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1.

O Ser ontológico
São chamados de tempos homéricos os séculos anteriores ao VI a.C., livros como Ilíada e
Odisseia, contaram incríveis sagas que demonstravam o nível da cognição nas épocas
anteriores à filosofia da Escola socrática.

Conforme Carlos Eduardo Bittar e Guilherme Assis Almeida que serão nossos referênciais
teóricos neste primeiro momento ensinam que, os personagens descritos tiveram suas vidas
dramaticamente marcadas pela relação de humanos com deuses e toda sorte de seres
mitológicos que geravam muita perplexidade pois (2015, p. 73) “[...] buscavam uma
explicação sobre o surgimento do mundo e tentavam desvendar quem eram e onde estavam
a partir da observação da natureza”, ou ainda (2005, p. 25) “[...] a ação que de si gerava
tudo”.

Assim, a contemplação do universo (kósmos) e das coisas (pánta) a partir de princípios da


natureza passou a ser denominada (Cosmologia), especulações a partir das forças vitais
originárias (cosmogonia) e a partir da origem dos deuses Tteogonia).

A natureza (phýsis) impregnava o místico e as divisas entre o que seria humano, divino,
natural ou a meio caminho de um ou outro não estava muito clara. Não se tinha a distinção
do que seria a condição humana, tudo ainda permanecia muito nebuloso.

Isto pode ser deduzido por exemplo a partir das histórias que demonstram a possibilidade
de intimidades entre divindades e que fizeram surgir os mitos como por exemplo a ideia de
justiça (diké)1 que nasce a partir de uma trama entre Themis2 com Zeus3.

1
Segundo Bittar, Almeida (2015, p.79): “Pela expressão Diké “é possível entendê-lo em dois sentidos: um de
regra, costume, significando algo mais distante e sagrado (usado mais ou menos de modo indistinto com
thémis), que aparece em Odisséia 11,218 e 14,59; outro, de justiça em seu caráter mais humano, mais carnal,
mais vivo (oposto a thémis), que aparece em Ilíada 19,180 e oposto a força- bía (Ilíada 16, 388). Na Ilíada a
expressão tinha incorporado um certo sentido de transgressão, algo que se associa a ideia de resistência a
estrutura de classes e paulatinamente a partir do séc. VI a. C. considerada como algo mais universal”.
2
“Do ponto de vista etimológico, em Homero, Themis é empregada na frase que consta da Ilíada como da
Odisséia: ‘e thémis esti’, significando aquilo que é estabelecido pelo costume. Ou seja, thémis designa algo
cuja significação reporta à conservação, à permanência, à tradição, fazendo apelo à dimensão de um passado
cuja conservação se dá na continuidade dos costumes, dos hábitos sociais, das tradições ancestrais. Vem
revestida, portanto, de uma pressão tradicional, de uma pesada herança de antepassados, significando o liame
Nesse ambiente, surge a primeira aspiração filosófica, Tales de Mileto (624-546 a.C.), a
frase (2008, p. 43) “[...] a água é a origem, é como útero materno de todas as coisas” é
fantástica por vários motivos, o primeiro deles porque separa a água, das fabulações
míticas, é a primeira vez que se observa uma “coisa” distinta das demais, a partir de si
mesma, portanto, a água, considerada como “origem”, passou a simbolizar a representação
linguística de uma unidade. Até hoje, faz-se ciência a partir da agua e se concebe a vida a
partir dela.

É a primeira vez que qualifica um Ser distinto das fabulações místicas, a frase deu origem
ainda a outras especulações que atribuíram haver “originalidade” em outros elementos
físicos como por exemplo, o ar; a terra, o fogo, a água, e até mesmo a mistura de todos
esses elementos, ou ainda fragmentos vazios (átomos).

Mas foi com Heráclito (535-475 a.C.) que o sentido da expressão ganhou novas
características, com ele, a água passou a ser vista de maneira fluida, mutável. 4 Esta nova
perspectiva abriu a possibilidade de aprofundar a ideia de que uma coisa (a água) não
encerraria em si uma essência, haveria ainda, outra coisa “por detrás da água” e, como
resultado final dessa conjectura, se pretendia ver para além da coisa. Desta forma a
umidade precederia a água e seria composta pelo quente e pelo sólido.

