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Os pré-socráticos

AS ES COLAS PRÉ-SOCRÁTICAS

Os historiadores da Hlosofia grega costumam distinguir, no período pré-so­


crático (século VI a.c. ao início do século IV a.C .), quatro grandes tendências ou
escolas que não são sucessivas mas, em geral, coexistentes, embora os continua­
dores não mantenham a totalidade das ideias dos fundadores. São pré-socráticas
pelos temas que abordam e não porque todos os seus membros teriam nascido
e vivido antes de Sócrates. Tanto assim que Anaxágoras, um dos últimos pré-so­
cráticos, foi contemporâneo de Sócrates; Empédocles, outro dos pré-socráticos,
era mais jovem do que o sofista Protágoras; o eleata Zenão encontrou-se com
o jovem Sócrates, e o pitagórico Árquitas foi amigo de Platão. As escolas pré-so­
cráticas são assim designadas para indicar aquele pensamento cuja preocupação
central e cuja investigação principal eram a phYsis. São as escolas de cosmologia
ou de fisica (no sentido grego desse termo).
São elas:
1) Escola Jônica (Ásia Menor), cujos principais representantes são Tales de
Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto e Heráclito de Éfeso;
2) Escola Pitagórica ou Itálica (Magna Grécia), cujos principais represen-

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tantes são Pitágoras de Samos, Alcmeão de Crotona, Filolau de Crotona e Ár­
quitas de Tarento;
3) Escola Eleata (Magna Grécia), cujos principais representantes são Xenó­
fanes de ColoIao, Parmênides de Eleia, Zenão de Ele ia e Melissos de Samos;
4) Escola Atomista (Trácia), cujos principais representantes são Leucipo de
Abdera e Demócrito de Abdera.
Essa classificação apresenta um problema porque nela não há lugar para
dois dos maiores fllósofos pré-socráticos: Empédocles de Agrigento e Anaxágo­
ras de Clazómena. Por esse motivo, preferimos propor que a quarta escola re­
ceba uma outra denominação. Veremos, a seguir, que as três primeiras escolas
possuem em comum o fato de tratarem a physis como unitária, enquanto os ato­
mistas, Empédocles e Anaxágoras concebem a physis como pluralidade. Propo­
mos, então:
4) Escola da Pluralidade, cujos principais representantes são os atomistas
Leucipo e Demócrito de Abdera, Empédocles de Agrigento e Anaxágoras de
Clazómena. São os fllósofos que tentaram conciliar Heráclito e Parmênides
para salvar a fllosofia de sua primeira grande crise.

A ESCOLA JÔNICA

TALES DE MILETO

A vida

Segundo relato de Heródoto, Tales de Mileto foi um dos Sete Sábios da


Grécia arcaica e, conforme Diógenes de Laércio, teria sido o primeiro a ser as­
sim chamado. Sua origem é desconhecida e alguns o consideram fenício. Nas­
ceu provavelmente no século VII a.C. Sua akmé* (ponto de maturação fllosófica)
está ligada à predição que fez de um eclipse solar e cuja data não é segura (6 1 0,
597 ou 548 a.C.). A grande dificuldade para conhecer sua vida e sua obra deve­
-se ao fato de que nada deixou escrito (se é que escreveu alguma coisa). Tudo
quanto sabemos sobre ele deve-se a fontes indiretas, as principais sendo Aristóte­
les, Teofrasto e Simplício.
Platão faz uma breve referência a Tales para repetir uma anedota muito es-

