretenimento, entre as
múltiplas fontes para a distração do cidadão urbano de nossa aldeia global.
Esse “ponto de vista” do curador não significa, de forma alguma, que
seja essa a forma mais acertada de ver determinada tendência ou determina­
do artista, porém simplesmente reflete um enfoque individual, passível de
posterior revisão ou confronto.
Se isso pode ser visto em Paris, no Museu D ’Orsay, quando se percebe
reescrita a história da arte do século X IX através da atuação conjunta de uma
curadoria e um arquiteto (uma história de continuidade, sem rupturas, ao con­
trário do que até aqui se irradiara como informação), pode ser visto em re­
trospectivas (como as realizadas de Le Corbusier, no decorrer de 1987, em
vários locais da Europa e do Brasil, por exemplo), ou pode ser apreciado em
grandes eventos como a Documenta de Kassel ou a Bienal de São Paulo.
A primeira, estritamente primeiro-mundista, focalizando aspectos da
responsabilidade social do artista, decalcada no respeito pelo pensamento de
Joseph Beuys, absolutamente indiferente à produção do artista fora dos cen­
tros hegemônicos (Europa, Estados Unidos, Japão).
O artista, assim, parece ter se deslocado para um segundo plano, sendo
a vedete o curador. Curador: personagem aparentemente todo-poderoso, a
deslocar-se com facilidade similar aos grandes executivos de multinacionais,
de Nova York para Los Angeles, de Paris para Veneza, de Milão para Madri
ou Barcelona.
Talvez seja apenas um sinal dos tempos, mas esta constatação do curador
como manipulador da obra de arte (ou da produção do artista) é típica de
nossos dias, diante do “quase” desaparecimento do artista como abridor de
novos caminhos. Quem sabe neste fim de século não haja mais caminhos a
serem abertos, quem sabe esta seja mais uma faceta da crise de criação de
nosso tempo?
Não existe arte latino-americana, nem artistas latino-americanos. Exis­
tem artistas nascidos no Peru, Argentina, Brasil, Panamá, Porto Rico, Cuba,
México, Guatemala, Costa Rica, Nicarágua, Equador, Colômbia, Venezuela,
Bolívia, Chile, Paraguai, Uruguai, El Salvador, República Dominicana. Es­

52
O CU RAD OR CO M O ESTRELA

ses países têm em comum uma história de colonização ibérica, uma tradição
religiosa e uma dependência econômica comum, desde o século XIX, primei­
ro da Inglaterra, depois dos Estados Unidos, com a exceção de Cuba, eco­
nomicamente dependente da União Soviética. N a verdade, os artistas de to­
dos esses países, quando vivem no exterior da América Latina, como na Eu­
ropa e nos Estados Unidos, se unem ou estabelecem vínculos fraternos de
amizade por uma similaridade de comportamento cultural.
Mas suas realidades são diversas, como o podem constatar os que já via­
jaram pela América do Sul. Embora, é claro, haja afinidades maiores entre
os países da América Central, entre aqueles da área do Caribe, da região dos
Andes, do Cone Sul (Chile, Argentina e Uruguai), e mesmo entre estes e os
brasileiros do Sul, até São Paulo. O mesmo fenômeno se dá dentro do Bra­
sil, país que é um mosaico de culturas, entre o Sul europeizado, o Norte ama­
zônico, o Nordeste regionalista, em contraposição à densa presença africana
na Bahia, e com duas cidades onde se dá a confluência de todo o Brasil: Rio
de Janeiro e Brasília, ambas capitais federais do Brasil, uma do século XVIII
até 1960 e outra há 28 anos.
Esta introdução é para mencionar que as tendências dos artistas da
América do Sul são muito diversas. Como os norte-americanos até fins dos
anos 40, nossa inspiração foram os movimentos oriundos da Escola de Pa­
ris. Um dado, entretanto, diferencia os artistas destes países daqueles dos Es­
tados Unidos, apesar de pertencermos todos ao continente americano. E que
a prosperidade econômica norte-americana, afirmada com sua hegemonia
política após a Segunda Grande Guerra, infundiu um estímulo que, sem dú­
vida, foi fundamental para alcançar uma identidade como meio artístico cria­
tivo (tanto no cinema como nas artes visuais propriamente ditas: escultura,
pintura, cenografia e arquitetura).
Como nos lembra Baudrillard, na dificuldade de assinalar “obras de
arte” quando não há mais possibilidades de parâmetros para reconhecer o
talento, tampouco julgamentos de valor, tal a abertura para todas as experi­
mentações, observa-se, simultaneamente, um movimento convulsivo e uma
inércia na arte contemporânea, assistindo-se à ruptura com a estética quan­
do ocorre a estetização geral das coisas. Assim, vivemos num tempo em que
há, como diz ele, uma proliferação de eventos, mas somos iconoclastas não
porque destruamos imagens, mas por fabricarmos uma profusão de imagens

53
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

em que não há nada a ver. Ausência de formas, ausência de estética, sem ne­
cessidade que nos coloquemos a pergunta se há ou não o Belo como em ou­
tras épocas, embora se continue a assistir a um conjunto de ritos habituais, e
neste processo estamos condenados a uma espécie de indiferença... Num tipo
de crise, ou de situação que, na verdade, abrange o comportamento, a polí­
tica, o sexo, a publicidade, além da arte.
É neste contexto de crise contemporânea que localizamos as manifesta­
ções da arte de nosso tempo e os eventos relativos à criatividade nas artes vi­
suais. Artes tão violentamente sujeitas aos modismos, e nas quais é tão difícil
encontrar singularidades, que, quando o localizamos, este artista é imediata­
mente alçado a alturas inauditas e imediatamente faz seguidores, seja através
de seu êxito no mercado, seja através da crítica que, vinculada a publicações,
divulga para os grandes centros internacionais de arte uma espécie de cam­
panha de banalização de uma individualidade.
Se o ritmo mudou na produção do objeto artístico, atingindo hoje a
velocidade da vida de nosso tempo, parece, por essa mesma razão, haver cada
vez menos espaço para o recolhimento, e a personalidade isolada, aquele que
interioriza sua problemática plástica fazendo-a, em seguida, emergir através
de sua obra, torna-se cada dia mais rara. D aí porque nos parece muito difícil
— por acreditar pouco na apregoada comunicação universal da obra de arte
— a “leitura” da produção artística de outro meio, quando não possuímos
afinidades com ele e temos, portanto, repertórios distintos. Sem repertório
comum fica difícil a decodificação.
Em conseqüência, os meios artísticos da América do Sul, por exemplo,
observam com muita reserva as exposições realizadas sobre “arte latino-ame-
ricana”, já levadas a efeito ou em preparo, exatamente porque essa produção
não constitui um conjunto. E, sim, um mosaico de realidades que nem sem­
pre é pertinente, se apresentado como um todo. N o entanto, neste momen­
to, por exemplo, assistimos ao preparo ou à realização de várias exposições
focalizando a “arte latino-americana”. O que não deixa de ser válido, se ima­
ginarmos o mesmo aplicado à “arte do Sudeste asiático”, “arte norte-ameri-
cana”, aqui incluindo Estados Unidos, México e Canadá, “arte européia”,
“arte africana contemporânea”, abrangendo numa só exposição comporta­
mentos culturais os mais diversificados e por vezes antagônicos, apesar de uma
proximidade geográfica relativa.

54
O CU RAD OR CO M O ESTRELA

finalizando, é sempre interessante poder afirmar, perante um público


ofisticado como o de Nova York, que os meios artísticos do Terceiro M un­
do têm hoje lucidez suficiente para se dar conta de que a emergência de um
artista de talento de nível internacional, ou o interesse pela produção artísti­
ca de um país em nível internacional, somente se dá na medida em que esse
país goza de importância econômica internacional. Se o país é economica­
mente poderoso — como atualmente Japão, Alemanha, ou Itália — , conse­
qüentemente seus artistas serão requestados para eventos internacionais de
importância. Ao passo que pode haver um artista de grande valor no Marro­
cos, por exemplo, vivendo em Paris, e ninguém tomar facilmente conheci­
mento de seu talento, ou só muito lentamente. D aí porque considerarmos
de grande importância, no caso da América Latina, o reconhecimento de ar­
tistas incontestáveis como Wifredo Lam, Frida Kahlo, Roberto Matta, Tor-
res-García, Soto, a despeito da dificuldade de seu acesso inicial ao mercado
de arte. Tarsila, do Brasil, também é caso similar, e que somente agora pare­
ce estar emergindo como interesse, por uma série de eventos que projetam o
melhor de sua obra. Entretanto, entre os artistas contemporâneos que se cons­
tituem dentro da mentalidade de nosso tempo, participantes da “aldeia glo­
bal”, há, em todos os nossos países, aqueles de talento igual ou maior aos de
centros mais desenvolvidos (como Nova York, Milão, Munique, Berlim ou
Paris). Porém, exatamente por serem as suas obras de tendências similares às
desses centros, ou porque seus países não são economicamente poderosos, não
são solicitados, ou sequer observados pelos curadores de eventos de importân­
cia. Neste ponto, a pergunta pertinente deveria ser: mas, afinal, quem copia
quem? Ou: os críticos e historiadores sabem mesmo, com conhecimento de
causa, quem foi “o primeiro” do ponto de vista inventivo, formal, ou expres­
sivo? O u se limitam ao conhecimento do que se passa em duas ou três cida­
des, imaginando que o restante da produção artística é cópia? Até que ponto
um artista contemporâneo pode ser original nos dias que correm? Por que não
realizar uma reflexão sobre o provincianismo dos grandes centros? Ou, como
nos lembra Pierre Gaudibert, por que não assumir que o regionalismo é uma
tradição na história da arte de todos os tempos?
Assim, depois de ver, no ano passado, a Documenta de Kassel, pude
constatar que a Bienal de São Paulo apresenta uma abertura, um horizonte
que nem a Bienal de Veneza ou a Documenta podem apresentar, por sua

55
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

localização européia. A Bienal de São Paulo adquire assim uma riqueza pe­
culiar que pode ou não interessar ao crítico e ao artista mais sofisticados —
do Brasil e do exterior — , mas oferece um panorama da arte de hoje em dia
(com toda a carga de cansaço inerente a essas manifestações). E isso só é pos­
sível por ser a Bienal em São Paulo, no Brasil, país da América Latina, Ter­
ceiro Mundo, importadores de informação desde o nosso surgimento, impor­
tadores de bibliografias e filosofias até o momento em que economicamente
se adquire maturidade suficiente para nossa afirmação como identidade. Até
lá, nos interessaremos vivamente por tudo o que ocorre à nossa volta, e nesse
vício reside igualmente uma qualidade de nosso meio artístico e intelectual.
Que nossos colegas dos grandes centros hegemônicos não possuem, pois co­
nhecem a si próprios e a seus competidores mais fortes e ignoram tudo o mais.

56
8.
Vinte Bienais de São Paulo
[1989]

N o Brasil, comemorar a abertura da X X Bienal de São Paulo é realizar


quarenta anos de existência das Bienais. É tempo de uma reflexão sobre a
continuidade miraculosa desse evento que, mal ou bem, nunca deixou de se
realizar num país que tem passado — em toda sua história — por crises sem-
fim. N o entanto, as Bienais estão aí, em sua regularidade, a desafiar a reali­
dade que nos cerca, fazendo prevalecer o otimismo na potencialidade de nosso
país e constituindo-se num ato de fé nas entidades de arte que não possuí­
mos, nos museus de precária situação no Brasil. Paulo Mendes de Almeida
disse certa vez, a propósito das Bienais de São Paulo, que o mal que elas cau­
saram à arte brasileira só é comparável ao bem que trouxeram ao nosso am­
biente artístico. Fundar o Museu de Arte Moderna de São Paulo — o MAM
— foi, desde o início, motivo para transformar, “de fato, São Paulo na capi­
tal artística do Brasil”, segundo expressão de Luís Martins, que seria muito
usada nas promoções das primeiras Bienais, sendo também usada ironicamen­
te por Clarival Valladares para criticar a Bienal de São Paulo.
Monteiro Lobato, um dos mais violentos críticos de uma possível fun­
dação de Museu de Arte Moderna em São Paulo, chegou a afirmar, confor­
me nos lembra Paulo Mendes de Almeida em seu antológico De A nita ao
museu, 1 que isso era coisa ainda dos modernistas. Em seu reacionarismo che­
gou a escrever que ainda ocorreria (com tantos querendo um Museu de Arte
Moderna em São Paulo) uma calmaria e, depois de tudo passado, se poderia
perguntar: “Lembra daquele movimento modernista em São Paulo que até
museu queria? Coitadinhos...”.2

1 Paulo Mendes de Almeida, De Anita ao museu, 2a ed., São Paulo, Perspectiva, 1976.
2 Idem.

57
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

N a verdade, a precedência da Semana de 22 foi um dos móveis para que


se lutasse por um Museu de Arte Moderna e por uma Bienal. Que, na ver­
dade, já tivera uma prévia na exposição internacional, embora de pequeno
porte, organizada por Flávio de Carvalho, no III Salão de Maio de 1939, oca­
sião em que já se percebe uma consciência da contemporaneidade em arte,
pela primeira vez assumindo-se a importância histórica da Semana Moder­
nista e da década de 20.
Nem por isso a implantação das Bienais deixou de ser considerada pe­
rigosa, tendo em vista o MAM que começara tão bem, “com um ritmo que
só não considero espantoso porque é o ritmo da sua cidade, com uma vitali­
dade notável”, registrou Lourival Gomes Machado, que aduziu, na ocasião:
“Fazer a Bienal era, em verdade, arriscar a bela e positiva experiência do
Museu, atirando-a a um plano desconhecido”.3 N a verdade, Lourival tinha
razão, a Bienal sacrificou o MAM de São Paulo, embora o M AC sobreviva.
O fato de São Paulo não ter sido capital federal, de não correr nunca o
risco de vivenciar a decadência após a queda do poder, já é uma esperança
para o crescimento das iniciativas a partir de suas entidades culturais. Por
outro lado, embora a cada Bienal uma nova equipe precise surgir, sem con­
tinuidade, gerações várias foram se formando como profissionais que, gra-
dativamente, começam a dar frutos, pesquisando sobre arte, organizando ex­
posições, escrevendo textos sobre nossa recente história artística.
Só não se compreende que as Bienais não restabeleçam os prêmios de
aquisição (não para o Itamaraty enfeitar salas de embaixadas), para nossos mu­
seus que já possuem arte internacional, a fim de atualizar suas coleções para
que permaneçam também no país registros regulares da arte contemporânea.
Em 1963, a propósito da VII Bienal, Clarival do Prado Valladares in­
terpreta diferentemente a existência desses eventos. Com o orgulho da gente
do Nordeste, afirma que São Paulo, não possuindo uma tradição cultural nem
um passado artístico (como, por exemplo, a Bahia ou Pernambuco), o inte­
resse pelo moderno é uma busca de afirmação por não possuir “capacidade
de realizar-se como cultura independente”. Dessa forma, segundo Clarival,

3 Lourival Gomes Machado, “II Progresso Italo-Brasiliano”, 1959, in Paulo Mendes


Almeida, op. cit.

58
V IN T E BIENAIS D E SÃO PAULO

a Bienal se implanta como um modismo atualizador, após a Missão France­


sa e a Semana de 22, que tiveram também esse desejo de estabelecer “o vín­
culo da contemporaneidade, nem que para tanto custasse, como custou, ar­
rasar o genuíno existente”.
E assim, atribui à Bienal de São Paulo um caráter de “fenômeno paulis­
ta”, fruto de seu desenvolvimento industrial, “progresso urbano vistoso e
desorientado”, no qual o cosmopolitismo se reduz, “na intimidade, a um es­
pírito nitidamente provinciano, romântico por impulso sem motivações
evocativas suficientes”.4
Assim, para Valladares, a Bienal não passa de “simples registro do efê­
mero, nada mais, nada menos, que a moda”. Embora reconheça a importân­
cia das retrospectivas apresentadas, da informação impossível de cá chegar sem
as Bienais, aponta o lado negativo dos eventos também pela perda de rumos
dos artistas, por exemplo, que passam a copiar as tendências apresentadas a
cada edição.
Enganava-se porém Clarival, pois é no confronto que os meios cultu­
rais se enriquecem; e a obra que não resiste à arena nacional ou internacio­
nal também pode ser descartada pela peneira implacável do tempo.
Hoje, após dezenove Bienais e às vésperas da XX, tendo passado de en­
tusiasta a cético observador do evento, de crítico do mesmo por seu distan­
ciamento da América Latina, acreditamos que a Bienal é válida. E necessária
a um país de poucas tradições, útil a um país tão múltiplo. É uma oxigenação
atabalhoada, por certo, mas respeitável por seu empenho em tão difícil con­
tinuidade, porém positiva por nos articular com o país e o mundo. Em par­
ticular, no campo das artes visuais, tão luxuoso por sua vinculação com as
superestruturas e o mercado e, simultaneamente, tão carente de público, de
estímulo ao criador jovem e distante dos grandes centros. A Bienal vale.

4 Clarival do Prado Valladares, “A danação da figura ou Crônica da Bienal”, Cadernos Bra­


sileiros, n° 6, Rio de Janeiro, 1963.

59
9 .

A XX Bienal: anotações de um observador


[1989]

Qual é a real capacidade de atuação do curador de uma Bienal como a


de São Paulo, e quais os limites de suas iniciativas a partir de sua personali­
dade cultural? É duplo o roteiro de uma Bienal: ele deve ser o espelho da
contemporaneidade, refletindo a criatividade maior ou menor do momento
efêmero em que se realiza. Pode, ao mesmo tempo, projetar a revisão de
movimentos e contribuições de artistas através da criatividade de seus or­
ganizadores quando o momento não é de efervescência em termos de novas
linguagens. Para isto, é óbvio ser necessária uma cumplicidade ativa entre os
organizadores do evento e os responsáveis pelos envios dos diversos países
participantes.
Os que acompanham a realização das Bienais sabem que o que nelas se
expõe não decorre da “vontade” de seu(s) curador(es). Além das limitações
orçamentárias, que definem as ambições no que respeita a transporte, segu­
ro, catálogo etc., é um fato nossa dependência de comissões e curadorias que
em outros países podem defender — ou não — a manutenção do nível de
uma Bienal como a de São Paulo. Estamos longe do tempo em que Yolanda
Penteado e Ciccillo Matarazzo obtinham participações “campeãs” (tipo Pi­
casso, Moore, Kokoschka, Van Gogh, Mondrian, entre outras) graças a suas
relações pessoais, sociais e oficiais. Hoje não existe apenas a Bienal de Vene­
za competindo com São Paulo, mas uma Documenta de Kassel, com todo o
poderio da Alemanha Ocidental por trás, além de enfrentarmos o fenômeno
das feiras de arte que pipocam por todos os grandes centros do mundo, mos­
trando a força do mercado de arte neste fim dos anos 80. Além do mais, São
Paulo não é mais onde ocorre a única grande Bienal internacional do hemis­
fério sul, conforme as autoridades brasileiras gostavam de enfatizar: com ím­
peto e organização já está na arena a Bienal de Sydney, Austrália, a desafiar a

60
A X X BIENAL: A N O TA ÇÕ ES D E UM O BSERVADO R

hegemonia de São Paulo. Impõe-se, portanto, uma estratégia, a fim de fazer


com que nossa Bienal consiga obter, a despeito da problemática econômica
de nosso país, o melhor para ser mostrado a nosso público da América do Sul
em termos de artes visuais. E neste ponto a emulação funciona como uma
reação em cadeia.
H á nove anos sugerimos que a Bienal de São Paulo fosse transformada
em trienal ou quadrienal, para criar maior expectativa e possibilidades, tanto
para o país organizador como para os participantes. À época, o argumento
contrário foi que nunca o Conselhão da Bienal aprovaria tal alteração. Hoje,
quando circulam rumores de que a próxima Bienal de Veneza será a última,
transformando-se, a seguir, em quadrienal, provavelmente começar-se-á a
cogitar de alternativa similar para São Paulo. É como o problema da identi­
dade, a refletir muito de nossa insegurança.
Percorrer esta X X Bienal é mais desafio à resistência física que ao im­
pacto emocional, salvo encontros felizes com a obra de Richard Hamilton,
de Yves Klein, com o enigma do universo de Beuys, ou com a delicadeza da
imagética labiríntica de Vieira da Silva. N a verdade, sai-se da Bienal com uma
sensação meio sensaborona de algo que não nos satisfaz a ponto de desejar­
mos voltar muitas vezes. Mas igualmente com a impressão nítida da presen­
ça dos brasileiros, que se impõem vivamente nesta mostra.
Participam da X X Bienal 42 países com mais de 156 artistas. N o entan­
to, pouca diferença fez, afinal, que as obras não tivessem sido distribuídas no
espaço por “analogia de linguagens”, como em quatro outras Bienais nesta
década; não incomodou visualmente que os artistas estejam expostos por país,
mesmo porque já nas Bienais anteriores só em certos casos ocorria a coloca­
ção por rigorosa “analogia”, havendo “salas especiais” que privilegiavam de­
terminados tipos de artistas. Por “analogia” significa que se buscava o agru­
pamento por conjunto de obras formalmente afins, de acordo com os temas
indicados ou pelo regulamento do evento. Este era igualmente um ponto dis­
cutível, pois os temas das últimas Bienais (“Utopia versus Realidade”, “O
Homem e a Vida”) foram tão abrangentes que os curadores traziam aproxi­
mações que tanto podiam ser abordagens quanto traduzir uma indiferença
total pelos temas em suas participações.
O problema básico para uma Bienal substanciosa continua residindo,
de fato, na possibilidade de se encontrar interlocutores que respeitem suges­

61
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

tões de uma curadoria e seu Conselho ou que viabilizem a vinda, para o Brasil,
de envios significativos.
Esse foi, sem dúvida, o caso de países que enviaram conjuntos cuidados,
em sua organização e conceituação. É o caso da Bélgica, de Cuba (incluin­
do-se sua representação em desenho), da Grã-Bretanha, da Alemanha, tanto
Ocidental como Oriental, de Portugal, da França, dos Estados Unidos, de
Israel e do Japão. Todavia, a forma como foram dispostos estes envios, a su­
bestimar artistas em decorrência de espaços inadequados, é ainda para a Bienal
de São Paulo um desafio que não conseguimos vencer e difícil de aceitar
quando nesta autocrítica se contemplam já quarenta anos de eventos de ní­
vel internacional.
O crucial está na dificuldade de podermos nos impor para não receber
retornos por vezes inexpressivos, posto que vêm sem sustentação didática,
como já foi o caso de Delvaux, Domela e, quiçá, de Alechinsky, ou mesmo
de Alain Jacquet, a despeito da alta voltagem tecnológica de seu trabalho,
artistas que pela segunda vez participam de nossa Bienal. É muito difícil, e é
esta uma área de elevada sensibilidade, porquanto, para cada artista, sua “úl­
tima” produção é sempre a melhor, e dificilmente ele aceita uma visão pers­
pectiva de sua obra em vida. O mesmo poderia ser dito em relação a Alfredo
Hlito, da Argentina, do movimento concreto nos anos 40, em Buenos Aires,
e do qual nos interessaria ver sua trajetória retrospectiva e não apenas a pro­
dução dos anos 80.
Sente-se o acaso na conjuminância dos diversos envios, nenhuma dire­
triz, a não ser na real necessidade de ter grandes nomes a iluminar o evento,
como neste caso Joseph Beuys, Frank Stella e Yves Klein, que nos oferecem
rica e emotiva oportunidade de convívio com suas breves, porém luminosas,
presenças. Maltratado pela exigüidade do espaço, o pós -pop Frank Stella, que
deveria ter sido colocado na inexpressiva entrada desta Bienal, é uma vi-
sualidade que se impõe, juntamente com a elegância de Martin Puryear. É
majestática a sala do artista americano, intrigante por suas peças em madeira
escura, algumas a nos remeter a uma ancestralidade ritualística deliberada.
Um artista subestimado é o israelense Micha Ullman, encerrado em espaço
exíguo, e que em reprodução do catálogo dá bem mostras da imponência de
suas peças irradiantes de cor/textura.
Mas haverá um tom, nesta Bienal? Algo que permaneça em nossa me­

62
A X X BIENAL: AN O TA ÇÕ ES D E U M O BSERVADO R

mória como uma tendência da arte de nossos dias, palpitante por seu frescor
de hoje? Pensando nisso é que consideramos improcedente Sheila Leirner
dizer em entrevista recente que não se deve confundir grandes retrospectivas
com Bienais. N a verdade, retrospectivas sempre estiveram na história das
Bienais de São Paulo e ninguém pode negar sua importância do ponto de
vista informativo. O que é preciso, isso sim, é fazer com que a contem-
poraneidade, a criatividade do momento em que vivemos, aflore com força
impositiva nestes eventos. Quando essa criatividade do momento está impreg­
nada de força impositiva, claro. A “visão museológica” funciona se, através
dela, se puder dialogar com um comissário estrangeiro a ponto de convencê-
lo de que a vinda de um Pomodoro seria dispensável após sua presença entre
nós nos anos 60, e na medida em que se puder evitar que um escultor “ci-
tacionista” como o italiano Roberto Gnozzi seja exibido em um mesmo es­
paço com Mario Ceroli, sem preservar a cada um o entorno mínimo neces­
sário para a apreensão de seu universo.
Nem tudo pode ser explicável na montagem de uma Bienal, embora a
sala Brecheret nos pareça como concepção um estande do tipo feira indus­
trial, verdadeiro enclave dentro do contexto da exposição. Igualmente infe­
liz foi a realização do espaço Brennand, apenas duas peças no espaço exterior
lateral do edifício da Bienal, incrementadas por espelho d’água, jatos d’água
e encanamentos visíveis, a interferir na percepção das esculturas propriamente
ditas. Brennand, como obra, foi mais bem captado na exposição que a Gale­
ria Montessanti organizou sobre o artista pernambucano, paralelamente à
Bienal, tentando em escala menor recriar o ambiente peculiar e sarcofágico
de seu ateliê-fábrica dos arredores do Recife.
O problema do espaço físico, “espaço exigente” da Bienal, conforme nos
lembra Catherine Millet, foi vencido pela curadoria de Martin Puryear; e pe­
la comissária da França, que soube, à maneira da última Documenta, dispor
em gabinetes de pequeno porte, ou maiores, de acordo com as demandas de
cada obra, o envio de seu país.
N ão diríamos o mesmo, contudo, da disposição da obra de Joseph
Beuys, que estaria mais bem instalada em espaço similar ao de Kassel, ou
aquele oferecido a Kiefer na última Bienal, com um pé-direito mais limita­
do também, a fim de obter intensidade maior para a observação do conjun­
to de peças que compõe a sua participação.

63
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

H á incógnitas que dificultam ainda mais a leitura e a identificação da


obra do artista pelo público: por que Richard Hamilton não teve uma mon­
tagem que reunisse em espaços contíguos ou articulados sua instalação Hotel
Lobby (1988), rica de ilusionismo espacial, e suas 71 gravuras? Por que não
há nenhuma preocupação didática — afinal, estamos no Brasil! — em ini­
ciar o público em geral (através de cronologias, textos referentes a sua obra
etc.), para o conhecimento deste artista que foi um dos pioneiros da artt pop
na Inglaterra a partir da antológica exposição “This is Tomorrow” de 1956?
O Japão enviou cuidada representação, embora disposta quase num cor­
redor — o que nos parece injustificável — , e posteriormente à abertura da
mostra protegida por improvisadas medidas de segurança. N o entanto, são
fascinantes em seu hieratismo as esculturas figurativas de Katsura Funakoshi,
a reportar-nos às centenas de figuras em terracota de túmulo de imperador
chinês, de recente descoberta arqueológica. H á algo de metafísico nestas ima­
gens nas quais a madeira rústica é domada, trabalhada e polida, não como
um material que se desbasta conforme sua natureza, como diria Michelangelo,
mas “moldada” e polida como se fora de barro ou gesso, por acréscimo. Ve­
mos, assim, um trabalho, neste aspecto, mais pictórico que escultural, pelo
próprio domínio exercido através da técnica sobre o material. Ao qual se
acrescenta a pintura e o desenho, como as imagens de santo-de-vestir do Bar­
roco, de cuja observação o artista parece emprestar os olhos de vidro fixando
o vazio a partir da solidão do homem contemporâneo.
Se as duas últimas Bienais destacaram instalações em seu espaço, nesta
ocorre uma harmoniosa repartição entre formas de arte convencional — pin­
tura, escultura, fotografia e desenho —•, este alcançando pontos altos, tanto
com a energia de Herbert Brandi, da Áustria, como com Betty Goodwin, do
Canadá, e Mônica Sartori, do Brasil. Mas entre as melhores participações
deste evento estão, por certo, a poética de Carmela Gross e as peças mini­
malistas conceituais de Micha Ullman, de Israel, a meio caminho entre a es­
cultura e a instalação.
A alegoria faz-se novamente presente, como na última Bienal, a partir
da instalação da Holanda, com Marinus Boezem. Assiste-se aqui a uma ale­
goria evocativa do espaço e do tempo, em busca de uma linguagem visual
inconsútil e transparente (desenho como linha, concepção do espaço, puro
projeto). E da mesma linhagem do dinamarquês Kjerrman, que visa uma re­

64
A X X BIENAL: A N O TA ÇÕ ES D E UM O BSERVADO R

presentação cifrada em sua narrativa da vida terrena, em contraposição às fi­


guras inexpressivas, em seu estatismo divino, de Apoio e Diana.
As concepções morais da arte, exemplificadas novamente pela Alema­
nha, no trabalho de Beuys, que vincula a prática artística à sua relação com a
vida, novamente surgem como uma constante, nos envios poloneses, às Bie­
nais de São Paulo, e nesta emerge em particular com o conjunto de peças de
impressionante impacto de Josef Szajna, na linha catastrófica pós-nuclear de
que também participa o norueguês Erik Killi Olsen. Porém, de repente, neste
ano, o pós-guerra terminou. Pela rapidez dos eventos nos últimos meses, os
artistas ainda não registram em seus trabalhos as múltiplas alterações do ce­
nário político-social da Europa (o Solidariedade no poder na Polônia; altera­
ções drásticas na Hungria, na Tchecoslováquia e na Bulgária; o fim do muro
de Berlim!), que modificam substancialmente o clima europeu. Assim, pare­
ce subitamente envelhecido o ambiente soturno de pós-guerra de que Joseph
Beuys e Kiefer são os grandes representantes da arte. Dois artistas mini­
malistas conceituais espanhóis nos chamam a atenção: Fernando Sinaga, que
notamos, apesar da ausência de iluminação especial e da inexistência de con­
servação de suas peças em lâmina de vidro e alumínio; e Manuel Saiz, que
une o reducionismo minimalista a evidente preocupação ecológica, incorpo­
rada a seus trabalhos na forma de elementos vivos da natureza (a nos recor­
dar certas proposições de Cravo Neto dos anos 70, com musgo mesclado a
pedras dentro de estruturas cilíndricas de acrílico com areias de diferentes to­
nalidades). Nada é novo, na verdade, na face da arte nestes dias e, em conse­
qüência, nada empolga. Isso não impede que sejamos receptivos diante do tra­
balho de tendência conceituai intitulado Pentágono (1987), poderosa peça em
granito de cerca de cinco metros de diâmetro por quarenta centímetros de
espessura, de Ulrich Ruckriem, da Alemanha Ocidental. Rigorosamente fen­
dida em onze peças, a instalação reafirma a imponência do material em sua
força e qualidades de superfície.
Diante do horror da participação do Kuwait, soma-se a pintura comer­
cial enviada pela República de San Marino, digna do lobby de hotel turístico
de três estrelas. Em compensação, uma grata surpresa a participação de José
Tola, do Peru. Desconhecido entre nós, move-se e expõe amplamente no cir­
cuito hispano-americano e constitui-se como uma das revelações desta Bienal
na arte deste continente. Outra presença marcante, nos poucos artistas da

65
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

América Latina que nos interessaram, é o fotógrafo chileno Enrique Za-


mudio, com seu vasto painel de 45 trabalhos da Série Fotopictográfica in­
titulados Santiago de Chile (1989), e que se singularizam pelo aspecto denun-
ciador da fotografia, como flashes marcados pela violência. Esse trabalho se
contrapõe fortemente à fotografia de publicidade que nos enche os olhos de
prazer visual puro e nos transporta a outros universos de evasão, quase como
a fotografia de turismo ou as fotos tipo N ational Geographic Magazine exibi­
das pela Suíça por Fischli e Weiss, e de Ready mades belong to everyone, trazi­
das por Catherine Millet, da França, com a sofisticação do corte do banal do
sempre instigante universo da imagem. N a verdade, é tão forte a presença da
imagem fotográfica nesta Bienal que ela solicita por si só uma abordagem es­
pecífica, de modo que declinamos focalizá-la nessas rápidas anotações sobre
o evento como um todo. Além dos artistas citados, a foto se faz presente no
belga Trivier, subjacente nas imagens por satélite motivando as pinturas por
computador na obra de Alain Jacquet. Mas é a Polônia, em particular, que
concentra em sua participação o maior número de fotógrafos com Pawela,
Pruszkowski, Kulawiak, Pacholsi e Zofia Rydet.
Se o encanto cenográfico das pinturas de Kuitca (Argentina) parece de­
clinar um pouco diante de sua produção, agora de índole mais conceituai e
com forte sabor centro-europeu, um aroma de frescor emana dos trabalhos
da colombiana Ofelia Rodrigues, residente em Londres. Nesta artista apare­
ce o dado decorativo, presente também em certas artistas brasileiras da gera­
ção de 80, como Beatriz Milhazes, Leda Catunda e Mônica Nador.
A primeira vez que tivemos contato com o trabalho do cubano Gustavo
Acosta foi por ocasião da I Bienal de Havana, em 1984, quando já apresen­
tava como característica o domínio do desenho, em preciosismo quase assus­
tador, o enfoque da paisagem sob determinado clima. Inspirado metaforica­
mente por Roma, apresenta agora telas de vastas dimensões, expressando sua
afirmação no cenário artístico, com postura sempre romântica e reflexiva.
Poderíamos ainda abordar a escala da abstração racional, da expressão conti­
da, de Antonio Semeraro, da França, e nos questionarmos sobre os rumos da
não figuração após o Concretismo e a Abstração informal, tal como sugere
Catherine Millet. Porém, nem este artista nem o gestualismo expressivo de
Herbert Brandi (Áustria) nos trazem algo renovador como linguagem, e o
discurso verbal sobre essas obras pode ser uma contribuição poética ou fe-

66
A X X BIENAL: AN O TA ÇÕ ES D E UM O BSERVADO R

nomenológica, ou se constituir em mero jogo de palavras, como o pode ser


a crítica em geral. Essa “leitura” da obra é sempre paralela à experiência vital
para o artista em sua necessidade de expressão numa Europa próspera, com-
partimentada em suas tradições ordenadas, bem cuidadas, mercado de arte
em expansão e museus com exposições que se sucedem em organização ím­
par na história da cultura ocidental.
Nas Bienais de algumas décadas atrás, os curadores organizavam seus
envios visitando os ateliês dos artistas e neles selecionando as obras que mais
os interessavam para o evento. Hoje, pelo menos no que tange à contem-
poraneidade, os artistas escolhidos “preparam” as obras para a Bienal, toman­
do em consideração o espaço previsto para sua apresentação, o pé-direito, e
condições físicas como o transporte das obras. N o caso de instalações feitas
pela primeira vez, evidentemente o artista realiza um projeto, que desenvol­
ve a seguir no próprio local da exposição, constituindo-se, muitas vezes, o
resultado em surpresa para o próprio comissário do país. Somente na D o­
cumenta de Kassel, à qual os artistas comparecem sob convite de seu cura-
dor-chefe (assessorado por especialistas), é que se pode controlar a qualidade '
a partir de um ponto de vista. A participação brasileira emerge como a mais
vital representação do país na história das Bienais e espelha a atual efer­
vescência, fruto do surgimento de uma nova geração a partir do início dos
anos 80. Reflete igualmente o apoio do mercado de arte à nova pintura em
particular, nesta década. Mas, se é representativa deste clima de criatividade
festejada desde sua aparição por galerias e colecionadores, apoiada pelos mu­
seus (pelo menos o M AC de São Paulo e o M AM do Rio), solicitada do ex­
terior, esta presença se caracteriza também por significativo ecletismo.
Quando Stella Teixeira de Barros definiu os nomes da seleção brasilei­
ra, não faltaram notícias de que sua escolha fora demasiado prudente. No
entanto, ela não fez senão seguir uma tradição das delegações do Brasil à
Bienal de Veneza, no sentido de apresentar tendências heterogêneas que são
também expressivas de nosso meio: assim, a um Nassar ela contrapõe um Ca­
margo, um Flávio Shiró é escolhido ao lado de um Marco do Valle, um Amil­
car de Castro pode ser visto em contraposição a Anna Bella Geiger. Aos dez
artistas de trajetória conhecida ela contrapõe quinze da geração que emergiu
nesta década. Qual o resultado?
A sala dos informais — sem qualquer informação — nos traz outras re­

67
A PR O PÓ SITO DAS BIENAIS

flexões, apesar de diminuída por sua localização. É exemplo de nosso atre-


lamento aos movimentos internacionais do pós-guerra, o Abstracionismo lí­
rico, informal ou gestual, desde as influências parisienses de Bazaine, Manes-
sier, Bérard ou Wols, à arte matérica de um Munoz ou Tapiés, ao caligrafis-
mo gestual de um Mathieu, e mesmo às transgressões brutais de Burri. En­
tretanto, é uma oportunidade rara de apreciarmos obras poéticas de Maria
Leontina, de longe mais interessantes que as de seu companheiro Milton
Dacosta após a década de 40, o fluido expressionismo abstrato de Sheila
Brannigan, tão respeitada durante seu período de residência entre nós, e o
cromatismo sensível de Henrique Boese, sem deixarmos de notar a finura da
fase dos relevos de Krajcberg.
Entre as excelências dos brasileiros deve-se mencionar, sem dúvida, Mar­
cos Coelho Benjamim, Carmela Gross e Cildo Meireles, que se destacam da
academia abstrato-geométrica que entre nós grassa há muitos anos, parale­
lamente às já desgastadas receitas concretas dos anos 50. As criações redu-
cionistas de José Resende são poemas de síntese, haicais em elaborada esco­
lha de materiais, embora contraste a peça constituída de aparas de papel,
ausência de forma contida sob tensão de suporte racional, sem nenhuma re­
lação com sua obra até o momento.
Ao observar a sala de Nuno Ramos, bem como o trabalho de Frida
Baranek, vêm-nos à mente duas experiências de há vinte anos e tentamos es­
tabelecer as eventuais vinculaçÕes de postura entre esses artistas e esses jovens:
os trabalhos de Chamberlain — compactação de carros — , bem como de
César, compactação de metais utilizados, assim como sua série posterior, de
pesquisa de materiais com poliuretano expandido. Frida Baranek se confronta
com a desconstrução, utilizando-se de materiais industriais descartados após
o uso, aqui em acumulação de milênios (longe da ordenação obsessiva de um
Arman), apontando antes para uma espacialidade nova e arrojada, trans­
gressora — e aqui sua força — na rejeição pela forma determinada. Nuno
Ramos, por sua vez, expõe-se em momento de ruptura ou transição dolorosa:
o retângulo do suporte é mera referência. Seu trabalho parece realizado so­
bre o piso e em seguida erguido (como trabalhavam Pollock e outros expres-
sionistas abstratos), mais destroços reunidos que elementos constituintes de
um trabalho “projetado”, no sentido da inexistência do desenho modelador
de uma idéia geradora. O trabalho em si é antes o desenvolvimento de seu

68
A XX BIENAL: AN O TA ÇÕ ES D E UM OBSERVADOR

corpo-a-corpo com os materiais múltiplos que busca articular com expressão


desesperada, por acréscimo, a unificá-los através do pigmento, mesclado à
parafina, breu, terebintina; muito mais performance que permanência de obra.
A apresentação convencional vertical dos trabalhos, contudo, é por isso mes­
mo paradoxal, sob o aspecto de “relevos”, diversamente de outras obras ou
performances suas vistas sobre o piso que alcançam clima sinistro similar às
ações do Grupo de Viena de fins dos anos 60.
Reafirma-se, por outro lado, evidente atração na arte jovem de hoje pela
elegância, acabamento, refinamento. E o fascínio pelo belo, e nessa linha se
inclui Daniel Senise, em sua figuração insinuante, de maturação rápida como
pintor, se recordarmos suas obras de há cinco anos apenas, quando a agres­
sividade aparente de suas composições era contida dentro do retângulo deli-
mitador. Esse mesmo prazer sensual no tratamento e afago da superfície se
percebe em Flávia Ribeiro; o desafio para ambos é de que a elaboração não
signifique um fim em si, e que o domínio excessivo da técnica não os trans­
forme em artistas extremamente domados, a realizar obras de beleza despro­
vidas de vigor.
H á dois artistas que no Brasil sobressaem de maneira especial: uma é a
sensível Carmela Gross, que utiliza as paredes de seu recinto revestindo-as de
suavidade, a transparência da espuma sob o papel, não abrindo mão, portan­
to, do suporte que domina, e sobre o qual gestualiza com leveza de caligrafia
orientalizante em sua grandeza vis-à-vis de contraponto em objeto agudo,
com pequenos elementos em malacacheta, que nos conclamam à materia­
lidade em sua presença faiscante.
A outra referência é ainda Cildo Meireles, o maior artista brasileiro
conceituai a partir dos anos 70, que tem pontuado sua carreira com ritmo
próprio, com produção singular nos últimos quinze anos: referimo-nos à sé­
rie de Rodos, à instalação Desvio para o vermelho (1980) no MAM-RJ, à insta­
lação performática F iat lux, na Cândido Mendes, no Rio de Janeiro e, final­
mente, ao trabalho para a exposição sobre as Missões, que circulou pelo Brasil.
Nesta Bienal, Cildo se inspira em trabalho anterior para uma proposta de
cunho ritualístico, círculo recoberto de ossos encerrado por uma muralha de
velas de parafina, em cujo centro se assenta uma tenda prosaica, recoberta de
notas de dinheiro aviltado, em alegoria que poderia ter sido intitulada Bra-
sil/Vanitas de nossos dias, ou Roraima 1987 ou Acre 1988. Trabalho a assi­

69
A PR O PÓ SITO J3A S BIENAIS

nalar a inteligência notável deste artista e sua rara postura de conjunção réussie
do rural com o urbano, do telúrico com o intelectual, sem concessões ou
pedantismos.
O salto dado pelo trabalho de Marcos Coelho Benjamim nos brinda um
artista na plenitude de seu fazer artístico, e emerge como uma surpresa nesta
Bienal: se é certo que não abandonou a madeira, sua escala agigantou-se, so-
brepõe-lhe as finas folhas de lata cortadas como se fossem de papel e com­
põe seus “raladores” enormes com formas de grande beleza (de novo a assus­
tar-nos, quem sabe, o problema da beleza perseguida), perfurando com ges-
tualidade automática as folhas metálicas, conforme se vê nas lâmpadas de
Ouro Preto, artesanato local, que, por sua vez, é tributário de artesanato do
norte de Portugal, imigrado para Minas na época do ouro. Resgate assim só
é perceptível aos da terra, porém de resultado plástico-visual de extrema feli­
cidade. O misticismo, como a poesia (presente também no trabalho de seu
companheiro de geração Fernando Lucchesi, mineiro como ele), se faz pre­
sente nestes objetos meio mágicos a nos lembrar, como escreveu Affonso
Renault, que “existem por existir somente e a falta de compromisso maior”.
Aí talvez seu fascínio: estes objetos nasceram da necessidade, o “fazer” da fer­
ramenta sugerindo o rumo do trabalho.
Ao mencionar o dado do “fascínio” é impossível deixar de citar algumas
presenças do setor de Eventos Especiais de João Cândido Galvão, que não
são objeto deste texto, sobretudo no que respeita à área teatral. Assim, se é
de encantamento puro o cenário do Romero de Andrade, do Teatro Armorial
de Bonecos, do Recife, a cenografia de Siron Franco para M artim Cererê é
de extrema selvageria em seu colorido de artesanato kitsch industrializado.
Um a grande descoberta, contudo, são os desenhos de Bob Wilson para os
cenários e iluminação de seus espetáculos. Se em 1971, quando esteve em São
Paulo, suas apresentações foram os mais significativos eventos do ano para
as artes visuais, vemos aqui desvendada sua secreta intimidade com a comu­
nicação visual e as artes plásticas, tal um Kurosawa a desenhar cada fotogra-
ma antes de realizar as tomadas de um filme.

70

10.

A expansão da Bienal de Veneza:


entre a materialidade e o conceito
[1989]

Veneza, por ocasião da Bienal, é também uma moveablefeast. U m ban­


quete para os olhos, na excepcionalidade de sua implantação, na mobilidade
nervosa e constante das águas, na luminosidade do ambiente, na arquitetura
preciosa e peculiar. Dizer que a Bienal de Veneza é algo superado por seu
critério geográfico de apresentar os países pode até significar simplismo, pela
relatividade desse dado e sua estreita vinculação com o desenvolvimento do
evento ao longo dos anos. Foram-se construindo pavilhões... então, torna-se
hoje talvez difícil a rediscussão do uso do espaço nos Giardini frente ao mar.
Existe, é claro, muita injustiça entre os espaços definidos de certos países e
outros que, inexplicavelmente, posto que não conversamos com os diretores
da Bienal sobre o assunto, não possuem pavilhões, e se amontoam de forma
precária, para não dizer indigna, para os artistas enviados. É o caso dos artis­
tas de países da América Latina em geral, exceção feita àqueles que possuem
pavilhões construídos, no caso do Uruguai, Brasil e Venezuela. Como expli­
car que um país com a tradição cultural do México não possua até hoje seu
espaço próprio nos Giardini de Veneza, sendo os mexicanos, mais que qual­
quer outro povo deste continente, tão atentos à política cultural? Já o Brasil,
apático e indiferente por inculto às manifestações culturais em geral, possui,
contraditoriamente, um pavilhão. Fato explicável como rebatimento, em fun­
ção da existência da Bienal de São Paulo desde 1951, a fim de mostrar-nos,
na congênere italiana, com uma decência de espaço. Todavia, não dá, ao sim­
ples observador, para compreender o critério da construção dos pavilhões:
existe o “Nórdico” (Finlândia, Suécia, Dinamarca), a Islândia tem o seu em
separado, assim como o Egito, a Itália, com o grande pavilhão central, Aus­
trália, Estados Unidos, União Soviética, França, Inglaterra, Espanha, Japão,
entre outros. Cochicha-se, passam-se informações nos rápidos encontros em

71
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

Veneza nesses dias de abertura da Bienal. Um desses murmúrios era a inda­


gação: havendo dois pavilhões para as duas Alemanhas, tendo em vista a ime­
diata reunificação, qual o país a herdar o pavilhão da Alemanha Oriental?
Sobre o novo regulamento da Bienal de São Paulo, ouvimos queixas,
evidentemente algumas bem fundadas, como não ter convites a artistas, como
conseguir obras de coleções privadas ou públicas, sem convites especiais a cada
país. França e Estados Unidos, no caso, parecem preparar uma frente comum
para colocar alguns desses impasses gerados pela nova curadoria. N a Itália,
pela própria desconcentração física das mostras dos diversos países, que de­
vem ser percorridas através do espaço orgânico dos jardins, é tão mais agra­
dável ver a Bienal de Veneza, se comparada com a de São Paulo ou com a
Documenta. O “Aperto 90”, sim, assinala um congestionamento de propos­
tas, competitivas, repetitivas, ou já vistas em algum tempo ou lugar (até no
caso do sentido de humor de peça de Eric Bainbridge, da Inglaterra, um ver­
dadeiro painel de Sérgio Camargo em pelúcia...), nas baias laterais observa­
das sem que nem sempre seja necessário nos determos, ao caminhar ao lon­
go do corredor central do belíssimo Corderie delPArsenale, para ver os 104
artistas de 27 países.
N a verdade, a Bienal de Veneza é hoje quase um pretexto para um com­
plexo de eventos, mais que apenas a Bienal dos Giardini. Em torno desse lo­
cal, e por toda a cidade — para não dizer pela região vêneta, além de Floren-
ça (onde o novo museu Marino Marini apresentava exposição de Folon) ou
em Roma, com retrospectiva de Hayter, o formador de gerações de gravado­
res. N a Ilha de San Giorgio, em Veneza, a bem cuidada retrospectiva de Mon-
drian e o grupo De Stijl; no Museu Peggy Guggenheim se mostram as repre­
sentações francesas nas Bienais dos anos 40, tornando-nos visível o acervo de
pintura francesa do M AC-USP (Manessier, Bissière, Dewasne, Bazaine, en­
tre outros); assim como nesse mesmo museu-jóia a apresentação das maquetes
do Museu de Salzburgo, por Hans Hollein, projeto audacioso por um arqui­
teto que está marcando sua trajetória no tempo da arquitetura pós-moderna
por vários espaços do mundo; a retrospectiva Andy Warhol, em impecável
montagem no Palazzo Grassi, da Fiat, a Homenagem a Chillida, o grande es­
cultor espanhol, e a confusa exposição do grupo Fluxus, na ilha de Giudeca.
O luxuoso catálogo da Bienal é indicador do nível cultural — e econô­
mico, é claro — dos eventos. Esse complexo de realizações abrange até a re­

72
A EXPANSÃO DA BIENAL D E VENEZA

trospectiva de Ticiano, uma exposição dos Tiepolo, outra de Rubens, pela


região vêneta. Num a revisão geral do que foi visto, ressalta também que o
espetaculoso é mais importante que o conceito das contribuições em si. Exem­
plo disso é a magnificência romana das instalações — eletrônicas e em már-
more — de Jenny Holzer, dos Estados Unidos. E que já em Washington foi
uma das estrelas, em janeiro último, da exposição sobre os anos 80, orga­
nizada pelo Museu Hirshhorn, assim como em fevereiro ocupará todo o
Museu Guggenheim com suas frases-lugares-comuns lapidares sobre már­
more, em montagem quase acintosa em sua tecnologia de onda. Em Veneza
comentava-se que sua “instalação” na Bienal custará quatro milhões de dó­
lares, custo comparável ao da organização de toda uma Bienal de São Pau­
lo... Contrasta vivamente com a representação americana, nesse aspecto, a
sensibilidade artesanal de um Gonzalo Fonseca, do Uruguai, que teria por
certo ganho um dos prêmios se fora outro o júri reunido em Veneza. O mes­
mo poderia dizer da criatividade humorosa do catalão Miralda, inexplica­
velmente não contemplado por nenhum prêmio ou menção. H á longos anos,
performer de trajetória internacional, apresenta em Veneza uma etapa do te­
ma já iniciado há certo tempo sobre o monumento de Colombo em Sevilha
“noivando” com a Estátua da Liberdade de Nova York, a significar o encon­
tro nupcial entre os dois continentes. Em compensação, o casal Becher, da
Alemanha, obteve um dos prêmios, com suas fotografias seriais mais próxi­
mas do conceituai. Uma tendência que, por certo, está retornando com for­
ça em vários pontos da Europa e dos Estados Unidos (como é visível nesta
Bienal na obra de Giovanni Anselmo, da Itália), como clara reação — tam­
bém — aos excessos da pintura festejada pelo mercado nesses passados anos
80. Todavia, quando o crítico Renato Barilli menciona que o prêmio dos ale­
mães indica o júri como “anquilosado” por estar recompensando algo dos
anos 70, como se nada mais tivesse ocorrido no mundo das artes depois des­
se período, creio que, ao contrário, o júri dá um direcionamento às pesqui­
sas conceituais que estão pipocando em vários centros. Neste aspecto, o
“Aperto 90” é bem expressivo. Se bem que, no contexto da festa da Bienal,
os prêmios são detalhes.
A arte moral dos alemães, contudo, permanentemente acossados pela
problemática sociopolítica, tão clara na última Documenta como tema, per­
manece no evento, por razões óbvias, a ter lugar em setembro próximo em

73
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

Berlim, com performances, e que se intitula A finitude da liberdade — uma


ação moral, não uma exposição, a propósito da reunificação de Berlim, com
grandes artistas como Haacke, Kounellis, Merz, Giovanni Anselmo, Rebecca
Horn e Heiner Muller. Entretanto, a ordem meticulosa, em seu conceito, das
fotografias seriais do casal Becher (altos-fornos, torres de extração, gasôme-
tros, torres de resfriamento, depósitos de carvão, fábricas, casas, caixas d’água),
tão luteranas em sua assepsia construtiva, expressam na Bienal um lado do
espírito alemão, também visível no Concretismo.
Mas, que dizer da exposição “Fluxus”, organizada por Bonito Oliva?
Este crítico, tão atuante na Itália, justifica em poucas palavras no Corriere delia
Sera (3/6/1990) a mostra: “Porque é um momento de extrema radicalidade
artística de nível internacional que incidiu e incide ainda sobre a mentalida­
de da pesquisa atual pela preferência pelo objeto, o uso multimídia das lin­
guagens, o nível conceituai da obra, o sentido da instalação, a redação com a
tecnologia mais avançada e o emprego antecipado do evento”. Alude ainda à
escolha do título “leonardesco” em latim Ubi Fluxus ivi motus para explicar
que designa “uma mentalidade constantemente atenta à relação entre arte e
vida, como só o Dadaísmo histórico soube enfatizar”. N a verdade, sente-se
na exposição, como no texto de apresentação no catálogo da Bienal por Bo­
nito Oliva, o clima de manifesto, a ansiedade por marcar a posição da ra­
dicalidade contra a situação. Se bem que há aqui nesta exposição um certo
ar de futurismo, não no sentido de deslumbramento diante do maquinismo
industrialista, mas na atmosfera de desejo de chocar (e há mesmo homena­
gem ao futurismo através de publicações do movimento em vitrines, além de
menções ao Dadaísmo, como vemos). Bonito Oliva inclui nomes já con­
sagrados em outros movimentos (como o Novo Realismo dos anos 60), que
são incorporados à sua mostra. O jornal citado de Milão, em polêmica sobre
esta exposição versus o “Aperto 90”, indaga o que tem a ver com Fluxus ar­
tistas como Schifano, Pisani “e companhia”, a não ser o fato de serem ami­
gos de Bonito Oliva. Assim como poderia ser questionada a consagração da
radicalidade na presença de Arman, Christo, Spoerri, Paik, Yoko Ono e tan­
tos mais. O u pode ser a radicalidade amparada por grandes nomes. O cura­
dor exalta o grupo Fluxus ao dizer que este sempre “fugiu aos perigos de uma
arte que se impõe com seus exclusivos tesouros de beleza formal sobre a
condição inerte do existente”. “Ainda a preponderância da poesia sobre a pro­

74
A EXPANSÃO DA BIENAL D E VENEZA

sa do mundo”, prossegue, em retórica de brilho indiscutível. “A ênfase co­


locada sobre a dinâmica vertical do momento criativo. O objeto cotidiano
como metáfora da desordem precedente à ordem sucessiva, ditada pela for­
ma artística.”
N a verdade, o desejo do caos contra uma ordem estabelecida, contra um
sistema existente, a transgressão sem limites diante da situação, assim como
a postura moral da arte alemã (Beuys, Kiefer e outros), só é possível por par­
te de artistas europeus. Ou seja, faz parte do universo europeu, em gradações
diversas, de acordo com a peculiaridade de cada país. É por isso que obser­
vamos essas tendências como específicas de cada uma dessas culturas, assim
como chega a parecer-nos um resquício das elegâncias cortesãs os jeux de mots
do final do artigo de Bonito Oliva contra o “Anônimo Veneziano” e Barilli,
no Corriere delia Sera\ “Altrimenti non si diventa ‘Fluxus’, e nemmeno ‘Bo-
nitus’, ma si resta anonimus. In questo caso veneziano”.1 Meio antigo, não?
A lembrar algo do espírito de blague dos anos 20...
O Brasil está muito bem no “Aperto 90”, e alegra-nos que os curadores
da exposição mais viva de Veneza (Renato Barilli, N . Blistene, W. Jacob,
Stuart Morgan e Linda Shearer) tenham sido sensíveis à produção dos artis­
tas que têm menos de 35 anos. De fato, da América Latina toda, além da
peruana Maria dei Rocio Prado, só Frida Baranek e Jac Leirner vemos pre­
sente no “Aperto”. Seus trabalhos foram recebidos com interesse e comenta­
dos. Além dessas três presenças, só um workshop (chicano?) fronteiriço entre
os Estados Unidos e o México. Todos os demais participantes, da Europa e
da América do Norte. Além, é claro, de alguns representantes da União So­
viética, de Israel e do Japão. Um destaque especial para Perejamme, artista
catalão, a apresentar a moldura contorcida como escultura expressiva sobre
o piso. Mas creio ser importante afirmarmos que o Brasil já abre caminho no
cenário internacional, com segurança, após as apresentações no exterior, nos
últimos anos, de artistas brasileiros de gerações diversas.
Supremacia esmagadora das instalações, da escultura e de objetos sobre
a pintura; heterogeneidade de materiais, abertura total para toda e qualquer

1 “De outra maneira não se toma ‘Fluxus’, nem ao menos ‘Bonitus’, mas permanece anô­
nimo. Neste caso, veneziano”. Tradução da Autora.

75
A PR O PÓ SITO DAS BIENAIS

forma de expressão, mass media se impondo na linguagem criativa visual, pre­


sença marcante da fotografia, são algumas observações neste registro rápido
diante da Bienal de Veneza, sobretudo frente também ao exposto no “Aper­
to”: a obra como um flash de uma idéia concretizada de maneira efêmera na
forma de instalação, tal como um outdoor criado para durar uma quinzena
de dias.
Já em relação aos acontecimentos artísticos que dão o tom ao contexto
cultural no Norte da Itália, mais uma vez, seguindo o ritmo de toda a Euro­
pa e dos Estados Unidos, o importante parece ser produzir eventos relevan­
tes pela imponência e/ou valor do que é exibido, pelo público que atraem,
pela cenografia museográfica. O objeto visual como instrumento para épater,
assombrar. As grandes mostras hoje parecem importar como “feira”, e não
como difusores da reflexão sobre o “objeto artístico”, e nisto se assemelham
em sua velocidade aos meios de comunicação de massa — um sinal dos tem­
pos; e daí a impressão de um Chillida, um Gonzalo Fonseca, como sinôni­
mos de artistas de um tempo já inexistente, embora teimosamente presentes.
Neste contexto desaparece, aparentemente, o interesse pela trajetória do ar­
tista — não há tempo para contemplação ou para um envolvimento com o
seu universo — , e segue importando mais a idéia espetacular ou digna de um
grande público que o curador propõe. Philippe de Montebello, do Metro­
politan de Nova York, já advertiu sobre esse distanciamento da atenção frente
à obra de arte.
D aí porque sensível — embora espetaculosa também — a presença do
indiano Anish Kapoor, da Inglaterra, com essa materialidade de superfícies
sensoriais, aliada ao mistério das cavernas insondáveis. O u deJenny Holzer,
ou a cantante e humorosa proposta de Miralda, da Espanha.
E o Brasil na Bienal de Veneza? Sabemos que a curadoria da Bienal so­
licitara propostas monográficas para cada país. Casemiro Xavier de Mendon­
ça optou, entretanto, por mostrar um pouco da diversidade da produção ar­
tística brasileira: Wesley Duke Lee, Daniel Senise, Samico e Brennand. Dois
pernambucanos — gravura e escultura em cerâmica — , um de São Paulo e
um do Rio de Janeiro.
Daniel Senise tem, mais uma vez, a mais forte presença do pavilhão do
Brasil, com sua pintura refinada, enquanto Wesley realiza uma instalação —
fortaleza inexpugnável de desenho sinuoso, com toras cilíndricas a exalar per­

76
A EXPANSÃO DA BIENAL D E V ENEZA

fume de madeiras européias. O envio de Samico, quase uma retrospectiva,


perde no aspecto de escala, na medida em que gravuras pressupõem um ga­
binete fechado e não a ante-sala, praticamente, do pavilhão brasileiro. No caso
de Brennand, nos rendemos à evidência de que esse artista só atrai a cumpli­
cidade do observador de sua imagética fascinante através de sua obra em seu
ateliê. Neste, a majestade do ambiente soma-se à acumulação barroca como
princípio de suas soluções plásticas, junto à sexualidade de sua temática a
envolver de forma totalizadora o visitante. Ao contrário, quatro ou seis pe­
ças suas dispostas de maneira comportada de acordo com o sistema expositivo
nunca fornecem as “pistas” para a decodificação de sua força telúrica, que não
“passa” ao observador casual. Isso ocorreu na última Bienal de São Paulo, e
dá-se também em Veneza. Em Brennand, a “instalação” é seu ateliê.
Uma indicação apenas do proverbial e vergonhoso descaso pela cultura
em nosso país: a ausência de catálogo no pavilhão Brasil. Folhas xerografadas
tentavam informar os visitantes sobre nossos artistas. Impossível justificar esta
lacuna. Nem falta de verba, nem Plano Collor. O simples conhecimento da
folha salarial do Itamaraty, no nível das embaixadas, torna impossível a acei­
tação desse menosprezo pela divulgação de nossa produção artística. Não há
mais Ministério da Cultura, nem Pró-Memória, vive-se um momento de cri­
se. Porém, sempre há formas, minicatálogos/registros, como aquela encon­
trada pelas duas jovens artistas do “Aperto 90” e os que as ampararam para
com dignidade representar o Brasil, sobretudo se, no catálogo da Bienal, o
comissário de nosso país é representante do Itamaraty.
A arquitetura está em alta nos países ricos. Por essa razão, é sintomática
a intenção da França que, este ano, deixando de lado instalações ou pintura,
apresentou propostas arquitetônicas a povoar seu espaço. Ao mesmo tempo
trouxe como sua representação o projeto do pavilhão da França em Veneza,
assinado por três grandes arquitetos: Jean Nouvel, Christian de Portzamparc
e Philippe Starck. Até agora o pavilhão ocupado pela França era um projeto
italiano, porém o novo espaço deverá estar pronto para o próximo evento de
1992. Essa intenção deixa clara a afirmação “de modernidade que a França
reivindica”, como diz o próprio comissário francês em Veneza.
Além da jovem e diversificada participação flamenga — a Bélgica alter­
na suas apresentações em Veneza, um ano para os valões, um ano para os
flamengos — , caberia uma referência especial à contribuição de Jean Marc

77
A PROPÓSITO DAS BIENAIS

Navez, ao mesmo tempo que deve ser mencionada a presença de Kari Cavén,
da Finlândia, no harmonioso pavilhão nórdico (Finlândia, Suécia, Noruega),
assim como a intrigante representação venezuelana de Julio Pacheco Rivas:
pintura, porém com temática de arquitetura utópica, com painéis de ex­
pressão mais gráfica que pictórica. Já a seleção e montagem da América Lati­
na é um desastre como um todo. A União Soviética, sob a brisa da Peres-
troika, intitulou sua representação Rauschenberg a noil noi a Rauschenberg, em
homenagem ao artista norte-americano que tinha estado em Moscou e que
tem um seu painel no pavilhão soviético, ladeado de dez quadros de Alexan­
dre Jakut (Diálogo com Malevitch): nestes, presente a cruz suprematista, a pin­
tura gestual expressiva se sobrepondo ironicamente, hieratismo geométrico,
religioso em sua imobilidade, do artista russo da segunda década. Mas, na
obra contemporânea, nada mais que uma atitude juvenil sem conseqüências
estéticas.
O espaço “Ambiente Berlim” rende homenagem aos eventos de novem­
bro último com sala especial com obras de Vedova, que se antecipam em
muito ao clima efervescente que a capital berlinense vive hoje, em trabalhos
da década de 60. Por sua vez, no pavilhão italiano, a grande sala de Cario
Maria Mariani pode talvez apresentar um grande êxito de mercado em suas
“imitações do antigo”, em sua pintura que agora busca o atributo, a alego­
ria, o símbolo da arte contemporânea, numa busca de beleza formal distante
das expressões correntes deste atribulado mundo de nossos dias.
Ao ensejo da abertura da Bienal de Veneza, a entidade Axts International
de Nova York convocou para a Fundação Giorgio Cini o encontro intitula­
do “Expanding Internationalism”. Curadores, críticos e profissionais de mu­
seus de 36 países reunimo-nos por dois dias para discutir problemas relati­
vos à reconsideração do papel de grandes exposições internacionais no con­
texto contemporâneo (Paulo Herkenhofif, do Rio de Janeiro, e Aracy Amaral,
de São Paulo). Dessa forma, cinco mesas foram formadas, cada uma com
cerca de dez participantes, sobre os temas “Multiculturalismo”, “O Outro”,
“Exposições Internacionais: o país hospedeiro”, “Exposições Internacionais
hoje”, e “Novos Fóruns”. Dada a organização por parte dos Estados Unidos,
a idéia que passou foi mesmo a da busca de articulação por parte dos norte-
americanos em relação aos países da Europa Central, Ásia e América Latina.
Talvez uma intuição apenas, mas também senti forte a influência da exposi­
A EXPANSÃO DA BIENAL D E VENEZA

ção “Magiciens de laTerre” como evento provocador do desejo desta reunião,


quem sabe pelo caráter ecumênico alcançado por aquela mostra. Aliás, Jean-
Hubert Martin também participou desta reunião, na mesa de “Multicul-
turalismo”, e foi muito solicitado por sua exposição e articulação com outras
culturas. Mas, de qualquer modo, foram significativas as ausências de repre­
sentantes da Alemanha, Espanha, Portugal e Itália, por exemplo...
No mais, em Veneza, tudo é fugidio, até os contatos. E a frivolidade da
mascarada veneziana é intensa, daí a sedução, e a rapidez com que se entra e
sai da cidade. Sobretudo quando se trata de observar um evento de artes vi­
suais, no qual o clima de esnobismo no nível internacional é insuportável para
os estômagos menos rústicos. Mas há tantas Venezas de belezas tão diversas
que um passeio ao Lido desfaz o fastio.

79
11.
Expandindo o internacionalismo
[1990]

1. Políticas para exposições internacionais existentes; como são tomadas as


decisões
Estas observações são da parte de um agente cultural, ou observador, a
partir do Terceiro M undo, em particular da América Latina. Trata-se de
universo bastante pobre em eventos culturais internacionais, em função das
permanentes crises e problemas financeiros com que se debatem nossos paí­
ses. Como em toda parte, sempre a área mais atingida em qualquer crise, a
cultura se ressente desses problemas de maneira crucial. Constituímos, assim,
um grande território de grande vitalidade artística, mas, paradoxalmente, sem
instituições culturais estáveis, especialmente se considerarmos que não pos­
suímos a possibilidade de organizar exposições internacionais para nosso pú­
blico. Assim, os artistas e o meio cultural limitam-se a ver, quando têm o pri­
vilégio de poder viajar, as exposições que o Primeiro Mundo organiza, mes­
mo quando o tema, ou o objeto da exposição internacional, sejam os nossos
países. Enfim, somos nesse aspecto observadores e deglutidores do que o Pri­
meiro Mundo realiza em termos expositivos, muito embora nossa expressão
artística seja freqüentemente mais criativa que a do Primeiro Mundo. Mas
isso também raramente é ressaltado, e criadores de nossos países às vezes, tar­
diamente, são “descobertos” pelos organizadores de exposições internacionais,
como se não tivéssemos consciência desse fato. N a verdade, por sermos “de­
pendentes” culturalmente, temos um conhecimento mais amplo que os meios
culturais do Primeiro M undo, porquanto conhecemos nossa produção e
aquela dos diversos centros do chamado mundo desenvolvido.

2. Representação multicultural individualmente por país


É quase impossível delimitar o que seja cultural dentro dos limites geo­
gráficos e políticos de um país. Pensemos, assim, que se deva sempre recor­

80
EX PAN D IN D O O IN TERN ACIO N ALISM O

rer, em exposições internacionais, a buscar os diversos aspectos culturais de


um país e não apenas uma “face” de sua cultura, como simplesmente se de­
seja ver “o outro”, na tão decantada busca de alteridade.

3. Representação de artistas locais versus internacionais


A cada dia creio menos na possibilidade de comunicação da arte. Ou
melhor, creio, cada dia mais, que cada um vê num objeto artístico somente
aquilo que seu repertório lhe permite ver. Não há nesta constatação nada de
inovador; porém, quando um curador de um país organiza uma exposição in­
ternacional, deve ter em mente esta limitação de seu olhar e de sua percepção
e não acreditar nunca que está tendo uma visão “conclusiva” — que aliás é
inexistente — de alguns dos aspectos da arte focalizada em seu “conceito”
para a exposição. Por essa mesma razão, cada país sorri um pouco quando
curadores de outros organizam mostras incluindo seus artistas, seja pela ina­
dequação das seleções, seja pelo critério da “uniperspectiva” da “qualidade”,
atribuído às obras escolhidas.

4. A necessidade da formação de novos locais de exposições internacionais


U m encontro como este parece indicar que existe um interesse po­
tencial em abrir novos locais de exposições internacionais e não ser apenas
uma troca de idéias. Essa intenção parece-me positiva na medida em que
pode resultar num projeto, ou em vários projetos, fora dos centros euro-nor-
te-americanos. Isso seria necessário para disseminar a informação, oxigenar
os diversos meios culturais do mundo. Nao temos mais a famosa aldeia glo­
bal do ponto de vista cultural, ou um ou dois meios hegemônicos com vá­
rios centros dependentes. Afinal, já vivemos dentro dessa realidade há mui­
to tempo. Mas chegamos a um novo tempo. De repente, terminou o pós-
guerra, e assistimos, atônitos, o nascer de nacionalismos em toda a Europa,
quando, contraditoriamente, estamos às vésperas da Comunidade Européia
de 1992. Por outro lado, o renascer de nacionalismos, de alta periculosida-
de, assinala também que cada comunidade cultural deseja se reafirmar como
identidade. Ocorre então uma curiosa similitude com uma problemática sub­
jacente em países da América Latina, onde artistas desejam declaradamente
se afirmar como cultura ou se rejeitar como latino-americanos, querendo-se
cidadãos do mundo.

81
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

A complexidade desta situação é a nossa atualidade, que vivemos apai­


xonadamente, por ser uma circunstância única deste momento delicado, por
sua vertigem, em que estamos envolvidos.

5. Disseminação de informação sobre exposições internacionais; como au­


mentar a cobertura de imprensa para as exposições em países não-ocidentais
A disseminação de informação sobre exposições internacionais é hoje,
pelo menos no Brasil, um problema da maior gravidade. M udou a filosofia
da editoria dos jornais e revistas. A crítica, no Brasil, foi substituída pela re­
portagem de arte, em geral superficial e ligeira. Não há nenhuma preocupação
em acompanhar uma exposição desde a complexidade de sua organização e
montagem até sua receptividade por parte do público. Apenas uma matéria
como se a exposição fosse um programa televisivo, veiculado numa única
noite. Em revistas de arte, parece também prevalecer, freqüentemente, o cri­
tério de oferecer espaço às exposições que estejam sendo realizadas no mo­
mento, e, às vezes, essas matérias são feitas antes de a exposição se abrir; o que
impede o articulista de ter uma visão plena da fisicalidade, e, portanto, da
visualidade da exposição, a nosso ver fundamental para que se possa escrever
sobre a mesma.

6. A relação dessas exposições com o mercado


O mercado aparece igualmente ser a mola mestra, um “Abre-te, Sésamo”
para a imprensa, assim como para a publicidade. Isso significa que, mais que
em outras épocas do século XX, o poder econômico está determinando tanto
a compra de obras de arte em leilões quanto a possibilidade de espaço. Além
do mais, este é um fenômeno internacional e não apenas “não-ocidental”.

7. Como de maneira mais efetiva representar artistas que trabalham fora


das disciplinas de pintura e escultura; outros papéis para artistas em exposições
internacionais além daquele de expositor
Em geral, numa Bienal como a de São Paulo, que já realizou vinte edi­
ções sem interrupção, o que é fato miraculoso para um país praticamente sem
museus ativos e em desenvolvimento como o Brasil, já registrei um fenôme­
no bastante curioso: os artistas brasileiros ou latino-americanos que visitam
a Bienal mostram-se curiosos pelas manifestações artísticas a que assistem. Já

82
r EXPAN DIN D O O IN TERN ACION ALISM O

os artistas estrangeiros do Primeiro Mundo parecem, em geral, vir para serem


vistos. Chegam, montam suas salas, dão suas entrevistas, e partem, em geral
no dia seguinte à abertura da Bienal. Essa diferença de postura é bem pecu­
liar. Acredito que poderia ocorrer uma outra forma de articulação com o meio
artístico local (não na congestionada semana de abertura da Bienal, porém
antes ou depois), a fim de que artistas do Brasil pudessem ter um contato mais
frutífero com artistas por vezes muito admirados. Claro que há o problema
do temperamento do artista, e nem todos se dispõem a trocar idéias ou a fa­
zer um workshop com os “nativos”. Porém, o Goethe Institute já realizou ex­
periências desse tipo em São Paulo, e parece-me que deva ser nessa direção
uma busca de articulação em outro nível que não o do mercado ou de expo­
sições institucionais. Refiro-me ao nível de diálogo entre criadores de proce­
dências e culturas diversas. Ao longo dos séculos, o encontro de culturas sem­
pre foi frutífero para o revigoramento das artes.

83
12.
Grandiloqüência e marketing
[1996]

Sabe-se que uma exposição é transitória, o que permanece é seu regis­


tro, o catálogo. Nele estão contidos os “documentos” do evento, manual de
consulta obrigatória para estudiosos, críticos e pesquisadores. A coleção de
catálogos da Bienal de São Paulo é hoje uma preciosidade. Como a instabi­
lidade econômica e social brasileira é móvel, nao se manteve ao longo das
décadas dentro de um único padrão. Foi engordando, adquirindo caracterís­
ticas copiadas de outros eventos, tornando-se fisicamente mais ambicioso,
mais espaçoso. As residências tornaram-se compactas, porém os catálogos e
os livros de arte — apesar das crises contínuas — têm porte para estantes que
não mais existem. O formato pequeno adotado na I Bienal vigoraria até sua
oitava edição. Somente a XVI Bienal (1981) optaria pelo catálogo desmem­
brado em volumes — três, nesse ano — , o que significou uma nova dificul­
dade de retenção da documentação, sem que, aparentemente, haja ocorrido
uma análise sobre a procedência — ou nao — dessa opção. Pertence porém
à gestão de Edemar Cid Ferreira a decisão do catálogo em dois ou mais vo­
lumes em capa dura, espetaculoso no desenho gráfico de um coffee table book
brinde de empresa. Isso não significa que não seja belo, porém de luxo des­
necessário, assim como em desvio de sua função primordial: informação, do­
cumentação, fonte de consulta e, portanto, transportável. Falta racionalidade
e discrição aos catálogos atuais. Tudo o que continham os anteriores — in­
troduções de curadores, relações de obras, ilustrações — poderia constar de
forma menos pretensiosa nos catálogos das duas últimas Bienais.
É sabido que catálogos podem ser também inverídicos, deixar como re­
gistro uma apresentação irreal do exibido na mostra. N um a Bienal sobre a
desmaterialização da obra de arte o risco é maior, posto que fotos de partici­
pações de artistas não correspondem sempre ao que se viu na Bienal, passan­
G R A N D ILO Q Ü ÊN CIA E MARKETING

do esse catálogo a deter a aura do museu imaginário de Malraux. É o caso


do alemão Carl Emanuel Wolff, ou de Graciela Sacco (Argentina), cuja ins­
talação foi uma pálida imagem das enfáticas reproduções do catálogo geral.
Obras de muitos artistas foram fotografadas em seus espaços originais, ou
vistas com imagens que inspiraram a mise en place do que posteriormente se
fez na Bienal. E, forçosamente, não correspondem aos espaços e instalações
vistos no evento que acaba de se encerrar.
Nunca seremos um país bem administrado enquanto permanecer o cli­
ma de desperdício e de afirmação pelo excesso. Em outubro, vimos belíssima
retrospectiva da Bauhaus em Milão, com catálogo conciso, quase quinhen­
tas páginas, excelentes ilustrações de todas as obras, mas que não possuía mais
de 22,5 x 16 cm.
É visível o esgotamento e a fadiga que envolvem, no nível internacio­
nal, as manifestações contemporâneas de artes visuais. Raros são os artistas
que prenderam a nossa atenção, como Soto, Gego, Waltércio, Suter, Renzi
Mostafa, Qui Shi-Hua e alguns poucos mais, cuja contribuição nem sempre
podemos avaliar por não participarem de nosso repertório sensorial ou cul­
tural. O Brasil, quase não existe... O destaque, portanto, ficou com as Salas
Especiais. Nestas apresentaram-se artistas que “fazem” a História da Arte. Daí
porque um dos méritos desta edição da Bienal foi ter novamente trazido Klee,
Munch, Lam, Picasso, e ter revelado ao público brasileiro a deslumbrante sala
de Figari, além do trabalho de Twombly.
Se o tema da Bienal foi a desmaterialização da obra de arte, por que as
salas especiais não focalizaram a contribuição de artistas que foram os pio­
neiros dessa tendência, além de Lewitt, um dos astros desta Bienal, assim
como Warhol, porém trazendo um retrospecto dos grandes iniciadores da
arte como conceito, desmaterializada? Referimo-nos às ausências de Kosuth,
Nauman, Dibbets, Acconci, Burn, Morris, Graham, Venet, Merz, entre tan­
tos (que, aliás, nos infernizaram o espírito nos anos 70, quando as galerias in
de Nova York nos bombardeavam com monótonas exposições de vídeos e
imensas pranchas de tabelas, cálculos, textos pseudocientíficos, aborrecidos
para o visitante que tinha de olhar reproduções enormes como a da Teoria
da informação). Se essa iniciativa não ocorreu é porque Picasso é um mons­
tro como artista do século e atrai público? Embora seja difícil engolir qual­
quer excêntrica explicação de Nelson Aguilar para justificar a presença de

85
A PROPÓSITO DAS BIENAIS

Goya numa Bienal com esse tema. Só se o marketing o exigiu. Então seria
outra a discussão.
Nestas salas estivemos distantes das preocupações do artista contempo­
râneo, pois nas Bienais e Documentas não há tempo para fixar-se em cada
obra exposta. Oswaldo Spengler escreveu: “Todas as obras — não as obras
singulares, mas a arte em seu conjunto — são mortais. Chegará um dia em
que o último retrato de Rembrandt deixe de existir, pois embora a tela pin­
tada permaneça intacta, terá desaparecido o olho capaz de perceber esta for­
ma de linguagem”. É como se já estivéssemos vivenciando esse tempo. O que
conta é o conjunto, a seqüência, chave também da programação televisiva de
hoje, na qual a sucessão veloz de notícias neutraliza horrores, violências, ca­
tástrofes, ou maravilhas das conquistas do homem. Assim, antes o artista se
preocupava com a seleção de suas obras baseada num critério qualitativo.
Hoje, quando convidado, como um decorador, é forçado a solicitar a planta
do local, pé-direito, metragem quadrada, a fim de não ser tragado pelo espa­
ço ou ver seu trabalho minimizado pelo conteúdo da sala seguinte. Essa pos­
tura reflete as novas formas de sensibilidade ou a alteração do lugar da arte,
pois, a partir dos anos 60, o artista como personalidade ou atitude pode ser
mais relevante que sua obra (Yoko Ono, Andy Warhol, Gilbert and George
são exemplos).
O próprio artista com freqüência não se importa com o caráter efêmero
de sua obra, que passa a ser descartável como um eletrodoméstico; afinal, é
o mundo em que estamos inseridos e cabe-nos apenas nele resistir. Assim,
passeia-se pelos recintos das grandes exposições internacionais, por onde a
grandiloqüência parece dominar os ambientes. O impacto visual e físico se
sobrepõe à qualidade da obra apresentada. Como “o novo” há tempos dei­
xou de chocar, o êxito do trabalho repousa muito na apurada execução in-
dustrial-tecnológica, quando existe essa vinculação, assim como pela audá­
cia da violência, capacidade inventiva, materiais insólitos utilizados, ou im­
pacto enquanto dimensão. Seja audacioso, faça arte, seja um artista: um tanto
exagerado, mas, por certo, é um pouco por aí. Daí porque a beleza interior
do universo de certos artistas como Gonzalo Díaz (Chile), ou o caráter de
diáfana transparência em Gego (Venezuela), pouco emergem na batalha pe­
los quinze minutos de glória numa Bienal. São densos, porém introspectivos,
e isso não basta numa exposição internacional. Também quando nos anos

86
GR A N D ILO Q Ü ÊN CIA E MARKETING

70 indiquei Mira Schendel para representar o Brasil numa Bienal de Cali,


Colômbia, seu trabalho quase não chamou a atenção, por seu silêncio e de­
licadeza. Diga-se de passagem, Mira Schendel nunca se constituiu em “tría­
de” com Oiticica e Lygia Clark, conforme insistiu em reafirmar Aguilar no
prólogo do catálogo da Bienal. Mira sempre foi uma artista que trabalhou
em seu canto, discretamente, como Volpi, sem qualquer articulação com ou­
tros de outros centros. Já a ligação Oiticica-Clark foi de fato vigente em mo­
mento marcante para a arte no Rio de Janeiro.
Vivemos num país em que o último que fala é o único que falou, pois
o que se afirmou antes é simplesmente ignorado. Em conseqüência, do pon­
to de vista geracional, os que já o disseram antes se sentem desacorçoados,
ou tomados por preguiça abissal, em reação à realidade imediata. Embora apa­
rentemente banalizada a afirmação de nossa ausência de memória, nada é feito
para sua reversão.
Alardear como promoção pelos meios de comunicação que esta foi “a
melhor Bienal de todos os tempos”, como qualidade ou como público visi­
tante, soa como uma falácia, se tomarmos em consideração, proporcional­
mente, a população de São Paulo em 1953 (II Bienal) e hoje. É desconhecer
sua história. Ou funcionou como propaganda para quem “está chegando” e
não se interessa por conferir a veracidade da afirmação. Para os organizadores
da Bienal, esse discurso pode ter sido uma estratégia, mas não há inocência
no procedimento. Está implícito desde as Bienais da década passada (1985,
1987) um anseio legítimo de reassumir a grandeza perdida nas tristes Bienais
dos anos 70 (com exceção da polêmica e única Bienal de Arte da América
Latina em 1978, evento alternativo, em ano pai', cujo registro foi um modesto
catálogo em dois volumes de comunicações de seu simpósio em estêncil).
O que é maior, é melhor; think big parece ser agora o lema de todas as
Bienais, mesmo alegando-se que não há dinheiro na praça, que o mercado
de arte está parado (?), que não há público para artes visuais, cada dia mais
encerrada num público só de iniciados. Esta é a contradição com que nova­
mente nos deparamos: foi evento para pequena elite mobilizando os mass
media com força impressionante. Como explicar o porte de promoções que
envolveram socialites e empresários nesta edição em particular? O meio inte­
lectual e cultural permaneceu distante. Até prescindiu-se dele, como de algo
incômodo, pois poderia levantar questões impertinentes daquilo que se de­

87
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

sejou como uma festa. Talvez a resposta seja a entrada maciça da iniciativa
privada a demandar “retorno”, palavra-chave para investidores. Então, ten­
tou-se fazer parecer popular, requestado, visitado, um evento que não pode­
ria sê-lo da forma apregoada. Escolares vão à Bienal como se vai à Feira do
Automóvel no Anhembi, sem preparo prévio, por ser inexistente História da
Arte no segundo grau. Sabe-se que o aproveitamento é quase nulo, apesar dos
esforços da Monitoria da Bienal através dos anos, sobretudo neste final de
século XX, quando queremos a continuidade necessária para um aconteci­
mento que anima o meio cultural de nosso país.
A II Bienal de São Paulo nunca poderá ser superada. Fonte evidente de
consulta, o curador Aguilar talvez tenha pretendido reeditá-la, em esforço
louvável. Essa tentativa nos trouxe de novo Klee, Munch, Picasso. Porém, em
1953-1954 tivemos também Ensor, Kokoschka, Boccioni, Baila, Carrà, en­
tre outros, representando o Futurismo, o Cubismo pela França, Mondrian,
e a grande sala de Calder, pelos Estados Unidos. Impossível realizar uma ex­
posição desse porte no Brasil de hoje. Era um tempo sem curadores, de conta­
tos pessoais menos complicados, mas de personalismos, como dona Yolanda
Penteado visitando a Europa e expressando as vontades de Ciccillo Matarazzo
com a ajuda dos embaixadores do Brasil em cada país, graças à apresentação
de Getúlio Vargas. Poder-se-ia pensar em esgotamento para a edição seguin­
te, mas para a III Bienal viriam Max Beckmann, pela Alemanha, e Léger, pela
França, Kubin, Sutherland, e os três gigantes do muralismo mexicano ao lado
de Tamayo, que os desafiou com seu talento. A sucessão das primeiras Bienais
nos dá uma lição de modéstia frente ao que trouxeram críticos do nível de
Herbert Read, Sandberg, Alfred Barr Jr., Ludwig Grote e Rodolfo Palluc-
chini, menos “estrelas”, porém formadores de críticos e curadores em seus
países. Assim, na IV Bienal teríamos a sala da Bauhaus pela Alemanha, Mo-
randi, Magritte e Pollock. Por que nos falar da “melhor Bienal de todos os
tempos”? A memória está aí, para quem quiser ver os arquivos, e mesmo con­
sultando o livro de Leonor Amarante, enquanto não nos chega o estudo de
Ivo Mesquita sobre as Bienais de São Paulo.
13.
Bienais ou da impossibilidade de reter o tempo
[2 0 0 1 ]

Melancólica a exposição comemorativa das Bienais de São Paulo, no


Parque Ibirapuera, mostra que percorri constrangida, pelo nível de sua mu-
seografia espantosa, verdadeiro parque de diversões, e a cuja entrada em le­
tras garrafais repetia-se em cartazes o nome do jornal patrocinador do even­
to, sobrepondo-se, estrondosamente, à entidade que se pretendia celebrar —
a Bienal de São Paulo por seus cinqüenta anos. Se essa exposição expressa o
que significa nossa criatividade atual nas artes visuais, então salto fora. Não
pode ser, temos possibilidade de formular a apresentação de nossos valores
fora do caos, ou paralelo a ele, com dignidade, sem perda de fervor ou quali­
dade. N a verdade, esse evento não passou de uma exposição coletiva de arte
contemporânea, e nada mais. Até artistas de elevado nível, com bons traba­
lhos, uns poucos aliás, se diluíam na geléia geral dessa mostra, e nem deve­
riam ter aceitado dela participar. E difícil a um artista rejeitar convite para
participar de uma exposição: é a possibilidade de mostrar seu trabalho, que é
sua vida, sua trajetória. Porém, freqüentes vezes, por gesto político, por éti­
ca, por um mínimo de coerência, deveriam declinar quando o evento é com­
prometedor. Um a artista que aceitou participar confiou-me ter sido o con­
vite para o evento projetado como uma exposição de “arte, arquitetura e
design". E não essa salada inqualificável que vimos de vídeos cansados no tem­
po e instalações e projetos tridimensionais de gigantismo que não conseguem
justificar sua presença.
Essa mostra se intitulou pomposamente “Bienal 50 Anos: U m a Home­
nagem a Ciccillo Matarazzo”, o mecenas criador do Museu de Arte Moder­
na de São Paulo e das Bienais. Mas, na verdade, nenhuma homenagem lhe
era prestada nesse evento, fora a intenção ou o título. Pensei que houvesse
uma exposição de documentação histórica, a lembrar um tempo, mas nada.