Dessa especulação sobre a anterioridade surgiram as possibilidades de aspirações a respeito


de uma polaridade (2008, p. 77), descrita em oposições ente a terra e fogo, o espesso ao
fino, o quente ao frio, o feminino ao masculino, cindindo o mundo empírico em esferas
separadas, a primeira, a primeira para coisas “existentes” e outra destinada para as coisas
“inexistentes”, onde residem as qualidades ocultas.

entre o que era e o que será, não somente num sentido temporal, mas também moral, como medida de dever-
ser do comportamento das novas gerações. ” (BITTAR, ALMEIDA, 2015, p.78)
3
Na teogonia de Hesíodo, Zeus, desde o seu nascimento as escondidas de Crónos (que comia seus filhos com
medo de que o destronassem) sob a proteção de Urano (céu) e Gaia (terra), pais de Thémis¸ passa por
inúmeras batalhas, ora contra titãs, ora contra o dragão, até sua vitória e ascensão na condição de rei dos
imortais, em cuja condição toma por esposa Métis e Thémis, assim, de seu casamento nascem alguns filhos:
1) Bom Governo (Eunomia), Justiça (Diké) e Paz (Eirene); 2) As Parcas ou Moirat ou partes (Proto,
Laquesis e Átropos) (BITTAR, ALMEIDA, 2015, p.80)
4
“Tu não podes descer duas vezes no mesmo rio por que novas águas correm sempre novamente sobre ti”
(SOUZA; KUHNEN, 2005, p.25, fragmento D. 12), demonstrando assim o caráter mutável, tanto da água
como de todas as coisas.
Estas especulações filosóficas, eram embrionárias mas produziram conceitos como “os
opostos se atraem e se repelem coexistindo”. Mas o mais importante que criou a
possibilidade de se conceber o Ser que existe e distingui-lo da inexistência, mas que fazem
parte da mesma coisa, o uno.

Com Parmênides (530-460 a.C.) um nova possibilidade vai se inaugurar, para além da
Cosmologia, surge a Ontologia, classificada como o estudo do Ser ou a busca de uma
essência natural.

Mas nossa essência advém da natureza, ou por outra, existiria uma essência natural?
Willian Shakespeare (1564-1616) muitos séculos depois, vai imortalizar esse dilema com a
o poema “Ser ou não ser, eis a questão”.

Em que pese, seja comum a crença de uma essência natural própria, Parmênides intuiu a
desconexão entre existir e não existir, e, para exemplificar a tal desconexão ele utilizou um
exemplo muito simples. Ei-lo:

Imagine-se uma árvore, a respeito dela pode-se dizer que “ela é” quando comparada com
outras arvores existentes, que “ela não é uma arvore mas poderá vir a ser” quando a
referência for apenas um broto, submetendo assim a existência ao tempo futuro e as
condições naturais; e ainda “ela não é” se somente há imaginarmos, portanto, portanto pode
a árvore, Ser em si mesma, pode Ser em relação a outros Seres (outras arvores), ou ainda ter
uma existência apenas fictícia (fruto da imaginação).

Parmênides é um rebelde contra o destino traçado pela natureza, contra a essência natural e
conclui que Ser e existir independem.

Pronto, estavam estabelecidas aí as condições mentais para o surgimento da ideia do Ser


desvinculado de sua existência natural, que considera o homem uma possibilidade distinta
da natureza. Essa distinção conforme visto preliminarmente descrita através de histórias
mitológicas que deveriam ser lidas não somente ipsis literis mas em busca dos fenômenos
que hás revelassem. Isso no futuro seria chamado de Fenomenologia.
Dentre os fenomenologistas, Martin Heidegger (1889-1976 d.C.) descreveu no texto O que
é filosofia (1991) o surgimento do Ser a partir do “mito de Er”5 contado por Platão (428-
6
347 a. C.) A República. Essa história é importante para descrever o surgimento da
expressão “Ser”, visto até aqui como uma potência da vida e formada pela condicionante
linguística (conjunção) “SE” mais a referência ao mito de “Er”, portanto da conjunção de
SE + ER deduz-se o SER.

Como descrito, o Ser era aquele soprado pela deusa da necessidade que, com uma nova
alma, foi autorizado a reencarnar. O sopro pode ser deduzido a partir da expressão “En”
(dentro em grego), uma referência ao soldado grego de nome “Er” e o retorno a “Géia”
(terra em grego), ou seja, os soprados que poderiam retornar à terra. Tudo isso vai gerar
uma palavra muito atual que sintetiza o sentido de tudo isso “EN+ER+GÉIA”, ou energia.

Mas esse Ser soprado que retornaria, voltaria para o “Ente”, expressão grega que pode ser
traduzida como “aquilo que é”, ou seja, tudo que é físico. Vemos aqui a presença de uma
importante distinção: o que é material, é, a partir de um “ente”.

Ensina Heidegger (1991, p. 140) que nos (Diálogos Sofistas 254d) Platão afirmava a
respeito do Ser que “[...] cada um deles é outro, ele mesmo, para sí, o mesmo”, expressão
que simbolizava com a expressão: A = A (A é igual a A). A expressão grega que carregava