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palhada na Grécia: por ser um teórico, isto é, um contemplador puro, Tales, ca­
minhando com os olhos voltados para o céu, tropeçou numa pedra e caiu num
poço. Consagrou-se, assim, a imagem que, daí por diante, os outros possuem do
ftlósofo como pessoa distraída para as coisas práticas da vida e perdido em pen­
samentos abstratos.
No entanto, os relatos sobre Tales nos oferecem uma imagem muito dife­
rente desta. Foi um político interessado, procurando unir as cidades da Jônia
numa confederação contra os persas; um hábil engenheiro, pretendendo desviar
o curso de rios para favorecer a navegação e a irrigação; um hábil comerciante.
Tales teria também estudado as causas das inundações do Nilo, desfazendo mi­
tos que as narravam. Fez algumas descobertas astronômicas: além da previsão
do eclipse solar, descobriu a constelação da Ursa Menor e aconselhou os nave­
gantes a se guiarem por ela. Prodo lhe atribui o "Teorema de Tales" (dois triân­
gulos são iguais quando possuem um lado igual compreendido entre dois ângu­
los iguais), mas é improvável que tenha sido seu autor. O mais provável é que o
teorema tenha sido inspirado por um fato relatado por Plutarco: Tales desco­
briu um método para medir a altura de uma pirâmide colocando a prumo uma
vara no fmal da sombra da pirâmide e, traçando dois triângulos com a linha des­
crita pelo raio do sol, mostrou que havia proporção entre a altura da pirâmide
e a da vara ou entre os dois triângulos de suas sombras.
É Aristóteles que consagra Tales como fundador da ftlosofia cosmológica,
tendo sido o primeiro a tratar de modo sistemático e racional o problema da ori­
gem, transformação e conservação do mundo. Para Tales, a physis é a água, ou
melhor, a qualidade da água, o úmido.

o pensamento de Tales

Duas passagens, uma de Aristóteles e outra de Cícero, ajudam-nos a co­


nhecer o pensamento de Tales:

A maior parte dos primeiros fIlósofos considerava como os únicos princípios de to­
das as coisas os que são da natureza da matéria. Aquilo de que todos os seres são
constituídos e de que primeiro são gerados e em que por fim se dissolvem, tal é
para eles o elemento, o princípio dos seres; e por isso julgam que nada se cria nem
se destrói, como se tal natureza subsistisse para sempre ... Tales, o fundador de tal

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ftlosofia, diz ser a água o princípio e por isso também declarou que a terra está so­
bre a água (Aristóteles, Metafisica).

Tales de Mileto, o primeiro a interrogar estes problemas, disse que a água é a ori­
gem das coisas e que deus é aquela inteligência que tudo faz da água (Cícero, Da
natureza dos deuses).