89
A PROPÓSITO DAS BIENAIS

Parece que um livro está sendo previsto. Nem a escultura, ou “estátua” de


Ciccillo, no sentido mais acadêmico do termo, que estaria lá, nao compare­
cia no espaço tumultuado, infernal de ruídos, quando o visitei. Indagando,
os vigilantes me informaram que, depois da inauguração, o retiraram. Sou­
be, recentemente, que o recolocaram em local definitivo frente à entrada do
Prédio das Bienais.
Referente a Ciccillo, havia apenas um “verbete”, na visualmente confu­
sa “Cronologia dos 50 anos”, em sala que abrigava, em montagem improvi­
sada e pobre (a lembrar as despretensiosas, embora corretas, exposições do
MAM em seus primeiros tempos da rua Sete de Abril, há mais de cinqüenta
anos!), obras do acervo precioso do Museu de Arte Contemporânea da USP,
cria também de Ciccillo, pois resultante da doação da coleção do Museu de
Arte Moderna de São Paulo à Universidade — doação equivocada, com cer­
teza, parece-me hoje, depois de ter dirigido esse museu e constatado a indi­
ferença da Universidade por uma ativação cultural na área de artes — , no
momento em que Matarazzo desejou se liberar do fardo de carregar duas ins­
tituições, o MAM e a Bienal, e optando por esta última. Evidentemente, por
seu prestígio e repercussão internacional.
Ciccillo, afinal, mereceria uma homenagem mais reflexiva, sobre seu
papel como mecenas, apesar de seu autoritarismo, de sua mão de ferro a
discordar e entrar em choque com os vários diretores do Museu de Arte
Moderna de São Paulo — Degand, Milliet, Mendes de Almeida, Lourival,
Pedrosa — que se sucederam nos quinze anos de existência da entidade
(1948-1962). Ele se dizia, claramente, e o ouvi dizer textualmente, farto de
polêmicas de artistas, manifestos, debates e discussões: “Faço a Bienal de qual­
quer jeito, com críticos ou sem críticos, com os artistas ou sem os artistas”.
Ele detinha o poder, o contato com as esferas que tornavam possível a pre­
paração das Bienais, e exercia esse poder com a aisance de um administrador
experimentado frente a seus empreendimentos. Mesmo que no fundo não
tivesse interesse algum pela arte dita “moderna”. “Venha”, me disse certa vez,
“diga-me o que quer dizer isto aqui”, e assinalava incrédulo com sua bengala
aquela arte estranha que se expunha.
N o entanto, possuía um faro, uma intuição, uma familiaridade com as
coisas da cultura. Não foi por acaso presidente do T B C — Teatro Brasileiro
de Comédia — , o primeiro teatro profissional no Brasil a partir de fins dos

90
BIENAIS O U DA IM POSSIBILID AD E D E RETER O TEM PO

anos 40, assim como foi fundador da Companhia Cinematográfica Vera


Cruz. É indubitável que a presença sedutora, a seu lado, de uma figura como
Yolanda Penteado foi fundamental. Apesar de sua evidente frivolidade, ele lhe
deve, ou ela foi credora por seu savoir-faire, seu interesse pelas coisas da cul­
tura, sua facilidade comunicativa com o meio artístico nos primeiros anos do
MAM e na implantação das Bienais internacionais. Yolanda, que por vezes
viajava com Maria Martins, contatava artistas e comissários estrangeiros na
Europa, era embaixadora cultural do Brasil, com carta de apresentação de
Getúlio Vargas para esse fim, na articulação com vários países, para a II
Bienal, tal como hoje atuam os curadores. Ciccillo teve também papel im­
portante na aquisição do Sítio Santo Antonio de São Roque, monumento de
nosso patrimônio, pelo IPHAN em seus primeiros anos. Assim como foi o
dinâmico presidente da comissão do celebradíssimo IV Centenário da Cida­
de de São Paulo, em 1954. Como não homenageá-lo, e ao casal Penteado-
Matarazzo Sobrinho, devidamente?
Depois de implantado com êxito o Museu de Arte Moderna (que estra­
tegicamente se vinculou ao MAM do Rio de Janeiro, conforme a orientação
do primeiro diretor, Léon Degand, para a possibilidade de fazer circular ex­
posições vindas de fora do país), pouco importa hoje se a idéia da criação das
Bienais foi-lhe assoprada por Danilo Di Prete, conforme recentemente se le­
vantou, ou se resultou de uma “competição” entre o MAM-SP e o MASP de
Chateaubriand dirigido por Bardi, que também teria idéias similares. O im­
portante é que Ciccillo teve a coragem de topar a empreitada, nesse pós-guerra
economicamente interessante para o Brasil, que exportava muito café e ou­
tras matérias-primas, implantava indústrias, atraía europeus qualificados
desesperançados com a guerra em seu continente, e vivíamos um período
otimista de desenvolvimentismo.
Mas não se pode crer que as Bienais surgiram bem-vindas por todos,
desvestidas de polêmicas. Ao contrário. Aliás, São Paulo já possuía o perfil
para um evento internacional desse porte. O contingente imigratório em
nosso estado, inédito no Brasil por sua multiplicidade étnico-cultural, já o
previa. O nacionalismo internacionalista do Modernismo dos anos 20 igual­
mente já o anunciara, assim como os contatos de Flávio de Carvalho no III
Salão de Maio de 1939, com a presença de artistas internacionais, abstratos,
das mais variadas origens, significando um prenúncio seguro. E, novamen­

91
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

te, o crescimento urbano da capital, sua efervescência enquanto iniciativa, só


podia apontar nessa direção. E não esqueçamos também a guerra fria. Em
depoimento de dona Yolanda Penteado, em 1982, ao começar a dirigir o
M AC da USP, perguntei-lhe das razões que teriam impulsionado Ciccillo a
fundar o MAM-SP e indaguei se ocorrera alguma pressão política nesse sen­
tido por parte de Nelson Rockefeller. Ela respondeu-me com simplicidade
que era evidente que, havendo um museu aqui implantado que traria expo­
sições internacionais da mais alta e diversa qualidade, abrindo janelas, os ar­
tistas locais naturalmente se distanciariam de idéias políticas que somente os
faziam conglomerar-se em debates prejudiciais... Não me recordo literalmente
de suas palavras, mas o teor de sua resposta foi claramente esse.
Logo, havia razões políticas também para o apoio de Rockefeller ao
simbolicamente doar pelo M oM A pouco mais de uma dezena de obras ao
MAM-SP nascente. Doações que nem se comparariam à qualidade das obras
que posteriormente o casal Yolanda Penteado e Ciccillo Matarazzo doariam
ao Museu, cuja coleção depois cairia no regaço da USP, que, ao largo de qua­
renta anos, nunca soube avaliar, de fato, o valor do acervo precioso que lhe
chegara às mãos. E que nunca teve a visão para a criação de um Instituto de
História da Arte através dos diversos reitores à frente da USP, para a forma­
ção de historiadores de arte para o país, conforme já havia se pronunciado
sobre sua necessidade para a Universidade de São Paulo o crítico Mário
Pedrosa em 1963. Assim como posteriormente configurou-se como uma ba­
talha — perdida — para historiadores como Walter Zanini e Ulpiano Be­
zerra de Menezes.

A INSURGÊNCIA CONTRA A IMPLANTAÇÃO DAS BIENAIS

As Bienais do Museu de Arte Moderna de São Paulo trouxeram uma


mudança fundamental em nosso meio artístico. O arejamento das idéias e das
informações passou a ocorrer bienalmente. Começávamos a ver, em casa, o
que se passava na cena de arte do mundo. E assistíamos a um fenômeno curio­
so: o que uma Bienal mostrava, internacionalmente, víamos aparecer nas ten­
dências de muitos dos artistas brasileiros — e latino-americanos que regular­
mente vinham visitá-las, como os argentinos e uruguaios — na Bienal seguin­

92
BIENAIS O U DA IM POSSIBILID AD E D E R ETE R O TEM PO

te. Atropelou, desfigurou, a trajetória de nossa arte? Ou dinamizou nosso


meio? A resposta dependia da postura de cada artista, de sua posição política
ou apolítica em plena época da guerra fria. Não se tratava apenas de uma luta
entre pró-Abstracionismo e pró-Figurativismo. Já no ano mesmo da implan­
tação da primeira Bienal, em dezembro de 1951, a mídia impressa — Folha
da Noite, Correio Paulistano, O Cruzeiro — não deixou de registrar debates
a propósito do surgimento da Bienal. Assim, enquanto artistas jovens de es­
querda, reacionários às novas tendências, alegavam que a I Bienal era vista
como “infame propaganda da arte abstrata desligada de nossa vida e das nossas
tradições” (Manifesto Conseqüência), o crítico carioca Marc Berkowitz já se
interrogava “que influência teve ou terá a Bienal sobre a cultura e o ambien­
te artístico do país?” .
Mário Pedrosa, nosso grande crítico dos anos 50 e 60, porém, não tem
dúvidas em afirmar, frente à exposição do Trianon, em São Paulo, em 1951,
que esse evento “marca uma data na evolução das artes no Brasil. Trata-se de
um acontecimento de âmbito internacional e com repercussões culturais in­
calculáveis. Não somente para o Brasil como para nosso continente e mes­
mo para a velha Europa”. E acrescenta: “Para nós, brasileiros, sua importân­
cia é decisiva”. Pois, segundo ele, a Bienal trouxe uma verdadeira “revisão de
valores”, pois estávamos, em 1951, atrasados trinta anos no que respeita às
tendências artísticas.1
Essa afirmação vem colocar a importância da Bienal lado a lado com o
marco que significou a Semana de Arte Moderna e o Modernismo entre nós
nos anos 20, como modificadora de tendências em nosso meio artístico.
Por outro lado, os artistas favoráveis ao Abstracionismo, o grupo de
Waldemar Cordeiro, com o Manifesto Ruptura (1952), que prenunciava o
movimento de arte concreta depois da forte delegação suíça à I Bienal, ex­
pressava seu entusiasmo pela chegada de novos parâmetros de expressão dis­
tantes do Figurativismo fatigado.
Portanto, as Bienais não surgiram com a unanimidade de todo o meio
artístico. Lembro-me de já ter registrado a fala de Paulo Mendes de Almeida,

1 “A primeira Bienal — , Jornal do Brasil, 27/10/1951, apud Mário Pedrosa, Dos murais
de Portinari aos espaços de Brasília, São Paulo, Perspectiva, 1981.

93
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

de que o mal que as Bienais causaram à arte no Brasil só é comparável ao bem


que elas trouxeram.
Talvez sejam hoje inúteis estes comentários. As Bienais vieram e tive­
ram seu papel. Abriram janelas, trouxeram dados novos, se bem que não exis­
tiu nunca — a não ser na última década — a recíproca de que nossos artis­
tas viam a arte feita no exterior e a arte brasileira passava a ser vista pelos crí­
ticos e diretores de museus do exterior. Inverdade. Sempre, regularmente, fora
uns poucos críticos interessados em ver o que se passa aqui, artistas e críticos
estrangeiros sempre vieram para ser vistos, nunca para ver. Nunca lhes inte­
ressou, a não ser, como disse, aqueles que tinham uma relação pessoal com
um grupo ou alguns artistas. A maior parte, em geral até hoje, chega dez ou
quinze dias antes da abertura da Bienal, monta suas salas, dá uma ou outra
entrevista e freqüentemente vai embora antes mesmo da abertura do evento.
Não lhes interessa, simplesmente. Isso não ocorre somente em São Paulo. Em
qualquer parte do mundo o artista somente se interessa por seu trabalho.
Cabe aos críticos, teóricos e historiadores o olhar interessado pelo conjunto
ou pelos artistas em geral. N a verdade, como considerava Ulpiano Bezerra de
Menezes em recente Simpósio do CBH A no Rio de Janeiro, não existe uma
estética universal. É uma falácia que sempre nos enfiaram garganta abaixo.
Se você não possui o repertório, não tem como decodificar o que vê de ou­
tros países. Além do mais, não possuindo o mesmo repertório, você não é
sensível, nem poderia ser, a outras culturas. Pode-se apreciar uma qualidade
criativa, ou artesanal, e encontrá-la diferenciada. Mas, excepcionalmente,
ocorre a empatia, a ponto de se sentir motivado por ela. Às vezes, pode-se até
sofrer a influência de outra linguagem, ou forma expressiva, como os cubis-
tas o foram pela máscara africana e os impressionistas pela gravura japonesa.
Porém, são intercâmbios naturais na história das culturas e não significam que
ocorra regularmente uma comunhão ou um desejo de articulação de um meio
artístico com o outro. Apenas uma emulação, ou a apreciação de um profis­
sional surpreso por outro em quem percebe uma instigação ou a mesma qua­
lidade. Mas inexiste o diálogo.
Em debate sobre a II Bienal de São Paulo e seu regulamento, os artistas
se revoltavam até frente à concessão de prêmios: segundo eles, esses prêmios
“tiveram por objetivo desviar os artistas da realidade na qual vive mergulha­
do o artista”. Finalizavam assim: “O regulamento da II Bienal do MAM de

94
BIENAIS OU DA IM POSSIBILID AD E D E RETER O TEM PO

São Paulo não oferece garantias aos artistas, como elementos de uma categoria
profissional, nem à cultura, como expressão do progresso artístico nacional”.
O que viria acalmar muitos e entusiasmar outros tantos seria a realiza­
ção da própria II Bienal, grandiosa, verdadeiro museu moderno vivo, com
obras desde o Cubismo até Henry Moore, De Kooning, Calder, Kokoschka,
Mondrian, trazendo a um país novo e inculto, porém atrevido como o Bra­
sil, a famosa Guernica (1937), grito de guerra de Picasso, e, assim, levantan­
do polêmicas, não mais sobre a legitimidade da realização das Bienais, porém
já sobre a arte mesma. Ou seja: a Bienal, enquanto iniciativa, evento, tinha
vencido a parada.
N os anos 70, contudo, Matarazzo começou a se apoiar, não mais em
críticos ou personalidades respeitáveis, como Wanda Svevo, que faleceu tragi­
camente em acidente aéreo no Peru ao viajar para contato pela Bienal, porém
em pessoas de sua amizade, como Rodrigues Alves, totalmente despreparado
para conceber uma Bienal. Assim é que nos anos 70 chegou-se a organizar
uma Bienal cujo “tema”, digamos assim, foi trazer em salas especiais artistas
que tinham sido os grandes prêmios das Bienais até aquela data. Ou seja, uma
Bienal celebrativa, de retrospecto, e não assinalando as novas tendências emer­
gentes na arte contemporânea.
Nas décadas de 50 e 60, as Bienais de São Paulo tinham sido realmente
a vitrine, para os artistas do Brasil e da América Latina que para cá vinham,
do que se passava em arte no mundo. N o entanto, os anos de ferro da dita­
dura, anos 70, por essas razões mesmas apontadas, foram, no meu entender,
os “anos baixos” das Bienais de São Paulo; o evento decaiu em qualidade, e
se tornou morno. Surgiu nesse período, como fruto de inquietações de vá­
rios lados, em 1978, a Bienal de Arte Latino-Americana, sob a curadoria de
Juan Acha, crítico e teórico peruano radicado no México, que, por sua vez,
despertaria muita polêmica.
Quando convidada a ser curadora da Bienal seguinte, em 1980, por Luís
Villares, enfrentei um dilema frente às dificuldades financeiras da entidade:
a Bienal Latino-Americana tinha sido para valer ou fora apenas um evento
esporádico? Debatia-me diante do meu interesse pela expressão artística do
continente e suas características, pensando em como projetar a produção de
qualidade da América Latina, e transformar — por que não? — o evento
Bienal de São Paulo em um evento latino-americano, com artistas interna­

95
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

cionais convidados e observadores críticos de todos os continentes, que se reu­


niriam em São Paulo, em vez da indiferença em relação às salas do Ceilão,
da Indonésia, do Egito, da Iugoslávia, da África do Sul, do Canadá, como um
must que nunca podíamos digerir exatamente pela dificuldade ou impossibi­
lidade de ter um repertório comum (embora, para Matarazzo Sobrinho, o
importante tenha sido sempre ostentar o maior número de bandeiras na fa­
chada do prédio da Bienal, e ver publicado em manchetes de jornais “ 12 qui­
lômetros de arte”, por exemplo).
Como resultante dessa encruzilhada, minha idéia foi a convocação de
uma reunião de críticos e historiadores de todos os países da América Latina
para que, num debate de três dias, se discutisse e votasse a vocação, o destino
das Bienais de São Paulo: tornar-se uma Bienal Latino-Americana como re­
ferido acima ou decididamente permanecer uma Bienal Internacional como
até então fora (esquecendo-nos de uma seqüência para a Bienal da América
Latina). Foi esforço penoso e difícil. N o debate sugerido, uma das alternati­
vas que figurava igualmente importante — embora precisasse posteriormen­
te ser apoiada pelo grande Conselho da Bienal em votação —- era a modifi­
cação da periodicidade das Bienais: por que não passar a ser trienal ou qua­
drienal, posto que para a maioria dos países era tão difícil financeiramente
arcar com suas participações?
O resultado não foi favorável a minhas idéias, pois que críticos e ani­
madores culturais fundamentais como Glusberg, da Argentina, ou Gloria
Zea, da Colômbia, se uniram numa frente em prol de uma Bienal Interna­
cional. O comentário de Juan Acha no ano seguinte foi que eu quisera ser
muito democrática, ao convidar personalidades de todas as facções, mas fora
politicamente inábil.
O desgaste não me permitiu ter vontade de continuar como curadora
da Bienal de 1981 e demiti-me do cargo — ou seja, perdi a oportunidade de
organizar uma Bienal, porque tudo tem seu tempo na vida, e me recusei a
realizar essa empreitada. Durante um tempo, me arrependi, mas hoje não o
lamento (minha paixão estaria concentrada no que pude realizar no MAC-
USP durante o quadriênio 1982-1986).
Luís Villares convidou então para esse evento Walter Zanini, que orga­
nizou uma Bienal com múltiplas curadorias, um colegiado internacional que
repartiu entre si as diversas áreas de ação, postura que seria seguida nas edi­

96
BIENAIS O U DA IM POSSIBILID AD E D E R ETER O TEM PO

ções seguintes da Bienal nos anos 90, em franca recuperação enquanto even­
to vivo.
Mas a Bienal já mudara também quando, em fins dos anos 60, elimi­
nara os prêmios de aquisição, que permaneciam no Brasil, e beneficiavam o
MAM de São Paulo e depois o M AC-USP, seu herdeiro, com obras a que
jamais teríamos acesso por nossos próprios meios. Por que se aboliram os
prêmios? Sob a alegação de que os júris de premiação das Bienais, e a pró­
pria entidade, ficavam muito à mercê do mercado de arte, que exercia pres­
são para beneficiar seus artistas. N a verdade, a partir de então, nossas cole­
ções de arte brasileiras foram privadas de possuir artistas (como os do movi­
mento pop norte-americano, e depois os contemporâneos), posto que nossos
meios econômicos nunca poderiam arcar com esses custos.
No entanto, como vimos nas últimas Bienais de São Paulo, nos anos 90,
o marchand Marcantonio Vilaça foi mencionado como tendo influído na
presença de seus artistas — na verdade, os melhores do país — , exercendo,
portanto, um certo tipo de pressão não muito diferenciada daquela rejeitada
nos anos 60, quando se tratava de aquisição de obras.

QUAL O SENTIDO DE UMA BIENAL HOJE?

A Bienal é hoje, indiscutivelmente, um evento internacional tão aguar­


dado como a Bienal de Veneza ou a Documenta de Kassel. Porém, prolifera­
ram as Bienais. Não são somente Veneza e São Paulo. Mesmo depois de en­
cerrada a Bienal dos Jovens, em Paris, vigente nos anos 60, surgiram Bienais
de Havana à África do Sul, de Istambul a Sydney; várias cidades do hemis­
fério sul e do hemisfério norte querem sediar uma Bienal, internacional ou
regional, como a de Cuenca, no Equador; de Lima, no Peru; do Mercosul
(em Porto Alegre, Brasil); de Lyon, na França; de Pontevedra ou Valencia,
na Espanha; e a Trienal de Yokohama, no Japão.
A partir do início dos anos 80, a Bienal adquire um novo caráter in-
ternacionalista, por ser palco — ou vitrine, novamente — das tendências
globalizantes a que assistimos, com as transvanguardas, com o retorno da pin­
tura por toda parte, como um movimento único, de vocabulário similar; po­
rém, suplantada depois da segunda metade dessa década de 80 pelas instala­

97
A PRO PÓ SITO DAS BIENAIS

ções, fotografia, videoarte e seus congêneres, e, entre nós, pelo quase desapa­
recimento da pintura. Os artistas jovens brasileiros dos anos 80 e 90 passa­
ram a ser observados com maior cuidado por sua criatividade, improvisação,
senso de humor, recorrência inusitada a novos materiais e sua manipulação,
competindo com artistas do Primeiro Mundo, mantidas sempre as limitações
de projeção que se impõem aos artistas de países emergentes como o Brasil.
Percebe-se, aos poucos, contudo, que pouca coisa há de novo no meio
das artes. É só olhar o catálogo de “Information” , exposição ocorrida no
MoMA, em Nova York, no verão de 1970 — e de que participaram brasi­
leiros como Oiticica, Cildo Meireles, Barrio, Guilherme Magalhães Vaz. A
partir desse catálogo, hoje lembrança viva, percebemos que, do ponto de vista
formal, a arte teve pouco a avançar, se pensarmos em termos de conquistas
formais. Como se tudo já tivesse sido realizado. Cabe aguardar apenas que
uns poucos iluminados tragam contribuições inéditas, o que vemos com rara
freqüência. Ocorrem apropriações, remanejamentos, muita coisa reformu­
lada, anteriormente criada, mesmo com desconhecimento desse fato por seus
autores-artistas.
No entanto, por ser um evento esperado, foi lamentável o adiamento
da Bienal de São Paulo, pela primeira vez em sua história, exatamente quan­
do completaria cinqüenta anos de existência de edições ininterruptas. Des­
respeitoso, politicamente incorreto, independente de ser a Bienal hoje mais
ou menos relevante para o meio artístico.
O nomadismo artístico pressupõe simultaneidade de aparições, o artista
e o curador internacional em trânsito constante por aeroportos, este último
produzindo textos rápidos, que digita em apartamentos de hotel, enviando-
os por e-mail, repetindo a escolha de artistas que reaparecem nas sucessivas
Bienais do mundo, concebendo “idéias” expositivas mais que projetando
obras de arte de autoria singular. Afinal, talentos não surgem a todo momen­
to, e os “clássicos” da contemporaneidade são aqueles mesmos que todos nós
conhecemos e estão há anos nas Bienais, passando-nos a impressão de que a
renovação é parca, difícil.
O Brasil é um país rico de artistas. N a América Latina é, sem dúvida, o
país onde ocorre mais renovação. Ainda assim, todos sabemos dos nomes que
continuam sendo convidados — quase os mesmos de sempre — para os even­
tos mais badalados do mundo, por uma razão muito simples: são conheci­

98
BIENAIS O U DA IM POSSIBILIDADE D E RETER O TEM PO

dos. H á sempre implícito, nos curadores, o que pode ser natural, uma certa
insegurança, ou o temor pelo desconhecido. Assim, é melhor apostar naque­
les que já foram ratificados internacionalmente.
N a verdade, longe de possuir um caráter inovador enquanto pólo infor­
mativo, como há quarenta ou cinqüenta anos passados, todas as Bienais e
Documentas existentes se tornaram, pela característica global da época, ver­
dadeiros salões. Ou exposições coletivas internacionais. Se a informação rola
com quase simultaneidade em todos os campos da vida de nosso tempo, sua
presença exerce pressão e compromete também a reflexão sobre arte, que dei­
xa de existir, pela própria necessidade da informação mais recente.
Os curadores se associam, repartem suas atividades e viagens culturais,
fazem contatos e estabelecem articulações para eventuais ações futuras, ou
presença, em encontros de teóricos. Os artistas, por outro lado, no mundo
de hoje, permanecem à parte, desvinculados dos eventos, a não ser como ma­
téria-prima bruta, focalizados ou contatados através de suas obras existentes
em museus, coleções particulares ou mesmo em seus próprios ateliês, mas
apenas como fornecedores da matéria-prima. Desfaz-se, dessa forma, a liga­
ção entre o crítico e o artista, como existira em outras décadas para a refle­
xão ou troca de idéias. Já as entidades, mesmo se acéfalas culturalmente falan­
do, mas desde que possuam ligações com patrocinadores de eventos, são as
que exercem a parcela mais dinâmica do processo de montagem de um evento
do mundo das artes visuais. A estes produtores de eventos, em geral finan­
cistas, cabe o levantamento de fundos, e, embora nao sejam intelectuais,
também a escolha de curadores para seus desígnios, para a concepção e a se­
leção de obras para seus eventos.
A Bienal, hoje, é apenas um evento a mais, e não “o evento”, tal como
ocorreu há cinqüenta anos. Porque devemos reconhecer que o Brasil está, de
algum modo, inserido em certo circuito de exposições internacionais, o que
não deixa de ser um avanço, ainda que nem todas essas mostras sejam excep­
cionais. Mas podemos ver “em casa”, pelo menos em duas capitais do Brasil,
como São Paulo e Rio de Janeiro, eventos impensáveis cinqüenta anos atrás,
fora do âmbito exclusivo da Bienal. Prova inegável dessa afirmação é a sofis­
ticada exposição “Parade”, agora no Parque Ibirapuera, antológica mostra
sobre a criatividade no século X X nas artes visuais, a partir do acervo do Cen­
tro Georges Pompidou (claro que sob a ótica francesa, a desejar provar ine­

99
A PROPÓSITO DAS BIENAIS

quivocamente que os franceses estavam lado a lado, ou, simultaneamente,


com os Estados Unidos, nas experimentações do pop, neo-dada ou nouveau
réalisme, no início dos anos 60). N o entanto, exposição impecável, sobretu­
do do ponto de vista museográfico, mostrando, sem alardes, a alta tecnologia
a serviço da cultura.
O que seria necessário é que esses eventos fossem visíveis em outras ca­
pitais do país, que houvesse um circuito interno para sua circulação — o que
evidentemente pressupõe patrocínios em cada local — , pois temos várias ca­
pitais com equipamento condizente para exposições de nível internacional.
Por outro lado, é raríssimo vermos artistas participando de uma mesa-
redonda, em debate sobre sua obra ou movimento, dialogando com críticos.
Ocorreu um divórcio, implantou-se um paralelismo de funções que somen­
te pulverizou a riqueza da discussão sobre a criação artística contemporânea.
Talvez seja um sinal de nosso tempo. Talvez seja uma circunstância da qual
não possamos escapar.
Hoje se exibem grandes produções, e não mais realizações reflexivas ou
revolucionárias. O escândalo é cada dia mais raro. Porque, além do mais, in­
dependentemente da teatralização das exposições, do recurso à cenografia
impositiva, a fim de atrair público e, assim, justificar os investimentos, cho­
cante mesmo é só o espanto terrificante do mundo diante da televisão — ou
ao vivo — frente à queda das duas torres do World Trade Center, em Nova
York, a 11 de setembro de 2001.

100
Parte 2
Artistas contemporâneos no Brasil
14.

Hélio Oiticica: tentativa de diálogo1


[1977]

ARACY AMARAL — O que eu queria te perguntar? A partir dos Penetráveis,


em comecinho da década de 60, eu acho que vocêj á estabelece, assim como a Ly-
gia Clark depois dos relevos, um salto do que seria a passagem da década de 50
para a década de 60. E como você é uma das raras pessoas, ao lado da Lygia
Clark, que, vindo da década de 5 0 teve muita influência nos que emergiram nos
anos 60, eu queria um depoimento seu sobre o não-objeto, do ponto de vista neo-
concreto, a realidade ambiental (environmentalj dos anos 60, em função da in­
formação norte-americana... M as naquele ponto era ainda uma decorrência das
experiências do Neoconcretismo...
HÉLIO OITICICA — Eu acho que é por isso que então, e mesmo hoje,
[meu trabalho] difere bastante da coisa americana, environmental. Eu acho
que o enfoque norte-americano das coisas ambientais é mais na linha super-
realista e não tão sintética, ao passo que as minhas coisas são exatamente o
oposto. Eu nunca poderia fazer as coisas de Christo, nem earth works...

ARACY AMARAL — Ah, você diz pela maior propensão ao mágico...


HÉLIO OITICICA — Por exemplo, Bólides ( 1963 ), com terra dentro, é
muito mais moderno agora do que earth works, porque aquilo é um pedaço
da terra. Tinha até um Bólide que planejei, mas que eu nunca fiz. U m dia eu
vou ao Brasil só para fazer, era um Bólide com terra do morro da Manguei-

1 Depoimento gravado em Nova York, em outubro de 1977, na residência do artista em


Christopher Street, no Village. Agradecemos a Luciano Figueiredo pela ajuda na identificação dos
nomes mencionados.

103
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ra. T oda essa mitificação é sintetizada numa coisa sem ser isso de quadro ou
escultura, é um pedaço da coisa. Ao passo que ir a um lugar para fazer uma
coisa (houve um tempo que eu fazia isso, uma etapa dos Bólides, eu chama­
va de apropriações). D aí porque earth works para mim fica uma coisa muito
ligada a uma visao americana de super-realismo. Ao passo que a minha coi­
sa vem já de uma outra coisa, talvez de origem européia. Talvez, não: certa­
mente. Européia, que é mais sintética. E citaria essa evolução, que vem dos
construtivistas.

ARACY AMARAL — Em relação ao pessoal mais jovem que começou a tra­


balhar inspirado nas coisas que você fazia, como um Rubens Gerchman, um
Antonio Dias, qual a ligação entre o que eles começaram a fazer e o que vocês
faziam ?
HÉLIO OITICICA — O Antonio Dias acho que tinha influência da Lygia
Clark. Sob um certo ponto de vista, um tipo de visão sintética das coisas, ele
é muito próximo.

ARACY AMARAL — O Antonio D ias de hoje? Porque naquele tempo ele tra­
balhava com relevos.
HÉLIO OITICICA — Eu acho que no começo aqueles relevos lembram,
têm uma certa relação, apesar de ele usar formas diferentes, e ter-se manifes­
tado de uma forma diferente...

ARACY AMARAL — Porque ele tinha uma influência muito grande dos
comics, comic strips...
HÉLIO OITICICA — E, eu sei, mas a maneira de apresentar aquela coisa
recortada, tinha um certo tipo de monumentalidade que eu sempre achava
que me lembrava aquela fase preta da Lygia, que eu acho a coisa mais impor­
tante, das mais importantes. H á uma grande diferença, por exemplo, entre
aquelas coisas da Lygia que tem aqui, aquele quadro preto que, aliás, é uma
maravilha, este dos quadrados... Eu tenho um, aliás, lá em casa, que é um
quadrado só com a linha, com a coisa branca em volta que não é pintada,
aquela linha branca é uma outra placa por baixo, ela não é pintada na super­
fície, eu acho tudo isso muito diferente da pintura americana que ainda é
pintada, é uma tela pintada com as linhas [...], porque aquela coisa, se fosse

104
H ÉLIO O ITICICA : TEN TATIVA D E DIÁLOGO

Hélio Oiticica em Nova York, 1973.

assim uma coisa preta, tela preta com a linha pintada em cima não é a mes­
ma coisa que...

ARACY AMARAL — M as você viu aqui aquele artista de hoje, o [Robert]


Mangold? Dezoito anos depois, ele usa exatamente a justaposição de superfícies e
depois a linha também, que ela chamava de linha orgânica. M e lembrou muito
a experiência da Lygia Clark, de 1959.
HÉLIO OITICICA — Agora essa outra fase final, que era o fio do espaço,
isso eu acho a maior coisa que já foi inventada, essa história de fio do espaço.

ARACY AMARAL — Essa dos quadros negros?


HÉLIO OITICICA — E. A coisa do fio do espaço, é incrível, porque ela
não é nem coisa assim... Ela é como que o fio do espaço, o limite entre a su­
perfície e o espaço...

105
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ARACY AMARAL — Entre a superfície de representação e o espaço real.


HÉLIO OITICICA — Ah! Até hoje é uma coisa que cada vez que a gente
olha é assim surpreendente. Quer dizer, tudo isso veio dessa coisa. Por isso é
muito difícil aqui, por exemplo, esse tipo de coisa. Eu estava notando que as
pessoas sabem o que fazem, atraem muitas pessoas que não entendem nada,
que não estão por dentro do problema da arte, ficam muito atraídas pela rea­
lidade desse tipo de coisa que é exatamente o que eu quero. Eu não quero
mais fazer coisas que as pessoas vejam como se fosse uma exposição, mesmo
que seja do lado de fora. Eu acho que os americanos fizeram muito isso, aque­
las cortinas do Christo, não sei o quê, você vai para a natureza para ver uma
exposição.

ARACY AMARAL — Então épara isso que eu volto, para aquele dado de par­
ticipação que fo i a grande contribuição da década de 60.
HÉLIO OITICICA — Isso eu acho que é muito difícil de entender aqui,
porque tudo em Nova York, mesmo o espaço urbano, é show, é “show-e.spa-
ço urbano”, nunca há essa coisa de participação.

ARACY AMARAL — E mais cenográfico.


HÉLIO OITICICA — E tudo cenográfico, a própria rua, você entende, se
você faz uma coisa na rua já não tem participação, as pessoas começam logo
a racionalizar como se fosse um “evento”, e chamam de... “Fm goingto do a...
in Washington Squaré', entende? Então por que não faz logo dentro de casa,
já que em Nova York não tem muita diferença dentro de um museu ou na
rua? Ao passo que no Brasil tem.

ARACY AMARAL — M as você não acha que isso pressupõe também uma aber­
tura do ponto de vista do diálogo com o espectador ou com aquele que está assis­
tindo, vendo ou participando?
HÉLIO OITICICA — Ok, ok...

ARACY AMARAL — Essa possibilidade que, digamos assim, no Brasil a gen­


te ofereceu na década de 60...
HÉLIO OITICICA — N o espaço urbano, eu acho...

106
HÉLIO O ITICICA : TENTATIVA D E D IÁLOGO

ARACY AMARAL — D aí que eu queria saber como você definiria essa parti­
cipação que ocorreu na década de 60.
HÉLIO OITICICA — Eu acho que, desse ponto de vista, pode-se dizer que
essa coisa é muito latino-americana.

ARACY AMARAL — Quer seja com você, com o Gerchman...


HÉLIO OITICICA — Ah, bom, você diz, participação de um ponto de
vista...

ARACY AMARAL — Digamos, através de propostas suas de trabalho, enten­


de, como quando vocêpegava um pano e dizia: “Este pano não pode ser cortado,
cada um tem que utilizá-lo...
HÉLIO OITICICA — Essa eu acho bem diferente da do Gerchman. Eu
acho que tenho nesse caso mais ligação com a Lygia Clark e com outros. Acho
que nesse ponto as coisas de participação dele eram bem diferentes. Eram
interessantes, mas eram diferentes. Abordamento...

ARACY AMARAL — As coisas que ele vem fazendo no fim da década de 60.
HÉLIO OITICICA — O abordamento... aquele negócio de ônibus, e de
caixa, era uma coisa, eu acho, bem distante. Tudo que também diziam que
estava próximo de mim estava mais distante. Eu não sei explicar por quê.

ARACY AMARAL — Porque a sua participação estava muito mais no senti­


do da evolução do sensorial também, esse sentido que a Lygia Clark...
HÉLIO OITICICA — Descoberta do corpo.

ARACY AMARAL — Descoberta do corpo. Tátil. Não é?


HÉLIO OITICICA — Isto eu escrevi. Você vai gostar de ver uns textos, eu
tenho que separar para te mostrar, eu vou fazer uns xerox, e não pode mos­
trar a ninguém porque são inéditos. Esse negócio de evolução que eu chamo
assim de uma fase de mitifxcação e, depois, uma outra de desmitificação. Em
todas as coisas que eu fazia, mesmo essas participações... Parangoléera assim.
Até, por exemplo, essa coisa do pedaço do morro da Mangueira era fase de
mitificação, mas logo em seguida eu tive que fazer imediatamente a coisa da
desmitificação.

107
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ARACY AMARAL — E como fo i essa, qual é essa...?


HÉLIO OITICICA — Por exemplo, essa coisa toda escrita e a consciência
que eu tive aqui quando cheguei, eu... ainda estou, aliás, na fase de desmiti-
ficaçao de tudo da década de 60, você entende? O que me faz ver a coisa da
década de 60 melhor, e também quebra aquela hipnotização da mitificação.
Eu acho importantíssima essa coisa de desmitificação. E eu tenho impressão
que o Gerchman, quer dizer, a coisa que atrapalhou esse pessoal todo, foi fi­
car na fase de mitificação, não conseguir sair.

ARACY AMARAL — [Falando ao m e s m o t e m p o ] É lógico... Não, porque o


curioso é que você vem para Nova York exatamente no fim da década [...] então
não conseguir sair e não saber se ver também em perspectiva, é esse o problema
de que você está falando, e que você teve que fazer [...].
HÉLIO OITICICA — Sabe por quê? Ah, é, eu fiz na [inaudível] E depois
você faz também, como a Lygia Clark, esse negócio dela dizer que não quer
ser chamada de artista, não sei o quê, ela faz desmitificação. Então você tem
que ter uma cabeça forte, você tem que ser muito forte, tem que ter uma ca­
beça, uma consciência, quer dizer...

ARACY AMARAL — Lucidez.


HÉLIO OITICICA — Uma lucidez incrível. Eu, nesta fase que disse a você,
nestes anos todos que não tenho te visto, que eu escrevi todo esse material,
tem cadernos e cadernos, você sabe, eu digo assim: “eu tenho até medo de
olhar isso outra vez e achar que é uma porcaria”. Cada vez que eu abro fico
admirado, digo: “eu que escrevi isso?”. Eu quase desmaiei! Que eu tava uma
lucidez! Eu digo: “Ah, então valeu a pena os dias todos acordados”, você en­
tende, mas são cadernos e cadernos, você não calcula o que seja.

ARACY AMARAL — M as você considera que hoje esse trabalho, digo, todo esse
processo, que eu acho que é muito mais um processo de desmitificação, j á termi­
nou? Vocêj á considera isso uma coisa encerrada?
HÉLIO OITICICA — Não... eu acho que agora está numa fase, talvez, sei
lá de quê... eu não sei o que é, eu acho que esse ano houve uma mudança.
Quando eu comecei essa..., quando eu fiz essa coisa, comecei isso em janei­
ro... [mostra um projeto]

108
HÉLIO OITICICA : TEN TA TIVA D E DIÁLOGO

ARACY AMARAL — Que número é? Dezessete? Que número é esse projeto?


HÉLIO OITICICA — Esse projeto é Penetrável... Tem que ver, ainda não
está classificado, tem que ver o número. Eu tenho que olhar. Acho que é de­
zessete, me dá essa pasta... E, é dezessete. Olha como ela tá detetive!

ARACY AMARAL — Não, não! E porque eu olhei a í e você me descreveu,


quando eu estive aqui, que fo i aquele Nada-nada.
HÉLIO OITICICA — E o N ada, é; e você já conhecia isso?

ARACY AMARAL — Você me descreveu esse.


HÉLIO OITICICA — E, então é esse, então esse é o dezessete. Veja como
ela está esperta! Dezessete! Olha...

ARACY AMARAL — Então é o primeiro que vocêfa z depois?


HÉLIO OITICICA — É .

ARACY AMARAL — Não me diga!


HÉLIO OITICICA — Você sabe por quê? E ele é totalmente isso, na reali­
dade é, eu considero... ah não: esse daqui já era uma fase de passagem. Ago­
ra eu considero todas as outras coisas anteriores como uma espécie de prelú­
dio para o que vem. Quer dizer, na realidade, isso é muito outra coisa do que
aquela... que é essa fase toda que eu estava escrevendo, não sei o que, esse
material todo e eu disse assim: “Eu não estou interessado [interrupção na gra­
vação] de idéias, esse negócio, eu quero [inaudível], tudo, para ficar assim nes­
sa, assim, como se fosse em suspenso, ou como o Quentin Fiore2 até chama
esse negócio de [inaudível]”. Eu disse assim: “Ishould driftfor a while”, en­
tende? Aí, de repente, me deu essa vontade assim de fazer, digo: agora quero
de repente fazer coisas físicas...

ARACY AMARAL — Concretadas.


HÉLIO OITICICA — Concretadas! E! Aliás, eu pensei nesse termo mes­
mo, é ótimo esse. Concretadas. Mas aí eu vejo pela distância qual é a dife­

2 Designer gráfico que fez projetos para Marshall McLuhan e Buckminster Fuller.

109
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

rença, é uma outra coisa, totalmente... ao passo que aparentemente, eu digo


que a primeira coisa que vai acontecer quando alguém olhar é: “Ah, você está
retomando as coisas antigas”, mas isso é um engano total.

ARACY AMARAL — Não. Acho que tem um outro sentido também, ainda...
HÉLIO OITICICA — Um outro sentido, totalmente diferente e muito mais
maduro, mais de coisa... Mais sintético. [...] na realidade é ninho também,
tem uma relação com o ninho, incrível essa coisa. Você sabe que tem pessoas
que não sabem nada, que chegam assim e dizem assim: “Ah, isso aqui é ge­
nial! Eu queria morar aqui dentro”. Aí eu disse assim: “Vai ver que isso aí é
tão ninho quanto é penetrável” . Quer dizer que na realidade essas divisões
todas de penetrável, não sei o quê, tão ficando todas uma coisa só. Agora, a
coisa para a Judite, eu disse assim um negócio que ela quase caiu dura. Ela
disse assim: “Ah, você afinal chamaria de quê? De arte environmentalV'. Aí
eu digo: “Não, para mim é música”. Aliás, eu disse isso para o Haroldo de
Campos assim, e eu disse também para alguém que chegou no Brasil e disse
que eu tava, “Ah, agora ele disse que estava fazendo música” . Mas eu não tô.
Eu disse assim: “N a realidade a coisa que eu sei que é música porque a músi­
ca não é mais como uma das artes, você entende? Não existe, eu também acho
que essa divisão de arte de músico, não sei quê, não sei quê, isso não existe
mais. Agora, eu, isso é música. Eu sei que a única coisa em que eu vejo rela­
ção com isso é a música. Eu não vejo outra... sei lá por que... por isso é que
não precisava, por isso é que pensei quando a Ondina [filha de Quentin
Fiore] falou “Ah, tem alguma música...”, eu disse assim: “Sim, que coisa es­
quisita, parece assim como botar, você bota assim sal com açúcar, qualquer
coisa”, me deu aquela sensação, como se você estivesse comendo sal e açúcar
ao mesmo tempo... eu digo: “já é música”, não precisa acrescentar música.
Engraçado isso, eu não sei por que, mas é assim. Não que seja musical, essa
relação transcendental da música com as coisas, como Kandinsky, nem nada
disso. E outra coisa.

ARACY AMARAL — Não, porque inclusive aqui não sei, acho que você põe
um problema assim, do tempo, do silêncio, tudo isso, que [...] no sentido em que
nos outros você ainda recorria a um problema de performance, do problema,
digamos, a cor jogava um papel muito importante na criação de ambientes e

110
H ÉLIO O ITICICA : TEN TATIVA D E DIALOGO

aqui eu acho que você j á está numa redução mais radical, entende, problemas
das sombras, da luz...
HÉLIO OITICICA — E, exato, e o espaço que penso é o tamanho disso em
relação à pessoa quando você entra dentro e eu [...] as coisas, você vai ser as­
sim como se você entrasse na barriga...

ARACY AMARAL — E eu acho também que outra coisa importante é o


módulo.
HÉLIO OITICICA — É , o módulo, como se você tivesse entrado na barri­
ga da baleia, ou alguma coisa assim, eu sinto muito essas sensações... de Moby
Dick. Aliás, o Júlio [Bressane] vai dar gritos porque ele adora essa história de
Moby Dick. Faz um tempo ele descobriu que a mãe dele era Moby Dick. Ai
nós descobrimos que Moby Dick começou a ser escrito em Manhattan — daí
um dia tava um diajfog, nós saímos à rua e ele disse assim: “Mas na realidade
a ilha de Manhattan era fundo do mar, antigamente, era coberta por mar”.
Eu digo: “N a realidade, a gente está na própria M oby Dick” . Que foi uma
sensação estranhíssima, porque estava assim um fog, como se você estivesse
no fundo do mar! Foi incrível essa... aí eu pensei muito nessa história, por­
que essas coisas são... e elas são leves, e depois a coisa coletiva dentro, você
entende, não é mais, ao passo que os Penetráveis antigos eram uma coisa ain­
da de ficar tudo ao alcance, na altura da visão. Era uma coisa que eu sempre
tinha. Essa mania de ficar não era mais olhar o quadro, mas era uma coisa
toda, você quase que cheirava ela. Aliás, tinha um cheiro.

ARACY AMARAL — Era um envolvimento da cor. Bom, mas aquela era uma
preocupação sua naquele tempo, no fim da década de 60.
HÉLIO OITICICA — Mesmo em Tropicália (1966), daquela coisa do es­
curo, de entrar por dentro de fios, sabe, essa coisa toda com o corpo era sem­
pre uma coisa para o corpo dar a medida dele mesmo. Ao passo que aí não,
não tem mais a medida, é uma outra coisa nem sei do quê...

ARACY AMARAL — É outra escala. É uma coisa assim mais monumental.


Você vêpela sua própria concepção de espaço. H á uma monumentalidade implí­
cita nessa construção, nessa arquitetura.
HÉLIO OITICICA — E a proporção, o módulo, eu acho muito importante.

111
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ARACY AMARAL — É assim, j á completamente de fora daqueles ambientes


pequenos que você tinha previsto, porque agora o negócio é assim, think big...
HÉLIO OITICICA — [Olhando as maquetes de seus projetos ambientais]
E é uma coisa para ser construída. E isso daí fica como se fosse sendo uma
parte de um núcleo. E a Martine,3 que teve a idéia de mandar. Eu disse as­
sim: “Meu Deus, eu não posso mandar a maquete original, como é que vou
fazer?” . Aí ela disse: “Faz um videoteipe da maquete para instrução da cons­
trução”, entende, essa idéia foi ótima porque é a mesma coisa, como se a
maquete estivesse lá, eu apareço mexendo e falando, mostrando...

ARACY AMARAL — M as um super-8 também pode dar, não pode?


HÉLIO OITICICA — Não, não, é muito curto. Porque uma meia hora de
videoteipe foi ideal, meia hora dá para mostrar e explicar, então é a mesma
coisa que se a maquete estivesse lá mexendo.

ARACY AMARAL — Vocêfez isso?


HÉLIO OITICICA — Fiz. E mandei para a Bienal. Porque se eu mandasse
também a maquete, eu teria que estar presente, porque só eu entendo, vamos
dizer, as convenções da maquete. Então, de qualquer jeito eu ia ter que ex­
plicar. Então eu digo que a explicação fica dada no videoteipe e aparece a
maquete ao mesmo tempo, e a explicação e o original ficam aqui. Quer di­
zer, na realidade, eu tenho que fazer vários videoteipezinhos: em inglês, em
português, faço um em inglês e outro em português. Eu tenho que fazer um
em inglês porque aí fica como [...] e com as plantas e as instruções escritas
também, entende? Tudo isso eu vou botar assim num pacote prá...

ARACY AMARAL — Então eu vou pedir lá na Bienal, vou pedir pro Luís
Villares^ para eu ver isso. Só quero ver.
HÉLIO OITICICA — O que fizeram não sei. Aí eu botei assim: “Proibi­
do...” . Aliás, de cinco em cinco minutos eu dizia no teipe: “Esse teipe não é
para ser exibido. E proibida a exibição do teipe”. Vai ver que [...] passado lá!

3 Martine Barrat, fotógrafa francesa residente em Nova York.


4 Industrial de São Paulo, então presidente da Fundação Bienal.

112
H ÉLIO O ITICICA : TENTA TIVA D E D IÁ LO G O

Eu tou fazendo papel de palhaço. Eu mato! Eu juro por Deus que eu esga-
no. Luís Rodrigues, como é, Rodrigues Alves Filho...

ARACY AMARAL — E, mas ele vai me escrever, o Villares [inaudível].


HÉLIO OITICICA — Ah, você tem o endereço dele?

ARACY AMARAL — Do Luís Villares, tenho.


HÉLIO OITICICA — Ah, e aliás eu preciso. Boa idéia, porque eu não ti­
nha o endereço. E ele chegou aqui e eu gosto muito dele, aliás. Agora não
sei o que...

ARACY AMARAL — M as ele vai me escrever e vou perguntar para ele. Você
sabe o que eu gostaria que você me dissesse? Alguma coisa sobre essa participação
que começa através, digamos assim, dos objetos que vocêsfabricam , que são ma­
nipuláveis, que são entráveis, que são altamente sensoriais e, aos poucos, a parti­
cipação política que começa a se impor na década de 60 por outras razões, mas
dentro da qual vocês também começam a atuar, digamos assim, e que vai culmi­
nar naqueles trabalhos do aterro do Flamengo, lembra? Que houve em 68...
HÉLIO OITICICA — Mas politicamente falando era muito na linha...

ARACY AMARAL — M as não era uma necessidade, não fo i uma necessida­


de, eu queria perguntar isso para você, não fo i isso uma necessidade de diálogo
não mais da classe artística com a classe artística, mas da classe artística com a
cidade? Isso que eu quero saber.
HÉLIO OITICICA — Eu só tenho isso. Aliás, é isso que é todo o destino
do meu trabalho, acho que sempre foi esse. Tanto é que já começou com a
quebra [?] para a Mangueira em vez de ir para reuniões artísticas. Todo mun­
do pensa, ninguém entende que eu nunca tava, não ia a exposição nenhu­
ma, não ia a reunião artística nenhuma. Eu ia todo dia para a Mangueira. Já
começa por aí. E todas as coisas que eu fiz, na realidade, como... era a mes­
ma coisa na Galeria G 4,5 eu fiz pouquíssimas coisas. Era uma coisa [...] era

^ Galeria onde Hélio Oiticica fez a sua única exposição individual — no caso, uma “Mani­
festação ambiental” — na cidade do Rio de Janeiro, nos anos 60.

113
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

linda, aliás. Eram coisas muito mais dirigidas ao público heterogêneo do que
à classe artística. Em Londres, a mesma coisa.

ARACY AMARAL — M as a í havia uma contradição. Porque em Londres você


sanou essa contradição, digamos assim, pelo próprio exercício cultural que a po­
pulação j á tem. M as na G4, realmente, continuava ainda a pequena elite que
vai sempre a todas as exposições.
HÉLIO OITICICA — N o caso daquela galeria, sim. Mas já no Museu de
Arte Moderna, no aterro...

ARACY AMARAL — E no Museu de Arte Moderna quando aconteceu Tro-


picália; descreva um pouquinho como é que se passou isso.
HÉLIO OITICICA — Ah, eu não sei. O público heterogêneo era muito
grande, eu acho. Muito maior por causa da localidade, da localização do M u­
seu de Arte Moderna e das pessoas que passeiam ali por dentro todos os dias.
E não era paga a entrada, nem nada disso. Era como se fosse um parque...

ARACY AMARAL — E quanto tempo levou isso? Quantos dias? Foi um dia só?
HÉLIO OITICICA — Não! Muitos! Talvez um mês. Ou um mês e meio.

ARACY AMARAL — E como ocorria essa participação com o público?


HÉLIO OITICICA — Era ótima, em geral. O pessoal da classe artística e
não-sei-o-quê ficava um pouco desconfiado. Tinha gente que se recusava a
entrar dentro da cabine. Agora, gente de rua que vinha era a maior coisa. O
pessoal da Mangueira delirava. Todo mundo falava em Parangolé da Man­
gueira. “Ah, Parangolé, isso daqui é o Parangolé!” Toda coisa que aparecia:
“Olha aqui o Parangolé. Que tal o meu Parangoléi” E enrolavam o pano na
cabeça.

ARACY AMARAL — Quer dizer, eles assumiram mesmo?


HÉLIO OITICICA — E , a coisa contagia! E isso que eu estou notando, com
esse negócio também [refere-se às maquetes], como contagia. O filho da
Martine, que detesta tudo que é coisa de pintura, e tudo isso, não tem o me­
nor interesse, ficou horas brincando com aquelas coisas ali.

114
H ÉLIO O ITICICA: TENTATIVA D E DIALOGO

ARACY AMARAL — Você não acha quefo i precursor com os Parangolés? Você
levava os panos para que as pessoas fizessem uso, não é verdade? Você punha à
disposição o material?
HÉLIO OITICICA — E, eu tenho uma experiência que é assim: que eu fiz
no Rio, em Londres e em Pamplona. Você viu as fotos de Pamplona?

ARACY AMARAL — Não, eu vi as de Londres.


HÉLIO OITICICA — Pamplona, você não soube dessa coisa? O Leandro6
foi lá fazer. Foi a maior maravilha. Ah, você não calcula o que é. Foi assim:
são três metros de pano, que você faz uma capa no próprio corpo, ligando
tudo com alfinete de fralda e depois você tira, porque o alfinete de fralda era
para prender naquele lugar e depois você cose, entende? Ou deixa o alfinete,
se quiser. Mas depois tira e depois passa para outra pessoa. Quando você tira
nunca mais veste da maneira que colocou, entende? Então fica como se fosse
um casulo. Agora, eu acho engraçado a diferença das coisas que acontecem
nos diferentes lugares. Em Londres era totalmente diferente. N a Espanha...

ARACY AMARAL — Em Londres como é que foi?


HÉLIO OITICICA — Em Londres ficou uma coisa assim bem inglesa.
Quer dizer, tudo toma a característica do lugar.

ARACY AMARAL — Ficou mais formalizado.


HÉLIO OITICICA — E. Era meio formal e meio assim [...]. À maneira
como ingleses se vestem.

ARACY AMARAL — Você me contou que tinha uma escola de arte perto. O
pessoal saía da escola de arte e ia descansar na sua exposição. Era outro tipo de
approach?
HÉLIO OITICICA — Ah, é. Exatamente. Eu até me esqueci disso. Você
se lembra mais do que eu. Agora, em Pamplona, você vai ver o que foi, eu
tenho uns prints. Eu vou te mostrar os quadros. Ficou uma coisa assim tão
espanhola. Tem uma que o cara, olha só, parece coisa da Idade Média, o cara

6 Leandro Katz, poeta e artista plástico argentino radicado em Nova York.

115
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

se cobriu todo de preto, então aparece a forma dele dentro de uma coisa preta,
como se fosse o corpo enterrado. Tinha uma coisa assim de cerimonial de
Idade Média, de coisa de morte também. E outros pareceram assim muito
Goya. A maneira de vestir... Ah, e tinha a coisa árabe. Tem uns assim que
faziam aparecer todos os estereótipos bem árabes. Coisas cobrindo a cabeça
em uma forma de cegonha. U m a coisa na cabeça com a forma de cabeça de
cegonha. Eu vou te mostrar as fotos.

ARACY AMARAL — Engraçado a maneira como você está me narrando esses


fatos, parece que é o artista que propicia, que apresenta uma proposta e que de­
pois se delicia fazendo uma interpretação própria da reação que essa proposta de­
sencadeou num número de pessoas. E como se você estivesse fazendo a leitura de
sua própria exposição, que não é mais sua. Você está recriando em cima da cria­
ção deles, feita em cima de sua proposta.
HÉLIO OITICICA — É. Exato. Exatamente. Isso tudo foi feito ao ar livre
naquela paisagem bem espanhola, logo depois que o John Cage e o David
Tudor6 fizeram uma experiência no mesmo lugar. Eu achei também uma
coincidência, de combinar as duas coisas, uma junto com a outra, ótima. E
tudo na paisagem, parece um negócio assim “heróico”. Olha só a coisa que
eu te falei. D a capa que o cara fez. E olha o lugar. Não é tão espanhol? Ah,
depois enterraram, e deitaram assim num lugar e fizeram uma coisa como se
estivessem enterrando. Você entende? Olha Goya! Você já viu uma coisa
igual, mais espanhola? Não pode existir, é demais!

ARACY AMARAL — Você esteve lá presente?


HÉLIO OITICICA — Não. Foi o Leandro que levou. Ah, eu também acho
ótimo isso porque é uma coisa que a outra pessoa leva. Olha isso aqui. O quê
que parece? [mostra foto] Não parece pintura espanhola, de todos os tempos?

ARACY AMARAL — M as isso fo i feito em que ano ?


HÉLIO OITICICA — Isso? A coisa de Pamplona, não sei. Eu tenho um
catálogo aí de 72, eu acho. Você nunca viu o catálogo? E um catálogo dessa

6 David Tudor (1926-1996), músico e compositor norte-americano de vanguarda.

116
H ÉLIO O ITICICA : TEN TATIVA D E D IÁ LO G O

grossura... Olha a coisa árabe. Moura. Que é que você me diz? E olha a inven­
ção, não é uma beleza? Olha aqui a coisa da cegonha, essa forma de cegonha!

ARACY AMARAL — M as issojá nãofo i você que deu, esse daqui? Elesfizeram?
HÉLIO OITICICA -— Não! São os três metros de pano para cada um. Quê
que você me diz? E olha essa coisa da cabeça. Isso parece até aquela inven­
ção de [Jimi] Hendrix, que o Hendrix inventou, aquela band, aquela head
band. Isso é tão espanhol! Não engana onde é; ela toma, ela sintetiza o lu­
gar. É por isso que Parangolé é o znú-folklore. Anti -folklore não, aliás, ela tor­
na possível que o folklore nunca seja o folklore. Folklore é uma coisa ainda
ligada à terra [inaudível].

ARACY AMARAL — Como é? Você está identificando folclore com cultura?


Porque daí, realmente, a sua proposta, digamos assim, a cultura de cada lugar
absorve a sua proposta e devolve.
HÉLIO OITICICA — Aliás, isso aconteceu, sabe, porque eu cheguei à con­
clusão que era impossível. Todo mundo dizia assim: “Repete a exposição da
Whitechapel noutro lugar”. Eu dizia assim: “Eu nunca repito nada”. Porque
agora a coisa não é feita como a Mona Lisa que vai fazer uma tournée e que
você sempre apreende aquela mesma coisa onde é que ela esteja. Não. Agora
é o contrário! A coisa é mais local. Porque ela se livrou dos universalismos.
Ela se tornou mais local. Isso é genial!

ARACY AMARAL — M as isso no caso de sua proposta, porque justamente ela


se molda àquele lugar... Não é uma imposição cultural.
HÉLIO OITICICA — Isso parece Picasso! Olha só [mostrando uma ima­
gem] . Você não vê uma forma de Picasso?

ARACY AMARAL — Não é uma imposição cultural a sua proposta. E la não


tem o caráter, digamos, de uma coisa estática, a qual os outros têm que observar
e perceber de acordo com aquele modo de estar universal. Não. Você fa z uma
proposta e cada lugar devolve de acordo com a sua própria cultura.
HÉLIO OITICICA — É. Exato. Quer dizer que nesse ponto, tem muito
também a ver com essa coisa da Lygia, que ela fazia, daquelas experiências
de baba. Aquela da baba antropofágica é a maior obra-prima que eu já vi.

117
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ARACY AMARAL — Você é a pessoa mais ligada a ela nesse sentido, eu con­
sidero.
HÉLIO OITICICA — É, coisa da baba antropofágica. É por isso que não
tem nada que ver com os eventos de Vito [Acconci] [...] nem nada disso. N a­
da que ver porque são events, e preparar a coisa de performance é a mesma coisa
que se fizesse outro tipo de arte... Eu estou cansado. Eu estou cansado tam­
bém desse negócio de [...] tem uma arte conceituai, já me dá assim arrepios.
Eu nunca vi uma coisa assim mais idiota que tenha sido inventada nesses tem­
pos de arte contemporânea. E depois eu estou cansado de ir nos lugares e para
ler coisas na parede. Não agüento mais. Eu estou de saco cheio.

ARACY AMARAL — Um livro a gente lê em casa...


HÉLIO OITICICA — E, eu sei, mas [...] com letrinhas assim, desse ta­
manho.

ARACY AMARAL — Papel quadriculado...


HÉLIO OITICICA — É, e você vai e todo mundo em pé. Ai, eu não agüen­
to! Não há perna que agüente nem saco também que agüente. Você não acha
um saco? E depois, “arte conceituai”, o termo é assim de dar dó.

ARACY AMARAL — É como se pudesse haver uma arte que não fosse con­
ceituai. M as isso é mais...
HÉLIO OITICICA — Eu sei. Mas isso é coisa de labeling americano. Esse
lado é o formalismo, um formalismo terrível.

ARACY AMARAL — Tudo tem que ter seu labei.


HÉLIO OITICICA — É. Catástrofe. E você tem que explicar e ninguém
entende. Quando começo a perguntar “o quê que você faz?”. Eles: “Ih, now
I ’m in trouble”. H a ha ha! [...] Daqui que eu explico, agora eu não explico
mais... Tem que andar com slides e iplé-plé-ple) mostrar tudo e falar, você
entende?

ARACY AMARAL — Isso é muito bom.


HÉLIO OITICICA — É. A única maneira é aquele catálogo da “Navilouca”,
o catálogo da Whitechapel. Porque senão... daqui que eu começo... Mesmo

118
H ÉLIO O ITICICA : T ENTATIVA D E DIÁLOGO

com as capas de Parangolé eu explico assim o funcionamento, por alto, e as


pessoas já fazem: “Ih, buthow is itdoneV'. Aí você vê como eles estão distan­
tes. Fica todo mundo dizendo assim: “tem umas coisas que vocês falam sem­
pre e que eu não consigo entender”. Digo assim: “Você não pode — Améri­
ca Latina, Brasil e Argentina e esses países — você não pode dar a medida
do que é, porque é totalmente diferente. Aqui você pode dar medidas da Chi­
na, mas da América do Sul, se você não tiver vivido a experiência, você não
pode dar idéia...”.

ARACY AMARAL — Sabe que é um problema de conformação mental, eu


acho.
HÉLIO OITICICA — E também coisas sem história. Aqui é muito fácil
aprender coisas com história, mas o Brasil é coisa a-histórica.

ARACY AMARAL — E uma realidade mágica, que se você não intui natu­
ralmente...
HÉLIO OITICICA — São modelos sem ser modelos. O Mário Pedrosa es­
creveu isso uma vez, são modelos, são moldes sem modelos, uma coisa assim.
Isso é muito importante. Aí eu explico certas coisas que não há meio de en­
tender. Eu digo: “T ed!7 Pára de...”. Eu dei berros outro dia: “Pára de per­
guntar essa mesma coisa!”. Não sei o quê que era o negócio sobre o Brasil.
Era um negócio de samba, eu não me lembro o quê que era. De favela, não,
do espaço da favela...

ARACY AMARAL — O quê você estavafazendo em 1964, 65, por a í?


HÉLIO OITICICA — Em 64 foram as primeiras capas de Parangolé. Já es­
tava fazendo Bólides e Penetráveis. Eu fiz tudo ao mesmo tempo. Bólides eu
comecei em 63.

ARACY AMARAL — Você acha que aquele seu trabalho sobre a Morte do cara
de cavalo tinha...
HÉLIO OITICICA — 6 5 ...

7 Ted Casde, companheiro de Leandro Katz.

119
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ARACY AMARAL — Você acha que a gente pode relacionar aquilo também
com o momento que o Brasil estava atravessando?
HÉLIO OITICICA — Eu ach o.

ARACY AMARAL — Porque você nunca teve nenhuma, digamos assim, im­
plicação do ponto de vista político, nada, nunca em sua obra teve uma definição
de uma form a aberta. M as toda a impressão do meio ambiente, nesse trabalho,
não pode estabelecer uma relação?
HÉLIO OITICICA — Pode. E era mesmo. Era quando um tava...

ARACY AMARAL — Era a época de sua experiência da favela? Fale um pou­


co da sua experiência na favela. Por que vocêfo i dançar na M angueira?
HÉLIO OITICICA — Porque eu já tinha muita ligação com a rua. Eu es­
tava nas ruas aos treze anos. Você pensa que eu ficava onde? Em Ipanema,
no Country Club? Minha experiência era assim: a Central do Brasil, a Lapa!
[risos] Já estava na barra pesada! Muito cedo, não posso falar em outros de­
talhes, mas, esse já dá para definir a barra em que eu já andava. E também
era para sair um pouco de uma espécie de opressão cultural, porque depois
daquele movimento neoconcreto, não sei-o-quê, eu tava com muita pressão
intelectual e tudo.

ARACY AMARAL — Então era quase que uma necessidade de equilíbrio,


não é?
HÉLIO OITICICA — Quer dizer, a minha trajetória ninguém podia saber.
Eu saía da casa da Lygia Clark para a Central do Brasil, quer dizer, eram as
pessoas com quem eu lidava. Eu me sinto em casa em lugares assim: bares
da Central, o Mangue! A Rose, esse menino que morreu, o Renot, era meu
amigo, era como se fosse meu irmão. E, eles soltaram ele da prisão, depois de
oito anos de prisão, para matar. Como sempre fazem no Brasil. Então, apro­
veitaram o Carnaval e mataram ele com tambores, olha só que morte... tri­
bal. N a área do Museu de Arte Moderna. E o pai dele era o Oto do Estácio.

ARACY AMARAL — Tem uma cara doce...


HÉLIO OITICICA — Ah, era um gênio, eu adoro. Como se fosse meu ir­
mão. Era uma pessoa que podia botar minha vida. E a família inteira era as­

120
H ÉLIO O ITICICA : TENTATIVA D E DIALOGO

sim: a Zezé, o Oto do Estácio, que era o pai; a Zezé, a mãe, e tem toda essa
família; a Rose, a Rose não sei se você conhece. Eles são assim, eu me sentia
como se estivesse em casa. Eles tinham essa casa grande no Mangue, na zona,
não era casa de prostituição, mas era uma casa grande porque eles moram,
era assim, o pai dele era partideiro, era do partido-alto do Estácio, tradicio­
nal, de muito tempo. Em casa, traficava-se cocaína, claro. Você sabe que eu
já estou em ambiente seleto desde cedo, né? Quer dizer que a minha experiên­
cia já vem de longo tempo. Ele tava na prisão, porque foi acusado de ser cúm­
plice de um crime em que nem mesmo no lugar ele estava, coisas do Brasil.
Porque alguém estava interessado em que ele ficasse na prisão. E a única vez
que ele saiu da prisão durante oito anos foi em um mês que o deixaram sol­
to, e aí houve uma festa lá em casa, no Jardim Botânico, uma festa que era
assim: todo esse pessoal, uma festa para ele. Tinha Parangolé, um cara cha­
mado Parangolé, que era o maior traficante do Mangue.

ARACY AMARAL — Era o nome dele mesmo?


HÉLIO OITICICA — Era, Parangolé.

ARACY AMARAL — Foi por causa do nome dele que você chamou de P a­
rangolé?
HÉLIO OITICICA — [rindo] Não, não, eu conheci depois. Foi uma coin­
cidência.

ARACY AMARAL — Ele era da M angueira?


HÉLIO OITICICA — Não, ele era do Mangue, era traficante. Agora ele está
preso porque ele era sempre solto. Pegavam e soltavam.. Mas depois que os
militares resolveram entrar no tráfico de drogas, aí pronto. Porque Parangolé
fornecia droga para todas as putas do Mangue.

ARACY AMARAL — Então fa la como você deu o nome de Parangolé.


HÉLIO OITICICA — Eu descobri na rua a palavra Parangolé. Tinha um
negócio armado que parecia muito com uma tenda que eu estava fazendo.
Sabe como? N a área, no caminho para a Mangueira, uma área da Praça da
Bandeira, tinha um terreno baldio, assim, junto da parede do trem da Cen­
tral. Tinha um negócio armado que era assim: quatro estacas de madeira fa­

121
ARTISTAS CO N TEM PO R ÂN EO S N O BRASIL

zendo a coisa, e o cara era um mendigo, ele fez assim, fios de barbante ligan­
do uma estaca com a outra, inteira. Fazendo uma parede toda de barbantes.

ARACY AMARAL — Parece um Soto...


HÉLIO OITICICA — É, é! E dentro tinha assim uma aniagem e estava es­
crito: “Esse é o Parangolé...”, não sei de quê, a única palavra que eu entendi
era parangolé, aí eu disse: “Ai, a palavra mágica!”.

ARACY AMARAL — Então ele é que tinha dado o nome de parangolé para
aquele ambiente dele?
HÉLIO OITICICA — Não, ele disse assim: “Esse aqui é o parangolé da
noiva...”.

ARACY AMARAL — Era um paramento?


HÉLIO OITICICA — Era um paramento, um lugar como se fosse o lugar
para um casamento...

ARACY AMARAL — M as isso era na rua?


HÉLIO OITICICA — Era, era num terreno baldio. Depois, quando ia fo­
tografar, já tinham derrubado tudo. E era estranhíssimo. A única coisa que
tinha nesses barbantes era essa aniagem com isso escrito, e eu me lembro que
tinha uns negócios pendurados, assim... fazendo numa parte, como uma
bridal travei suite. Uma fantasia qualquer. Deve ser um cara que teve algum
problema, é uma coisa arquetípica de fantasia, de mating, a gente sentia
mesmo. Era de uma finura louca essa coisa dos barbantes, você não calcula a
maneira como eles eram enlaçados e passavam, para fazer a outra coisa.

ARACY AMARAL — Você não disse quanto tempo ficou como passista na
M angueira...
HÉLIO OITICICA — Até sair do Brasil, de 1964 até 68. Era passista de
ouro do Branco, financiado pelo Djalma Bicheiro, ele tinha o maior ponto
de jogo do bicho. Era da “Ala vê se entende”, mas não era “ala de escola de
samba”, eram os passistas que saíam distribuídos pela escola inteira. E eram
os passistas maiores do Brasil, tinha Carlinhos do Pandeiro, Jerônimo, que
está na capa daquela minha...

122
H ÉLIO O ITICICA : TENTATIVA D E DIALOGO

AJRACY AMARAL — E quando é que começaram a nascer os seus ambientes?


HÉLIO OITICICA — Antes.

ARACY AMARAL — Estes labirintos, bem, porque labirinto pressupõe uma


dificuldade para você vencer, e os seus são muito mais percursos...
HÉLIO OITICICA — Isso começou em 60, começou antes. Por isso é que
eu me dava muito bem no espaço da favela...

ARACY AMARAL ■ —- E, eu registrei isso porque achei muito importante [re­


ferindo-me ao texto que preparara sobre Hélio Oiticica para a revista Colóquio,
de Lisboa].
HÉLIO OITICICA — Ah é, você fala nisso. Pois é, como é que a gente vai
explicar isso tudo? E impossível... Sabe que na Inglaterra, nas universidades,
o Guy Brett me dizia, estuda-se o problema do espaço na favela, na faculda­
de de arquitetura, veja só. Aliás o Mário [Pedrosa] dizia que o Rio de Janei­
ro tem uma coisa de síntese — não, de simultaneidade de realidades, huma­
nas e sociais, que não tem em lugar nenhum. É estranhíssimo... Nova York
não, Nova York já é tudo guetificado.

ARACY AMARAL — São Paulo também não é. E uma cidade que para se
impor uma realidade se destrói a outra. Não existe uma coexistência pacífica de
tempos diversos como ainda se vê no Rio. H á quatro cidades. J á o Rio, não; tem
ainda, como disse o M ário de Andrade, o rural convivendo com o urbano.
HÉLIO OITICICA — É p e r ig o s ís s im a , é u m a c o is a a s s im , d e d u a s c a ra s,
‘fe ito u m a a re ia m o v e d iç a ’ , é m u i t o p e r ig o s o ...

ARACY AMARAL — Por que você está dizendo isso?


HÉLIO OITICICA — Não sei... Eu sempre tive essa capacidade de lidar
com diversos [tipos de gente] e a minha voz, a minha maneira de falar, mu­
da. Posso estar falando com a Lygia Clark sobre [aqui a fita se interrompe].

ARACY AMARAL— M as acho que você não apenas firui essa sua possibilida­
de de adequação como você curte ela demais.
HÉLIO OITICICA — É .

123
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ARACY AMARAL — Porque você não vai me dizer que o ambiente de seu pai,
com o qual você se articulava muito, era igual ao ambiente da favela... da M an­
gueira, da Lygia Clark etc.
HÉLIO OITICICA — Não. Ninguém entendia: não pode ser a mesma pes­
soa... Mas podia ser uma coisa perigosa, uma maneira destrutiva, reacioná­
ria, fascista de fazer as coisas, essa adaptabilidade podia também ser transfor­
mada nisso, mas eu, me conscientizando, transformei isso numa coisa criati­
va, porque pode também ser uma coisa super-negativa. Perigosa. Por isso é
que eu não me sinto foreigner. Alguém disse que eu estava com raiva de ter
que trabalhar para coisas de ligação, “você faz-me sentir como foreigner, me
bota numa repressão”, eu nunca me sinto foreigner em lugar nenhum. As
pessoas chegam num lugar e se sentem estranhas, eu digo: “O quê? Estranho
em algum lugar? Imagine, eu vou à China e já chego lá falando chinês”. As
pessoas chegam e ficam aqui cinco anos e não sabem pedir café em inglês.
Sabe por quê? Porque o Brasil é um país muito isolado. Eu também tive a
vantagem de viajar para cá, morar aqui dois anos quando eu era criança. E
não é difícil da pessoa cortar o cordão umbilical. Você vê, por exemplo, o João
Cabral de Melo Neto passar a vida inteira na Espanha e não-sei-o-quê e daí
volta para o Brasil, assim como um filho pródigo. Quer entrar para a Acade­
mia de Letras, dizendo assim: “Eu fiz muitas travessuras mas eu tou aqui de
volta, minha mãe querida...”. Ai!
Se eu [...] me dá uma claustrofobia. Aí todo mundo dizia: “Quando é
que você volta dos United States?”. Eu digo: “Eu nunca volto! Estou sempre
indo! Eu nunca fui”. Aí dizem assim: “Você não tem saudades?”. Como é que
vou ter saudades? Eu sou o Brasil. Eu sou a Mangueira. Eu comi a fruta in­
teira. Não deixei pedaços para vir buscar depois. Eu sempre estou indo, nunca
estou voltando. Mas dá uma raiva! Mas isso é raríssimo acontecer. Agora, co­
migo sempre foi assim. E eu nunca tenho culpa.

ARACY AMARAL — Éporque você viajou desde pequeno.


HÉLIO OITICICA — Porque o Brasil é como se fosse o “Deus Eterno”. E
como se fosse o país mais lindo do mundo, mais não-sei-o-quê do mundo.
U m isolacionismo absurdo do Brasil. Quando eu era criança, eu sempre via
a Argentina e todo o povo de língua espanhola, assim com um pouco de des­
prezo, porque era uma coisa um pouco incutida pelo meio. Uma mania de

124
H ÉLIO OITICICA : TEN TATIVA D E DIÁLOGO

dizer: “Não, nós somos os maiores, temos a maior terra, não temos nenhum
vulcão, o Chile tem vulcão, tem não-sei-o-quê, não sei onde tem terremoto.
Nós temos sempre o clima maravilhoso, ha ha ha! A maior floresta do mun­
do, o maior rio do mundo, o maior não-sei-o-quê do mundo”. Mas é uma
coisa incutida. [...] Quer dizer, isso é a coisa mais reacionária, porque um país
que tem 80% de analfabetismo e 90% de mortalidade infantil fala que tá na
era nuclear e que os Estados Unidos... Dizem assim: “Ah, este país aqui está
em decadência, está caindo, e nós estamos subindo”. [...]
Já o Haroldo [de Campos], pelo contrário, chega aqui e é como se fos­
se uma criança num playground. É a maior maravilha a maneira dele deco­
dificar e falar sobre as coisas na rua, eu nunca vi coisa igual. Eu disse assim:
“Vamos ver...”. Aí eu planejei fazer um passeio que eu chamava “excursão
souzandradina”, negócio de ir a Wall Street e depois à estátua da Liberdade!
Eu fazia isso com o Haroldo e acabamos descobrindo num túmulo a palavra
“ B O D ” , bê-ó-dê, com o “Y” da palavra BO D Y faltando. O “Y” do body caiu!
Trajetória souzandradina. [...] Já me disseram o que eu sou: deslumbrado.
Ótimo. Adoro pessoas deslumbradas. [...]
O dia em que eu cair morto [...] vão aparecer coisas do arco da velha,
tenho, assim, cartas, vai ser o fim das artes brasileiras (cartas compromete­
doras, cartas enviadas, cartas recebidas, contos eróticos, as cartas da minha
mãe são maravilhosas, cita todo mundo etc.). Eu estou preparando minha
obra final, ha ha ha!
15.
Uma jovem pintura em São Paulo
[1983]

Com o frescor de um tempo novo no marasmo dos eventos artísticos


nacionais começa a se delinear, aos poucos, uma jovem pintura em São Paulo,
de que esta exposição acredita poder dar uma visão através de cinco moços:
Ciro Cozzolino, Sergio Romagnolo, Ana Maria Tavares, Leda Catunda e
Sergio Niculitcheff. Não se trata de um grupo, nem de um movimento, pois,
ao contrário, cada qual mantém sua personalidade artística como explorador
da pintura, tendo em comum o fato de pertencerem à mesma geração (dos
23 aos 26 anos).
O positivo é que não se trata de uma “retomada” da pintura, fato ob­
servado em artistas jovens da década de 60, que substituíram então o pincel
e a tela pelos materiais novos procedentes de uma tecnologia atraente à épo­
ca, realizando objetos, happenings, posteriormente trabalhando com vídeo,
super-8, e somente em tempo mais recente retornando ao bidimensional atra­
vés do desenho e eventualmente da pintura. Tampouco pertencem estes jo­
vens ao presente Abstracionismo gestual ou informal, requentado de fins dos
anos 50 e início dos 60, e ao qual só podem ser mais sensíveis aqueles que
não acompanharam essa tendência, de contribuições interessantes entre nós
naquele período, com artistas como Sheila Brannigan, Ianelli, Tomie Ohtake,
Yolanda Mohalyi e mesmo Waldemar Cordeiro, entre tantos outros repre­
sentados nas coleções do M AC e mesmo na Pinacoteca do Estado.
De fato, estes cinco jovens já iniciaram suas carreiras com a pintura. Sem
cogitar dela, como disse um crítico espanhol, como de um cadáver que con­
tinua se mexendo para espanto de muitos. Mas a pintura como linguagem,
“pintura como meio”, título que eles mesmos deram à significativa exposi­
ção. Depois de tantas liberdades experimentadas em nosso século é difícil falar

126
UMA JO VEM PINTURA EM SÃO PAULO

de audácias, nem creio que estes jovens artistas pretendam intitular-se ico­
noclastas em qualquer sentido. Mas sua atitude diante da pintura assume cer­
tos caracteres que os distinguem, depois de tantas conquistas ocorridas em
todo o mundo. E eles, por certo, acompanham com interesse o momento ar­
tístico, na medida de suas possibilidades — dos padrões convencionais da pin­
tura usualmente vista entre nós. Assim, sem o recorte rígido da pintura como
janela, à maneira Renascentista existente até hoje, espaço representativo apos­
to e destacado da parede, estas pinturas sobre tela enfatizam aqui o suporte
“pano”, sendo uma característica de quatro destes jovens artistas (assim como
também de outro jovem pintor que acaba de expor em São Paulo, Leonilson,
que compartilha essa afinidade geracional evidente). Surge então a pintura
integrada ao ambiente, espaço bidimensional que recebe a pintura e no qual
a ausência de moldura confere uma intermediação insinuante, como em to­
dos os artistas que se utilizam deste “artifício” desmistificador, entre o espa­
ço real e o virtual de seu trabalho pictórico. Transparece assim uma pintura
desnuda em seu naturismo, independente do fato de ser figurativa ou não,
porém como comunicação visual plástica válida em si, sem a pose da “gran­
de pintura”, embora substancialmente pintura.
Outro dado em comum entre estes jovens reside, sem dúvida, nos re­
ferenciais compartilhados por esta geração, apoiados na imagística dos meios
de comunicação de massa, na seqüência justaposta de imagens que se relacio­
na tanto com os strips de jornais quanto com os comics (Ciro Cozzolino), as­
sim como com os fotogramas de cinema ou com a seqüência movimentada
da imagem televisiva reticulada, ou ainda com os registros gráficos que po­
dem conceder um caráter cinético a suas imagens (Sérgio Romagnolo), das
quais não está ausente o elemento dinâmico, claramente representado. Por
outro lado, também um leve senso de humor parece insinuar-se nas pinturas
expressivas de Romagnolo, Leda, Ciro e Ana Tavares. Este, o humor, é am­
plamente conhecido na pintura americana contemporânea, ou também como
característica definidora do “Grupo Site”, há já dez anos com realizações
arquitetônicas marcantes em várias latitudes dos Estados Unidos. O humor
aparece como elemento de perplexidade, ligeiro sorriso no observador desa-
visado, incorporação das contradições dos meios de comunicação de massa
— inclusive o desenho animado e os malabarismos cenográficos da mais alta
tecnologia — às artes chamadas tradicionais.

127
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Esse dado está presente também na pintura de Ana Maria Tavares, que
parece dispensar o retângulo do tecido fundindo-se com a parede qual “tre-
pante” (sem a conotação concreta, contudo, dada por Lygia Clark a seus
trepantes tridimensionais), com modelados ilusórios a transfigurar o espaço
em cores vibrantes. Sergio NiculitchefF, por sua vez, apresenta-se como um
formalista de qualidade, absorvido nos valores cromáticos da pintura mais
sensível.
É importante ainda fazer referência ao profissionalismo que sentimos
permear o fazer artístico nestes cinco pintores. Dado que nos faz crer, com
otimismo, que não nos encontramos diante de meras promessas ou cometas
que cruzarão o céu de nosso ambiente artístico desaparecendo em pouco tem­
po, porém diante de jovens pintores que lucidamente se iniciam numa car­
reira com seriedade e garra, enfrentando todos os riscos implícitos na difícil
trajetória do artista plástico em nossa sociedade. É uma gente nova que che­
ga. Começa a se delinear, aos poucos, uma jovem pintura em São Paulo.