5
Er foi um soldado morto em combate que, após 12 dias de sua morte, segundos antes de ser cremado em seu
funeral ressuscitou, contou ele a viagem que os deuses haviam lhe permitido, o único que voltou do lugar do
julgamento das almas sem que lhe fosse permitido beber das águas do rio Lettes (rio do esquecimento). Este
lugar era um prado entre as aberturas do céu e da terra. Na terra há duas crateras vizinhas e acima dessas duas
aberturas apresentam-se buracos simétricos na abóboda do céu.
No centro do prado achava-se o tribunal. As almas saiam da terra pela segunda abertura. As almas dos eleitos
subiam para o céu e a dos condenados desciam para o fundo da terra pela segunda abertura. Aquelas almas
que terminavam a sua estada no céu descem, por sua vez, pela segunda abertura do céu e aquelas que acabava
sua purificação subterrânea subiam à luz, pelo primeiro orifício da terra.
Voltando após mil anos do céu ou dos infernos, as almas recebem das mãos da deusa da necessidade (Moirat),
a sorte que escolherem e dali partem para se reencarnarem.
Antes, porém, reuniam-se as almas em uma planície (Hades), onde erá determinado o destino futuro de cada
uma delas, devendo escolher o tipo de vida que iriam ter e, diante da deusa do futuro (Láquesis), filha de
Moirat), as almas escolhiam seu futuro.
A escolha que faziam eram confirmadas por outras duas deusas, a deusa do presente (Clótos) a quem cabia
selar a escolha e, Átropos a quem cabia, permitir que se bebessem das águas do rio do esquecimento (Lettes).
Tudo isso com o objetivo de apagar o passado e selar o futuro, tornando-o, assim, irreversível. Após ao que,
são autorizados a viver a nova vida escolhida, e então recebiam o sopro de Moirat para voltarem à vida
6Livro X, de 614b a 621b. Trata-se de um relato, transmitido oralmente.
esse sentido era tô autó (o mesmo, ele mesmo), que mais tarde, no período romano seria
traduzida para o latim como idem.

Assim, a partir da junção destas duas expressões ente + idem surgirá a “identidade”.
Donde conclui Heidegger que, o Ser se dá com o outro (A=A), através de uma identidade
comum, a apreensão dessa ideia formará a expressão contemporânea “comunidade”, ou
seja, aqueles que tem um identidade comum.

Nessa perspectiva: o Ser “soprado” (homem) tem com ou outro, algo comum (idem, A=A),
mas essa igualdade entre os Seres comuns não se dá a partir de si mesmos, mas a partir do
Ente (matéria, natureza). A junção das expressões idem + ente é que forma a identidade
humana, pois, como dizem os fenomenologistas, algo ou alguém só é, após a designação de
uma expressão que a qualifique.

O Ser é uma construção linguística pois é deduzido a partir de escritos, esse fenômeno
descreve a distinção do Ser em relação a um ente (considerada aqui de maneira simplória
como natureza), que se identifica com o outro a partir de características que lhes são
comuns. Talvez daí surge a expressão contemporaneamente atribuída ao evangelho de João,
logo em seu primeiro capítulo “e o verbo se fez carne e habitou entre nós.

Para além, o que há de característico dessa época é que, de todas as tragédias, é possível
verificar a conexão com elementos naturais, essa condição de igualdade se dava a partir da
observação da natureza. Para exemplificar ainda melhor: o peixão come o peixinho e isso é
naturalmente justo, jamais irá acontecer o inverso, da mesma forma, era justo o forte
dominar o fraco porque isso era de acordo com a “natureza”. Era o naturalismo grego.

Ilustram esse raciocínio a falas de Heráclito7 (535-475 a.C.) (2005, p.29): “[...] o conflito é
o pai de todas as coisas: de alguns faz homens; de alguns, escravos; de alguns homens
livres”. Donde se deduz que iguais são os forte entre si, e, não em relação aos fracos ou
escravizados, o mesmo se pode ser dito em relação à mulheres, tidas como inferiores.

7
“Filho de Blóson, descendente e do fundador de Éfeso, o rei Ândrocles considerado por muitos o mais
importante dos pré-socráticos, conhecido como “o obscuro” escreveu o tratado “Da natureza”. Fundador da
Escola Heraclítica que se preocupava com a explicação do mundo a partir do fogo, concebido como uma
força em movimento” (DOUZINAS, 2009, p. 41).
Neste estágio do desenvolvimento, o homem fazia parte de uma ordem estabelecida e que
era vã a tentativa de se desvencilhar do destino, predefinido, imutável, como na natureza,
nessa existência ajustada com o kósmos.

Referências

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca, Curso de Filosofia do Direito/ Eduardo C.B. Bittar,
Guilherme Assis de Almeida, - 11.ed.- São Paulo: Atlas, 2015.

DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Tradução de Luzia Araújo. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 2009.

HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Tradução e notas Ernildo Stein.


– 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. – (Os pensadores; 5)

NIETZSCHIE, Friedrich. A Filosofia na era trágica dos gregos (org. e trad. Fernando R. de
Moraes Barros) São Paulo: Hedra, 2008.

SOUZA, Jose Cavalcante de; KUHNEN, Remberto Francisco (Org.). Os pré-socráticos:


fragmentos, doxográfias e comentários. Tradução de José Cavalcante de Souza et al. São
Paulo: Nova Cultural, 2005

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