A água ou o úmido é o princípio de todo o universo, e a grandeza de Tales


está em que não pergunta (como o mito perguntava) qual era a qualidade ou
coisa primitiva, mas afirma qual é (antes, agora e sempre) a qualidade ou o ser
primordial, isto é, aquilo de que o mundo é feito.
Por que Tales teria escolhido a água ou o úmido como physis?
Os intérpretes oferecem várias razões para essa escolha, baseando-se na­
queles autores que expuseram as opiniões do mósofo de Mileto:
1) a água apresenta-se sob as mais variadas formas e em todos os estados
em que vemos os corpos da natureza: líquido, sólido, gasoso. Vemos a água pas­
sar de um estado a outro, de uma forma a outra, num processo contínuo no
qual mantém a identidade consigo mesma. O fenômeno da evaporação faz pen­
sar que a água é a causa do céu e do que nele existe; o fenômeno da chuva, que
a água é a causa da terra e do que nela existe;
2) a água está diretamente vinculada à vida: as sementes, o sêmen animal
e humano são úmidos (o cadáver em putrefação é uma umidade que vai se res­
secando). ':As coisas mortas secam, as sementes são úmidas, o alimento é sucu­
lento" , escreve Simplício, explicando a escolha de Tales;
3) Tales viajou pelo Egito e certamente se assombrou com as cheias do Ni­
lo: a terra seca e desértica, antes da cheia, tomava-se fértil, verdejante, cheia de flo­
res e frutos depois dela. Tales teria concluído que a água é a causa das plantas;
4) a existência de fósseis de animais marinhos, descobertos nas montanhas
e em grandes altitudes, teria levado Tales a considerar que, no início, tudo era
água e que a vida animal fora causada pela água;
5) a mitologia grega falava no rio Oceano que circundava toda a terra e
que teria engendrado nosso mundo. Não seria descabido, portanto, supor que
Tales houvesse dado uma explicação racional para a narrativa mítica.
A água ou o úmido, por ser princípio de todas as coisas, é também o prin­
cípio do devir, isto é, da mudança ou do movimento (kínesis). É dotada de mo-
vimento próprio, ou seja, é automotora ou "se movente": transforma-se a si
mesma em todas as coisas e transforma todas as coisas nela mesma. Alguns de­
nominam o automovimento da physis com a expressão hilozoísmo (hyle,* em
grego, quer dizer matéria) para significar a matéria que possui em si mesma e
por si mesma o princípio ou a causa de seus movimentos (geração, corrupção,
alterações qualitativas e quantitativas, locomoção). Tales, como os demais mem­
bros da Escola de Mileto, seria hilozoísta. Isso explicaria por que, segundo Aris­
tóteles, teria afirmado que a água é "a alma motora do kósmos".
O fato de considerar a água como alma, isto é, como princípio vital, leva
Tales a considerar que todas as coisas são viventes ou animadas e por isso se
transformam e se conservam. A água é o "deus inteligente" que faz todas as coi­
sas e é a matéria e a alma de todas elas. Eis por que se atribui a Tales a afirma­
ção: "Todas as coisas estão cheias de deuses" .
Segundo o testemunho de Aristóteles, um dos argumentos de Tales para
afirmar que todos os seres são animados ou vivos, e que por isso todas as coisas
estão "cheias de deuses" , foi a observação sobre a chamada pedra de Magnésia,
isto é, o ímã, que move o ferro. Jonathan Bames nos diz que precisamos acer­
car-nos desse fato para nele percebermos um traço marcante do surgimento da
fIlosofia como uma maneira nova de pensar.
Com efeito, Tales considera que o princípio vital ou a psykhé* (em latim,
anima e, em português, alma) é uma força motriz ou cinética, isto é, uma força
capaz de kínesis, capaz de mover-se e de mover outras coisas. Diante do ímã, Ta­
les observa que há uma força cinética que atrai o ferro. Ora, se a alma é o prin­
cípio vital e uma força cinética, deve-se concluir que o ímã possui essa força e,
portanto, uma alma; ou seja, é preciso concluir que o ímã é animado, vivo. Em
outras palavras, diz Bames, Tales oferece um argumento cuja estrutura é pro­
priamente fIlosófica, pois "deriva uma conclusão notável [tudo é animado] a
partir de premissas que dependem, ao mesmo tempo, da observação empírica
[o ímã move o ferro] e de uma análise conceitual [o que tem força cinética ou
motora é vivo]" (Bames, 1997, p. 1 1 ).
Assim, não nos interessa tanto saber se Tales estava "cientificamente" cer­
to ou errado quanto à natureza viva ou animada do ímã, mas deve interessar­
-nos a maneira como ele raciocinou para chegar a tal afirmação, pois é essa ma­
neira que é nova e propriamente fIlosófica. Foi esse modo novo de raciocinar
que o fez concluir que a água era a physis, isto é, ele deduziu e inferiu de fatos
visíveis uma conclusão obtida apenas pelo pensamento ou pela razão.