128
16.
João Câmara e a ginástica da ambigüidade
[1983]

O título da exposição “Dez Casos de amor e uma pintura de Câmara” é


sugestivo. Mas como são eles tratados, em que ambiência o artista desenvol­
ve este tema em pintura sobre grandes painéis em madeira? De que maneira
João Câmara Filho (1955) projeta, em imagens, temática aparentemente tão
íntima depois da impactante série Vargas, realizada em meados dos anos 70,
em que a informação externa no espaço e no tempo foi por ele manipulada
como autor?
Ao fazer algumas considerações sobre este trabalho que absorveu gran­
de parte da energia criativa do artista nos seis últimos anos, é importante di­
zer que a observação da série é de densa intriga para o espectador, que se vê
envolvido, como num jogo, a buscar constantes, desfazer enigmas, em ten­
tativa de montar o quebra-cabeça proposto pelo autor, que, indiscutivel­
mente, se compraz com a partida, residindo nisso uma grande parte de seu
fascínio. Além do mais, poder-se-ia dizer que a presença desses enigmas não
impede o vetor de comunicação do trabalho, ou antes, a dirige e instiga.
Nesta nova série de Câmara se percebe, por outro lado, agora nitidamen­
te, seu alinhamento com a pintura de todos os séculos, vivendo convicto a
continuidade da expressão pictórica em fidelidade a uma linha histórica, de­
satento à quaisquer rompimentos em seu desenvolvimento. Será que, afinal,
estaria certo Ronaldo Brito quando há alguns anos escreveu que via Câmara
como um artista convencional? E se o for, como explicar a força comunica­
tiva de sua imagem em tempos de alterações tão drásticas na natureza da arte,
senão através da força contundente que a figuração por certo exerce?
Assim, é bem clara sua deliberada opção de reencontro — ou única via,
de acordo com sua personalidade de um determinado espaço/tempo? — e
diálogo, com a pintura dos séculos anteriores. Seja no auto-retrato partici­

129
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

pante da obra (conhecido desde o Renascimento, com Velásquez, por exem­


plo); seja no maneirismo visível através dos artifícios e distorções com que ma­
nipula suas figuras na busca de uma ambigüidade como uma constante em
seu trabalho; seja na presença do elemento ilusionístico, do trompe-loeilà pin­
tura de perspectiva aérea do Barroco, ou ainda na incorporação de elemen­
tos arquitetônicos, visível entre nós nas pinturas de forro do século XVIII.
Parece bem evidenciado o desejo do artista de assumir a validade da pin­
tura representativa a despeito da revolução precipitada pelos cubistas no
rompimento do espaço renascentista do quadro. E Câmara o faz, ao tentar
reinventar o espaço pictórico a partir da desconstrução dos elementos com-
positivos e de sua remontagem, despreocupado em obedecer a diretriz cubista,
que propôs antes a decupagem das figuras em planos geométricos, valorizando
cada plano como valor plástico autônomo. Em conseqüência das ambigüi­
dades criadas nessas remontagens, Câmara apresenta-se como um fiel segui­
dor da pintura até o século XIX, com uma fatura em que o finito é sempre
perseguido — surpreendendo enquanto certeza —-, e tenta reformulá-la sem
recorrer, portanto, a rompimentos como os deflagrados a partir de 1907. E
bem sucedida sua proposta audaciosa? Ou corre ela o risco de ser registrada
como um grito por não se poder revirar a manivela do tempo?
Por outro lado, a pintura temática se reafirma em Câmara na pintura
serial (após as Cenas da vida brasileira da série Vargas e antecedendo a série
Tiradentes). E como é abordado o tema pelo autor da magistral e ambígua
série Vargas? Apesar da insinuação aparente do título, é certo que a série “Dez
Casos de amor” tem menos de amor e transpira mais cerebralismo do que se
aguardaria de tema tão sugestivo, pois está mais distante a sensualidade do
que talvez o erotismo como dado sexual evidente.
A abordagem do tema é feita a partir de dez painéis em pintura sobre
madeira e de um grande tríptico em seqüência de situações/imagens de­
sencadeadas a partir das gravuras sobre o tema. E curioso é observar como
para Câmara essas litos funcionam como esboços, estudos para o desenvol­
vimento de seu trabalho. Assim, o artista não desenha em estudos, mas gra­
va. Esse fato pode ter uma dupla significação: pode ser a familiaridade com
a litografia o que a torna um meio informal de primeira expressão, onde re­
sidem, de fato, uma espontaneidade que se apaga nas pinturas, e mesmo uma
sensualidade que se desvanecerá nas pinturas, uma fluência expressiva, enfim,

130
JO Ã O CÂMARA E A G INÁSTICA DA A M BIGÜID AD E

que cederá lugar a uma racionalidade a presidir a composição dos grandes


painéis. E, quem sabe mesmo, uma via de comunicabilidade com um públi­
co maior através da comercialização de seu produto, impossível de estabele­
cer-se a partir da obra pictórica que se destina, por seu porte e aura que o ar­
tista zelosamente preserva, a um adquirente difícil de discernir a esta altura.
Que Casos de amor são estes? Como se dá sua ocorrência? Vejo três per­
sonagens básicos à raiz da seqüência da série: o nu feminino, o Autor e o ob-
jeto Ifallus.
A figura do homem na obra pictórica de João Câmara Filho nestes úl­
timos dez anos pode ser facilmente associada a uma visão de mundo mas­
culina, com a figura do profissional, do político, do torturador, do militar,
do ser tenso e de sucesso que “detém as rédeas do poder”, do ser que decide,
enfim, plenamente identificável com a imagem do “homem” veiculada pe­
los meios de comunicação de massa, ou pela publicidade em particular, mes­
mo se ridículo em suas posturas ou quando caricaturável pela obesidade ou
em sua calvície evidente.
N os Casos de amor a figura masculina se funde com a figura do Autor,
presente/ausente, testemunha das situações inventadas. É a “presença” que
conta, metafórica em sua ausência posto que surgindo como sombra proje­
tada, mais ou menos densa, figura real decupada, cabeça em efígie de moeda
sobre a pintura, silhueta de rosto, ou cabelos concretamente colados como
pêlos sobre o suporte. Como figura masculina, apresenta-se sempre sob cen­
sura, salvo uma exceção, se comparado à representação da personagem femi­
nina, invariavelmente nua. O Autor, assim, apresenta-se de calção, vestido
com traje de trabalho, de camiseta e calção, ou percebido de casaco, em cla­
ra abordagem recatada do corpo do homem, preservado também pela expres­
são individualizadora ausente de seu semblante. Por que então um auto-re-
trato que não é levado às últimas conseqüências? Persiste uma vedação da
expressão como forma de censura sempre visível: o rosto do Autor é envolto
em névoas, ou o perfil é omitido quando a pele do couro cabeludo enuncia
a sua presença, ou é a efígie sem expressão, ou emerge como sombra, ou está
de costas para a ação, ou a cabeça inexiste, ou se oculta, sob os cabelos femi­
ninos ou sob os lençóis no painel mais sugestivo da consumação do ato amo­
roso, em vedação de expressão similar àquela visível no rosto feminino que
aparece em todos os painéis, praticamente, em gravura de variantes leves, com

131
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

uma mão que veda sua fisionomia, como a preservar um segredo. Talvez seja
mais uma busca de ambigüidades por João Câmara: está e não está, é o au­
tor e não o é.
Já a figura feminina tem uma conotação acadêmica indiscutível: é sem­
pre o nu, posando imóvel na postura escolhida. Em suas pinturas dos últi­
mos anos, a mulher é sempre “o corpo”, apetitoso em sua truculência, “boa”
em sua agressividade sexual endurecida. Nenhuma doçura ou sensualidade
perpassa a mulher fixada na pintura das últimas exposições. Sua imagem,
nesses trabalhos, se apresenta antes como máquina de engendrar prazer vio­
lento, diametralmente distante do rosto de semblante vago nas gravuras fi­
xadas em vários painéis destes Casos de amor, como “a mulher”, situada em
posição paralela a estas situações, quase como figura da consciência do Au­
tor, a chamá-lo a um outro plano da realidade. E neste rosto, sempre enqua­
drado “fora” do painel, na medida em que apenas nele aposto, uma mão re­
catada (de outra figura, da gravura 94 da série Vargas) cobre parte do rosto
de expressão mais natural do que em geral é contemplada a mulher na pin­
tura de Câmara. Pois sua imagem, “o corpo”, é sempre cortada, distorcida,
as partes coladas como em quebra-cabeças irresolvidos e simultaneamente
cruéis, o rosto invariavelmente poupado, íntegro (?), na inexpressividade de
um semblante de revista de variedades, ao passo que as demais partes do corpo
são sempre violentadas em sua justaposição agressiva, porém abordadas com
realismo em sua carnação.
Discutindo o problema da inexpressividade das figuras nesta série, o ar­
tista argumenta que, nas gravuras que deram origem às pinturas, as figuras
têm mais expressão e são mais sensuais, já que constituem um arrazoado da
situação temática, enquanto na pintura, as figuras, segundo ele, são utiliza­
das com a importância concedida aos objetos, e, assim, ocorre um “natural
dessangramento do valor simbólico ou expressivo dessas figuras”. Daí que o
Autor esteja “representado de maneira esquemática e que as personagens fe­
mininas sejam ‘modelos’ e haja transposições, as figuras não sendo mais re­
tratos, mas ícones apostos às superfícies dos painéis”. Talvez, em parte. Po­
rém, essas características citadas a propósito da mulher na iconografia de João
Câmara não se resumem a esta série atual — na exaltação do nu, na vio-
lentação do corpo feminino através dos cortes e remontagens já referidos em
seu afã de refazer o espaço, a inexpressividade permanente do rosto — mas

132
JOÃO CÂMARA E A G IN ÁSTICA DA AM BIG Ü ID A D E

significam uma observação feita a partir de sua produção dos últimos sete,
oito anos. E sempre com a abordagem quase implacável, observada na ela­
boração dos pés e mãos, em detalhismo a remeter-nos à imagem projetada
no espelho da madrasta de Branca de Neve...
O terceiro personagem, o objetoIfallus, “móvel” inventado pelo artista
que nele concentra um conteúdo simbólico, acompanha-o em suas mãos, ou
acha-se pousado sobre o piso, a gravitar, emitindo projeções, caído, ereto, ou
tem seu disco superior circular transparente ou transposto em elipse branca
luminosa de forma significativa. Ou é manipulado como arma diante da fi­
gura feminina quando desaparece o plano sobre o qual se assentam os obje­
tos e figuras, parecendo que os objetos flutuam no espaço imponderável, em
meio a um inventário limitado de acessórios que comparecem como refe­
renciais constantes, em todos os painéis: móveis como duas ou três cadeiras
de desenho simples, espaldares de cama que às vezes se transformam em
biombos, ou em portas, requadros inusuais de janelas na arquitetura domés­
tica, rodapés, lençóis, a repetição da aparição da pomba em vôo, pousada, em
sombra projetada, recortada. Ou ainda o mesmo tecido estampado que re­
torna no estofamento, no colchão, no biquini, no panejamento pendente —
os sutiãs projetados igualmente como sombras ou abandonados em móveis.
Detalhes de cômoda, além das cornijas enquadrando arquitetonicamente es­
tas composições, por vezes deliberadamente acumuladas de corpos, objetos
e por um personagem de segunda grandeza: o abajur vermelho. Com seu pé
transformado em falo no painel em que a figura feminina escurecida é pene­
trada pela lâmpada como por uma engrenagem mecânica, em clima quase de
necrofilia (onde o “caso de amor”?), sobretudo se atentarmos para o detalhe
de ser esse o único quadro em que a figura feminina, de olhos semicerrados,
não aparenta a expressão indiferente dos demais quadros.
Por que Casos de amori O nome sugestivo desta série agressiva disfarça
o cerebralismo da elaboração das pinturas. Casos de amor a partir das gravu­
ras, possivelmente, onde o dado sensual é mais evidente, e que se desfaz na
rebuscada reformulação espacial pelo artista na pintura dos painéis. Mesmo
a penetração sexual, quando sugerida metaforicamente, é representada me­
diante a justaposição da projeção do disco do objeto Ifallus sobre os dois cor­
pos que se tocam na ponta do seio contra o tórax masculino, de forma tão
cruel quanto sarcástica, por meio de um parafuso de borboleta que atravessa

133
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

o suporte. Outro ato de violência está, sem dúvida, no painel central do


tríptico onde a divisão de planos está explicitada na fenda que divide ao meio
o corpo, vaginalmente, se poderia dizer, inclusive pela carnação acompanhan­
do a visível representação dos lábios do sexo feminino.
N a dificuldade ou rejeição de expressar sensualmente as situações pro­
postas pelo título da série, o Autor se interessa por jogos que atraem o especta­
dor: seja nas ambigüidades citadas, seja no artifício da deformação do abajur
que sugere ao observador, seja na trajetória da leitura do tríptico da direita
para a esquerda, seja em sua preocupação com o dado “tempo”. Esta última
visível, não apenas na alteração da luz interna do tríptico — da luz ambiente
à luz artificial, à luz infiltrada sob a porta — , como no preparo do suporte
prevendo a alteração das cores em determinados cortes dos painéis com o tem­
po, como a dirigir a preservação ou desenvolvimento da pintura em sua
materialidade, tendo em vista sua permanência.
A observação de um dos painéis — o de número cinco — nos coloca
diante de composição com três situações análogas, diversas entre si em sua
projeção: a primeira é a gravura-esboço em que está presente o corte/fusão
entre os dois corpos através do vazio/falo entre ambos no enlaçamento amo­
roso, no cinza super-real da litografia, memória projetada. Cena idêntica é
transposta para a parte central do painel, com uma estilização do corte-fusão
e com os elementos verticais dos corpos — braço e perna femininos — pen­
dentes como elementos de teatro de sombras, por cordões pintados e presos
com ilhozes — reais — do alto, tendo ao lado o objetoIfallus ereto sobre o
piso, sobre o qual está pousada pequena estatueta quase brancusiana a repro­
duzir essa mesma situação enfatizado o vazio/falo pela presença representada
do objeto fálico nesse mesmo espaço. Instante que quase configura uma vi­
tória enxadrística. Três vezes a referência do perfil do autor se faz presente
nesse painel enquanto o artista/autor, absorto, de bastão em punho, se apli­
ca em medição/atuação profissional.
É evidente em toda esta série o empenho de Câmara em romper a co­
notação representativa de sua pintura através da reafirmação do suporte, dei­
xando expostos os veios da madeira como espaço concreto. Embora dificil­
mente acreditemos que o consiga, mesmo quando deseja transgredir o tema
na aplicação de elementos concretos que ele possivelmente aspira que con­
tradigam ao representado ou virtual. Assim se explica a abundância de ele­

1 34
JO Ã O CÂMARA E A G INÁSTICA DA A M BIG Ü ID AD E

mentos reais como ilhozes, pêlos, cordões, parafusos-borboletas, gravuras re­


cortadas aplicadas, areia fixada, chumbo derretido etc.
É difícil abordar criticamente em texto tão breve toda a complexidade
de dados que por certo Câmara nos oferece nesta série à elucidação, ao mes­
mo tempo em que nos põe a refletir sobre sua própria aventura pictórica, seu
impasse e sua tentativa de superação, através dela própria, vis à vis do desen­
volvimento da arte de nosso tempo. Porque mesmo sem nos aproximarmos
dos “objetos”, ou sem nos determos em análise mais aprofundada de suas
gravuras ou “montagens”, é difícil omitir o dado “moralista” claramente per­
cebido, por todas as observações feitas, a vinculá-lo novamente ao século XIX,
à pintura do “realismo burguês” — que não deixa de estar visível no painel
inspirado em Arrufos (1887), de Belmiro de Almeida — ou na figura do au­
tor amordaçado. Ou na mancha de esperma em relevo em chumbo derreti­
do sobre o lençol branco, como uma evidência culposa, ou na presença con­
tínua do dado “censura”, na lembrança do espaço ilusório (no último painel
Las ilusiones, pouco articulado com o conjunto, aliás — talvez, deliberada­
mente), bem como no contínuo chamamento ao real, apesar da tentativa de
desconstrução do ambiente representativo. O erótico, assim, aflora antes
como uma evasão do real dentro de seu espaço virtual, na descomposição dos
espaços e no próprio fato de que os objetos passam a ter uma conotação sim­
bólica intensa.
N a verdade, este grande trabalho de João Câmara, empreendimento de
um pintor de fôlego, nos traz com seus Casos de amor também um corajoso
desnudar-se em público, no sentido referido por Darnián Bayón que escre­
veu certa vez que “quem expõe se expõe”. E neste caso percebemos que Câ­
mara, conhecido como pintor temático, nos propõe à observação seus dile­
mas formais, sua batalha contra o tema, uma busca ingente de reafirmação
de sua pintura a partir dela própria: questiona-a e projeta-a em sua fragili­
dade contundente, agressiva e violenta. Uma ginástica da ambigüidade de seus
enfoques e recursos, com a habilidade artesanal que se alia à inteligência ex­
cepcional para superar restrições de sua/nossa carga cultural.
17.
Seis artistas
[1985]

Coletiva alguma pode propiciar um instrumental para que o observa­


dor desprevenido penetre no universo do artista. Quando muito, e mesmo
numa individual, esse contato pode intrigar o apreciador diante de uma per­
sonalidade artística, instigando-o a acompanhar sua trajetória. Todavia, nossa
circunstância permite somente, em geral, que apresentemos em exposições
temporárias um fragmento de sua produção. Assim, o conhecimento desejá­
vel de seu caminho percorrido, a dizer muito de seu desenvolvimento como
ser humano, de sua visão de mundo, enfim, é privilégio apenas para aqueles
que um dia podem apreciá-lo através de uma retrospectiva, a lhes oferecer um
retrato de corpo inteiro de sua obra. Pois artista nenhum é apenas um mo­
mento de sua produção, porém a soma de todos os degraus de sua tentativa
de auto-expressão através da imagem. Dentro dessa relatividade é que dese­
jamos apresentar ao público de São Paulo estas seis artistas.
O universo de Katie van Scherpenberg é o universo da cor. A impres­
são que nos comunica é a de que, antes do início de um trabalho, parece ter
diante de si, fundamentalmente, dois elementos primordiais: uma tela (como
antes poderia ter sido a madeira preparada) e a cor. A invenção de formas, a
organização do espaço, por assim dizer, parecem decorrer de maneira instin­
tiva, emocional. E, numa segunda etapa, elaborada, claro está, justapõe uma
cor à outra, um campo luminoso à área vizinha, como num imenso dominó,
montado gradativamente, e no qual a existência de um elemento é que vai
chamar o outro que com ele se articula harmoniosa ou estridentemente, com
as transparências sutis, ou o rastro visível da caligrafia como um dado essen­
cialmente pictórico. Pesquisadora de técnicas, esta pintora trabalha com têm­
pera há cerca de dez anos, desenvolvendo experiências que parecem sempre
estar testando a intensidade da importância da cor. Assim, quando em 1983

136
SEIS ARTISTAS

programou de vermelho as paredes da Galeria Cândido Mendes, no Rio de


Janeiro, demonstra uma determinação que aparece como uma exacerbação
culminante. Ou seja, a inundação da cor dominando sensorialmente o ob­
servador, dirigindo a percepção das pinturas. Do ponto de vista formal, sua
abstração parece ser manipulada de maneira a nunca nos permitir que certos
referenciais do mundo externo, percebidos num primeiro relance, se confi­
gurem de maneira plena. Assim, dados que instintivamente parecem nos re­
portar a arquiteturas, paisagens, símbolos entrevistos, feições humanas, teci­
dos estampados, por exemplo, são cortados na justaposição com o plano se­
guinte, como produto de nossa imaginação, fermentada enganosamente, e
nos remetem de volta à energia de sua cor, bem como às texturas aveludadas
da têmpera suntuosa.
Depois do abandono paulatino do geometrismo, outrora visível em suas
obras, em diálogo interessante com a pintura de Katie van Scherpenberg,
poderíamos sem dúvida colocar, nesta exposição, as pinturas atuais de Santusa
Andrade. N a linha dos descendentes dos abstracionistas informais norte-ame-
ricanos, Santusa parece se nutrir do materismo mais elaborado, imergindo em
formas semoventes, também em transparências e sobreposições cromáticas.
O gesto, aqui, é claramente visível na aplicação da tinta sobre a tela, o ritmo
da pintora denunciado em seu percurso, e a linha, por vezes aparente, sem
função ordenadora, porém de organicidade, tanto quanto a fusão das cores,
e plenamente integrada nesse universo de especulações sensíveis.
Uma proposta bem diferenciada neste conjunto de “Seis Artistas”. E, por
esta mesma razão, como contraponto valioso, estão as figuras decalcadas do
real de Miriam Obino, realizadas com resinas plásticas de diferentes consis-
tências, que cedem ao tato, convidativas ao toque do espectador, nas quais
fica patente o desejo de comunicação com “o outro”. U m projeto que cha­
ma à aproximação física do observador? E seria esse objetivo alcançado? As­
sim, os corpos da mulher, do homem, em várias situações insinuadas, em alu­
sões sutis, parecem ajudar a “dizer” um pouco da utopia da identificação do
artista com seu público. O u um trabalho que antes de pretender soluções
formais ou inovações imagéticas, se concentra claramente na ambigüidade da
problemática da comunicação.
Uma personalidade atípica porém existente no meio artístico brasileiro
é a de Maria Cecília Marinho de Oliveira: o trabalho realizado exaustivamen­

137
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

te, e no entanto a recusa persistente em entrar na arena discutível da agita­


ção artística — salões, Bienais, mercado de arte — , se apresenta aqui em toda
a sua maturidade com expressão singular, a nos remeter a Odilon Redon,
Victor Hugo e Albert Ryder. U m a pintura remoída como um mau pensa­
mento a que se retorna sempre: que se raspa, se repinta, se torna a raspar e a
reelaborar, como para se livrar dessa concretude, que se impõe finalmente.
Assim, podemos apreciar nesta seqüência de obras todo o gradativo desen­
volvimento de suas imagens na temática e repertório que se desenrolam como
um desenho oriental: da flor-nuvem sobre o prato, que se torna o lago, que
é rodeado de montanhas que se tomam cortinas de um espaço cenográfico
mágico com formas elípticas que se impõem e se desfazem sob uma luz sem­
pre interior em sua iridescência. Um vocabulário de clima excepcionalmen­
te pessoal emerge dessa obra, a artista aparecendo em relação intensa com a
pintura, quase como em batalha corpo-a-corpo, dolorida e de permanente
insatisfação.
Duas jovens artistas, Mareia Rothstein e Mônica Nador, apesar de per­
tencerem a gerações próximas, apresentam posturas contraditoriamente bem
distantes: nas telas de Mônica, em formatos minimalistas, retangulares, tra-
pezóides etc., de grandes dimensões, sobre as quais uma cerrada trama pictó­
rica de tons intensos, o negro dominante é elaborado, obsessivamente, com
uma caligrafia controlada e regular. U m a pintura que não se oferece, mas
antes solicita do espectador uma entrada em sintonia para sua sensibilização
e percepção — inclusive ótica. E nessa aproximação do observador, um des­
vendar de espaços, através de frestas, de luz, em delicadezas cromáticas no
esgarçar da trama pictórica, se constitui em descobertas de deleite dirigido,
puramente visual.
Já em Mareia Rothstein estamos diante da alegria da criação, do lúdico
visível em extravasamento espontâneo, emergindo até nos mínimos gestos da
artista, com continuidade em sua pintura. Contudo, sua produção não re­
flete uma informação colhida rapidamente a partir dos modismos inter-
nacionalistas. Ao contrário. Dez anos de percurso e pesquisa trouxeram-na
ao ponto atual. Assim, da paisagem ainda figurativa ao minimalismo redu-
tor, rigoroso (a admiração pela pintura norte-americana), a permanência da
linha do horizonte numa redução cromática máxima, levou-a, de série em
série de trabalhos, a toda uma trajetória que explica, hoje, seu atual momen­

138
SEIS ARTISTAS

to de irradiação. Assim, o questionário ou a observação do suporte (na fase


j os “transparentes”, em 1978-80), produziram obras de sutilezas tonais e
texturais de grande beleza, tornando-se, para a artista, esse mesmo suporte e
seus materiais (dos chassis à lona e lonita, ou algodão cru) de importância
fundamental. A espacialidade, por outro lado, pode ser considerada, no traba­
lho de Mareia, como um dos dados fundamentais de seu discurso plástico.
“Monocromáticas” e “policromáticas”, em trabalhos que se alongam até
1982, vêm nos provar sua caminhada pela pesquisa da cor intermediária, sem­
pre dentro de sua postura imutável, determinada pela preocupação com a
estruturação do quadro.
Já a partir de 1983 parece abrir-se um novo período em sua pintura, com
a presença de elementos que poderíamos chamar de “simbólicos”, deno-
tadores de sua geração (e seu repertório evidenciando a proximidade com a
seqüência nervosa dos comics, com a estrela-do-mar, fogos espocando, er-
ractum, correctum, splash etc.). A partir daí vemos esta artista trabalhando so­
bre a definição dos contornos, que no decorrer do processo se transformam
em formas propriamente ditas, ou melhor, a luminosidade do contorno se
tornando forma. Cor-luz, rastro de luminoso e neon, a pintura assumida com
seus problemas específicos. A impressão primeira de um tecido tingido se
transfigurando quando vemos um desenvolvimento auspicioso da pintura,
com o surgimento de uma variedade de problemas formais que enriquecem
seu trabalho apontando direções em desdobramento.
Luz e espacialidade poderiam também ser subtítulos para esta exposi­
ção de “Seis Artistas”, coincidentemente mulheres. Ou poderá surgir ainda
uma indagação, antiga já em nossos dias: existe uma sensibilidade feminina
na arte? (Ao que se poderia também contrapor uma outra pergunta, não difícil
de responder: existe uma sensibilidade homossexual na arte?). Embora o valor
único a considerar resida na excelência do resultado, na transcendência do
objeto artístico, é evidente, para nós, uma certa sensibilidade feminina trans­
parecendo na manifestação artística, em muitos casos. Ainda que nesta ex­
posição talvez somente a pudesse apontar na pintura de uma Maria Cecília
ou nas peças de Miriam Obino. Como a assinalaria também, por acaso, só
para mencionar as primeiras lembranças, na obra de uma Mira Schendel, ou
numa Maria Leontina, ou, na América Latina, na arte já antológica de uma
Frida Kahlo (embora elas próprias não aceitem ou aceitassem essa conside­
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ração). As demais participantes apresentam uma arte que se poderia denomi­


nar de uma pintura “viril”, em sua intensidade plástica, (e que foi perceptí­
vel também numa Anita Malfatti em seus anos máximos, por volta de 1917,
ou na arte de Tomie Ohtake, ou em Sheila Brannigan, ou em tantas outras,
inclusive numa Mary Dritschel, apesar de sua temática agressivamente fe­
minista), e que nada tem a ver com a feminilidade como seres humanos.

140
18.
Uma nova pintura e o grupo da Casa 7
[1985]

Como surge uma geração nova que se contrapõe à existente, mesmo que
isso não pressuponha uma reação, mas apenas uma postura outra? Se esse ti­
po de arte nova (badpainting, transvanguarda, neo-expressionismo, ou ou­
tra que tal denominação) não se ensina nas escolas de arte locais, por mais
arejadas que sejam, deve-se supor que estes jovens estejam folheando revis­
tas, vendo o que ocorre fora de nossas fronteiras artísticas, posto que sua ati­
tude não é tentar alcançar seus professores ou os artistas reconhecidos da­
qui, mas fazer uma proposta imagética externa, nova aos que são seus mes­
tres. Ao mesmo tempo, percebe-se que estes artistas jovens trabalham como
autodidatas nas suas pinturas (embora haja alguns que possam, eventualmen­
te, ter freqüentado “escolas” de arte sem outra diretriz que a de dar-lhes di­
plomas), e freqüentemente — em São Paulo pelo menos — , em grupos de
trabalho unidos, não por qualquer tipo de manifesto, porém, curiosamente
(como nos anos 30 ou 40, embora agora oriundos da classe média), para po­
der pagar o aluguel de um espaço que partilham conjuntamente, para poder
pintar fora de casa.
Por outro lado, observa-se uma grande seriedade, um profissionalismo
arraigado desde cedo em muitos deles, no sentido de se auto-respeitarem
como produtores de arte, personalidades que, embora iniciantes, assumem seu
valor e lutam por se impor.
Esta nova pintura — pois ela é tão fascinante quanto preocupante pe­
las características que envolvem seu surgimento, e, por que não dizê-lo?, seu
“festejamento” — se apresenta entre nós semelhante ao que se vê também na
Europa: sem chassis, sobre suportes de qualidade diversa e não mais exclusi­
vamente sobre tela, feita aparentemente sem projeto prévio.

141
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

H á uma consideração interessante de Argan a propósito, quando men­


ciona a ausência de planejamento, por conseqüência, como diz ele, de valor,
bem como a presença da agressividade nestas pinturas. Frutos mesmo de uma
sociedade em que a violência é uma constante.
Mas não creio que este gestualismo expressivo signifique apenas a vio­
lência. E que a ausência de planejamento traga implícito o desejo da pouca
permanência. Com reservas. Sei que estes jovens se preocupam pouco com a
durabilidade de seus materiais. Mas isso não significa que menosprezem o
“valor” de seu trabalho artístico. Ao contrário. Prezam e muito. Pois querem
vender, querem sucesso, notoriedade (“quero ser reconhecido, quero ser res­
peitável”, me disse um deles). Mas, sobretudo, há neles algo vinculado à ve­
locidade, que é preciso registrar. Essa velocidade do fazer artístico é similar à
velocidade do deslocar-se, do poder vender, do alcançar o sucesso, portanto,
tanto de crítica como comercial.
Por outro lado, há o sentido de humor que comparece em várias pintu­
ras, em muitos jovens. Humor que está claramente vinculado ao humor im­
portado das estórias em quadrinhos, ao humor do desenho animado visto na
T V na volta da escola e já tão integrado em suas vidas e seu repertório quan­
to talvez o romance de Delly nas adolescentes dos anos 30 e 40.
E o problema da qualidade da obra, ou da ausência de qualidade ou de
bons materiais, é um dado desconcertante quando percebemos que estes pin­
tores novos almejam vender. Vender e ter mercado pressupõem, é claro, pos­
suir algo e oferecer uma mercadoria com um mínimo de qualidade material.
Talvez alguns destes novos pintores, portanto, ainda alterem para melhor a
fisicalidade de suas obras, a fim de observar esse quesito, não sei. Porém é
indubitável que a precariedade não vai de braços dados com uma produção
vendável, porque não há investidor que aposte em jovens talentos que deseje
uma obra para apenas cinco ou seis verões. E estes jovens, cedo ou tarde, se
perseverarem como artistas, terão de enfrentar este fato. Quanto tempo eles
durarão como alvo de nosso interesse? Esta é a pergunta que me faço hoje
diante desta floração de pintores novos como não se registrava entre nós desde
a emergência dos “ 19 pintores” lançados em 1947. Mas destes, quantos re­
sistiram ao tempo?
Além do mais, ver um salão hoje, como o Salão Nacional do Rio de Ja­
neiro ou o Salão Paulista de Arte Contemporânea, ambos em dezembro de

142
UMA NOVA PIN TURA E O GRUPO DA CASA 7

1984, é, no mínimo, conhecer uma colheita nova. Onde estão os freqüenta­


dores dos salões anteriores (morreram de pneumonia ou de tifo, ou de algum
câncer lento que os impede de participar de salões?). Por que só estão nos
salões os novíssimos? Pois mesmo a “homenagem”, com uma obra de cada
premiado máximo em salões nacionais, anteriores ao Salão Nacional de Arte
Moderna do Rio, pareceu deslocada; e será que a presença da última geração
expulsa as gerações anteriores, ou cabe aos júris a responsabilidade por essa
poda para amostragem pura e simples de uma nova leva de pintores?
N a verdade, já o Panorama de Pintura do MAM-SP de 1983 foi para
mim, pessoalmente, um impacto (acontecia simultaneamente à Bienal de
1983) de um novo “ismo” que surgia entre nós. Pois esse Panorama foi um
salão que apresentava também artistas de geração intermediária (de 35 a 50
anos) já em transição, isto é, alertas para as modificações percebidas na pintura
internacional. Então, via-se abundantemente os neofauves, os badpainters e
a preocupação clara que os artistas de estilo definido demonstravam em ade­
quar sua pintura a uma nova ordem... de informação externa (como nos Esta­
dos Unidos se percebe por meio de um Malcom Morley). Em alguns até que
cabia bem, em outros causava assombro. Parecia-me estar transplantada de
repente para os anos 50 ou 60, quando, depois do impacto de cada Bienal,
víamos na Bienal seguinte os artistas brasileiros se adequando ao figurino da
mostra anterior. A velha pergunta: então não somos nada, somos apenas um
espelho com alguma criatividade? (do Concretismo ao informal, do pop ao
conceituai, às experimentações todas dos anos 70). Nada criticável. Estamos
no mundo ocidental, e hoje não há necessidade de esperar pela Bienal, pois
as revistas ou as viagens informam mais rápido que as possibilidades de ver
ao vivo o que acontece fora. (Mas, por outro lado, há uma diferença bem per­
ceptível entre os novos que fazem este tipo de pintura “desplanejada” e gestual
com naturalidade, e os veteranos hábeis que se adequam à nova tendência.)
Há ainda um dado também observável nestes jovens: é o dado “espetá­
culo”, o dado “festa”, o dado “musical”, o dado “show”, que me parece tam­
bém resultante do contágio do meio das artes plásticas freqüentado por estes
moços, que têm tal intimidade com a cultura musical popular contemporâ­
nea, que mesmo na forma de se apresentarem como autores das obras “se
produzem” fisicamente ou como postura, de maneira similar a um jovem de
conjunto musical de sua mesma faixa etária. Isto é, os autores têm um com­

143
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

portamento parecido, e nem sei se estes jovens pintores se dão conta deste
detalhe. O da “personalidade” artística que deve ser tratada ou distinguida
em meio ao público em geral. Um pouco de “gênero”, mas a arrogância não
deixa, às vezes, de comparecer, talvez até explicável por uma necessidade de
afirmação.
E, depois, como explicar sua receptividade frente ao mercado? Repor­
to-me a alguns participantes da exposição realizada no M AC em 1983, “Pin­
tura como M eio”, com um punhado de jovens artistas — lançamento de um
grupo, pode-se dizer — , distintos entre si, mas talvez uns três com certas afini­
dades (como Cozzolino, Romagnolo e Leda Catunda), além da presença iso­
lada de Ana Maria Tavares, menos apreciada visto que menos de acordo com
o figurino. Era bem visível no grupo a indubitável superioridade criativa de
Leda Catunda, talvez a mais interessante artista desta geração em sua dire­
ção transgressora, com uma licença poética maravilhosa em suas invenções.
Mas, de imediato, alguns desta exposição foram procurados pelo mer­
cado de arte, lançados com alarido no Rio, e com obras cotadas a preços ele­
vados (que muitos dos já iniciados há dez anos teriam dificuldade de osten­
tar). Mas foi um fato. Compradores de arte (pois não são colecionadores no
sentido estrito da palavra) de uma faixa nova, jovens executivos de um nível
cultural sofisticado, passaram a se interessar pelos pintores novos.
É claro que, paralelamente, há aqueles que viveram ou estagiaram por
um tempo em Paris, e trazem a informação européia com seu repertório de
máscaras africanas, jacarés, ou outros animais, carros, aviões ou certos signos
dispostos de maneira livre sobre a tela, sempre manipulando com a mesma
característica de gestualismo e rapidez, o que é uma constante em todos.
Mas nesse sucesso de mercado há um dado que chamei de preocupante
nesta tentativa de reflexão sobre esta geração: o de seguir produzindo a galo­
pe para satisfação das propostas de exposição, para os salões (inclusive, a esta
altura, neles já reconhecidos e onde ganharam prêmios elevados, como o prê­
mio máximo, no Salão Nacional do Rio de Janeiro, por Nuno Ramos; Daniel
Senise, no Salão Mokiti Okada, de São Paulo; ou ainda o prêmio de Rodrigo
Andrade, no Salão Paulista de Arte Contemporânea).
Pode ser coincidência, mas a presença, seja no âmbito da América Lati­
na seja no Brasil, de um repertório de imagens da Antiguidade Clássica in­
corporadas e manipuladas por esta pintura nova, em elementos escultóricos

144
UMA NOVA PIN TU RA E O GRU PO DA CASA 7

ou arquitetônicos, com a presença de figuras de animais selvagens ou patos,


são elementos comuns, além da presença do grafite, promovido a pintura de
galeria (como também o fizeram Penck ou Borofsky), em superposições de
signos, figuras, de maneira aleatória em sua expressividade. Vale dizer que este
tipo de grafite é muito diverso daquele realizado por Carlos Matuck, Wal-
demar Zaidler ou Alex Vallauri entre nós, artistas que já passaram de perso­
nalidades “marginais” a “artistas”, levando para dentro das galerias suas figuras
inspiradas nos mass media, mas com um encanto singular ao ocupar paredes
de interiores.
É interessante a desvinculação total entre estes artistas e os da pintura
informal vigente entre nós — como Kuperman, Guinle ou Áquila da Rocha
Miranda — de uma geração intermediária, dos 30 aos 40 anos aproximada­
mente, e que pareciam sobreviventes, em meio às tendências conceituais exis­
tentes na segunda metade dos anos 70. Curiosamente, vemos apenas Áquila
apresentando uma renovação interessante diante do barroquismo de um
Guinle, ou mesmo da abstração expressiva de Kuperman, muito mais relacio­
nados com os informalistas dos anos 60.

O GRUPO DA CASA 7

Neste contexto de comparações entre as diversas tendências atuais de-


vem-se destacar as contribuições que nos estimulam a ver, depois de muitos
anos, com otimismo, esta geração. De toda maneira, após o primeiro conta­
to com todo o grupo da Casa 7 em seu ateliê da pequena vila de Cerqueira
César, saímos com um astral elevado, como se houvéssemos sido oxigenados
por um frescor novo.
Não que não exista neles a inevitável informação nova do que se passa
na Europa. Não tendo freqüentado escolas de arte — e para quê? — tra­
balham e discutem juntos, intensamente, numa dialética natural, porém
instigante.
Ocorreu com este grupo um fenômeno atualmente vigente também
entre nós no Brasil (Rio e São Paulo, mais vivamente), reflexo direto do que
se passa há uns três, quatro anos na Europa ocidental e nos Estados Unidos:
o reconhecimento vertiginoso, que já é garantia de convite para participação

145
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

na próxima Bienal de São Paulo. Como explicar este êxito tão veloz a não ser
pela própria rapidez instaurada na projeção desta geração (e que nos faz lem­
brar a famosa frase de Andy Warhol que dizia que já se vivia o tempo de “ser
famoso por 15 minutos”), muito integrada neste consumismo de nossa socie­
dade, que torna a arte também descartável, como comentava Antonio Segui,
assim como as tendências da moda ou os modelos de bens de consumo pro­
duzidos em escala industrial?
A velocidade na projeção desta geração (que beneficia um Daniel Seni-
se, um Cláudio Fonseca, um Enéas do Valle, um Leonilson, uma Leda Ca­
tunda, um Barrão, além destes da Casa 7, entre nós) pode ser articulada, no
caso destes cinco pintores, à sua surpreendente e intensa produtividade.
Parece-nos perigoso, sim, este excesso de festejamento que afeta a toda
esta jovem fornada de artistas pintores, pois não os preserva a uma modés­
tia, ou a uma autodefesa da qualidade de seu trabalho. Porém, cada qual sabe
de si, como se diz em Portugal. E ficarão aqueles que resistirem, como em
todas as áreas de atuação profissional.
Mas é certo que esta geração, que está falando alto, teve entre nós, nes­
tes dois anos, um reconhecimento que nunca antes, no âmbito do mercado
nem da crítica, gozaram os artistas brasileiros. Abrem-se os espaços mais co­
biçados na área cultural, e, fato inédito, há um reconhecimento de mercado
tão súbito (como na Europa, para os jovens, sobretudo da Alemanha, Itália
e França), comparável apenas, no que tange o mercado, aos artistas pop nor-
te-americanos nos Estados Unidos. É estimulante, é preocupante — é um
dado novo.
N o caso destes cinco da Casa 7 estamos diante de pintores de fato. Es­
tes jovens têm talento, mas nem por isso deixam de estar perfeitamente in­
formados daquilo que se passa no exterior. Ao contrário. N a jovem pintura
dos anos 80, poderíamos localizá-los com uma certa facilidade entre os neo-
expressionistas alemães, por suas afinidades perceptíveis. Talvez hoje, Rodrigo
Andrade esteja mudando rapidamente e seja, de todo o grupo, o que mais se
aproxima dos artistas que se inspiram nos pintores-grafitistas. Está ocorren­
do em sua produção última toda uma desestruturação de formas, uma des-
construção que se entrega ao signo, ao gestual, que desfaz as composições,
bem evidentes há um ano atrás, e que o relaciona com os artistas europeus
desta tendência (Jean-Michel Basquiat, por exemplo).
UMA NOVA PINTURA E O GRUPO DA CASA 7

Mas estas afinidades são correntes, como a proximidade de Nuno Ra­


mos e Paulo Monteiro com o clima visível em certas obras de alguns contem­
porâneos alemães neo-expressionistas.
Não importa, pois são as admirações de uma geração como foram aque­
las dos anos 60. Mas há nestes cinco um outro ponto a que devemos chamar
a atenção, pois é raro entre os pintores de sua geração no Brasil: o respeito
pela pintura contemporânea, ou pelos mestres pintores. Pintura de citação?
Quem sabe se poderia também colocá-lo nestes termos. Ou seja, o neo-ex-
pressionismo citado se apóia em admirações claras: como o é a homenagem
a Goya, a Gustave Courbet, aos mestres do Cubismo, e percebe-se, por aca­
so ou por informação direta, a observação de Mario Sironi dos anos 40, de
Joaquín Torres Garcia de fins de 20, de Philip Guston etc.
Ver estes cinco pintores, por exemplo, circulando pelas exposições de
acervo do M AC, conversando entre si, falando quase ao mesmo tempo, assi­
nalando, discutindo, pode ser, a meu ver, indicação positiva. Aliás, o debate
está na raiz da convivência destes cinco que se reúnem para trabalhar. E em
suas discussões diante de seus próprios trabalhos percebe-se a estimulante
autocrítica, uma seriedade respeitável na crítica mútua, generosa, a que se
entregam e recebem com uma abertura bastante rara no meio artístico.
Pintam em esmalte sobre papel kraft grandes painéis de mais de quatro
metros quadrados, em média, dando sua fatura — gestual, ampla, a tinta não
raro escorrida — medida exata do vertiginoso da execução. Precário o mate­
rial, apaixonante a possibilidade de abordagem, com uma forma fluente, da
grande superfície. N o entanto, já manipulam a pintura a óleo sobre tela, em­
bora conscientes, todos os cinco, das alterações que a mudança de suporte e
técnica implicam em seus trabalhos, que adquirem um tônus mais elabora­
do, mais racionalizado, como tivemos oportunidade de perceber na parti­
cipação dos integrantes do grupo no Salão Paulista de Arte Contemporânea.
Para alguns que observam com muita rapidez estes trabalhos, pode trans­
parecer entre eles uma similitude menos real. Além de Rodrigo Andrade, por
exemplo, em Carlito Carvalhosa é evidente uma preocupação mais constru­
tiva que dramática, as referências ao real se fundamentando na fusão de for­
mas orgânicas com elementos do universo mecânico. Fábio Miguez, por sua
vez, faz e refaz paisagens (imaginadas ou reais?) na concentração cezanniana
pela solução construtiva da imagem representada.

147
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Em Nuno Ramos, o corpo humano se insinua através de vestes magni-


ficadas e quase identificáveis em seu gigantismo a cobrir toda a superfície pin­
tada, como grandes formas orgânicas que dominam o espaço pictórico com
vitalidade dramática.
A audácia maior, do ponto de vista compositivo, está, sem dúvida al­
guma, em Paulo Monteiro, que trabalha com o espaço, cria profundidades
ilusórias de interiores inventados em total liberdade construtiva, justapondo
elementos de densidade diversa em clima de intensa dramaticidade, a figura
humana se confundindo formalmente com as formas minerais ou industria­
lizadas, em tratamento pictórico unitário, por toda a superfície do trabalho.
Eis aqui os painéis mais recentes de Carlito Carvalhosa, Fábio Miguez,
Nuno Ramos, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade — personalidades que
emergem na vertigem de sua geração dos anos 80, pintores antes de tudo: uma
tentativa de visão reflexiva que o Museu de Arte Contemporânea gostaria de
projetar para o público de São Paulo, bem como do Rio de Janeiro, através
de seu Museu de Arte Moderna.

1 48
19.
Waldemar Cordeiro
[1986]

N o século por excelência das vanguardas, da sobreposição de informa­


ções (na busca desenfreada do mais novo, na especulação que abre caminhos
e na veiculação de novas formas contestatórias e reivindicatórias de novas pos­
turas), no Brasil, centro, embora periférico, e dos mais potentes núcleos do
mundo ocidental, Waldemar Cordeiro (1925-1973) foi, por certo, uma per­
sonalidade polêmica.
E importante, após mais de 30 anos de sua liderança reconhecida den­
tro do movimento concreto em São Paulo, trazer sua contribuição à tona,
para informação das gerações mais novas deste país de breve memória. O
meio artístico paulista não produz mitos, como o Rio de Janeiro; é antes ter­
reno áspero para o reconhecimento local dos que plantam sua participação
efetiva e mesmo marcante na esfera nacional. Portanto, é sempre necessário
um esforço para proporcionar o registro e chamar a atenção para aqueles cuja
criatividade ou postura marcam um tempo em nosso ambiente cultural.
Acompanhando praticamente toda sua trajetória artística, Waldemar
Cordeiro sempre nos pareceu um representante transparente do delírio da
vanguarda dos fins dos anos 40 ao início dos anos 70, quando, prematura­
mente, desaparece. Ao mesmo tempo ele nos surgia sempre à frente, como
ilustrador, através de sua obra, das posições teóricas que assumia em seus pro­
nunciamentos e textos, mais do que um artista cuja única forma de expres­
são seria aquela ligada à criatividade plástico-visual. Dominador e interlocutor
apaixonado nas discussões de que participava, era, por seu temperamento, de
aparente confronto com o racionalismo que permeava seu período concreto
e que o levaria à utilização da computação.
N o entanto, vê-lo exclusivamente sob a óptica do polemista ou do ar­
tista engajado na tendência do momento é não perceber o alcance da contri­

149
ARTISTAS CO N TEM PO R ÂN EO S N O BRASIL

buição de Waldemar Cordeiro. Uma outra forma de assinalar a importância


de sua personalidade, que repousa, por certo, em sua formação no exterior,
é chamar a atenção sobre um artista brasileiro cosmopolita.
Cosmopolitismo natural em sua expressão, postura rara entre artistas
brasileiros, em geral arredios em seus contatos com o meio artístico externo.
Ligado no início dos anos 50 a concretos e cinéticos do meio argentino, como
Arden Quin e Le Pare, assim como a Pierre Restany, o grande teórico do
“novo realismo” francês nos anos 60, ou a Abraham Moles, em decorrência
de suas inquietações por uma arte vinculada mais estreitamente à tecnologia,
Waldemar Cordeiro nos dá bem a dimensão do artista planetário, simulta­
neamente compromissado com seu tempo, momento que o vincula ao futu-
ro, perpassando pela utopia necessária, como diria Mário Pedrosa.
A arte apresenta-se, então, como campo para atuação do artista-proje-
tista, ordenador do espaço para uma nova sociedade; a arte a serviço da bele­
za, sem ranços morais, como disse ele, ou seja, mantendo sua pureza — arte
pura — utilitária e coletiva, sempre a partir do Abstracionismo Geométrico,
nos anos 50.
Assim, quando luta pela imposição do Concretismo no meio artístico
paulista, tendência que se seguia ao Expressionismo significativo de fins dos
anos 40, defendia-o (“o fascínio da máquina decretou o ocaso da beleza na­
turalista”) como uma “linguagem que pode exprimir o individual, o coleti­
vo, o nacional, o universal a um só tempo.”
D aí porque acreditava na arquitetura e no paisagismo que praticava,
como uma possibilidade de articulação entre arte e vida. E citava Renan, que
dizia que “não existirá poesia no dia em que todas as coisas que nos cercam
forem poéticas” (Mondrian diria o mesmo ao enunciar que a arte é somente
um substituto enquanto seja deficiente a beleza da vida). Assim, a articula­
ção entre as conquistas tecnológicas e a sensibilidade artística, dentro da so­
ciedade em progresso, geraria a “arte industrial”, que apontava como o des­
tino histórico da arte contemporânea.
N o início dos anos 60, impulsionado pelas agitações que sacudiram o
mundo ocidental, e, em conseqüência, o universo artístico, tempo do “rea­
lismo brutal”, segundo Cordeiro, o artista já previa que as novas tendências
da arte concreta deveriam “enfrentar o mais recente fenômeno da arte de sig­
nificado”: a “nova figuração”. E se engajaria nessa “luta para um novo huma­

150
W ALDEMAR C O R D EIR O

nismo”, como o faria outro abstrato geométrico dos anos 50, no Rio de Ja­
neiro, Ivan Serpa. Em São Paulo, Maurício Nogueira Lima e Geraldo de
Barros também incorporariam às suas experimentações por essa época, ima­
gens reelaboradas dos mass media.
Abstracionismo luminoso, arte cinética participativa (com espelhos, cris­
tais, placas semoventes), arte pope reta, arte de agudo comentário político-so-
cial em momento de convulsão. Waldemar Cordeiro pode ser contraditório,
porém é vivo, pulsante, como as propostas que apresenta sempre de forma
polêmica.
Qual seria a sua explicação já em início dos anos 70 para a figuração nos
anos 60? Argumenta que ocorrera, de fato, uma crise nas chamadas tendên­
cias sintáticas (arte concreta, cinética e programada), em virtude dos meios
de comunicação de massa, possibilitados pelos meios eletrônicos, mas que essa
crise, com o uso do computador, altera-se em novo caminho.
Seria assim que abordaria a computação, a partir de 1968, identificando-
se com o processo: “Arte computadorista, enquanto metodologia, se identi­
fica, em última análise, com as tendências da arte contemporânea chamadas,
genericamente, “construtivas” e que visam à quantificação e à digitalização
dos elementos da obra de arte”. E é novamente buscando a integração har­
moniosa máquina-artista, Computer artlzxte. concreta, que manifesta sua cren­
ça numa “linguagem de máquina para a comunicação da sociedade urbana e
industrial”, exaltando a importância da eletrônica para a cultura nacional,
através do sistema de telecomunicação preenchendo as lacunas informacionais
e vergando as distâncias do Brasil continente.
D a exposição de Max Bill ao contato com Romero Brest, do momento
máximo da arte concreta de início dos anos 50 a meados dos anos 60, no
momento do popcKto, a organização tectônica é sempre uma constante em
sua produção. E, assim como a apresentação do conjunto das mesmas ofe­
rece ao espectador a dimensão de seu espírito especulador, traz também,
sem dúvida, às novas gerações, a possibilidade de um contato necessário pa­
ra a reconstituição do painel do desenvolvimento da arte deste século em nos­
so país.

151
20.
A nova dimensão do objeto
[1986]

A idéia de uma exposição ampla que apresentasse ao público a cria­


tividade contemporânea brasileira, a partir da feição que o objeto assume em
toda uma geração emergente de artistas, surgiu em função da constatação do
grande número de profissionais trabalhando no campo tridimensional, des­
preocupados em fazer “escultura” em seu sentido convencional. Eviden­
temente, percebemos que há artistas ausentes, que não foram aqui represen­
tados. Isso se deveu à premência de, em determinado momento, encerrar o
relacionamento de obras para fins de preparo do evento.
O conceito de “objeto”, em função desta exposição, acha-se bastante
ampliado, frouxo até para os mais rigorosos, em decorrência de contatos fei­
tos no processo de sua organização. Pareceu-nos, à medida que visitávamos
ateliês e tomávamos conhecimento da produção dos diversos artistas, que o
trabalho com o tridimensional — ou tridimensional virtual, em alguns ca­
sos — forneceu, a partir desta mostra, mais a instigação para a reunião des­
tas peças do que a preocupação em definir o “objeto” contemporâneo.
Deve-se observar ainda que, uma vez em contato com os artistas convi­
dados, constatamos, para nossa surpresa, que alguns deles previram para a
mostra não um objeto propriamente dito, mas uma instalação com objetos.
Esse dado alterou o enfoque que quisemos imprimir no início do evento,
porquanto não previmos o convite a artistas que usualmente têm propostas
para instalações.
Assim, além do objeto visto através da concepção fenomenalista, segun­
do a qual “só é objeto aquilo que é de algum modo representado”, podere­
mos encontrar nesta exposição heterogênea objetos a partir da ótica surrea­
lista de André Breton, objetos que “entretêm no espaço”, como geralmente
o concebemos, as “relações as mais apaixonadas, as mais equívocas”.

152
A NOVA D IM EN SÃO D O O BJETO

Os objetos apresentados em Paris, por André Breton, na exposição sur­


realista de 1936, abordados em um texto seu intitulado “A crise do objeto”
e citado por Mário Pedrosa em meados dos anos 60, foram referidos como
“objetos matemáticos, objetos naturais, objetos selvagens, objetos encontra­
dos, objetos irracionais, objetos ready ma.de, objetos interpretados, objetos
incorporados, objetos mobiles”. A distinção entre os objetos mencionados por
Breton presentes na exposição de 1936 e os objetos comuns advém, em par­
ticular, de “levantar o interdito resultante da repetição esmagadora dos que
caem diariamente sob os nossos sentidos e nos convidam a considerar tudo
o que poderia estar fora deles como ilusórios”.1
Apoiando-se no texto de Breton, Mário Pedrosa chama a atenção sobre
a intenção surrealista do líder do movimento, de “uma revolução total do
objeto”, que consistiria na ação de desviá-lo de seus fins, dando-lhe um novo
nome ou assinando-o, ou acarretando sua requalificação pela escolha (o ready
made de Duchamp). Assim, além de expor o trabalho sobre o objeto do tem­
po, dos “agentes externos” ou dos “desgastes do consumo”, é importante seu
aspecto de poder apresentar uma “ambigüidade resultante de seu condicio­
namento total ou parcialmente irracional, que acarreta a dignificação pelo
achado (objeto achado) e deixa uma margem apreciável à interpretação se
necessário a mais ativa (objeto-achado-interpretado por Max Ernst); e recons­
truído, enfim, completamente, em todas as peças, a partir de elementos es­
parsos tomados ao lado imediato, ou o objeto surrealista propriamente dito,
como o modelo de uma caixa apresentado então pelo próprio Breton”.2
N a verdade, a partir da liberdade desencadeada na apresentação de
propostas através de objetos por Duchamp ou M an Ray, por exemplo, um
longo caminho de liberação foi percorrido, desde Calder, passando pelas cai­
xas de elaboração mental e poética de um Joseph Cornell a partir da década
de 30, e desembocando no universo peculiar de um Lucas Samara, nos anos
60. Sem qualquer vacilação, o ambiente norte-americano do movimento
pop colocaria também o artista, ou o comunicólogo, diante da parafernália

1 Mário Pedrosa, “A crise ou revolução do objeto”, 1967, in Mundo, homem, arte em crise,
São Paulo, Perspectiva, 1975.
2 Idem, ibidem.

153
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

dos produtos industriais contemporâneos, construindo ambientes ou in­


terpretando objetos, atualmente antológicos na relação artista/sociedade de
consumo.
N a consideração do que se pode fazer a propósito dos objetos no meio
artístico contemporâneo é inevitável que vejamos posturas diversas por par­
te do artista. Assim como a obra de Cornell foi vista como romântica, pela
visível nostalgia que exala de suas assemblages, não se pode deixar de aceitar
como verdadeira a assertiva de que o espírito de colecionador preside o com­
portamento daquele que reúne objetos, como curiosidades e disparates, in­
dependente do contingente imaginativo que depois imprimirá à sua reunião
num trabalho. Aliás, a inventividade do criador é outra faceta imprescindí­
vel do artista que trabalha a partir de materiais inusuais como suporte, ou que
deles procede, projetando sua estranheza em assemblages distanciadas de seu
contexto real.
Nesta última postura identificamos também a proposta poética, de fun­
da racionalidade, que se transfigura com o espaço a partir de objetos ou de
materiais prosaicos.
O desinteresse pela permanência do produto de seu trabalho criativo
passou, assim, a partir dos anos 60, a ser uma característica do artista de nosso
tempo, que especula com materiais não convencionais, para preocupação e
desafio de conservadores e diretores de museus. Daí porque a característica
do efêmero, do envelhecimento visível na fisicalidade da obra, detectável nos
objetos realizados, torna a produção artística de nosso tempo, com exceção
da pintura, da escultura e das artes gráficas, obrigatoriamente vinculada ao
registro documental, para fins de constatação de sua realização no espaço e
no tempo.
No momento em que vivemos, o que pode ser observado com otimis­
mo é a especulação de novos materiais para a expressão criativa. Esse dado
pode não ser novo, mas na busca da construção da fisicalidade de sua idéia,
o artista se vê às voltas com alquimias correntes em nosso meio artístico: aos
plásticos e pvc’s já incorporados como materiais acessíveis aos criadores se
acrescentam o poliuretano expandido, o isopor — Heinz Kuhn foi pioneiro
no uso desse material entre nós — , a resina poliéster, as engrenagens e os dis­
positivos elétricos, tornando certos ateliês, por suas peças e por seu instrumen­
tal, mais semelhantes a oficinas técnicas do que a ambientes cheirando a tin­

154
A NOVA DIM ENSÃO D O O BJETO

ta, como nos habituamos a imaginar o espaço criativo do artista até meados
do século XX.
Por outro lado, a recorrência a ready mades de todo tipo de procedên­
cia (de cerâmica chinesa e bonequinhos de plástico, de peças procedentes de
ambientes de decoração em desuso a eletrodomésticos encalhados, de papel
moeda aviltado a placas de madeirit, de peles de animais a cimento e elemen­
tos minerais naturais), não significa uma uniformidade de postura, porquanto
a interpretação desse material, sua integração a uma proposta individual, sua
assemblage, ou sua reunião numa instalação nos permitem uma visão da di­
versidade, senão da heterogeneidade ampla das diversas direções assinaladas
pelas peças presentes na mostra.
Um artista é alvo de nossa atenção e deliberadamente desejamos trazê-
lo ao público de São Paulo, depois de longa ausência: Abraham Palatnik, o
precursor da arte cinética no Brasil, um dos pioneiros mundiais em usar re­
cursos da eletricidade na criatividade contemporânea. Presente na I e II Bie­
nais de São Paulo, com seus já antológicos aparelhos cinecromáticos, Palatnik
trabalhou posteriormente com relevos de cartão branco, relevos de placas de
madeira, pintura propriamente dita, trabalhando recentemente com relevos
mecanizados. Às vezes um humor sutil parece emergir destes seus aparelhos
atuais, sendo que num deles joga com a polaridade de dois ímãs, e noutro
aborda a problemática da “imagem-tempo”, coordenada através de articula­
ções de um minuto de duração. Palatnik encarna bem o artista como inven­
tor do nosso século, no qual o domínio da técnica e imaginativa podem tan-
genciar através da poética visual da imagem a criação formal e que, por essa
mesma razão, tanto interessou os concretos como os neoconcretos.
Guto Lacaz comparece nesta mostra, que segue a sua participação na
última Bienal, também como um inventor sensível. Artista espreitando o
universo da máquina e reinterpretando-a com humor e inteligência raros. Daí
porque nos parece da linhagem de um Calder, simultaneamente engenhoso
e cerebral. Nesta sua proposta, a máquina não é mais o objeto utilitário, po­
rém um referencial pleno de perplexidade através de sua manipulação cria­
tiva. Enquanto a sua geração não parece importar-se com a presença perene
de suas propostas, os trabalhos de Guto parecem ter seu momento de vida
em sua apresentação fugaz, como uma performance, sendo uma coisa, uma
concretude, antes do tempo que do espaço.

155
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Empregando eletrodoméstico como suporte, Jorge Barrão é uma reve­


lação dos últimos anos: suporte violentado, e onde a frase-clichê “muda a
função muda a significação plástica” nem sempre é válida posto que, apesar
de alterado o visual, o suporte é identificável. Mas o elemento “surpresa”,
humorado, como o exige o espírito da geração do autor, se revela na aproxi­
mação do “contemplador”, ou em sua participação quando em contato com
este objeto (uma máquina de lavar, uma televisão ou uma geladeira) usual­
mente de diálogo tão mecânico com o espectador, que aqui é surpreendido
pela “resposta” desconcertante da peça.
A característica cool das propostas de Waltércio Caldas sempre nos in­
trigou exatamente por essa razão, desde o início de sua emergência em nosso
cenário artístico. Inventor de propostas inteligentes, seus objetos se inserem
dentro da linha conceituai. Trata-se de um artista teoricamente instigante,
que nos toca pelo dado sensorial, gélido em seu perfeccionismo surrealisante
desde sua exposição individual no MASP (1976). Proposta inconsútil como
o Algodão negativo (1983) ou seu já antológico Garrafas com rolha (1975),
parecem apresentar o caráter serial que chega até às duas esferas (im)perfeitas
com “dois elementos paralelos”, que falam antes da relação entre, do vazio
pleno, do espaço em que elas se toca(ria)m. Em linha sistemática de pesquisa
de materiais, Fajardo apresenta-os em sua nudez, fiel a eles em rigor re-
ducionista que imprime coerência a seu trabalho, atento à sutileza da fi­
sicalidade de suas propostas, como o fenômeno da pigmentação, antes que
cor, tato e consistência.
Num a geração intermediária, Marco do Valle, pleno de licença poética
(com referências a Waltércio Caldas e Richard Serra), joga com materiais di-
ferenciadores nos comentários a que se propõe, num diálogo íntimo com as
obras dos artistas selecionados por sua sensibilidade.
Já dois jovens nesta área do conceituai se apresentam com trabalhos que
nos chamam a atenção. Felipe Tassara, aqui articulando uma forma redutiva
com materiais diversos, e Jac Leirner, que propõe acumulações ordenadas
racionalmente com materiais os mais inusitados, e, nessa ordenação, os ma­
teriais ou objetos acumulados obtém uma transcendência, além de seu re­
ferencial imediato. Referimo-nos não apenas aos aros de ferro, mas também
à acumulação de papel-moeda, trabalho no qual o ponto de partida, o não-
dinheiro, é visível como forma fechada no espaço, discernível apenas ao to­

156
A NOVA D IM EN SÃO D O O BJETO

que. Ao trabalho material realizado, Jac Leirner soma um derivado natural


também acumulativo, na assemblage com notas grafitadas de 100 cruzeiros
que reuniu, a nos falar das obsessões, aspirações e comportamento popular
contemporâneo.
Nesta exposição temos também a presença de objetos por assim dizer
virtuais, de autoria de Regina Silveira e Geórgia Creimer. A primeira, a par­
tir dos desenhos-instalações posteriormente desenvolvidos em litos, aborda
móveis com deformações caricaturais, carregando na expressão do desenho
do mobiliário em inequívoco retorno à cor e à picturalidade como qualida­
de em seu trabalho. A segunda, pouco conhecida, apresenta desassombradas
formas tridimensionais, absolutamente fiel à bidimensionalidade da super­
fície pintada. N a verdade, Iran do Espírito Santo também o fizera no ano pas­
sado — inclusive com jogos óticos — ao apresentar seus objetos e móveis pin­
tados e recortados, que permaneceram inéditos, embora apresentem uma
nova incursão por outro material, o isopor, que violenta com uma textura
granítica a lhe impor uma densidade inexistente dentro de sua ironia jovial.
Denise Milan parece no momento ser uma das vasculhadoras de obje­
tos encontrados, que desmonta, reinterpreta e reúne com elementos de ou­
tros objetos, conseguindo por vezes resultados positivos, como nesta peça com
neon incandescente a conferir uma carga luminosa a seu engenho intrigan­
te. Nesta área de especulação com a eletricidade Guto Lacaz parece ser o mais
curioso deste grupo geracional. Num a outra área de pesquisa de materiais,
vemos Cláudio Guimarães, que com fibras de vidro e resina poliéster desen­
volve, ou termina, toda uma série de trabalhos que denominou de Lenkos,
iniciados há cerca de três anos, de que resultam também transparências de
belo cromatismo, estiradas sobre armações de cobre. Trabalho de pesquisa­
dor matérico, onde a problemática da forma parece secundária — como re­
sultado, e não motivação primeira.
Um artista plenamente reconhecido como José Resende se insere tam­
bém nesta área de pesquisa de materiais, campo que tateia com sensibilidade
poética. H á alguns anos já lançando mão de peles de animais, Resende aban­
donou a dureza do ferro pela maleabilidade da superfície de chumbo e da
parafina, e eis que apresenta estas duas placas removentes de couro recobertas
de diáfano nylon. Entre as duas texturas interpõe-se uma matéria adesiva a
conferir uma atração insinuante a esta peça pendente, orgânica como forma,

157
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

a recordar-nos uma frase de poema dos anos 10, de Blaise Cendrars: “sur la
robe elle a un corps...", densa de sensualidade.
A dimensão poética também não deixa de estar refletida na proposta de
Jeanete Musatti, abordando o espaço-tempo, assim como nas peças de Luise
Weiss, infatigável projetista de universo de enorme beleza intimista. Já Bené
Fonteles nos traz a lembrança das forças anímicas da terra através da carga
da mão artesanal.
Objeto inventado, peças reunidas, expressividade e significativo de uma
idéia são as formulações de Zerbini e Leonilson, este último mais voltado para
a pintura. Do outro lado da calçada, a estranheza das imagens fálicas de Caíto,
cujos trabalhos nos reportam a Lucas Samara, dos anos 60.
Aliás, década essa que nos lembra as liberdades de materiais destes nos­
sos dias, enquanto se torna visível a ligação que se estabelece, entre o que pro­
duziu à época Gastão Manuel Henrique e sua obra recente em relevos de
madeira. Assim como a apropriação ao gosto dos anos 60, visível na propos­
ta de León Ferrari, inserida em sua atual fase herético-religiosa.
A reciclagem de ready mades, conferindo um clima de bazar, tipicamente
consumista da sociedade industrializada, nos faz considerar com certo pre­
conceito o trabalho de Maurício Villaça, mas não é impedimento para reco­
nhecer em seus objetos um ambiente brilhante como o do equipamento do
mágico circense, a magnetizar sua audiência com tiradas de humor por vezes
negro, mas sintomático de um meio cultural camp tal qual o nosso, como o
diria Hélio Oiticica.
A transfiguração da superfície de suporte de borracha através da pintu­
ra com resina acrílica, pigmento puro em formas pendentes, de organicida-
de a nos despertar alusões com elementos do mundo real, é o resultado dos
trabalhos de um jovem artista: Hilton Berredo (que já pintava sobre tela em
1981, datando somente de 1983 seus tecidos pendentes pintados). Próximo
a ele, como concepção de trabalho e experimentação, está a fauna ameaça­
dora de Angelo Venosa, com suas larvas gigantescas em grandes estruturas
recobertas de pintura negra em aparente movimentação sobre o piso, muros
ou tetos.
Retornos, permanência de tendências, busca de novos materiais, au-
dácias nas dimensões físicas de certas criações: uma vitalidade indubitável
emerge desta reunião de produtores de objetos, virtuais ou reais. E assim, co­

158
f A NOVA D IM EN SÃO D O O BJETO

locando lado a lado veteranos e profissionais seguros diante de artistas jovens


que apenas surgem, estamos certos de estar proporcionando uma avaliação
do momento artístico em que vivemos em nosso país e, simultaneamente,
uma abertura para uma análise comparativa entre meios e personalidades
inquietantes.

159
21 .
Sérvulo Esmeraldo:
além dos sólidos, a ação cultural
[1986]

Sérvulo Esmeraldo (1929) nos transporta sempre ao nosso início como


profissionais, e às aspirações inquietas de nossa geração. Geração dos anos 50,
formada junto ao Museu de Arte Moderna de São Paulo, suas exposições, suas
sessões da cinemateca. Bienais, a gente se cruzando pela rua Sete de Abril e
adjacências. Vê-lo nos faz lembrar um pouco a figura de Paul Sylvestre, que
se afastou daqui, mas que nos propiciou a realização do sonho. Primeiro Wal-
ter Zanini, depois Sérvulo, depois eu, entre outros, partindo para Paris com
a cobiçada bolsa do governo francês, uns ficando mais — ou quase para sem­
pre — , outros voltando rápido, como meu caso, mas sempre absorvendo um
momento fecundo para nossa maturação. Sérvulo Esmeraldo projeta-se pri­
meiro em São Paulo através da gravura, com sua figuração esguia, descarna­
da, sem modulações volumétricas, sempre em alto contraste branco e negro,
e quase como uma antecipação, em 1957, à presença do ritmo já compare­
cendo em suas xilos.
Seria o contato com as propostas da Galerie Denise René ou do Abs-
tracionismo cinético dos latino-americanos em Paris, nos anos 60, o que o
impulsionaria ao Geometrismo, bem como aos materiais novos que passa a
experimentar, sempre fiel ao alto contraste branco e negro? A verdade é que
através do Abstracionismo geométrico, Sérvulo abre caminho nos mais di­
versificados eventos de arte na Suíça, na Itália e na França, já familiar. Mas
acima de tudo, volta sempre, e expõe regularmente, não apenas em São Paulo,
como no Ceará, Rio de Janeiro ou Recife. Quando vem ao Brasil, vem para
ver o país, e para que o país o veja.
Mas ele se encontraria cada vez mais em contato com a problemática
da luz, do ritmo, da progressão das formas. Por volta de 1975, nos surpreen­
de a beleza intrigante de seus Excitables, impulsionando à participação do

160
SÉRVU LO ESM ERALD O: ALÉM D O S SÓ LID O S, A AÇÂO CU LTU RAL

observador, ao mesmo tempo em que aparecem suas esculturas em acrílico,


com depressões sinuosas de toque sensual, dentro da exigência de qualidade
de suas realizações, em que o branco e o negro se alternam como cor, aqui
rigor e redução.
Um a nova etapa em sua vida foi o retorno ao Brasil, em 1977. Mas o
caminho do artista estava já de longe definido, e ele aqui se desenvolve com
a aisance que é dom da vivência, registro de tempo e resistência. O Brasil não
é mais o espaço de deterioração para os que fazem arte, digo, para os que fa­
zem arte a partir da necessidade interior e de um nível cultural sedimentado
(os demais sempre continuarão se perdendo...). Porém, longe do regresso
às grandes cidades, Sérvulo vislumbra o reencontro com o Ceará. E sua obra
se impõe como articuladora na organização dos espaços da arquitetura com
o meio ambiente de Fortaleza. Há, bem visível, uma ordenação espacial
urbana a partir da colaboração de Sérvulo, escultor, com a arquitetura ins­
titucional da capital cearense. Madeira laqueada, alumínio fundido, aço pin­
tado — tem início toda uma pesquisa aberta de materiais, dado que sempre
caracterizou o artista, bem como o diálogo com o espaço, que marca os últi­
mos dez anos da obra escultórica de Sérvulo, que por vezes nos reporta à
admirada coluna brancusiana.
Mas surgia também outra direção em sua obra, que é aquela das formas
vasadas, encadeadas, progressão geométrica ascensional, como se o espaço
fosse o suporte, até chegar aos “sólidos”.
Assim é que, no início de 80, vemos a linearidade imperar com leveza
ímpar em suas composições quase bidimensionais. Maquetes magnificadas,
placas dobradas, torsões de planos, a superfície de aço vergada e de branco
pintada, ou prescindindo de uma base, forma pura pousada sobre o piso, es­
paço livre, sempre o ângulo a conferir o caráter à peça através da sombra
projetada.
Assim o vemos neste período, sem concessões, porém seco, rigor de con­
cepção e execução, absorvendo a luz-ambiente extravagante de Fortaleza so­
bre as superfícies de seus planos, e sobre elas obtendo as nuances dos grises
mais luminosos. Eis a sensibilidade que não lhe tem faltado na cidade dos
ventos e das brisas.
N o jogo com a luz, ou ciente de seu peso no clima tropical (e os alunos
de André Lhote no Rio de Janeiro dos anos 50 poderiam se recordar de sua

161
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

advertência, diante da chapante claridade excessiva, de que erguessem a linha


do horizonte o mais alto possível a fim de poder tornar perceptíveis os va­
lores cromáticos nos demais planos), Sérvulo, experimentador disciplinado,
descarta o branco, elege o tom grafite intenso para as superfícies facetadas dos
prismas oblíquos, em sua abordagem serial dos Sólidos (“Sólido: que tem uma
forma própria, cujas partes são aderentes, por oposição a ‘fluido’, corpo sóli­
do”, segundo o Petit Larousse), hexaedros a brincar com a luminosidade-
ambiente, planos inspirados em polígonos irregulares. Eis portanto, na ob­
servação e absorção da luz, o compromisso deste escultor com sua realidade,
que incorpora a seus trabalhos através da flexível, e, ao longo dos anos, des-
preconceituosa recorrência da ampla variedade de materiais. Os cubos, triân­
gulos acoplados, ou a assimetria do paralelogramo emergem, sugerindo uma
visão perspectiva que também é ilusória nas formas que encerra nesta fase: de
“corpos sólidos, espaço limitado por superfícies”.
E surpreendentemente surge a maquete da grande figura vermelha, fe­
liz fusão das formas de prisma e cilindro oblíquos, momento novo e auda­
cioso, a partir de dois fragmentos de círculos diversos a imprimir direção aos
planos do corpo da figura, dorso teso, a conduzir o olhar na reflexão da cor.
Esta etapa dos Sólidos emerge em um momento novo na vida do pro­
fissional Sérvulo Esmeraldo: no mesmo mês em que se realiza como anima­
dor cultural maior de seu estado, projetando-o nacionalmente em evento que
é marco no Nordeste. Sérvulo Esmeraldo, após sua chegada a Fortaleza em
fins de 70, imprime uma nova dinâmica cultural na área de artes daquela ca­
pital. Se é certo que o Brasil, na área de artes visuais, é a soma das atividades
de várias capitais culturais (e talvez esteja aqui a decorrência direta da “pers­
pectiva de Brasília”, aludida por Mário Pedrosa no famoso Encontro Inter­
nacional de Críticos de Arte em 1959, realizado na Novacap), sem dúvida
Fortaleza está agora inscrita como uma delas. E inserida na postura de um
Nordeste cultural mais rico, porque transcende a temida conotação somente
folclórica. Um ambiente cultural que se faz, mais uma vez — como em Mato
Grosso — , pelo entusiasmo de um par que estimula os lutadores da terra:
Sérvulo Esmeraldo, por seu prestígio e ação, ao realizar a curadoria da I Ex­
posição Internacional de Esculturas Efêmeras, e Dodora Guimarães, pela
agitação propiciada por sua “Arte Galeria”, da rua Barão de Aracati, em For­
taleza, que atraiu para a capital cearense artistas de vários pontos do Brasil,

162
SÉRVULO ESM ERALD O: ALÉM D O S SÓ LID O S, A AÇÃO CU LTU RAL

assinalando para toda uma geração nova de Fortaleza, uma produção que an­
tes não tinha o Ceará em seu roteiro. E isso se deve à postura segura que não
abre mão da exigência de qualidade, que deseja para seu espaço o nível in­
ternacional, e que inaugurou o vibrante evento do Parque do Cocó e da Casa
Raimundo Cela, acolhendo obras de 78 artistas contemporâneos brasileiros
e estrangeiros de primeira grandeza, em encontro marcado por Sérvulo Es­
meraldo, no Ceará.
Só quem trabalha na área cultural e artística no Brasil pode dimensionar
a complexidade deste esforço coordenador. Contatar várias gerações de pro­
dutores de arte e obter materiais, desde Fortaleza, para a realização dos proje­
tos enviados por correio pelos artistas do Brasil, da América Latina e dos Es­
tados Unidos, tentando concretizá-los em cada etapa de sua execução até sua
exibição, a contento de cada criador.
E esta é uma segunda, mas igualmente importante contribuição da per­
sonalidade artística de Sérvulo Esmeraldo, que completa assim sua obra de
escultor rigorosamente em processo, em plena criatividade, com a de cida­
dão participante de um projeto cultural local, vinculando-o a sua realidade
de maneira viva. E que faz com que, como artista e ativador cultural, mais
uma vez atraia sobre si nossa atenção, admiração e respeito.
22.
Treze gravadores de São Paulo
[1986]

Esta exposição propicia uma relativa avaliação do panorama contem­


porâneo da gravura no estado de São Paulo, na região Sudeste, o centro cul­
tural mais agitado do país. Um dos nomes mais ilustres da gravura brasileira
é oriundo de São Paulo, no caso Livio Abramo, radicado há longos anos em
Assunção, no Paraguai, e responsável pela formação de numerosos artistas
emergentes nos anos 50 na capital paulista. D aí ser encontrada, por sua in­
fluência, a xilogravura entre as técnicas seguidas por essa geração de novos.
Seria a presença de Lee Friedlander, com curso especial junto ao MAM do
Rio de Janeiro em início de 60, quem traria a penetração, nos meios da gra­
vura brasileira, do universo e possibilidades contemporâneos do metal, a
marcar período áureo da gravura nos anos 60. Apesar das tendências artísti­
cas que levaram os artistas, sob o entusiasmo das ressonâncias do movimen­
to pop norte-americano pelo objeto, à especulação com novos materiais, al­
guns gravadores se mantiveram fiéis à prática sistemática da obra gravada.
Além de Abramo, faltam nesta exposição alguns artistas por nós consi­
derados influentes, pela iiTadiação de seu trabalho e seu nível profissional. É
o caso de Arthur Luiz Piza, gravador conhecido internacionalmente, desde
os anos 50, residente em Paris, e que, após formação com Friedlander, não
mais abandonaria o Abstracionismo, com incisões que emergem em relevo,
e em cujos trabalhos a redução de elementos se une à figura cromática. É tam­
bém o caso de Renina Katz, responsável, através da atividade didática, pela
orientação de várias gerações de jovens artistas, e que se desenvolveu, da fi­
guração comprometida socialmente, à abstração lírica (anos 60 e 70).
Entre os veteranos em gravura de São Paulo, três se fazem presentes nesta
mostra: Marcelo Grassmann, Odetto Guersoni e Maria Bonomi. O primei­

164
T R EZ E GRAVADORES D E SÃO PAULO

ro, mais uma vez a nos apresentar seu fabulário característico, universo inte­
rior pleno de referências extemporâneas de alta carga expressiva, com magis­
tral domínio técnico. Odetto Guersoni, gravador de longo percurso, com três
trabalhos de sua série M andala (1992), em xilogravura, dentro do Abstra-
cionismo geometrizante que marca há longos anos sua produção.
Já Maria Bonomi, a mais notável discípula de Livio Abramo — dona
de uma projeção imagética irradiante a partir de amplas superfícies, com xilos
de dois metros de altura, e apresentações internacionais há cerca de 25 anos
— , está, nesta mostra, contida pelas limitações das dimensões propostas,
embora se possa apreciar sua surpreendente energia vital.
E evidente que há também, na história da gravura contemporânea no
Brasil, artistas que se valeram da gravura para obter a multiplicação da ima­
gem de suas pinturas. Porém, o critério da escolha dos artistas de São Paulo
foi privilegiar os artistas-gravadores, buscando uma representatividade da si­
tuação da gravura entre nós.
D a mesma geração que Bonomi são Savério Castellano, Regina Silveira
e Evandro Carlos Jardim. O primeiro, de sua formação como arquiteto dei­
xa transparecer a preocupação com a ordenação do espaço, enquanto é sub­
jacente às suas imagens especulações matemáticas e de ordem quantitativa,
que o levariam à aproximar-se da computação.
Regina Silveira tem um desenvolvimento rico em sua trajetória, do
Abstracionismo informal dos anos 60 como pintora à gravura, cultivando a
litografia com uma excelência de resultados rara em nosso país. Suas pesqui­
sas formais levaram-na a todo um trabalho serial de deformações anamórfi-
cas, explorando a perspectiva até seus limites extremos, com figuras silhue-
tadas (e sua decorrente aplicação ambiental, em tapeçaria, gravura). Atual­
mente assistimos ao seu retorno à cor, à pintura, e estas litos presentes são
testemunho de três instantes de sua produção, onde a silhueta deformada das
figuras obtém, através da cor, valores volumétricos e texturas, enquanto o
referencial inicial parece constituir-se em mero pretexto para uma gradativa
abstração formal.
Evandro Carlos Jardim trabalha com metal, elaborando imagens fi­
gurativas a partir da memória do ambiente urbano que o envolve, num tra­
balho de incorporação de referências anteriores retrabalhadas numa relação
amorosa com seu vocabulário e recursos gráficos.

165
ARTISTAS CO N TEM PO R ÂN EO S N O BRASIL

O artista Márcio Perigo que se iniciou com Jardim na gravura em me­


tal, oferece-nos três trabalhos que projetam, em alguma medida, três momen­
tos de seu percurso: da natureza-morta de 1986 à composição abstrata com
ritmos verticais, com intensa luz interior (utilizando-se do reaproveitamento
de imagens impressas ou com possibilidade de aparecimento de fantasmas
imagéticos a partir da própria gravação). Já em seu terceiro trabalho é bem
visível a tendência construtiva guiando a concepção do trabalho, emergindo
valores pictóricos na própria gravura em metal que denunciam as incursões
pela pintura, terreno novo e fascinante para o gravador.
Poderíamos caracterizar como “novos” os artistas nascidos na década de
50, como Sergio Fingermann, Branca de Oliveira, Luise Weiss, Lígia Eluf e
Yara Guasque. Procedente da área da pintura, Fingermann parece conferir
valores formais construtivos cada vez mais enfatizados em sua figuração poé­
tica, a partir dos recursos do metal (água-forte e água-tinta). Já Luise Weiss
trabalha com devoção suas superfícies de madeira, concentrando a composi­
ção num objeto dado (numa cabeça, um torso, um animal, um objeto), ti­
rando com sensibilidade o máximo partido da transparência das cores, recor­
rendo também, para esse fim, à sobreposição de imagens enriquecidas com a
textura da madeira.
Branca de Oliveira e Lígia Eluf trabalham com metal e compõem, com
Yara Guasque, a representação dos novos valores. Yara parece-nos a menos
convencional das artistas que trabalham com xilo, utilizando-se da gravura
como meio pleno para a obtenção de estampas. Partindo de composições de
fluente Abstracionismo orgânico, com cores cálidas e comunicativas, incor­
pora com muita fidelidade, à superfície gravada, todos os “acidentes” e atri­
butos da madeira, inclusive aqueles oriundos do desgaste do uso e do tem­
po. A gravadora tira partido inclusive do finíssimo papel japonês, único que
se lhe apresentava como opção para suas impressões, em suas pequenas tira­
gens, a refletir bem o caráter experimental de seu trabalho.
A escola de León Ferrari, argentino radicado em São Paulo desde os anos
70, visou possibilitar a apresentação de uma amostragem de trabalhos de ar­
tistas (como também o fazem Hudinilson Júnior e Alex Fleming), que re­
correm a novos media. N o caso, a fotocópia (ou xerox) de colagens de ima­
gens de que o artista se apropria com finura de escolha em sua atual contro­
vertida temática “herética”.

166
TR EZ E GRAVADORES D E SÃO PAULO

Cabe ainda uma palavra sobre a comissão encarregada da seleção dos


nomes deste grupo de gravadores de São Paulo. Como diretora do M AC,
pessoalmente convidei para participar da exposição, por seus méritos in­
questionáveis como artistas, Regina Silveira e Evandro Carlos Jardim. Em
seguida, solicitamos-lhes que constituíssem conosco uma comissão para a se­
leção dos demais gravadores paulistas ou residentes em São Paulo. Eviden­
temente, a própria restrição dos organizadores da mostra, no que tange à
dimensão das obras, dificultou, para alguns artistas, sua plena participação.
Contudo, acreditamos que este grupo pode, sem dúvida, ao lado da repre­
sentação sulina do Rio Grande, constituir-se em eloqüente avaliação da si­
tuação das artes gráficas no Brasil.

167
23.
Cildo Meireles no MAC
[1986]

A emergência de Cildo Meireles (1948) no meio artístico brasileiro em


fins da década de 60 é coincidente com o surgimento das tendências con­
ceituais, de que ele foi o valor mais consistente em nosso país. Ao mesmo
tempo, foi um dos primeiros a realizar propostas ambientais, posteriormen­
te denominadas de “instalações”, tradução de uma palavra inglesa (com sua
obra Espaços virtuais: cantos 1967/68). Durante longos anos, Cildo ficou co­
nhecido pela crítica que acompanhava seu desenvolvimento como um artis­
ta que mantinha projetos irrealizados, pelas dificuldades de concretização, isto
é, suas propostas previam uma realização física que tardava em se concreti­
zar. Assim, para nós, desde 1969, este artista é um gerador de idéias visuais,
conceituai, portanto, na mais pura acepção da palavra.
U m a qualidade rara de se encontrar entre os criadores brasileiros, em
decorrência da própria realidade tumultuada em que vivemos, é a coerência
deste artista. Seu percurso como criador obedece, por sua própria natureza,
a uma linha de produção em contínuo desenvolvimento, com perceptível fi­
delidade a uma direção identificável e singular.
Sempre admiramos em Cildo, a par da inteligência sensível de suas pro­
postas, sua intimidade com nosso país. O conceituai nele não significou a
opção pelo urbano, o menosprezo pelo comportamento do meio rural, su­
burbano ou interiorano. Este artista, de ampla vivência pelo país — em
Brasília, Belém, Parati, Goiás ou Rio de Janeiro — , sempre soube manter sua
inquietação num nível que transcende as contingências que freqüentemente
a província impõe. O u seja, ele mantém acesa a preocupação intelectual em
qualquer ambiente. Vemos uma similaridade com o fenômeno registrado, em
certos aspectos, na obra de Joseph Beuys, na sua inquietação política. In­
quietação que emergiu em momentos dramáticos da vida de nosso país, atra-

168
C IL D O M EIRELES N O MAC

Cildo Meireles, em 1986.

vés de belas metáforas ou comentários a propósito dessas circunstâncias,


como, por exemplo, em início dos anos 70, em trabalhos como “Do Corpo
à Terra”, evento realizado em Belo Horizonte em 1970 ( Tiradentes: totem-
monumento ao preso político), seja em Mutações geográficas ou nas Caixas de
Brasília. Em meados da década de 70, são exemplos dessa postura as suas
Inserções em circuitos ideológicos (1976). Por outro lado, os Cadeados, traba­
lho serial, poderiam ter implícita a alusão a situações repressivas, do ponto
de vista da fisicalidade da obra, embora as propostas nesta série nos reme­
tessem a questões puramente conceituais, plenas dos enigmas intrigantes com
que o artista permanentemente contribui em nosso meio: conhecer pode ser
destruir; a distância entre dois pontos é uma curva; a diferença entre o cír­
culo e uma esfera é o peso. Cildo nos propõe reflexões através de charadas
em que o humor do artista aflora ao se expor à decifração por parte do ob­
servador atento.
Essa preocupação política com concessões literárias, tão rara entre nós,
apareceu pela última vez em seu trabalho Sermão da montanha: F iat Lux, por

169
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

volta de fins de 70. Instalação plena de violência e impacto no momento em


que se apresentou no Centro Cultural Cândido Mendes. Esta proposta, por
sua estreita vinculação com seu espaço/tempo, não teve a mesma recepti­
vidade ou comunicabilidade quando apresentada em Medelín, Colômbia, em
um evento sobre arte não-objetual realizado em inícios de 80. Ao longo dos
anos, já fizemos algumas reservas a certas realizações de Cildo Meireles do
ponto de vista da seleção de materiais e execução de trabalhos, em circuns­
tâncias que podem ser consideradas inaceitáveis, e que poderiam comprome­
ter sua idéia. Reconhecemos, no entanto, que a precariedade é parte integran­
te do universo deste artista, sendo coerente com sua trajetória que acompa­
nhamos nos últimos vinte anos (.Nada ter — nada a perder e M oral: Pobre:
Anônimo: = maioria). Não obstante, sua marca e a qualidade de suas con­
cepções atingiram um ponto alto em suas duas últimas apresentações em São
Paulo, nas exposições “Obscure light/Obscura luz”, em 1983, assim como em
“Cinza”, de 1986, ambas na Galeria Luisa Strina, sendo que da primeira
mostra mencionada pode o M AC adquirir para seu acervo Parla, de 1982.
Nestas duas exposições, como em “Desvio para o Vermelho”, está claramen­
te exposto pelo artista o clima de sua produção, e a intriga de seu pensamen­
to visual de leveza e transparência, tão significativas. É este clima conceituai
que o insere no panorama da arte contemporânea do Brasil, com um lugar
já cativo.
Cildo Meireles não aderiu, como outros de sua geração, à pintura, sen­
do sua opção manter-se dentro do desdobramento de sua linha de trabalho.
Mas seu desenho é uma atividade permanente ao longo dos anos, embo­
ra erroneamente o artista nos tenha referido em certo momento à sua cria­
ção gráfica como seu lado “venal”, pela única razão de ser uma produção mais
vendável. Por certo uma afirmação preconceituosa, por parte de um artista
que é um ser comum, maravilhoso em sua comunicabilidade e inquietação,
e que amaria ver sua criação desvinculada da preocupação de sobrevivência,
circunstância que nos afeta a todos.
É para o Museu de Arte Contemporânea uma satisfação poder acolher
em seu Espaço Ibirapuera um artista da dimensão nacional de Cildo Meire­
les, encerrando suas atividades expositivas deste ano de 1986.

170
24.
“A Trama do Gosto”:
uma superprodução paulista
[1987]

Pelo porte de seu custo — nove milhões de cruzados — , pouca reper­


cussão teve na imprensa “A Trama do Gosto”, embora o público que acor­
resse ao evento fosse considerável e respeitável (comparável, em número, ao
público que durante um ano visita as coleções do MAC). A demonstrar que,
mesmo nos meses “baixos” do ano — verão — , a cidade demanda, e respon­
de, a atrações como esta exposição que, se não ofereceu um painel da produ­
ção visual experimental de nosso tempo, chegou até a apresentar bons artis­
tas. Havia alguns trabalhos intrigantes — entre outros, Giorgio G iorgi— em
meio à confusão de seus expositores. Mas não deixa também de ser uma ci­
lada de um meio artístico sem fundamento cultural. Eis talvez o que atraiu
nesta exposição divertida o grande público, que pareceu “perceber” com ela
o que é arte, quando, na verdade, não percebeu nada. Pois a exposição colo­
ca vários problemas instigantes, numa época de meios de comunicação de
massa, ao visitante menos distraído ou mais informado. Abordou os aparen­
tes não-limites entre a arte e a não-arte ou pseudo-arte, podendo também se
constituir em superficial comentário sobre o meio artístico, a arte e a espe­
culação, a fantasia e o real, a autonomia da arte e a representação do real atra­
vés da arte. Mas, o que é mais grave: foi mistificadora em relação à mistifica­
ção existente na arte e no meio artístico.
Percorremos a exposição sem nenhuma introdução prévia sobre o evento
e fazendo sua leitura a partir do espaço de sua realização e suas interferências,
ou seja, das obras nele dispostas. Por outro lado, um dado que nos pareceu
muito sintomático e que aflorava ao visitante que não foi apenas “se distrair”
na “Trama do Gosto”, foi a visível dicotomia que se adivinhava, entre a con­
cepção do evento, de autoria de um curador, e a realização tal como se exi­
biu perante o visitante. Um bom terapeuta poderia confortar seu paciente ar­

171
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

gumentando que não se obtém como resultado o que se planeja, porém o que
se consegue concretizar. Assim o projeto da exposição se evidencia em sua
própria organização espacial, arquitetônica, no simulacro divertido do plano
ou do repertório de uma cidade dentro do edifício da Bienal, fazendo lem­
brar, como muito oportunamente pontua Cacilda Teixeira da Costa, os ale­
gres salões da SPAM, realmente deliciosos em sua insousiance carnavalesca e
alegre. Assim, ruas, praças, monumentos, bancas de jornais, de frutas, cor­
reio, foram reproduzidos assepticamente no espaço para “representar” o caó­
tico, o heterogêneo e o pleno de misérias. Ambiente urbano aqui elitizado pela
mão seletiva do arquiteto, dos artistas distanciados da sujeira e da poluição
da cidade desvairada, posto que ao artista cabe a dimensão dos sonhos, da fan­
tasia, da interpretação de uma realidade de que ele se distancia com o objeti­
vo mesmo de poder expressar-se a partir de sua sensibilidade, de preferência
sempre com a utopia da ordenação do caos em que estamos envolvidos. Nes­
ses tempos de cenográfica arquitetura pós-moderna, vitrinista e espetaculosa,
este evento se insere à perfeição. Em vários aspectos, inclusive ao se montar
em clima de superprodução, como valores iguais, contribuições qualitativa­
mente diversas, e confundindo a decoração e a arte, o cenográfico e o arqui­
tetônico, da mesma maneira que se misturam despiedadamente entre nós
os valores sociais e culturais. Foi realista, nesse aspecto, o evento. Mas pos­
teriormente tomamos conhecimento através de um pequeno folheto, de que
a curadora quis (a partir de propostas dos artistas convidados para o evento)
igualmente reproduzir no espaço a presença do comércio, a imprimir vivaci­
dade e dinâmica ao meio urbano. O comércio é uma atividade em si dinâ­
mica e dinamizadora, na medida em que movimenta os indivíduos, e que sua
produção é necessária a outros para fornecer equipamento de trabalho, con­
forto, proteção ou ainda divertimento.
Uma vez mais, contudo, surge aqui a consideração sobre o individua­
lismo do fazer do artista plástico, tradicionalmente imune às mobilizações de
ordem coletiva (como até para a organização de uma associação de classe),
pelas contingências do característico processo de sua criação solitária.
Assim percebe-se que à provável concepção de uma exposição temática,
os artistas convidados reagiram individualmente, poucos sendo sensíveis ao
espaço urbano como concepção do evento, ocupando-o antes com obras de
sua autoria, por vezes a partir de afinidades com o tema da exposição, outras

172
'A TRAM A D O G O S T O ”: UMA SU PERPRO DU ÇÃ O PAULISTA

simplesmente colocando no espaço obras guardadas de seu ateliê. Exceções


feitas ao caso de Sandoval e Tadeu Jungle, de concepção teatral como cená­
rio, porém de realização rústica que não está à altura do meio eletrônico fo­
calizado, que exigiria uma elaboração maior para sua correta concretização.
Já Regina Silveira focaliza, em criativa resposta à proposição da exposição, em
O monumento — ainda imbuída de sua obsessão perspectivista pelas Bandei­
ras, de Victor Brecheret — , um espaço corretamente proposto e realizado, no
qual ainda a obra é objeto da contemplação do observador a partir de um
ponto de vista dirigido pelo artista.
De qualquer forma, quando se percorre suavemente o vazio desta carís­
sima produção são muitas as interrogações e nossa perplexidade diante da
disponibilidade financeira existente para um tipo de evento como este, no
qual a presença maior, sem dúvida, é a realização de Guto Lacaz;, que se con­
firma plenamente em sua instalação, em um trabalho de nível internacional,
e que poderia estar em qualquer evento de qualquer país do mundo neste
momento. Carmela Gross, igualmente, apresenta uma idéia intrigante, em­
bora não integralmente feliz em sua concretização, na medida em que recor­
re a obras de outros artistas que rompem a unidade de sua proposta.
Absolutamente inócuas, pela ausência da amarração, são as instalações
referentes aos anos 50, irritantes em sua gratuidade, ou ainda a presença dos
trabalhos de Nelson Leirner e León Ferrari, tipo retrospectiva reciclada, as­
sim como a “praça do corpo”, um retrato da “blague” pobre; ou a mistifica­
ção do ambiente artístico feita a sério para ser tomada como brincadeira (“se
pegar pegou, se não pegar foi piada”) — o máximo de inconseqüência de um
meio cultural não cultivado e subnutrido.
Nessa linha de ponderação, qual a explicação para a sala de Rubens
Matuck, um amoroso profissional dedicado ao conhecimento dos processos
técnicos? Com o aceitar o ambiente luxuoso e requintado — sem volup-
tuosidade — de Fernando Stickel, que não chega a ser didático, nem por pro­
posta exclusivamente criativa, e que parece mais um espaço de equívocos?
Um a exposição dentro da exposição é o espaço da sala concreta “Mate­
rial de Construção”; provavelmente oferecida aos concretos pelo aniversário
de seus trinta anos de movimento, e dentro da profusão comemorativa de que
a poesia foi alvo através da Ilustrada, como se não houvesse toda uma parti­
cipação ativa, criativa e polêmica das artes plásticas nesse movimento. E, ao

173
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ser conferido um espaço ao Concretismo nesta exposição (claro que tudo


pode, através do discurso, ser justificado; a cultura urbana e industrializada
de São Paulo e o Concretismo etc.), o “núcleo” da sala é, mais uma vez, a
poesia e seus documentos, as obras de artes plásticas parecendo apenas ilus­
trar o movimento nas paredes do espaço.
E na desordem urbana de nossos dias, o outdoor comparece como re­
ferencial obrigatório nesta sociedade capitalista, no entanto, ele está ausente
na mostra, vazio inexplicável, um detalhe apenas. E, por sua “plasticidade”,
comparece o grafiti, ordenado, contido, domesticado, próximo daquele que
já se introduziu nas galerias e Bienais, mostrando que, como em outras capi­
tais do mundo ocidental, qualquer marginal ao qual se oferece um interes­
sante cargo executivo pode abdicar de suas transgressões anteriores a fim de
penetrar no sistema— por cima. Devagar, porém belo e solto o traço de John
Howard, fluente em sua linearidade criativa. Grafismo profissional, limite de
sua atividade como grafiteiro/artista plástico, cujo suporte são os muros des­
ta nossa suja e fascinante cidade de São Paulo.
A marcar o clima agitado da luminosidade caótica da publicidade no
meio urbano, as decorações de Maurício Villaça conferem o clima significa­
tivo da exposição. Igualmente presente o sentido de humor e a imagética vin­
culada aos comics, o cinema, seriados de televisão, elementos identificados
com a produção da geração urbana que hoje tem entre vinte e trinta anos.
Trabalhos esses tão kitsch, colorjul, vibrantes, efêmeros e frágeis quanto o even­
to “A Trama do Gosto”: mostra bem produzida, divertida de se percorrer, le­
ve e sem densidade, como a própria notícia comunicada em seqüência no
telejornal das oito.

174
25.
Mira Schendel
[1987]

Das abstrações reducionistas em materismo sutil dos anos 60 aos dis­


cos e “droguinhas” em acrílico transparente de fins dessa década; das grafias
e cadernos criativos com fino senso de humor que emergem nos anos 70 aos
papéis de arroz com letraset e colagens de formas geométricas sensíveis em
sua relação com o espaço, e ainda as pinturas monocromáticas pontuadas de
ouro (!) de começos de 80, a trajetória da produção de Mira Schendel foi sem­
pre rigorosa por sua coerência, distinguindo-se por seu caráter serial.
Essa é também a característica evidenciada na proposta apresentada na
Galeria Paulo Figueiredo e no Escritório de Arte Raquel Arnaud (4 a 25 de
agosto), como dois tempos de uma especulação visual que se encerra com es­
tas duas exposições simultâneas.
É como se Mira trabalhasse por golfadas de questões em que submerge
em processos de meditação, e que nos projeta em ciclos, esgotando-os e tor­
nando-os visíveis numa exposição, ao considerá-los terminados, como um
livro que se fecha ao se ter sua leitura finalizada. Seu processo de trabalho,
pelo que sabemos, é lento e complexo em sua maturação, no seu peculiar fa­
zer secreto, no discreto expor de sua produção aos que a freqüentam no
ascetismo de seu espaço doméstico-artístico, laboratório onde a sensibilida­
de afetiva é tangenciada em cada gesto feito pelo visitante, assim como pela
forma absorvente com que a artista perscruta o amigo no diálogo sem pon­
to, bem como através do olhar a captar suas reações. Mira Schendel vai de­
senvolvendo seu discurso intelectual, pois ela é, acima de tudo, uma perso­
nalidade cerebral-intuitiva, que produz objetos sensíveis, tendo sempre em
mente “que é inerente à arte corporificar algo que se pode sentir no próprio
corpo” — como observa Hermann Schmitz, tão citado pela artista em de­
terminado momento de suas investigações. Como um chinês que num fino

175
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ritual nos revela lentamente as imagens que vai desenrolando diante de nos­
sos olhos. E, no entanto, Mira Schendel, que acompanhamos desde sua ex­
posição no M AM na rua 7 de Abril em 1954, é uma artista feroz em sua
criatividade exemplar, assim como preserva um relacionamento singular com
sua obra.
Curiosamente, ao longo dos anos, a artista, interlocutora de psicanalis­
tas e filósofos, após as ondas de todas as tendências conceituais (“idéias to­
dos têm, o difícil é concretizá-las numa obra”, dizia-me ela nessa época), cé­
tica diante da desmaterialização da arte, depois dos expressionistas gestuais
de inícios dos anos 80, seguiu seu caminho com inquietação — marcada, co­
mo todos nós, por desencanto diante das coisas e da pequenês do meio — ,
mas num ritmo próprio e constante. E eis que em São Paulo, onde há cerca
de dois anos percebe-se uma renovada aproximação do rigor geométrico ou
reducionista entre os artistas da mais jovem geração, Mira Schendel se torna
um vivo foco de interesse.
E neste momento, ela assume, aos 70 anos, em sua vital contempo-
raneidade, a necessidade de expor um chamamento à ordem diante do ma­
rasmo que sua percepção registra, e ao qual responde em forma de ordena­
ção radical, em postura audaciosa neste meio de mediocrização que parece nos
envolver.
É uma exposição de um conjunto que sobressai como um grito, em
branco e negro, sobre suportes retangulares de duratex cobertos com têmpe­
ra. N a Galeria Paulo Figueiredo são dezenove retângulos perfeitos, sobre os
quais a artista concebe figuras geométricas (quadrados, planos retangulares,
círculos, arcos de círculos, triângulos etc.), em baixos e altos relevos progra­
mados em manipulação das superfícies brancas; embora sobre cada um, arti-
culando-se com a interferência do relevo (e a luz realiza seus jogos), a artista
faça um comentário gráfico, como um grafite, em gestualismo comedido. Os
diversos trabalhos expostos nesta mostra parecem dialogar entre si, num des-
dobrar-se em seqüência lógica visual, num rico conjunto de variações musi­
cais sobre um mesmo tema. Apenas num dos trabalhos expostos, Mira não
realiza o relevo; e neste único vasto espaço branco geométrico, a encerrar o
núcleo exposto na Galeria Paulo Figueiredo, o gesto em negro é breve, con­
ciso e seco. Por seu caráter incisivo, nos dirige já às peças expostas na Galeria
Raquel Arnaud: uma meia dúzia de trabalhos, sempre o mesmo suporte

176
MIRA SC H EN D EL

imaculadamente branco pintado à têmpera, a apresentar uma agressividade


inédita em sua obra. O gesto sensível do artista é aqui substituído pela an­
gulosidade do elemento negro, preso ao suporte, corpo teso e duro, articula­
ção radical com o espaço ambiental: voluntarioso, como forma e projeção
luminosa, a marcar com determinação, um movimento direcional, enfatiza­
do pela própria artista.

177
26.
Geórgia Creimer
[1988]

Presente na exposição “A Nova Dimensão do O bjeto”, realizada no


M AC, em 1986, com grande número de artistas da nova geração, Geórgia
Creimer (1964), também procedente do curso da FAAP, celeiro dos anos 80
em São Paulo, realizara, em dezembro de 1985, instigante apresentação indi­
vidual na Galeria Mônica Filgueiras de Almeida. Partindo do espaço arqui­
tetônico da pequena galeria, e tirando o máximo proveito dessa espacialidade,
Geórgia dispôs seus inventivos objetos-pinturas (a mostra denominava-se
“Objetos de Arte”), de dimensões agigantadas — sobretudo se tomarmos em
consideração o pé direito da galeria e suas dependências — , de forma que se
distribuíram, dominando, com grande impacto visual, o ambiente expositivo.
Um universo próprio: invenção de formas e apropriação criativa de ob­
jetos; obras quase monocromáticas, todas em azul, com pinceladas visíveis
conferindo volume aos corpos recortados e pregados à parede. Viam-se ob­
jetos inspirados em ornatos arquitetônicos — como a cornucópia, ou outro
no qual a autora via o dorso da M aja desnuda. Ali uma coluna agitada, ou
mais além, estranho bicho a reportar-nos às invenções tarsilianas antropo-
fágicas de 1929; ou ainda um objeto-pintura com referências a projeções de­
corativas e que, na verdade, conforme depoimento da própria artista, não
passava de uma macro-transfiguração de uma saboneteira kitsch, e que nos
surgia como curioso espécime inventado. Por seu recorte, as peças de Geórgia
Creimer adquirem o caráter de objetos, nos quais a luz parece estar inserida
a partir da pintura gestual e expressiva, destacando as depressões de sua fi-
sicalidade. N o caso das colunas, por exemplo, assemelha-se a uma lumi­
nosidade externa, enfatizando seu volume objetual. E o caso da personalíssima
peça que hoje se encontra na coleção do M AC, ou da movimentada coluna

178
G EÓRGIA CREIM ER

drapeada, apresentada, na individual citada, no patamar da escada, e que po­


de sugerir um tronco ou um cálice.
O temperamento sonhador de Geórgia Creimer, nesses atributos pos­
síveis para sua iconografia, aproxima-se, em certos aspectos, da personalida­
de de Tarsila do Amaral (que se assombrava, a posteriori, com as imagens que
produzia) e identificam-na com a pintora de nosso Modernismo. Apesar de
seu aparente desconhecimento dessa fase da obra de Tarsila, o trabalho apre­
sentado por Geórgia Creimer na X IX Bienal de São Paulo, coincidentemen­
te, tem a mesma elipse a dominar a sua composição, como em várias obras
do período antropofágico de Tarsila, também de marcado cunho onírico.
Um outro momento a ser registrado no desenvolvimento de Geórgia
Creimer, quando a padronização foi a regra na retomada da pintura, viria logo
a seguir na apresentação de Zabriskie Point, em 1985, no Salão Paulista de
Arte Moderna. Pintura de grandes dimensões, com mais de 6 metros de ex­
tensão. Novamente ela expõe uma interpretação muito pessoal de um friso
decorativo, ou nele inspirado; o geometrismo adquirindo organicidade, como
desconhecida entidade, suas formas e seqüências tangenciando os limites do
suporte e novamente a luz a conferir-lhe volume e um clima singular.
Em Viena a partir de 1986, seu trabalho se desenvolve sem interrupções,
e esta geração ganha, aos nossos olhos (assim como os integrantes que pinta­
vam na Casa 7, e também Iran do Espírito Santo, Venosa e Senise, por exem­
plo), respeito pelo profissionalismo que norteia sua trajetória. Num simpósio
de artistas, ao qual foi convidada, em Hagenau, na Áustria, Geórgia Creimer
apresenta um universo criador no qual produz estranha pintura que seria a
cabeça de série a ser realizada daí em diante. Em contraposição a um fundo
tratado gestualmente, com áreas mais sombrias ou luminosas, figuras se er­
guem verticalmente dentro da composição, com uma fatura mais elaborada,
evidenciando a clareza volumétrica das peças. Uma vez mais — como acon­
teceu com outros artistas brasileiros de outras épocas — a artista fora inspi­
rada em peças pré-colombianas da coleção Landmann, vistas em São Paulo
antes de sua partida para a Europa. Uma devolução tardia da essência da
América Latina, registrada e repensada, através de uma interpretação a par­
tir de sua sensibilidade.
As referências a dólmens e a elementos arquitetônicos, como a coluna,
surgiriam também em sua pintura, na coluna recostada, o rústico capitel com

179
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

a esfera à esquerda, uma assimetria compositiva desconfortável e intrigante


para o observador.
Atualmente, na Bienal, Geórgia Creimer, talvez a mais nova artista pre­
sente ao evento, apresenta pinturas dentro de um ambiente. Questionamos
a forma de apresentação de sua obra, porquanto acreditamos que ela debi­
litou a receptividade de sua pintura, tão pessoal por seu caráter metafísico.
N a verdade, a intenção da artista era provocar no espectador um clima es­
pecial de recolhimento, motivando-o através da instalação prevista, a chegar
à sua pintura. D aí porque concebeu um entorno escultórico com excesso de
elementos envolucrando suas pinturas, como algo a que se tem acesso por
gradação de envolvimento. Ao questionarmos a validade da construção de
ambiente próprio, desnecessário dentro de uma Bienal — espaço que os vi­
sitantes percorrem com ansiedade e com dificuldade de concentração — , ela
argumentou que o artista, ao preparar seu envio pessoal, se esquece dessa li­
geireza de fruição, ou dessa impossibilidade de comunicação num evento
desse porte.
Acreditamos, contudo, diante das obras-pinturas de Geórgia Creimer,
desligando-nos do entorno artificioso da Bienal, que seus trabalhos — duas
figuras, três paisagens, pinturas recortadas, além de um “objeto” singular
como forma e referencial — mantêm o mesmo clima de invenção de seus pri­
meiros trabalhos, embora o tratamento das superfícies seja mais elaborado,
com a mesma figuração aparente em sua imagética introspectiva. Expõe-se,
assim, com rara carga onírica, a despeito de pertencer a uma geração mais
voltada para as inspirações nos mass media. Em certa medida, próxima, na
invenção formal, de um Angelo Venosa, projetando simultaneamente um
universo de formas a partir de citações, desde referenciais do mundo cotidiano
à mais longínqua ancestralidade, memória do tempo, vinculadas à histori-
cidade do mundo físico.

180
27.
A m ilc ar de Castro:
o v ig o r d a expressivid ad e fu n d a d a n a g eo m e tria
[1988]

Como na pintura de Volpi dos anos 50, sob a influência do Concre-


tismo, em Amilcar de Castro a geometria é o ponto de partida, a impulsio­
nar sua concepção criativa. Volpi trabalha então sobre o retângulo da tela com
a aveludada textura da têmpera, a cor subjetivamente escolhida, com rigor,
em composições de reducionismo exemplar. Em Amilcar, o círculo e o qua­
drado constituem-se no fundamento a instigar suas experimentações sobre a
chapa de ferro, que ele fende ou dobra em gesto de vigorosa expressividade.
Assim, planos quadrados ou circulares duramente talhados com um dos seus
segmentos erguidos, fazem emergir formas vazadas, geométricas, a partir do
aparentemente elementar suporte inicial.
Esse é o gesto que Amilcar registrou posteriormente no domínio gráfi­
co, em dezenas de desenhos, com vitalidade impositiva, de variações sobre um
mesmo tema — em trabalhos de caráter serial, no caso sobre a superfície do
material — chapas de ferro de 7,2 cm de espessura — a marcar sua contri­
buição, tal como as infinitas composições de um Morandi. Especulações e
estudos ocorrem em sua trajetória; mas não chegam a desmanchar aquela
certeza de um percurso com que identificamos, sem vacilações, as peças de
Amilcar de Castro.
Mais recentemente surgiu a preocupação de atacar o bloco de ferro.
Compacto, cúbico, onde a sua atuação, agora sobre o material, se corporifica
no encaixe, de forma densa, positivo-negativo, macho-fêmea, ou na justapo­
sição das peças através de cortes lineares, formalmente dialogando com sua
circunstância, num voltar-se para dentro de sua própria concretude.
O geometrismo dominante na articulação insinuada das partes, ou evi­
dente de maneira realizada, como se tivesse cessado, nesta série de trabalhos,
o diálogo ambiental da peça/escultura com o espaço, e o artista tivesse se vol-

181
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Amilcar de Castro
pintando em seu
ateliê em Belo
Horizonte, 1990.

tando para a análise introvertida, intelectual, de um caso e seu próprio peso,


na base do enigma das possibilidades de permutações de soluções plásticas.
Talvez pareça fácil mencionar a relação de Amilcar de Castro com sua
matéria-prima, o ferro. Mas sempre respeitamos o seu comprometimento
com o produto de sua terra, industrializado em sua rigidez, desnudado de
qualquer regionalismo detestável.
E significativamente raro, no Brasil, um artista permanecer ao longo dos
anos fiel ao desenvolvimento de uma proposta, como Charoux, Bandeira,
Sacilotto, Piza ou Sérgio Camargo, embora isto ocorra com alguns esculto­
res e, em particular, com Amilcar de Castro. Resguardado das modas da arte,
atento apenas ao desdobrar de seu trabalho como um longo fio que desenro­
la, marcando a sua passagem na instabilidade criativa de nosso meio artísti­
co. Meio que se caracteriza pela precariedade do desapoio com que sobrevi­
vem nossos artistas em sua admirável criatividade.

182
28 .
Fernando Lucchesi
[ 1988]

É desnecessária a introdução à produção ambiental de Fernando Luc­


chesi (1955), porquanto ela nos fala diretamente aos sentidos, o que dispensa
uma iniciação erudita. Assim como o indígena, ou o escravo negro recém-
chegado da África que penetrava timidamente em uma de nossas igrejas bar­
rocas, e sua inocência espantada se intimidava diante do esplendor da acumu-
lativa decoração interna das igrejas do período colonial. Bem nos lembra o
historiador e crítico Damián Bayón quando registra que é inimaginável ho­
je, para nós, essa impressão, vinculada à luz das velas bruxuleantes, a ilumi­
nar magicamente as reentrâncias de talhas douradas, recheadas de volutas,
colunas torcidas e lavradas, folhagens e flores estilizadas, pássaros e frutas,
putti em movimentação, cartelas, nichos, imagens, policromias a se confun­
direm com relevos, no clima misterioso de “caverna dourada” que continham
nossas igrejas.
Lucchesi nos confirma que, em pequeno, se impressionava com os in­
teriores das igrejas de Minas. Atualmente ele nos devolve um pouco da im­
pressão ambiental que talvez o tenha marcado ao longo de sua meninice, pois
penetrar no espaço expositivo desta série de Armários é como absorver um
pouco de seu universo íntimo delirante. De fato, estes Armários constituem
uma seqüência à série dos Altares (que apresentou no M AC da USP e na
XVIII Bienal de São Paulo). Estes colocavam o espectador diante daqueles
santuários imaginários, cenografia mística na leveza do pano, onde o branco
e o negro se alternavam visualmente na construção do ambiente religioso que
já o caracterizava. Lucchesi já então evidenciava um simulacro de um espaço
para adoração, para o faz-de-conta com que se nos apresentava seu clima
peculiar (e que revelava uma espécie de diálogo paralelo com as intrigantes
peças em madeira de seu conterrâneo Marcos Coelho Benjamim).

183
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Agora, a magia dos Armários em seu conjunto não propõe apenas uma
visão frontal, e sim o impacto da impressão ambiental. Nosso olhar percorre
o fora e o dentro das peças, os lados e o verso, como se estivéssemos num
palco/santuário, cuja fruição está vinculada não apenas à nossa imaginação
sensorialmente conquistada, mas onde somos igualmente partícipes à medida
que vamos anotando a natureza dos Armários, montados, construídos, mar­
telados pelo artista, por ele concebidos, um a um, objeto por objeto, temática
por temática: o das louças, dos brinquedos, dos santos, dos sapatos, dos “ob­
jetos de arte”, da sala de estar, do guarda-roupa. E, com a exceção do armário
dos objetos de arte e da sala de estar (como uma ironia explícita no primeiro
destes), que não chegam a romper o clima — porém são mais redutivos em
sua composição — , todos os demais enfatizam a presença acumulativa “das
coisas” apropriadas, incorporadas à pintura, à decoração abundante, em fri­
sos multicoloridos que se reafirmam nos adornos de lata — como lambre-
quins da arquitetura de chalés ■—-, e que aqui substituem o papel de seda re­
cortado da ornamentação antiga na forração dos armários das casas. E que
compõem, nos Armários, as prateleiras e os limites laterais internos de cada
peça. Mas, em vez de suscitar-nos qualquer morbidez ou nostalgia excessiva,
vemos antes um espaço para o maravilhoso, a neutralizar esse limite crucial.
A pintura vibrante e colorida tem papel preponderante nessa observa­
ção, e comparece como um complemento natural, articulando os objetos ao
suporte, aos frisos dos recortes de lata, num desenvolvimento do vocabulá­
rio já manipulado por Lucchesi na série dos Altares: a escama, o triângulo, a
árvore, a meia-lua, a espiral, o ramo, o arbusto circular, o arbusto anguloso,
a garatuja com que ele povoa cada centímetro quadrado do espaço interno,
laterais e verso dos armários, recorrendo ao pontilhismo no preenchimento
das áreas. Se nas laterais utiliza-se da tinta acrílica, na pintura dos Armários
compõe a tinta com glicerina, pigmento, álcool e cola, a fim de obter o ma­
terial com que trabalha.
A partir desta pintura adequada a estes armários, com suas caixas com-
partimentadas, cujas superfícies compulsivamente o artista povoa com febril
policromia, ele chegaria à pintura autônoma como linguagem, que hoje de­
senvolve. Sobre um fundo de cor única percebe-se o desenho, fundamento
para a pintura que, a partir do esquema inicial, parece fluir nervosa, com o
desembaraço da caligrafia irrefreável, em fosforescências cromáticas que, à

184
FER N AN D O LU CCH ESI

segunda observação, aparecem sobre uma estrutura compartimentada (como


em Torres Garcia, em Nevelson: é inevitável a referência). Os mesmos ele­
mentos compulsivamente repetidos — o triângulo, a garatuja, a meia-lua, o
ramo, o arbusto etc. — em cromatismos vibrantes, justapostos, sobrepostos,
em “dot” primeiro, ou depois linearmente inscritos sobre a superfície da tela.
Composições dominadas pela ortogonal, pinturas nas quais parece difícil ao
artista suspender o gesto, não terminar a obra numa sessão de trabalho, ou
definir sua finitude. Pintura de obsessão, catarse vital, imperativa, a nos co­
municar com intensidade esse envolvimento total do artista em sua árdua
projeção imagética.
U m a forma de expressão pessoal. Identificável. Rara de ser encontrada
hoje, em qualquer parte, mas sobretudo entre nós, o que nos leva a refletir
que parece haver basicamente três atitudes para um jovem artista de nosso
meio. Aquele dos grandes centros, cuja inquietação intelectual e formal o leva
a procurar o que está sendo feito aqui e no exterior; personalidade que já se
forma com seus interesses em torno da informação internacionalista, por vo­
cação; ou seja, o artista que busca seus modelos domésticos, reconhecidos e/
ou da história da criatividade contemporânea, e que se alinha com essas lin­
guagens, delas se aproximando o mais possível, nelas se espelhando, mesmo
quando em suas contribuições venha a incorporar-se uma sensibilidade in­
dividual, particularizando sua obra.
H á também o artista que, embora na província, no caso latino-ameri­
cano e brasileiro, ou na província da província, busca se aproximar, igualmen­
te, desses modelos e é nisso obstaculizado, mais que o artista dos grandes
centros, pela conformação mental distinta (a despeito do que dizem repeti­
damente da aldeia global etc.), pela postura cultural inconciliável com essas
tendências, pela própria realidade de que procedem. Assim, o resultado de
seu trabalho reflete uma pálida aspiração, ainda mais imitativa que o caso
anterior, freqüentemente sem carga de autenticidade, mesmo que nelas se evi­
dencie o entusiasmo pelas tendências mal digeridas. Quem sabe até muitos
de nossos artistas construtivos ficaram assim, também sem a qualidade do ri­
gor exigido, possível somente quando se identificam com uma sociedade alta­
mente industrializada, como a Alemanha ou a Suíça. Outro exemplo seriam
os nossos conceituais dos anos 70, em relação aos Estados Unidos. Um a aná­
lise a ser feita.

185
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

É difícil ser um artista e ter algo a dizer e expressá-lo com singularida­


de. É difícil conseguir emergir na trajetória de um artista. Mais difícil ainda
é a sua afirmação como artista.
Num a sociedade complexa como a nossa, raros são os que possuem a
garra da produção e da expressão plástica natural, a partir de sua interioridade,
exigindo uma projeção através da imagem, a despeito de que os outros gos­
tem ou não, de que suas obras vendam ou não, mas por uma necessidade ab­
soluta. E cujo trabalho apresente um real interesse, por sua singularidade, pelo
clima que o envolve. Foi o que sentimos quando tomamos contato com a pro­
dução de um Anchises, de Pernambuco, nos trabalhos de fins dos anos 60; é
o que percebemos na cerâmica de Ruy Meira, do Pará, e de Miguel Santos,
da Paraíba, e agora em Fernando Lucchesi. Dos Altares, que vimos em 1984,
aos Armários, barroquismo a explodir no horror do vazio, em pintura de de­
lirante obsessão — uma pintura de contundente expressividade, em proces­
so aberto: excepcionalmente, um artista com um caminho.

186
29.
Emmanuel N a ssa r
[ 19 89 ]

Quando o Museu de Arte Contemporânea da USP organizou, em 1985,


uma exposição intitulada “O Popular como Matriz”, de que participavam
também, entre outros, Montez Magno e Cravo Neto, um dos inspiradores
da mostra foi, por certo, Emmanuel Nassar (1949). Sua saborosa e densa pin­
tura apresentava uma feição construtiva, de redução formal, aliada a uma in­
tensidade cromática. O resultado visual atingia a percepção do espectador,
quase ofuscado pela energia das cores que o artista aplicava sobre a superfí­
cie das telas. Desde então, certos caracteres se mantêm em sua pintura: si­
metria compositiva, a ortogonal insinuada ou evidente, os ângulos da tela
invariavelmente ocupados por suas iniciais e datação da obra, a centralização
das formas, de grandes proporções em relação às dimensões dos trabalhos.
Mas, acima de tudo, um encanto suburbano, como então constatamos em
visita a Belém, quando acompanhamos Emmanuel, rodando pela cidade a
observar cartazes. Encanto da comunicação visual anônima que registra os
bares, o pequeno comércio e oficinas mecânicas da periferia da capital pa­
raense, de grande vivacidade em sua leitura artesanal e canhestra, embora rea­
lizada por profissionais pintores.
A manipulação e ordenação desse vocabulário imagético foram empreen­
didas através da pintura, com argúcia e sensibilidade, por Emmanuel Nassar.
Por outro lado, a sua raiz construtiva não deriva apenas de sua formação como
arquiteto, porém de sua familiaridade com as artes gráficas. E sua pintura,
com um perfume de Bye Bye Brasil, atraiu brasileiros, mas em particular es­
trangeiros, estes sempre desejosos de encontrar em nossa arte aquilo que iden­
tificam como sendo procedente de uma “cultura brasileira”, a que ainda não
chegamos com um todo, na diversidade de expressões visuais neste desen­
contrado país. Como manter o pique da criatividade e da produção diante

187
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

de solicitações estimulantes, sem violentar o ritmo, e devolver por meio de


imagens nossa experiência vital? Como se desenvolve uma iconografia fun­
dada no popular, quando as alterações desse mesmo dado popular são tão
relativas dentro do tempo, ou quando se aspira a manter uma linha de coe­
rência a partir de uma proposta reconhecível?
Essas foram algumas das questões que nos vieram à mente na última
apresentação de Emmanuel Nassar em São Paulo, na Galeria Luisa Strina.
Além das características mencionadas (simetria, centralização, predominân­
cia da ortogonal, inspiração no dado popular), Nassar parece enveredar hoje
por experimentações a partir de suas obras anteriores. O emblemático com­
parece em figuras-símbolos com que sempre povoa economicamente seus
amplos espaços monocromáticos: mãos, um motor, um corpo de mulher,
relógios, uma peça de engrenagem mecânica. Assistimos também ao retrai-
mento da “pintura” e ao desenho impondo-se enquanto contorno (e não ges­
to expressivo ou caligrafia espontânea a revelar o subjetivo). O suporte, igual­
mente, pode agora ser madeira, como duratex perfurado ou grade de ferro.
E as molduras pintadas complementam a decoração da tela como os cartazes
comerciais elaboradamente terminados, pontos de partida de sua pintura. Ao
mesmo tempo, a participação numa Bienal, sempre prestigiosa para um ar­
tista, implica o enfrentamento com o espaço físico da sede do grande even­
to, seu elevado pé-direito — a necessidade de dialogar com a escala a fim de
não ser afetado pela pulverização da própria obra em meio às centenas de ar­
tistas presentes. Alguns brasileiros têm recorrido a artifícios — montagem de
salas ou instalações — para emergir visualmente na Bienal. N a última, des­
tacamos, em particular, os casos de Geórgia Creimer, Anna Mariani e Ana
Maria Tavares. Este é um dado real, nada abstrato. Daí por que deduzo que
Emmanuel Nassar concebeu uma sala cuja fachada metálica nos remete a seu
trabalho Gran circo goiano, de 1985, a criar um clima propício para o encon­
tro com sua visualidade peculiar, apresentada no interior desse espaço. Não
sei se a obra de Emmanuel Nassar é propriamente regionalista, ou de um neo-
pop regional, conforme chega a insinuar Tadeu Chiarelli, pois apreende-se
num trabalho como Noite e dia, de 1988, um dado conceituai anteriormen­
te não evidenciado em seus trabalhos, embora com a permanência de sua
marca pessoal, mas já como iniciação de um novo percurso, no qual a poéti­
ca não está ausente.

188
30.
Marco Giannotti
[ 1989]

Não foram similares os percursos dos jovens pintores da geração de 80.


Esta afirmativa resulta da observação da emergência e trajetória de artistas
diferenciados: Paulo Pasta, Fábio Lopes, Nuno Ramos, Paulo Monteiro, Jac
Leirner, Cristina Barroso e, em particular, Marco Giannotti.
Estuda gravura no ateliê de Sergio Fingermann, com o qual se inicia em
alquimias, às quais é fiel ainda hoje (na transfiguração de imagens sobre a
superfície do papel). Estuda depois História da Arte em Nova York, vive na
Europa, aguça seu interesse pela criação artística e fica impregnado de uma
sensibilidade inusual. Seu trabalho nos transporta a uma interioridade pro­
jetada através da sutileza de imagens, antes fantasmas de um universo ínti­
mo diante dos quais se retraem as palavras.
A primeira vez que vimos os trabalhos de Giannotti, em 1986, eles nos
remeteram de imediato à contenção e ao rigor ascético de Mira Schendel.
Talvez mais um encontro que uma influência, posto que só posteriormente
a essa fase realizada, José Resende colocaria Giannotti em contato com Mira,
com a qual estabelece de fato um diálogo rico em afinidades. Dessa produ­
ção confluente, o jovem artista mantém um trabalho, no qual justapõe dois
retângulos de suporte diverso: uma chapa de metal oxidado a uma placa de
madeira recoberta de carvão em pó — negrume de matéria aveludada, em
composição rigorosamente abstrato-geométrica remetendo à sua própria
superfície.
Quando vemos, a seguir, seus papéis na Galeria Paulo Figueiredo, já o
encontramos imerso em aparentes transes poéticos, onde à transparência da
entretela se sobrepõem gestualidades diáfanas de cor e de delicada expres­
sividade. Em rápida comparação, esses trabalhos contrastam vivamente com
as direções dos trabalhos de seus contemporâneos da mesma geração, tanto

189
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

aqueles que partilharam o espaço do ateliê da Casa 7, quanto os de tendên­


cias neo-pop, como por exemplo, Leda, Romagnolo e Cozzolino.
Veríamos, quase a seguir, a pintura em papel colado e grampeado em
dobras sobre tela, evidenciando as pregas, a conferir certo relevo; e a cor sur­
da, marcando seu trabalho, já aqui iluminado por grafismos, letras em mol­
des e garatujas, registros primários e/ou subconscientes, evasivas ou displi­
centes, visando o desenho, que gradativamente se insinua.
Hoje, abandonando o relevo, porém não a alquimia, a pintura de Mar­
co Giannotti se impõe pela projeção de uma poética visual impregnada de
espiritualidade. O suporte parece significativo — entretela sobre lona — , a
pintura fluindo mais automaticamente, como no procedimento perseguido
pelos surrealistas, ao acaso, sem projeto prévio, sobre a textura acolhedora do
papel. E à a li over composition do fundo se sobrepõe um outro tempo. Sobre
o segundo plano do delírio cromático, denunciando uma multiplicidade de
processos dinâmicos de elaboração, caligrafismos se transmutam em gestos
gráficos, desenhos evocativos emergem através de figurações fantasmáticas —
Matisse? Brancusi? — em mobilidade insinuada de aparições no fundo da
caverna iluminada.
Em meio a uma geração que pareceu, às vezes, rejeitar o desafio da com­
posição ou da representação, vemos em Giannotti, despreconceituosamente,
através do discurso ao mesmo tempo solto e retraído da linha, uma obra aber­
ta a caminhos que se desdobram, comprometidos unicamente com a sensi­
bilidade. E nesse jogo poético, vemos formas que parecem desejar se impor
ante nosso olhar atraído (e errante), num primeiro impacto, pela magia da
cor e transparência de suas imagens.

190
31-
L ed a Catunda
[1990]

Quando conheci os trabalhos de Leda Catunda (1961), em 1983, encan­


tou-me o frescor de sua maneira de apropriar-se de materiais para a realização
de suas “pinturas”. Pequenas toalhas justapostas, com a superfície igualada
pela cor, pintura sobre tecidos estampados vedando certas áreas, e surpreen-
dendo-nos as micro-cenas/figuras deixadas visíveis, com um toque de humor
e senso poético.
A partir de então ela afirma-se como uma artista para quem o suporte
é, de fato, o elemento motivador da composição e do “clima” que envolverá
sua proposta pictórica: tapetes em crochê de nylon, tapetes de piaçava, col­
chão, cobertor, superfícies de pelúcia, protetor plástico para liquidificador,
meias, cortinas de plástico de banheiro, camisetas, tampo de vaso sanitário.
Nenhum material parece escapar a seus olhos fascinados, que nesses objetos
ou materiais antevêem sempre a possibilidade da transfiguração — : tornam-
se paisagens, cenas bucólicas, ou florestas mágicas, como ilustração de con­
tos para crianças.
A narração, focalizada como um desenvolvimento visual de uma estó­
ria, é um ponto que a identifica com sua geração televisiva — elemento a que
recorre com freqüência, apresentando-se como dado marcante em grande
parte de sua produção. Ao mesmo tempo, nunca se limitou a regras fixas, pro­
jetando trabalhos em dimensões variáveis, jogando com formatos diversos, do
retângulo e quadrado convencionais às superfícies recortadas, comandadas
pelos suportes de que lança mão.
Essa imposição do suporte é tão intensa que se torna perceptível a um
segundo olhar, passando à sedução intrigante a partir do fenômeno de es­
tranhamento a que ela submete o material. Mas sempre o observador será sen­
sível ao “divertimento” do encontro do material e o destino que altera sua
significação plástica.

191
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Nunca, porém, Leda Catunda deixa de manipular o suporte, assim


como a pintura nunca se apresenta dele desvinculada. D aí porque já chama­
mos seus trabalhos de combinepaintings: a costura das partes, a justaposição
de elementos; a pintura intencionando conferir unidade visual ao conjunto,
sem preocupação aparente de qualidade pictórica.
Permanece uma indagação: esses “achados” que definiram seu caminho,
o infantilismo dos temas graciosos ou mesmo sentimentais, se manterão até
que ponto? Parece difícil uma previsão, embora já se percebam algumas alte­
rações nas composições da ultima produção de Leda. A exuberância dos ma­
teriais mais inusuais cedeu espaço à uma acumulação ordenada de elemen­
tos, que seleciona para cada obra. Observo a grande peça Babados, além de
Camisetas, M eias, Vestidos. Pela transfiguração dos objetos reunidos nota-se
uma ordem deliberada na composição desses trabalhos — contraponto ao
elemento nostálgico que essas obras poderiam trazer implícito.
Quando desfaz a nostalgia na apropriação de objetos de uso pessoal,
demonstra o encantamento com a “decoração”, no sentido mais popular de
ornamentação do espaço (babados, rendas, flores, frisos floridos, repetição de
elementos etc.)
Por outro lado, o “mal acabado” de sua pintura faz parte de sua ges-
tualidade contida à medida que Leda desenha com o pincel, com a cor, dire­
tamente sobre o suporte. Embora se observe, em seus últimos trabalhos, al­
gumas incursões pelo “abstracionismo” quase construtivo, ao transfigurar
almofadas, de tonalidades graves, em composições secas.
Considero o trabalho personalíssimo de Leda Catunda como uma das
revelações desta geração fértil que emergiu nos anos 80 em São Paulo, fruto
sobretudo da escola de arte da Fundação Armando Alvares Penteado, no con­
vívio com professores como Regina Silveira, Julio Plaza, Nelson Leirner,
Vlavianos. Ao invés de enveredar pelos caminhos da influência neo-expres-
sionista alemã, esta jovem artista parece retomar a veia pop: o popular como
inspiração, o objeto industrializado como matriz, liberdade total de concep­
ção e realização. Assim, da pintura sobre flanela ou toalhas passou a traba­
lhar sobre cobertor, partindo, a seguir, para a assemblage de materiais para
compor suas imagens (como Jardim de vacas, tiras de couro sobre superfície
bidimensional, de 1988).
H á uma certa ingenuidade aparente nos trabalhos desta artista que, si­

192
LEDA CATU ND A

multaneamente, tem expressado, com determinação, suas preocupações com


os rumos e o sentido de uma arte brasileira. Neste aspecto, é inusitada esta
indagação sobre o que seria uma arte brasileira, quando a maior parte dos
artistas de nosso país, pelo menos nos grandes centros, está mais atenta às
manifestações das vanguardas internacionais.

193
32.
Quatro artistas
[ 1990 ]

Um desenvolvimento profissional calcado na criatividade e impregna­


do de garra, com a preocupação de se aproximar daquilo que pode ser en­
tendido como “arte brasileira”, mas contida a informação internacional a que
nenhum deles se esquiva e somada à personalidade individual de cada um. É
nesse sentido que vejo também como uma “ira sagrada” a forma como cada
um desses quatro artistas — Leda Catunda, Mônica Nador, Sérgio Romag-
nolo e Ana Maria Tavares — se questiona a propósito da arte que se faz em
nosso país, sua curiosidade para com o que já foi feito até aqui no século XX,
e como resolvem mesmo assumir a miscigenação cultural que impera em
nossa expressão artística. Acho que “híbrido” para Romagnolo, tentaria ex­
primir essa aculturação criativa que se dá em nosso meio quando a informa­
ção de fora é recebida, captada, e alterada de acordo com os nossos próprios
referenciais.
Mas a importância de nossos referenciais é para ele, Romagnolo, de fun­
damental significação, na medida em que buscam “o ineditismo, a liberdade
e a verticalidade” . O ineditismo no sentido de não abrirem mão da busca de
originalidade que perseguem, sendo positivo ou não o resultado, unânime ou
não a aceitação pelo que fazem. A tradicional postura do artista é elevada ao
máximo como objetivo, a despeito das afinidades que existem entre o que eles
próprios fazem e outros artistas de sua mesma geração. Mas é busca real, lú­
cida e deliberada. E ponto mais nevrálgico desta busca é o reconhecimento
da nossa dependência cultural, e desse cruzamento de influências fazer valer
o que acrescentamos de nossa circunstância e que pode conferir um interes­
se de espaço e lugar para o que se realiza em arte entre nós.
Ê inevitável que a “liberdade” se imponha para alcançar esse estado de
coisas que não se pode chamar de “meta”. Mas, no fundo, muito da liberda­

194
QUATRO ARTISTAS

de do artista brasileiro de nosso tempo, praticamente neste século inteiro


(com exceção de Oswaldo Goeldi, Francisco Brennand, Livio Abramo, Ca-
ram, José Roberto Aguilar, entre outros), se apóia também na inexistência de
um mercado efetivo de arte, que os pressione, solicitando-lhes a permanên­
cia de uma direção já aceita. Dessa forma, vemos o artista brasileiro mudar
de estilo com naturalidade, experimentar, provocar, ousai-, diferentemente do
comedimento do artista do Primeiro Mundo que, encontrada uma linha de
aceitação, persevera nela como apoiado numa marca registrada. Nestes co­
mentários em torno das palavras de Sérgio Romagnolo — difíceis para ele
formular, mas que encerram uma preocupação para estes quatro artistas — ,
é o dado “verticalidade”, entendido como aprofundamento em seu desenvol­
vimento artístico. Eis aqui o núcleo mais difícil, pois poderíamos questionar
o que é aprofundamento nas pesquisas de arte? Se o artista já superou sua fase
de formação, esse aprofundamento do fazer prescinde de um ou mais orien­
tadores, e depende, única e exclusivamente, de sua sensibilidade, de seu cri­
tério personalíssimo para resguardar o controle de qualidade que deve ser es­
sencial quando se dimensiona a trajetória de um artista.
Às vezes tenho a impressão de que os jovens artistas poderiam se prezar
um pouco menos, na medida em que há certas obras que deveriam ser des­
feitas e refeitas ou eliminadas, para que não permanecessem como registros
pouco convincentes de sua carga criativa. Se já é difícil em nossos dias preci­
sar o que é arte, nem tudo que um bom artista faz é bom, sobretudo em sua
primeira idade. Além do mais, não há gênios. Ou melhor, são tão excepcio­
nais, que é como se inexistissem. O contrário é pura falácia.

TRÊS DAMAS E UM VALETE

Leda Catunda, Ana Maria Tavares, Sérgio Romagnolo, Mônica Nador


pertencem ao mesmo baralho, mas são diferentes entre si. Por seu valor, por
sua imagem, por se desenvolverem em jogos distintos, dependendo de cir­
cunstâncias. O que os reúne é, por certo, o fato de estarem dentro do mes­
mo naipe, e refiro-me aqui, a uma origem comum, a FAAP de São Paulo
(Fundação Armando Álvares Penteado), centro responsável pela formação de
grande parte desta geração, sob os mesmos artistas-professores (além destes

195
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

quatro deveríamos acrescentar, sem dúvida, Geórgia Creimer, Isa Pini, Jac
Leirner, sem esgotar a lista).
Possuem todos eles a mesma garra para o trabalho, para o questiona­
mento sobre o que fazem, a mesma insatisfeita curiosidade permanente em
relação à problemática da arte e seu lugar no mundo de hoje, sobre o que
poderia ser uma arte brasileira, além de uma impaciência vital em relação aos
clichês vinculados às tendências “reconhecidas” ou menosprezadas na produ­
ção plástica no Brasil. O que é salutar.
São apenas alguns, mas que não estão somente preocupados com o re­
conhecimento individual, como também com o levantamento de questões,
sobretudo em se tratando da primeira leva de artistas brasileiros que é obser­
vada e considerada no exterior, desde quando surgiu — um espanto para os
outros artistas de gerações anteriores que tanto lutaram por esse olhar. Uma
responsabilidade, embora signifique também um estímulo.
M as a despeito dessa receptividade, desse festejamento tão perigoso
como prematuro, das solicitações que alguns deles já recebem tanto de den­
tro do país como do exterior, já sentem o “peso” do meio artístico competi­
tivo, percebem a discriminação ou a leve ironia de que são alvo, por não es­
tarem rigorosamente dentro da linha “conceituai” ou “matérica” que carac­
teriza, como tendência, grande parte das obras dos artistas surgidos nesta se­
gunda metade dos anos 80. Destes quatro artistas, a personalidade mais
complexa é, por certo, Mônica Nador. N o início da década, aparentemente
insegura, Mônica aparecia-nos como a única artista jovem desvinculada —
e, portanto, singular — da imagética proposta pelos demais de sua geração.
Seus grandes trabalhos (expostos no M AC em inícios de 83), estavam longe
das imagens retiradas dos meios de comunicação de massa ou da inspiração
na pintura européia dos fins de 70 e começo de 80, ou ainda da pintura nor­
te-americana, tendo perseguido na caligrafia obsessiva, abstrata, gestual, po­
rém contida, com um rigor cromático raro. Logo a seguir vimos que M ôni­
ca expandia-se especialmente, ao abordar shaped canvases, adeqüadas ao muro,
embora sua pintura permanecesse basicamente a mesma: traços retilíneos,
com duas cores sobrepostas, recobrindo toda a superfície das telas, como na
elaboração de uma trama que deixava visível o espaço/fundo, no esgarça-
mento de sua caligrafia. A luz, assim, penetrava filtrando-se através de suas
pinceladas, a partir de um segundo plano, o vazio, vislumbrado no croma-

196
QU ATRO ARTISTAS

tismo mono ou bicolor. Modificações intensas afetaram sua personalidade


desde então: uma artista esquiva que não foi tão contemplada pelo êxito dos
neo-expressivos. A psicanálise, exercícios com o inconsciente, a meditação e
mesmo a prática de exercícios físicos começaram a moldar seu corpo. Aos
poucos, a meditação, a religiosidade via Oriente, passaram a desempenhar um
papel significativo em sua vida, alterando sua visão da pintura. Mônica nos
fala com naturalidade do papel de decoração e da função da arte de enfeitar
a vida. Assim, do traço monocromático e unidirecional de 1983, segue per­
seguindo a pintura desenhada em ornatos, frisos, gregas. Não como centro
da atração perceptiva de suas telas, porém como complemento necessário à
abstração meditativa, que encontra seu ponto de partida em seus “mono­
cromáticos” rutilantes, centros vazios de suas grandes telas. Depois de breve
incursão pela pintura de mandalas e sugestivas imagens a nos reportar a ta­
petes de oração, sua pintura passou a refletir a possibilidade utilitária de,
diante de uma pintura, através da abstração, a mente atingir planos de trans­
cendência e paz.
Assim, o monocromatismo versus ornato emoldurador, longe de nos
parecer uma aventura que espelha apenas uma fase de seu desenvolvimento,
nos revela a sua predileção pelo gesto repetido, obsessivo, que caracterizava
já sua produção de 1983. Embora aqui com uma conotação assumida que
tem muito a ver com o papel da arte unida à prática religiosa.
Sempre tivemos muita dificuldade na abordagem dos trabalhos de Sér­
gio Romagnolo. Nos incomodava o mal acabado de suas peças, a inspiração
de sua temática quando começou a realizar obras tridimensionais, porquan­
to considerávamos mais pertinente o seu desenvolvimento como pintor, fo­
calizando a dinâmica dos super-heróis em grandes superfícies. Inclusive quan­
do transpôs esses personagens de quadrinhos para o tridimensional, ou res­
gatou a lata de lixo da grande cidade norte-americana (nada a ver com os
nossos referenciais urbanos), ainda víamos que permanecia como caudatário
do imaginário de sua geração: internacionalista, urbana-paulistana. Eis que
subitamente suas preocupações com o questionamento de uma “arte brasi­
leira” —• e ele sempre atuou um pouco como o “intelectual” entre estes qua­
tro artistas — passaram a recorrer a objetos do cotidiano mais corrente: a san­
ta, o cesto, o violão, a imagem sobre o pedestal. Ocorre aqui, sem dúvida,
uma ironia na elaboração destas peças feitas em poliestireno moldado à mão

197
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

com fogo de aquecedores industriais elétricos. Por essas imagens não perpas­
sa nenhuma precisão de contornos, mas quiçá uma anti-pesquisa de forma,
observando-se apenas a construção do banal através da linguagem da preca­
riedade. Ao lado do discurso meio infantil de uma grande parte da produ­
ção da geração 80 brasileira (Leonilson, Ciro Cozzolino), através de seu vo­
cabulário delimitado, é claramente perceptível a contradição dos materiais
industriais trabalhados artesanalmente, a mão moldando, sobre a figura de
que se apropriou para a obtenção de uma forma definitiva, as emendas, evi­
denciadas rudemente, como a expor ao vivo a incoerência do processo. Os
materiais industrializados utilizados pelos artistas não são uma descoberta
desta geração, porém uma herança que já advém dos anos 60, dos anos do
pop. É nesta vertente que vejo Sérgio Romagnolo, assim como Leda, Zerbini
— exemplares neo-pop, por vezes amargos nestes anos 80. Embora pessoal­
mente preferisse, apesar da ironia evidente, observar uma preocupação com
a qualidade de execução, cuja ausência deixa sua produção aparecer mais
como um esboço, arcabouço de intenções, e menos como uma realização
réussie. Mais como um gesto ou atitude do que como uma obra completada.
Paradoxalmente, em relação a Romagnolo ■— posto que estes quatro
artistas reafirmam suas posturas comuns, embora cada qual em seu universo
pessoal — , está o trabalho de Ana Maria Tavares. Já escrevi que, desde seu
surgimento, ela assinalou uma vocação mural, abordando com grande vita­
lidade a superfície parietal. É um fato. Seus dois anos estudando em Chica­
go proporcionaram-lhe também — após a FAAP — um domínio sobre a téc­
nica (um desafio que a conforma hoje como uma das artistas mais interes­
santes de sua geração). Sua fragilidade física, sua delicadeza moça e feminina
contrastam vivamente com os equipamentos técnicos que manipula pessoal­
mente (soldadores elétricos, mesa de carpinteiro, lixas para polimento mecâ­
nico e manual de superfícies, mangueiras, tubos e cabos de ferro etc.). Sua
complexa instalação na última Bienal já revelava uma vontade de apresentar
uma multiplicidade de idéias que fervilhavam em sua cabeça, o que talvez a
tenha prejudicado, pelo excesso — aquele seu espaço/tríptico, se é que se pode
referir a um tríptico tridimensional.
Todavia, foram percebidas diversas direções surgindo dessa proposta,
uma das quais, em síntese expressiva, representou-a na exposição “Moder­
nidade”, em Paris. Os filamentos-linhas se transformavam de repente em

198
QU ATRO ARTISTAS

intrincado emaranhado de tubulações revestidas de negro, com diâmetros di­


versos, apoiados à parede branca, já eliminando o traço do desenho manual,
branco e negro, num reducionismo cromático máximo, que revela a expres­
sividade dessas formas longilíneas às quais se somam, também nestes traba­
lhos presentes, o significativo das sombras, projeções sutis a completar a
visualidade de seu trabalho.
Ana Maria Tavares intensifica nas peças desta exposição o dado redu-
cionista, apesar de reafirmar não ser sua intenção deter-se nesse aspecto de
sua produção, porquanto, segundo ela, o minimalismo pode interessá-la oca­
sionalmente sem que se afirme como linha diretriz de seu trabalho. Esse re­
lacionamento enfatiza sua fascinação por expressar “o ouriçado de outras
tendências, a energia que flui”, o que se pode em poucas palavras definir co­
mo a convivência ativa entre a convulsão simultânea e a linha ordenadora.
Assim, nesta exposição, ela apresenta duas peças de parede e três “mesas”, com
as mesmas características. A intenção clara é trazer as peças ao olho e não fa-
zê-lo inclinar-se para percebê-las. E as “mesas” não são senão uma platafor­
ma elevada do chão, a destacar-se dentro do cubo da sala e atraindo na in­
triga do seu deslocamento, através das rodinhas mecânicas, personificando
seres racionalmente projetados com elementos orgânicos de elevada tensão
{Mesa díptico — o beijo). Ao mesmo tempo em que abandona algumas peças
que repousam ou se erguem do piso, sensuais e orgânicas em sua indolência
curvilínea, em contraposição ao material industrializado em que são reali­
zadas, sentimos reafirmado esse limite entre o dionisíaco/apolíneo, constan­
te em suas criações, nas quais o ritmo é igualmente um dado importante.
Extremamente bem executadas, suas esculturas refletem o domínio técnico
imprescindível à sua expressão. Constituídas de elementos de alumínio ano-
dizado, recobertas de tinta epoxi fosco negro, algumas das mesas apresen­
tam o retorno da cor que se insinua a partir das varetas de alumínio cor co­
bre ou esmeralda. Quando Ana Tavares declara o desafio de ocupar um es­
paço a partir de sua observação da natureza — as árvores, por exemplo — ,
não é senão uma reiteração desta fauna singular por ela criada, crispada e
rigorosamente composta simultaneamente, e por isso instigante à nossa per­
cepção/emoção.
O veio de Leda Catunda, por sua vez, reafirma a originalidade de sua
proposta: o suporte direciona o trabalho, a ser realizado com a multiplicidade

199
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

de materiais de que lança mão — tapetes de piaçava, cobertores, pelúcia, toa­


lhas, couro, imitação de pele animal, peças de vestuário, colchões, babados
de plástico ou de colchas, quebra-cabeças, acolchoados... -— , transfigurados
em sua apropriação. E a idéia, para Leda, é mais importante que a qualidade
de execução, pois suas assemblages com pinturas, árduo fazer em certos tra­
balhos, se sucedem em ritmo rápido de idéias concretizadas, mantendo con­
tudo a mesma coerência. A autora realiza efetivas combine paintings, no sen­
tido utilizado quando fazemos referência aos trabalhos dos anos 60 de Robert
Rauschenberg. Ou seja, neste momento de sua produção, a pintura é aplica­
da como elemento de ligação entre os objetos reunidos, sem qualidade como
pintura, porém atuando como o elemento a imprimir corpo, fisicalidade bi­
dimensional no relevo de seus trabalhos. Nestas últimas obras, a artista curio­
samente apresenta-se no limiar entre a conotação levemente nostálgica do
Novo Realismo — e mesmo dos artistas da famosa mostra “The Art o f As-
semblage”, de inícios de 60 — , e os artistas da geração dos anos 80, na faci­
lidade do gestual, na recorrência ao humor, à apropriação de imagens já pro­
duzidas pela industrialização, à transfiguração através do artesanal do objeto
industrializado, quantificado com uma aparente ingenuidade em suas con­
cepções de saborosa vivacidade, a refletir uma personalidade determinada, de
maturidade e vigor surpreendentes.
Invasão do grafite em São Paulo, da rua passando às galerias: onda de
materismo e informatismo caracterizando esta segunda metade e fim dos anos
80, a partir da ótica dos mais jovens artistas. Prova de que a informação con­
tinua fluindo. Vários artistas alteraram seus “modos” de pintar a partir das
novas tendências, assim como um outro grupo mais jovem já surge, sob a
égide de princípios mais contidos, embora expressivos, entre os quais men­
cionaríamos, em São Paulo, Giannotti, Paulo Pasta, Sérgio Sister, Flávia Ri­
beiro. Materismo, monocromatismo, informalismo, em nuances de ascetismo
maior numa expressão mais livre. Por que a evasão da forma? Qual a razão
— se ela existe — da dificuldade de especular a partir de formas, abstratas
ou figurativas, por parte de tantos? Mera admiração por mestres dos anos 60?
Aos poucos, mesmo Giannotti deixa entrever, paralelamente a seu materismo
denso, a insinuação da linha, e a concretude de aplicação das letras, um
informalismo dosado (após sua fase de admiração patente pela obra de Mira
Schendel); assim como em Flávia Ribeiro é perceptível a elaboração de.su-

200
QU ATRO ARTISTAS

perfície, quase monocromaticamente, e já se divisa forma em gestação, mais


interiorizada que em busca de efeito.
Quanto aos matéricos, nessa espécie de a 11 over composition — espaço
de caligrafias, gestos e diálogo com a superfície — , parece que um signo de
melancolia/violência emerge com primazia, como a exemplificar o fazer, sem
dizer. Tal o mito de Sísifo, intenso e paradoxal, principalmente no Brasil,
tendo em vista a necessidade vital de expressão desta geração. Geração acua­
da pelas circunstâncias dramáticas do momento econômico do país, a travar
o desenvolvimento cultural do ambiente artístico, cortando iniciativas, po­
dando projetos de difusão de uma produção vigorosa.
É neste sentido que assume um caráter peculiar a organização desta ex­
posição, levada a termo pelos esforços dos próprios artistas-curadores e pro­
dutores do evento, em titânico afã de projetar sua criatividade, a fim de so­
mente assim encerrar o ciclo de emergência da obra de arte, do instante da
concepção criadora ao difuso receptor. Mais uma vez o artista sai do isola­
mento, próprio da natureza de seu trabalho, para poder comunicar a sua
mensagem. Sinal de nosso aqui/agora.

201
33.

A propósito do trabalho de Beralda Altenfelder


[1 9 9 0 ]

Uma confrontação real, porém raras vezes discutida na arte brasileira, é


a da figuração versus abstração, do gestual versus geometrismo, do intuitivo-
mágico versus intelectualismo. Entre os mais jovens, estas diferenciações de
postura em suas manifestações criativas suscitam tomadas de posição da crí­
tica e mesmo agrupamento dos artistas para fortalecerem-se, por analogia de
linguagem, embora, nesta geração, os núcleos por amizade pessoal constituam
também forte característica em São Paulo.
Há, entretanto, aqueles que têm dificuldade de se agrupar — espíritos
introvertidos ou isolados por natureza. É o caso, entre os da geração que
emerge nos anos 80, de Guto Lacaz, Geraldo Souza Dias, Fábio Lopes, Nina
Moraes e Beralda Altenfelder, entre muitos outros de São Paulo. A figura­
ção, quando se faz presente, é “condenada” como imagem óbvia, embora nem
sempre seja; o que é um desafio para o artista. A abstração também pode ser
banal, repetitiva, quando desprovida de um “clima” singular a lhe conferir
uma razão de ser. Parece haver entre os jovens uma dificuldade de lidar com
o real, entendido como o nosso entorno. Não é difícil compreender, dado o
universo contraditório, conflitante, de pouca harmonia ou estímulo para os
que se iniciam, buscando modelos para admirar e nos quais se espelhar. N a
raiz da coisa, parece difícil ser brasileiro, ser terceiro-mundista, no tempo da
eletrônica e dos meios de comunicação de massa, quando tudo parece nos
conduzir ao consumismo dos bens e à visualidade, propostos com intensida­
de pelo Primeiro Mundo, a nos fornecer os figurinos. Assim, bem poucos se
interessam, pelo cotidiano arroz-com-feijão de nosso mundo vital, bárbaro,
construção pela metade, na qual tudo nos pede uma participação visceral e
dura. E culturalmente tão medíocre e difícil a realidade, e contraditoriamente,
tão fascinante, que parece mais fácil olhar para fora. Ou para dentro de si,

202
A PROPÓSITO D O TRABALHO DE BERALDA A LTEN FELD ER

tentando arrancar do estômago alguma verdade verdadeira. Este processo é


também mais lento. N o entanto, alguns o percorrem.
Beralda me parece um caso destes. Não é uma artista “pronta”, mas
cheia de inquietações, dúvidas, próprias daquele que se inicia em práticas que
se prolongam por toda uma vida, se se decide vivenciar a criação. Renascer,
recomeçar a cada dia quando se chega ao ateliê e se olha a tela interrompida
na véspera; respirando fundo se volta aos instrumentos, aos materiais, à cor
e se retoma o trabalho. Olhar: fazer, re-fazer, entregar-se com enlevo, sofregui-
dão, irritação, fastio, e lentamente perder o senso do tempo, até percebido o
término da etapa. Olhar, sorrir para si próprio com satisfação. Ou, inconfor­
mado com o resultado obtido, reelaborar outra idéia, num processo circular,
cíclico, na vertigem do envolvimento com o desenvolvimento criativo.
Desde 1986, Beralda parece ter uma intimidade com o fantástico, com
o universo dos prazeres sensoriais da matéria, dos fantasmas e seres noturnos,
bichos-gente, ou gente-bichos, clima de sonhos ou pesadelos iluminados. Mas
sempre por esses seres ou “caratonas” perpassa um clima também de drama-
■ticidade que parece inerente à sua introversão. Esse clima se manteria, quan­
do, a partir de 1988, passa a observar o exterior, no caso os animais, a partir
de visitas constantes ao zoológico, olhar o outro ser vivente, tentar apreen­
der sua forma, seu deslocamento, sua energia contida ou extravazada, seu re­
pouso. Nesta direção de exercícios, o desenho pareceria inevitável, disciplina
obrigatória, o traço correndo sobre o papel, a cor chegando a posteriori, como
mancha, ou preparatória como fundo.
Esta exposição explicita bem este estágio de seu desenvolvimento. O cão
como tema tem caráter insólito numa jovem artista dentro de um meio ur­
bano diversificado como São Paulo, mas o artista não parece ser tocado pelo
entorno. N o caso, este cão-modelo, abstração a despeito da aparente figu­
ração, reflete o ensimesmamento de Beralda, se assemelha mais a uma ex­
tensão de seu próprio ser e a série de desenhos e pinturas projeta visões inte­
riores no cão adormecido, andando, se retirando, entrando, abandonado no
chão do ateliê. O enovelado de seu torso imobilizado pelo sono repetido inú­
meras vezes, em gestualidade que nos remete à apreciação um dado obsessivo
de sua personalidade. Obsessão a nos recordar certas composições angus­
tiantes de José Luis Cuevas, aproximando-se em certos momentos da lírica
do ambiente do artista ou da cidade por ele amada, como é o caso de Evandro

203
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Carlos Jardim. Sobreposição caligráfica de seus traços, a linha fluindo em


múltiplas figuras-imagens, a nos propor a leitura do movimento, ou a expe­
rimentação até a exaustão. Efeitos que se identificam com os da gravura em
metal, no prazer da superfície retrabalhada. A colagem, a incisão como linha
sobre fundo negro, a imagem fantasmática, ovular, trancada em si, da figura
explorada de maneira enigmática. Tais são características, enfim, desta jovem
aprendiz de feiticeiro das artes que, como diria o crítico Damián Bayón, ao
expor, se expõe.

204
34.
Uma nova geração
[ 19 91 ]

N o primeiro semestre de 1983, em São Paulo, muitos artistas de vinte


anos recém-cumpridos apresentavam-se candidatos a expor em museus e sa­
lões. Formados, em sua esmagadora maioria, pela Escola de Artes da Funda­
ção Armando Álvares Penteado. A novidade era serem pintores, posto que a
geração anterior apegara-se ao conceitualismo. Outro ponto marcante era que
seu “eixo” não residia mais nos Estados Unidos, como desde os anos 60, mas
na Europa, em particular na Alemanha e na Itália: a primeira pela eferves­
cência de sua “nova” pintura, e a segunda também pelo mesmo motivo só
que acentuado pela presença teórica de Bonito Oliva, que teve, para esta gera­
ção, a mesma importância de Pierre Restany para os jovens, vinte anos antes.
Os trabalhos de pintura desta nova geração configuram uma atitude pós-
liberdades conquistadas a partir das rupturas dos anos 60 (que levaram ao
objeto, à performance, ao happening etc.). Nenhuma palavra é tão utilizada
no ensaio famoso de Bonito Oliva quanto o prazer de pintar, ou ainda, aquilo
que ele denomina de o quadro como “depósito de energias”, a despreocupa­
ção com a cultura high ou low, o prazer do espírito, a distância da ideologia,
somadas estas características com alguns dados locais: como a restauração de
sua cultura no caso da Alemanha, registrada por ele, coincidindo com a imen­
sa prosperidade econômica do país desde o pós-guerra, assim como “a obra
como lugar de transição, passagem de um estilo a outro sem esquema fixo”
(caso da Itália).1
Insiste-se na inexistência das vanguardas. N o entanto, a “transvanguar-
da” de Bonito Oliva não deixa de representar a tendência “avançada” dos anos

1 Achille Bonito Oliva, Trans/avant/garde intemational, Milão, Gian Cario Politi, 1982.

205
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S NO BRASIL

80, exatamente pela inexistência de experimentações que derrubariam mo­


vimentos anteriormente exercitados. O u seja, a transvanguarda passava a ser
uma “vanguarda”, a despeito do revisionismo que a caracterizou.
Foram características desta geração que vimos no início da década pas­
sada: a pintura sem chassis, a lona substituindo o linho, os suportes mais li­
vres possíveis, autonomia para a seleção de formatos, dimensões inusuais em
seu gigantismo para jovens que apenas se iniciavam, ainda sem mercado, uma
postura profissional marcante e a inspiração no vocabulário europeu deglu­
tido com espírito.
A esse propósito, vêm-nos à mente duas colocações que nos mantêm em
reflexão inconclusa: uma, do crítico e poeta Ferreira Gullar, que abre seu li­
vro com a indagação: “U m conceito de ‘vanguarda’ estética, válido na Euro­
pa ou nos Estados Unidos, terá igual validez num país subdesenvolvido como
o Brasil?”.2
A outra é de Clement Greenberg, que, em 1945, registra “duas espécies
de provincianismo na arte”. Uma, a do artista que, qualquer que seja sua ten­
dência, trabalha num estilo fora de moda, ou numa tendência desconsidera­
da pelo centro metropolitano — Paris, Roma ou Atenas. “O outro tipo de
provincianismo é o do artista — geralmente de um país afastado — que com
toda a honestidade e admiração se devota ao estilo que está sendo corrente­
mente desenvolvido no centro metropolitano, embora falhe, de uma manei­
ra ou de outra, em compreender de que se trata”.3
Se, no Rio de Janeiro, o “pai” da geração 80 local foi Áquila da Rocha
Miranda, um pintor dos anos 70 que nunca abandonou as tintas pelo con­
ceituai, professor na Escola do Parque Laje, em São Paulo quase toda a gera­
ção que floresce em inícios de 80 é devedora de três artistas procedentes dos
anos 60, professores de grande parte desta vaga de jovens: Nelson Leirner,
Julio Plaza e Regina Silveira. “Regina Silveira me ensinou a pensar coerente­
mente meu desenvolvimento”, lembra Nina Moraes. Julio Plaza foi o rigor,

2 Ferreira Gullar, Vanguarda e subdesenvolvimento, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,


1969, p. 3.
3 Clement Greenberg, The Collected Essays and Criticism, vol. 2, Arrogant Purpose: 1945-
1949, Londres, The University of Chicago Press, 1988, p. 3.

206
UMA NOVA GERAÇÃO

o artista que se articula conceitualmente na ponte entre a tecnologia e a arte,


um ordenador para os jovens aprendizes. Leirner atuou como o liberador da
intuição, dos lances audaciosos.
Estes artistas novos se reuniam eventualmente em pequenos grupos, tra­
balhando conjuntamente em ateliês. Embora esse dado não possa ser gene­
ralizado, é importante na medida em que assinala a necessidade de discussão
sobre arte e seus trabalhos. A exposição de Leonilson (1983), simultaneamen­
te em São Paulo e no Rio de Janeiro, trouxe alarde e alegria à nova imagem
da pintura dos anos 80. Leonilson seria, em toda a década, o artista errante
entre São Paulo, Alemanha e França, eterno viajante a estabelecer contatos e
expor em nível de igualdade com os jovens artistas dos países que visitava.
Em 1983 seria apresentada no Museu de Arte Contemporânea da USP,
a exposição “Pintura como M eio”, lançamento coletivo de tendências novas
na pintura: com Leda, Romagnolo, Ana Tavares, Niculitcheff e Cozzolino.
Duas artistas jovens prepararam em São Paulo, no segundo semestre desse
ano, um grande evento com outdoors pelas ruas dessa capital, através do
M AC-USP: uma geração nova surgia com ímpeto, ao lado de artistas reco­
nhecidos. Lá estavam cartazes/obras de Nina Moraes, Leda Catunda, Jac
Leirner, Grupo Seis Mãos, Ana Horta, Guto Lacaz, Eduardo Duar, Leo­
nilson. N o ano seguinte, o evento movimentaria o meio artístico do país, ao
se realizar em três capitais (São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro), com artistas
novos demonstrando uma articulação inédita.
O grande evento de 1984, que teria caráter consagratório pela genero­
sidade da imprensa do Rio e pelo impacto causado, foi a exposição-evento
“Como vai você Geração 80?”, organizada por Marcus Lontra, na Escola Par­
que Laje, do Rio de Janeiro, reunindo os jovens já conhecidos e iniciantes,
sobretudo de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
O mercado aqui também se mostrou atento à nova mensagem visual.
Marchands surgiram para esta geração (além de interessados desde o primei­
ro momento, como Luisa Strina). Assim, a nova galeria Thomas Cohn, do Rio,
já leva para a Feira Arco de Madri, de 1984, exemplares da nova geração,
como Berredo, Cozzolino, Leda, Romagnolo, Leonilson e Cláudio Fonseca.
Em fins de 1983, o “Panorama da Pintura Brasileira”, no MAM de São
Paulo, apresenta artistas veteranos de volta à pintura, assim como à tendên­
cia gestual expressionista neo-fauve, em clara demonstração de que os figuri­

207
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

nos da arte estavam sendo vistos também por eles. O Salão Nacional de Arte
Moderna deste ano refletiria, igualmente, esta nova técnica da imagem dá
pintura gestual, vibrantemente colorida.
Quais as motivações do jovem artista que começa a fazer arte nesse
momento? Jovem de classe média, eminentemente urbano, estimulado em
sua formação por comics e grafite, autodidata ou procedente de uma escola
de arte, curioso intelectualmente e leitor assíduo de revistas internacionais de
arte. Embora não conheça devidamente a arte do Brasil, está atento ao que
se passa no exterior. Mesmo que culturalmente, como produto dos mass me­
dia, esteja aquém do desejável como formação, ele tem “garra”, desejo de pin­
tar. E o faz com compulsão nos primeiros anos da década de 80. Expõe às
vezes em seqüência preocupante para os que acompanham seu trabalho. As
solicitações vêm de inúmeros lados porque, nesta década, um fato novo ocorre
na arte brasileira: em São Paulo, em 1985, abre-se uma galeria especializada
em artistas jovens (Subdistrito), pouco depois seguida de outra (Casa Triân­
gulo, 1988). A partir de meados da década, inúmeros colecionadores, assim
como jovens empresários, possuem obras destes artistas novos.
Nunca uma geração de artistas brasileiros fora tão precocemente solici­
tada no país e no exterior. A partir de meados desta década — na Europa,
em particular — , diretores de museus e marchands (da Holanda, Alemanha,
Inglaterra) procuram estes artistas para suas galerias, Bienais e museus. Qual
o grau de periculosidade que existe no limite delicado entre o estímulo e o
risco de tal festejamento? Qual a densidade criativa que resiste à erosão cau­
sada pela demanda excessiva? Estas perguntas só poderão ser respondidas nos
próximos anos.
N a verdade, a outra indagação que nos fazemos é: por que se faz tanta
arte no Brasil, país a-lógico e contraditório em sua paradoxal potencialidade
diante de uma realidade soturna e brilhante? Será como a prática devota da
religião, que atrai e ocupa o lugar da realidade hostil e injusta? Será porque a
fantasia expulsa, em seu ensimesmamento, a dificuldade de se mergulhar de
forma construtiva no cotidiano caótico? Ou será porque, liberando a “licen­
ça poética”, se participa, ao nível da atividade artística, de outro universo, este
utópico?
A Bienal Internacional de São Paulo de 1985 marcou uma divisão de
águas nesta produção: o famoso “corredor” da transvanguarda, montado pela

208
UMA NOVA GERAÇÃO

curadora Sheila Leirner, registrou cabalmente o aplastamento da informação.


Parecia que todo mundo pintava igual. As sutilezas desapareciam em função
de uma homogeneidade (em dimensões, técnica, estilo). Até a velocidade na
ação de pintar parecia a mesma no mundo inteiro.
Encerrada a Bienal, a jovem geração brasileira parece ter se recolhido
para uma avaliação. O resultado começou a ser percebido um ou dois anos
depois. Os materiais já eram outros: de papel kraft passou-se a pintar sobre
tela. A dramaticidade cedeu lugar a um denso materismo, monocromático,
ou à pigmentação pesada em delírio de cores, com a incorporação dos mais
diversos materiais. Grupos se desfizeram em nome da preservação das inquie­
tações individuais. E, de repente, objetos começaram a surgir, e as instalações
passaram a adquirir importância. Em Frida Baranek, por exemplo, ferragem
e metais corroídos pelo tempo, dejetos industriais, constituem matéria-pri-
ma para seu discurso visual. A poética se instala na obra de um Daniel Senise,
que amadurece de maneira impressionante. Muito além do maneirismo, sur­
gem composições plenas de alusões simbólicas, à primeira vista ldeferianas,
porém distantes da problemática moral sempre presente nas obras alemãs.
Mantém, com sensibilidade, um distanciamento da abstração fácil e da figu­
ração óbvia. Também no trabalho de Paulo Pasta, a poética faz sua entrada
na pintura, nesta segunda metade dos anos 80 com sutileza de vestígios ar­
quitetônicos. Assim como em Marco Giannotti, que trabalha à base de tex­
turas obtidas através da colagem de entretelas sobre a tela — a superfície pin­
tada posteriormente com pigmento mesclado com cola. E, finalmente, a li­
nha insinua-se como um desenho livre, gesto de quase abandono a percorrer
a espacialidade generosa. Esta pintura, em que o desenho e as formas pare­
cem ausentes, num primeiro momento da segunda metade dos anos 80, trai
também uma certa melancolia desta geração, a despeito de seu êxito de re­
ceptividade. H á nestas superfícies pastosas e pesadas uma carga que outros
artistas disfarçam sob a capa do humor ou do colorido, que facilmente se es­
peraria de uma arte rnade in Brazil.
O caminho da ascese foi percorrido por alguns jovens depois de 1985:
é exemplar o caso de Nuno Ramos, que, abandonando por um momento o
expressionismo gestual, realiza uma espécie de “serviço militar” pelo reducio-
nismo mais radical, em construções com madeira e cal. Em seguida retornaria
à pintura de densa matéria, em verdadeiro corpo à corpo com o suporte, so­

209
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

brepondo, em visualidade agressiva, os mais diversos materiais industrializa­


dos. Ao momento reducionista, em Paulo Monteiro, se seguiria uma gestua-
lidade feroz, alternando-se com o desenho e o relevo.
Jac Leirner realiza, na área do conceituai, dois trabalhos inteligentes e
sensíveis: no primeiro, mexendo com acumulações, reuniu em “círculos” ou
formas serpenteantes, milhares de bilhetes de dinheiro inflacionado brasilei­
ro, registrando ainda todas as frases gravadas pelas mãos por que passaram
esses bilhetes, em inventário sociológico-conceitual. O segundo trabalho, a
lhe valer consagração geracional, foi a exposição a partir de centenas de ma­
ços de cigarros Marlboro, também em sistema acumulativo, pleno de rigor,
dissecando cada componente do pacote de cigarros: do fecho de tira doura­
da à caixa, do celofane que envolucra o maço ao papel prateado que envolve
os cigarros, dispondo esses núcleos em montagens ascéticas.
A sensualidade e a poética, mencionadas diversas vezes após a segunda
metade dos anos 80, parecem ser uma técnica nos trabalhos desta geração. E
o caso, igualmente, da surpreendente sensibilidade de Ernesto Neto, que se
valendo de materiais inusuais (meias de nylon, bolinhas de chumbo e de
isopor), realiza instalações fascinantes, em que tensão, gravidade, densidade,
são combinadas com os prazeres sensoriais do tato e das transparências.
Barrão, por sua vez, transfigura eletrodomésticos com raro humor e
inventividade, distante do clean e cool de um Jeff Koons. A sociedade de con­
sumo é motivação permanente na seleção de suportes de Leda Catunda, que
trabalha sobre materiais industrializados e nos fala muito da permanência do
universo infantil, presente, em parte, na temática da pintura desta geração
internacionalista.4
Por outro lado, como explicar o catastrofismo do universo de Karin
Lambrecht, residente na aprazível Porto Alegre? E o realismo doce, de clima
insinuantemente perverso, dos personagens monstruosos de Florian Raiss? Já

4 Alguns artistas do grupo Casa 7 em São Paulo revelavam, no início da década, uma ad­
miração singular pela pintura contemporânea norte-americana, atentos ao expressionismo abstra­
to em geral, porém atraídos pela pintura de Philip Guston, presente numa das últimas Bienais de
São Paulo em fins dos anos 70. Além do interesse desse grupo, os únicos artistas dos EUA que
chamaram a atenção desta geração parecem ter sido os ex-grafitistas Keith Haring, Basquiat e
Kenny Scharf.