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ANAXIMANDRO DE MILETO

A vida

Pouco se sabe da vida de Anaximandro de Mileto. É descrito por Teofras­


to como concidadão, discípulo e sucessor de Tales, tendo sido geógrafo, mate­
mático, astrônomo e político. Não possuímos suas obras.
Os relatos doxográficos afirmam que escreveu um livro intitulado Sobre a
natureza, 1 considerado pelos gregos como o primeiro livro de fllosofia escrito
em língua grega. Perdeu-se o livro, dele restando apenas fragmentos e notícias
de fllósofos posteriores e doxógrafos.
Como Tales, Anaximandro possuía interesses práticos. A ele é atribuída a
confecção do primeiro mapa-múndi com a descrição de todo o mundo habita­
do conhecido de sua época; inventou o relógio de sol pelo qual se poderia veri­
ficar a obliquidade do zodíaco; introduziu o uso do gnómon* (o esquadro) e a
medição da distância entre as estrelas e o cálculo de suas magnitudes, sendo por
isso considerado o iniciador da astronomia grega. De fato, segundo o testemu­
nho de Aristóteles no Tratado do céu, Anaximandro teria explicado por que a Ter­
ra permanece imóvel, ou, nas palavras de Aristóteles, "a Terra permanece em
seu lugar por indiferença" . Para um corpo que ocupa um lugar num centro, mo­
ver-se para o alto ou para baixo, para a direita ou para a esquerda é a mesma coi­
sa ou perfeitamente indiferente; por outra parte, como não é possível realizar ao
mesmo tempo dois movimentos em direções contrárias, o corpo que ocupa o
centro deve necessariamente permanecer em seu lugar. Ora, a Terra, que Ana­
ximandro julga ter a forma cilíndrica, ocupa o centro do mundo sem estar sus­
tentada por nada a não ser por um equilíbrio interno de todas as suas partes e,
por sua forma, por seu equilíbrio interno e por seu lugar central está imóvel. Ve­
mos, assim, que a afirmação de Anaximandro (independentemente de estar incor­
reta do ponto de vista da astronomia moderna) não é arbitrária, mas resulta de
um raciocínio preciso, ou seja, a Terra não se move por razões de ordem lógica.

o pensamento de Anaximandro

De Tales para Anaximandro, a cosmologia dá um salto teórico importan­


te. A physis, agora, não é nenhum dos elementos materiais percebidos na natu-

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reza, nenhuma das qualidades (úmido, seco, quente, frio) percebidas nas coisas,
nenhuma qualidade determinada ou defmida, delimitada. A physis é o ápeiron*.
A physis é o ilimitado, indefinido e indeterminado, o que não sendo nenhuma
das coisas e nenhuma das qualidades dá origem a todas elas.
Três fragmentos, tidos como originais, deixam entrever o que Anaximan­
dro entendia pelo ápeiron:

Princípio (arkhé) dos seres... ele disse que era o ilimitado. . . Pois donde a geração é
para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois
concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo
a ordenação do tempo (Simplício, Comentário da Física de Aristóteles).

Esta (a natureza do ilimitado) é sem idade e sem velhice (Hipólito, Refotação das
Heresias).

Imortal... e imperecível (Aristóteles, Física).'

Em linguagem não poética e não tão rigorosa como esta, os fragmentos de


Anaximandro costumam ser traduzidos da seguinte maneira: "Todas as coisas
se dissipam onde tiveram sua gênese, conforme a necessidade, pagando umas às
outras castigo e expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo. O
ilimitado é eterno. O ilimitado é imortal e indissolúvel" .
Conforme o relato doxográfico de Simplício, no Comentário à Física de Aris­
tóteles, Anaximandro foi o primeiro a empregar a palavra arkhé e, portanto, o
primeiro a elaborar o conceito de princípio de todas as coisas:

Anaximandro, filho de Praxíades, milésio, sucessor e discípulo de Tales, disse que


o ápeiron é o princípio e elemento de todas as coisas que existem. Foi o primeiro a
usar o termo "princípio". Diz que não é a água nem qualquer um dos chamados
elementos, mas é uma outra natureza, ilimitada, da qual são engendrados todos os
céus e todos os mundos que neles se encontram. [ ... ] É claro que depois de haver
observado que os quatro elementos [água, ar, terra, fogo; úmido, frio, seco, quen­
te] se transformam uns nos outros não podia admitir que somente um deles seria o
substrato, mas era preciso haver alguma outra coisa para além dos quatro elemen­
tos. Ele não pensa que a geração se faz por mudança de um dos elementos, mas
pela dissociação que separa os contrários graças ao movimento eterno.