210
UMA NOVA GERAÇÃO

Nina Moraes apresenta a problemática do tempo como constante, implíci­


ta, em seus objetos intimistas, a mutação de situações. Ou em seus inventá­
rios de coisas desimportantes: organizar, classificar, ordenar. Também Otá­
vio Roth é um “inventor” pleno de humor, como Guto Lacaz — ambos se
comprazem neste compor com fragmentos do universo do tédio. D a mesma
maneira Tony Cragg ou Liliana Porter: será uma preocupação em juntar,
reformular, para obter o sentido perdido deste momento em que vivemos?
Mencionada a poesia, é inevitável citar dois artistas de Minas Gerais:
Marcos Benjamim e Fernando Lucchesi, pelo fazer obsessivo, entregue à
interioridade, que tem muito a ver com o artesanato e a religiosidade. Outra
tendência vista na década de 80 foi a de assumir o decorativismo como algo
natural na prática artística, sem falsos preconceitos: Mônica Nador e Beatriz
Milhazes são duas artistas que enfatizam a beleza da decoração.
O estilhaçamento do meio artístico brasileiro (antes centralizado nos
dois grandes centros, Rio de Janeiro e São Paulo) com a fundação de Brasília,
provocou, a partir de 1970, o desenvolvimento de várias capitais como cen­
tros culturais de relativa autonomia. É o caso de Belém, no extremo Norte
do Brasil, de onde Emmanuel Nassar nos comunica o encanto da visualidade
suburbana. Em plena Amazônia, Sérgio Vieira Cardoso e Bernardete denun­
ciam a potencialidade ecológica da região, num país onde esta temática é sem­
pre considerada com menosprezo.
Neste fim do século X X em que as revisões parecem mais vitais que ismos
inexistentes, como enfrentar a produção artística efervescente e variada de um
país onde não há memória cultural ou museus estimulantes? Será que a exci­
tação para esta criatividade reside exatamente na instabilidade permanente da
crise? Estas são as perguntas que continuamos nos colocando diante do fe­
nômeno da geração 80.
35 .
A efervescência dos anos 80
[ 19 92 ]

Seria simples aludir ao delírio da pintura jovem que surge nos primei­
ros anos da década de 80, através de uma geração nova, que desponta em São
Paulo, sobretudo a partir da FAAP (sendo que a única exceção a confirmar a
regra é Paulo Pasta, que vem da ECA). O mercado está alerta, interessado, e
acompanha com entusiasmo esta gente jovem que vem com um vocabulário
novo. Poucos, como os da Casa 7, estão atentos ao expressionismo abstrato
e às suas conseqüências — em geral, com os olhos postos na Europa, em par­
ticular na Alemanha e na Itália. O mercado é um fenômeno forte nesta dé­
cada e foi inovador o fato de que uma geração tenha sido festejada, e suas
obras adquiridas no lançamento.
Existe aí um risco implícito, e na periculosidade do risco o olho desafia
o futuro incerto de todos os que se apresentam no Brasil e no exterior. Mas
a solicitação, no decorrer do tempo, veio não apenas do Brasil como de fora.
E nunca artistas nossos tão jovens tiveram a oportunidade de se apresentar
fora do país.
Difícil foi organizar uma exposição-síntese da geração emergente nos
anos 80, com tão reduzido número de nomes e somente a partir da pintura.
Porque se pintar foi um traço que os diferenciou da geração “conceituai” dos
anos 70, na segunda metade da década, o objeto, a escultura e a instalação
foram marcantes. D aí ser parcial este levantamento, quando omitimos a pro­
dução de Paulo Monteiro no desenho e na escultura, de um Romagnolo, de
Jac Leirner, de Artur Lescher, de Guto Lacaz, de Nina Moraes, de Ana M a­
ria Tavares, entre tantos outros. Nosso critério foi selecionar artistas demons­
trativos de tendências próprias da década, artistas que tiveram um trabalho
ininterrupto na área do bidimensional. Este levantamento parcial apresenta

212
A EFERVESCÊN CIA D OS AN O S 80

dificuldades óbvias por não incluir aqui as contribuições de artistas trabalhan­


do na Europa, como Cristina Barroso ou Júlio Villani, ativos respectivamente
na Alemanha e em Paris.
Quais as principais características desta pintura que surge nos anos 80?
Alguns artistas de nosso meio — Leda Catunda, Zerbini, Cozzolino e Guto
Lacaz — parecem ser singulares ao cultivar um veio neo-pop, o ambiente meio
decadente pós-industrial, com humor e inventividade, os mass media e um
frescor juvenil a iluminar suas tiradas, como ocorreria também com o cario­
ca Barrão. Se o começo da década apontava para a Alemanha e Itália, ou para
a Escola de Nova York (em raros casos), o ápice da tendência gestual, dra­
mática, veloz destas pinturas-atuaçÕes culminou na Bienal de 1985.
A partir de então, muitos artistas que tinham se apresentado e estreado
em São Paulo, com “Arte na Rua”, “Pintura como M eio”, ou nos Salões
Paulistas e Nacional de Arte Moderna, passaram por uma auto-revisão, co­
mo uma rejeição do gestualismo visto em toda parte.
N a segunda metade da década, ao lado do conceituai, em artistas que
trabalham no tridimensional, surge na pintura a “curtição” da superfície, a
experimentação de materiais, vários deles adensando a matéria (com cera,
pigmento puro, entretela, objetos os mais diversos, fragmentos do universo
industrializado etc.), e a audácia das dimensões agigantadas, que não está
desvinculada do fenômeno de mercado. Por outro lado, a ausência de com­
posição, a matéria pela matéria, o prazer visual da intensidade cromática,
parece ter cedido lugar a uma poética, uma sensualidade, que são visíveis nas
pinturas suntuosas, a emanar do clima litúrgico presente em Flávia Ribeiro
(tato, olfato, visão), na amplidão dos territórios pictóricos de um Fábio Car­
doso de Almeida, de um Paulo Pasta, que parece produzir, na superfície de
suas telas, carícias com resultados por vezes metafísicos, em Marco Giannotti,
que une o sensual ao poético. O clima onírico e metafísico é uma constante
nos trabalhos de Geórgia Creimer na segunda metade da década — hoje
radicada em Viena. O dionisíaco cede passo ao apolíneo em Nuno Ramos.
Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade, na pintura: o vigor agressivo por vezes
visível na voluptuosidade da superfície, manipulada com aparente rusticida-
de. A intuição de Monteiro substituída por uma racionalidade evidente em
Nuno e Rodrigo, mais distante em Fábio Miguez.
Os artistas moços mudam muito, se inquietam, buscam alterar sua lin­

213
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

guagem. Perseguem uma tendência que se adapte mais à sua personalidade


ou momento, pode-se dizer.
Exemplar dessas permanentes idas e vindas é o exemplo de Mônica
Nador. No início da década, obsessiva e quase conceituai na reiteração de sua
gestualidade sóbria, em branco e negro, que segue projetando suas dúvidas
sobre a unicidade da imagem pictórica, posteriormente assumindo a decora­
ção como temática, numa pintura irônica e fundada na religiosidade. Hones­
ta, mas incomoda-nos essa busca, mutável como a moda em suas fases, a nos
levantar a questão: é possível a maturidade? Ou: o que vem a ser a maturação
num artista?
Pode-se falar na “crise da representação”. Outros de fora do Brasil ao
ver nossa arte se assombram pelo distanciamento entre a dramaticidade dos
problemas que agridem a nação e a não-visibilidade dessa realidade nas obras
de nossos artistas. O próprio Habermas demonstrou essa perplexidade curio­
sa, ao visitar, no M AC de São Paulo, a exposição de Paulo Pasta, há pouco
mais de um ano. Para mim, é mais clara essa rejeição do “nosso”, ou do “real”,
a partir da ótica de que isso traz implícito o aceitar a “representação” de uma
maneira mais óbvia. N a verdade, na fuga do questionamento da problemá­
tica local está também uma forma de explicar o “horror” do cotidiano. Vol­
tamos à tese do “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda. É menos
difícil sair numa escola de samba, no Rio, depredar ônibus ou quebrar gar­
rafas no gramado de um estádio de futebol em São Paulo, que tentar partici­
par da solução de problemas infra-estruturais, aparentemente insolúveis na
presente conjuntura.
A resultante, no meio artístico contraditório do Brasil, é esta colheita
farta de jovens vocações de elevado nível, num meio ambiente onde não se
oferece, por nossas carências museológicas, sequer a possibilidade regular de
expor realizações artísticas de todo o mundo. O estímulo do meio cultural,
pode-se dizer, vem dos artistas, e não de uma inexistente política cultural es­
tadual ou federal. São Paulo ainda pode apresentar uma iniciativa privada que
relativamente se ativa em publicações e promoções. Sem mencionar que fa­
lar nos anos 80, em São Paulo, torna também obrigatória a referência a uma
nova geração de críticos, oriundos da filosofia, que acompanham os artistas
surgidos na década, pontilhando o aparecimento de exposições com seus tex­
tos em catálogos e periódicos.

214
36 .
Guto Lacaz:
entre o urbano, a memória e a “Aerobrás”
[1 9 9 2 ]

Após a expansão da arte no século X X em direção ao tridimensional, sem


forçosamente se configurar como “escultura”, no sentido tradicional; depois
que a idéia, o conceito, assumido pelo artista, passou a identificar uma obra
de arte ou a conferir artisticidade a um projeto realizado, a invenção tornou-
se palavra-chave na produção das vanguardas dos meios artísticos. Eviden­
temente que há nestas realizações, em vários níveis, maior ou menor cria­
tividade. O u a mediocridade de uma onda que imita as vanguardas. Mas o
tempo as varrerá de cena, quando inexistir o valor real. O artista como per­
sonagem, como obra viva, por sua excentricidade, modo de vestir ou viver, é
outro dado de nosso tempo, seja ele um genial dandy, como o foi de certa
forma Andy Warhol, ou forme uma dupla, como Gilbert e George, em toda
a chatice de sua banalidade melancólica. Ou na radicalidade violentamente
agressiva de um Hélio Oiticica.
No Brasil, país aberto como poucos à informação externa, o meio ar­
tístico é pouco atento à sua própria cultura, diluída entre tantas miscigena­
ções, enquanto esta heterogeneidade étnico-cultural é nossa qualificação. O
preço está, contudo, na ausência de densidade cultural, se formos compara­
dos ao México, país de cultura forte e marcada.
Daí porque é difícil encontrar entre nós artistas pessoais em sua obra,
ou não-atrelados à pura informação externa, se fizermos uma análise propor­
cional ao número de artistas que se apresentam regularmente em salões,
Bienais e galerias.
Considero Guto Lacaz uma exceção nesse contexto. E em seu caso, já
se percebe a obra através de sua pessoa, fisicamente, em seu estilo de vestir
peculiar, aparentemente displicente e convencional, seus óculos professorais,

215
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

sua seriedade bem-humorada, onde um meio-sorriso aflora ao descrever um


trabalho. Os gestos são comedidos, como partindo de quem não ignora que
uma engrenagem só pode funcionar corretamente se montadas com atenção
suas peças mais delicadas. Aos que eventualmente possam duvidar da quali­
dade estética de sua obra, gostaria de lembrar que por estesia se compreende
o prazer dos sentidos que emana de seus trabalhos, além do aroma que esti­
mula a inteligência, implícito em suas invenções.
H á já em São Paulo uma tradição em processos de arte vinculados à in­
dústria. E não poderia ser de outra maneira, pelo meio industrial e tecno­
lógico intenso do estado. Se nos anos 60, Nelson Leirner foi um dos primeiros
a expressar-se artisticamente a partir de sua vivência como industrial, incor­
porando zipers e tecidos a suas propostas do período pop brasileiro, já na dé­
cada anterior a experiência do Concretismo suíço tivera entusiasmada aco­
lhida em São Paulo por designers, publicitários, arquitetos e artistas, que abra­
çaram o Abstracionismo geométrico de Max Bill, aplicando-o, como no caso
de Waldemar Cordeiro, também ao paisagismo. Essa tendência se caracteri­
zaria em São Paulo pelo cerebralismo, que no Rio de Janeiro cederia lugar
ao sensorial e à intuição, em vez de privilegiar exclusivamente a racionalidade.
Mas é o mesmo perfil vinculado à indústria e à publicidade, facilmente per­
ceptível em outro artista de São Paulo, como Marcelo Cipis, não por acaso
oriundo da Faculdade de Arquitetura e perfeccionista na elaboração de suas
participações. Ao mesmo tempo, certas propostas de Artur Lescher poderiam,
também, estar vinculadas a certas “invençÕes”/realizações implícitas num ar­
tista de um meio industrial de elevada concentração.
Guto Lacaz pertence a essa linhagem urbana tipicamente de São Paulo,
embora de sua formação em eletrônica e arquitetura e de sua geração em plena
era televisiva compareçam outros componentes que ampliam o raio de alcance
de suas criações. É distinto da assepsia gélida de um Je ff Koons, de meados
dos anos 80, que encerra bolas desportivas ou enceradeiras em vitrines de
acrílico, assim como das assemblages realizadas por Jorge Barrão, muito mais
próximo da pintura a partir da interferência em objetos-detritos da socieda­
de industrial.
Entrar com Guto Lacaz em seu ateliê é penetrar na caverna de Lascaux
acompanhada de um de seus habitantes-desenhistas. E a morada-laboratório
do professor Pardal: a ordenação domina o ambiente acumulado de instru­

216
G U T O LACAZ: EN TR E O URBANO, A M EMÓRIA E A “AEROBRÁS"

mentos/elementos, idéias latentes como potencial para suas proposições: Po­


pular mechanics em coleção completa, objetos montados, pequeno helicóp­
tero, aviões empilhados, de sua última instalação, vidros enfileirados como
soldados, cheios de parafusos, ferramentas de pequeno porte, tomadas elétri­
cas por todo canto, toca-discos, livros, revistas, universo, enfim, de onde ele
engendra as situações que só têm razão de ser quando apresentadas para a
fruição do público.
Se em Guto Lacaz é importante notar a facilidade na abordagem da or­
ganização do espaço — em objetos tridimensionais, seja em pseudo-designs
ou designs, onde o Concretismo parece imperar como concepção, na linha
trabalhada sobre a parede-suporte — , vemos que, mesmo nestas criações, ele
parece realizar “comentários”, freqüentemente humorosos, sobre arquitetu­
ra e desenho industrial. Não se pode esquecer aqui sua ligação com o troca­
dilho, jeux de mots, utilizado pelos poetas concretos paulistas.
O que o caracteriza é, sobretudo, seu perfil “Professor Pardal”, na in­
venção de peças utilizando-se de engenhos ou engrenagens de objetos indus­
triais. Seus “pequenos objetos”, verdadeiras vinhetas aparentemente sem pre­
tensões de permanência, efêmeras por sua fragilidade física, obedecem, no
entanto, a um rigoroso desenho e análise compositiva, seja no caso dos Ta­
lheres/Sem título (col. Adolpho Leirner), ou de Filósovo, Hightegg, Catavento
e Régua elétrica (esta última a aproximá-lo, quem sabe, das propostas de Jack
Vanarsky, argentino residente em Paris).
São tantas as inspirações e invenções, o vocabulário e o repertório de Gu­
to Lacaz que, para contato com sua obra, seria necessária uma publicação,
devidamente ilustrada, em ordem alfabética, parecida com os dois catálogos,
de iniciativa do próprio artista. E o caso das Naves, onde a concepção do pro­
jeto, precisa em sua fisicalidade, se une à fragilidade da realização. D aí a ra­
zão do deslocamento cuidadoso do artista, seus gestos controlados, ao colo­
car em funcionamento suas peças, como em performances, que realiza para se
expor ou para apresentação desses trabalhos, como se estivera a caminhar...
sobre ovos.
Em suas performances, de elaborada execução — como um projeto ar­
quitetônico ou um aparelho eletrônico, para cujo uso por vezes um manual
de instruções é preparado para sua devida fruição (ver o Catálogo/manual da
Eletro performance) — , Guto se nos aparece como um verdadeiro descendente

217
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

dos dadaístas, em função da parafernália de materiais e engenhos que rodeia


suas apresentações. Há, contudo, uma ordem essencial, fundamento da ma­
nipulação de cada um dos quadros que ele nos faz compartilhar. Foi o caso
de sua sala na Bienal de São Paulo de 1985, quando pessoalmente acompa­
nhava o funcionamento de cada proposta, como a espreitar o espectador.
O intrigante do conjunto de obras de Guto é sua mescla do urbano com
o freqüentador apaixonado da loja “Aerobrás” (casa onde se vendem há dé­
cadas peças para aeromodelismo), aliada à invenção do concretista/projetista
vinculado à memória. Memória entendida no sentido de repertório cultural,
por suas freqüentes referências à arte contemporânea, ao cinema, à música
popular, ao teatro etc.
O próprio artista reconhece que em Eletro performance trabalha “além
da realidade”, ao interligar “vinhetas de rádio, cinema, vídeo, poesia e climas
óticos”. Esse dado de articulação de vários media torna-se bem claro em M á­
quinas e motores na sociedade (1992), com doze performances em seqüência,
nas quais o timing flui sem vazios, a poética se articula com a ação, e as idéias
do artista se comunicam com a platéia em empatia invejável. O “programa”,
neste trabalho, é como um impresso que nas feiras industriais se oferece ao
visitante como um lembrete de seu stand, eventual cliente de sua produção:
“artístico-científico-patafísico/ TEATRO infantil ADULTO / divertido instruti­
vo emocionante/ super legal/ moderno/ lazer para todas as idades”.
Reaparece assim, em Guto Lacaz, uma característica já vista em outros
artistas que emergem nos anos 80: a permanência do universo infanto-juve-
nil (Leda Catunda, Zerbini, Barrão, Matuck). Entretanto, seu trabalho tam­
bém assinala uma sensibilidade/empatia por uma cultura popular típica de
nosso meio social: a música de Noel Rosa, e mesmo a incorporação do kitsch
sentimental que arrastou multidões aos teatros de todo Brasil, como ocorreu
com “As mãos de Eurídice”, de Pedro Bloch.
U m dos pontos altos de suas primeiras apresentações foi a instalação
apresentada na “Trama do Gosto”, na Fundação Bienal de São Paulo, em
1987, na qual transfigura de forma magistral duas dezenas de aspiradores de
pó, formados de maneira marcial a ladear um longo tapete vermelho, e reali­
za malabarismos com bolas de pingue-pongue (posteriormente apresentada,
com êxito, no M AM de Paris, na exposição sobre arte brasileira, “Moderni­
dade”, em 1987), sob épico fundo musical.

218
G U T O LACAZ: E N T R E O URBANO, A M EMÓRIA E A “AEROBRÁS1

Foi conceituai e quase magrittiana em seu perfeccionismo de concep­


ção sua proposta para um Auditório para questões delicadas, apresentada no
lago do Ibirapuera, na Bienal de 1987 — um auditório impossível, com as
cadeiras enfileiradas “flutuando” sobre a água.
Em todas as suas performances (Estranha descoberta acidental, Eletro per­
formance e M áquinas e motores na sociedade, além da performance realizada
para a empresa Securit no Museu da Imagem e do Som de São Paulo), assim
como em seus trabalhos realizados sobretudo ao longo da década de 80, e
apresentados em diversas exposições coletivas e individuais, o que Guto La­
caz parece apresentar são teoremas, decodificáveis como comunicação para
os que possuem um repertório comum, no plano cultural, ao mesmo tempo
em que realiza nexos impulsionando à reflexão.
Como sobrevive um artista que apresenta propostas insólitas como as
de Guto Lacaz? Este criador-inventor é um exemplo da tentativa de inte­
gração da arte/cultura com a vida, tão corrente na segunda metade do século
XX. Neste sentido assemelha-se aos artistas pop norte-americanos: Guto La­
caz já esteve presente como designer de luminárias, participa de projetos grá­
ficos para periódicos, contribui com ilustrações para jornais, é solicitado,
como no caso mencionado da Securit, para um trabalho a partir desses pro­
dutos, pode ser visto na televisão com um programa no qual não faz conces­
sões a seu estilo de criação, no qual solicita a atenção do espectador, perple­
xo com suas proposições tão distantes do consumismo ou do noticiário usual­
mente vistos na TV. É claro que aí comparece, igualmente, não apenas a verve
do artista, como sua capacidade carismática de sedução de um auditório —
o que ocorre de fato em suas melhores performances e faz com que o criador
cultive seu público.
Existe, ao mesmo tempo, por trás dos pequenos objetos ou de suas
performances, uma postura que pode ser dadaísta — pela apropriação de ob­
jetos encontrados já descartados pela sociedade industrializada — , porém,
tem muito a ver com seu domínio do tempo na realização dos trabalhos. O
tempo, como escreveu já Juan Acha, é um elemento novo nas artes visuais,
até o século X X dominadas pelo espaço. Se Guto consegue um resultado po­
sitivo do “tempo” — o que os primeiros artistas plásticos que trabalharam
com vídeo não conseguiram na década de 70, tanto que hoje os videomakers
são criadores que já se formam como videomakers, independentes de uma

219
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

outra atividade artística — , é com desenvoltura que ele trabalha este dado,
tão fundamental, além da luz e outros elementos de que lança mão para sua
expressão. Racional sim, na medida em que a inteligência está na base de suas
propostas, porém tocando com sutileza a emoção, ao recorrer à memória, nela
implícita também a nostalgia, no seu humor cortês e envolvente'.

220
37.
A m u lh er nas artes
[ 1993]

Como explicar a marcante presença da mulher na arte brasileira deste


século? Em várias oportunidades tentei especulações em torno ao assunto, que
não deixa de ser curioso num país dominado pelos homens, país notoria­
mente machista, onde excepcional é a mulher que se destaca antes de fins do
século XIX, em qualquer ramo de atividade fora o doméstico. Principalmente
num país onde o feminismo pouca repercussão teve, assim como os débeis
movimentos de direitos civis, se comparados aos Estados Unidos, tais como
dos negros, das comunidades gays, entre outros. Não que inexistam motivos
para essas lutas, porém pela própria peculiaridade do caráter, de certa forma
conformista, dos brasileiros, tão diferenciados entre si pela diversidade de
regiões e climas, mas com uma mesma linha de conduta.
Quando diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo, em contato com um empresário na infindável função de levan­
tamento de fundos, respondendo a uma indagação sobre qual era minha ca­
deira na Universidade (História da Arte), sua reação, tão espontânea quan­
to natural, chocou-me de imediato: “Não diga! Minha mulher adora essas
coisas!” .
Arte como atividade de mulher. N a verdade, talvez seja esse um dos
motivos pelo qual a mulher no Brasil não precise batalhar (como uma eu­
ropéia ou norte-americana) para penetrar no ambiente da arte. É o “seu”
ambiente.
Num espaço de tradição ibérica, onde sempre imperou o comportamen­
to judaico-cristão em cujo contexto os homens que se destacam se dedicam
à política, ao exercício do poder, às profissões liberais, enfim, porém nunca
trabalhando com as mãos em ofícios mecânicos, nem por hobby, como é usual

221
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

na tradição protestante norte-americana, o espaço para os trabalhos manuais


é próprio da mulher.
Surge assim, desde inícios do século, como uma complementação da
educação até então pouco cuidada da mulher latina, desenhar, pintar, tocar
piano (Guiomar Novaes, Magdalena Tagliaferro, Antonieta Rudge, Yara
Bernette são expressões desses talentos na área musical, sendo as duas primei­
ras, de projeção internacional como concertistas); além de compor músicas
populares, no início do século XX, como a festejada Chiquinha Gonzaga, ou
mesmo, além de várias personalidades pouco conhecidas, casos como o de
Lydia Dias de Aguiar, mãe da pintora Tarsila do Amaral, que compunha
polcas, habaneiras e modinhas.
N a verdade, é preciso reconhecer a razão prática pela qual a mulher no
Brasil teve tanta disponibilidade para se dedicar às artes. A presença, ainda
hoje, de uma ou mais auxiliares na casa para os serviços domésticos para a
classe remediada, média e média-alta, sempre propiciou à brasileira uma pos­
sibilidade para se dedicar às artes, condição que nunca as norte-americanas
usufruíram na contemporaneidade. A atividade artística surge, assim, como
um lazer prestigioso, falando social e culturalmente, a buscar uma utilização
de seu tempo livre na área cultural (e que vai extravasar igualmente para a
pintura sobre porcelana, tecelagem, tapeçaria, cerâmica e encadernações).
De artistas plásticas a donas de galerias, de diretoras de museus a pes­
quisadoras de artes plásticas, são variações de atividades dentro de um mes­
mo campo de interesse, o artístico. Desde os anos 60 até o seu recente faleci­
mento, Ana Maria Fiocca foi uma galerista respeitada em São Paulo e no Rio
de Janeiro. Assim como Giovanna Bonino teve um espaço reconhecido com
a fundação da galeria por seu ex-marido Alfredo Bonino, galerista de expres­
são internacional dos anos 60 aos 70, em Buenos Aires e Nova York. Hoje,
as galerias mais expressivas de arte contemporânea são, em São Paulo, as de
Luisa Strina, Regina Boni (Galeria São Paulo) e o Gabinete de Arte Raquel
Arnaud. Assim como, no Rio, a Galeria Ana Maria Niemeyer ocupa lugar de
destaque, como Dodora Guimarães em Fortaleza, e, em Porto Alegre, as ga­
lerias que levam os nomes de suas donas, a de Tina Presser e Tina Zappoli.
Não se creia, no entanto, que essas galerias, por serem dirigidas por mulhe­
res, sejam restritas, em suas atividades, à arte criada por mulheres. Nem se
pense que tenham especial interesse por arte de mulheres. Pode até even­

222
A M U LH ER NAS ARTES

tualmente suceder o contrário, dado o ambiente machista de nossa socieda­


de. E creio que há certa razão nisso, posto que o que conta é o valor, a quali­
dade da obra que se apresenta, e não o sexo de quem a faz.
De qualquer modo, no Brasil, as mulheres no meio cultural estão em
toda a parte são críticas de arte, professoras de História da Arte, curadoras
de exposições, animadoras culturais. E não apenas nas capitais do Brasil, como
em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Salvador e nas gran­
des cidades do próspero interior dos estados do Rio Grande do Sul e de São
Paulo, os animadores culturais são em geral mulheres, a se preocuparem com
a expressão criadora e sua divulgação. Tampouco a crítica de arte no Brasil
se constituiu em problema a bloquear o desenvolvimento da mulher-artista
brasileira, com exceção do golpe violento cometido contra Anita Malfatti por
Monteiro Lobato, escritor de renome, em 1917, o que acabou por debilitar
sua trajetória posterior. N a verdade, em seu conservadorismo, ele se revolta­
va contra a tendência de sua arte e não contra o autor das obras. N o entan­
to, fica no ar a indagação de por que razão, durante longos anos, a pintura
da fase máxima de Tarsila do Amaral — anos 20 — ficaria desapercebida, o
mesmo não ocorrendo com Segall, Di Cavalcanti ou Portinari.1 N o entan­
to, a verdade é que, em geral, a mulher inserida no contexto artístico brasi­
leiro não parece temer, como artista criadora, ou como pesquisadora ou crí­
tica, um fechamento de portas para seu trânsito, de forma explícita. Mas
como há sempre muita sutileza nas relações sociais no Brasil, pode ocorrer
hoje certo enfrentamento com o corporativismo do poder político gay no
mesmo meio cultural brasileiro, embora não se toque nessa tecla, e isso não
constitua tema de discussão ou de reivindicação. Sabe-se apenas que existe.
O fato é que a mulher brasileira se destaca no meio artístico no século
XX, ombreando naturalmente com os homens que fazem arte, e mesmo no
contexto da América Latina o número de artistas mulheres brasileiras é no­
tável, seja como iniciadoras de movimentos, seja como principais participan­
tes de tendências modernas e contemporâneas.

1 Quando da realização da I Bienal de São Paulo (1951), Tarsila do Amaral inscreveu-se


como qualquer artista jovem à época, postulando a possibilidade de ser selecionada pelo Júri de
Seleção do evento.

223
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Muito antes da arte moderna e contemporânea brasileira ter repercussão


no meio artístico internacional (o que realmente só começa a ocorrer a par­
tir de meados dos anos 80), era tão evidente a presença da mulher-artista no
meio das artes visuais que o Museu de Arte Moderna de São Paulo, por ini­
ciativa do crítico Paulo Mendes de Almeida, organiza, em 1960, a exposição
retrospectiva sob o título de “Contribuição da Mulher às Artes Plásticas no
País” .2 Escrevendo a introdução do catálogo, a escritora Maria de Lourdes
Teixeira prova que, até essa data, estatisticamente, era crescente a participa­
ção das mulheres nas Bienais Internacionais de São Paulo iniciadas em 1951.
O próprio diretor do MAM-SP, Mário Pedrosa, reconhece ser de “tal rele­
vância” a contribuição do papel da mulher neste século no Brasil, que “já não
distinguimos mais, entre os criadores de mais força, os que são de um ou de
outro sexo”.3 Essa situação, acrescenta, se comparada com a de outros países
como França, Itália, Espanha, Inglaterra e Países Baixos, mostra que “no Bra­
sil, a contribuição do gênio criador feminino é consideravelmente maior”.4
No entanto, internacionalmente, a brasileira não aparece. E mesmo uma
exposição abrangente realizada em Milão, no primeiro semestre de 1980, não
inclui artistas brasileiras,5 que também não estavam presentes na grande re­
trospectiva mundial no Brooklyn Museum, por volta de 1978. Em ambas,
Frida Kahlo é presença obrigatória, além de duas outras surrealistas mexica­
nas, como Remedios Varo e Leonora Carrington, na mostra milanesa.
N o mesmo ano, aparentemente notável para a difusão da obra de mu­
lheres artistas, a conceituada Galeria Fíelen Serger, La Boétie, Inc. de Nova
York apresenta interessante exposição focalizando “Pioneering Women Ar-
tists (1900-1940)”, com a geração especificamente de artistas como Anita
Malfatti e Tarsila do Amaral, duas ausências marcantes, além do fato de que

2 “Contribuição da Mulher às Artes Plásticas no País”, curadoria de Paulo Mendes de


Almeida, São Paulo, Museu de Arte Moderna de São Paulo, dez. 1960/jan. 1961.
3 Mário Pedrosa (prefácio), Contribuição da mídher às artes plásticas no país, São Paulo,
Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1960.
4 Idem, ibidem.
5 “L’altra metà delfavanguardia (1910-1940)”, Milão, Palazzo Reale, 15/2/1980 a 13/4/
1980.

224
A M U LH ER NAS ARTES

Sonia Delaunay fora amiga de Tarsila em Paris nos anos 20,6 todas perten­
centes à mesma geração de Geórgia 0 ’Keefe.
Fruto das reivindicações feministas dos Estados Unidos foi a exposição
chegada ao Brasil em 1980 “American Women Artists 1980”, apresentada no
Museu de Arte Contemporânea da USP, graças à mediação da artista Mary
Dristchel, que vivia em São Paulo, em seu diálogo com Regina Silveira e
Glenna Park, de San Antonio, Texas.7
Em 1977 a crítica Sheila Leirner realizou uma enquete sobre se existe
uma arte especificamente feminina.8 Em minhas respostas declarei que, na
verdade, o que me parece de fato existir é uma soma de características do fe­
minino em arte. Algumas artistas deixam transparecer esse caráter feminino,
outras não. Esse “feminino”, para mim, está vinculado à delicadeza da sensi­
bilidade da mulher, em sua condição de promotora da vida e, por essa mes­
ma razão, vinculada à natureza mais que seu companheiro homem, delica­
deza que está implícita no seu trato com a fragilidade do filho recém-nasci-
do de seu corpo, e ao qual ela protegerá por toda a vida. Esta reflexão pode
ser combatida ao se afirmar que a mulher a que nos referimos é a mulher ur­
bana, civilizada, possuidora de um padrão de vida digno. Ao passo que a
maior parte das mulheres de todo o mundo são rudes lutadoras por sua so­
brevivência, tanto quanto o homem, sem atenção a essa denominada “sensi­
bilidade”, quase um animal racional que procria, carrega fardos, labuta na
lavoura, profissões liberais, escritórios urbanos, além de cozinhar, lavar e criar
os filhos.
Em outros países, como em outras artes, assim como na literatura, nunca
foi novidade a mulher se dedicar ao diário e a escrever contos, poemas ou fic-

6 “Pioneering Women Artists, 1900 to 1940”, Helen Serger La Boetie Inc., Nova York, 15/
2/1980-15/5/1980, introdução de Katherine Jansky Michaelsen.
7 “American Women Artists 1980”, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 27/10/1980 a 20/11/1980, curadoria de Glenna Park, Mary Dritschel e Regi­
na Silveira, textos de catálogo de Wolfgang Pfeiffer e Glenna Park.
8 Sheila Leirner, “Feminismo na arte brasileira, opinião da crítica”, O Estado de S. Paulo,
27/2/1977. Ver resposta completa da Autora em “A propósito de um questionário de Sheila
Leirner: existe uma arte especificamente feminina?”, in Aracy Amaral, Arte e meio artístico: entre a
feijoada e o x-burguer, São Paulo, Nobel, 1983, pp. 254-6.

225
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

çao. O difícil está em que uma artista plástica se exponha, enquanto pessoa,
muito mais que aquela que se dedica a escrever. A jornalista Jane Ellison re­
gistra problemas dolorosos e conflitantes para a mulher que se dedica às ar­
tes visuais, citando o livro The obstacle race, de Germaine Greer: 9 mulheres
que abandonam suas carreiras, mulheres artistas casadas com artistas, que
permanecem na obscuridade a fim de ceder espaço para a projeção de seus
companheiros, não raro menos criativos que elas próprias. Eis aí uma situa­
ção vivenciada por inúmeras brasileiras, em função de natural necessidade da
imposição do homem como “cabeça” do casal e do núcleo familiar, e que afeta
também a mulher, embora freqüentemente ela não se dê conta dessa circuns­
tância. Maria Leontina Franco Dacosta foi, a meu ver, bom exemplo dessa
generosa sensibilidade feminina na convivência com seu marido, o pintor
Milton Dacosta, assim como inúmeras outras.
Neste século XX, Anita Malfatti foi a pioneira do Modernismo dos anos
20 no Brasil, comparecendo como vanguarda, à frente de seus colegas-ho-
mens, não por qualquer desejo de sobrepujá-los, porém por impulso próprio,
despertado pela inquietação alimentada em seu período de estudos na Ale­
manha e Estados Unidos, antes da I Guerra Mundial. Como explicar tam­
bém a possibilidade de uma jovem tímida como Anita Malfatti ir sozinha para
a Europa no início da segunda década do século XX, quando as mulheres
eram não apenas vigiadas como discretas em seus projetos de vida? A respos­
ta parece estar no fato de que a jovem artista era descendente de alemães (e,
portanto, à família não causaria espécie a ida à Alemanha por estudos) e de
imigrantes norte-americanos no Estado de São Paulo, no caso, sua avó ma­
terna. De qualquer maneira, o que nos surpreende, é sua determinação em
enfrentar sozinha uma vida no exterior. Essa determinação se refletiria na ten­
dência fauve, de força quase viril, a permear suas obras apresentadas na ex­
posição de dezembro de 1917 em São Paulo. Causam tal impacto no meio
artístico e cultural que jovens poetas, artistas e intelectuais a procuram, e, a
partir de então, formam um grupo que seria depois conhecido como os “mo­
dernistas” dos anos 20.

®Jane Ellison, “As mulheres na pintura, entre as fraldas e as oportunidades”, Folha de S.


Paulo, 6/6/1980.

226
A M U LH ER NAS ARTES

Tarsila do Amaral é, sem dúvida, a grande figura do Modernismo na


pintura nos anos 20: absorve as lições do Cubismo (sob as influências de
Lhote, Gleizes e Léger), vivificando esses ensinamentos com o sabor do co­
lorido do interior brasileiro, absorvido em sua infância de menina de fazen­
da e em sua viagem a Minas Gerais. Seu período parisiense de vida cultural e
aprendizado, junto ao escritor Oswald de Andrade, com quem se casou em
1926, foi rico na medida em que ambos entraram em contato com o grande
mundo das artes da Escola de Paris, através da amizade com Blaise Cendrars.
Este viria ao Brasil por duas vezes, encantado com o “exotismo dos trópicos”,
e, junto com os modernistas, visitaria não apenas as cidades coloniais da re­
gião do Ciclo do Ouro do século XVIII em Minas Gerais, mas também o
Carnaval do Rio de Janeiro de 1924 e o interior de São Paulo.
Mais que a principal artista dos anos 20, Tarsila foi a musa dos moder­
nistas, e de Oswald de Andrade em particular, a pintora que freqüentou em
Paris costureiros como Poiret e conheceu Brancusi, Léonce Rosenberg, Vol-
lard, Sonia Delaunay e Fernand Léger, entre tantos outros personagens dos
années folies. O escritor Mário de Andrade, contudo, não deixou de registrar
na pintura de seu período máximo (1923-1930) um “certo decorativismo”,
no gosto pelo arranjo, pelo bem feito, que pode ser identificado como carac­
terística perfeccionista feminina.
Entre estas duas modernistas, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral — a
pioneira do Modernismo no Brasil e o principal expoente do movimento nos
anos 20 — e as artistas selecionadas para esta exposição deveríamos ainda ci­
tar a surrealista Maria Martins, de uma geração intermediária, e de excep­
cional trânsito internacional.10
Vemos que a curadoria desta exposição parte da obra matricial de Lygia
Clark, atuante a partir dos anos 50, e que se desenvolve como artista da pin­
tura convencional em direção à abstração informal e de lá ao Concretismo,
radicalizando ao máximo sua experiência criativa. O Concretismo, para Lygia

10 Maria Martins, de acentuada tendência surrealista, escultora singular, era mulher de di­
plomata brasileiro, e como tal teve acesso a um círculo cosmopolita ligado aos meios artísticos e
de museus, nos Estados Unidos. Podemos citar igualmente outras escultoras, desde Nicolina de
Assis, do começo do século, a Moussia Pinto Alves, Pola Resende, Felicia Leirner, Liuba Wolf e
Zelia Salgado, para mencionar somente algumas artistas ativas até meados dos anos 50.

227
ARTISTAS C O N T EM PO R Â N EO S N O BRASIL

Clark, entretanto, não significou um fim em si, porém um caminho para seu
desenvolvimento: este apontava para o tridimensional, a participação ativa do
espectador, a experiência sensorial que a levaria a rejeitar o “meio artístico”
como espaço para sua atuação. O homem a interessaria bem mais, na medi­
da em que seu trabalho assume o caráter de terapia: estímulos por ela aplica­
dos (bolsas de plástico com água, areia etc.) sobre o corpo poderiam repre­
sentar um estímulo à sua auto-aceitação ou comunicabilidade com “o outro”.
Esse destino social de sua trajetória, marginal, por sua não vinculação com o
mercado ou instituições (salvo a Sorbonne, onde deu cursos nos anos 70), a
aproximam, de certa forma, dos ideais de Joseph Beuys, na Alemanha, em­
bora Lygia Clark atuasse no terreno do dionisíaco, muito próprio da atmos­
fera de sua cidade de atuação, o Rio de Janeiro, lugar de forte influência tam­
bém sobre Hélio Oiticica, companheiro e admirador de Lygia Clark nesse pe­
ríodo de final dos anos 50 e começo de 60.
A carga sensorial nessa busca de vida-prazer também comparece no tra­
balho de Lygia Pape, tanto em trabalhos de sua fase concreta (O Livro da
Criação, 1959/61), como em experimentações posteriores em Super-8, já na
década de 70, e o contexto dionisíaco pode ser identificado com o citado am­
biente carioca. É no Rio de Janeiro também que surgiriam as propostas con­
ceituais de Antonio Manuel, em 1970, em que se apresenta, a um júri de se­
leção num Salão Nacional, o próprio artista, em sua fisicalidade, como obra.
Reconheço ser esta exposição uma amostragem difícil, pois assinala ape­
nas algumas das artistas brasileiras ativas nas mais variadas tendências ■—- so­
mente duas, dentre as selecionadas pela curadoria, são falecidas, Lygia Clark
e Mira Schendel. Mas há muitas que, embora ausentes, merecem ser citadas:
Karin Lambrecht, gestual com preocupação simbólica, e outras, formalistas
e conceituais, abstrato-geométricas como a pós-concreta Eliane Prolik, figu­
rativas, ou transitando pela linguagem poética com rara personalidade como
uma Carmela Gross, ou impregnada de um sentido do religioso como Flá­
via Ribeiro, em sua fatura elaborada; ou ainda Mônica Nador, com um tra­
balho de caráter obsessivo, conceituai a despeito de seu próprio misticismo
assumido.
Com rara acuidade Susan Sterling soube captar e trazer ao público norte-
americano um grupo de elevada qualidade, e que, poder-se-ia dizer, oscila,
com seus trabalhos, entre os dois pólos inevitáveis das tendências da arte, o

228
A M U LH ER NAS ARTES

apolíneo e o dionisíaco, o conceituai e o lúdico, entre o racionalismo e a lin­


guagem poética.
Não se tente buscar neste grupo de artistas da América do Sul, de um
país novo, sem heranças culturais fortes, uma preocupação explícita com o
social, dadas as circunstâncias dramáticas das contradições em que vivemos
mergulhados no Brasil. Mesmo no período mais obscuro do regime militar
(1964 até fins dos anos 70), quando nossos artistas faziam referência à situa­
ção em que vivíamos (censura, repressão, desrespeito aos direitos humanos
para os que exerciam uma atividade política de oposição), recorria-se à me­
táfora, pela própria contingência da situação, e, desta forma, nunca seu dis­
curso político foi explícito nesses anos como o fora a arte de preocupação
social dos anos 30 ou 40.
Freqüentemente me pergunto, por essa mesma razão: serão verdadeira­
mente alienados os artistas brasileiros? O u não passam de um espelho da au­
sência de conscientização dos brasileiros como um todo? Ou por obra do aca­
so, involuntariamente, são em sua grande parte formalistas porque sabemos
que não é com a arte que se muda um regime ou o comportamento de um
povo? Além do mais, é bem claro que qualquer artista que exponha em sua
obra a problemática social de maneira explícita é sempre discriminado no
Brasil por parte de uma crítica formalista e em decorrência de um precon­
ceito arraigado nesse sentido. Funciona, assim, a tradição artística brasileira
contemporânea, que difere em muito, em seu peso conceitual-construtivo, da
figuração visível na arte de países de origem hispânica da América.
Além do mais, há certas características no trabalho dos artistas brasilei­
ros: informados, sim, porém com uma liberdade de manipulação criativa
dessa mesma informação absorvida. Ao mesmo tempo, um senso de humor,
uma audácia, que podem preencher as lacunas de um aprendizado profissio­
nal não-convencional. As últimas gerações, contudo, têm se aplicado mais
num aperfeiçoamento no exterior, com uma igualdade em competitividade
com os jovens artistas dos países em que se radicam, o que é notável, se pen­
samos nas gerações anteriores, retraídas em relação à arena internacional.
Mira Schendel, movida por sua inquietação intelectual, desenvolveu um
trabalho tão silencioso quanto marcante, em meados dos anos 50, interessa­
da pelas especulações concretistas, mas já na década seguinte na linha de uma
rigorosa abstração informal. Desenhista refinada, moveu-se com familiaridade

229
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

próxima a preocupações filosóficas, compondo delicadezas gráficas sobre pa­


pel de arroz, utilizando-se de materiais plásticos perecíveis.
A veterana Tomie Ohtake, de vocação inequívoca para amplas superfí­
cies, realiza obras nas quais dominam grandes formas circulares ou sinuosas,
aparentemente nebulosas por um tratamento pictórico que se contrapõe ao
rigor de sua abstração, constituída por formas claras de tendência geome-
trizante há cerca de uma década.
Três artistas brasileiras representam a gravura da segunda metade do
século XX, todas elas expoentes da geração de gravadores oriundos do ateliê
de Livio Abramo, no caso de Maria Bonomi, e dos ateliês do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, no começo dos anos 60, formadas durante o
período da abstração informal. Ao mesmo tempo, coincidentemente, são três
gravadoras que em sua trajetória projetaram sua capacidade criativa para além
das artes gráficas. Fayga Ostrower, como teórica e comunicadora carismática,
paralelamente à sua poética reconhecida, dentro da abstração informal. M a­
ria Bonomi, a realizar gravuras de dimensões nunca antes vistas entre nós, em
composições de vigor impensado em sua gestualidade generosa, assim como
painéis em concreto, quase projeções de suas matrizes magnificadas. Anna
Bella Geiger é personalidade infatigável como artista: da gravura à perfor­
mance, tangenciando a arte conceituai nos anos 70, em suas séries de mapas
a focalizar, através da metáfora instigante, a problemática geopolítica do con­
tinente. Ao lado destas gravadoras impõe-se a menção a Regina Silveira, que
se iniciou como pintora e gravadora exemplar. H á anos vem multiplicando
suas especulações em imagens de extraordinária força, em suas perspectivas
anamórficas. Para ela, apropriações de imagens reproduzidas, objetos reco­
nhecidos da história moderna da arte, utensílios ou elementos de nossa fisica-
lidade cotidiana são instrumentos provocadores de situações visuais que bei­
ram um novo expressionismo, um expressionismo puramente visual, calcado
sobre a racionalidade através de seu processo de trabalho. De modo paradoxal,
desse exercício racional frente a uma imagem aparentemente banal é que sur­
ge a distorção violenta, quase como uma agressão visual para o espectador.
Regina Vater é uma das raras artistas brasileiras radicadas nos Estados
Unidos, vivendo em Austin, no Texas. Dedica-se há anos à problemática eco­
lógica, recorrendo ao vídeo para suas propostas, e trabalha com a linguagem
poética em instalações.

230
A M U LH ER NAS ARTES

Referimo-nos à arte como campo da mulher, e, em conseqüência, ao


feminino na arte como um dado eloqüente, ao contrário de qualquer co­
notação pejorativa que poderia trazer implícito esse fazer artesanal. E o caso
de Amélia Toledo, há décadas debruçada amorosamente sobre suas propos­
tas, a emergência de seu reconhecimento como uma decorrência natural de
um discurso coerente. Em sua família, o fazer artístico é uma herança, tal
como um anel de família que passa de mãe para filha, uma toalha antiga de
linho que se recebe com o prazer das coisas que continuam como um ciclo
biológico, no qual nos integramos diante de nossa aceitação das fases da lua,
da seqüência das estações, da passagem das horas do dia e da noite. A delica­
deza é parte das “invenções” de Amélia Toledo, desde fins dos anos 60: dos
colares e pulseiras de contas em fio de aço, à utilização de conchas, areia e
rastros, em suas propostas de fundo conceituai. Camille Paglia já se referiu à
água, ao mar, à concha como domínios, odores e origem da mulher. Amélia
Toledo parece intuitivamente ter conhecimento dessa assertiva. O escultor
José Resende também já se referiu ao positivo/negativo, cheio/vazio, masculi­
no/feminino, como dados sempre presentes nos trabalhos de Amélia Toledo.
Mas, além do vazio preenchido com silicone, o espaço negativo tornado po­
sitivo, um simulacro do real (O avesso da sua orelha, por exemplo), ela joga,
sempre de maneira lúdica, com a natureza, nela interferindo. Referimo-nos
às conchas artificiais em resina a partir de moldes, devolvidas ao mar, e tra­
balhadas com a incorporação de incrustaçoes marinhas naturais, verdadeiro
“laboratório” da artista que enfatiza sempre o lado alquímico e, portanto,
mágico de sua produção.
Em que se distinguem ou em que se assemelham as artistas que surgem
a partir dos anos 80 destas artistas já mencionadas? N a verdade, em nada, na
medida em que consideramos que a mulher faz parte integrante do ambien­
te artístico do Brasil. Neste fim do século XX, quiçá seja mais intensa a pre­
sença da mulher nas exposições e eventos internacionais. Porém o lúdico e o
decorativo, no bom sentido, estão presentes, respectivamente, tanto em Leda
Catunda quanto em Beatriz Milhazes, embora o dado “feminino” possa com­
parecer igualmente em trabalhos de homens, por seu perfeccionismo e orga­
nização, e, por vezes, em seu excesso de bom gosto, como nos trabalhos de
arquitetos e artistas publicitários. Se a poética da forma tridimensional per­
tence às propostas de Frida Baranek, que manipula, com sensibilidade de

231
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

desenhista, arames, vergalhões e chapas de ferro de formas vazadas ou que


cortam o espaço, de maneira aparentemente desordenada, a tradição con­
ceituai está nos trabalhos de Ester Grinspum, ao jogar com inteligência com
a aparência das coisas dentro da atual tendência de explorar o simulacro, e
também em Ana Tavares e Jac Leirner.
N a primeira, a dualidade racionalidade/sensualidade sempre caminhou
unida, o racional no perfeccionismo, às vezes até excessivo, da execução de
suas peças, e os sentidos aflorando no desenho, intuitivo e gestual nas super­
fícies de grandes dimensões de muro com que já trabalhou. Não lhe falta,
contudo, o fôlego, e está implícito em seu trabalho o prazer do desafio.
Jac Leirner é oriunda da mesma escola formadora de artistas como Le­
da Catunda, Nina Moraes, Geórgia Creimer, Iran do Espírito Santo e Ana
Tavares (FAAP — Fundação Armando Álvares Penteado, de São Paulo),
onde estudaram sob a orientação de artistas como Nelson Leirner, Regina
Silveira e Julio Plaza. Admiradora de artistas como Cildo Meireles e José
Resende, sua rigorosa e asséptica organização de detritos da sociedade indus­
trializada surge quase como uma conseqüência da observação da arte contem­
porânea e do colecionismo. Mas seu espírito instigante leva-a a propor essa
ordenação como trabalhos que se multiplicam em suas vertentes criadoras,
desdobrando-se como revelações: é o caso de sua maravilhosa exposição ba­
seada no coletar maços de cigarros, ou na reunião de notas de cem cruzeiros,
de sentido acumulativo, ao propor uma leitura sempre renovada de objetos
quase banais do cotidiano de um universo íntimo.
Já o trabalho refinado, como sensibilidade, de Rosângela Rennó, per­
sonalidade artística que emergiu com força desde o primeiro momento de sua
apresentação em 1991 na exposição “Apropriações”, no Museu da Imagem
e do Som, em São Paulo, embora viva no Rio de Janeiro, nos fala perma­
nentemente de um dado doloroso e intrínseco a nossas vidas: o tempo. D a­
do que ela aborda sob vários ângulos, seja através da nostalgia, da memória,
ou de sua ausência, a amnésia, focalizando a imagem que o tempo desfaz,
ou ela mesma se apropriando de imagens anônimas como matéria-prima so­
bre a qual elabora seu potencial criativo. Desde 1988, Rosângela Rennó
manipula tridimensionalmente fotografias sem autor, despreocupando-se de
seu valor estético, provocando-a o documento, sua coloração fugidia, sua
qualidade humana como comunicação. Cruel denúncia, As diferentes idades

232
A M U LH ER NAS ARTES

da mulher (1991) é igualmente um kitsch testemunho da mulher vista a par­


tir do olho do homem da primeira metade deste século, para quem a “rai­
nha do lar” só poderia aspirar a preencher seu destino, enquanto na flor da
idade e, como as abelhas-rainhas, a desaparecer subitamente depois de encer­
rado seu ciclo reprodutivo. H á alguma coisa de mórbido no trabalho desta
artista, nesta ênfase no tempo, nas dezenas de imagens reais, embora virtuais,
fixadas no tempo, a morte sempre presente nesta contagem do momento que
flui. E paradoxal, por sair das mãos e da sensibilidade criadora desta jovem
de trinta anos, empolgada de vida e, simultaneamente, debruçada sobre nos­
so destino.

233
38.
Carmela Gross:
um olhar em perspectiva
[ 1993 ]

A individual de Carmela Gross em 1990 trouxe-nos de volta a idéia de


que não se pode avaliar a contribuição de um artista através de uma única ex­
posição. O artista vale por sua trajetória. O artista interessa pela vitalidade,
resistência, garra de trabalho com que atravessa diversos períodos de sua vi­
da, circunstâncias de seu meio cultural e do mundo em que se move. Ao ver
essa exposição de Carmela Gross nos veio à mente seu início como artista no
contexto de sua geração, e o modo como ela cresceu e desenvolveu seu discur­
so plástico-poético. Uma individual é um capítulo, não diz do percurso, ver­
dadeiro comunicador da inteireza da validade ou não da obra desse artista.
A atuação de Carmela Gross no meio artístico brasileiro se inicia num
período-limite: fins dos anos 60 e começo de 70. Momento em que as téc­
nicas tradicionais (pintura, gravura, desenho, escultura) cediam lugar às ino­
vações mais liberadas possíveis, a partir dos exemplos das realizações dos ar­
tistas pop ingleses e norte-americanos, a partir do surgimento dos happenings
e performances, da arte conceituai, da desmaterialização do fazer artístico, fi­
nalmente. Ou seja, um jovem artista que desponta nesse instante surge mo­
tivado pela arte que sempre se fez, como pintura, mas encontra a seu alcance
toda a abertura possível de se imaginar no que tange a meios alternativos. Do
período pop de Carmela conhecemos dois objetos-instalações: as Nuvens azuis
(1967), hoje na Pinacoteca do Estado, executadas em madeira laqueada, e o
Presunto (1969), forma mole, em lona, apresentada na II Bienal de Artes Plás­
ticas de Salvador. A década de 70 se constituiria em experimentação contí­
nua para artistas jovens, que nem sequer chegavam a tocar em pincéis ou óleo.
É o tempo, no Brasil também, de novos media: vídeo, audiovisuais, super-8,
xerox, heliografias, discos com sons concebidos por artistas etc. É o tempo
do “espaço experimental” que o MAM do Rio de Janeiro abriu para esses ar­

234
CARMELA G ROSS: UM OLH AR EM PERSPECTIVA

tistas, e, em São Paulo, da “Expo-Projeção 73”, sob minha curadoria, primei­


ro encontro nacional de artistas trabalhando com novos media, e das JA C —
Jovem Arte Contemporânea — no Museu de Arte Contemporânea da USP,
sob a direção de Walter Zanini.
Existiu mesmo nesses anos uma espécie de preconceito contra a pintura,
ou o trabalho “realizado” pelas mãos do artista, embora, como bem observou
Mira Schendel, não pudesse conceber arte não executada pelo artista. Pen­
sar, todos pensam. Mas concretizar dando fisicalidade a esse pensar, cabe ao
artista saber fazê-lo. Para Carmela, neste período efervescente de experimen­
tação livre, o exercício era não apenas com imagens multiplicáveis, porém
com o que também se convencionou chamar de “arte de processo”. O u seja,
a artista interferindo sobre ilustrações, imagens reproduzidas em livros, ou
imagens superpostas em provas heliográficas de dimensão generosa ( 5 x 5 m).
A característica de disciplina, no ritmo obsessivo de sua grafia, surge
quando a artista expõe em 1977 (Galeria Mônica Filgueiras/Raquel Arnaud),
com desenhos em lápis de cor, formas delimitadas por “máscaras” de papel,
racionalidade aliada à concisão, esta já implícita em seu trabalho. A partir de
1978, em sua fase dita dos “carimbos”, o que se observa é mais a multiplica­
ção do gesto gráfico, em ordenação rigorosa. A superfície do papel é coberta
por pequenas linhas que se repetem, ou rabiscos, grafismos, manchas ou tex­
turas, numa tipologia única por folha. Claro que o “carimbo” possui conota­
ção irônica, peculiar à época da produção múltipla, confrontando-se com um
possível mercado de arte preocupado com a unicidade da obra de arte. Ao
mesmo tempo, da imagem do artista como designer, projetista de um módulo
repetível com a mesma qualidade, em princípio, e distanciado do criador do
fazer convencional. O mesmo motivo sobre o papel nos traz à mente este
dado sempre presente em Carmela Gross: o repetitivo, o reiterativo, o obses­
sivo de seu gesto. A própria artista se indaga: “Não é esta uma característica
do feminino, o repetitivo?” . Quem sabe, embora no decorativo esteja implí­
cita também esta qualidade própria do fazer da mulher: no motivo repetido
do bordado, do friso, do arranjo diário da mesa, do vaso de flores, da arru­
mação de uma cama. Em todos estes gestos percebemos, não um fazer isola­
do, porém como rituais que se repetem continuamente ao longo da vida.
Quando surge em sua obra a conhecida série Projeto para a construção
de um céu (1981), vemos Carmela Gross já vivenciando um novo tempo, o

235
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

desenho insinuando-se no meio artístico como um esboço de retorno à obra


que permanece. Mas as pequenas marcações, que conferem estrutura a esses
desenhos, nos remetem a certas imagens de seu período de carimbos, em sua
ocupação do espaço. Estranha essa série. Essa estrutura aparente parece exis­
tir como base para medir o imensurável, a espacialidade da abóbada celeste,
que imaginamos infinita. A artista se debruça sobre o papel (1 m x 70 cm) e,
em elaborados traços com lápis de cor, constrói com tenacidade seus trinta e
três “céus”, número correspondente à divisão por partes feita pela artista do
céu do hemisfério sul. Em seu percurso profissional, esse momento também
assinala outras preocupações. Inserida no corpo docente da Escola de Comu­
nicações e Artes da USP, coloca-se um desafio para a artista. O de realizar um
mestrado, que seja fiel, ao mesmo tempo, às suas especulações anteriores, e
neste caso, o desenho como projeto. Coube-lhe então buscar um embasa­
mento teórico que, na medida do possível sem violentação, lhe permitisse
uma realização. U m trabalho que nos fala muito de seu fazer obsessivo na
elaboração de uma série extensa como esta, mas carregada de poética visual,
impregnada de um certo mistério em seus desígnios, que talvez tenha sido
verdadeiro desafio para a artista.
A exposição “Quasares” (1983) trazia um nome enigmático, a signifi­
car, segundo a artista, “vibrações sonoras captadas por censores de sons”. Pen­
sávamos estar novamente diante das experimentações da década anterior:
impressões em ojfset registravam imagens fantasmáticas, a nos transportar à
incorporeidade em sua imprecisão; alusivas, embora por sua própria inde­
finição, nada nos remetesse às fontes de onde a artista extraía essas formas
interferidas pelos processos até a impressão gráfica.
Foi quando nos demos conta da importância do papel no trabalho de
Carmela: o carimbo assume vida sobre o papel, as imagens superpostas ex­
ploram as possibilidades do papel heliográfico, o desenho para a construção
do céu ocupa vastos espaços sobre o papel, e as impressões “Quasares” eram
igualmente sobre o mesmo suporte. N a verdade, essa sensibilidade/intimida­
de com o papel a levaria, a partir de 1987, a pesquisar e trabalhar sobre pa­
pel artesanal, produzindo texturas com grafite, pigmento e cola, diversifican­
do seus materiais. Mesmo ao ter início sua série de pinturas e relevos pinta­
dos, mais recentes, o desenho para Carmela Gross, enfatizando o caráter
conceituai de sua produção, parece desempenhar uma função de exercício,

236
CARMELA G R O SS: UM OLH AR EM PERSPECTIVA

disciplina para a criação, ora operando junto, ora paralelamente a uma obra
“maior”. Mas é nessa segunda metade dos anos 80 que surgem formas forte­
mente geometrizadas, em contraposição ao gestualismo de fatura da pintura.
A virada para a pintura seria uma influência da década de 80, quando o
retorno às tintas e às cores foi tão unânime tanto no exterior quanto no Bra­
sil? É possível que sim, posto que o artista não é imune ao que sucede no meio
artístico que o circunda. Embora neste caso longe do puro prazer dionisíaco
das cores e gestos pictóricos, e na pintura de Carmela sempre prevaleça o con­
ceito, fidelidade geracional. Assim, na exposição de pintura da Galeria Luisa
Strina (1986) parecia transpirar algum classicismo, em suas telas cortadas em
planos imperando a simetria e a centralização compositiva. Paradoxalmente,
comparecia também a pincelada gestual, o curvilíneo dos formatos se con­
trapondo à ortogonal, ao quadrado dominante como suporte, ao lado da re­
dução cromática como opção.
A artista refere-se a esse estágio como um período de transição (“possí­
vel encontro”) entre a pintura e o desenho: “um desenho que delimita, pro­
jeta, arma e se enrijece na geometria rigorosa de encaixes, e uma pintura que
busca o expressivo e a fluidez da matéria cromática, em descristalizações do
simbólico e do clichê”.1
A partir dessas pinturas de limites recortados, fora do retângulo pictó­
rico convencional, de planos encaixados ou justapostos, começariam a emergir
concepções livres como formato, e temas conceituais embora figurativos: la­
baredas, colunas de fumaça, montanhas, cascatas que vertem com violência
em todas as direções, desafiando a gravidade, as cortinas dentro das cortinas
dentro do palco dentro do quadro, da vazia cena entreaberta, espaço da re­
presentação ausente. Neste período se observa novamente em certos traba­
lhos a repetição de formas como tema, o espaço virtual da pintura tendo con­
tinuidade sobre o espaço real, o muro, sobre o qual o gesto gráfico da artista
começa a complementar a imagem pictórica.
Esse talvez seja o início da presença de uma grande energia, movimen­
to traduzido em pintura pensada, embora com fluidez de execução, com
transparências e grafismos a nos remeterem à poética imagem da caverna

1 Catálogo Pintura/Desenho, São Paulo, MAC-USP, 1987.

237
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

platoniana, onde parecem projetar-se luminosidades e aparências do exterior


(Bienal Internacional de São Paulo, 1989). Seguir-se-iam pinturas em acríli­
co sobre madeira, em formato diminuto, montados como uma gigantesca
instalação parietal. Essa sua produção, exposta na Galeria São Paulo, em
1988, pareceu-nos uma referência estranha, como diante do clima dos tra­
balhos de Angelo Venosa, como se estivéssemos frente a uma livre ordena­
ção sistemática de elementos e instrumentos da era Neolítica por arqueólo­
gos pesquisadores de uma cultura extinta.
Impressão semelhante também nos causaria seus trabalhos expostos na
bela exposição da Galeria São Paulo dois anos depois (1990), tanto em Pai­
sagem quanto em Trem (1990). Já aqui em alumínio fundido; portanto, pre­
sente mais uma vez a especulação por meio de novos materiais, o que é, por
certo, característica da artista. A densidade poética de Carmela Gross alcan­
ça um ponto alto com Praia. Aqui, quatro placas de alumínio fundido se jus­
tapõem, embora essa poética não deixe de remeter-nos, sem qualquer dúvi­
da, ao trabalho do alemão Ulrich Ruckriem, exposto na X X Bienal de São
Paulo, em 1989, de vigoroso hieratismo, em ampla forma geométrica em
pedra, composta igualmente de justaposição de elementos.
Monocromáticos, seus trabalhos, a partir desta exposição (em alumínio
ou madeira), parecem trazer à tona a sombra, forma virtual, voluntariamen­
te ou não, sutil elemento constitutivo de cada obra, confirmando o relevo e
o abandono da tela. O monocromatismo mencionado parece refletir também
sua característica acentuada como projetista, que se expressa através do dese­
nho. Por outro lado, a artista parece buscar, a partir de então, formas orgâ­
nicas ou formas ordenadas da natureza, quase amorfas, como pertencentes ao
reino das coisas aquosas; desse primitivismo surgiriam em suas peças relevos
a insinuar um movimento espiral, relevos sempre monocromáticos, “tumo­
res” rijos prestes a explodir, a surgir do muro, misteriosos em suas formas
encerradas ou a sugerir uma tentativa de perfuração central.
O movimento que emergira em suas obras em 1984 reaparece agora, sob
novo formato, em seus trabalhos mais recentes nas pás, ou moinhos (ou hé­
lices): placas de madeira rústica de pintura sempre monocromática, de mo­
vimento induzido pela mão do observador, movimento preguiçoso em seu
embalo/impulso. Nestas peças de grande espacialidade sobre a parede está
quase ausente no trabalho de Carmela a mão da artista, projetista/inventora

238
CARMELA G R O SS: UM OLHAR EM PERSPECTIVA

destas máquinas sem função. São formas retiradas da natureza, sem angu­
losidades ou linhas retas, sem interferência maior por parte da artista. Em seus
desenhos da mesma época a aquosidade já referida parece invadi-los também,
na inexistência de uma composição racional, agora sobre papéis artesanais,
com formas fecundantes a mover-se no cosmos uterino ou oceânico, mar de
elementos como águas-vivas, de transparências colantes, detidas, suspensas em
sua gestação interrompida.
O trabalho de Carmela Gross pertence à contemporaneidade da arte. E
de nosso tempo, identificável com as correntes conceituais e com as preocupa­
ções experimentais das últimas duas décadas. É certo que existe uma enorme
similaridade entre pesquisas de artistas de meios urbanos desenvolvidos e a
obra desta artista, que, neste sentido, não foge à regra. Difícil seria encon­
trar nela características que, para o meio internacional, se pudessem assina­
lar como indo ao encontro de suas expectativas de uma arte brasileira, sul-
americana. Ela bem o sabe e tem sido confrontada, ao expor na América La­
tina: sua arte talvez fale pouco, seja reticente em relação ao conturbado meio
social e físico brasileiro. Mas esse dado, em relação a outros artistas, talvez seja
conseqüência de nossa própria instabilidade econômica e injustiça social. O
artista se encerra então em sua proposta de trabalho, buscando ouvir-se e pro­
jetar os ecos dessas circunstâncias, ou a negação delas, em seu fazer artístico.
Isto é: há no Brasil uns poucos — e raros — que expressam algo da realida­
de social, enquanto outros negam, em rejeição eloqüente, um enfrentamento
com essa mesma realidade, num país que tem dificuldade em conscientizar-
se em todos os níveis da cidadania.
N o caso de Carmela Gross, não vemos em sua trajetória a preocupação
em firmar-se como presença de artista em lugar da obra, situação peculiar na
arte contemporânea, quando vale o grito, o espetaculoso, o instante de pro­
jeção — e não o trabalho que permanece. Nesta artista, por trás de suas ex­
perimentações, há um trabalho em seqüência, apreciável através dos anos.
Não ocorre em sua contribuição a ostensiva realização, como a execução
tecnológica de uma Jenny Holzer, nem tampouco a distribuição internacio­
nal de uma Cindy Sherman. Pode-se ser contemporâneo sem recorrer ao
marketing de um Je íf Koons ou de um Christo. Paul Valéry já escreveu que
“o prazer está se desvanecendo. Fruição é uma arte perdida. Agora a coisa é
intensidade, enormidade, velocidade, ação direta sobre os centros nervosos,

239
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

pelo caminho mais curto”. É sobretudo nos eventos internacionais mais ba­
dalados que desaparece de maneira marcante essa possibilidade de fruição da
obra, por chamar a atenção somente o clamor, por desaparecer a atenção pela
obra, que não importa muito, a não ser pelo impacto com que pode atingir
o visitante que flana pelo espaço, sendo visto, porém quase sem olhar, fre­
qüentemente sem retorno, posto que não há tempo. Claro que há um pre­
ço, o do reconhecimento, para o artista que opta por aparecer através de um
trabalho ao longo do tempo e não percorrer as arenas do je t Jétfdas artes. So­
bretudo quando se vive num país desamparado culturalmente como é o Brasil
de hoje. Mas o fundamental, a nosso ver, é pertencer a um lugar num deter­
minado momento. O triste é viverem os artistas num país surdo à cultura e
suas manifestações, como o Brasil nas últimas décadas.
Escreveu Giulio Cario Argan que na civilização ocidental-cristã “a arte
certamente teve um desenvolvimento histórico correspondente à estrutura
historicista dessa civilização. Fez-se a arte com a intenção e a consciência de
fazer arte e com a certeza de concorrer, fazendo arte, para fazer a civilização
ou a história. A intencionalidade e a consciência da função histórica da arte
são, indubitavelmente, os principais fatores da relação que se estabelece en­
tre os fatos artísticos de um mesmo período, entre os períodos sucessivos,
entre a atividade artística em geral e as demais atividades do mesmo sistema
cultural”.2 Essa inserção natural da arte na história das sociedades é ignora­
da no Brasil, onde assistimos estarrecidos a um processo de deculturação ga­
lopante, com o meio intelectual e artístico impotente em motivar os cuida­
dos do Estado. E nessa circunstância nos sentimos todos marginais, como ba­
talhando em área sem significação, quando deveria ocorrer uma intensa cam­
panha de valorização da criação artística, a fim de se conferir dignidade ao
vilipendiado ser brasileiro. A relação da arte com a sociedade nem se coloca
no estágio em que vivemos, pois não parece que haja preocupações com a arte
do passado, o que seria fundamental para assentar, criar e divulgar nossa
memória. Talvez a ausência de valores espirituais e artísticos no Brasil seja de
tal monta que o surgimento dos meios de comunicação de massa parece se

2 Giulio Cario Argan, História da arte como história da cidade, São Paulo, Martins Fonte
1992, p. 19.

240
CARMELA G R O SS: UM OLH AR EM PERSPECTIVA

impor como os únicos válidos, inclusive a nível político, acima das equipes
governamentais, subservientes à poderosa mole televisiva. Estas considerações
parecem-nos uma necessária reflexão no momento em que abordamos o per­
curso da arte de Carmela Gross. Mas ela terá, por certo, em dias melhores,
por seu espaço conquistado, uma obra inscrita dentro do panorama da arte
brasileira desta segunda metade do século XX.
39.
Jeanete Musatti:
do abismo entre o onírico e a memória
[1994]

A personalidade artística de Jeanete Musatti (1944) pressupõe também


a perseguição de uma forma utópica de viver, embora quase impossível num
país de Terceiro Mundo. Deriva talvez dessa sua atitude vivencial criar situa­
ções denominadas de arte e talvez ela nem saiba se é arte ou não. “A arte é
somente um substituto enquanto for deficiente a beleza da vida”, registrou
certa vez Mondrian. E John Cage escreveu “Perhaps afier ali there is no mes-
sage. In that case one is saved the trouble ofhaving to reply. As the lady said, ‘Well
if it isn t art, th en l like t i . Some (a) were made to hang on a wall, others (b) to
be in a room, still others (a+b)” } Mas no caso de Jeanete Musatti, trata-se de
rara artista que detém o privilégio de um nível cultural elevado; além do mais,
não se passa impunemente por um aprendizado em São Paulo com um ar­
tista como Joan Ponç, oriundo do grupo catalão Dau al Set. A biografia conta.
Como seu recolhimento a partir de 1976 em sítio de Porto Feliz, onde o ob­
jetivo era se dedicar à agricultura orgânica; a utopia implícita, pois faz parte
do sonho. Igualmente vivências como a de Búzios e a de Londres foram pe­
ríodos de vida/trabalho que não permaneceram como vazios em sua trajetó­
ria, pois se configuram antes como fase de absorção de nutrientes, crescimento
interior, para a posterior devolução em forma de manifestações sensíveis com
suas criações. Os registros, anotações, como diários, foram sendo acumula­

1 “Talvez, no fim das contas, não haja mensagem. Nesse caso pode-se livrar do aborreci­
mento de ter de responder. Como diz a moça, ‘Bem, se não é arte, então eu gosto’. Algumas [obras]
foram feitas para serem penduradas na parede (a), outras para ficarem num espaço (b), e ainda ou­
tras (a+b)”. Citado em William C. Seitz, The Art ofAssemblage (a propósito de Robert Rauschen-
berg), Nova York, The Museum ofModern Art, 1961, p. 116.

242
JEA N ETE M U SA TTI: D O ABISM O EN TR E O O N ÍR IC O E A M EMÓRIA

dos, guardados em envelopes, fossem eles areias, colagens, escritos breves,


excertos de leituras, pequenos objetos dos gêneros mais variados. A emergên­
cia de todo esse acervo vinculado a “situações” começou a emergir a partir
de 1980, como conjuntosIassemblages de sonhos, pela justaposição de obje­
tos aparentemente sem nexo. Mas, na verdade, ela nos produzia, assim como
Joseph Cornell, gavetas que “precisam ser abertas para revelar conteúdos
ocultos, objetos ou tampas removidas para ver o que há por baixo, trabalhos
podem ser desmembrados, rearranjados numa ordem diferente, sacudidos, co­
bertos, ouvidos, postos em movimento, e articulados. Convidam à rumina­
ção sobre a natureza da brincadeira e sua relação com a atividade artística, in­
venção humana, e imaginação”.2
Que gênero de trabalho nos apresenta Jeanete Leirner Musatti, que se
afirma profissionalmente omitindo seu nome de família? Ela volteia em tor­
no ao que se denomina de assemblage, reunião de objetos. Aliás, a arrumação
de objetos ordinários é constante na História da Arte, desde a Antigüidade
até os pintores de naturezas-mortas holandeses, como nos recorda William
Seitz na introdução do catálogo da antológica exposição de 1961, no M oM A
(“The Art o f Assemblage”); ou entre os espanhóis do século XVII, acrescen­
taríamos, lembrando Cotán. Jeanete retoma, portanto, consciente ou não,
uma tradição do fazer artístico: objetos reunidos, em arranjos cuidadosos, pre­
sente a técnica da collage na raiz da assemblage, assim como o processo de “as­
sociação” (“ the vague aura ofassociation), vinculado aos movimentos sur­
realistas. A metáfora, diz ainda William Seitz, “é a ferramenta mais impor­
tante do poeta”, a reunião de “duas coisas que são diferentes”.3
Quando Jeanete Musatti nos apresentou em início da década de 80 sua
série maravilhosa de caixas (caixa — cabeça — memória), como a deter o
tempo em linguagem poética, o encantamento diante de suas associações —
fora as forçosas vinculações com toda a linhagem de Dali, Miró, Duchamp,
Picasso, Schwitters, Cornell, Oppenheim, Spoerri, e tantos outros de nosso
século — não nos permitiu ver que “uma definição de uma caixa poderia ser

2 Dawn Ades, “The Transcendental Surrealism of Joseph Cornell”, in Joseph Cornell, No­
va York, Kynaston McShine, The Museum of Modem Art, 1980, p. 29.
3 William C. Seitz, op. cit., p. 13

243
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

como uma espécie de ‘jogo esquecido’, um brinquedo filosófico da era vito­


riana, com ‘partes móveis’ poéticas ou mágicas, obtendo mesmo leve medi-,
da desta poesia ou magia [...] que somente a época de ouro do brinquedo de­
veria justificar ‘a existência da caixa”’.4
N a contemporaneidade, estas formas antecipadoras da assembled art es­
tão implícitas na “colocação, justaposição, e remoção de objetos dentro do
espaço imediatamente acessível à exploração pelo olho e mão”, sendo “uma
atividade com a qual a vida de cada pessoa é cheia, virtualmente desde o nas­
cimento até a morte”.5
Nesta exposição Jeanete Musatti desenvolve toda uma série de trabalhos,
ou abre novos caminhos para além das “caixas”, embora elas estejam ainda
presentes em “Terra, fogo, água, ar”, no gaveteiro em madeira do mostruá-
rio do Retroz Guterman (a nos reportar às lojas de armarinhos de nossa me­
ninice), com as gavetas repletas do encantamento produzido pelas pequenas
pedras brilhantes de quartzo azul, cristal de rocha branco, fumê, jaspe oxinita
e ônix; também com Meu sítio (seqüência de Meu ateliê e M inha casa), onde
materiais diversos estão delicadamente justapostos, indicando a ligação com
a terra e sua produção. Talvez estas três peças, sendo a última Entre oceanos,
retenham antes uma conotação extremamente afetiva, aqui na colagem de
mapas a definir cartograficamente, de modo metafórico, o desenvolvimento
da vida a partir do fenômeno da distância, dado hoje sempre presente em
nossos relacionamentos e prazerosos/dolorosos deslocamentos (rompimen­
tos?) contínuos.6

4 Apud Dawn Ades, op. cit., p. 29. O “brinquedo filosófico” a que se referiu Joseph Cor-
nell, segundo a historiadora Dawn Ades, floresceu em meados do século XIX. Objetivava combi­
nar uma função pedagógica com entretenimento, para instruir a criança nas leis de governar o
universo natural enquanto a divertia ao mesmo tempo. Nesse mesmo trecho cita ainda Baude-
laire, para quem o “brinquedo científico” poderia, segundo escreveu em La Morale du joujou,
“desenvolver no cérebro da criança o gosto por efeitos maravilhosos e surpreendentes”.
’ William C. Seitz, op. cit., p. 9.
6 Interessante seria começar a inventariar os artistas que se fascinam com a visualidade dos
mapas na contemporaneidade: desde Cornell a partir de 1941, aos objetos do argentino Zabala,
nos anos 70, e mais recentemente Kuitca, na última década, além de Adriana Varejão, no Brasil,
entre tantos outros.

244
JEA N ETE M U SATTI: D O ABISM O EN TR E O O N ÍR IC O E A M EMÓRIA

Há, nesta exposição, uma série de reflexões sobre a reprodução da natu­


reza, ao mesmo tempo em que esta comparece como elemento de apropria­
ção para as assemblages propostas por Jeanete Musatti. Considero distinto o
enfoque das formas naturais por esta artista, em comparação com o trabalho
realizado por Frans Krajcberg. Neste vejo o olhar romântico do artista euro­
peu, extasiado diante da natureza incontrolável dos trópicos, seja em suas
monumentais composições transfiguradas, com raízes ou troncos, como dian­
te do uso respeitoso da areia da praia como suporte para a feitura de impres­
sões sutis.
N o caso de Jeanete Musatti, há outra postura, embora esteja presente a
admiração com as formas naturais, como no olhar do viajante europeu do sé­
culo passado ao recolher elementos de nossa botânica e cuidadosamente
manipulá-los, envelopá-los, objetivando sua preservação em caixas e álbuns,
para classificação e eventualmente desenhar-lhes a aparência para registro
científico.
A similitude de processo ao compará-la com Krajcberg se encerra nesse
encantamento pela forma natural. Daí em diante o universo desta artista é
muito mais próximo dos procedimentos surrealizantes, no caso as “associa­
ções”, ou metáforas, já mencionadas, enquanto toda uma magia envolve seu
processo de criação, o impulso ou a intuição predominando sobre a raciona­
lidade. Os objetos recolhidos ou selecionados são alvo de uma longa e absorta
observação, até a emergência do acaso, assim como na captação de uma ma­
neira muito peculiar de inseri-los num contexto — arranjo — visual extre­
mamente pessoal. Refiro-me aos recortes da paisagem desta exposição, nos
quais a delicadeza de propostas e situações nos fascina pela beleza das peças
naturais (elementos arqueológicos como pedras de corte, cristais, quartzos,
fósseis), aos quais incorpora objetos em miniatura, que dão o tom de descon­
certo ao apreciador, a partir da metáfora, o clima onírico pairando sobre boa
parte destas “situações”. A cuidadosa seleção dos materiais com os quais com­
bina as peças “naturais” faz transpirar a afinidade de sua linhagem com a in­
teligência percuciente de um Guto Lacaz, com o colecionismo desnudador
de Jac Leirner, ou, por vezes ainda, com o universo de recolhimento de coi­
sas de Nelson Leirner. Há décadas já que Nelson não mais coleciona colori­
das taças refinadas de cristal, porém nele hoje o afã do colecionador emerge
no observador do meio urbano de uma sociedade paradoxal. Referindo-se ao

245
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

fenômeno da assemblage na arte contemporânea Lawrence Alloway escreveu


que juntar coisas, ou junk art, é arte da cidade. “Sua fonte é a obsolescência,
o descartar de material de cidades, tal como se coleta em gavetas, armários,
áticos, etc. [...] Assemblages desse material chegam ao espectador como peda­
ços de vida, fragmentos do ambiente. O ambiente urbano está presente, en­
tão, como fonte de objetos, seja transfigurado ou isolado”.7
Jeanete Musatti “viaja” e nos transporta em seu escape da realidade com
os Recortes da paisagem, em particular nos mais “encantados”, como o das sete
cadeiras negras em torno à transparência do obelisco de cristal de rocha; ou
frente à tesoura cortando a pedra; e de modo especial na delicadeza de con­
cepção da homenagem a “A Marco Polo, Zebento, o navegador”, onde a cris­
talina tubulação reafirma sua pureza diante da beleza da placa de fóssil res­
peitada pela artista em sua interferência.
Esse mesmo respeito/devoção diante da forma natural a impele à re­
produção da linearidade do desenho sutil de pedras coletadas, incisões ou tê­
nues fios brancos inseridos na superfície polida pela água/tempo em peças
trazidas da Itália. Momento de reflexão, como a desejar absorver a sabedoria
da criação da natureza.
A artista intitula “Reflexões: de Rodin, Michelangelo, a Grécia, na me­
mória brasileira” um trabalho/coleta que tem mais a ver com o cotidiano bra­
sileiro, aparentemente. Isto num gesto primeiro a assinalar uma ansiedade por
tentar apreender o sentido da massificação, nestas peças identificáveis com o
urbano (o pincel, o prendedor de roupas, o objeto de plástico, o rolo de pa­
pel com interferências maliciosas, a vassourinha de mão) ao lado de peças es­
pecificamente populares como a máscara tapirapé, a sandália havaiana, a bor­
racha de Itu. E mesmo nos elementos mais plenos de estranhamento neste
caso, como no jacaré abocanhando dólares, ou nos insetos reunidos numa
moldura kitsch, embora o kitsch esteja a anos-luz de distância das situações
compostas por Jeanete Musatti. Neste conjunto, para exemplificar, além da
transfiguração ocorrida no isolamento físico das peças justapostas, ela opera
uma assepsia que descarna de seu contexto usual as conotações conferidas a
estes materiais selecionados rigorosamente. Aliás, o rigor está sempre presente

7 Lawrence Alloway, apud^illiam C. Seitz, op. cit., p. 73.

246
JEA N ETE M U SATTI: DO ABISMO EN TR E O O N ÍR IC O E A MEMÓRIA

seja em seu trabalho seja no de Jac Leirner (e a relação nos vem quase auto­
mática). Mas no caso deste trabalho, ao contrário dos artistas pop norte-ame­
ricanos e ingleses que nos anos 60 queriam realisticamente colocar-nos diante
da visualidade e dos objetos do mundo americano industrializado e publi-
cizado, Jeanete Musatti parece escolher o sentido contrário. Ela colhe mate­
rial do cotidiano urbano ou suburbano e, a partir de seu processo usual de
trabalho, os converte em objetos estéticos, de uma pureza imaculada, não con­
taminada pela vida.
Esta artista apresenta-nos, ainda, proposições a nos provocar com cami­
nhos que já mostram outras direções de trabalho. Refiro-me à série visceral
dos Colchões, reduzidos em estranha mutilação algo perversa, com insinua­
ções de cenas íntimas ou libidinosas em xerox sobre acetato recorrendo a es­
tampas de séculos passados; aqui, no suporte industrializado, próxima do
leitmotiv que acompanha a trajetória de um Nelson Leirner em sua vinculação
com a produção industrial. Creio que nestas relações já é tempo de se esta­
belecer um nexo, uma coerência a presidir um núcleo importante — o da
família Leirner — no meio artístico contemporâneo em São Paulo.
A fluência da produção atual de Jeanete Musatti parece-nos demonstra­
tiva de uma sensibilidade, como se sua interioridade e o vasto material de
pesquisa lentamente reunidos e que a inspiram de pronto estivessem emer­
gindo, de modo incontido, dentro de um clima particular, que é preservado.
O acaso se impondo, as situações se articulando, aparentemente à maneira
de jogo lúdico, com a magia com que ela envolve os que se aproximam de
sua produção criativa.

247
40.
Uma geração emergente
[1 9 9 4 ]

A principal diferença entre a geração que surgiu no início dos anos 80


e a geração atual, digo, de fins dos anos 80 e início da década de 90, reside
no fato de que a geração anterior significou um retorno ao que se denomi­
nou “o prazer da pintura”. Eram jovens artistas que, por produzirem uma
obra bidimensional que tinha um caráter de permanência, tiveram um fes-
tejamento por parte do mercado de arte, não apenas brasileiro, mas também
no exterior e na América Latina. É como se, após uma longa abstinência de
arte conceituai, o mercado tivesse por fim pinturas, obras palpáveis para ven­
der a um público que se encantou com o vocabulário e a verve desses jovens
artistas. Era uma geração atenta em relação aos pintores que eles passaram a
observar, na Alemanha e na Itália, em particular, assim como nos Estados
Unidos. Era um retorno à figuração em seu primeiro momento (no Brasil,
mais particularmente até a Bienal de 1985, que apresentou a “Grande Te­
la”, de Sheila Leirner, e parecia que todos pintavam parecido, não importando
o seu contexto de procedência). Ocorria também entre certos artistas jovens,
como os do grupo da Casa 7, em São Paulo, uma admiração pelos expres-
sionistas abstratos norte-americanos, em particular no caso de Nuno Ramos
e Paulo Monteiro. Assim como no Rio de Janeiro era considerada uma dire­
ção a pintura, também expressiva em seu abstracionismo gestual, de Jorge
Guinle. Portanto, havia no ar um interesse, não apenas pela pintura que se
fazia na Europa, como pela história da pintura contemporânea.
A segunda metade dos anos 80 alteraria esse panorama. Gradativamente,
a importância que a pintura adquirira nos primeiros anos da década cederia
lugar ao retorno do objeto, à instalação em particular. O conceituai também
comparece como um exemplo, agora na obra sempre especulativa de um
Nuno Ramos. Ocorreu também uma espécie de perda de caminhos de mui­

248
UMA GERAÇÃO EM ER GEN TE

tos artistas que se tornaram conhecidos no início dos anos 80. Começou a
surgir um monocromatismo, que veio junto com a pesquisa de novos mate­
riais, como foi o caso de um artista que começou a projetar-se vivamente no
exterior, o pintor Daniel Senise. A superfície trabalhada, com amoroso cui­
dado, já com um refinamento que beira o maneirismo, não deixa de estar
presente em seu trabalho.
A projeção no exterior através de algumas grandes exposições coletivas
(como “Modernidade”, como as exposições do Brasil em Zurique, em Esto­
colmo e, finalmente, em 1992/93, a exposição da América Latina organiza­
da por Waldo Rasmussen, do M oM A de Nova York), levou o nome de mui­
tos artistas jovens a serem solicitados em outros países. Foi o caso de Jac
Leirner, após seus bem-logrados trabalhos seriais baseados na acumulação,
como aquele em que focaliza o dinheiro, em país de hiper-inflação, e aquele
que focaliza o cigarro Marlboro. Posteriormente, um excesso de demandas
para exibição de seu trabalho a levaria a nem sempre bem-sucedidos resulta­
dos, como a série realizada para a última Documenta de Kassel, baseada em
objetos de aviões (cinzeiros, cobertores, tickets de passagens, talheres etc.).
Todavia, em meio a tantas solicitações feitas a uma jovem artista, difíceis de
recusar e de realizar, Jac Leirner ainda concebeu em Oxford, na Inglaterra,
um trabalho instigante, manipulando a correspondência do museu em que
se apresentou.
Paulo Pasta, por sua vez, é um artista que apresenta também uma coe­
rência rara, tentando desenvolver sua trajetória na pintura com uma serieda­
de madura e sem saltos irreconhecíveis, como foi o caso de tantos outros ar­
tistas dessa geração. Exceções com a manutenção de coerência de percurso são
também visíveis em artistas como Karin Lambrecht, de Porto Alegre, com um
simbolismo denso em suas propostas, uma Leda Catunda, de São Paulo, que
detém por certo um quê de infantilismo banhado num clima neo-pop dos anos
80 e que, embora sempre executando seus trabalhos com assemblages costu­
rados e pintados, passa atualmente por um período de assepsia e construção
que nos era desconhecido no início da década passada.
N o Rio de Janeiro, o grande nome dos anos 80 e 90 é para nós o de
Rosangela Rennó, a trabalhar com a fotografia anônima, manipuladora de
flagrantes e fotos de outros, a projetar a magia da imagem fotográfica sem
autor, ou desprovida de qualidade, porém operando a visualidade com uma

249
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

poética de sensibilidade rara. Tão rara quanto a inventividade de um Guto


Lacaz, na fronteira entre a tecnologia industrial e o Surrealismo.
Nunca as diferenciações de motivação e tendências entre artistas de di­
versas regiões do Brasil se fizeram tão claras, embora aparentemente aqueles
de grandes centros do Sudeste e Sul (Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio
Grande do Sul) estivessem tão atentos ao que se passava na Europa e Esta­
dos Unidos. Assim, surge todo um grupo de artistas preocupados com seu
contexto local no Amazonas — em Belém a personalidade de Emanuel Nas-
sar, que se inspira na visualidade suburbana da cidade em suas pinturas dos
anos 80. Claro que Pernambuco permanece um universo à parte, com rara
exceção como Paulo Bruscky, aberto às informações internacionalistas. Na
Bahia um Mário Cravo Neto, fotógrafo, é a grande luz de um deserto de
criatividade na área de artes visuais em meio à projeção de seus artistas na área
da música popular, grande celeiro do Brasil. Por isso me parece cada vez mais
difícil falar da produção artística no Brasil, nação constituída por vários paí­
ses de cultura tão diversa e difícil de focalizar como um todo. Impossível. Daí
porque o caso de Minas Gerais, creio que o único do Brasil a se configurar
como uma “escola mineira” sem que os próprios artistas o tenham assim de­
nominado, é tão singular. Nessa escola está presente o artesanato, o trabalho
manual realizado pelo artista com uma paciência fora do tempo, quase como
um ritmo de trabalho do século XVIII, e, de certa forma, unindo os artesãos
do Vale do Jequitinhonha, aqueles dos arredores da região de Tiradentes, aos
artistas chamados “eruditos”, como Celso Renato e Amilcar de Castro, vete­
ranos respeitados. O primeiro desenvolvendo composições absolutamente
construtivas sobre suporte de madeira descartável, e o segundo sendo fiel, há
décadas, ao material da terra, o ferro, em sua tão sóbria — quanto sábia —
série de variações sobre o tema da placa de ferro dobrada e/ou fendida, cir­
cular ou quadrada como forma inicial. N um a geração mais nova, Marcos
Coelho Benjamim é o herdeiro mais destacado dessa linhagem ligada à terra
e à tradição do artesanal, assim como Zé Bento e Fernando Lucchesi dos pri­
meiros anos da década de 80, com um misticismo não alheio à religiosidade
que é parte da cultura mineira.
Nunca me interessaram os maneirismos de pintores elegantes, embora
os respeite enquanto profissionais. D aí porque me senti atraída pelas lingua­
gens um tanto dolorosas que percebo em artistas que estão emergindo desde

250
UMA GERAÇÃO EM ERGEN TE

fins dos anos 80, trazendo-nos, como imagem e realização, uma mensagem
do contexto em que vivemos.
Refiro-me a características que observo em certos artistas jovens, hoje
não. mais preocupados com a história da arte contemporânea, nem com cap­
tar as soluções formais de artistas de outros tempos, nem de reproduzir o seu
vocabulário, como se viu nos anos 80.
Todavia, os temas e as teorizações que vemos em críticos da Europa e
dos Estados Unidos sobre a produção contemporânea, o outro, a comunida­
de minoritária, a cultura deslocada de sua origem, desterritorialização cultu­
ral, o enfrentamento da arte de mulheres como exploração de “conceitos que
se referem ao ‘outro’, seja de sexo ou raça, que estão profundamente arraiga­
dos no imaginário coletivo”,1 ou mesmo em reflexões do extraordinário Homi
K. Bhabha sobre o artista que vive fora do seu contexto natal, me parecem
distantes da realidade do meio artístico brasileiro, que vejo fechado, encerra­
do dentro de uma estufa, praticamente fora do universo das preocupações dos
teóricos internacionais, fora as exceções dos artistas que viajam freqüen­
temente ou vivem no exterior e vivenciam esse tipo de debates. Creio que po­
deria atribuir isso a algumas razões: o Brasil vive uma realidade envolvente e
instigante, com nossas crises sucessivas. Neste país podemos nos queixar de
tudo, menos de tédio. A cada dia os jornais televisivos nos impactam com o
que sucede entre nós: seja na política, no esporte, nas finanças, na violência
urbana e rural, na educação, na saúde, na fome. Vivemos viciados num cli­
ma de tensão. É difícil a gente se abstrair desse viver em permanente estado
de choque. Além do mais, o Brasil possui muitas realidades diversas, como
já tentei demonstrar. O Sul/Sudeste industrializado e com influência inter­
nacional, por presença de uma população de descendência européia ou asiá­
tica, mantém contatos com o mundo exterior muito mais intensamente que
outras regiões do Brasil, debruçadas sobre si mesmas. O Brasil, culturalmen­
te falando, em termos de política cultural, na verdade, não mantém relações
de intercâmbio de idéias/exposições, simpósios, com o exterior. Os eventos
que se dão, nessa direção, são excepcionais e resultam de um esforço brutal
por parte de seus organizadores. A Bienal de São Paulo talvez seja nosso úni­

1 Catherine de Zegher, “Inside the Visible”/“Begin the Beguine in Flanders”, abr. 1994.

251
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

co vínculo regular com o exterior na área de artes visuais, daí sua importân­
cia. O que ocorre, sim, é que por paradoxal que possa parecer (dada a ine­
xistência de instituições museológicas fortes e de nível internacional no Bra­
sil), nosso país é hoje um grande celeiro de artistas jovens de qualidade, o que
faz com que curadores, diretores de museus e críticos de arte tenham sua aten­
ção voltada para nós. Sobretudo tendo em vista o baixo interesse por uma
produção artística mais interessante no exterior, onde ocorrem mais retros­
pectivas e revisões do século atualmente que movimentos novos, de interes­
se ou renovação de linguagem.
Quando menciono que o Brasil não possui uma política cultural digna
da criatividade de seu meio cultural quero dizer também que o Brasil não
produz, como mencionei, condições para um intercâmbio regular com ou­
tros países da América Latina, como seria desejável para um mútuo conheci­
mento, como com Europa, Ásia ou Estados Unidos. N a verdade, nossos
museus são, em grandíssima parte de sua programação, hospedeiros de ex­
posições que lhes são oferecidas por outros países, por entidades culturais de
fora, ou simplesmente ainda na base de exposições de consulado. Aparente­
mente não produzem, raramente criam eventos e exposições, por ausência de
verbas, estímulo para desenvolver atividades. Seria também ausência de pes­
soal especializado em fazê-lo? Se assim for, além dos profissionais que temos
à mão, em geral descartados, por que também não recorrer a profissionais do
exterior provocando uma sadia competição? Porém, para tudo isso, são ne­
cessárias verbas, e, ao que tudo indica, as verbas um pouco mais generosas
para a cultura são encaradas como supérfluas e, portanto, inexistentes. Es­
tamos, assim, frente ao mundo culto, para o qual nossos artistas de talento
são chamados a expor e participar de seu meio, sob uma névoa de obscuran­
tismo que vem de cima, das esferas federal, estadual e municipal, que englo­
bam os políticos de nosso país.
Qual a ação possível para sairmos desta contingência?

252
41 .
Espelhos e sombras
[1 9 9 4 ]

“ Que haya suenos es raro, que haya espejos,


Que el usualy gastado repertorio
De cada dia incluya el ilusorio
Orbeprofiindo que urden los reflejos.”
Jorge Luis Borges1

Vivemos tempos de transição difícil que ninguém sabe aonde nos con­
duzirá, e, no entanto, seguimos vivendo como se hoje fosse aparentemente
igual a ontem ou a quando nos fotografaram quando éramos pequenos na
formatura do jardim da infância. Todos sentem o caos, se desesperam dian­
te do pensamento. “Realmente, eu vivo num tempo sombrio”, como escreveu
Brecht, com medo frente ao que virá. N o entanto, nessa dificuldade de pre­
visão do amanhã, nunca o presente foi tão precioso como hoje, seja para os
excluídos, seja para os privilegiados. De repente não estamos mais diante do
tempo definido por Umberto Eco como “forma de espaço dividido em par­
tes regulares” que teria mudado “a forma de percepção de algumas pessoas”.2
Teria desandado de vez a relativa ordem que até pouco tempo presidia
a vida no mundo? Inexistente essa ordem, mesmo o tempo parece assumir
um caráter tumultuado e tenso, não mais o de regulador de nossas ativida­
des,3 mas sim o de gerador de sensibilidades babélicas, embora entre nós, no

1 Jorge Luis Borges, “Los Espejos”, in Jorge Luis Borgesficcionário: una antologia de sus tex­
tos, edición, introducción, prólogos y notas por Emir Rodrigues Monegal, México, DF, Fondo
de Cultura Econômica, 1985.
2 Umberto Eco, “Travei in Hyperreality”, apud Marian Pastor Roces, “Ethos Bathos Pa-
thos”, “Art and Asia Pacific”, Sample Issue, Sidney, 1993, p. 47. Tradução da Autora.
3 “A ocasião me fez pensar sobre há quanto tempo Deus morreu. O que primeiro vem à

253
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Brasil, estejamos ainda longe dos fenômenos observáveis na Europa ou mes­


mo nos Estados Unidos. Nesses lugares posiciona-se excessivamente em rela­
ção ao “politicamente correto”, que ainda não alcançamos (e vejo nisto algu­
ma virtude) por nossa ausência de conscientização. Ou quando se menciona
com tanta ênfase a transterritorialidade cultural, o multiculturalismo e os des­
locamentos que, fora deste país, têm, de fato, um sentido. Aqui, não. Aqui,
pressentem-se os ecos através dos poucos que vão e tornam, das revistas e jor­
nais, da mídia niveladora e manipuladora dos eventos e suas conseqüências.
Não me importa que esta exposição reúna trabalhos ou expressões que
para muitos apareçam antes como extravagâncias de um tempo em que a
“Grande Arte” silenciou sua eloqüência. Creio que estamos bastante distan­
tes de definições conservadoras da arte, tipo David Freedberg quando escre­
veu que “claro que nossos olhos devem ser detidos por algo atraente, mar­
cante, belo — o próprio critério da arte”, nisso implícita, evidentemente, a
emoção.4 Mas a emoção permanece. Talvez estejamos vivenciando o limite
das experimentações, ou o momento em que todas as formas de expressão são
permissíveis. A permissividade parece ser, de fato, a marca deste fim de sé­
culo. No entanto, Susanne Langer, em fins dos anos 50, já escreveu, tentan­
do uma redefinição: “Cada arte gera uma dimensão especial de experiência
que constitui um tipo especial de imagem da realidade”.5

mente, claro, é Friedrich Nitzsche e Die Frohliche Wissenschaft (A gaia ciência, 1886). Nele um lou­
co acende uma lanterna em plena luz do dia e cruza a tumultuada praça do mercado gritando:
‘Deus está morto! E nós o matamos, vocês e eu!’. Em desespero ele se perguntava como isso pode­
ria ter acontecido. Matar a Deus, diz ele, é como beber todo o mar, como apagar a linha do hori­
zonte. Deus está morto, a terra se desprendeu do sol e lâmpadas precisam ser acendidas em plena
luz do dia. O louco fica enfurecido até perceber o olhar cético dos transeuntes, que não pode en­
carar. Arrebenta sua lanterna dizendo: ‘Cheguei cedo demais. Meu tempo ainda está por vir’.”
Cornei Bierens, “On the Conservation of Energy”, Kunst dr Museum, vol. 5, n° 1, 1993, p. 26
(abordando quatro artistas holandeses: Paul van Dongen, Frans Bosch, Erilc Andriesse e Marc
Mulders).
4 David Freedberg, The Power oflmages: Studies in the History and Theory o f Response, Chi­
cago, The University of Chicago Press, 1989, p. 358.
^ Susanne Langer, Los problemas dei arte (diez conferenciasfilosóficas), tradução para o espa­
nhol por Enrique Luis Revol, Buenos Aires, Ediciones Infinito, 1966, pp. 84-5.

254
ESPELH OS E SOMBRAS

Creio que é a partir desse ponto de vista que se deve partilhar ou tentar
a aproximação com esta produção que chamaríamos de manifestações sensí­
veis de uma geração. Principalmente quando estamos num tempo “sem fun­
damento em autoridades constituídas e sem fundamento auto-suficiente no
território da arte”.6 Mário Pedrosa já o disse com outras palavras na segunda
metade dos anos 60, creio que a propósito do Porco empalhado (1966), de
Nelson Leirner, no Salão de Brasília. Acho mais interessante operar este re­
corte num meio artístico heterogêneo como o brasileiro desta última década
do século X X e tentar pinçar alguns jovens nos quais percebo uma diferen­
ciação em relação ao que produzia uma geração emergente em início dos anos
80. Gente em que reconheço uma convicção, uma seriedade, e uma sensibi­
lidade diante da circunstância de cada um, o que já é uma amostragem de
nosso entorno cultural.
Claro que se pode argumentar diante de muitos destes trabalhos que de
novo se está diante de propostas conceituais, de acordo com uma tradição
bem brasileira de certa forma vinculada a uma linguagem construtiva, que
rejeita o expressionismo ou a figuração, privilegiando as manifestações mais
próximas ao minimalismo. Voltamos ao debate proposto por Donald Kuspit:
“Em certo sentido, não interessa qual arte é declarada ser decadente, e qual é
declarada ser avançada; o que conta é a dialética perversa de sua relação”.7
Isto vem bem a propósito num meio cultural colonizado como o nos­
so, onde quase tudo se importa, e onde, como alternativa de nutrição, gran­
de parte dos artistas olham magnetizados as revistas de arte de fora, embora
pouco conheçam da História da Arte de nosso país e mesmo de seus contem­
porâneos ou artistas reconhecidos de duas ou três décadas atrás. Tudo isso

6 Beatriz Sarlo, Escenas de la vida posmoderna: intelectuales, artey videocultura en la Argen­


tina, Buenos Aires, Ariel, 1994, p. 160.
7 O autor coloca em confronto a tendência minimalista de um Donald Judd versus o “com­
promisso representacional” que este artista vê não apenas num Sandro Chia como nos expres-
sionistas abstratos. Assim, é “decadente” para Judd tudo o que não é “avançado”, que é o que nega
a representação. O novo na arte, lembra Kuspit, citando Adorno, “é a contrapartida à reprodução
em expansão do capital na sociedade”. Donald Kuspit, The dialetic ofdecadence, Nova York, Stux
Press/Princeton University Press, 1993, pp. 23 e 65.

255
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

gera aquela sensação que sentimos diante da exposição sobre o século X X em


arte no Brasil preparada pela Bienal de São Paulo este ano, onde, de repente,
fora poucas exceções, o panorama nos pareceu em geral envelhecido, além do
estado de má preservação de certas obras, a denunciar um descaso domésti­
co, assim como da ausência de rigor em sua apresentação, com pouco fres­
cor a justificar sua projeção.
Se no início dos anos 80 ocorria a chamada euforia da pintura, que acar­
retou a satisfação do mercado de arte durante uns poucos anos, antes de uma
crise generalizada que se abate sobre o mundo, no Brasil, o fenômeno não se
limitou ao interesse pelos jovens pintores, porém redundou em convites do
exterior tanto para exposições coletivas como individuais, antes impensáveis
para artistas tão novos. Ninguém é inocente, e percebe que essa abertura ino­
vadora foi resultante da pasmaceira dos meios artísticos internacionais, onde,
nas grandes capitais, o que mais se vê são retrospectivas e revisões, pois o
“novo” não comparece com vitalidade. A partir dos “Magiciens de la Terre”,
o Terceiro Mundo passou a ser buscado como fonte de renovação para o es­
gotamento de uma imagética fatigada.
D a admiração pela arte dos expressionistas abstratos e dos neo-expres-
sionistas europeus e norte-americanos, do materialismo ao monocromatismo
e ao neoconceitual, parece ter sido por aí a trilha difícil de muitos artistas
moços a partir dos anos 80.
Em que se diferenciam estes artistas aqui selecionados dos artistas dos
anos 80? Eu diria que, em visitas a exposições e ateliês e ao Centro Cultural
São Paulo, observara uma visceralidade antes desconhecida, perceptível na
ausência daquele humor que nos anos 80 víamos num Guto Lacaz, numa
Leda Catunda, num Marcelo Cipis e de forma um tanto perversa, porém ins-
tigante, num Zerbini; na presença cada vez mais freqüente de elementos não
detectados no começo dos anos 80, como uma forma dolorosa de registro (ou
expressão, como se queira) da presença da morte, no confronto com o tem­
po, e, por conseqüência, com a memória, na abordagem entre sensual e do­
lorosa com o corpo e suas secreções, e mesmo num misticismo inusual.
Quando todos os materiais imagináveis e inimagináveis são experimen­
tados, continuidade de herança da revolução do pop, sobretudo, a apropria­
ção de objetos, a montagem e a manipulação dos mesmos parece converter
ateliês em oficinas e laboratórios. Isto não é novo já há algum tempo. Mas

256
ESPELH OS E SOMBRAS

em anos mais recentes parece ter afastado os materiais convencionais da pin­


tura de muitos espaços onde se gera uma parte da produção de arte, pelo
menos nos maiores centros urbanos do Brasil. Assim, a pintura se vê em se­
gundo plano, sob esta ótica, enquanto as instalações comparecem de forma
muito marcante: revestidas de mórbida sensualidade, na emergência do mis­
ticismo, e uma consciência do corpo, no tempo projetado através do en­
volvimento com a memória; e também na presença de elementos funéreos.
Este dado conceituai é apenas aparentemente minimalista, pois, embo­
ra impregnado de expressão constrangida, traz uma carga emotiva que não
comparece nos minimalistas norte-americanos ou de tradição racionalista.
Vejo, em suma, uma atitude romântica nesta geração sofrida com a violên­
cia urbana, a crise econômica sem fim, a fome, a aids, as dificuldades em novo
comportamento na relação entre as pessoas, a miséria, a corrupção. Mas es­
tes criadores não parecem ser afetados por tudo isso e neles não percebemos
uma agressividade “politicamente correta” como nas manifestações expostas
na Bienal do Museu Whitney no ano passado (fiel à outra realidade, a nor­
te-americana), ou de forma violenta em Trust (1990), de Hal Hartley, ou em
Short Cuts (1993) no cinema de Robert Altman. Tampouco é a violência es­
cancarada dos noticiários e programas de televisão, porém outra forma de
resposta. N o caso, estas manifestações poéticas surgem contaminadas pela
vida, expressões de doce ou suave repelência, surdas e opacas, a emoção so­
brepondo-se à racionalidade.
Assim, Ana Maria Tavares e Artur Lescher, artistas que emergiram nos
anos 80, e que são antíteses destes dos anos 90, são excepcionais em sua linha
construtiva e especulativa a partir de materiais, embora, no caso de Lescher,
ligada a alquimias misteriosas. A palavra “alquimias” nos transporta a uma
medievalista em potencial que é Flávia Ribeiro, em permanente experimen­
tação com seu suporte, nele gravando imagens/rastros de singular delicade­
za. Para esta artista o material parece definir a forma, produzindo objetos de
tato, de olfato, quase íntimos com a pele do observador. Até seus murmúrios,
ou reflexões visuais, nos modestos Cadernos chineses expressam a sistemática
de comunicação sob a forma de quieto diário pessoal, seguindo a tradição dos
artistas de sempre.
É o corpo, nossa relação com ele, a sensualidade inerente à sua intimi­
dade ou os confrontos que por meio dele parecem desafiar-nos, o que parece

257
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

estar à flor da pele nas obras de Nazareth Pacheco. O corpo visto por meio
dos instrumentos que são utilizados para examinar seus órgãos, ou para abor­
dá-lo cientificamente. Nunca os artistas estiveram tão próximos da medici­
na, das salas de cirurgia, das UTIs, dos laboratórios de análises e pesquisas
químicas. Os exercícios de embelezamento que se confundem com as técni­
cas de tortura são também tema de Nazareth, depois de sua exposição indi­
vidual catártica realizada no ano passado. E, no entanto, eis aqui uma artista
que não constrói um discurso movido por reivindicações de ordem indivi­
dual ou social. Suas propostas têm um envelope formal de limpeza asséptica
quase a ocultar-nos o agente que aflora de sua sensibilidade a uma prática poé­
tica tão contundente.
As delicadezas de expressão de Valeska Soares nos carregam ao univer­
so da sensualidade em suas fotomontagens, como nas pequenas peças tecidas
e pendentes há uns dois anos atrás; assim como nos impressionou quando nos
vimos diante da simbologia da deteriorização da beleza efêmera, em suas ins­
talações com rosas, série de trabalhos sobre os estragos do tempo, embora aqui
se faça presente com um trabalho capaz de atingir mais diretamente os sen­
tidos do observador.
A cenografia solene e maneirista domina com veemência a instalação de
José Francisco Alves, na assemblage alusiva de seus elementos: as duas camas
hospitalares com a ausência de corpos insinuada pelo drapeado composto do
asséptico equipamento.
Mas o corpo está também presente nas propostas de Edgar de Souza, no
abrigo/sarcófago cintilante e perolado, de elaboração quase oriental em seu
desejo de perfeccionismo. Assim como em certas contorções, cuja crueldade
se desfaz pela execução rigorosa, mas que comparecem igualmente em traba­
lho quase minimalista de Adriano Pedrosa (Camiseta vertical). Em suas pro­
postas candentes, estão presentes a assepsia, o minimal e o suprarreal. São dele
também as Cartas anônimas, onde o material, pleno de conotações letais, é a
secreção humana, simultaneamente fonte de vida. O próprio artista/teórico
se interessa por operar no território de sutis insinuações e “na descontex-
tualização de objetos conhecidos e formas”.8

8 Depoimento de Adriano Pedrosa à Autora, 30/6/1994.

258
ESPELH OS E SOMBRAS

Este olhar o corpo projetado de fora para dentro está explícito também
nas galerias de vísceras de intrincada arquitetura, elaboradas por Caíto. Falar
em morbidez/sensualidade nesta exposição é mencionar de imediato o nosso
convidado especial Ivens Machado, grande artista, ativo há mais de vinte e
cinco anos, e que nesta mostra atua como o veterano que, curiosamente, tem
uma linha de intensa afinidade com esta produção que emerge em fins dos
anos 80. Quando vi sua produção mais recente, na Galeria Luisa Strina, há
cerca de oito anos, vinculei-o à arte de carregada sensibilidade erótica, sufi­
cientemente explícita em seu caso do ponto de vista formal. A sensualidade
mórbida incomodativa, de estranho magnetismo, se irradia de peças bem aca­
badas, perfeitas em sua simulação de abandono.
Essa sensualidade bate com a dificuldade/necessidade compulsiva da
abordagem do sexo com um distanciamento/intimidade visíveis nos trabalhos
de Sandra Tucci, cujas flores para mim há muito têm uma conotação mor­
tuária (“Flores flores para los muertos", anuncia uma vendedora de flores, não
lembro bem se no início de um último ato de Carmen ou num texto teatral
de Camus, mesmo antes de encontrar a menção de Jorge Luis Borges, para
quem “sempre as flores vigiaram a morte”). Flores tesas, agora harmoniosa e
sinistramente desvestidas de cor, flores/sexo (em trabalhos anteriores da ar­
tista, flores vaginais a obstacularizar a penetração), agressivas na heteroge-
neidade de elementos gritantes em seu núcleo, embora aparentemente com­
portadas à distância.
O corpo, molemente tratado, langoroso, está também presente na pro­
posta de Geórgia Creimer, que parte da fisicalidade do espaço como supor­
te, nele integrando uma imagética que persegue há algum tempo — formas
pendentes com referências sutis a fragmentos do corpo humano em repouso
— em clima onírico que é uma constante em sua produção.
Existe algo de ritualístico em Paulo Climachauska, que parece montar
suas assemblages como quem prepara um altar de devoção, em seu caso ple­
no de conotações a equipamentos hospitalares, ou na contraposição mármo­
re intemporal versus matéria vegetal orgânica em decomposição. Essa mesma
atitude litúrgica de dispor suas peças, como um monge preservando seu es­
paço de meditação, aparece em Iran do Espírito Santo, que nos traz propos­
tas poéticas com seus rostos fora do tempo (Borges: “Lo han despojado dei
diverso mundo! De los rostros, que son lo que eran antes,! De las cercanas calles,

259
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

hoy distantes,/ Ydei côncavo azul, ayerprofundo [...] Ypensar que no existia sin
esos tenues instrumentos, los ojos”):9 límpidos, fixos, frente aos dois painéis de
rigoroso quadriculado, vestígios de exatidão.
O tempo perseguido, marcado, acentuado é visível no trabalho de Fer­
nando Limberger, com os restos/fragmentos deteriorados de mobiliário e
componentes de habitações urbanas que tenta reunir com uma construção,
que nos remete novamente a Borges (que nos persegue na feitura deste texto):
“ [...] Duermen dei otro lado de las puertas! Aquellos que por obra de los suenos/
Son en la sombra visionaria duenos/ D el vasto ayer e de las cosas muertas" ,10
Já Jean Guimarães revela os negativos “trabalhados” pelo fotógrafo anô­
nimo, que desfaz com traços expressivos — “envelhecer no retoque para re­
moçar o retrato” — resgatando em “anti-retrato” um fantasma, segundo o
próprio autor, produzindo outras imagens, autônomas em si, com as marcas
implacáveis do tempo.
Como ver o fascínio por nostalgia de um tempo pretérito em tão jovem
personalidade como Mônica Rubinho, em quem adivinhamos a vinculação
concretizada com o poema, resultante de introversão que pode ser também
uma intimidade com o recôndito, o oculto de memórias sensoriais? Ou, quem
sabe, uma rejeição ao presente, um refugio poético num espaço individual,
salvaguardado dos móveis externos.
Espelhos em sentido figurado surgem com força nos reflexos e miragens
de Edith Derdyk, na revelação do ritmo das suturas pela mão que vai cons­
truindo o painel transparente organicamente, compulsivamente, com capri­
chos, desenhos sucessivos. Escala impensada na transfiguração tecida de ma­
teriais descartáveis (plásticos transparentes), aos quais confere uma dignida­
de austera em ocupação espacial vigorosa.
Falando em transparências, é Lina Kim quem nos traz um trabalho de
rara beleza pela sutileza de sua visualidade, ao abordar a problemática da den­
sidade com materiais aparentemente paradoxais (o diáfano tecido de organza

5 Jorge Luis Borges, “El ciego” e “Historia de la noche”, in Emir Rodrigues Monegal (org.),
Jorge Luis Borges ficcionario: una antologia de sus textos, Cidade do México, Fondo de Cultura
Econômica, 1985, p. 396.
10 Jorge Luis Borges, “Adrogué”, op. cit., p. 356.
ESPELH OS E SOMBRAS

sobre as pequenas cápsulas de chumbo), o que, surpreendentemente, a pró­


pria artista nega, ao declarar que o existente “é um corpo único, coeso, que
dispensa relações duais de ordem matérica”. A peça, de extensão alongada
como imagem de sonho, tem como suporte o piso, a reafirmar a gravidade
terrena versus o etéreo que é seu contraponto poético.
A leitura das proposições especulares de Lucia Koch, que brinca com o
real e o virtual através das composições com dezenas de pequenos espelhos,
nos conduz a labirintos em que o olho do observador joga com “un imposible
espacio de reflejos” 11 (novamente Borges!), através do vidro cristalino, maté-
ria-prima dos espelhos, tornado mágico pela mão transfiguradora.
O resgate da “amnésia de nossa história”, parafraseando Homi K. Bha-
bha, é operado por Rosangela Rennó, atenta aos eventos, aos homens que
desempenharam um papel nesses eventos ou foram vítimas deles. Esta amante
apaixonada da imagem fotográfica anônima, a nosso ver a mais interessante
das artistas da geração surgida no Rio de Janeiro nos anos 80, é fiel, neste sen­
tido, à vinculação da fotografia/realidade. Que ela manipula com inven­
tividade e poética, como no caso destes textos referentes ao assassínio de
menores na Candelária, no Rio de Janeiro, em 1993 e extraído daquilo que
denomina de “Arquivo Universal” .12 Neste trabalho ela substitui os negatifs
trouvés, usualmente matéria-prima de seu trabalho, pela imagem/legenda
jornalística a “retratar” o evento violento.
Se a rigidez da morte parece acompanhar as assemblages de Elisa Cam­
pos, com unhas e cabelos, dejetos do corpo, por vezes com morbidez assus­
tadora, outras composições suas, com fios de cabelos tecendo uma frágil fita
de “Moebius”, se aproximam das delicadezas de Fernanda Gomes, há pouco
vista na Galeria Luisa Strina, em mostra rica de sensibilidade feminina.

11 Jorge Luis Borges, “Los espejos”, op. cit., p. 349.


12 Depoimento de Rosangela Rennó à Autora, em julho de 1994. O “Arquivo Universal”,
segundo a artista, “é um inventário infinito de textos extraídos de jornais, contendo informações
sobre fotografia e sobre as inúmeras relações entre o homem e a representação fotográfica de seu
semelhante. Este Arquivo, constituído pela ausência da imagem, contém paradoxalmente todas as
imagens fotográficas do mundo: todas as que já foram feitas, aquelas que se realizam neste mo­
mento e todas as que virão”.

261
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Inspirada em peculiar arquitetura, gavetas cemiteriais, Vera Martins


desenvolveu toda uma série de belos relevos sobre a rústica lona, nos quais o
quadrado é a base de seus exercícios compositivos construtivos, aliados sem­
pre a um opaco e refinado cromatismo. Mas é Geórgia Kyriakakis quem atin­
ge maior expressividade nesse limite entre “a queda e a desintegração do cor­
po”, como diz a artista: “O fogo decreta a falência da matéria do papel, le­
va-o ao limite de sua fragilidade”, porém, simultaneamente, Geórgia controla
o processo de sua alquimia obtendo qualidades de sombra e texturas, através
da matéria calcinada. A forma (como no caso de Flávia Ribeiro) é antes re­
sultante da manipulação de seu material, e não o leitmotiv desta artista, que
trabalha com papéis, de consistências e tato diversos, obtendo transfigurações
reveladoras, assim como experimenta o barro com delicadezas singulares sem
abrir mão de uma coerência de trajetória.
A forma de apresentação dos trabalhos de Karin Schneider pode fazer
lembrar o museu de zoologia, a clínica veterinária ou os arquivos documen­
tais de um viajante do século passado pela América Latina. N o entanto, esta
gaúcha da região missioneira do Rio Grande nos passa antes a emoção com
que aborda insetos e animais por cuja morte não é responsável, mas a ela são
trazidos. “Trabalho a morte por sua vinculação com a vida”, diz ela, referindo-
se ao autobiográfico existente em seus trabalhos, referindo-se à sua meninice
no campo e a seu apego a animais cujo sacrifício assistia cotidianamente. As­
sim, o desejo de deter o tempo, de impedir o fim da matéria que se desfaz,
colocou-a a meio caminho entre a veterinária e a escultura. Debatendo-se en­
tre a emoção e o sangue frio, participando da dissecação de órgãos humanos,
estudou com Chico Stockinger, em Porto Alegre, que a iniciou em trabalhos
com bronze, mármore e cera, o que a levaria à resina acrílica, desde 1990. Se
seu drama era conservar órgãos, impedir sua decomposição, começou pouco
depois a copiar com cera fragmentos de órgãos humanos, antes de iniciar-se
no processo de paralisar a deteriorização dos animais com que trabalha com
formol e resina. Tratar-se-ia de uma versão brasileira de Damien Hirst, se
Karin Schneider fosse mais cerebral, pois o considera antes como minimalista
e racional. Entretanto, o mesmo fascínio que sobre ela exercem os processos
a paralisar a decomposição também comparece em Hirst quando ele declara
que gosta da “violência dos objetos inanimados”, assim como quando expressa
a idéia de que “a morte é uma idéia inaceitável, de modo que a única manei­

262
ESPELH OS E SOMBRAS

ra de tratá-la é estar distanciado ou ironizar”.13 H á em Karin Schneider um


móvel que é o mesmo do artista inglês, que declara: “Ao tratar com cadáve­
res, me senti inicialmente horrorizado e, depois, quando olhei com mais in­
tensidade, a morte desapareceu. Creio que a única maneira de dirigir-se ao
tema é mediante a metáfora”.14
N a dificuldade de sintonizar “o novo” na arte de hoje parece-nos váli­
do revelar esta faceta da criatividade em sincronia com o clima perturbador
de um tempo. Romântico em seu individualismo acirrado e, na aparência,
fechado ao mundo em que nos movemos.

13 Michele S. Cone, “Territórios/Una entrevista com Damien Hirst”, Centro Atlântico de


Arte Moderno, Gran Canárias, Atlântica/Internacional — Revista de Artes, n° 7, Primavera 1994,
pp. 48-51.
Para Hirst, a ênfase que hoje se dá ao corpo é mais um formalismo que não o atrai, daí
porque trabalha agora com instalações que oscilam desde o minimalismo até o gênero “naturezas-
mortas”; instalações, como “Farmácia”, de 1992, em escala natural, verdadeira transposição do
tema ao nível do hiperrealismo tout court. Idem, ibidem, p. 51.

263
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Inspirada em peculiar arquitetura, gavetas cemiteriais, Vera Martins


desenvolveu toda uma série de belos relevos sobre a rústica lona, nos quais o
quadrado é a base de seus exercícios compositivos construtivos, aliados sem­
pre a um opaco e refinado cromatismo. Mas é Geórgia Kyriakakis quem atin­
ge maior expressividade nesse limite entre “a queda e a desintegração do cor­
po”, como diz a artista: “O fogo decreta a falência da matéria do papel, le­
va-o ao limite de sua fragilidade”, porém, simultaneamente, Geórgia controla
o processo de sua alquimia obtendo qualidades de sombra e texturas, através
da matéria calcinada. A forma (como no caso de Flávia Ribeiro) é antes re­
sultante da manipulação de seu material, e não o leitmotiv desta artista, que
trabalha com papéis, de consistências e tato diversos, obtendo transfigurações
reveladoras, assim como experimenta o barro com delicadezas singulares sem
abrir mão de uma coerência de trajetória.
A forma de apresentação dos trabalhos de Karin Schneider pode fazer
lembrar o museu de zoologia, a clínica veterinária ou os arquivos documen­
tais de um viajante do século passado pela América Latina. N o entanto, esta
gaúcha da região missioneira do Rio Grande nos passa antes a emoção com
que aborda insetos e animais por cuja morte não é responsável, mas a ela são
trazidos. “Trabalho a morte por sua vinculação com a vida”, diz ela, referindo-
se ao autobiográfico existente em seus trabalhos, referindo-se à sua meninice
no campo e a seu apego a animais cujo sacrifício assistia cotidianamente. As­
sim, o desejo de deter o tempo, de impedir o fim da matéria que se desfaz,
colocou-a a meio caminho entre a veterinária e a escultura. Debatendo-se en­
tre a emoção e o sangue frio, participando da dissecação de órgãos humanos,
estudou com Chico Stockinger, em Porto Alegre, que a iniciou em trabalhos
com bronze, mármore e cera, o que a levaria à resina acrílica, desde 1990. Se
seu drama era conservar órgãos, impedir sua decomposição, começou pouco
depois a copiar com cera fragmentos de órgãos humanos, antes de iniciar-se
no processo de paralisar a deteriorização dos animais com que trabalha com
formol e resina. Tratar-se-ia de uma versão brasileira de Damien Hirst, se
Karin Schneider fosse mais cerebral, pois o considera antes como minimalista
e racional. Entretanto, o mesmo fascínio que sobre ela exercem os processos
a paralisar a decomposição também comparece em Hirst quando ele declara
que gosta da “violência dos objetos inanimados”, assim como quando expressa
a idéia de que “a morte é uma idéia inaceitável, de modo que a única manei­

262
ESPELH OS E SOMBRAS

ra de tratá-la é estar distanciado ou ironizar”.13 H á em Karin Schneider um


móvel que é o mesmo do artista inglês, que declara: “Ao tratar com cadáve­
res, me senti inicialmente horrorizado e, depois, quando olhei com mais in­
tensidade, a morte desapareceu. Creio que a única maneira de dirigir-se ao
tema é mediante a metáfora”.14
N a dificuldade de sintonizar “o novo” na arte de hoje parece-nos váli­
do revelar esta faceta da criatividade em sincronia com o clima perturbador
de um tempo. Romântico em seu individualismo acirrado e, na aparência,
fechado ao mundo em que nos movemos.

13 Michele S. Cone, “Territórios/Una entrevista com Damien Hirst”, Centro Atlântico de


Arte Moderno, Gran Canárias, Atlântica!Internacional — Revista de Artes, n° 7, Primavera 1994,
pp. 48-51.

14 Para Hirst, a ênfase que hoje se dá ao corpo é mais um formalismo que não o atrai, daí
porque trabalha agora com instalações que oscilam desde o minimalismo até o gênero “naturezas-
mortas”; instalações, como “Farmácia”, de 1992, em escala natural, verdadeira transposição do
tema ao nível do hiperrealismo tout court. Idem, ibidem, p. 51.

263
42.
Voluntarismo de Cravo Neto
[1 9 9 5 ]

A impressão inicial do receptor é a de impacto visual diante da primei­


ra obra. Vem depois a percepção da majestática instalação das fotografias, so­
lene em sua espacialidade, aparentemente ascética como uma Praça de Armas
hispânica na América, ou o Escoriai, obsessão de um Felipe II na onda con-
tra-reformista do Concilio de Trento. A colocação seqüencial das peças, em
ritmo pausado e constante, exige fôlego do visitante despreparado. A ordem
se impõe, hierática, nas imagens que os olhos vão recebendo, quase sob hip­
nose dirigida. O dado autoritário está implícito na maneira com que o artis­
ta nos faz percorrer sua galeria de obras: em close total, a imagem, entrando-
nos pelo olhar, impedindo-nos de deixar perceber, desde um fio de cabelo,
até os poros de onde nascem os pêlos da barba, as protuberâncias da pele, sua
umidade natural ou provocada, no suor, nas linhas da face — rugas — sen­
sações táteis, enfim, que Cravo Neto nos enfia garganta abaixo com estas
imagens nas quais a luz tem papel tão fundamental quanto as superfícies or­
gânicas que explora em intimidade por vezes constrangedora.
Se é verdade que, através da aproximação máxima, Mário Cravo Neto
(1947) obtém atmosfera peculiar para seu discurso imagético, o corpo, atra­
vés do fragmento, continua sendo o tema, a partir do ângulo proposto/im-
posto pelo artista. D aí a ambigüidade das imagens focalizadas pelo olho/
câmera do fotógrafo. Daí sua diferenciação do realismo sexual de um Mapple-
thorpe, ou em certa afinidade com este artista por sua predileção pela plas­
ticidade do corpo negro.
As distorções nos fazem buscar localizar o fragmento do corpo focaliza­
do, ou tentar retraçar a posição extravagante da câmera frente à pose deter­
minada, pois nada é espontâneo nestes trabalhos. As imagens invariavelmente

264
V O LU N TA R ISM O D E CRAVO N ET O

diante de um espaço sombrio, infinito, nos remetem às superfícies de lona


trabalhadas pelo tempo, que o mesmo artista utilizava em suas instalações,
apresentadas no início dos anos 80, na Galeria Arco, em São Paulo. Mas não
seriam também táteis suas esculturas de areias coloridas, retidas em cilindros
transparentes de acrílico dos anos 70?
Nestas 58 fotos definitivas — reunião/síntese de sua produção dos úl­
timos dez anos em cópias de quase um metro por um metro, trabalhadas
artesanalmente por Cravo Neto e Silvio Pinhatti — identificamos a presen­
ça do escultor, no fotógrafo que trabalha, sempre, sobre a matéria. Sensual,
sistemático, impositivo em relação ao enfoque e à pose, em que a lei da
frontalidade é sempre imperativa, a paralisação da pose como regra. Nesta
constatação, a rejeição total do flagrante, do instantâneo. Cravo Neto traba­
lha, de fato, como um pintor rigoroso de composições de naturezas-mortas
ou retratos, a exigência e a reflexão dominando o gesto posterior do executor
do trabalho concebido mentalmente. Assim, a figura humana deste artista nos
vem à memória, aparentemente frágil em sua timidez, ele se revela profissio­
nal absolutamente experiente, quando o trabalho é a fixação fotográfica de
imagem. Utiliza-se do close total, agressivo em sua proximidade máxima do
olho do observador na busca de ângulos que exploram ambigüidades extre­
mas através da posição da câmera diante das formas orgânicas do tema usual
— o corpo — ou frente à luz que adquire importância fundamental na con­
cepção do trabalho. E ainda é preciso considerar em suas composições a in­
serção de objetos estranhos ao corpo sobre o qual é colocado, com formas,
texturas, dureza de superfícies outras, mais uma vez enfatizando a presença
do escultor preocupado com a problemática da forma e do material: penu­
gem, cobre, ferro, ave, peixe, dorso de cão, esfera, pedra, ovo, tule.
A exposição de Cravo Neto não se resume nesta verdadeira “instalação”
como um todo, em sua concepção para a apresentação do conjunto de seu
trabalho, porém cada foto é como uma performancefigée, uma body art para­
lisada, instalações insólitas magnificadas pela câmera implacável na apreen­
são da imagem. Fotografias de estúdio, como nos recorda Peter Weiermeier,
e, aliás, Mapplethorpe também. Mas aqui o artista se fazendo presente em
sua fascinação por texturas, escultor/pintor a utilizar-se da fotografia, dentro
da mais que procedente linhagem de um Brancusi que se exercita na foto­
grafia, ou de um Cartier-Bresson que pratica a pintura.

265
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

H á uma ênfase no conceituai, que se impõe pela racionalização no apon­


tar a descarga emocional através da imagem. Rara vez, como em Sacrifício V,
de 1989, é dado ao olhar do receptor o deslocamento através das formas em
insinuação de movimento retido na composição. Por outro lado, a magia do
tátil, a comunicação da pele se dá pelo fascínio de uma superfície viva atra­
vés da penugem, porosidade, umidade visualmente transmitida. Toca-se com
o olhar, na intimidade em que nos coloca este artista na plenitude de sua
maturidade. Muito além do mítico, que o exterior pode nele vislumbrar pela
atração que o etnológico sempre despertou diante do dado “exótico” (embora
o exótico seja sempre “o outro”, o diferente de nós). D aí o imaginar-se que
aquilo que o estrangeiro vê em Cravo Neto também é “uma viagem” sobre a
fantasia que um artista brasileiro pode projetar através de uma obra que, neste
caso, irradia uma sensualidade violenta.
A importância da luz é outro dado que nos faz refletir sobre a vivência
escultórica deste artista. A luz, nestes trabalhos, é tão fundamental quanto o
era para Rodin em seus mármores, ou para Sérgio Camargo em suas constru­
ções abstratas também em mármore branco de Carrara e em cujos trabalhos
víamos quatro elementos básicos: forma, material, polimento e a incidência
luminosa, ou as partes imersas na sombra, a definir o caráter de sua obra.
Nestas imagens em seqüência cabe perceber uma relação nem sempre
muito clara, porém intrigante, velada, do autor com seus modelos. Ou seja,
as imagens parecem assinalar o ritmo desse processo fotógrafo-modelo-com-
posição-fotografia. Não deve ser por acaso que, com exceção das fotos em que
os títulos sugerem “situações”, o artista nomeia os modelos, como Mapple-
thorpe também o faz (embora neste não exista a proximidade imagética má­
xima de Cravo Neto, nem a sensibilidade da luz de nosso artista): Manuel,
Geraldo, Francisco, Angela, Lukas, a mãe do artista, Cravo pai, Eduardo,
Tinho, Lua, Cristian etc. Transparece aí uma familiaridade, a comunicar um
tempo do intercâmbio para o preparo e a produção da imagem.
Esta exposição/instalação de Cravo Neto resulta num impacto inegável,
tal a intensidade de sua visualidade. É paradoxal, por essa mesma razão, que
ao deixar o espaço expositivo venha a ansiedade de esquecer as imagens rece­
bidas, demasiado densas na penetração sensorial e perturbadoras na medida
em que envolvem nossa intimidade pelo voluntarismo de seu criador.

266
43.
Visita a Caetano de Almeida
[ 1 9 96 ]

Caetano de Almeida (1964) trabalha a pintura em estado de confron­


tação, a mesma atitude em relação à História da Arte, ironizando a proble­
mática da unicidade da obra de arte, embora os trabalhos anteriores já tives­
sem prenunciado a relação com sua temática e imagética. Sempre partira de
imagens de segunda geração, apropriações de livros, periódicos, dicionários,
enciclopédias. Coube-lhe sempre ser o idealizador, autor do conceito, segun­
do o qual manipulava as imagens reunindo-as em composições pictóricas, ou
instalações, como no caso de Lusco fusco, quatro amplas telas iguais pela cria­
ção/cópia do artista, expostas frente a frente. O u seja, Caetano sempre prati­
cou a pintura de forma questionadora. Um meio convencional de expressão
há milênios, mas adequada à projeção de suas idéias a respeito da represen­
tação. Agora, na medida em que reafirma seu interesse pelo problema da
reprodutibilidade, vemos surgir uma complexidade maior nesta série de in­
tervenções em imagens apropriadas da História da Arte. Além de lidar com
a reprodução, aborda a imagem, o suporte, a percepção óptica, ou como o
olho é afetado por sua interferência sobre a superfície bidimensional.
Conceituai antes de tudo, contraditório e instigante assim é seu traba­
lho atual, sobretudo quando diz que busca “um romantismo cartesiano”.
Ninguém ignora que ainda vivemos num período romântico, que se arrasta
há mais de um século e meio. Romantismo peculiar, de individualismo acir­
rado na batalha contra a massificação da cultura, no isolacionismo angustia­
do que se contrapõe violentamente à padronização do comportamento gera­
do pela sociedade consumista. N a verdade, ao retirar da representação todo
e qualquer sentido do belo que presidiu a intenção dos artistas que criaram
as obras de que ele se apropria, a fim de “deixar só o suspiro das imagens”,
Caetano de Almeida determina um processo de complexidade maior. Des­

267
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

poja estas pinturas identificáveis por conhecedores da História da Arte de suas


qualidades pictóricas que as tornaram únicas, desveste-as do cromatismo que
marcou seus autores apenas preservando a luz, por ele desconstruída e mani­
pulada através de uma sistemática deliberada. Em síntese, é como se estives­
se procedendo ao “desmanche” da pintura, devolvendo ao observador atra­
vés de sua proposta um simulacro da pintura na tênue superfície que capta a
luminosidade com retículas estouradas, assim como do verso da fisicalidade
do quadro, o chassis exposto, tarjas aparentemente presentes como descuido
calculado, laterais, ou nos quatro lados da imagem. O chassis visível pertur­
bando a visualidade da imagem parece anunciar, parafraseando Magritte, “isto
é uma pintura”, embora seja uma pintura “ausente”, etérea, a partir da figu­
ração desimportante, o “belo” como intenção a quilômetros de distância dos
propósitos deste artista, embora o perfeccionismo seja inerente a seu traba­
lho. Porque sempre foi uma de suas características a obsessão com a fatura, o
pintor agora debruçado em pensar a Arte a partir da problemática da luz,
como para Fiaminghi, nos anos 60, ou nas especulações de Alain Jacquet, da
França, vistas na Bienal de São Paulo em 1964, na versão reticulada do De-
jeunersur 1‘herbe-, ou mesmo aproximando-se de Nelson Leirner, na série das
Santas ceias, de alguns anos atrás. Anotei não sei se de Barnett Newman ou
de Ad Reinhardt, que em nossos dias é impossível saber se alguma coisa é
original a menos que todos estejam fazendo a mesma coisa. N o início dos
anos 80, houve um pouco dessa onda de mesmice, desfeita em parte depois
de 1985. Mas, na verdade, a pintura hoje é desafiadora para o artista inquie­
to pelas provocações que ela pode suscitar (claro que fora dos maneirismos
de um Balthus). N o caso de Caetano, os enigmas sempre fascinantes da re­
produção, a imagem por seu valor intrínseco, a presença viva do suporte que
em princípio deveria desfazer a “magia” do retângulo do espaço virtual —
todos esses dados atirados, com um aveludado de gesto de gato, à percepção
do olhar do observador.

268
44.
Geórgia Kyriakakis
[1 9 9 6 ]

Lembro-me de declaração de Geórgia Kyriakakis sobre o limite entre “a


queda e a desintegração do corpo”, ao mencionar que “o fogo decreta a fa­
lência da matéria do papel, leva-o ao limite de sua fragilidade”. Exercer o
controle da incineração — o papel preparado numa performance que tem
muito do ritual com que era executado, para essa alteração física violenta, de­
terminada pela artista, por ela própria manipulada — detinha muito do pra­
zer de seu fazer artístico. Nessa sua ação emergia uma forma aleatória, surgida
parcialmente com a colaboração do acaso, posto que adquiria visibilidade a
partir de seu processo de trabalho.
Depois do papel, o barro. H á cerca de dois anos, Geórgia Kyriakakis fez
experimentações com cerâmica e porcelana. Sua energia pessoal mexe, assim,
com elementos primordiais para a sobrevivência do homem no mundo: a
água, a terra, o fogo. Curiosamente, ela constata em recente estada em work-
shop na Holanda que tanto o barro (a terra) com que trabalha no momento,
como o papel, suporte obrigatório para seus trabalhos até o ano passado, são
constituídos de elementos semelhantes: alumínio, oxigênio e sílica, com a
diferença de que a água comparece mais no barro, em contraposição ao oxi­
do de carbono no papel. Porém, 99% dos elementos presentes na terra —
oxigênio e alumínio — estão contidos também na feitura do papel. Que nasce
da madeira, que vem da árvore, que se nutre da terra. Como se ela estivesse
trabalhando em cima de suportes ou materiais aparentemente distintos, po­
rém de natureza similar.
Experimental, alquimista, manipuladora incansável de materiais os mais
diversos: chumbo, fios de cobre, papel queimado. Agora, porém, “tecendo”
formas naturais, superfícies convexas se não fossem continentes irregulares,
finas películas de cerâmica não-utilitária, dobraduras orgânicas que Geórgia
acaricia/molda, nelas permanecendo impressos seus gestos. Essas peças, de­

269
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

vidamente revestidas de papel protetor em suas paredes externas, assim co­


mo recheadas de amarfanhado papel de jornal, depois de cozidas, adquirirão
o aspecto de folhas mortas tombadas pelo vento de outono, tal a leveza de
sua fisicalidade. N a verdade, este trabalho da artista, ao empilhar com apa­
rente displicência estas delicadezas de cerâmica sobre o piso, formas informes
carregadas de gestos, ao lado das cinzas de jornais que as rechearam em seu
processo de realização, é agente vivo de simbolismo na medição do tempo.
Suas impressões sobre a matéria são equivalentes a uma ampulheta que se
reergue ao final de cada ciclo, ritmo inexorável que vivenciamos medindo
também nossa permanência. A matéria se transmuta no interior e no exte­
rior — na peça de cerâmica como no jornal colocado em sua parte interna,
como ninho amorosamente preparado nestes recipientes orgânicos; formas
que se constituem em remanescentes da extensão do rastro e movimento de
suas mãos; frágil como seus papéis calcinados com chumbo, mas agora tra­
balho atemporal e, portanto, imensurável, qual atividade de Sísifo, enigmá­
tica em sua elaboração obsessiva. Assim, neste processo atual de queimar pe­
ças para sua execução está implícito igualmente o contrário do uso do fogo
que “decreta a falência da matéria” aludida. Ou seja, aparece uma resultante
de dupla vertente: preservação desta mesma matéria, em labor cotidiano que
retorna sempre, como aquele que caracteriza os gestos do comportamento da
mulher através dos séculos. Em expressiva dicotomia, surge nestes experimen­
tos de Geórgia Kyriakakis, além da abordagem do tempo, a precariedade das
coisas, frente à tênue fisicalidade das cinzas.
Também o obsessivo — existente num Roman Opalka no confronto
com o tempo, ou nas “repetições” constantes nos trabalhos de Carmela Gross
— adquire aqui conotações de mutabilidade pelas infinitas variações em torno
do mesmo tema enquanto forma e pelas novas alquimias perseguidas para a
obtenção de efeitos em visualidades emergentes, quando Geórgia opera so­
bre a superfície bidimensional. Mas, no caso das peças desta instalação, a es­
cala, a dimensão captada no registro fotográfico desaparecem totalmente
diante da quase imaterialidade do resultado poético. Folha, flor, rastro, ges­
to inacabado nos módulos únicos (forma exterior), e reflexão simultaneamen­
te (configuração interna, nódulos de cinzas em efêmera materialidade) —
aceitação no embate com o extemporâneo?

270
45.
A propósito da arte construtora:
das poéticas visuais às interferências urbanas
[1 9 9 6 ]

Num tempo em que mudou fundamentalmente a natureza da arte, num


momento em que mesmo que se reconheça que “a arte não está morta”, o
que se vê hoje em Bienais, Documentas e grandes exposições internacionais
e/ou nacionais se aproxima mais de uma sensibilidade expressiva que daqui­
lo que tradicionalmente nos acostumamos a chamar de “arte”.
Pouco importa. M uda a natureza da arte, muda conseqüentemente o
lugar da arte. Galeria, museu, Bienal, meio urbano, manifestações efêmeras
mais que permanentes, assim talvez possamos definir o que vemos por toda
a parte, neste fim de século X X pós-pós-moderno. Neoliberalismo, globa­
lização das economias, perda de valores éticos, morais, políticos que estive­
ram vigentes até alguns anos atrás. As transgressões éticas brutais a ocorrer
na genética, através da medicina, ou em relação a direitos humanos em paí­
ses assentados nas Nações Unidas, por exemplo, são incomparavelmente mais
violentas do que ocorre ao nível artístico e mesmo social — onde é possível
a mobilização no meio sindical ou revolução no meio operário?
Nesse sentido, o terreno da subversão mudou também de lugar, e mes­
mo antigos militantes institucionais, como as Forças Armadas ou o proleta­
riado, que no passado possuíam táticas, ainda não puderam se preparar para
uma nova realidade ou formas de ação. D aí termos a impressão de que o
mundo tenha ficado paralisado neste final de século pela rapidez das trans­
formações. Essa circunstância abrange também a área artística, bem como a
nossa cultura. E nossa participação talvez ocorra exatamente pelo fato de não
nos rebelarmos contra o caos ou a subversão implantados por toda a parte,
numa surda conquista que não se denomina de guerra.
D o ponto de vista geracional, confesso minha desilusão por desejar
recolocar a “ordem”, embora possa parecer uma utopia sem retorno. Daí

271
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

minha funda impressão quando vejo Nelson Brissac trabalhando ou fazendo


propostas sobre o meio urbano degradado, a desejar dialogar nesse espaço de
tensionamento, segundo diz ele, com essa realidade.
Procedente de outra geração, concebi diante dos novos discursos poéti­
cos, em 1994, a exposição “Espelhos e Sombras”, realizada no Museu de Arte
Moderna de São Paulo, baseada em sensibilidades emergentes e bastante
distintas daquelas de inícios dos anos 80, fundadas então na retomada da
pintura.
Já se disse que “a verdadeira criatividade de nosso tempo é a antítese de
qualquer coisa que venha a ser oficialmente reconhecida como ‘arte’”. A arte
se tornou uma parte integrante da sociedade contemporânea e uma “nova”
arte só pode existir como uma superação da sociedade contemporânea como
um todo. “Pode existir somente como criação de novas formas de ação.” 1
Nelson Brissac é mais realista ao enfocar ações artísticas, mais que ins­
talações, num meio urbano caótico, violento, congestionado como o de São
Paulo, embora nem por isso menos energizante. Ele defende a retirada das
obras “das instituições culturais, dos circuitos de exibição estabelecidos, dos
padrões convencionais de classificação e levá-las a um diálogo mais amplo.
Não tomar as obras isoladamente, mas como intervenções num espaço mais
complexo. Redefinir o lugar da obra de arte contemporânea, a partir da sua
integração com outras linguagens e outros suportes. Sítio que não é necessa­
riamente uma localização topográfica, mas o campo criado por essas articula­
ções. Os trabalhos específicos ao lugar levam para fora do ateliê tradicional,
substituído pela indústria, a mídia e o urbanismo”.2
“Arte Construtora”, que agora desenvolve um trabalho na Ilha da Pól­
vora, em frente a Porto Alegre, se define como “projeto pensado por artistas
que criam trabalhos para lugares escolhidos nas cidades. Privilegia a poética
do deslocamento, produzindo modificações provisórias em espaços urbanos
significativos”. Este grupo, que já desenvolveu trabalhos em “sítios específi­
cos” em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, se guia como conceituação

1 “Rivolta, lo spettacolo e il gioco”, apud Situacionist International: La rivoluzione dellArte


Moderna e TArte Moderna delia rivoluzione. Trad. de Cario Merlis, Turim, Nautilus, 1996, p. 27.
2 Nelson Brissac, Paisagens urbanas, São Paulo, Senac/Fapesp, 1996, p. 13.

272
A PRO PÓ SITO DA AR TE CO N STR U T O R A : DAS POÉTICAS VISUAIS ÀS IN TERFERÊN CIAS URBANAS

para seus eventos em objetivos próximos a idéias perseguidas também na


Europa e na América do Norte, num híbrido de eventos efêmeros vincula­
dos à natureza, à preocupação ecológica, ou à arquitetura de centros urbanos.
Poder-se-ia acrescentar que o princípio do “jogo” não está descartado nesta
proposta — no sentido de jogo subversivo, transgressivo, embora lúdico — ,
levando-se em conta que a “revolução é essencialmente um jogo e quem o
joga o faz pelo prazer que encontra nele. A sua dinâmica é a urgência subje­
tiva de viver, não o altruísmo”.3
Assim, apropriar-se de um determinado território (de uma arquitetura
escolhida, arruinada, mal-conservada, preservada ou abandonada) e deste fa­
zer mais que uma cenografia, transformá-lo em contexto para atitudes, ges­
tos, intervenções efêmeras está na raiz de um trabalho que se iniciou sem pro­
gramação definida, sem manifestos impactantes ou entrevistas gritantes. Mas
vêm, porém, em sua continuidade, se configurando como uma “ação” da mais
instigante atualidade neste marasmo da arte, quando o meio cultural é mar­
cado por retrospectivas didáticas ou consagratórias.
Indagado, Fernando Limberger me diz que pouco importa que nestes
eventos concebidos na articulação entre a arquitetura e a natureza vegetal
circundante grande parte dos visitantes não se dê conta de que se trata de
interferências realizadas num processo no tempo e no espaço que se confi­
guram como o próprio trabalho que se objetiva em princípio. Ou seja, pela
mescla de intelecto, emoção e ação lúdica. É desimportante que sejam efê­
meros, e, aliás, a não-permanência das intervenções é a própria razão de cada
edição dos eventos. Como um poema falado oralmente, que desperta em al­
guns uma certa emoção e passa desapercebido aos demais. N a verdade, não
há interesse pelo “outro” por parte do artista em geral, e particularmente neste
gênero de trabalho. Sua subjetividade está latente, daí porque mais uma vez
acredito que vivemos um período de intenso e interminável romantismo. A
multidão e a realidade das massas do mundo contemporâneo empurram cada
vez mais as personalidades mais sensíveis à solidão de seu trabalho individual,
frente à prancheta, ao monitor do computador ou do vídeo para fruir desem­

3 “Rivoluzione come gioco”, apudSituacionistInternational: La rivoluzione dellArteModerna


e lArte Moderna delia rivoluzione, op. cit., p. 33.

273
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

penhos ou prazeres visuais, por mais melancólico que isso nos pareça. A des­
preocupação com o “outro” também surge do desencanto pela incapacidade
de a arte mudar o mundo.
O fato de o projeto se auto-intitular “Arte Construtora”, a partir de
1994, nos remete à denominação ambígua, pois construir significa perma­
nência, o que não é o princípio que os move. Fernando Limberger esclare­
ceu que a escolha do nome tem o intuito de não fazer confusão com “cons­
trutivo”. Seria realmente um equívoco, tendo em vista movimentos do iní­
cio e meados do século XX, uma vez superada a utopia modernista. Porém,
a escolha do nome do projeto teria antes a conotação de “reforma”, ou alte­
ração, transformação de um sítio dado, a partir de suas intervenções.
Curioso que esta última Bienal de São Paulo tenha tido como tema a
“desmaterialização da obra de arte” e, portanto, deveria ter sido mais atenta
a formas sensíveis de expressão, como as deste grupo que agora realiza inter­
ferências poéticas na Ilha da Pólvora. N o entanto, contraditoriamente, ape­
sar de ser uma tendência que se alastra pelo mundo (a das intervenções em
espaços paisagísticos e arquitetônicos urbanos), não houve nenhum gesto da
Bienal para deles se aproximar. Assim como não há lugar numa Bienal ou Do­
cumenta para este tipo de manifestação, sendo seu espaço mais apropriado
para criações mais convencionais, ou de índole tecnológica. A interferência
na natureza, na arquitetura ou no espaço, é, de per si, transgressora, o que
entraria em confronto com algumas propostas que, no recinto da Bienal, não
têm razão de ser, como foi o caso do trabalho de Barrio. Queremos com isso
dizer que talvez as Bienais estejam dentro do clima da arte do século XX, arte
moderna, e tudo o que for pós-moderno ou já no limiar de uma nova poéti­
ca escapa a seu território. O u envelheceu o conceito das Bienais, ou muda­
ram tanto as formas expressivas que deixam de ter sentido em seu espaço com
novas indagações ou propostas.
A natureza/vegetação tem sido o contexto para as interferências realiza­
das por este grupo, seja no Solar Grandjean de Montigny, no Rio de Janei­
ro, como na Casa Modernista, em São Paulo, e agora na Ilha da Pólvora, em
Porto Alegre. Se fosse o caso de representações de ruínas e vegetações estas
ações nos evocariam Piranesi. N o entanto, estamos distantes de cantar um
passado clássico perdido, iluminado pela poesia do tempo, visualmente cons­
truído pela vegetação. Perdura aqui certamente a motivação de um passado

274
A PRO PÓ SITO DA ARTE CO N STR U T O RA : DAS POÉTICAS VISUAIS ÀS IN TERFERÊN CIAS URBANAS

recente desmanchado pelo entorno subtropical. Não se pensa na história, em


termos de grandeza perdida, mas permanece a poética frente ao trabalho da
natureza não preservada. D a mesma maneira inexistente a preocupação eco­
lógica participante, mas a natureza parece estar presente nestes eventos como
elemento poético fundamental. N o caso de Lucia Koch, a iluminação elétri­
ca, sob várias formas, inclusive com lâmpadas infravermelhas, ou o reflexo, a
partir de espelhos e projeção de sombras, tem sido elemento básico de trans­
figuração de superfícies em vários trabalhos anteriores. Já a utilização de
dejetos, detritos da sociedade industrializada, em “arqueologia” poética, foi
utilizada de forma bem construída, por Nina Moraes, em sua obsessão por
vidros e materiais diversos, assim como por Fernando Limberger em suas
reinvençóes de “móveis” manipulados, reinseridos na vegetação do jardim no
evento do Rio de Janeiro. A integração de fragmentos de cimento na simu­
lação de uma “horta” foi utilizada por Luisa Meyer, no Parque Modernista
em São Paulo. Já no Solar dos Câmara (1992), Luisa trabalhara com gesso,
apropriando-se do molde de garrafas de refrigerantes na simulação de elemen­
tos tridimensionais, a dialogar com ornatos preexistentes no local. Fizeram
parte das interferências realizadas nos projetos anteriores alguns elementos ex­
ternos a esses espaços arquitetônicos e paisagísticos, como papel prateado
(Jimmy Leroy, em São Paulo, a sugerir espaço virtual na piscina vazia da Casa
Modernista, em novembro de 1994); tecidos de colorido vibrante penden­
tes de árvores em meio do caminho e pinturas anódinas mescladas àquelas
de sua autoria por Marijane Ricacheneisky, em ambiente abandonado de sa­
la de cursos, em antigo pavilhão do mesmo local, em São Paulo; ou mesmo
o painel recheado de chicletes coloridos a convidar os visitantes a ampliar a
sua proposta (Elcio Rossini, no Rio de Janeiro). Essas intervenções, mesmo
aquelas movidas por claro gesto de ordenação do espaço, como no trabalho
realizado por Limberger, na Casa Modernista, em São Paulo, não chegam a
infundir a esses sítios uma vida nova — como a desejar revitalizá-los — , po­
rém criam antes um clima de estranhamento peculiar, onde a ironia não pa­
rece ausente.
Fora do ateliê, fora de museus e galerias. Esse objetivo fora também o
objetivo de artistas jovens de fins dos anos 60 e começo de 70: o artista em
contato com a cidade e sua problemática. Lembramo-nos, a propósito, de
“Arte no Aterro”, no Rio de Janeiro dessa época, e de “Domingos da Cria­

275
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

ção”, este último coordenado por Frederico Morais. Em São Paulo, o even­
to “Carimbos e Bandeiras”, liderado por Flávio Motta, com Carmela Gross,
Leirner e Nitsche, também se realizou na rua, em plena avenida Brasil. A di­
ferença mais expressiva entre os trabalhos destes artistas e aqueles que parti­
cipam dos eventos “Arte/Cidade”, de Nelson Brissac — já com sua terceira
edição para início de 1997 — é a ausência de agressividade por parte dos in­
tegrantes do grupo “Arte Construtora”, não sobre o tensionamento de um
meio urbano permeado de violência e deterioração, porém a partir da rela­
ção paisagismo/natureza / arquitetura.
Assim, vejo rara ou nenhuma influência de tecnologias nestas interven­
ções, e mais uma espécie de “arqueologia poética” em curso durante o pro­
cesso de realização do evento. Seus participantes partem de motivações dife­
renciadas a partir da observação atenta do local da ação neste evento da Ilha
da Pólvora. Alguns vêm com idéias preconcebidas que adequam ao espaço
encontrado, outros se deixam levar, ou partem, de materiais encontrados na
exploração/limpeza/ordenação do terreno como inspiração para seus traba­
lhos — Jim m y Leroy, Nina Moraes e Rochelle. Outros realizam um proce­
dimento combinado de motivação: o espaço e suas circunstâncias, que fasci­
nam pelo clima de aventura, do achado, da manipulação dos elementos para
seus trabalhos apresentados. É o caso de Marepe, a nos evocar as improvi­
sações e inventividade de Robinson Crusoé e Sexta-Feira, a “fabricar”, com
o que encontra, meios para sua sobrevivência. Aqui, os artistas inventam, a
partir de sua cultura, uma visualidade surpreendente, como ver o outro a par­
tir de nosso repertório cultural. Talvez esteja aí implícita a impossibilidade
de desligamento. Em outros casos vimos o espaço e elementos manipulados
a partir da observação, assim como com a ajuda de materiais levados à ilha
em conseqüência da observação do sítio. Foram os casos de Elcio Rossini,
vinculando natureza/arquitetura e a concepção desses dois elementos através
do aproveitamento de um ponto de vista direcionado pelo artista. Assim
como Fernando Limberger, a nos propor concentrações intensas de luz/cor
delimitadas por doze pequenas caixas quadradas de madeira e papelão, dis­
postas irregularmente dentro do recinto de quatro paredes já desprovidas de
telhado, e atuando elas como um contraponto ordenador de espaço envol­
vente, de densa vegetação da Casa da Pólvora — que, na verdade, mais se pa­
rece a uma arquitetura religiosa, com escadaria, janelas ogivais, nave. Já Ro-

276
A PRO PÓ SITO DA AR TE CO N STR U T O R A : DAS POÉTICAS VISUAIS ÀS IN TERFERÊN CIAS URBANAS

chelle Costi captou a transfiguração de roupas encontradas, em exposição


fantasmal, baile contínuo ao sabor do vento, peças rotas, desfeitas pelo uso e
abandono, e, de repente, praticamente resgatadas. N o entanto, as roupas
pousadas sobre a terra nos remetem de imediato às roupas que, em grandes
centros como São Paulo, os sem-casa lavam e dispõem para secagem nas pra­
ças públicas. Assim, em dois tempos, ela nos introduz a uma poética e nos
faz retornar à realidade urbana cotidiana.
Entre os que trouxeram materiais de fora da ilha a partir da observação
do espaço chamam a atenção Mimma Lunardi e Elaine Tedesco: esta com a
disposição aparentemente aleatória de frágeis mosquiteiros de tule em meio
à vegetação, em coerência com participação no evento do Rio de Janeiro, no
Solar Grandjean de Montigny. M imma Lunardi, por sua vez, obtém bela
realização em que a luxuosa textura e coloração de veludos e cordas grossas,
atracados aos troncos de árvores, se articula em diálogo vigoroso com estes
elementos fortes da natureza.
Outros, como Jim m y Leroy, agem para a construção de sua torre efê­
mera exclusivamente a partir de materiais encontrados, como o bambu. Ao
contrário de Marijane Ricacheneisky, que ordena cuidadosamente no recin­
to que escolheu desenhos e pinturas, além de reconstruir no piso uma repre­
sentação da forma da ilha em que se realiza o evento. Lucia Koch se encerra
na pequena cabana que ocupa: seu espaço é o encantamento do interior trans­
figurado pelos filtros com que veda a luz externa nas pequenas janelas, assim
como persiste em utilização da luz elétrica com o aro ou mandala de lâmpa­
das no chão, em clareira do bambuzal verde. Luisa Meyer constrói formas tri­
dimensionais em concreto e cimento branco de difícil decodificação enquan­
to representação (que por vezes lembram fragmentos de caras de animais).
N o preparo do evento e em sua concretização o que emerge ao visitan­
te da Ilha da Pólvora é, por certo, o encantamento dos participantes com o
entorno explorado, a atitude respeitosa perante a natureza e os materiais en­
contrados. Percebe-se que foi fundamental para cada um o processo de que
todos participam. Embora não tenhamos acompanhado o “desvendar” do
sítio ocupado no evento, adivinhamos as surpresas frente aos materiais en­
contrados, uma solidária inter-ação, no sentido do grupo interagindo harmo­
niosamente, em tentativa de atuar cada qual sem invadir o desenvolvimento
do outro. Ao mesmo tempo percebe-se estar à flor da pele o prazer do conví­

277
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

vio entre eles. Isso não significa que os artistas formem um grupo que traba­
lha lado a lado, juntos, num mesmo ateliê, porém que todos desenvolvem seu
discurso como um coletivo, envolvidos pelo contexto motivador natureza/
arquitetura.
Referimo-nos já ao “jogo” como proposta pelo caráter lúdico implícito
na realização destas intervenções em sítios específicos. O planejamento, con­
tudo, deve sempre ser rigorosamente executado de acordo com o desafio que
cada um desses projetos se constitui para o grupo de artistas participantes, não
apenas na escolha do local, que não é nunca absolutamente ao acaso. Ao que
se acrescenta a tentativa de obtenção de apoio financeiro e infra-estrutura, em
sua predileção por sítios históricos ou marcantes na história de nossa arqui­
tetura nos séculos XIX e XX: o Solar que tem o nome de Grandjean de Mon-
tigny, o arquiteto a trazer ao Rio de Janeiro, com a Missão Lebreton, o Neo-
clássico que ele também já implantara na Alemanha, quando estava a serviço
de Luís Bonaparte, se não me equivoco, sendo o autor do palácio onde hoje
se realizam as Documentas, em Kassel; o Ecletismo, no Solar dos Câmara,
de Porto Alegre; e a Casa Modernista, de 1927, de Gregori Warchavchik, pa­
ra nossa vergonha em estado deplorável de abandono por ocasião do evento
deste grupo.

278
46.
Marcelo Grassmann, gravador
[1 9 9 6 ]

O arquiteto colombiano Rogelio Salmona, talvez o mais ilustre arqui­


teto deste continente, em palestra na FAU-USP, em São Paulo, lembrou que
Gabriel Garcia Márquez disse certa vez que só se pode ser um bom escritor
quando se conhece toda a literatura. D a mesma forma, só se pode fazer uma
boa arquitetura quando se conhece tudo o que já se fez em arquitetura atra­
vés dos tempos, posto que arquitetura não é somente intuição, mas tem uma
racionalidade baseada, é claro, na experiência.
Não creio que em arte seja diferente. Os artistas jovens acreditam mui­
to no talento, na sensibilidade, na experimentação de materiais, porém na
freqüente ausência de anim a em muitos artistas, percebe-se implícita uma
indiferença pela cultura, pelo conhecimento da História da Arte, como se
fosse um terreno que não lhes pertencesse. Mas eles se enganam e correm o
risco de desejar apresentar, como novas, coisas já vistas; de perder a humil­
dade diante da criatividade já veiculada no mundo, em particular no século
XX. Ver avidamente revistas como Art Forum, Art News, Art in America, Flash
A rt ou outras, nunca foi o caminho da inspiração, porém da informação so­
bre o que se passa. O importante para um ser humano sensível é viver. A pro­
dução artística, ou a necessidade de expressão, vem como uma decorrência
dessa experiência vivencial, desse confronto com a vida e o cotidiano interior
ou exterior.
Marcelo Grassmann, assim como Amilcar de Castro, é a antítese do ar­
tista como “atitude” . Não se busque neles o desejar épater pela roupa, por
extravagâncias de comportamento ou coisas similares. Afinal, não pertencem
à geração dos anos 60, e sim à anterior. Talvez por uma postura de seriedade
extrema como conhecedores da vida e da arte, no sentido de que somos de­

279
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

masiado pequenos para ansiar que nos imponhamos por artifícios que, na
peneira do tempo, serão dejetos, cedendo lugar somente àquilo que é mais
substancial.
Marcelo Grassmann, em seu juvenil aspecto trabalhado pelos anos, é um
pouco assim. Mantém suas inquietações que sempre o acompanharam, não
fala de cátedra, embora sinta a segurança e detenha a ironia dos que sabem
ver, porque muito já observou e tirou suas ilações, não parece ter ilusões quan­
to ao valor exato da obra de arte frente ao gigantesco peso da experiência
humana visível no mundo.
Fazer o elogio do homem-artista não é difícil diante de Grassmann: o
artista que vive exclusivamente em função de seu espaço criativo. Em reco­
lhimento constante e silencioso no segredo das vivências acumuladas ao lon­
go dos anos. Uma vida dedicada à arte, à sua história, à contemplação de suas
tendências através dos séculos, atento e solitário frente à sua própria produ­
ção, Marcelo Grassmann pode parecer um espécimen raro, quando visto à
luz dos artistas jovens ou mesmo não tão jovens que circulam no meio artís­
tico. Ele é uma prova concreta, pela solidez de sua criação, de que é uma fa­
lácia ficar observando apenas os artistas muito jovens e menosprezarmos os
criadores maduros. Estes podem irradiar uma lição de vida e de fazer artísti­
co para muita gente, tal como ocorreu com Mira Schendel no início da dé­
cada passada quando os artistas moços começaram a freqüentar sua casa, in­
teressados em sua obra e personalidade. Mas o caso de Mira foi uma exce­
ção, embora ela tivesse, em comum com Marcelo, esse exercício da solidão
envolvendo sua criatividade.
Não estou parafraseando Maria Bonomi, mas meu primeiro contato
com a figura de Marcelo Grassmann foi também nos dias de montagem da
I Bienal de São Paulo, no Trianon da avenida Paulista, espaço adaptado por
Luís Saia para o evento, em 1951: de macacão, ele, Aldemir Martins e Frans
Krajcberg estavam discutindo num canto do espaço as obras que chegavam,
saíam das embalagens e iam sendo dispostas nas salas, em trabalho conjun­
to, cheio de surpresas. Assim os conheci: artistas operários, cientes de que
estavam participando de um evento importante para a cidade e para sua pró­
pria curiosidade intelectual de jovens artistas.
Marcelo Grassmann nos lembra a linhagem solitária, em seu aspecto fí­
sico aparentemente áspero, hirto e introvertido, de um Goeldi, de um Livio

280
MARCELO GRASSM ANN, GRAVADOR

Abramo e também identificável na timidez de um Evandro Carlos Jardim.


Seria a gravura que detém o signo de seu universo, tornando-os aparentemen­
te avessos a uma sociabilidade cultivada por outros artistas pintores? O fato
é que há uma identidade no comportamento esquivo destes gravadores, que,
para mim, há longo tempo, parece estar vinculado a seu fazer, a suas experi­
mentações, à sua alquimia secreta onde o acaso é freqüentador assíduo.
Grassmann pertence à jovem geração dos anos 40. Sua emergência ocor­
re na exposição dos quatro “Novíssimos” — Grassmann, Otávio Araújo,
Sacilotto e Andreatini — de São Paulo, apresentados no Rio de Janeiro, capi­
tal da República, e já então criticados por seu Expressionismo (aliás, houve­
ra uma exposição dos alemães antinazistas na nova Galeria Askenazy no Rio
de Janeiro, no ano anterior, mostra de que os jovens paulistas só tomariam
conhecimento quando apresentada no MASP, à rua Sete de Abril, em 1948).
Esse Expressionismo, aliás, reapareceria na exposição dos “ 19 Pintores”, de
1947, na Galeria Prestes Maia, patrocinada pela União Cultural Brasil-Esta-
dos Unidos. O Expressionismo era a tônica da inovação para os moços desta
geração — de Marina Caram a Waldemar Cordeiro, a Sacilotto, a Geraldo
de Barros — em contraposição ao “popularismo” adocicado de alguns pinto­
res mais velhos da Família Artística Paulista, de Pennacchi, ou a fase de en­
tão de uma Anita Malfatti, e mesmo de certas obras de Tarsila (O casamento,
de 1940). O Expressionismo era, por sua vez, caracterizado como uma ten­
dência internacionalista contra a qual se deveria lutar, postura inclusive do
ex-expressionista Lasar Segall. Sem maiores contemplações, o próprio Geraldo
Ferraz, em seu artigo “Os ‘ 19’”, de 1947, afirma que “volto a achar neles mal
que venham me repetir informações da antologia expressionista” sem ter a
vivência sofrida dos artistas que saíam da Primeira Guerra Mundial, e acha
que “hoje os expressionistas pisam terra conquistada, arada, já tendo dado his­
toricamente todos os seus frutos”.1
Seria uma vontade de sair do estilo “popularista” (a expressão é de M á­
rio Schenberg) dos anos 40 no Brasil, o que levava os moços artistas dessa
década a buscar como reação o Expressionismo? Seria a catástrofe da Segun­

1 Ver de Aracy Amaral, O desenhojovem dos anos 40, São Paulo, Pinacoteca do Estado, Se­
cretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, São Paulo, 11/11/1976.

281
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

da Guerra Mundial que os impelia a buscar numa tendência dramática a for­


ma expressiva que contivesse uma força emocional? Seriam as personalidades
de Goeldi e Livio Abramo no caso de Grassmann? Quer-me parecer que,
neste caso, sim. Porque o desenho de Marcelo aprendido na secção de enta­
lhe do Instituto Profissional Masculino do Brás era um desenho primoroso,
ornato puro, preparação para o trabalho sobre a madeira, com todas as fili­
granas do vocabulário barroco, o individualismo contido, na vitória do fazer
artesanal de uma escola.
E Grassmann, já desenhando posteriormente como autodidata, reconhe­
ce que foram as gravuras de Goeldi, reproduzidas no Suplemento do jornal
A M anhã do Rio de Janeiro, que deram uma visão nova para a sua obra. A
Secção de Arte da Biblioteca Municipal de São Paulo também lhe serviu de
fonte de inspiração. Ali viu expressionistas como Nolde, Kirchner, Beck-
mann, Schmidt-Rottluff.
Em suas primeiras gravuras em madeira, de 1944-1945, o traço é o bran­
co, a luz, as influências se sobrepõem, desde a figura de mulher, cubistizada
em sua construção, à figura kokoschkiana em seu barroquismo torturado.
Assim como a figura sentada expressionista nos traz à mente um Schmidt-
Rottluff. São gravuras rusticamente lavradas, lembrando monotipias.
O contato com a obra de Livio Abramo e seu trabalho com madeira de
topo influiria sobre Grassmann: a partir de 1949 vemos aparecer composi­
ções circulares, onde o traço é freqüentemente negro, o arabesco presente, o
pontilhado, o risco estriado, quase um rendado propiciado pela gravura de
topo, dominam as imagens, por vezes quase abstratas. Os “dois cavalos”, que
apareciam em seus trabalhos anteriores de maior rudeza, surgem agora con­
torcidos, cavalos-enguias, bicéfalos, a fatura de seus torsos se confundindo
com o fundo, figura-fundo, quase estelares. O próprio artista reconhece, em
depoimento, que o excesso de elaboração traz implícito a perda de intensi­
dade dramática. As gravuras de 1950 trazem a imagem fantasmagórica que
parece emergir, impactante. É quando expõe no Rio de Janeiro, com o reco­
nhecimento de Oswaldo Goeldi, que lhe dá o conselho de menos técnica e
mais expressividade. Mesmo nas gravuras em madeira de fio, a elaboração é
mais contida, mantendo a dramaticidade emotiva.
As xilos de 1949 trazem à nossa observação a série que Grassmann de­
nomina de Os cavalheiros noturnos ou militares, “à maneira de Masereel”,

282
M ARCELO GRASSMANN, GRAVADOR

como lembra o artista, em negro recortado sobre fundo branco, quase como
as figuras negras de vasos gregos. Angulosas, são composições de movimento
centrífugo, circular. Encasacados ou encartolados, chipanzés exercitando-se
em atitudes rituais parecem desenvolver um diálogo mudo uns frente a ou­
tros, ou em danças macabras, bode versus militar uniformizado, militar com
bode diante do mistério do espelho, da imagem refletida.
O curioso da trajetória de Grassmann é que ele mesmo se volta para
novas técnicas ao aparentemente dominar totalmente a técnica praticada, em
busca de desafios. Assim, inicia-se na litografia em 1950, indo estudar no Li­
ceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, em curso dado por Poty Lazzarotto,
graças à existência de uma prensa no local. Depois da I Bienal, no ateliê de
Mário Cravo, na Bahia, que possuía à época umas vinte pedras oferecidas por
Ciccillo Matarazzo ao escultor baiano, desenvolve a série das harpias, apre­
sentadas na I Bienal de forma rudimentar. Percebe-se nessas litos o desenho
mais fluente, a caligrafia mais rápida, como a transferência direta de um de­
senho para a pedra. O “par dançando”, por exemplo, parece-nos excepcional
entre os macabros ou fantasmagóricos que tinha realizado até então.
Segundo depoimento do artista, a permanência em Viena lhe propor­
ciona não apenas informação da História da Arte e contato com exposições,
como um estímulo no enriquecimento de sua técnica. Assim, ao crayon lito-
gráfico com que define suas figuras e embates entre figuras é acrescentado um
fundo de aguadas com lápis litográfico, com desembaraço crescente no uso
de tonalidades antes não perceptíveis em seus trabalhos.
De pronto a mancha torna-se-lhe tão importante quanto a precisão li­
near, enquanto a gestualidade comparece com certa sensualidade e mesmo
eroticamente como na imagem das meninas-donzelas brincando com o javali,
tal Vênus coberta de véus. É como se comparecesse, na complexidade que
começam a adquirir as composições, uma certa “picturalidade”, na fase de
Viena, neste artista que nunca se desejou pintor, seja na mancha menciona­
da, seja no fundo, no inacabado. O arabesco lado a lado com o linear. O de­
senho clássico do “estudo” e a caligrafia obsessiva de marca expressionista {Os
três bois), em que se impõe a dramaticidade do negro.
A luz em Marcelo Grassmann é a luz de iluminação direta sobre os per­
sonagens que focaliza, na série de litos, ou é iluminação tênue, sem ênfase
maior. O poeta da linha fora do tempo: gótico ou renascentista, sempre in­

283
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

teressado pela História da Arte, das mitologias, das parábolas, do Oriente,


enfim, com o equipamento de um artista maior. José Geraldo Vieira já em
1956 — embora sempre desconfiássemos do erudito palavrório difícil deste
crítico da Folha da M anhã — enumerara os elementos do vocabulário do ar­
tista: sereias, esqueletos macabros, súcubos e íncubos, harpias aladas, peixes,
o zoomórfico alado, os rastejantes alados, vinculando-o ao bestiário do uni­
verso mágico de Bosch e Brueghel.2 O Expressionismo se deteve no sofrimen­
to do homem, na condição humana, em síntese, na dilaceração conseqüente
à Primeira Guerra Mundial (e penso em particular numa Kaethe Kollwitz).
Mas o universo de Grassmann é bem outro. É o da morte, da simbologia
macabra do inferno apavorante com suas figuras inventadas pelo medie-
valismo assustador. É o que se disse de Kubin, diferenciando-o de Beckmann:
este “dramatiza o quadro da morte que ele vê como um fenômeno de nossa
existência humana, ao passo que Kubin mostra a morte sem insistir demais
sobre o mundo cotidiano ou conhecido. Ele suprime a lembrança de um real
que Beckmann se contenta em deformar”.3 Assim como Kubin, Marcelo
Grassmann povoa suas imagens, tomando emprestado de Renée Riese Hu-
bert, com “as criaturas míticas, vampiros, aves de rapina, ratazanas, tudo o
que a imaginação artística e popular associa com a morte”. Nem mesmo a
natureza vegetal o atrai, na verdade. Apenas esses seres, seu olhar, assim como
os personagens de outros tempos, cavaleiros armados dos quais apenas a bo­
ca e o olhar são discerníveis em nosso temor.
Mas é vasta a multiplicidade de faces do Expressionismo. D aí recusar­
mos a afirmação de Clement Greenberg, quando nomeia o Expressionismo
como um fenômeno cultural, delimitado regionalmente, tendo abrangido
apenas os artistas do mundo nórdico. Por que desvincular o Expressionismo
simbolista de Munch, mais próximo do curvilíneo universo do art nouveau,
do mundo demoníaco de Lebenstein, aparentado, em sua imagética, com
Grassmann? Ou mesmo com o de Cuevas em certos trabalhos?

2 José Geraldo Vieira, “A arte do fantástico”, São Paulo, Habitat, n° 27, fev. 1956, p. 56.
3 Renée Riese Hubert, Le Triomphe de la mort chez Kubin, apud Lionel Richard (org.),
“L’Expressionisme allemand”, Paris, Obliques, n° 6-7, 1976, pp. 247-8.

284
M ARCELO GRASSM ANN, GRAVADOR

Nesta exposição desejamos trazer aos olhos e à reflexão dos observado­


res de um outro tempo os dez primeiros anos de inquietação profissional de
Marcelo Grassmann: de 1944, quando inicia suas primeiras gravuras em xilo,
às suas realizações em lito do período baiano e das obras feitas na estada em
Viena, após a obtenção de seu Prêmio de Viagem pelo Salão Nacional de Ar­
te Moderna, até seu retorno em 1955. Ou seja, quando agora entra em seus
70 anos, jovial e erudito, tal exposição torna-se uma tentativa de abrir uma
discussão sobre a trajetória exemplar, em sua coerência, de um artista bra­
sileiro, num país que parece cultivar certa perversidade em relação às contri­
buições de seus criadores em artes.

285
47.
Regina Silveira: vocação internacionalista
[1 9 9 6 ]

Confessou-nos Regina Silveira (1939) sentir-se pertencente a uma ge­


ração comprimida entre duas outras, que, salvo raras exceções, ainda não teve
o devido reconhecimento, como alguns artistas que apareceram imediatamen­
te depois e já gozam de receptividade.
N a verdade, esse fato se assenta antes sobre a história do meio artístico
contemporâneo de nosso país, sempre aberto ao novo e ao fenômeno que, a
partir dos anos 80, privilegiou a produção dos mais jovens. Todavia, é a qua­
lidade da produção criativa do artista o fator que determina quem emergirá
no panorama nacional, mais cedo ou mais tarde. E, dentro dos parâmetros
da produção cultural de hoje, seja como personalidade artística, seja como
obra, Regina demonstra essa ascendência. Ela transcende à província, o que
não é obra de pouca monta. Em meados dos 60, dada a sua inquietação, via­
ja à Espanha. Faz ali seus primeiros contatos no exterior, sendo que, desde
1957, já expunha desenhos, aquarelas e xilogravuras, alguns com um teor
abstratizante, embora transparecesse alguma forma de representação do mun­
do exterior.
Pouco depois de seu regresso ao Brasil, nova experiência no exterior
definiria o caráter internacionalista de sua criação. Referimo-nos à sua vivên­
cia em Porto Rico (1969-1973), onde a atividade docente também influiria
na sua postura de artista. Ao mesmo tempo, a estada no Caribe intensificou
sua familiaridade com a arena internacional, impossível de ocorrer no coti­
diano doméstico de um artista que nunca se desloca.
A docência não se afastaria mais de sua vida profissional. De volta a São
Paulo, fixa definitivamente residência nesta cidade, lecionando na FAAP
(Fundação Armando Alvares Penteado) e na Escola de Comunicações e Ar­
tes da Universidade de São Paulo. Ao lado de Nelson Leirner, Julio Plaza e

286
REGINA SILVEIRA: VOCAÇÃO IN TERN ACION ALISTA

Nicolas Vlavianos, Regina Silveira é, na FAAP, um dos artistas responsáveis


pela formação daqueles que se destacariam no cenário das artes visuais nos
anos 80. Esse papel, que não é pequeno, embora a artista tente diminuí-lo
por ter ocorrido paralelamente à sua intensa produção artística, se alia a uma
crescente intimidade com a preocupação das vanguardas conceituais e tec­
nológicas visíveis na arte de nosso tempo. N o caso de Regina Silveira, apon­
taria como significativa a presença de Julio Plaza, companheiro por longos
anos de intercâmbio de mútuo enriquecimento.
O ano de 1971 assinala o início da utilização da fotografia em seu tra­
balho como gravadora, sob a forma de apropriações de situações imagéticas
que passa a manipular, de maneira construtiva, incorporando a essas repre­
sentações um clima “outro”, fenômeno de estranhamento através da aplica­
ção do geometrismo linear sobre figuras ou paisagens.
A pintora abstrata dos anos 60, a rigorosa gravadora que domina várias
técnicas nos anos 70 e 80, inicia os 80 com um tratamento da imagem re­
presentativa a partir da heliografia, já refletindo o exercício que desde então
fluirá velozmente: O encontro, A continência, A reunião, O time de futebol.
Lança mão da deformação perspectivista já previsível, quando, em 1971, co­
meça a utilizar imagens alteradas por enquadramento geométrico em defor­
mações ou Anamorfas (1979/81), como intitula essa série de estudos. A par­
tir de então, começa a ocorrer em seu trabalho uma aceleração de resultados.
O real — entendido como cotidiano exterior a nós mesmos em seu aspecto
político ou social — é referido através das fotografias que utilizará como ima­
gem, em princípio fiel ao sujeito. A partir de inícios dos anos 80, essa ima­
gem se torna nitidamente ilusória, pela deformação exacerbada da perspecti­
va e a manipulação da distância objeto/sujeito: o tema pode ser uma máqui­
na, uma cadeira, uma obra de artista consagrado (Mareei Duchamp), uma
xícara ou um auditório.
A personalidade apolínea de Regina Silveira sofre mutação nestas trans­
posições. Sua racionalidade extrema se altera ao carregar até as últimas conse­
qüências distorções que a levam por vezes ao barroquismo de resultado exas­
perado. Isso é bem visível tanto na motocicleta projetada na série Velox co­
mo na instalação The S ain t’s Paradox, realizada em 1994, no Museu dei
Barrio, em Nova York, onde a imagem popular de Santiago Apóstolo foi co­
locada vis-à-vis à sombra do Monumento a Duque de Caxias, de Brecheret.

287
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Esta criadora que possui um trabalho em processo, de autodisciplina


rigorosa, além de ter à sua volta os artistas jovens que ajudou a orientar é, por
todas essas razões, uma rara artista centrada na seriedade de seu próprio desen­
volvimento. Esse crescimento foi notado por todos que se detiveram em ob­
servar Vórtice (1994), apresentado na exposição multimídia “Arte/Cidade 2”,
em São Paulo. Essa obra/imagem atua no olho do espectador, tal e qual a obra
barroca fotografada. Ao vivo, o espectador se vê diante de uma situação
imagética que é outra, em sua plena ambigüidade, quando fotografada. Ou
seja, as imagens alteradas pela perspectiva se transformam em outros traba­
lhos, autônomos, quando são fotografados. Isso tudo a despeito do objetivo
primeiro da artista, cônscia de que seu trabalho, concebido racionalmente,
adquire densidade criativa ainda mais ampla e provocativa, quando extraída
de sua fisicalidade espacial para outro meio. A fotografia, que deveria atuar
como mero registro, se transforma também em espaço virtual.
Assim, a extrema racionalidade — apoiada nas experiências renascen­
tistas, sua fonte inesgotável — gradativamente se torna passional, adquirin­
do foros de agressividade em trabalhos projetados com excepcional conotação
política e que traem sua origem gaúcha, em um meio artístico de sólidas tra­
dições de preocupação social. Referimo-nos ao trabalho realizado para a ex­
posição coletiva de outdoors, no V Centenário da Descoberta da América
(1992), Meeting (Encuentro), onde sete personalidades políticas reunidas, em
pé, têm suas sombras transformadas em desvairados instrumentos cortantes
ou denotativos de violência (revólver, tesoura, abridor de garrafa, serrote), que
ferem por seu estranhamento no contexto da imagem. Aqui, a racionalidade
cede passo à mensagem explícita, embora não óbvia, e, como sempre em seus
trabalhos, sem nuances de tons, dentro do contraste absoluto do preto-e-bran-
co, gerando um clima de confronto de poderosa força expressiva.
Esta recorrência a imagens de confronto para gerar sombras perspec-
tivistas, como ocorreu em 1994 na obra The Sain t’s Paradox, parece assina­
lar uma liberdade nova de articular este vocabulário de gramática renascentista
que Regina Silveira domina e cujo rigor artesanal é perceptível nos estudos
preliminares para cada série, como na obra Masterpieces (In Absentia), de
1993, dedicada a M an Ray.
Um artista é um poeta ou não será nunca um artista. Mas um artista
também precisa ser, obrigatoriamente, um profissional sistemático, um ser

288
REGINA SILVEIRA: VOCAÇÃO IN TERN ACIO N A LISTA

entregue aos seus demônios e a suas idéias, de maneira obsessiva, até inco­
modando os outros, com os quais ele deve conviver nesta vida que é nossa
contagem regressiva. O produto da criação artística, no caso de Regina Sil­
veira, é o elemento salvador, o único a justificar nossa passagem tumultuada
por este planeta em inquietante mutação.

289
48.
Uma trajetória: Giselda Leirner
[1 9 9 6 ]

Percorrer a exposição de Giselda Leirner é como estar diante da obra de


uma espécie em extinção. Pela própria personalidade difícil da artista, mas
envolvente por suas qualidades absorvidas através do tempo com carga alta­
mente positiva: apaixonada da literatura, conhecedora de música, estudiosa
de estética, formada em filosofia. Desenhista desde suas entranhas até a raiz
dos cabelos. Artista por necessidade vital de expressão, expondo raramente,
porém possuidora de uma obra coerente, a partir dos desenhos que começa
a produzir desde menina, como ela mesma confessa. Existe um preconceito
em relação ao artista que pode dispensar o mercado de arte para sobreviver,
ou em relação ao artista que é ou foi rico. Isso é pacífico, e só o pode desdi­
zer quem for cínico. Como se sabe muito bem, há muitos que se firmam no
meio artístico nacional ou internacional através de um currículo “oculto” (re­
lações afetivas, ou pessoais, que o impulsionam ao festejamento ou às solici­
tações). Não há aqui nenhuma crítica, apenas o registro de um dado impor­
tante quando se aborda uma obra. Giselda Leirner está longe de ser ingênua.
A presença de muitos artistas na família, o desejo de um convívio familiar
pleno, daí a razão pela qual optou, ao longo dos anos, em permanecer à mar­
gem de um processo de autoprojeção, sem abrir mão de sua criatividade, que
aflora enriquecida pelo adensamento propiciado por sua experiência huma­
na e profissional.
Um a apresentação de suas obras se constitui em raro encontro com a
trajetória de um artista cultivado. Sofisticado, apesar da aparente simplicidade
de sua arte. Artista algum, entretanto, pode trair sua geração, a imagética de
sua geração, as admirações ou afinidades que correspondem a um tempo. E
essa fidelidade nos toca na medida em que reflete, por essa mesma razão, uma
autenticidade ontológica. Alguns dos trabalhos mais antigos desta mostra que
percorre cerca de 40 anos de sua vasta produção são de 1956: duas litografias,

290
UMA TRAJETÓ RIA: GISELDA LEIRNER

uma mesa com flores, cubistizante, de traços incisivos e fortes, e uma rara
composição, ambos tangenciando o Abstracionismo, bem dentro do espíri­
to da década. São maduros como realizações da artista jovem, esses trabalhos
concebidos ainda como aluna de Yolanda Mohalyi.
N a produção de Giselda dos anos 60, presente nesta exposição, não
transparece toda a informação pop que inundava o Brasil no período, prova
de que como muitos eram infensos às modas e permaneceram fiéis aos su­
portes tradicionais, sem abrir mão de suas experimentações formais. Ou que
os artistas que possuíam uma forte interioridade como ponto de partida pou­
co se importavam com as “ondas” que nos fascinavam através das Bienais de
São Paulo (também foi o caso de um Evandro Carlos Jardim, por exemplo).
Assim, os desenhos desta década refletem antes uma introversão violenta, re­
metendo-nos ao imaginário de um Marcelo Grassmann, ou ao talento de um
Cuevas, focalizando a carga do homem, sua solidão e angústia, a linha fluin­
do, como diz a artista em depoimento à entrada da exposição, de dentro para
fora, antes submissa ela mesma à sua necessidade de expressão gráfica.
Como pode uma artista tão senhora de seu métier manter-se distante de
uma auto-exposição por tanto tempo? É um dos mistérios com o qual nos
interrogamos frente aos desenhos de Giselda. Daí concluirmos ter sido essa
uma opção de vida. Pois coragem e audácia diante do papel não lhe faltam
nunca. Aborda as grandes superfícies com um domínio da organização do
espaço, que povoa com uma gestualidade invejável, a partir de uma temática
esotérica. Nela está presente, talvez até a despeito de sua racionalidade, um
compromisso tácito com o humanismo judaico, como um retorno à ancestra-
lidade através das imagens hieráticas imponentes de formas enigmáticas que
dominam grandes campos (mesmo que mencione o impacto recebido, em
1981, na Bienal de São Paulo desse ano, pela presença de um Philip Guston,
quem, aliás, influenciaria também a jovem geração da época, em particular
Paulo Monteiro, do grupo da Casa 7).
Um a introversão mais acentuada em seu trabalho pode ser apreciada em
Paisagens, dos anos 70, pequenas composições freqüentemente centradas em
grandes folhas, a colagem cuidadosamente incorporada ao desenho, a pintu­
ra a guache sobre papel finalizando o trabalho, algo do clima de recolhimen­
to, momentos de contemplação da natureza, com certeza da fase de residên­
cia em Campos do Jordão.

291
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Nesse tempo surgiriam estudos de formas de movimentos concêntricos,


emaranhados de linhas, como os trabalhos em crayon. Aliás, falar em técnica
ou domínio da técnica parece quase extemporâneo nesta época em que as
manifestações sensíveis substituem o objeto artístico. D aí porque a exposi­
ção de Giselda é também um mostruário de um tipo de obra a cada dia mais
rara: a do autor que desenha manejando com destreza o lápis, a aguada, o
nanquim, trabalhando em litografia, pastel, crayon, acrílico sobre cartão, to­
das as modalidades de materiais, enfim, abordados pela desenhista na reali­
zação de seus exercícios.
Os anos 80 assistem à presença de maior dramaticidade (por volta de
1985) em suas imagens: ao caráter efêmero do ser humano se contrapõe a
vigência eterna dos mitos, a hieraticidade já referida à monumentalidade dos
grandes espaços urbanos. H á algo terrificante nessas figuras informes, nessas
aparições fantasmáticas de deuses eternos, imagens cifradas a conturbar nos­
sa tentativa de difícil decodificação. E o que pouco depois ela denominaria
de série Babel, na qual composições fluentes parecem focalizar o caos das gran­
des metrópoles, arquiteturas iluminadas/imaginadas, visionárias, construídas
com uma gestualidade fluente e de alta voltagem energética. A luz passa a
ocupar nesta série de desenhos um lugar peculiar como carga expressiva.
Giselda Leirner — artista que sempre considerei como prejudicada por
uma excessiva autocrítica que a impedia de expor — vem trazer-nos seu per­
curso, para uma apreciação de corpo inteiro por aqueles mais próximos de
sua geração, e pelos mais jovens, que certamente desconhecem sua contribui­
ção. Mas esta retrospectiva é também uma necessidade para a sua compul­
siva expressão gráfica através dos anos. Pois assim como a arte não possui força
para mudar uma realidade, ela mesma reconhece que “o artista não faz cul­
tura. O artista faz aquilo que não pode deixar de fazer”. M as ela é exage-
radamente lúcida para se dar conta de que, expondo a intimidade de seu so­
nho, ela se faz partícipe da “dialética viva, emocionada” frente ao outro —
na verdade, a razão de ser desse desejo de comunicação implícito na criação
artística.

292
49.
A mulher é o corpo
[1 9 9 7 ]

A mulher enquanto corpo, alta tensão expressiva, gesto, linha parada no


ar. Expressão enquanto ferida. Corpo de mulher espaço do núcleo gerador,
repositório de vida. Num tempo em que os artistas se retraem frente à repre­
sentação da figura humana por temor ao esgotamento, por timidez, por dis­
criminação, pela dificuldade de invenção, Rosana Paulino faz do corpo da
mulher o seu tema, trabalhado, retomado e abordado, enquanto rosto, ven­
tre, gestualidade, em seqüência quase de diário, não descartando a recorrência
à História da Arte. Inclusive em desenhos inspirados assumidamente na me­
lhor Anita Malfatti de 1917, ou, quem sabe, também nas transparências
viscerais de Ismael Nery do último período.
Rosana Paulino emergiu e se afirmou no meio artístico de São Paulo
com suas instalações e objetos, a partir de fotografias de família, segundo ela
própria “prisões em que a ‘alma’ das pessoas fotografadas parece permanecer
suspensa”, paralisada no tempo. Sua contribuição, através de uma visualidade
afetiva e singular, chamou imediatamente a atenção por sua delicadeza expres­
siva, na incorporação simultânea do bordado e de pedaços de tecidos amar-
fanhados e de texturas diversas, do Bastidor (1997) em que a imagem do ros­
to, “espelho da alma”, como já disse alguém, é agredida, silenciada, com a
violência sutil dos pontos de agulha, ironicamente trabalho doméstico de
mulher. Mas ela não permanece nesta nostalgia do feminino que hoje parece
inundar os ateliês de nossas artistas, não questionando, porém tirando parti­
do do dado feminino, em sua dificuldade existencial, fragilidade e memória.
Paralelamente a estes trabalhos, a artista desenha intensamente. É o que
esta exposição apresenta, nesta amostragem de um imaginário sofrido, tanto
quanto na projeção do “segredo” retido, também visível na instalação com
fotografias manipuladas em sua apresentação na Parede da memória (1994).

293
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Vemos, há algum tempo, um certo tipo de desenho, registro gráfico ex­


pressivo circulando por salões, coletivas e individuais. Trata-se de um dese­
nho informal, gestual, abstrato, caligrafia/traço errando generosamente, quase
em abandono aleatório pela superfície de papel. Ou em linhas tortuosas, a
nos remeter à produção gráfica de um Philip Guston, freqüentemente bor-
dejando os limites da área retangular do suporte, como convulsões contidas.
Rosana Paulino tem considerável audácia, para sua geração, nesta série
de desenhos, em desenvolver um diário-visual em seus cadernos-álbuns: em
crayon, grafite, apenas lineares ou aquarelados com aguada de crayon, ou
nanquim, a cor dosada, aplicada em pontos cruciais da expressividade proje­
tada. Percebemos nesta série uma diversificação de enfoques para o corpo da
mulher: suas formas peculiares, ênfase freqüente em seu órgão genital, man­
chado, marcado, quase entreaberto, o sexo projetado como atributo doloroso
do corpo, sem que transpareça o gozo do desejo vivenciado; ou o corpo fe­
minino em movimento, corpo enquanto expressão gestual, o ventre e as ná­
degas como pontos referenciais a destacar.
Freqüentemente Rosana Paulino se vale da monotipia como um exer­
cício de liberdade, como início de séries novas, forma desencadeadora sem o
controle inibidor do desenho, dele extraindo, através da monotipia, a rigidez
da imagem concebida, pelo dado aleatório de seu resultado final. Quase que
um procedimento surrealizante, como o seria o frottage, liberando a ligação
mão/subconsciente para a expressão sem cerceamentos racionais.
Entre as outras séries de desenhos vemos a imagem física do corpo en­
quanto abrigo do coração, útero, coluna dorsal. A mulher como continente
de um embrião em formação, o feto com tratamento linear, ou nebuloso em
sua indefinição como o perfil do rosto da mulher, desimportante enquanto
elemento expressivo.
A crueldade da mulher-boneca emerge em outra série em seu redu-
cionismo: pestanudas, duras, lábios e vaginas ainda assinalados em cor san­
güínea, o traço do grafite quebrado percorrendo como em transe a superfí­
cie do papel, mensagem mediúnica a revelar de pronto um rosto em que o
sorriso é um esgar, espasmódico, ou mortuário, mais que uma representação
da alegria figée, da esquálida boneca-manequim, jogo para vestir, desvestir, e
pentear, fingir que é viva. A linha refeita, sobreposta, a acentuar a drama-
ticidade dos corpos sem vida projetados, com seus atributos — vagina, co­

294
A M U LH ER É O CORPO

lar, bolsa, sapatos adornados — , brinquedos de curiosidade infantil, entre­


tenimento nonsense a nos comunicar uma perplexidade imersa em assustador
humor negro.
Figuras soltas no ar, a nos recordar o Expressionismo inicial de Di Ca­
valcanti em seus Fantoches da meia-noite, anteriores à Semana de 22. Em suas
devoções pela História da Arte brasileira — igualmente pouco usual entre
artistas jovens brasileiros — , Rosana Paulino não deixa de confessar sua fas­
cinação pelo traço dramático de emoção contido nos desenhos de Flávio de
Carvalho em sua série M inha mãe morrendo, da coleção do M AC-USP, onde
trabalhou. E por certo ela conhece igualmente as contorções vienenses de um
Egon Schiele. Suas bonecas nos remetem às estranhas imagens fotográficas
das bonecas eróticas dos anos 30 de Hans Bellmer.
Mas, explorando as várias vertentes e imagens do “corpo de mulher”,
como contraponto à anorexia implícita no corpo-manequim, Rosana Paulino
retorna à História da Arte, buscando os atributos da figura feminina repro-
dutora, gorda em sua abundância, sedutora em sua fertilidade, definidora da
mulher através dos séculos, redondo núcleo de seios, seios generosos, o cor­
po de oito seios, a figura de seios revestida de simbolismo renascentista, ou a
mulher de gatinhas, aparentemente prenha, dotada de seis seios, densa em
seus atributos de procriação, fonte de vida.
Não deixam de possuir algo de fantasmal estas figuras criadas, recriadas
e elaboradas por Rosana Paulino, gestos parados no ar — a grafite, crayon e
aquarela — , expressão em grafia difícil, de íntima sensibilidade.

295
50.
Lugar c h am ad o arte
[1 9 9 9 ]

“Nesse lugar que se chama Arte


onde as coisas
todas as coisas, recortadas e dadas pelo coração
se fazem em acordo na fundação de tudo que persiste
em nós como ponto
e estame de religação com o divino
construindo a possibilidade de explicação do inexplicável.

Essas coisas que, de tão existidas,


desistem
e se desfazem para permitir ao artista,
na maturidade, recompor o sentido de sua presença
em última instância estão ali
como confirmação de nossa permanência
mais além do porto transitório da História.”
Márcio Sampaio1

Este fragmento poético detém a marca da arte que se faz em Minas por
esta geração emergente a partir de fins dos anos 70. Acentua a importância
“das coisas” “dadas pelo coração”, “na fundação de tudo que persiste em nós”,
“ponto e religação com o divino”, configurando-se como um manifesto de
fé na arte, “confirmação de nossa permanência mais além do porto transitó­
rio da História”.
Márcio Sampaio foi uma personalidade-chave, enquanto crítico, poeta
e pintor, na reunião e projeção de artistas desta geração. Quando nos referi­

1 Márcio Sampaio, fragmento do texto “Os termos do corpo e das coisas”, apresentação para
exposição de Marco Túlio Resende, ago. 1999. Graficamente composto em forma de poema com
autorização do Autor.

296
LUGAR CHAMADO ARTE

mos a um tripé em que se apóia a afirmação — filtrada através das obras, com
a maior naturalidade, sem arrogâncias ou pedantismos — da identidade mi­
neira, nesta geração e naquela que a antecedeu (como a de Celso Renato,
Farnese de Andrade e Amilcar de Castro), nos indagamos repetidas vezes: será
que essa identidade à flor da pele advém dos materiais locais — ferro, terra,
madeira, barro — com que trabalham? Ou vem do apego, fidelidade, “afe­
to” — escreveu certa vez Frederico Morais, e tem dito com freqüência Ben­
jamim — ; da intimidade com o artesanato, tradição de Minas, cujo ritmo de
vida no seu interior ainda propicia um fazer manual e, portanto, lúdico? Ou
essa identidade tem como denominador comum um misticismo, ao qual se
poderia acrescentar Zé Bento. Misticismo que freqüentemente vemos as­
sociado à paisagem montanhosa de Minas, que induziria ao temperamento
sonhador e poético da gente de Minas. Creio que tradição conseqüente do
inevitável isolamento, pela distância dos centros populacionais do litoral.
Márcio Sampaio enfatiza a sedimentação dessa tradição assumida, ao se re­
ferir à “fundação de tudo que persiste em nós, como ponto e estame de
religação com o divino”, presente em todos, sensitivos frente à magia dos
mistérios inexplicáveis.
“N ós temos um inventário”, reafirma Benjamim. “A nossa coisa é coi­
sa de nosso quintal. Se eu tivesse nascido em Nova York, eu absorveria todo
o planeta nova-iorquino, com todas as relações com seu mundo. O que eu
acho legal da gente é a gente ter absorvido, de nosso planeta, o nosso quin­
tal.” E conclui, convicto: “Um artista que não tem um inventário, eu tenho
pena dele”.2
O caso de Minas me remete a Oaxaca e à obra de Rufino Tamayo. N a
ocasião em que visitei o México pela primeira vez, no início da década de 70,
conheci Oaxaca, cidade natal do artista, encantadora pela preservação de sua
arquitetura, com passado pré-hispânico, artesanato, bordados em lã inspira­
dos na fauna e flora local, de riscos estranhos e de colorido magnético. C o­
nheci na mesma viagem um ateliê de jovens — cerca de seis ou sete — que
trabalhavam coletivamente, e percebi surpreendida que em suas pinturas eles
projetavam o mesmo tipo de imaginário mágico presente na obra de Tamayo.

2 Conversação da Autora com os três artistas, em Belo Horizonte, 15/9/1999.

297
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

N a mesma cidade visitei o maravilhoso museu de arte pré-hispânica, doação


de toda a coleção particular de Tamayo, ainda vivo, à sua cidade. Pouco tem­
po depois conheci, maravilhada, a obra gráfica de Francisco Toledo, também
de Oaxaca, gravador e pintor de renome internacional. Percebi então que
ocorria uma mimese, entre a arte de Toledo, a arte popular, que se vendia
na praça e no mercado, e a dos jovens oaxaquenhos, sem mencionar Tamayo,
o artista maior, que legitimou toda essa imagética vinculada a uma fortíssima
raiz de tradição popular. Talvez eles nem se tenham dado racionalmente conta
dessa empatia resultante da intensidade de uma cultura comum. É um pou­
co isso, sem nada de panfletário em seus trabalhos, que percebo nestas mi­
nhas reflexões quando me refiro a Minas.
Os três artistas que me ocupam nestas considerações, Marcos Coelho
Benjamim, Marco Túlio Resende e Fernando Lucchesi, emergem no cená­
rio de Minas Gerais no final dos anos 70 com uma certa identificação exa­
tamente pelas mãos de Márcio Sampaio, em “Notícias da Terra”, no ano de
1980, em Belo Horizonte, mostra que apresenta a “arte repousada em obje­
tos tocados pela intervenção criadora — a ‘desarrumação’ do cotidiano de que
fala Breton”, como registraria, dez anos depois, Angelo Oswaldo,3 ao apre­
sentar Benjamim e Marco Túlio em exposição realizada em Belo Horizonte,
com curadoria de José Alberto Nemer.
Hoje estamos às vésperas de mais um encontro-exposição, quase vinte
anos depois da primeira coletiva destes artistas, diversos entre si: Marco Túlio
Resende mais preocupado com uma postura profissional frente à sua produ­
ção, conseqüência de seus anos de estudo e contatos no exterior; Fernando
Lucchesi sempre recolhido em seu fazer manual poético e de intenso misti­
cismo que o acompanha ao longo dos anos; e Marcos Coelho Benjamim, ple­
no de indagações e cético em relação aos destinos da própria arte contem­
porânea: “Nós três somos artistas contemporâneos porque estamos vivos ou
porque nos propomos a fazer arte contemporânea? Não há nenhuma medi­
da, não há nenhuma novidade a acrescentar no fluxo daquilo que já foi fei­
to, a não ser a própria obra. Que é do tamanho que é, não tenho nenhuma
pretensão, nenhuma ilusão a respeito. Eu faço é um poema pessoal, como o

3 Angelo Oswaldo, “Da forma à forma: dez anos depois”, Belo Horizonte, out. 1990.

298
LUGAR CHAM ADO ARTE

Fernando faz, não há nenhum grande pensamento embasando isso que faze­
mos, não me considero nenhum grande artista, não vejo nenhuma importân­
cia maior no que faço, vocês acham que eu sacaneio um pouco a arte con­
temporânea, que desmistifico a aura que é dada ao artista, mas acho que a
arte vai voltar para a atitude do artista. Porque minha atitude me faz fazer
aquilo que eu faço. Só que é um casamento de uma atitude deste tamanho,
para pessoas deste tamanho, para um lugar deste tamanho. Eu não vejo ne­
nhuma maneira de repensar o mundo, porque os mundos são vários”.4
Mas, como lembra Angelo Oswaldo, o que ressalta nestes artistas de
Minas é “o testemunho de um esforço brutal de sobrevivência do fazer artís­
tico”, embora hoje tenham visibilidade nacional e mesmo projeção interna­
cional, pois Minas Gerais acordou e percebeu que pode — embora sem a in­
tensidade e a persistência da Bahia, por exemplo, em relação a seus músicos
e escritores — promover, com êxito, seus artistas para fora do Brasil, o que
foi feito em várias mostras no exterior recentemente, como na Espanha, e
inclusive na área de arte popular, como no caso da maravilhosa cerâmica do
vale do Jequitinhonha, exposta nos Estados Unidos.
Marco Túlio Resende confirma a dificuldade e o desafio dessa circuns­
tância: “O que eu acho interessante é que o Brasil vai ‘quebrando a cara’ e
vai descobrindo seus caminhos... Nisso eu acho o Brasil singular. A nossa
história de três artistas é a história de ‘quebrar a cara’. Quando a gente co­
meçou a atuar nessa direção, fazendo objetos, pintando e desenhando, era o
começo da transformação em alguma coisa que seria significativa futuramente
para a obra de todo o mundo e a gente foi meio que criticado, porque a ‘onda’
não era aquela. A onda da geração dos anos 70 que veio antes da gente era
uma ‘onda’ muito duchampiana, muito cabeça, desenho. E de repente a gente
retomou e lembro que o objeto foi importante porque a gente parou de ficar
explicando. E acho que agora a geração que está saindo está voltando para
aquele caminho, se escudando nos críticos, se escudando nos filósofos...”.5
Em verdade, este grupo desta geração de Minas construiu uma “escola
de Minas” muito embora sem qualquer preocupação em construir uma ten­

4 Conversação cilada.
’ Idem, ibidem.

299
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL
1

dência no sentido da palavra, sem manifestos ou coisa que o valha, porém


simplesmente através de sua produção ao longo dos anos. A coisa foi emer­
gindo naturalmente, e de repente, esse perfil, que pode ser “de um país”,
como Marco Túlio disse ter sido denominado em discussão em São Paulo, é
o retrato de uma geração. Muito distinta, como ele mesmo reconhece, dos
artistas jovens que tem de 20 a 30 anos que estão surgindo com uma ligação
muito mais intensa com os conceitualistas.
As articulações internacionais, contudo, são muito recentes para a cena
artística de Belo Horizonte. O que antes era eventual, contatos de uns pou­
cos, se tomou acessível a muitos (o caso de Rivane Neuenschwander, de pro­
jeção nacional a partir de 1996) e era, para esta geração, algo muito excep­
cional. Lembra Marco Túlio que Belo Horizonte “padecia de uma infor­
mação muito grande. Até novela, há vinte anos atrás, passava na capital de
Minas três dias depois de ter sido vista no Rio de Janeiro e fazia roupas para
as férias, e chegava lá a moda já era outra. Então, quando a gente começou a
expor em salão, eu me lembro que o Rio de Janeiro era, assim, o must. Por
quê? E o caso que Amilcar de Castro contou do tachismo. Surgia o tachismo
aqui como informação numa Bienal e dois dias depois já tínhamos mais pin­
tor tachista que a própria França. Mais que Paris ou Nova York porque eles
pegavam a coisa só pela superfície, era só na produção. Esse dado, dentro da
insegurança de nossos vinte anos, fazia a gente ser retraído, achando que o
que se faz não é bom, não é verdadeiro, não é nada. Esse fechamento que à
época nos fez achar ‘eu estou pra trás’, na verdade, como vemos hoje, não era.
Foi, pelo contrário, uma fermentação para uma coisa que mais tarde iria se
firmar com cara própria, isso que você está falando. Deu cara para o traba­
lho da gente”, afirma.
A identidade brasileira que vejo acesa em Minas nestes artistas preexis-
te, como já afirmamos, ao nível de fidelidade com o lugar,6 na arte vigorosa
de um Amilcar de Castro, na pintura construtiva sobre madeira descartável
de um Celso Renato, no artesanato em madeira de Prados e Bichinho, ou de

6 Sobre o mesmo tema, ver Aracy Amaral, “A sabedoria do compromisso com o lugar:
Tarsila, Volpi, Oiticica, Cildo, Benjamim”, Colóquio CIHA, Zacatecas, México, 1994 [texto re­
produzido no volume 1 desta coleção, pp. 291-304], e “De Brasil: alquimias y procesos”, Bogotá,
Biblioteca Luís Angel Arango, 1999.

300
LUGAR CHAM ADO ARTE

cerâmica do vale do Jequitinhonha, no gosto pela “experimentação etílica”


tipicamente mineira, pela sua culinária peculiar, pelo deslumbramento que
é o Grupo Corpo na mescla — reflexo inevitável e supersensível de nossa
miscigenação —- do erudito com o popular, na música culta misturada com
os requebros, a ginga, o sabor do meneio da excelência do corpo dançante.
O que apresentam estes três artistas em sua última exposição do século
XX, século cuja segunda metade está identificada com seu crescimento e
sensibilidade?
A permanência do objeto, no sentido do afeto, da não-escultura, con­
tra a corrente da instalação na era da instalação, objeto mesmo, referencial
com forte sentido de introversão em sua projeção de materialidade visível,
predomina nesta exposição. Exemplo contundente é o Carro, de Marco Túlio
Resende, carregado, alegoria de meio de transporte mutilado, madeira e bar­
ro em sua feitura artesanal, espantoso no desconcerto em que deixa o olhar
de quem o observa. Ao mesmo tempo, suas Ilhas traem o hermetismo da
mesma discrição evidenciada: cestas de forma orgânica, fechadas por cintas
de metal, base de madeira -— objeto de contemplação — o acúmulo de pedras
ou concreto e pigmento, em seu interior intocável. Curiosamente, pelos estu­
dos anteriores em ferro, os dois trabalhos Jardins parecem ter nascido de uma
síntese formalista e se desenvolvido em torno aos materiais mais precários,
como um ritual desejado, se materializando sobre uma base de madeira, tendo
sobre a mesma sete cones de argamassa feita de cimento, barro e papel. Aqui,
os elementos — cones — intercomunicantes sobre a madeira, assim como
nas Ilhas, as pedras interagem dentro do gueto em que estão encerradas.
Fernando Lucchesi mantém o quadro convencional, previsão de adequa­
ção à parede, desprezando a articulação direta com o espaço de nossa era pós-
modernista, também dispondo e aprisionando objetos dentro de caixas, com
a mesma atitude de religiosidade com que compunha e pintava seus “altares”
em fins da década de 80. Assim, com economia e comedimento compõem
elementos achados e colecionados, ou possuidores de uma história comum
com o artista — como pratos, piões, pequenos objetos ou bichos que trans­
figura através da pintura — , sempre dominante como cor o intenso azul U l ­
tramar de pó xadrez. Mas são suas flores — buquês, coroas, ramos — que
detêm nossa atenção: pétalas cuidadosamente recortadas em finas folhas de
chumbo de garantida perenidade, utilizadas com um quase preciosismo na

301
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

composição com outros objetos — frisos, crucifixo, letras, bordado inglês — ,


a marcenaria artesanal contribuindo na elaboração cuidadosa da peça em sua
finalização. É sarcástica a atitude ou realista, quando Fernando Lucchesi de­
clara com suavidade: “Não faço arte, faço uma mercadoria para o consumo
do mercado de arte”, ao tomar consciência e usufruir do fato de que suas
peças poéticas, com densa carga emotiva, podem interessar ao mercado?
Benjamim mantém similaridade de postura, posto que, como nos dois
artistas, esse “refinamento das coisas simples e banais” mencionado por Marco
Túlio, é uma constante em seu trabalho, que flui e se desenvolve como varia­
ções sobre um mesmo tema ao longo dos anos. Assim, da obsessiva disposi­
ção de finas placas de zinco — em suas peças de formato geométrico preciso,
poligonais, retangulares ou circulares sobre madeira — Benjamim apresen­
ta, desde 1997, pequenos quadros de filetes de pedra de São Tom é enfi-
leirados geometricamente, em faixas horizontais ou irradiantes a partir do
centro, inseridas numa superfície quadrada de trinta e cinco centímetros de
lado, recobertas de pigmento de pó xadrez azul ultramar. Mantinha-se o prin­
cípio da obsessão do fazer manual, assim como o ritmo repetitivo, dentro do
azul profundo deslumbrante para o olhar. Todavia, era uma cor oposta à
matéria. Eis que agora Benjamim “legitima” sua proposta, ao nos apresentar
cinco composições no mesmo feitio das anteriores, porém, a partir da utili­
zação das pequenas peças do próprio azul anil Colman, com cerca de trezen­
tas em cada trabalho. O artista joga então com a superfície quadrada do su­
porte para a realização das composições geométricas rigorosas. Ou seja, o
mesmo princípio que norteia seu trabalho desde as placas de zinco que tor­
naram conhecida sua obra. Daí acreditarmos que Benjamim tenha razão ao
dizer que é sua atitude perante as coisas que determina aquilo que ele faz. As
coisas se desdobram, surgindo novos espaços, gerando novas idéias. Assim
como a solda, que deixa de ser apenas ferramenta, instrumento de junção, mas
de repente constrói a borda, ou desenha sobre a placa. E a dimensão menor
do objeto do começo dos anos 80 volta a atraí-lo, na alquimia circular, tra­
zendo à memória o início de um processo que para estes três artistas é “esse
lugar chamado Arte”, como diz poeticamente Márcio Sampaio.

302
51 .
Arte paulistana
[1998]

Sempre achei que ser brasileiro, qualquer que seja a região de onde se
provém, é um estado de espírito. Isso não impede que certas peculiaridades
desta ou daquela região se tornem cada vez mais claras. Assim, para mim a
“escola” de Minas é densa, forte — ao lado da cultura do gaúcho, baiano, ou
pernambucano. Mesmo se desprovida da pretensão de se proclamar “escola”,
é visível, na música, nas artes visuais, na dança. N o caso de Minas, ela se ca­
racteriza por sua íntima ligação com a tradição do artesanato manual persis­
tente na criatividade popular no vale do Jequitinhonha, como também no
universo maravilhoso do artesanato em madeira na região em torno de Pra­
dos, próxima a Tiradentes, por exemplo. Ao mesmo tempo, o tempero sem­
pre presente num certo misticismo, religiosidade entranhada que perpassa
trabalhos como o dos segredos contidos nas assemblages de Farnese de An­
drade; chega até as pequenas peças em madeira de Marcos Coelho Benjamim;
pelos altares de Fernando Lucchesi; presente ainda no hibridismo do for­
malismo artesanal de um Celso Renato, ou na escultura rústica e religiosa de
um José Bento. Transparece também nos espetáculos emocionantes e impe­
cáveis do Grupo Corpo, por seus ritmos, sua excepcional mescla do erudito/
popular, a nos revelar a autenticidade sem complexos das gingas, requebros,
remelexos, bamboleios, da sensualidade dançante do brasileiro mestiço, mu­
lato, negro, com a graça e alegrias únicas, contagiantes, transpostas para o
palco através da dança com o sabor Brasil bem explícito.
O Rio de Janeiro tem também suas características bem marcadas, pro­
jetando sua sensualidade na criatividade em torno ao corpo e seus prazeres,
com a alegria também implícita. Isso se reflete em Lygia Clark e em Oiticica,
bem como na improvisação inventiva de um artista excepcional como Cildo
Meireles. Ou na densidade das propostas chamativas de um Tunga. Esse dado

303
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

é também visível mais recentemente nas proposições de Ernesto Neto, aten­


to, por certo, à linhagem dos neoconcretos dos anos 60.
Sempre me parecia que São Paulo não tinha estilo, no sentido de que
os artistas paulistanos vivem nesta cidade louca em seu ritmo, pressão e an­
siedade constantes, espaço de concreto quase desprovido de paisagem, sua
poética semi-oculta no meio urbano, na discrição dos interiores das casas e
apartamentos. N o entanto, agora me parece bem perceptível uma espécie de
“escola” paulistana, mais que paulista, com características que podem torná-
la reconhecível. Se isso era visível no desejo dos artistas concretos, que bus­
cavam a aproximação com o suporte industrializado, com o esmalte e não
mais com a tinta a óleo, de resquício artesanal, nos anos 50, na década se­
guinte era visível igualmente na postura de Wesley Duke Lee, militando na
publicidade ao mesmo tempo que era artista plástico, ou com Willys de Cas­
tro, Barsotti e Wollner, criando marcas e logotipos para empresas, ou de
Geraldo de Barros desenhando móveis simultaneamente à sua atividade de
fotógrafo e artista plástico. A peculiar relação arte/indústria é percebida com
transparência em Nelson Leirner a partir de fins desses anos 60. D a mesma
forma, um artista tipicamente urbano como Guto Lacaz só é possível em São
Paulo — o senso de humor conjugado com a invenção a partir da mecânica,
das engrenagens, do modelismo. Ao acompanhar ao longo do tempo o tra­
balho de Artur Lescher, também me vem à mente o perfil de uma arte pau­
listana. Precisão, execução cuidada, acabamento, experimentação com ma­
teriais. U m processo de trabalho rigoroso é o que preside a racionalidade
poética de uma Carmela Gross. Ou nos materiais industrializados, sempre
selecionados para seus trabalhos por Ana Maria Tavares. A volúpia pela ex­
perimentação de processos é o universo também de uma Regina Silveira, en­
tre outros. (Aliás, a exposição de Lescher agora me traz à mente, como um
flash back, a impactante exposição de 1970, no M AC-USP, dos discípulos de
Wesley: Baravelli, Nasser, Fajardo e Resende, exposição que teria influência
sobre jovens artistas do Rio de Janeiro, quando exibida no M AM-RJ — de­
pois de uma década de happenings e arte ambiental precária — com suas obras
em materiais nobres, como mármore, madeiras polidas em impecável exe­
cução, alabastro, se não me falha a memória, ou vidro. Depois Fajardo e
Resende enveredariam por sendas mais próximas do minimalismo, influen­
ciados pela arte internacional, em particular a norte-americana da época.

304
ARTE PAULISTANA

Mas onde encontrar algo mais hiper-urbano do que isso?) Mesmo Jac Leir-
ner assinala em suas apropriações a poética oriunda da sociedade de consu­
mo, do desperdício, com um afã classificatório e ordenador exemplarmente
metropolitano.
Por isso, um Habermas nos visita e estranha um estilo de pintura como
o de Paulo Pasta, recolhido em suas relações de transparências ou preocupa­
ções cromáticas, e uma Carmela Gross vai ao Chile e surpreende o artista
Nemesio Antúnez com sua obra — como, num país tropical, fazer obras tão
herméticas, refletindo tão pouco as realidades e contradições sociais do país?
N a verdade, alguns dos artistas de São Paulo refletem, sim, este contexto alta­
mente tecnológico da sociedade industrial paulistana, buscando se articular
com seus computadores, materiais de consumo, processos de produção. Es­
tão, na verdade, dentro de sua realidade, e expressando-a de acordo com seu
instrumental. Não se percebe neles uma “preocupação social”. Porém seu
discurso e seu processo de trabalho parecem-me fiéis a seu entorno. “IIfau t
être de son temps”, escreveu Daumier. N a verdade, é isso mesmo que vemos
sucedendo nas obras destes artistas que consideramos cool, talvez excessiva­
mente clean, nas quais, por certo, o desejo de elegância não está ausente.
Evidente que no Rio de Janeiro há individualidades como Waltércio
Caldas e Rosângela Rennó. São exceções. Waltércio tem uma postura dife­
renciada, extremamente pessoal, distanciada do ambiente “carioca” propria­
mente dito. É um internacionalista e nele também, a par de sua inteligência
articulada, é perceptível talvez esse excesso de elegância ou maneirismo. Fica
a pergunta: às vezes, less is more pode chegar às raias do pedantismo? Ê dis­
tinto o fenômeno Rosângela Rennó, em sua saga de arqueóloga da imagética
de nosso tempo através da fotografia, não apenas reproduzindo imagens co­
mo criando relações com imagens de segunda ou terceira geração, que pro­
jeta em concepção espacial muito além do convencional. Por intermédio da
fotografia, pé no chão da realidade, ela não chega nunca à elegância anoréxi-
ca, pois possui uma visceralidade muito forte envolvendo suas imagens.

305
52.
Vik Muniz:
o ilusionismo além da aparência especular
[2 0 0 1 ]

É uma alegria saudar um bom artista como Vik Muniz, um artista bra­
sileiro criativo que se apresenta pela primeira vez em um museu de São Pau­
lo, sua cidade natal. Um artista diferenciado, fora da “geléia geral”, da fadiga
em que se debatem as mesmices que vemos na maioria das exposições ou nas
dezenas de convites-catálogos recebidos, aparentemente com desconhecimen­
to quase total do que já foi feito nos anos 60, 70, 80 ou 90. É como se ocor­
resse uma impossibilidade de singularidade em nossos dias, situação-limite
vivenciada pela própria arte e pelos artistas.1
N o entanto, Vik Muniz é um artista que encontrou sua via por suas
próprias forças. Há gente que vai para Nova York e lá submerge em meio à
arena internacional, sucumbindo frente às retrospectivas, no sufoco de tanta
informação multidirecional. Vik foi abrindo seu atalho, ampliando-o, estu­
dando-o e desenvolvendo-se até encontrar o seu caminho.
Quando tive a oportunidade de conhecer, pela primeira vez, os traba­
lhos de Vik Muniz, na Galeria Camargo Vilaça, em 1997, fiquei magnetiza-
da de pronto. Comecei a imaginar se a presença de imagens apropriadas, de
fotografias ou de obras de outros artistas, não significaria uma recorrência a
composições já resolvidas, gerando, portanto, imagens de segunda ou tercei­
ra geração — a sua reconstituição da imagem apropriada e a fotografia obti­
da a partir dela como obra final — e isso significando, em parte, o esgota­
mento ou a dificuldade em criar novas formas. Seria, assim, mais uma mo­
dalidade do maneirismo na arte de nosso tempo?

1 Vemos ao lado de Vik Muniz, no Brasil, como raios de criatividade singular, artistas co­
mo Rivane Neuenschwander e José Damasceno, ambos expoentes dos anos 90 entre nós.

306
V IK MUN1Z: O ILU SIO N ISM O ALÉM DA APARÊNCIA ESPECULAR

Perguntei-me na coletiva que organizei em Bogotá, na Colômbia, em


1999, com a participação de Vik Muniz, se ocorreria hoje um bloqueio por
parte dos artistas diante da tela, ou do papel em branco, ou mesmo na con­
cepção de um espaço a povoar com uma instalação? E indagava-me também
se não seria esse fenômeno fruto da saturação de imagens — tanto do ponto
de vista do observador como do próprio artista — em função do excesso de
objetos e informações da sociedade de consumo em que vivemos. Imagina­
va, assim, que sua alternativa criativa resultava numa maneira provocativa de
intervir num outro trabalho visual, fosse ele pertencente à História da Arte,
ou uma foto famosa.
Há em Vik Muniz, contudo, alguns traços que gostaríamos de abordar.
Primeiramente, seu empenho no “fazer”, e não apenas na concepção de um
trabalho, que é a tônica de sua produção. Nesse “fazer” está implícito seu
domínio técnico para levar a cabo uma idéia. Pode partir da cópia de uma
obra de arte ou de uma fotografia, minuciosamente, com competência, pin-
çando determinados artistas da História da Arte (pelo desafio ou pela admi­
ração?) — Corot, Courbet, Monet, D a Vinci, Caravaggio, Rothko, Morris
— , reproduzindo a obra do “outro” à sua maneira. Lembramos então que já
se disse que “as culturas se baseiam na transmissão fiel de rituais e de padrões
de conduta. Copiar célula a célula, palavra a palavra, imagem a imagem, é
fazer nosso o mundo conhecido”,2 o que implica igualmente em humildade
nesse processo de aquisição de conhecimento.
Quando ficamos sabendo que Watteau trabalhou como aprendiz, por
sete anos, no ateliê de um artista maior, somente pintando céus, damo-nos
conta de como parecem auto-suficientes os postulantes a artistas de hoje que
acreditam que não é preciso saber desenhar, pintar ou modelar, para se tornar
um artista. Ou seja, que podem chegar a sê-lo sem ter dominado o vocabu­
lário. Será possível chegar à sintaxe sem conhecer as palavras?
N o caso de Vik Muniz, quando reproduz à sua maneira a obra de “ou­
tro”, referimo-nos aos materiais por ele utilizados, diversos daqueles utiliza­
dos pela obra selecionada por sua vontade. Fotografias reproduzidas com açú­

2 Hillel Schwartz, La cultura de la cópia: parecidos sorpreendentes, facsímiles insólitos, Madri,


Cátedra, 1998, p. 211.
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

car ou com detritos de lixo, ou uma Santa Ceia recriada com chocolate lí­
quido implicam numa licença poética de alto teor de criatividade. Sabe-se
que, na História da Arte, este artista não está só em seus procedimentos. Já
Arcimboldo, no século XVI, compunha, com rara inventividade, perfis de
personagens em assemblages artificiosos de legumes, frutas e vegetais. Assim
como o espanhol — pré-surrealista? — Sanchez Cotán, do século XVII, nos
brindou com composições “do natural”, em suas intrigantes imagens.
N a série elaborada com chocolate líquido, sabemos que Vik reconstruiu
essas imagens com conta-gotas, com paciência quase oriental, e esse procedi­
mento continuou ao fotografar rapidamente a imagem fixada — num núme­
ro limitado de cópias, tiragem de três, naquele período — em Cibachrome.
Nesse processo, decididamente maneirista, surpreende a similitude da ima­
gem original com aquela reproduzida, assim como o frescor do brilho relu­
zente da deliciosa coloração do chocolate, que aflora nesses trabalhos. Em
entrevista a Charles A. Stainback, diz Vik Muniz que “o chocolate inspira
uma multidão de fenômenos psicológicos: tem algo a ver com escatologia,
desejo, sexo, dependência, luxúria, romance etc. Nunca conheci alguém que
não gostasse de chocolate. Freud provavelmente poderia explicar porque to­
dos amam o chocolate”.3
H á tempos, conversando por telefone com Vik Muniz sobre as imagens
de segunda ou terceira geração, ele afirmou-nos ser consciente hoje que, quan­
do se colocam muitas camadas de representação, o olhar do espectador se re­
tarda na leitura do trabalho. Parece-me pertinente esta observação quando se
sabe que atualmente o visitante de uma exposição ou Bienal, talvez enfastia­
do pelo excesso de obras, prefere caminhar distraidamente pelo espaço ex-
positivo, sem se dar ao trabalho de observar atentamente cada trabalho. As­
sim, segundo Muniz, “a ambigüidade também está na sintaxe, na forma como
o objeto é representado. Creio que existe também algo que atrai o olhar do
observador. Quando este se demora para ver, ocorre, ao mesmo tempo, uma
durabilidade, uma permanência maior da obra na mente e emoção do espec­
tador”. E acrescenta: “Vejo por mim: no teatro, prefiro um ator menos bom

3 Charles Ashley Stainback (org.), Vik Muniz: Seeing is Believing, Nova York, Arena Edi-
tions, 1998.

308
VIK M UN IZ: O ILU SIO N ISM O ALÉM DA APARÊNCIA ESPECULAR

ao bom. Pois quando o ator está representando e te convence, ele te permite


ver a peça, ao passo que o mau ator te deixa ver o ‘teatro’, o que me parece
)> /
mais intrigante .
Poder-se-ia assinalar ser o seu um procedimento herdado do movimento
pop dos anos 60? Talvez, pois os artistas dessa década (Jasper Johns, Ol-
denburg, Warhol ou Lichtenstein, só para citar uns poucos) copiaram ad
infinitum páginas de jornais, fotografias de pessoas célebres, repintaram la­
tas de cerveja ou representaram latas de sopa, reconstituíram anúncios5 e
ambientes típicos da cultura visual norte-americana do tempo, com leveza e
senso de humor que também se aproximam daqueles implícitos no fazer ar­
tístico de Vik Muniz.
A cópia e o múltiplo existem desde que as máquinas foram inventadas.
E Vik Muniz nelas se baseia, ao fazer da fotografia o produto final de seu tra­
balho. É por essa razão que temos sempre em mente este artista plástico, de­
senhista, pintor que se utiliza da linha, ou de técnicas mistas, mas que opta
pela fotografia, com tiragem limitada para cada trabalho. Está, assim, den­
tro de seu tempo e, simultânea e contraditoriamente, fora dele, ao fazer do
estritamente artesanal, manual, seu processo de trabalho, que, por esta mes­
ma razão, nos surpreende e intriga pelo latente paradoxo entre o processo e
o instigante resultado final.
Mas essa é apenas uma das facetas da produção de Vik Muniz. Como
desenhista, emerge pleno de poesia quando seu traço flui em linearidade pura
com um singelo fio de arame, fixando, em economia máxima, objetos do
cotidiano: um balanço, um rolo de papel higiênico, ou um vestido leve de
verão, secando no varal. Imagens elaboradas para posterior documentação
fotográfica, sempre produto final de seus trabalhos. Nesta série, em particular,
ele vem nos demonstrar que a poética está viva quando se possui um domí­

4 Depoimento telefônico de Vik Muniz à Autora, de Nova York, a 17/8/1998.


^ Percebe-se hoje a recorrência a certas inspirações pop em alguns artistas das duas últimas
décadas, talvez pelo excesso de materiais à disposição dos artistas ou pela cultura urbana dominan­
te. Um simples exemplo seria a utilização do suporte de anúncio publicitário, como trabalho de
autoria de Damien Hirst, visto no Museu de Bilbao, a produzir três imagens distintas nas três pla­
cas de secção triangular que giram seqüencialmente, como outdoor.

309
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

nio técnico, quando uma idéia norteia uma obra, quando há um conceito a
perseguir e um empenho de realização, a despeito de tudo e contra todo o
meio ambiente que pode ser, e é, até hostil, quando se vem da América Lati­
na para um macrocentro como Nova York. Que, no entanto, sabe reconhe­
cer com seriedade a bagagem trazida com substância.
Outro dado que impressiona neste artista é que ele não cultiva a cópia
como mera releitura ou captação de um processo apenas para a obtenção da
composição de uma imagem, o que seria comum no desenvolvimento de um
jovem ansioso por adquirir esse conhecimento. Vai mais além. Logo, o que
faz não são apenas cópias de quadros célebres como as que o genro de Ve-
lásquez faria de telas de seu sogro, ou obras para os inúmeros Museus de
Cópias que existem pelo mundo. Ele não está interessado apenas em cópias
perfeitas, pastiches de obras reconhecidas ou fotos famosas. O que se perce­
be, ao mesmo tempo em que se nota com clareza seu virtuosismo e erudição,
é que a partir de uma imagem virtual — a partir de uma representação —
pela múltipla escolha de materiais, na solidão da paciente elaboração de seus
trabalhos, ocorre uma positiva diversidade de opção de meios para suas “ma­
trizes” — papéis perfurados, nuvens, chocolate líquido, açúcar, lixo, desenho
com arame, poeira, panetone. Entretanto, o êxito que tem rodeado suas apre­
sentações é também um desafio, pelo excesso de assédio de mercado e insti­
tuições. Que resista, portanto, com o necessário controle de qualidade, para
que nos mantenhamos neste encantamento frente a humorosa, extraordiná­
ria feição lúdica, divertente, maravilhosa, do ato criativo em Vik Muniz.

310
53.
Artur Lescher: a tática da elegância
[2 0 0 2 ]

N a verdade, não acredito em gênios. Nem em revelações. E diante de


jovens, quando meu olho percebe um trabalho diferenciado, posso surpreen­
der-me, alegrar-me com seu surgimento, mas só creio em sua solidez en­
quanto contribuição quando sua trajetória, ao longo do tempo, me permite
ver continuidade em acertos e audácias, pois muita gente, como cometas, so­
bretudo no Brasil, se perde nos céus de nosso meio artístico. Talvez seja por
isso que alguém já disse que nunca viu um texto meu tecendo elogios rasga­
dos a um artista. Talvez essa pessoa tenha exagerado. Ou talvez eu seja mes­
mo comedida.
Mas, por essa mesma razão, diante dos últimos trabalhos de Artur Les­
cher (1962) percebo estar diante de um artista já maduro, que virou a pági­
na do “jovem”, e se apresenta, como de fato o é, como um artista com um
perfil definido. Daí a razão desta publicação que se pretende uma síntese de
seu percurso até agora.
Lescher tem o encanto do aparentemente desajeitado tipo adolescente
perpétuo, com tímido sorriso amigo, meio se escondendo, mas no fundo sa­
bendo bem o que quer e do que gosta, e como fazer o que se determina. C o­
mo artista, exibe constante uma poética do espaço e da beleza de formas que
o aproximam das problemáticas do design, da arquitetura e da pesquisa com
materiais com que elabora seus projetos. Esses dados o identificam como um
artista tipicamente paulistano.
Pertence à linhagem daqueles que o precederam há cinqüenta anos,
quando os jovens concretistas de São Paulo se encantaram com as contribui­
ções da delegação suíça presente à I Bienal e que privilegiava o suporte in­
dustrializado, conglomerado de madeira, alumínio ou aço polido, assim como

311
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

a aplicação da dnta mecanicamente, rejeitando a manualidade artesanal. Es­


ses princípios norteariam o Grupo Ruptura, liderado por Waldemar Cordei­
ro, paisagista, artista e pesquisador constante de novas correntes.
Há, com efeito, em nossa capital, talvez em decorrência dessa mesma
intensa industrialização, uma vertente de artistas vinculados à tecnologia.
Poderíamos mencionar não apenas a Baravelli do início dos anos 70, como a
Julio Plaza, certos projetos de Marcelo Nitsche, e mesmo a Waltércio Cal­
das, por contato com o grupo dos quatro artistas — Fajardo, Nasser, Ba­
ravelli, Resende — da “Escola Brasil Dois Pontos” através de exposição (no
M AC-USP e M AM-RJ, em 1970), que marcou toda uma geração tanto em
São Paulo como no Rio. Ou seja, deixando de lado o precário e efêmero, vi­
gente na segunda metade dos anos 60 (do tipo de Leirner, Antonio Manuel,
Hélio Oiticica dos ambientes de Tropicália, e mesmo Barrio de pouco de­
pois), apresentava-se uma nova onda, de artistas que apreciavam o bom gos­
to, o acabamento, o perfeccionismo na execução dos projetos, apresentando
peças com a precisão e um sabor arquitetural inequívoco, fossem os artistas
arquitetos ou não.
Mais recentemente é a artista Ana Maria Tavares, também da mesma
Geração 80, quem, como Artur Lescher, se compraz com jogos de espaços,
diálogos ou interação com a arquitetura, a trabalhar com materiais diver­
sos, elaborando projetos por vezes irritantes em sua acuidade excessiva na exe­
cução das peças.
Essa vertente de uma arte sumamente urbana, elegante, “universal”, está
desvinculada de nosso entorno terceiro mundista a nos pressionar, nos es­
molar em cada esquina, periféricos que por certo somos e não aceitamos ser,
porque nos incomoda, fere o cosmopolitismo que preferiríamos que nos ca­
racterizasse, deixando de lado uma violenta contradição sócio-cultural que
não aceitamos e não conseguimos extirpar.
A essa linhagem pertence Artur Lescher. Mas não deixa de ser autênti­
ca por refletir uma porcentagem pequena, porém real, de artistas cultos, cul­
tivados, embora excepcionalmente conhecedores da História mais distante ou
recente das artes no Brasil.
O trabalho serial sempre foi perseguido por Artur Lescher: uma idéia
na cabeça e o seu desenvolvimento paulatino, através de peças que se desdo­
bram em outras, a partir da idéia primeira. Assim foi a casa-ideograma, fe­

312
AR TU R LESCH ER : A TÁTICA DA ELEGÂNCIA

chada, casa-síntese, encerrada em torno da sua própria forma paradigmática:


telhado de duas águas, retangular como espaço, minimalista em sua essen-
cialidade formal. Elaborada e executada em materiais os mais diversos (par­
cialmente visível a estrutura, como no MAM-SP, ou em madeira, aço inox,
alumínio); ou acoplada siamesisticamente a outras três — cruciforme — ou
estirada, quase irreconhecível, absolutamente vertical, em madeira polida, im­
pecável. Ou como casa-vagão alongada horizontalmente sobre o piso. Mas
desde suas casas (e balões), o diálogo de suas formas é com o espaço que con­
tém suas peças. O diálogo com o espaço e o trabalho serial assinalam sua pre­
dileção por exercícios modulares.
Surge sempre, depois, a especulação com materiais e a alteração dos
mesmos pela exposição ao tempo, não descuidando das formas de elegância
inegável. O quadrado perfeito, os plásticos opacos, o trabalho com as madei­
ras. E o sal de cobre, o mercúrio, a resina, os plásticos, o nylon industrial, o
granito, a porcelana branca, a água, o alumínio.
A série Elípticas — belas como formas, estranhas como concepção —
traz resposta para a indagação: onde se origina a elipse? Nasce do corte de
fatias, em oblíqua, de um cone. E daí a possibilidade de serem de dimensões
diversas, de acordo com sua extração das diversas alturas do cone. Assim, do
corte nasce a forma elíptica: agudeza ferina, percuciente, gume, são todos ter­
mos que nos ocorrem ao contemplar este espaço criado, com piso de cálida
madeira polida, mas que propõe ao olhar formas decepadas — vistas pela
metade, ou nunca em sua inteireza. O gume é perceptível na sutileza dos per­
fis revelados destas elipses contraditoriamente ameaçadoras, não fora a deli­
cadeza de sua execução cuidada. Recostadas, na horizontal, cravadas no piso,
ou penetrando no muro ao apoiar-se nas paredes, com suas bordas delicada­
mente polidas e enceradas. Como armas brancas, de sensual e extrema bele­
za formal, mas de violência sutil.
Percebe-se na última exposição de Artur Lescher, em março de 2002,
na Galeria Nara Roesler, o cuidado extremo na seleção e disposição de cada
peça no espaço com uma simbologia que o visitante casual não pode captar.
U m a exposição realizada após ser projetada em dois anos de trabalho em seus
mínimos detalhes. N a necessária alteração do espaço expositivo, cujo piso
passa a ser recoberto de madeira (sumaúma) quase similar ao cedro com que
foram executadas as elipses. Mas algo de secreto persiste na organização des­

313
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

te espaço e na seleção minuciosa que o artista retém, guardando para si o sen­


tido conceituai da organização quase ritualística deste espaço assim previsto
e realizado.
As mesmas formas elípticas, de três metros de altura, contudo, des­
locadas para o espaço aberto, na Universidade Cruzeiro do Sul, em bronze,
nos passam outra leitura, em meio ao paisagismo natural. São como inicia­
ção de vocação que se assinala em Lescher para a grande escala pública. Dei­
xa, assim, de se comprazer com o estudo de formas de pequena dimensão —
como maquetes para realização posterior — em sua relação com o espaço,
estudo que agora deixa de ser fechado, circunscrito, para se abrir em propos­
ta maior para o meio ambiente.
Lescher pode ser visto também como um transfigurador de objetos, de
peças, ao reproduzir como um objeto inútil em madeira polida os discos do
arado em repouso. Ou ao inserir em uma série contínua de bastões de ipê de
corte quadrado cilindros de impecável porcelana branca brilhante, como um
tapete ou escada rolante horizontal e imóvel, acoplamento já antecipado pela
grande peça exposta em 2001, no Memorial da América Latina, o 0 x 0 —
A roda. Ou em outra peça, os mesmos bastões de secção quadrada, lado a
lado, exibem cada um em seu extremo um grande cilindro, um de granito
negro, outro de porcelana igualmente alva em seu brilho: ambos bastões como
a apelarem para nosso toque, o tato, que suas superfícies atraem.
A secção quadrada versus a secção circular dos cilindros de porcelana.
Sempre um princípio geométrico pensado como contraponto, antinomia ou
complementaridade. Afinal, o quadrado contém o círculo ou o círculo pode
conter o quadrado. E a divergência dos materiais -— no caso madeira versus
porcelana, o natural versus o industrializado — vem acirrar essa conversação
entre materiais e formas.
O vínculo com a arquitetura também transparece na organização do seu
espaço expositivo, seja quando expõe numa Bienal de São Paulo — como
nesta XX V edição, em 2002, calculando a inserção de suas peças no contex­
to espacial, na previsão das interferências possíveis entre as obras paralelas à
sua; ou, na seleção dos materiais, no caso, o piso, a coloração das madeiras, a
relação de distância entre uma peça e outra, a disposição de natureza realmen­
te museográfica — espaço, luz — que o artista-autor realiza para montar uma
exposição.

314
AR TU R LESCH ER : A TÁTICA DA ELEGÂNCIA

Aqui surge o artista que não é arquiteto, mas se comporta como se o


fora, assim como na espacialidade da natureza domada pelo paisagismo, no
projeto de esculturas para o Parque da Universidade Cruzeiro do Sul, em
Anália Franco, no Tatuapé.
Acredito que se pode comunicar aqui a dimensão deste criador, atento
a seu espaço, e ao mesmo tempo quase precioso na preservação do rigor de
execução de cada proposta que desenvolve.

315
54.
Gregório Gruber
[2 0 0 2 ]

Fascinação por seu entorno físico, pela beleza áspera de nossa cidade, São
Paulo, a ponto de torná-la seu tema predileto durante anos e anos, identi­
ficando sua produção com a imagem urbano-arquitetônica embora o desgoste
o rótulo, assim tem sido a trajetória de Gregório Gruber, artista plástico ao
mesmo tempo dotado para a música e praticando uma diversidade de explo­
rações de técnicas que poucos de sua geração fizeram. Entre elas: gravura em
metal, litografia, desenho a nanquim, a pastel, pintura em acrílico, a óleo,
técnicas mistas, esculturas muito particulares em bronze, modelagens reve-
ladoras de seu talento em terracota (como M ãe efilha) ou colorida, incríveis
arquiteturas visionárias projetadas em maquetes exemplares. Realizando sem­
pre as incursões por todas estas séries de trabalhos de maneira natural, o fazer
artístico como uma extensão de sua maneira de ser/viver, quando se senta ao
piano para estudar diariamente, disciplina que acompanha e ilumina sua vida.
Outros artistas já se detiveram absorvendo esta cidade quase como uma
obsessão sentida. Como Benedito Calixto em alguns trabalhos no começo do
século, em particular aquele focalizando a inundação da várzea do Taman-
duateí, ou Livio Abramo, em certas gravuras dos anos 30, ao projetar aspec­
tos do lado operário da urbe que crescia. O u através da visão amorosa e
intimista de Evandro Carlos Jardim, que retorna sempre sobre detalhes da
cidade, seu casario, fragmentos da paisagem urbana que manipula com rara
emoção. O u no primitivo Agostinho Batista de Freitas.
Quando Gregório surgiu, no início dos anos 70, seus trabalhos que foca­
lizavam a solidão do homem urbano o aproximavam, como uma constante,
do estranho realismo pré-pop de Edward Hopper, que via Nova York atra­
vés de seus edifícios em ruas desertas, das janelas de interiores de apartamen­
tos ou percebia a cidade através de cenas como a projetada nos reflexos de
vitrines de lojas.

316
G R EG Ó R IO GRU BER

Mas Gregório é um artista de seu tempo. E longe da visão apocalíptica


de Anselm Kiefer, tomado de espanto frente à caótica paisagem urbana pau­
listana, capta-se em seus trabalhos uma densa poética na bruma recobrindo
o Anhangabaú, antes da catastrófica última reforma que condenaria o gran­
de vale, até então cartão-postal da cidade. Assim fixando a Praça Roosevelt,
imediatamente após sua desastrada transformação; ou registrando a praça
anódina da gestão Erundina, à avenida São João, desprovida de qualquer sim­
bolismo, ou de dignidade — pelo menos, pelos materiais que poderiam ter
sido escolhidos. Sem falar da “catástrofe urbana”, como talvez a chame o
catalão Muntadas, do Memorial da América Latina, um projeto político in­
teressante que mereceria um outro espaço — e quiçá outro projeto... — nesta
cidade tão sofrida quanto vital como energia. Lembro-me de um texto de
Mário de Andrade mencionando Ettore Ximenez, o escultor que viera “in­
felicitar”, segundo ele, a colina do Ipiranga com seu monumento passadista
por ocasião das celebrações pelo Centenário da Independência... Imagine-se
o que diria ele ao ver tantas aberrações e intervenções infelizes no panorama
urbano da cidade de hoje, onde o único monumento digno desse nome, desde
os anos 50, é ainda aquele do Monumento às bandeiras, finalizado por Bre-
cheret, no IV Centenário de São Paulo, no Ibirapuera?
Gregório dirigiu um ateliê de desenho com modelo vivo, em fins da
década de 70, durante nossa gestão na Pinacoteca do Estado, iniciativa que
marcou um tempo na vida cultural de São Paulo, e para todos que lá então
trabalhamos, atraindo um sem-número de estudantes de arte e pessoas de
todas as idades. Se houve desafio para ele, foi muito gratificante para os par­
ticipantes, envolvidos pela personalidade do jovem artista, vibrante, entu­
siasta, que conseguiu uma emulação entre o professor e os freqüentadores,
sendo uma das alavancas da reanimação da entidade nesse tempo.
Logo que o conheci, seu trabalho foi por mim identificado pelo extre­
mo virtuosismo, chegando às raias do maneirismo, pelo domínio técnico com
que produz suas imagens. M as ele diversifica suas abordagens com materiais
diversos, e por recursos com que tenta alterar para fugir a esse virtuosismo.
Se o alcança ou não seria outra questão, mas a verdade é que sua inquietação
está à flor da pele na recorrência à fotografia, ao polaroid, ao vídeo, que utili­
za — ou já utilizou — como ferramenta, para projetos a desenvolver poste­
riormente em pastel, óleo, acrílico, escultura. Ou mesmo na apropriação de

317
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

imagens da imprensa — jornais e periódicos — , de que se utiliza para a in­


terpretação de seu tema predileto: a cidade de São Paulo, e em particular seu
centro.
O pastel, ou o acrílico diluído, sem deixar rastros de seus gestos, sem­
pre foi o denominador comum de seus trabalhos. Visitando seu ateliê, ouvi­
mos do artista que quando se sente esgotado por essas técnicas, recorre ao
óleo, de secagem mais lenta, para realizar suas composições com o mesmo
tema, porém projetando imagens transfiguradoras da cidade através da pin­
celada breve, de gestos curtos — vertical, horizontal — quase cezannianos,
ou freqüentemente desvairados, à maneira de Van Gogh, admirador de quem
em seus primeiros anos de aprendiz copia um retrato — mas soturnos, com
cintilações noturnas povoadas de pequenos toques luminosos.
O artista não busca justificar as possíveis incoerências de seu trajeto. Pelo
contrário. Ver a produção “que não se expõe” é poder ver o “lado escuro do
criador de arte”, o lado da experimentação, da busca que o faz trabalhar com
modelagem, com pastilhas de vidrotil, com colagens de parafina tingida, der­
retida e modelada, com construções abstratas em madeira balsa. E caótico e
difícil de verbalizar, ou tentar uma racionalização do universo criativo, em­
bora freqüentemente o lado lúdico renove o artista. É notório o compromis­
so asfixiante que sufoca aquele que é reconhecido pelo mercado, que deseja
sempre encontrar nele sua “marca”, impedindo-o da liberdade para um de­
senvolvimento mais amplo. D aí porque Gregório destaca como significativa
sua estada prolongada em Barcelona, entre 1989 e 1992, um tempo em que
olha essa cidade com todo seu encantamento, suas obras de arte, e é conta­
minado por seu passado e presente dinâmico, quando nada lhe é cobrado ou
solicitado, mas representa antes um tempo de receber. Embora ninguém pos­
sua uma liberdade desmedida, pois cada um detém um perfil e um tempo.
E, definido o primeiro, o tempo é delimitado, e o artista deve retornar a si,
incorporando suas marcas, seus signos acumulados através dos anos de tra­
balho, a eles regressando. E passando a trabalhar, digamos, consigo mesmo,
dialogando com sua própria obra.
Nascem nesse período de Barcelona as telas mais matéricas, de superfí­
cie densa, de mescla de materiais, fruto da observação de um entorno pouco
familiar, pleno de surpresas e perplexidades do ponto de vista plástico cog­
nitivo. O lado de fidelidade a si mesmo de Gregório é que, se não deixou de

318
G R EG Ó R IO G RU BER

especular com materiais e técnicas, também não se curvou aos modismos: não
partiu para o conceituai, o minimalismo, nem realizou instalações. Talvez pe­
lo ambiente de arte herdado de seu pai, Mário Gruber, Gregório acredita no
trabalho de ateliê, na manualidade da produção, a obra surgindo de suas mãos
e não apenas por ele projetada e executada por outros. Persiste nele a capaci­
dade de fruição do ato de fazer, que muitos artistas jovens têm perdido.
H á uma diferenciação muito ampla entre as telas de acrílico diluído,
visões urbanas quase monocromáticas — esverdeadas, gamas de cinzas, ocres-
alaranjadas, azuladas — que se aproximam dos pastéis de fins dos anos 70,
mesmo em composições mais recentes, em que reinventa os espaços urbanos
sem mais se preocupar com a veracidade do real, acreditando antes em sua
interpretação a partir de seu domínio desses mesmos espaços, através de
colagens de projeções urbanas, por vezes inidentificáveis. E as telas feitas a
óleo, por vezes quase agressivas em seu cromatismo gritante, de pinceladas
acumulativas -— mas é a luz, a luz que em geral não se aceita pelo lugar-co-
mum de ver São Paulo como uma cidade cinza, argumentaria ele ■— mas que
aí está, no fim de uma tarde, em determinada época do ano, uma lumi­
nosidade transgressora dos cartões-postais dessas imagens que poderiam ser
acadêmicas em sua preocupação com a representação.
Esta exposição, que cobre mais de trinta anos de trabalho, desde a se­
gunda metade dos anos 60 até hoje, quase um retrato de corpo inteiro de
meio-caminho, poderíamos dizer, pois a juventude inerente à personalidade
de Gregório nos impede de vermos nesta dupla exposição — nesta reaber­
tura da Galeria Prestes Maia dos salões paulistas de arte moderna e no espa­
ço do BM & F — Bolsa de Mercadorias e Futuros — uma retrospectiva. Mas
nos possibilita uma visão da produção bidimensional, pictórica e gráfica deste
artista integrado à cidade com toda a carga da emoção que lhe comunica esta
dilacerada e fluvial cidade de São Paulo (tão pouco lembrada neste aspecto,
embora no século X X os artistas dos anos 30 e 40 o registrassem em paisa­
gens, com a presença freqüente de embarcações em suas pinturas sobre o
Tietê, o Tamanduateí e o Pinheiros).
Entre os temas recorrentes na obra de Gregório, o monumento a Carlos
Gomes, ao lado do Teatro Municipal, presente da colônia italiana à cidade
por ocasião da comemoração do Centenário da Independência em 1922, a
baixada do Glicério, as ruas centrais, o Pátio do Colégio, o Mercado Central

319
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

tantas vezes revisitado, os viadutos e minhocões, a urbe assombrosa sempre


despovoada, a arquitetura e os espaços urbanos se impondo à visualidade,
sempre fizeram com que nos indagássemos: mas em que hora mágica Gre­
gório fixou, congelou estes flagrantes? E, na verdade, estas imagens não con­
sistem de uma visão do real. Mas correspondem a um conceito do espaço
urbano retido que ele projeta — como há pouco tempo Waltércio Caldas o
fez, ao despojar das pinturas de Diego Velásquez seus personagens e nos re­
velar em belo livro somente as imagens de seus espaços compositivos.
Gregório nos oferece também uma visualidade plena de licença poéti­
ca. Poéticas visuais da memória de uma cidade que nele habita.

320
55.
León Ferrari:
os anos paulistas (1976-1984)
[2 0 0 4 ]

Talvez o criador esteja mais vivo na medida em que mantém latente sua
capacidade de indignação, de insolência, de indagação. Às vezes esse estado
de espírito se amaina, se aplaca, depois dos 35 anos, quarenta anos. E, por
vezes, aos sessenta não resta mais nenhum resquício desse furor, embora nun­
ca seja “demasiada fúria”, consideraria Pablo Suárez. N o entanto, vemos León
Ferrari aos 84 anos em estado de turbulência com o mundo das idéias, cren­
ças e preconceitos, expressando-se de maneira destemida, como em geral so­
mente aos jovens parece ser dado se manifestar.
Foram estas suas qualidades, e mais sua possibilidade de uma comu-
nicabilidade suave com “o outro”, que fizeram com que Ferrari construísse
com muita rapidez um círculo de amigos e admiradores, quando se radica em
São Paulo, a partir de 1976, sobretudo entre jovens artistas. Para todos, León
Ferrari foi muito importante, pela forma como se interessa pela inovação,
através de processos e tecnologias a serem explorados, pela experimentação,
enfim. Desaparece, assim, a diferença etária, de nacionalidade, pela força de
interesses comuns e fraternos. Essa é a razão pela qual León Ferrari afirma não
se sentir um “exilado” em São Paulo, que confere toda a visibilidade ao ar­
tista, que passa a ser desta cidade, com uma projeção bem além dos limites
do estado, e, de certa forma, mantendo contatos que extrapolam a data de
seu retorno definitivo à Argentina.
A casa da rua Carlos Sampaio, como depois a da alameda Lorena eram
freqüentadas por amigos do casal Alicia-León Ferrari, sem mencionar o ate­
liê da rua Amália de Noronha, onde León passa a dispor de um ambiente mais
amplo e conectado com artistas que dividem com ele o mesmo espaço, sem­
pre aberto para discussão e encontros. Desde o início soube relacionar-se, e
nisto vai também o feeling de quem contatar a partir de afinidades para o tra­

321
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

balho que poderia desenvolver-se, uma vez virada, ou na tentativa de supe­


rar, uma página amarga de sua vida familiar duramente golpeada.
Regina Silveira, por exemplo, lembra-se de León a partir de fins de 1978,
freqüentando o Centro de Estudos Aster, sede de cursos em fase de implan­
tação com Julio Plaza, Walter Zanini, Donato Ferrari, à rua Cardoso de Al­
meida, no Pacaembu.1
Ali León iniciou-se em litografia, no que Regina Silveira o orientava
junto com o técnico Paulo Guedes.2
Foi também no Aster que Ferrari começa a fazer xerocópias enobrecidas
em papel Fabriano, segundo nos lembra Regina Silveira. Ou seja, o múlti­
plo, mecanicamente reproduzido, de elevada qualidade visual. Posterior­
mente, seria intitulada de “Gerox”, termo inventado por Julio Plaza, numa
“síncope” do “g” de gravura com a palavra “xerox”. A exposição desses tra­
balhos ocorreu no Museu de Arte Moderna de São Paulo.3
Em 1982 surgiriam as microfichas, iniciativa de Regina Silveira e Rafael
França. Trata-se de dez trabalhos gráficos de 32 artistas convidados, cada um
participando com doze fotogramas (onze trabalhos gráficos e mais uma pá­
gina com o título da obra) para compor uma microficha onde se reuniam as
obras seriadas de quatro artistas.4 Uma máquina especial microfilmava os tra­

1 O Aster fora fundado em agosto de 1978, por Regina Silveira, Julio Plaza, Walter Zanini
e Donato Ferrari e vigoraria até 1981.
2 É em São Paulo que Ferrari, com efeito, se inicia na litografia. Antes, desenhos seus fo­
ram utilizados como ilustração, no caso do livro de Rafael Alberti, em 1963, em decorrência de
dez ou doze desenhos com que o artista presentearia o autor. E o editor, Scheiwiller, de Milão, os
transformou em ilustrações graças ao offset. Segundo Regina Silveira, Ferrari no Aster se interes­
sou também pela Yno-offiet, de procedimentos fotomecânicos em chapas pré-sensibilizadas, com
os quais imprimiu diversas de suas “escrituras”. Léon Ferrari realizou em São Paulo pontas-secas
sobre aço inoxidável, dois livros de artista com essa técnica e várias águas-fortes, provavelmente
em 1979. Depoimento de León Ferrari à Autora, a 24/4/2004.
^ León Ferrari participou da exposição coletiva “Gerox”, com cópias em xerox, e alguns ar­
tistas se utilizaram então do papel Fabriano para essas cópias. León possui a coleção completa dos
múltiplos feitos para essa mostra, inclusive três fotocópias firmadas por Mira Schendel. Corres­
pondência de León Ferrari à Autora, a 13/4/2004.
^ “As microfichas eram em tudo semelhantes às que na época eram de uso comum em bi­

322
L EÓ N FERRARI: OS AN O S PAULISTAS (1976-1984)

balhos, que posteriormente podiam ser “lidos” quando expostos através de


equipamento de leitura, alugados pela organização da exposição.5
A partir de sua primeira exposição com desenhos em São Paulo, “Escri­
turas Impossíveis”, na Pinacoteca do Estado, em setembro de 1978, vemos
León retomar o fio de realizações plásticas que desenvolvera na Europa e na
Argentina no início dos anos 60, antes dos estremecimentos das participações
em “Tucuman Arde” (1968), no “D i Telia” (1965), “Homenagem a Lati-
noamérica” (1967), e “Malvenido Rockefeller” (1969), eventos sobretudo de
natureza política participante.6
N a Pinacoteca, expõe, além dos desenhos, esculturas de finos filamentos
lineares em aço inoxidável, realizados entre 1977 e 1978, verdadeiros “nú­
cleos suspensos em espaços contidos, o infinito aprisionado em prismas, em
expansão vertical ou multidirecionais irradiantes”. Assemelhavam-se a “cons­
truções de pequenas dimensões, como maquetes de edifícios imaginários”,
que “especulam a profundidade visível do espaço prismático através de suas
estruturas, nas quais também a luz incide, transfigurando esses tênues elemen­
tos lineares, organizados de forma musical e poética, simultaneamente”.7
A articulação entre o desenho, a gravura e as esculturas era bem sensí­
vel. N o desenho, o formato retangular da página delimitada pela área ocupa­
da, na horizontalidade das linhas, na ênfase das maiúsculas, no intrincado do
ilegível, e mesmo na incomunicabilidade do código por sua própria ine­

bliotecas, para miniaturizar textos, e cuja visualização era permitida por aparelhamento específi­
co. Já a exposição “Arte Micro” foi produzida numa firma comercial de microfilmagem (IMS,
Microformas e Sistemas) com tiragem sob a orientação do prof. Fredric Litto, da ECA-USP”.
Depoimento de Regina Silveira à Autora, a 22/4/2004.
5 O MAM-SP possui essas microfichas em seus arquivos. A exposição “Arte Micro”, de
microfichas, foi realizada em São Paulo, no Museu da Imagem e do Som (MIS), no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, em Caxias, Rio Grande do Sul, na Bath House, em Dallas, Texas, e
em Lisboa, na Cooperativa Diferença.
6 Sobre o assunto, testemunhos inéditos de León Ferrari, apud Aracy Amaral, Arte para que?
A preocupação social na arte brasileira (1930-1970), Ia ed., São Paulo, Editora Nobel, pp. 22, 27 e
28, 1984.
7 Aracy Amaral, “León Ferrari na Pinacoteca”, “León Ferrari: esculturas, gravuras e dese­
nhos”, São Paulo, set. 1978.

323
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

xistência, fazia persistir um lirismo à flor da pele nessa série de sua obra
gráfica. E, como registramos naquele momento, “às vezes o sonoro parece
perceptível em estridências do negro, assim como no Futurismo a utilização
gritante das letras denunciava a vontade do som”, prenunciando as experi­
mentações musicais a serem realizadas três anos depois, a partir de varetas ou
barras verticais.
A capacidade de León Ferrari de interagir — para usar uma palavra ho­
je em moda — com possíveis interlocutores que conhece em São Paulo foi
surpreendente. U m dos primeiros artistas com quem trava conhecimento é
Alex Fleming, em curso de gravura. Paulo Bruscky, de Recife, um dos pio­
neiros em arte-postal no Brasil também entra em seu rol de relações. Assim
como Ana Carreta, Bené Fonteles, artista caminhante, errante por todo o
Brasil, Hudinilson Júnior, que trabalha com xerox, além de Genilson Soa­
res, Nina Moraes (esta da jovem geração dos anos 80), assim como o inven­
tivo Guto Lacaz, todos absolutamente experimentais utilizando-se das mais
diversas media. Poetas como Arnaldo Antunes, este também compositor, além
de Régis Bonvicino, quem lhe escreveu a apresentação do livro Bíblia. Gen­
te de cinema como Jean Claude Bernardet e Hector Babenco, além de his­
toriadores e críticos como Walter Zanini, Ana Maria Belluzzo, eu mesma,
Leonor Amarante, o ensaísta e professor de literatura russa na USP, Boris
Schnaiderman, o compositor uruguaio Conrado Silva, que depois trabalha­
ria com León em suas experimentações sonoras. Enfim, Ferrari rapidamente
soma, para seu convívio, pessoas criativas com afinidades. Até em Fortaleza
se estendem seus contatos, e o escultor Sérvulo Esmeraldo e Dodora Guima­
rães o convidam para o instigante evento “I Exposição Internacional de Es­
culturas Efêmeras”, em 1986.8
Entretanto, significativo mesmo foi seu relacionamento com o casal de
artistas Regina Silveira e Julio Plaza, dinamicamente voltados para as expe­
rimentações que atraíam Ferrari: videotextos, microfichas (nesta empreitada

8 Sérvulo Esmeraldo, escultor abstrato geométrico de Fortaleza, estado do Ceará, no Nor­


deste do Brasil, conseguiu reunir nesse evento um número considerável de artistas do Brasil e ou­
tros países que apresentaram seus trabalhos em parque da cidade. León Ferrari apresentaria uma
gaiola com pombos que defecavam em espaço em formato de cruz, já dando seqüência, assim, a
suas provocações religiosas.

324
L EÓ N FERRARI: OS AN O S PAULISTAS (1976-1984)

com o videomaker Rafael França, através das facilidades oferecidas pelo pro­
fessor Fredric Litto, da ECA-USP), arte postal, livro de artista, passaram a
ser desenvolvidos simultaneamente por estes artistas, e León Ferrari.
A aproximação de Ferrari da máquina, para fins reprodutivos ou como
fonte de inspiração para suas criações em sua estada em São Paulo, deu-se,
portanto, tanto nas reproduções de sua obra gráfica com fotocópias quanto
na utilização de novos meios, como a heliografia como suporte para suas com­
posições, que foram concebidas por outro meio mecânico de incorporação
de “sinais gráficos”: a figura, ausente de seus trabalhos, mas que comparece
a partir da apropriação do vocabulário de letraset. E a mão do artista que pro­
jeta a composição, a partir de elementos modulares do letraset. Elementos
básicos para projetos arquitetônicos — onde aparecem como inodoros, neu­
tros, despersonalizados — , esses módulos adquirem um caráter peculiar nas
mãos de Ferrari, que infunde vida, senso de humor, em ironia fina a seus
babilônicos interiores ou às visões impressionantes das multidões de carros
em passagens de nível, rodovias, anéis rodoviários, movidos evidentemente
pela visão urbana caótica, excitante e fervilhante, de um grande centro urba­
no como São Paulo. Nesse fazer manipulando elementos “pré-fabricados”
percebia-se que León Ferrari se comprazia na descoberta desse novo meio.
Nestas séries de trabalhos que expôs no MAM-SP registramos que o ar­
tista se abre a novas formulações. D a “lembrança” que permeava seus textos
ilegíveis passa à suave ironia: “Os módulos de letraset são combinados, enri­
quecidos, harmonizados com sua caligrafia — ou montados em estruturas
feitas à mão, para posterior reprodução xerográfica”, impecável sobre papel
vergé de fabricação brasileira. “Estabelece-se nestes últimos trabalhos — as­
sim como nos pequenos livros das Edições Licopódio, nome inspirado no pre­
parado químico do xerox — um novo relacionamento entre o observador e
a obra, pela própria presença do 'jogo’, através da leitura dos trabalhos pelos
labirintos em que se deslocam os pequenos seres/personagens, narrativas vi­
suais que parecem agora emergir das composições em letraset/xerox de León
Ferrari. N os labirintos ou nos jogos de xadrez, este sentido de humor desen­
volve-se em cadeia, colocando o espectador diante de enigmas intrigantes,
fundados nos módulos transfigurados pelo artista. Sente-se bem claramente
o deslumbramento de Ferrari diante da multiplicidade de provocações des­
cobertas no catálogo do Letraset. E a articulação que ele tenta com os nume­

325
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

rosos elementos — em conotações nostálgicas, lúdicas, pícaras, e mesmo eró­


ticas — e seus grafismos, ou simplesmente na composição movimentada e
dinâmica desses elementos prontos, vem assinalar o início de um período fér­
til, que os trabalhos de há três anos não podiam nos fazer prever”.9
Miguel de Almeida, jovem jornalista cultural de São Paulo — que pos­
teriormente abandonaria sua coluna “ardida” — , enfatizou à época o caráter
anarquista de León Ferrari: “A ótica do bom Ferrari é irônica e debochada.
Sua visão está no desejo de desvendar o que vai pelos apartamentos e camas,
pelos banheiros e salas. Não é desejo, é obsessão, mania de personagens me­
tropolitanos, os urbanos atrás de vidas alheias. Nisso não há uma simples
curiosidade, maldosa, apenas um ato de estender o horizonte — ou de ver-
ticalizar a visão”.10 Essa vontade de “dessacralizar” a caligrafia artística vem
ao encontro do que foi dito em entrevista a Antonio Gonçalves Filho: “As
pessoas tendem a acreditar demais na arte como algo solene”.11
Essa é a fase de trabalhos da “arquitetura da loucura”, como ele a deno­
minou, certamente motivado pela vivência do espaço urbano e ritmo do caos
paulistano, quando ele declara na entrevista dada à Gabriela Salgado que a
cidade o impressionou muito.12 Assim, na metrópole trepidante, cativava-o
também a liberdade que sentia na atividade dos artistas à sua volta — “os
brasileiros parecem que têm a cabeça mais livre”, declararia ele.13 Mas não
deixava de ser crítico em relação à realidade violenta das contradições sociais

9 Aracy Amaral, “León Ferrari: a invenção e a máquina”, São Paulo, catálogo MAM-SP,
1980.
10 Miguel de Almeida, “Ferrari e os segredos da metrópole”, Folha de S. Paulo, 7/12/1983.
11 Antonio Gonçalves Filho, “A arte contemporânea...”, Folha de S. Patão, 24/11/1983.
12 Entrevista a Gabriela Salgado, Buenos Aires, mar. 2002.
13 Comentando o não-acolhimento de seu trabalho “Manifesto contra o inferno” à exposi­
ção na Recoleta, Ferrari declara que em função dessa experiência e do “Di Telia” — quando
Romero Brest retirou a peça “A civilização ocidental e cristã” (1965), dado o teor político da obra
e seu caráter panfletário, considerava Buenos Aires uma cidade “muito cristã”, comparada com o
ambiente mais aberto encontrado entre os brasileiros: “Eles tiveram a contribuição africana, que
lhes deixou uma cultura muito rica. Eliminou-se a idéia do monoteísmo, que é uma idéia fascista:
o Deus que é único. Não se pode escolher, é o Deus terrível e ineludível”. Entrevista a Alberto
Collazo, “Videla cumple con la Bíblia”, s.ed., 1987.

326
LEÓ N FERRARI: OS ANOS PAULISTAS (1976-1984)

que rodeiam os brasileiros: “Gosto do Brasil porque são mais tolerantes que
nós, embora a situação seja mais terrível que a nossa. Está-se comendo a co­
mida desses cinqüenta milhões que estão morrendo. A gente é explorador em
qualquer parte do mundo, porque uns comem e outros não. Mas no Brasil
se nota mais”.14
Essa consideração não é motivo para que Ferrari creia que a arte possa
modificar a vida: “Acaso entendemos, nós que comemos, a criatividade da­
queles que não comem?”, se indaga. E acrescenta: “Não estou de acordo com
que a arte possa fazer uma revolução social, mas tampouco com os que di­
zem que não serve para nada, pois negam a contribuição artística à socieda­
de, que embora seja um grão de areia, tem sua importância, tem a possibili­
dade de falar das coisas que não têm palavras”.15
Ao mencionar a atividade plástica que encontra no país, não deixa de
mencionar, na entrevista citada a Alberto Collazo, que paralelamente ao fa­
to de serem mais tolerantes, “fazem mais coisas à margem do campo co­
mercial”.16
As experimentações mais surpreendentes de Ferrari, em São Paulo, vão
além da manipulação dos elementos mecânicos de reprodução e da apropria­
ção de módulos gráficos — como o vocabulário em letraset ou da heliografia
e fotocópia. Situam-se na inventividade de suas peças escultóricas, que cons­
tituem um desdobramento de suas esculturas de filamentos lineares apresen­
tadas já em 1978. Transportadas a uma escala maior, produzem eventos es­
pecíficos. Referimo-nos ao “Arte Lúdica”, realizado no Museu de Arte de São
Paulo (MASP) e na Pinacoteca do Estado. A obra intitulou-se primeiramen­
te Berimbau, e depois Percanta, e pertence hoje à coleção permanente da Pi-

14 Idem, ibidem.
*5 Adriana Malvido, “EI arte tiene un peso político muy fuerte, que puede servir al poder o
a las fuerzas que lo combaten: Ferrari”, Uno + Uno, Buenos Aires, 8/4/1982.
16 De fato, trata-se de tempo fértil em que museus, sobretudo nesse fim dos anos 70 e iní­
cio dos 80, tomam a iniciativa de propiciar a apresentação de novas linguagens, abrindo seus es­
paços: “Fizeram-se grande quantidade de exposições com gente jovem que experimentou diver­
sos meios {media): fotocópias, heliografias, videotextos, cartazes publicitários, holografias, com­
putadores, fibra óptica, microfichas, livros de artista, arte-postal. Os museus apóiam o campo da
experimentação”, acrescentou referindo-se àquele tempo. Alberto Collazo, idem, ibidem.

327
ARTISTAS C O N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

naco teca de São Paulo, em seu parque de esculturas, no Jardim da Luz, con­
tíguo ao museu. O evento na Pinacoteca, a que assisti, de beleza contagiante
por sua inventividade, foi denominado por León Ferrari de “Música Não
Figurativa”, assinalando essa nova incursão do artista pelo domínio do som.
A escultura que propiciava essa sonoridade — obtida pela manipulação do
artista, em verdadeira performance — constava de centenas de barras metáli­
cas de diferentes diâmetros, invertidas, presas em sua base.
O artista narra o início dessa experiência: “Comecei a utilizar o pêndu­
lo invertido em uma série de esculturas formadas por varetas verticais de aço
presas a uma base comum, em seu extremo inferior. Ao agitar-se com o ven­
to ou com a mão, escutava-se um murmúrio: pensei então em utilizar essas
peças como instrumentos musicais que dançam sua própria música”.17
Como os músicos receberiam essas “esculturas sonoras” de Ferrari? Co­
menta Enio Squeff: “Para os músicos, a obra escultórica-musical do senhor
León Ferrari não chega a constituir novidade: ele usa arcos de violinos para
friccionar barras de ferro, emprega baquetas para percuti-las ou simplesmente
bate as barras umas contra as outras num trabalho que, em gravação, resulta
muitas vezes exatamente naquilo que alguns músicos extremamente compe­
tentes, como o polonês Penderecki ou o alemão Stockhausen conseguem
obter de uma sinfônica. Ou seja, sem ser um músico ao pé da letra, o escul­
tor León Ferrari consegue um clima de musicalidade que define a música de
um modo muito especial”. E prossegue dizendo que a atividade musical do
escultor “não deixa de expressar essa realidade: por não ser músico, mas ar­
tista plástico, ele incursiona com timidez num terreno que lhe é vedado na
medida em que existe uma divisão de trabalho muito nítida no tipo de socie­
dade em que vivemos; e que, em função disso, a própria música requer um
artesanato específico”. Squeff reconhece, contudo, que Ferrari “amplia em
muito as possibilidades de que a música seja apenas uma alternativa entre a

17 “Esculturas que fazem música”, Folha de S. Paulo, 16/12/1980. “Para mim, diz Leó
Ferrari, o aspecto mais interessante dessas esculturas que fazem música são as vozes que se obtém
com o arco do violino. Os sons se modulam e mudam de acordo com a variação da altura do ponto
de contato, a pressão, velocidade e ângulo de toque. O resultado faz lembrar às vezes um violoncelo,
um instrumento de vento, uma respiração ou um lamento”. E o nome dado à peça, Percanta, re­
flete palavra da gíria de Buenos Aires, que significa menina, moça, garota. Idem, ibidem.

328
LEÓ N FERRARI: OS AN O S PAULISTAS (1976-1984)

prática do artesanato e a sua fruição, como se faz nos teatros com Beethoven,
Mozart ou Schoenberg. Sob este aspecto, ele apenas acrescenta um pouco
menos do que fazem os compositores Gilberto Mendes, Raul do Vale e Willy
Correa de Oliveira que, por serem artesãos, nunca se negam a essa tradição
que os formou. León Ferrari não quer ser mais um escultor que, eventual­
mente, usa escultura para a música, na medida em que seus trabalhos se pres­
tam também como instrumentos”.18
León Ferrari realizaria, entre final de 1983 e fevereiro de 1984, uma
exposição na galeria “Humberto Tecidos”, na qual Conrado Silva, composi­
tor uruguaio radicado em Campinas, apresentou Variaciones para vástagos
metálicos, tocado por seus músicos, a partir de trabalho do artista.19
Essas esculturas sonoras de barras metálicas motivariam o então secre­
tário municipal de Cultura de São Paulo, Fábio Magalhães, a convidar o ar­
tista para realizar uma escultura pública em homenagem a Alceu Amoroso
Lima (Tristão de Athaíde), pensador católico do século XX, inaugurada no
D ia dos Direitos Humanos, na Marginal Pinheiros com Avenida João Dias,
na zona Sul de São Paulo.20 Comentando a concepção deste trabalho, Tei­
xeira Coelho enfatiza que o artista “procurou escapar à idéia tradicional de
‘monumento’ que impõe uma separação entre o glorificado e o comum dos
mortais que se limita a rodear a obra sem aproximar-se dela”.
As colagens de imagens da História da Arte e as abordagens de textos
bíblicos são retomadas, com a mesma irreverência, por Ferrari a partir de ex­

18 Enio Squeff, “León domina o som das esculturas”, Folha de S. Paulo, 20/12/1980. Os
compositores citados pelo comentarista, Mendes, do Vale e Correa de Oliveira são compositores
de música concreta no Brasil.
13 Essa exposição seria premiada como a Melhor Exposição do Ano, pela Associação dos Crí­
ticos de Arte de São Paulo. “Uma exposição emocionante, no sentido amplo e legítimo da pala­
vra, abrangendo a produção passada e atual do artista e um registro iconográfico do artista e sua
família, filhos, esposa, parentes, netos, em vários momentos de sua vida na Argentina e no Brasil,
além de evocações da obra de seu pai, um construtor de catedrais do século XX, literalmente”. José
Teixeira Coelho Neto, “Uma catedral ao vento dos direitos humanos”, A r’te, n° 9, São Paulo, 1984.
20 A escultura, de 4 x 4 x 5,5 m de altura, “formando um prisma de canos verticais de aço
com três polegadas de diâmetro cravados no chão em meio à grama” era como um “labirinto por
onde caminham e passam os freqüentadores da praça”. José Teixeira Coelho Neto, op. cit.

329
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

posição que realiza em São Paulo, em 1984,21 antes de seu retorno paulatino
e definitivo a Buenos Aires. A coexistência com o clima político-social e cul­
tural argentino faria recrudescer — e exacerbar — sua crítica em relação ao
poder, à Igreja e ao Estado repressivo. Progressivamente, ele centraliza, assim,
em suas atividades, essa retomada feroz, poderíamos dizer, do confronto com
o reacionarismo clerical, marca de sua produção dos últimos vinte anos. Não
por acaso escreve-lhe a propósito seu grande amigo, o artista e intelectual Luís
Felipe Noé: “Pocos quieren entender cuando decís que el verdadero cristianismo
es elferoz, el de Torquemada, porque de la concepción dei infierno a los campos
de concentración sólo hay una pequena variante temporal. Pero debe entenderse
que tu cuestionamiento a l cristianismo parte de la desilusión (y el escepticismo
consecuente) sobre que él no sea el defensor de los valores que te ensenó”
A indagação que permanece no ar é: como seria a produção de León
Ferrari caso tivesse optado por permanecer no Brasil e não houvesse regres­
sado à Argentina? Será que esse caráter intelectual de profunda, impressio­
nante erudição, hereje, “anti-cristão”, idólatra, pró-inferno, violento em re­
lação à aguda problemática político-clerical de seu país, em contato com a
memória e o engajamento inevitável com os compromissos de sua geração
emergeria com a mesma energia a que assistimos após seu retomo a Buenos
Aires? Ou optaria ele pelo prosseguimento de uma linha de especulação for­
mal como a que caracterizou seus desdobramentos no Brasil?

21 Galeria Susana Sassoun, nov. 1984. Em “A Nova Dimensão do Objeto”, exposição co­
letiva no MAC-USP, em setembro de 1986, também estaria presente um trabalho com a incor­
poração de um crucifixo sobre o suporte pintado (140 x 115 cm). Tendo iniciado várias viagens
regulares a Buenos Aires a partir de 1983, o retorno de Ferrari à Argentina se daria de forma in­
termitente até tornar-se definitivo em 1991, quando encerra seu ateliê na rua Amália de Noronha.
Expõe em várias coletivas, inclusive em “Palavra Imágica” (1987), no MAC-USP, com collages
religiosos. Trabalhos desta fase foram selecionados — e posteriormente censurados — para a ex­
posição latino-americana realizada por Dawn Ades, em Londres, na Hayward Gallery. Depoimen­
to de León Ferrari à Autora, a 3/5/2004.
22 “Poucos querem entender quando você diz que o verdadeiro cristianismo é o feroz, o de
Torquemada, porque da concepção do inferno aos campos de concentração há somente uma pe­
quena variante temporal. Mas é preciso entender que o seu questionamento do cristianismo parte
da desilusão (e o conseqüente ceticismo) por ele não ser o defensor dos valores que lhe ensinou”.
Luís Felipe Noé, “Carta a León sobre ‘El Caso Ferrari’”, Fin de Siglo, jun. 1988.

330
56.
Conversação com Evandro Carlos Jardim:
imagens revisitadas
[2 0 0 4 ]

“La question est donc circonscrite: 'comment le temps


peut-il être, si le passé n 'estplus, si lefutur n ’estpas encore et si
leprésent ríestpas toujours?‘.”
Paul Ricoeur1

O universo intimista de Evandro Carlos Jardim parece fora do tempo,


no interior do espaço particular que ele criou, uma reserva neste mundo tu­
multuado e caótico de hoje na megalópolis que habitamos, em que ele habi­
ta, e que ama com a sensibilidade que emerge de suas imagens.2
Evandro aborda, na temática de suas gravuras, suas constantes anotações,
que retoma, refaz, recompõe, acrescentando um elemento novo em cada ima­
gem ao alterá-la e ao mesmo tempo deslocando-a; e, nessa reformulação sin­
tática, concedendo-lhe um novo significado.
Cada vez que tenho a oportunidade de rever as imagens gravadas por
Evandro, algo ocorre frente ao “subtexto” que para mim emerge dessas ima­
gens: o problema da memória. Mas, afinal, o que é a “memória”? Até que
ponto a memória é opção, ou até que ponto ela se impõe como uma exten­
são de sua mão, independente de um ato voluntário na retomada das figuras
de suas diversas séries de trabalhos, como um gesto do subconsciente que
dirige o artista em seu processo de criação? O que é a memória? — volto a
me indagar.

1 Paul Ricoeur, Temps et récit — Tome L. L 'intrigue et le récit historíque, Paris, Editions du
Seuil, 1983, p. 28. Colaboração bibliográfica de Lisette Lagnado.
2 De agora em diante, em itálico, textos-títulos de obras de Evandro Carlos Jardim.

331
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Recorro ao dicionário: ali se informa aos desavisados que já durante a


Antigüidade se discutia se a vontade intervém ou não intervém na memória.
E um dado bastante interessante quando se pensa em termos dos trabalhos
de Evandro: “Duas concepções últimas parecem ter-se enfrentado: a que de­
fine a memória como o rastro psicofisiológico deixado pelas impressões no
cérebro e reproduzível mediante leis de associação, e a que tendeu a considerá-
la como um puro fluir psíquico” (Ferrater Mora). E acrescenta ainda, ao
mencionar filósofos que abordaram o problema da memória e suas possíveis
formas, pois, segundo Bergson, a memória pode ser memória-hábito ou me­
mória de repetição e memória representativa. A primeira seria psicofisiológica,
e a segunda, a memória pura. E o que seria essa “memória pura”? Seria “fun­
damento da memória propriamente psicológica, isto é, da memória enquan­
to retenção, repetição e reprodução dos conteúdos passados”. Mas, ao mes­
mo tempo, essa memória “representaria não apenas o reconhecimento dos
fatos passados, mas o reviver efetivo, embora sem consciência de sua ante-
rioridade, o re-cordar no sentido primitivo do vocábulo...”.
Essas reflexões podem ser oportunas, pois esta exposição, tal como foi
concebida por Cláudio Mubarac — um gravador dialogando com o proces­
so do mestre-gravador — , objetiva transportar-nos para dentro do ateliê do
artista, expondo de maneira delicada seu processo de trabalho, ou colocan­
do-nos frente a frente com a informalidade da experimentação na produção
do artista, ou seja, sua intimidade profissional, até aqui seu domínio privado.
Dessa forma, não se visa mostrar de maneira linear ou retrospectiva o percurso
de Evandro Carlos Jardim, e sim, antes, revelar o perfil de sua trajetória cir­
cular, que retorna sobre si própria, constantemente. E que encerra, nesses re­
gressos, a chave de sua poética particular. Em outras palavras, como Evandro
mesmo exemplifica, “a imagem contém em si muitas figuras. Assim, se você
repete imagens, tem-se a possibilidade de construir mais figuras”.
Três espaços visualmente focalizados com constância pelo artista em seu
olhar peregrino estão bem evidenciados nesta seleção: o planalto (o rio, a ci­
dade, o Jaraguá, Interlagos, o rio Pinheiros, a chuva), a serra (a árvore, Cuba-
tão vista do alto, o pássaro, o fogo de beira de estrada), o mar (o barco, a casa
da praia, o chalé de São Vicente, Rio Pequeno, as conchas). Ou, em outras
palavras: a memória do planalto, da serra, do mar.
Esse olhar poderia ser desdobrado em outros — perceptíveis com cla-

332
CONVERSAÇÃO CO M EV ANDRO CARLOS JARD IM : IM AGENS REVISITADAS

Evandro Carlos Jardim em seu ateliê em São Paulo, 2005.

reza em seus últimos livros/cadernos — como a cidade: o muro empapelado


da rua, a fogueira, o homem-sanduíche, S.P. — C. 17.45 hrs. (1967), o Par­
que D. Pedro com o Palácio das Indústrias, o monumento do Pátio do C o­
légio, o solar antigo da rua Maranhão, a cortina esvoaçante na janela, e as­
sim por diante. Ou ainda, neste desdobramento sem fim, na visualização do
Palácio das Indústrias na visão sombria do centro velho, e ainda, parafrasean­
do Evandro, “a mulher, o homem, a casa, e seus pertences ’, e aqui com a carga
autobiográfica implícita: a cadeira, o tinteiro, o frasco de perfume, a janela,
o prato, o bule, a xícara, o pão, a Igreja de Santo Amaro, por exemplo. São
mais de quarenta gravuras em que se constitui a primeira etapa expositiva,
em folhas de dezesseis quadros, com imagens que se alternam, ou retornam,
em situações diversas. Somadas a outras imagens que igualmente nos reme­
tem a outros elementos, como o arco-íris, ou a figura do caixote recolhido
em 1961, retido por meio de fotografia na Ponta da Praia, imagem resgata­
da constantemente, como remanescente estranho de naufrágio imaginado.

333
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

Cada imagem tem uma procedência, pois cada paisagem, cada objeto,
cada figura, enfim, possui sem dúvida um sentido afetivo, ou mesmo jacen-
te no subconsciente — ou são fragmentos de sonho? — , que parece se somar
às suas razões visuais. E assim sendo, para Evandro, esse retorno contínuo é
explicável pelo fato do “tempo ser fluido, e sendo assim, você pode se deslo­
car nele à vontade”, posto que escapa de um critério cronológico. Simulta­
neamente, nessa volta às imagens já registradas, não estaria também implíci­
to o reter o tempo, o manter a imagem-tempo viva? Ou, é reter o impossível,
o tempo, como tentar deter as águas de um rio, que, como lembra o artista,
“é alguma coisa em constante movimento”.
Quais as fontes dos trabalhos de Evandro? A fotografia, o desenho, o
xerox, de que ele lança mão despreconceituosamente, para as séries de suas
imagens gravadas, e até os objetos que constrói para motivar-se em sua formu­
lação gráfica: como o feixe metálico de gravetos, como o seria também o pão,
como os olhos, ou a chuva, e freqüentemente, textos poéticos que se vêem,
espelhados, sobre o papel encimando a imagem, sempre do próprio Evandro
a inventar/propor situações — “construo o desenho pela anotação”. Mas, na
verdade, anotações em cadernos surgem como uma complementação auxi­
liar para formular a resolução da chegada à realidade visível. O texto ajuda o
artista como se ocorressem diferentes níveis de representação, o da linguagem
escrita e o da linguagem gráfica. Porém, se percebe, Evandro se utiliza da
palavra não apenas para titular suas gravuras, mas, ao mesmo tempo, se com­
praz na elaboração dos dizeres, trabalhando com as palavras com que opera
o discurso poético.
Uma série já antológica de Evandro é a do Pico do Jaraguá (1979), pois
o entorno de São Paulo reaparece constantemente, assim como na série do
Tamanduateí. A espacialidade ampla do papel comparece em Igreja de Santo
Amaro (1990), a matriz representada diminuta como um segredo sussurra­
do, suspensa, no canto superior direito, tendo à esquerda a dupla fita esvoa­
çante, “indicativa de um tempo que passa” . E Evandro lembra Saint-Beuve
ao dizer que o que você faz pode ser de hoje, mas é resultado de ontem ou
de amanhã.
A propósito do conceito de tempo, tão recorrente, Evandro cita Santo
Agostinho, e encontramos em Ferrater M ora uma síntese do pensamento
desse doutor da Igreja, de que “o tempo para ele é um grande paradoxo. E

334
CONVERSAÇÃO COM EVANDRO CARLOS JARD IM : IM AGENS REVISITADAS

um ‘agora’ que não é; o ‘agora’ não se pode deter, pois se isso ocorresse não
seria tempo. O tempo é um ‘será’ que ainda não é. O tempo não tem dimen­
são; quando vamos pegá-lo, ele desvanece”, se esvai. E, no entanto, Santo
Agostinho diz que sabe o que é o tempo: “quando não me perguntam eu sei
o que é; quando me perguntam o que é, não o sei” (Confissões, XI). Aliás,
quando Paul Ricoeur reflete sobre a noção do tempo de Santo Agostinho,
lembra com pertinência o caráter efêmero do presente: “O presente não tem
extensão”, pois a medida do tempo é difícil, e somente “no momento, por­
tanto, em que o tempo passa, ele pode ser percebido e medido”.3 Por outro
lado, em Bergson, o conceito de memória se funde com o de consciência e
tempo, quando ele diz: “consciência significa primeiramente memória. À
memória pode faltar amplitude; ela pode abarcar apenas uma parte ínfima do
passado; ela pode reter apenas o que acaba de acontecer; mas a memória exis­
te, ou então não existe consciência”.4 Referindo-se à memória como anteci­
pação do futuro, ou seja, pensando em termos de tempo, ele afirma ainda que
“Reter o que já não é, antecipar o que ainda não é, eis a primeira função da
consciência. Não haveria para ela o presente se este se reduzisse ao instante
matemático. Este instante é apenas o limite, puramente teórico, que separa
o passado do futuro; ele pode a rigor ser concebido, não é jamais percebido;
quando cremos surpreendê-lo, ele já está longe de nós”.5 Ou seja, com ou­
tras palavras, mais ou menos o mesmo dito por Santo Agostinho e retomado
por Ricoeur sobre o efêmero do tempo.
A observação casual em meio à desordem urbana provoca igualmente o
surgimento de um tema. Como a elipse, que aparece como rastro luminoso
na gravura negra e que inspirou a Evandro uma espécie de conceito da mar­
ginalidade. N a verdade, a elipse, como margem, diz ele, “é estar em cima da

3 Op. cit., pp. 28 e 29.


^ Henri Bergson, Cartcls, conferências e outros escritos, São Paulo, Abril Cultural, Coleção Os
Pensadores, 1984, p. 71. Seleção de textos de Franklin Leopoldo e Silva, tradução de Nathanael
Caxeiro e Franklin Leopoldo e Silva. A ausência de memória se confunde aqui com inconsciên­
cia: “Uma consciência que não conservasse nada de seu passado, que se esquecesse sem cessar de
si própria, pereceria e renasceria a cada instante; como definir de outra forma a inconsciência?”.
Idem, ibidem.
^ Idem, ibidem.

335
ARTISTAS CO N TEM PO R Â N EO S N O BRASIL

linha. Pode ser um momento de decisão. É o contrário de ficar fora/ou den­


tro, expressando antes um desejo de deslocamento”. N a verdade, essa presença
do acaso na formulação de suas imagens, dando vazão a uma reflexão poéti­
ca, é freqüente em suas projeções gráficas, sobretudo aquelas que focalizam
o meio urbano.
Assim, anotamos que o sentido reflexivo, formulador da linguagem de
Evandro, serve mais a uma poética que a um movimento obsessivo. Isso é
visível no intimismo de sua produção, e de suas motivações, que passam igual­
mente por temas clássicos da arte, como a Vanitas, claramente expressa aqui
no trabalho em que focaliza a passagem do tempo, desde o nascimento do
artista, 1935, em numeração que acompanha os anos estendendo-se até 1984,
sobre a palavra “barro”, evidente referência ao retorno do homem a terra, ao
pó, menção à efêmera duração da vida.
As anotações comparecem como memórias vivas que retornam, recor­
rentes, como algo de que não se pode fugir: no ramo de folhagem de bana­
neira, no pássaro — pousado ou inerte ■— , na casa de São Vicente, ou nas
conchas, às quais se acumula mais uma, em outra impressão, e uma mais...
Ou, no papel manipulado, alterado quando pintado com caseína, sobre o qual
o artista grava.
A caligrafia aplicada, meticulosa, em elaboração que escapa ao ritmo de
nosso tempo físico atual, comparece de forma eloqüente na surpreendente
imagem da estrela diminuta, quase abstração perdida no infinito. Além da
série da árvore, das diferentes versões do Pico do Jaraguá, a série do Parque
D. Pedro, com o Palácio das Indústrias surgindo de maneira insistente. São
as citadas imagens noturnas da cidade, visões soturnas da região do Taman-
duateí, o Palácio das Indústrias prensado por um prédio — licença poética
— , assim como a incorporação da frase “Las ilusiones" (referência ao quadro
de Diego Rivera no MASP), representando as utopias com que a grande ci­
dade acena ao forasteiro — “Compro Ouro Vendo Ouro”, o homem colan­
do cartaz no poste, o vendedor de jornais. Evandro nos coloca diante da ima­
gem da cidade dos despossuídos, do proletário da rua, num perfil urbano que
reflete rastros por suas calçadas, “as pessoas deixam marcas impressionantes
nos muros”, diz ele, sob a percepção dessa comunicabilidade através do es­
paço e das superfícies, daí a “homenagem a todos aqueles que por aqui pas­
saram”, inscrição em um dos trabalhos.

336
CONVERSAÇÃO COM EVANDRO CARLOS JARD IM : IM AGENS REVISITADAS

Mas, voltando ao início de nosso texto, cada imagem é um objeto poé­


tico, uma memória, um retorno, uma reflexão. O domínio completo da téc­
nica a serviço de uma postura diante de si próprio, da vida, que para ele é da
arte, na preservação de um universo singular.
Sobre os textos deste volume

PA RT E 1 — A P R O P Ó SIT O DAS BIEN AIS

1. “Bienal: isco já foi importante” — Publicado na Folha de S. Paulo, Folhetim,


14/6/1981.
2. “Anotações à margem da XVIII Bienal — I. O ecletismo da arte de nosso tempo” —
Publicado no Suplemento Cultural de O Estado de S. Paulo, 26/1/1986.
3. “Anotações à margem da XVIII Bienal — II. Os ‘históricos’, os latino-americanos
e os ‘avulsos’ — Publicado no Suplemento Cultural de O Estado de S. Paulo,
26/1/1986.
4. “Anotações à margem da XVIII Bienal — III. O Expressionismo no Brasil” —
Publicado no Suplemento Cultural de O Estado de S. Paulo, 26/1/1986.
5. “Anotações à margem da XVIII Bienal — IV. O desafio da grande promoção” —
Publicado no Suplemento Cultural de O Estado de S. Paulo, 26/1/1986.
6. “Indagações em torno da X IX Bienal” — Publicado no Suplemento Cultural de
O Estado de S. Paulo, 12/12/1987.
7. “O curador como estrela — Texto apresentado em Mesa-Redonda no MoMA,
Nova York, 1988, e publicado parcialmente em Contemporary Art in Context,
Nova York, Christopher Lyon, 1990.
8. “Vinte Bienais de São Paulo” — Publicado na Galeria Revista de Arte, n° 16,
São Paulo, 1989, pp. 96-8.
9. “A XX Bienal: anotações de um observador” — Publicado no Suplemento Cultural
de O Estado de S. Paulo, 9/12/1989.
10. “A expansão da Bienal de Veneza: entre a materialidade e o conceito” -— Publicado
no Caderno de Cultura de O Estado de S. Paulo, n° 489, ano VI, 9/12/1989.
11. “Expandindo o internacionalismo” — Texto apresentado no encontro “Expanding
Internationalism”, Bienal de Veneza, Pallazzo Giorgio Cini, maio 1990.
12. “Grandiloqüência e marketing' — Publicado na Folha de S. Paulo, 14/12/1996.

339
13. “Bienais ou da impossibilidade de reter o tempo” — Publicado na Revista da USP,
número comemorativo dos cinqüenta anos da Bienal Internacional de São Paulo,
São Paulo, dez. 2001/jan.-fev. 2002.

PA RT E 2 — A R T IST A S C O N T E M P O R Â N E O S N O BR ASIL

14. “Hélio Oiticica: tentativa de diálogo” — Entrevista de Hélio Oiticica a Aracy


Amaral, realizada na casa do artista em Christopher Street, Nova York, na
segunda semana de outubro de 1977.
15. “Uma jovem pintura em São Paulo” — Publicado no catálogo Pintura como meio,
São Paulo, MAC-USP, jul.-ago. 1983.
16. “João Câmara e a ginástica da ambigüidade” — Publicado no catálogo Dez casos
de amor e uma pintura de Câmara, Rio de Janeiro, MAM-RJ, ago.-set. 1983;
São Paulo, MAC-USP, nov.-dez. 1983.
17. “Seis artistas” — Publicado no catálogo Seis artistas, São Paulo, MAC-USP, set.-out.
1985.
18. “Uma nova pintura e o grupo da Casa 7” — Publicado no catálogo Casa 7,
São Paulo, MAC-USP; Rio de Janeiro, MAM-RJ, 1985.
19. “Waldemar Cordeiro” — Publicado em Ana Maria Beluzzo (org.), Waldemar
Cordeiro: uma aventura da razão, São Paulo, MAC-USP, ago.-set. 1986.
20. “A nova dimensão do objeto” — Publicado no catálogo A nova dimensão do objeto,
São Paulo, MAC-USP, set.-out. 1986.
21. “Sérvulo Esmeraldo: além dos sólidos, a ação cultural” — Publicado em catálogo de
exposição na Galeria Skultura, São Paulo, 18-29/11/1986.
22. “Treze gravadores de São Paulo” — Publicado no catálogo Treze gravadores de São
Paulo, nov. 1986.
23. “Cildo Meireles no M AC” — Publicado no catálogo da exposição “Desvio para o
vermelho”, São Paulo, MAC-USP, nov.-dez. 1986.
24. “A ‘Trama do Gosto’: uma superprodução paulista” — Texto elaborado para debate
sobre a exposição “A Trama do Gosto”, São Paulo, Fundação Bienal de São
Paulo, 19/2/1987.
25. “Mira Schendel” — Publicado na Galeria Revista de Arte, n° 6, São Paulo, 1987.
26. “Geórgia Creimer” — Texto inédito de janeiro de 1988.
27. “Amilcar de Castro: o vigor da expressividade fundada na geometria” — Publicado
no catálogo Amilcar de Castro: o vigor da expressividadefundada na geometria, São
Paulo, Galeria Paulo Vasconcellos, maio 1988.
28. “Fernando Lucchesi” — Publicado em catálogo de exposição do artista, jun. 1988.

340
29. “Emmanuel Nassar” — Publicado no catálogo da X X Bienal Internacional de São
Paulo, São Paulo, Fundação Bienal, 1989.
30. “Marco Giannotti” — Publicado na Galeria Revista de Arte, n° 6, São Paulo, 1989,
pp. 138-9.
31. “Leda Catunda” — Texto elaborado para exposição coletiva realizada na inauguração
do Museu de Arte Contemporânea de Monterrey, México, jun. 1990.
32. “Frida Baranek” — Publicado no catálogo da exposição “Aperto 90”, XLIV Bienal de
Veneza, 1990.
33. “Quatro artistas” — Publicado no catálogo da exposição “Arte híbrida”, São Paulo,
Funarte/MAM-SP/Espaço Cultural BFB, 1990.
34. “A propósito do trabalho de Beralda Altenfelder” — Publicado no catálogo da
exposição da artista na Galeria Millan, São Paulo, set.-out. 1990.
35. “Uma nova geração” — Publicado no catálogo da exposição “Brasil: la nueva
generación”, Caracas, Museu Nacional de Belas Artes, abr. 1991.
36. “A efervescência dos anos 80” — Publicado no catálogo da exposição “BR-80”, São
Paulo, Instituto Cultural Itaú, 1992.
37. “Guto Lacaz: entre o urbano, a memória e a ‘Aerobrás’” — Texto inédito, São Paulo,
out. 1992.
38. “A mulher nas artes” — Publicado no catálogo da exposição “The Art of
Ultramodern Contemporary Brazil”, Washington D.C., The National Museum
for Women in the Arts, abr.-ago. 1993.
39. “Carmela Gross: um olhar em perspectiva” — Publicado no catálogo da exposição da
artista no MAM-RJ, Rio de Janeiro, jun. 1993.
40. “Jeanete Musatti: do abismo entre o onírico e a memória” — 1994.
41. “Uma geração emergente” — Texto inédito, Porto Alegre, RS, jul. 1994.
42. “Espelhos e sombras” — Publicado no catálogo da exposição “Espelhos e sombras”,
São Paulo, MAM-SP; Rio de Janeiro, CCBB, ago. 1994.
43. “Voluntarismo de Cravo Neto” — Publicado em jornal de Salvador, BA, maio 1995.
44. “Visita a Caetano de Almeida” — Publicado no catálogo da exposição do artista, São
Paulo, mar. 1996.
45. “Geórgia Kyriakakis” — Publicado no catálogo da XXIII Bienal de São Paulo,
São Paulo, Fundação Bienal, 1996.
46. “A propósito da arte construtora: das poéticas visuais às interferências urbanas” —
Texto elaborado para conferência em Porto Alegre, RS, nov. 1996.
47. “Marcelo Grassmann, gravador” — Publicado no catálogo da exposição do artista na
Pinacoteca do Estado, São Paulo, 1996.
48. “Regina Silveira: vocação internacionalista” — Publicado em Angélica de Morais
(org.), Regina Silveira: cartografias da sombra, São Paulo, Edusp, 1996.

341
49. “Uma trajetória: Giselda Leirner” — Publicado no catálogo “Giselda Leirner”, Rio de
Janeiro, MAM-RJ, nov. 1996-jan. 1997; Salvador, MAM-BA; São Paulo, MAM-
SP; Brasília, Ministério das Relações Exteriores, 1997.
50. “A mulher é o corpo” — Publicado no catálogo da exposição “A mulher é o corpo”,
São Paulo, Galeria Adriana Penteado, set. 1997.
51. “Lugar chamado arte” — São Paulo, 1999.
52. “Arte paulistana” — Publicado na Gazeta Mercantil, São Paulo, 10/11/2000.
53. “Vik Muniz: o ilusionismo além da aparência especular” — Publicado no catálogo
Verpara crer, São Paulo, MAM-SP, 2002, e com o título “Vik Muniz: Illusionism
beyond Specular Appearance”, em Germano Celant (org.), Vik Muniz, Roma,
Museo d’Arte Contemporânea; Milão, Mondadori Electa, Spa, 2003.
54. “Gregório Gruber” — Publicado no catálogo da exposição “Gregório Gruber:
pinturas, pastéis, aquarelas, guaches e gravuras”, São Paulo, MASP-Centro/
BM &F, set. 2002.
55. “Artur Lescher: a tática da elegância” — Publicado em Artur Lescher, São Paulo,
CosacNaify, 2003.
56. “León Ferrari: os anos paulistas (1976-1984)” — Publicado no catálogo Leon Ferrari:
retrospectiva das obras, 1954-2004, organização de Andrea Giunta, Buenos Aires,
Centro Cultural Recoleta, nov. 2004-fev. 2005.
57. “Conversação com Evandro Carlos Jardim: imagens revisitadas” — Publicado no
catálogo O desenho estampado: a obra gráfica de Evandro Carlos Jardim , pp. 33-43,
São Paulo, Pinacoteca do Estado, 9/7-28/8/2005.

342
índice onomástico

Abramo, Livio, 164-5,195, Andrade, Farnese de, 32, Bardi, Pietro Maria, 91
230, 280, 282, 316 297, 303 Barilli, Renato, 73, 75
Acconci, Vito, 85, 118 Andrade, Mário de, 29, 123, Barr Jr., Alfred H., 12, 88
Acha, Juan, 45, 95-6, 219 227, 317 Barrão, Jorge, 146, 156, 210,
Acosta, Gustavo, 66 Andrade, Oswald de, 227 213, 216, 218
Agostinho, Santo, 334-5 Andrade, Rodrigo, 144, 146- Barrat, Martine, 112, 114
Aguiar, Lydia Dias de, 222 8,213 Barrio, Artur Alipio, 98,
Aguilar, José Roberto, 195 Andrade, Romero de, 70 274, 312
Aguilar, Nelson, 85, 87-8 Andrade, Santusa, 137 Barros, Geraldo de, 151,
Alechinsky, Pierre, 62 Andreatini, Luiz, 281 281, 304
Alloway, Lawrence, 246 Anselmo, Giovanni, 73-4 Barros, Stella Teixeira de,
Almeida, Belmiro de, 135 Antonakos, Stephen, 43 32, 67
Almeida, Caetano de, 267-8 Antunes, Arnaldo, 324 Barroso, Cristina, 189, 213
Almeida, Fábio Cardoso de, Antúnez, Nemesio, 305 Barsotti, Hércules, 304
213 Araújo, Otávio, 281 Basquiat, Jean-Michel, 146,
Almeida, Miguel de, 326 Argan, Giulio Cario, 51, 210
Almeida, Paulo Mendes de, 142, 240 Baudrillard, Jean, 40, 53
57-8, 90, 93, 224 Arman, 68, 74 Bayón, Damián, 30, 135,
Altenfelder, Beralda, 202-3 Babenco, Hector, 324 183, 204
Altman, Robert, 257 Bainbridge, Eric, 72 Bazaine, Jean, 68, 72
Alves Filho, Rodrigues, 95, Baila, Giacomo, 88 Becher, Bernd, 73-4
133 Balthus, 268 Becher, Hilla, 73-4
Alves, José Francisco, 258 Bandeira, Antonio, 32, 182 Beckmann, Max, 88, 282,
Amaral, Antonio Henrique, Baranek, Frida, 68, 75, 209, 284
32 232 Bedia, José, 43
Amaral, Tarsila do, 179, Barata, Fernando, 26 Beethoven, Ludwig van, 329
222-5, 227 Baravelli, Luís Paulo, 304, Bellmer, Hans, 295
Amarante, Leonor, 88, 324 312 Belluzzo, Ana Maria, 324

343
Benjamim, Marcos Coelho, Bosshardt, 45 Campos, Elisa, 261
68, 70, 183, 250, 298, Botero, Fernando, 27 Campos, Haroldo de, 110,
303 Brancusi, Constantin, 190, 125
Bento, José, 250, 297, 303 227, 265 Camus, Albert, 259
Bérard, Honoré Marius, 68 Brandão, Ivan, 43 Caram, Marina, 25, 31, 195,
Berkowitz, Marc, 93 Brandi, Herbert, 64, 66 281
Bernardet, Jean Claude, 324 Brannigan, Sheila, 68, 126, Caravaggio (Michelangelo
Bernardete, 211 140 Merisi), 307
Bernette, Yara, 222 Bravo, Manuel Alvares, 27 Cardoso, Sérgio Vieira, 211
Berredo, Hilton, 158, 207 Brecheret, Victor, 63, 173, Carrà, Cario, 88
Beuys, Joseph, 43, 52, 61-3, 287,317 Carreta, Ana, 324
65, 75, 168, 228 Brecht, Bertolt, 253 Carrington, Leonora, 224
Bhabha, Homi K., 251, 261 Brennand, Francisco, 32, 63, Cartier-Bresson, Henri, 265
Bicheiro, Djalma, 122 76-7, 195 Carvalho, Flávio de, 58, 91,
Bill, Max, 151, 216 Brest, Romero, 151, 326 295
Bisilliat, Maureen, 28 Breton, André, 152-3, 298 Carvalhosa, Carlito, 147-8
Bissière, Roger, 72 Brett, Guy, 123 Castellano, Savério, 165
Bjorlo, Per Inge, 23 Brisley, Stuart, 22 Castelli, Luciano, 44
Blistene, N., 75 Brissac Peixoto, Nelson, 272, Castro, Amilcar de, 67, 181-
Bloch, Pedro, 218 276 2, 250, 279, 297, 300
Boccioni, Umberto, 88 Brito, Ronaldo, 129 Castro, Willys de, 304
Boese, Henrique, 68 Brueghel, Pieter, 284 Catunda, Leda, 26, 66, 126-
Boezem, Marinus, 64 Bruscky, Paulo, 250, 324 7,144,146,190-2,194-
Boi (José Carlos Cezar Bullas, Joseph, 21 5, 198-200, 207, 210,
Ferreira), 32 Burn, Ian, 85 213, 218, 231-2, 249,
Boltanski, Christian, 22 Burri, Alberto, 68 256
Bonaparte, Luís, 278 Cage, John, 116, 242 Cavén, Kari, 42, 78
Boni, Regina, 222 Caíto (Luís Carlos M. da Cendrars, Blaise, 158, 227
Bonino, Alfredo, 222 Silva), 158, 259 Ceroli, Mario, 63
Bonino, Giovanna, 222 Caldas, Waltércio, 85, 156, César, Rodolfo, 48
Bonomi, Maria, 164-5, 230, 305,312, 320 Cézanne, Paul, 34
280 Calder, Alexander, 88, 95, Chamberlain, John, 68
Bonvicino, Régis, 324 153, 155 Charoux, Lothar, 31, 182
Borges, Jorge Luis, 253, 259- Calixto, Benedito, 316 Chastel, Roger, 39
61 Câmara Filho, João, 129-32, Chateaubriand, Assis, 91
Borofsky, Jonathan, 21, 23, 134-5 Chateaubriand, Gilberto, 46
145 Camargo, Iberê, 25, 31-2, 67 Chiarelli, Tadeu, 188
Bosch, Frans, 254 Camargo, Sérgio de, 67, 72, Chillida, Eduardo, 72, 76
Bosch, Hieronymus, 284 182, 266 Christo, 74, 103, 106, 239

344
Chryssa, Vardea, 43 Dali, Salvador, 243 Ferrari, Donato, 322
Cipis, Marcelo, 216, 256 Daumier, Honoré, 305 Ferrari, León, 158, 166, 173,
Clark, Lygia, 87, 103-5, De Kooning, Willem, 95 321-30
107-8, 120, 123-4, 128, De La Vega, Jorge, 27 Ferraz, Geraldo, 281
223, 228, 303 Degand, Léon, 90-1 Ferreira, Edemar Cid, 84
Climachauska, Paulo, 259 Deira, Ernesto, 27 Fiaminghi, Hermelindo, 268
Coelho Neto, José Teixeira, Delaunay, Sonia, 225, 227 Figari, Pedro, 85
329 Delly, M „ 142 Fingermann, Sergio, 166,
Cohen, Haron, 21 Delvaux, Paul, 62 189
Collazo, Alberto, 326-7 Derdyk, Edith, 260 Fiocca, Ana Maria, 222
Colombino, Carlos, 27 Dewasne, Jean, 72 Fiore, Ondina, 110
Cordeiro, Waldemar, 93, Di Cavalcanti, Emiliano, 46, Fiore, Quentin, 109-10
126, 149-51,216, 281, 223, 295 Fischli, Peter, 66
312 Di Prete, Danilo, 91 Flavin, Dan, 43
Cornell, Joseph, 153-4, 243- Di Statio, Stefano, 23 Fleming, Alex, 166, 324
4 Dias, Antonio, 104 Folon, Jean-Michel, 72
Corot, Jean-Baptiste Dias, Geraldo Souza, 202 Fonseca, Cláudio, 32, 146,
Camille, 307 Díaz, Gonzalo, 86 207
Costa, Cacilda Teixeira da, Dibbets, Jan, 85 Fonseca, Gonzalo, 73, 76
172 Dokoupil, Jin Georg, 21-2 Fonteles, Bené, 158, 324
Costi, Rochelle, 276 Domela, Cesar, 45-6, 62 França, Rafael, 322, 325
Cotán, Sanchez, 308, 243 Dórea, Juraci, 43 Franco, Siron, 70
Courbet, Gustave, 147, 307 Dristchel, Mary, 225 Freedberg, David, 254
Cozzolino, Ciro, 26, 126-7, Duar, Eduardo, 207 Freitas, Agostinho Batista de,
144, 190, 207, 213 Duchamp, Mareei, 45-7, 316
Cragg, Tony, 211 153, 243, 287 Freud, Sigmund, 308
Cravo Neto, Mário, 65, 187, Ebizuka, Koichi, 42 Friedlander, Lee, 164
250, 264-6 Eckell, Ana, 22, 25 Funakoshi, Katsura, 64
Cravo, Mário, 266, 283 Eder, Rita, 24 Galvão, João Cândido, 70
Creimer, Geórgia, 49, 157, Ellison, Jane, 226 Garcez, Paulo, 26
178-80, 188, 196,213, Eluf, Lígia, 166 Garciandía, Flávio, 23, 25
232, 259 Ensor, James, 88 Garouste, Gerard, 44
Croft, José Pedro, 42 Ernst, Max, 153 Gaudibert, Pierre, 55
Cuevas, José Luis, 203, 284, Esmeraldo, Sérvulo, 160-3, Gego (Gertrud
291 324 Goldschmidt), 85-6
Cunha, Francisco, 32 Estácio, Oto do, 120-1 Geiger, Anna Bella, 67, 230
Da Vinci, Leonardo, 307 Estrada, Leonel, 16 Gerchman, Rubens, 32, 104,
Dacosta, Milton, 68, 226 Fajardo, Carlos, 156, 304, 107-8
Daher, Luiz Carlos, 32 312

345
Giannotti, Marco, 189-90, Guston, Philip, 147, 210, Karavan, Dani, 22
200, 209, 213 291, 294 Katz, Leandro, 115, 119
Gilbert, Proesch, 86, 215 Guterman, Retroz, 244 Katz, Renina, 164
Gironella, Alberto, 24 Haacke, Hans, 74 Kiefer, Anselm, 39, 41, 44,
Gleizes, Albert, 227 Habermas, Jürgen, 214, 305 63, 65, 75, 317
Glusberg, Jorge, 96 Hamilton, Richard, 61, 64 Kim, Lina, 260
Gnozzi, Roberto, 63 Hartley, Hal, 257 Kirchner, Ernst Ludwig, 282
Goeldi, Oswaldo, 195, 280, Hayter, Stanley William, 72 Kjerrman, Pontus, 64
282 Hendrix, Jimi, 117 Klee, Paul, 85, 88
Gomes, Fernanda, 261 Henrique, Gastão Manuel, Klein, Yves, 61-2
Gomide, Antonio, 46 158 Koch, Lucia, 261, 275, 277
Gonçalves Filho, Antonio, Herkenhoff, Paulo, 78 Kokoschka, Oskar, 60, 88,
326 Hernández, Sergio, 24 95
Gonzaga, Chiquinha, 222 Hien, Albert, 21, 48 Kollwitz, Kaethe, 284
Goodwin, Betty, 64 Hirst, Damien, 262-3, 309 Koons, Jeff, 210, 216, 239
Goya, Francisco, 86, 116, Hlito, Alfredo, 62 Kosuth, Joseph, 85
147 Holanda, Sérgio Buarque de, Kounellis, Iannis, 39, 42, 74
Graham, Dan, 85 214 Krajcberg, Frans, 12, 68,
Grassmann, Marcelo, 12, 31, Hollein, Hans, 72 245, 280
164, 279-85, 291 Holzer, Jenny, 73, 76, 239 Kubin, Alfred, 88, 284
Greenberg, Clement, 206, Horn, Rebecca, 74 Kuhn, Heinz, 154
284 Horta, Ana, 32, 207 Kuitca, Guillermo, 25, 66,
Greer, Germaine, 226 Howard, John, 174 244
Grinspum, Ester, 232 Hoyos, Ana Mercedes, 25 Kulawiak, Stanislaw, 66
Gross, Carmela, 64, 68-9, Hukkanen, Reijo, 26 Kuperman, Mary, 145
173, 228, 234-9, 241, Ianelli, Arcangelo, 126 Kurosawa, Akira, 70
270, 276, 304-5 Jaar, Alfredo, 44 Kuspit, Donald, 255
Grote, Ludwig, 88 Jacob, W., 75 Kyriakakis, Geórgia, 262,
Gruber, Gregório, 316-20 Jacquet, Alain, 62, 66, 268 269-70
Gruber, Mário, 316, 319 Jakut, Alexandre, 78 Lacaz, Guto, 26, 155, 157,
Guasque, Yara, 166 Jardim, Evandro Carlos, 165— 173, 202, 207,211-3,
Guedes, Paulo, 322 7, 203, 281,291,331-6 215-9, 245-50, 256, 304,
Guersoni, Odetto, 164-5 Jerônimo da Mangueira, 122 324
Guimarães, Dodora, 162, Johns, Jasper, 21, 309 Lam, Wifredo, 28, 55, 85
222, 324 Jungle, Tadeu, 173 Lambrecht, Karin, 210, 228,
Guimarães, Jean, 260 Júnior, Hudinilson, 166, 324 249
Guinle, Jorge, 145, 248 Kahlo, Frida, 55, 139, 224 Langer, Susanne, 254
Gullar, Ferreira, 206 Kandinsky, Wassily, 110 Lappas, George, 45
Kapoor, Anish, 76 Larrain, Sergio, 44

346
Lazzarotto, Poty, 283 Loire, Francisco, 23 Mathieu, Georges, 68
Le Corbusier (Charles- Lontra, Marcus, 207 Matisse, Henri, 190
Edouard Jeanneret), 52 Lopes, Fábio, 189, 202 Matta, Roberto, 28, 55
Le Pare, Julio, 150 Lucchesi, Fernando, 26, 70, Matuck, Carlos, 26, 145
Lebenstein, Jan, 284 183-4, 186,211,250, Matuck, Rubens, 173, 218
Lee, Wesley Duke, 27, 76, 298, 301-3 Mayer, Charles, 22
304 Lunardi, Mimma, 277 Meira, Ruy, 186
Léger, Femand, 88, 227 Lyth, Harald, 43, 45 Meireles, Cildo, 63-4, 98,
Leirner, Adolpho, 217 Macció, Romulo, 27 168-70, 232, 300, 303
Leirner, Giselda, 290-2 Machado, Ivens, 48, 259 Melo Neto, João Cabral de,
Leirner, Jac, 75, 156-7, 189, Machado, Lourival Gomes, 124
196, 207, 210, 218, 232, 58 Mendes, Cândido, 69, 137,
243, 247, 249, 305 Machado, Milton, 48 169
Leirner, Nelson, 173, 192, Maet, Marc, 44 Mendes, Gilberto, 329
206-7, 216, 232, 245, Magalhães, Fábio, 329 Mendonça, Casemiro Xavier
247, 255, 268, 276, 286, Magno, Montez, 187 de, 76
304, 312 Magritte, René, 88, 268 Menezes, Ulpiano Bezerra
Leirner, Sheila, 21, 31, 34, Malfatti, Anita, 140, 223-4, de, 92, 94
36, 40, 63, 209, 225, 248 226-7, 281,293 Merz, Mario, 74, 85
León, Ernesto, 25 Manessier, Alfred, 68, 72 Mesquita, Ivo, 32, 88
Leonilson (José Leonilson Mangold, Robert, 105 Meyer, Luisa, 275, 277
Bezerra Dias), 26, 127, Manuel, Antonio, 228, 312 Michalany, Cassio, 48
146, 158, 198, 207 Mapplethorpe, Robert, 264- Michelangelo Buonarroti,
Leontina, Maria, 68, 139, 6 64, 246
226 Marepe (Marcos Reis Middendorf, Helmut, 21
Leroy, Jimmy, 275-7 Peixoto), 276 Miguez, Fábio, 32, 147-8,
Lescher, Artur, 212, 216, Mariani, Anna, 39, 49, 188 213
257, 304,311-4 Mariani, Cario Maria, 78 Milan, Denise, 157
Lewitt, Sol, 85 Marin, Jonier, 25 Milhazes, Beatriz, 66, 211,
Lhote, André, 161, 227 Márquez, Gabriel Garcia, 279 213
Lichtenstein, Roy, 309 Martin, Jean-Hubert, 79 Millet, Catherine, 63, 66
Lima, Alceu Amoroso Martins, Aldemir, 12, 280 Milliet, Sérgio, 90
(Tristão de Athaíde), 329 Martins, Luís, 57 Miralda, Antoni, 73, 76
Lima, Maurício Nogueira, Martins, Maria, 49, 91, 227 Miranda, Áquila da Rocha,
151 Martins, Vera, 262 145, 206
Limberger, Fernando, 260, Masereel, Frans, 282 Miró, Joan, 243
273-6 Matarazzo Sobrinho, Mohalyi, Yolanda, 126, 291
Litto, Fredric, 323, 325 Francisco (Ciccillo), 60, Moles, Abraham, 150
Lobato, Monteiro, 57 88-92, 95-6, 283

347
Mondrian, Piet, 31, 72, 88, Nery, Ismael, 293 Paik, Nam June, 74
95, 150, 242 Neto, Ernesto, 210, 304 Palatnik, Abraham, 155
Monet, Claude, 307 Nevelson, Louise, 185 Palau, Marta, 43
Montebello, Philippe de, 76 Newman, Barnett, 268 Pallucchini, Rodolfo, 88
Monteiro, Paulo, 21, 147-8, Niculitcheff, Sergio, 126, Pandeiro, Carlinhos do, 122
189,210,212-3, 248, 128, 207 Pape, Lygia, 228
291 Nitsche, Marcelo, 28, 312 Park, Glenna, 225
Moore, Henry, 34, 47, 60, Noé, Luís Felipe, 23, 27, Passmore, George, 86, 215
95 330 Pasta, Paulo, 189, 200, 209,
Mora, Ferrater, 332, 334 Nolde, Emil, 282 212-4, 249, 305
Moraes, Nina, 202, 206-7, Nouvel, Jean, 77 Paulino, Rosana, 293-5
211-2, 232, 275-6, 324 Novaes, Guiomar, 222 Pawela, Laura, 66
Morais, Frederico, 276, 297 0 ’Connell, Eilís, 26 Pedrosa, Adriano, 258
Morandi, Giorgio, 88, 181 0 ’Keefe, Geórgia, 225 Pedrosa, Mário, 31, 90, 92-
Morgan, Stuart, 75 Obino, Miriam, 137, 139 3, 119, 123, 150, 153,
Morley, Malcom, 143 Odriozola, Fernando, 17 162, 224, 255
Morris, Carl, 85, 307 Ohtake, Tomie, 126, 140, Peláez, Amélia, 45-6
Mosell, Margarida, 27 230 Penck, A. R (Ralph
Mostafa, Renzi, 85 Oiticica, Hélio, 12, 87, 98, Winkler), 145
Motta, Flávio, 276 103, 105, 123, 158, 215, Penderecld, Krzysztof, 328
Mozart, Wolfgang Amadeus, 228, 303, 312 Pennacchi, Fulvio, 281
329 Oldenburg, Claes, 309 Penteado, Olívia Guedes, 29
Mubarac, Cláudio, 332 Oliva, Achille Bonito, 74-5, Penteado, Yolanda, 60, 88,
Muller, Heiner, 74 205 91-2
Munch, Edvard, 85, 88, 284 Oliveira, Branca de, 166 Périgo, Márcio, 166
Muniz, Vik, 306-10 Oliveira, Maria Cecília Pettoruti, Emilio, 46
Munoz, Lucio, 68 Marinho de, 137 Picasso, Pablo, 34, 60, 85,
Munoz, Oscar, 43 Oliveira, Willy Correa de, 88, 95, 117, 243
Musatti, Jeanete, 158, 242-7 329 Pinhatti, Silvio, 265
Muylaert, Roberto, 33-4, 47 Olsen, Erik Killi, 65 Pini, Isa, 48, 196
Nador, Mônica, 66, 138, Ono, Yoko, 74, 86 Piranesi, Giovanni Battista,
194-7,211,214, 228 Opalka, Roman, 39, 44-5, 274
Nakle, Gustavo, 39, 43 270 Piza, Arthur Luiz, 164, 182
Nassar, Emmanuel, 67, 187- Oppenheim, Meret, 243 Plaza, Julio, 192, 206, 232,
8,211,250 Ostrower, Fayga, 230 286-7, 312, 322, 324
Nasser, Frederico, 304, 312 Oswaldo, Angelo, 298-9 Poiret, Paul, 227
Nauman, Bruce, 85 Pacheco, Nazareth, 258 Pollock, Jackson, 68, 88
Navez, Jean Marc, 77 Pacholsi, 66 Polo, Marco, 246
Nemer, José Alberto, 298 Paglia, Camille, 231 Pontual, Roberto, 32

348
Porter, Liliana, 211 Ricacheneisky, Marijane, Santos, Miguel, 186
Portillos, Alfredo, 25 275, 277 Sartori, Mônica, 64
Portinari, Cândido, 223 Ricoeur, Paul, 331, 335 Schenberg, Mário, 281
Portzamparc, Christian de, Rivas, Julio Pacheco, 78 Schendel, Mira, 87, 139,
77 Rivera, Diego, 46, 336 175-6, 189, 200, 228-9,
Prado, Maria dei Rocio, 75 Rocha, Ricardo, 25 235, 280
Presser, Tina, 222 Rockefeller, Nelson, 92 Scherpenberg, Katie van,
Prior, Alfredo, 25 Rodin, Auguste, 246, 266 136-7
Prolik, Eliane, 228 Rodrigues, Luís, 113 Schiele, Egon, 295
Pruszkowski, 66 Rodrigues, Ofelia, 66 Schifano, Mario, 74
Puiyear, Martin, 62-3 Romagnolo, Sérgio, 126-7, Schmidt-Rottluff, Karl, 282
Quin, Arden, 150 144, 190, 194-5, 197-8, Schmitz, Hermann, 175
Raiss, Florian, 210 207, 212 Schnaiderman, Boris, 324
Ramos, Nelson, 21, 27 Rosa, Dudi Maia, 48 Schneider, Karin, 262-3
Ramos, Nuno, 21, 32, 68, Rosa, Noel, 218 Schoenberg, Arnold, 329
144, 147-8, 189, 209, Rosenberg, Léonce, 227 Schuil, Han, 44
213, 248 Rossini, Elcio, 275-6 Schwarz, Arturo, 47
Rasmussen, Waldo, 249 Roth, Otávio, 211 Schwitters, Kurt, 243
Rauschenberg, Robert, 78, Rothko, Mark, 307 Segall, Lasar, 223, 281
200, 242 Rothstein, Mareia, 138-9 Seitz, William, 243
Ray, Man, 153, 288 Rubinho, Mônica, 260 Semeraro, Antonio, 66
Read, Herbert, 88 Ruckriem, Ulrich, 65, 238 Senise, Daniel, 21, 26, 32,
Redon, Odilon, 138 Rudge, Antonieta, 222 69, 76, 144, 146, 179,
Rego, Paula, 22 Ryder, Albert, 138 209, 249
Reinhardt, Ad, 268 Sacco, Graciela, 85 Serra, Richard, 156
Rembrandt (Harmensz van Sacilotto, Luiz, 182 Shearer, Linda, 75
Rijin), 86 Saia, Luís, 280 Sherman, Cindy, 239
Renato, Celso, 250, 297, Saiz, Manuel, 65 Shi-Hua, Qui, 85
300, 303 Salmona, Rogelio, 278 Shiró, Flávio, 25, 31, 67
Renault, Affonso, 70 Samara, Lucas, 153, 158 Sicília, José Maria, 44
Rennó, Rosângela, 232, 249, Samico, Gilvan, 76-7 Silva, Conrado, 324, 329
261,305 Sampaio, Márcio, 296 Silva, Maria Helena Vieira
Resende, José, 68, 157, 189, Sanches, Rui, 42 da, 61
231-2 Sánchez, Tomás, 25 Silveira, Regina, 157, 165,
Resende, Marco Túlio, 298- Sandberg, Willem, 88 167, 172, 192, 206, 225,
9, 300-2, 304, 312 Sandoval, Roberto, 173 230, 232, 286-9, 322,
Restany, Pierre, 150, 205 Santarosa, Hella, 21 324
Ribeiro, Flávia, 69, 200, Santo, Iran do Espírito, 157, Sinaga, Fernando, 65
213, 228, 257, 262 179, 232 Singer, Michael, 42

349
Siqueiros, David Alfaro, 45- Tedesco, Elaine, 277 Vieira, José Geraldo, 284
6 Teixeira, Maria de Lourdes, Vilaça, Marcantonio, 97
Sironi, Mario, 147 224 Villaça, Maurício, 158, 174
Sister, Sérgio, 200 Terán, Pedro, 25 Villamizar, Eduardo
Soares, Genilson, 324 Testa, Clorindo, 44 Ramirez, 44
Soares, Valeska, 258 Thek, Paul, 21, 23 Villani, Júlio, 213
Solar, Xul, 46 Ticiano, 73 Villares, Luís, 95-6
Soto, Jesus Rafael, 55, 85, Tiepolo, 73 Vlavianos, Nicolas, 192, 287
122 Tola, José, 65 Vollard, Ambroise, 227
Souza, Edgar de, 258 Toledo, Amélia, 231 Volpi, Alfredo, 87, 181
Spengler, Oswaldo, 86 Toledo, Francisco, 24, 298 Warchavchik, Gregori, 278
Spoerri, Daniel, 74, 243 Torres-García, Joaquín, 55, Warhol, Andy, 72, 85-6,
Squeff, Enio, 328 147, 185 146, 215, 309
Stackhouse, Robert, 43 Trivier, Marc, 66 Watteau, Jean-Antoine, 307
Stainback, Charles A., 308 Tucci, Sandra, 158 Weiermeier, Peter, 265
Starck, Philippe, 77 Tudor, David, 116 Weiss, David, 66
Steir, Pat, 43 Tunga, 48, 303 Weiss, Luise, 158, 166
Stella, Frank, 62 Twombly, Cy, 85 Wery, Marthe, 24
Sterling, Susan, 228 Ullman, Micha, 62, 64 Wilson, Bob, 70
Stickel, Fernando, 173 Vale, Raul do, 329 Wolff, Carl Emanuel, 85
Stockhausen, Karlheinz, 328 Valéry, Paul, 239 Wollner, Alexandre, 304
Stockinger, Francisco, 262 Valladares, Clarival do Wols (Alfred Otto
Strina, Luisa, 26, 169, 188 Prado, 57-9 Wolfgang), 68
Suárez, Pablo, 25, 321 Vallauri, Alex, 26, 145 Wurm, Erwin, 42
Suter, Gerardo, 85 Valle, Enéas do, 146 Ximenez, Ettore, 317
Sutherland, Graham, 88 Valle, Marco do, 67, 156 Yoshizawa, Mika, 22
Svevo, Wanda, 95 Van Gogh, Vincent, 60, 318 Zaidler, Waldemar, 145
Sylvestre, Paul, 160 Vanarsky, Jack, 217 Zamudio, Enrique, 66
Szajna, Josef, 65 Varo, Remedios, 45, 224 Zanini, Walter, 92, 96, 160,
Tagliaferro, Magdalena, 222 Vater, Regina, 230 235, 322
Tamas, Ana, 21 Vaz, Guilherme Magalhães, Zappoli, Tina, 222
Tamayo, Rufino, 24, 88, 98 Zea, Gloria, 96
297-8 Vedova, Emilio, 78 Zerbini, Luiz, 158, 198,
Tapiés, Antoni, 68 Vega, Herman Braun, 27 213,219, 256
Tassara, Felipe, 156 Velásquez, Diego, 320
Tavares, Ana Maria, 48-9, Venosa, Angelo, 48, 158,
126-8, 144, 188, 194-5, 179-80, 238
198-9, 207, 212, 232, Vermeiren, Didier, 24
257, 304, 312 Victor Hugo, 138

350
Relação dos textos da coleção

V O L. 1: M O D E R N IS M O , A R T E M O D E R N A E O C O M P R O M ISSO C O M O LU G A R

Parte 1 — A geração modernista


1. Antecedentes: a luz de Almeida Júnior
2. Oswald de Andrade e as artes plásticas no movimento modernista dos anos 20
3. Oswald de Andrade: um homem vivo
4. Como era Mário de Andrade?
5. Blaise Cendrars e os modernistas
6. Blaise Cendrars e Tarsila
7. A gênese de Operários, de Tarsila
8. Foujita no Brasil: pesquisa em andamento
9. Ismael Nery: uma personalidade intensa
10. As três décadas essenciais no desenho de Di Cavalcanti
11. Desenhos de Di Cavalcanti
12. Surgimento da abstração geométrica no Brasil
13. Do Modernismo à Abstração (1910-1950)
14. São Paulo e Rio de Janeiro: a constante polêmica

Parte 2 — Tendências da arte moderna


15. Volpi: construção e reducionismo sob a luz dos trópicos
16. A ceia, de Alfredo Volpi
17- Anotações a propósito de Bruno Giorgi
18. Anos 40: a reflexão crítica sobre a pintura
19. O panorama dos anos 50: entrevista com Vilanova Artigas
20. Anos 50: a emergência do internacionalismo na pintura
21. Nos anos 50: Alberto Greco em São Paulo
22. D a produção concreta à expressão neoconcreta

351
23. Joan Ponç
24. Mavignier 75 anos

Parte 3 — O compromisso com o lugar


25. Arte no Brasil de hoje
26. Situação da crítica no Brasil
27. A arte e o artista brasileiro: um problema de identidade e afirmação cultural
28. A mão afro-brasileira: um inventário necessário
29. Diversidade e vitalidade do meio artístico brasileiro
30. O purgatório do artista
31. Indefinições a enfrentar e prioridades na pesquisa sobre a arte brasileira
32. A sabedoria do compromisso com o lugar: Tarsila, Volpi, Oiticica, Meireles e
Benjamim
33. Brasil: o contexto artístico-cultural
34. Os caminhos da arte e o citacionismo
35. Arte num período difícil (1964-c. 1980)

V O L. 2: C IR C U IT O S D E A R T E N A A M ÉR IC A LA T IN A E N O BRASIL

Parte 1 — Arte na América Latina


1. Indagações, extensão e limites do regionalismo
2. Marta Traba e o pensamento latino-americano
3. O popular como matriz
4. Arte da América Latina: questionamentos sobre a discriminação
5. “Fantástico” são os outros
6. Intercâmbio Brasil-EUA: os parcos exemplos
7. Made in England: uma visão da América Latina
8. O Memorial da América Latina: entrevista de Juan Acha a Aracy Amaral
9. Brasil na América Latina: uma pluralidade de culturas
10. Modernidade e identidade: as duas Américas Latinas, ou três, fora do tempo
11. Cêntricos e ex-cêntricos: que centro? onde está o centro?
12. O México e nós
13. Chile: a volta do Museu da Solidariedade
14. Abstração geométrica na América do Sul: a Argentina como precursora
15. Multiculturalismo, nomadismo, desterritorialização: novo para quem?
16. Aqui, neste momento
17. História da arte moderna na América Latina (1780-1990)

352
18. Um olhar sobre a América: Damián Bayón
19. Alteridade e identidade na América Latina
20. Colômbia: um contexto peculiar
21. Artes visuais sob a ótica de José Neistein
22. Artes visuais: contatos com a Argentina

Parte 2 — Museus e circuitos de arte


23. A Pinacoteca do Estado
24. Dona Yolanda e o MAC
25. Qual é o lugar da arte?
26. Agora, escolares aos museus
27. MAC: da estruturação necessária à pesquisa no museu
28. Artistas japoneses na coleção do MAC
29. Situação dos museus de arte no Brasil: uma avaliação
30. Os salões beneficiam a formação dos acervos dos museus?
31. A Lei Sarney, o colecionador, os museus
32. Arquivo e documentação na área das artes
33. A polêmica do Museu D ’Orsay: a continuidade como visão da arte do século X IX
34. Do MAM ao MAC: a história de uma coleção
35. Conversação com Pontus Hulten: o território da arte
36. Curadoria de exposições: a situação brasileira
37. Museu de Monterrey no México
38. Arte e instituições
39. A Pinacoteca do Estado: problemas em torno à formação e desenvolvimento
de um acervo
40. Museus em crise?
41. A exposição Rodin
42. O desmanche da cultura no Estado de São Paulo
43. A exposição Monet
44. Curadoria, museologia e arte construtiva
45. 500 anos de carência
46. Mário Pedrosa: um homem sem preço
47. Mário Pedrosa e a Cidade Universitária da USP
48. Henry Moore no Brasil

Parte 3 — Arte e cidade


49. Arquitetura, Jaguaré e Barra Funda
50. A decadência da Paulista

353
51. Imagem da cidade moderna: o cenário e seu avesso
52. Criação: arquitetura e arte
53. Um olhar sobre a cidade
54. Modernidade e nacionalismo no Brasil
55. Brasil: perfil de um meio artístico marcado pela violência
56. “Arte-Cidade”: intestinos expostos

V O L. 3: BIENAIS E A R T IST A S C O N T E M P O R Â N E O S N O BRASIL

Parte 1 — A propósito das Bienais


1. Bienal: isto já foi importante
2. Anotações à margem da XVIII Bienal — 1 : 0 ecletismo da arte de nosso tempo
3. Anotações à margem da XVIII Bienal — II: Os “históricos”, os latino-americanos e
os “avulsos”
4. Anotações à margem da XVIII Bienal — III: O Expressionismo no Brasil
5. Anotações à margem da XVIII Bienal — IV: O desafio da grande promoção
6. Indagações em torno da X IX Bienal
7. O curador como estrela
8. Vinte Bienais de São Paulo
9. A XX Bienal: anotações de um observador
10. A expansão da Bienal de Veneza: entre a materialidade e o conceito
11. Expandindo o internacionalismo
12. Grandiloqüência e marketing
13. Bienais ou da impossibilidade de reter o tempo

Parte 2 — Artistas contemporâneos no Brasil


14. Hélio Oiticica: tentativa de diálogo
15. Uma jovem pintura em São Paulo
16. João Câmara e a ginástica da ambigüidade
17. Seis artistas
18. Uma nova pintura e o grupo da Casa 7
19. Waldemar Cordeiro
20. A nova dimensão do objeto
21. Sérvulo Esmeraldo: além dos sólidos, a ação cultural
22. Treze gravadores de São Paulo
23. Cildo Meireles no MAC
24. “A Trama do Gosto”: uma superprodução paulista

354
25. Mira Schendel
26. Geórgia Creimer
27. Amilcar de Castro: o vigor da expressividade fundada na geometria
28. Fernando Lucchesi
29. Emmanuel Nassar
30. Marco Giannotti
31. Leda Catunda
32. Quatro artistas
33. A propósito do trabalho de Beralda Altenfelder
34. Uma nova geração
35. A efervescência dos anos 80
36. Guto Lacaz: entre o urbano, a memória e a “Aerobrás”
37. A mulher nas artes
38. Carmela Gross: um olhar em perspectiva
39. Jeanete Musatd: do abismo entre o onírico e a memória
40. Uma geração emergente
41. Espelhos e sombras
42. Voluntarismo de Cravo Neto
43. Visita a Caetano de Almeida
44. Geórgia Kyriakakis
45. A propósito da arte construtora: das poéticas visuais às interferências urbanas
46. Marcelo Grassmann, gravador
47. Regina Silveira: vocação internacionalista
48. Uma trajetória: Giselda Leirner
49. A mulher é o corpo
50. Lugar chamado arte
51. Arte paulistana
52. Vik Muniz: o ilusionismo além da aparência especular
53. Artur Lescher: a tática da elegância
54. Gregório Gruber
55. León Ferrari: os anos paulistas (1976-1984)
56. Conversação com Evandro Carlos Jardim: imagens revisitadas

355
So b re a autora

Aracy Abreu Amaral (São Paulo, SP, 1930) graduou-se em Jornalismo na PUC-
SP em 1952, obteve o mestrado pela FFC LH -U SP em 1970 e o doutorado pela ECA-
U SP em 1971. Livre-Docente (1983), Professor-Adjunto (1985) e Professora-Titular
(1988) de História da Arte pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universida­
de de São Paulo (hoje aposentada). Em 1978 recebeu bolsa da Fundação Guggenheim.
Foi diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo (1975-79) e do M useu de Arte C on­
temporânea da Universidade de São Paulo (1982-86). Participante de colóquios e semi­
nários no Brasil e no Exterior, foi membro do Comitê Internacional de Premiação do
Prince Claus Fund, H aia (2002-03 e 2004-05), e co-curadora/coordenadora-geral do
Projeto “Rum os” Itaú Cultural (2005-06). Vive e trabalha em São Paulo.
Entre as várias exposições que organizou, destacam-se: “Tarsila: 50 Anos de Pin­
tura” (1969), “Alfredo Volpi: Pintura 1914-1972” (1972), “ExpoProjeção” (1973), “A
Nova Dimensão do Objeto” (1986), “Modernidade: Arte Brasileira do Século X X ” (com
Marie Odile Briot, Frederico Morais e Roberto Pontual, Paris, 1987; São Paulo, 1988),
“Brasil: La Nueva Generación” (Caracas, 1991), “Espelhos e Sombras” (1994), “D e Bra­
sil: Alquimias y Procesos” (Bogotá, 1999), “Mavignier 75” (2000), “Política de las D i­
ferencias” (Recife/Buenos Aires, curadora pelo Brasil, 2001), e “Arte e Sociedade” (2003).
Vive e trabalha em São Paulo.

Livros publicados:
Blaise Cendrars no B rasil e os modernistas. São Paulo: Martins, 1970 (São Paulo: Editora
34, 1997, 2a ed.).
Artes plásticas na Sem ana de 2 2 . São Paulo: Perspectiva, 1970 (Coleção Debates) (São
Paulo: Bovespa, 1992, edição especial; São Paulo: Editora 34, 1998, 5a ed.).
Desenhos de Tarsila. São Paulo: Cultrix, 1971.
Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1975 (Coleção Estudos) (São
Paulo: Tenenge, 1986, 2 a ed.; São Paulo: Editora 34/Edusp, 2003, 3a ed.).

358
Mário Pedrosa. Mundo, homem, arte em crise (organização e apresentação). São Paulo:
Perspectiva, 1975.
Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962) (organização e texto). Rio de Janeiro:
M EC-Funarte/M AM -RJ; São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo/Pinacoteca do Estado, 1977.
A rtey arquitectura en el modernismo brasileno (organização e texto). Tradução de Marta
Traba. Caracas: Ayacucho, 1978.
A hispanidade em São Paulo. São Paulo: Nobel, 1981.
Mário Pedrosa. Dos m urais de Portinari aos espaços de Brasília (organização e apresen­
tação). São Paulo: Perspectiva, 1981.
Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burger (1961-1981). São Paulo: Nobel, 1983.
Arte p ara quê? A preocupação social na arte brasileira (1930-1970). São Paulo: Nobel, 1984
(2003, 3a ed.).
Ism ael Nery: 5 0 anos depois (organização e texto). São Paulo: Banco Cidade de São Pau-
lo/M A C-USP, 1984.
Desenhos de D i Cavalcanti na coleção do M A C (organização e texto). São Paulo: C N E C /
M A C-USP, 1985.
M useu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo: perfil de um acervo (organi­
zação e texto). São Paulo: Techint/M AC-USP, 1988.
Arquitectura neocolonial: América Latina, Caribe, Estados Unidos (organização e texto).
São Paulo: Memorial da América Latina/Fondo de Cultura Econômica, 1994.
T arsila do A m aral. Buenos Aires: Banco Velox/Fundação Finambrás, 1998 (Projeto
Cultural Artistas do M ercosul).
São Paulo: imagens de 1998 (organização com Rubens Fernandes Jr. e texto). São Paulo:
Bovespa, 1998.
Arte construtiva no Brasil: Coleção Adolpho Leirner (organização e texto). São Paulo: DBA/
Melhoramentos, 1998.
M arcos Coelho Benjamim/Fernando Lucchesi/JoséBento (organização e textos). São Pau­
lo: Banco A BC Brasil; Belo Horizonte: C l Arte, 2000, 3 vols.
Correspondência M ário de Andrade & Tarsila do A m aral (organização, introdução, cro­
nologia e notas). São Paulo: Edusp/IEB-USP, 2001 (Coleção Correspondência de
Mário de Andrade, 2).
Tarsila cronista (organização e introdução). São Paulo: Edusp, 2002.
Arte e sociedade no B rasil (1930-2003) (3 vols., com André Toral). São Paulo: Callis,
2004.

359
Historiadora da arte brasileira e, ao mesmo tempo, crítica
atenta dos movimentos artísticos contemporâneos, Aracy Amaral
reúne em sua trajetória aspectos bastante incomuns: ao trabalho
minucioso da pesquisa é capaz de associar o golpe de vista ousado
do crítico que acompanha de perto as últimas tendências, do cura­
dor que monta exposições para revelar a arte que ainda está por vir,
ou da intelectual que, à frente de instituições museológicas, propõe,
na teoria e na prática, a discussão profunda sobre o lugar da arte e
do artista na sociedade.
Textos do Trópico de Capricórnio, que ora se publica com apoio
do Programa Petrobras Cultural, reúne em três volumes — “M o­
dernismo, arte moderna e o compromisso com o lugar” (vol. 1),
“Circuitos de arte na América Latina e no Brasil” (vol. 2) e “Bienais
e artistas contemporâneos no Brasil” (vol. 3) — cerca de 150 en­
saios, artigos e entrevistas realizados pela autora entre o início dos
anos 80 e 2005.
Este terceiro volume tem, como ponto de partida, uma refle­
xão abrangente sobre o papel das Bienais de São Paulo, à luz de sua
história e da comparação com modelos congêneres, como a D o­
cumenta de Kassel, na Alemanha, e a Bienal de Veneza, na Itália.
Já a segunda parte inicia com uma conversa com Hélio Oiticica,
realizada em Nova York, em 1977, e até hoje inédita, que serve co­
mo abertura para o retrato de dezenas de artistas brasileiros atuan­
tes nas décadas de 80 e 90, muitos deles flagrados aqui no momento
mesmo de sua emergência no cenário cultural.

Patrocínio:
LEI D E
IN C E N T IV O
À CU LTU RA

UUl PETROBRAS W ^
UM P A Í S
g ove rn o
M IN IS T É R IO
DA CU LTU R A

ISBN A S - ? a a b - 3 h b - 0

IITI II I editoraM 34
7 8 8 5 7 3 V 6 3 6 6 4 11

Você também pode gostar