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Se compararmos ao de Tales, o pensamento de Anaximandro introduz
grandes mudanças teóricas que merecem ser destacadas.
Em primeiro lugar, a clara identificação entre physis e arkhé como aquilo
que só pode ser alcançado pelo pensamento, pois o princípio não se confunde
com os quatro elementos visíveis e observáveis. Em segundo, e como conse­
quência, a concepção do princípio como algo quantitativamente sem limites e
qualitativamente indeterminado para que possa eternamente dar origem a to­
das as coisas determinadas do ponto de vista da quantidade e da qualidade. Em
terceiro, a afirmação de que o princípio é eterno - "sem idade e sem velhice",
"imortal e imperecível" - de tal maneira que ele é muito mais do que eram os
antigos deuses, pois estes eram imortais, mas não eram eternos, uma vez que
haviam sido gerados. Em quarto lugar, a clara distinção entre a eternidade do
princípio e a "ordenação do tempo", isto é, a distinção entre a perenidade imor­
tal do princípio e o devir ou vir a ser como ordem temporal da geração e cor­
rupção das coisas. Em quinto, e mais profundamente, Anaximandro concebe a
ordem do tempo como uma lei necessária - por isso fala em injustiça e repara­
ção justa - segundo a qual os elementos se separam do princípio, formam a
multiplicidade das coisas como opostas ou como contrários em luta e depois re­
tornam ao princípio, dissolvendo-se nele para pagar o preço da individuação in­
justa porque belicosa. Em outras palavras, Anaximandro procura explicar como
do indeterminado e ilimitado surgem as coisas determinadas e limitadas, ou a
origem das coisas individualizadas, de suas diferenças e oposições.
A origem do mundo é, pois, explicada por um processo injusto e culpado
ou pela guerra incessante que fazem entre si os elementos no interior do ápei­
ron. A luta dos contrários, isto é, o mundo em que vivemos, fere a justiça (díke)
e esta exige a reparação. Cabe ao tempo reparar a injustiça, obrigando todas as
coisas determinadas e limitadas a retornar ao seio do indeterminado e ilimitado:
a corrupção e a morte das coisas é a expiação da culpa pela separação, individua­
ção e guerra dos contrários.
Anaximandro espantava-se com as oposições que constituem o mundo: o
fogo que consome o ar, mas é destruído pela água; a terra seca que luta para não
ser tomada pela água nem pelo fogo; o mar que é úmido, mas que se torna ar
ao evaporar e luta contra ele ao recair como chuva; a sequência eterna das esta­
ções do ano; as diferenças entre os animais (alguns estão sempre na água, outros
na terra, outros no ar); as diferenças entre os homens (alguns de cor diferente

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de outros, alguns calmos e serenos, outros coléricos e belicosos); as lutas entre
homens e animais, entre os próprios animais e entre os próprios homens; a luta
dos homens para cultivar a terra, conquistar o mar etc. Essas lutas, decorrentes
da individuação e diferenciação dos seres, do predomínio de uma qualidade so­
bre as outras, ao mesmo tempo que cria o kósmos, é uma injustiça que precisa
ser reparada, pois a justiça é a paz e o mundo é guerra dos contrários.
Como surge o mundo? Por um movimento circular turbilhonante que ir­
rompe em diversos pontos do ápeiron. Nesse movimento, separam-se do ilimi­
tado-indeterminado as duas primeiras determinações ou qualidades: o quente e
o frio dando origem ao fogo e ao ar; em seguida, separam-se o seco e o úmido,
dando origem à terra e à água. Essas determinações combinam-se ao lutar en­
tre si e os seres vão sendo formados como resultado dessa luta, quando um dos
contrários domina os outros. O devir é esse movimento ininterrupto da luta en­
tre os contrários e terminará quando forem todos reabsorvidos no ápeiron.
Os seres vivos nasceram pela evaporação da água sob a luz e calor do sol
(o úmido e o quente são, pois, os geradores da vida); pouco a pouco, saindo dos
mares e rios, os seres vivos foram se adaptando às regiões secas e a terra passou
a compor parte de suas naturezas; pela respiração, o frio ou o ar também pas­
sou a compô-los e os que tiveram uma predominância do frio tomaram-se voa­
dores. Em suma, Anaximandro considera a vida numa perspectiva que, nos sé­
culos próximos de nós, seria chamada de transformismo.
Atribuem-se ainda a Anaximandro duas ideias muito originais: a primeira
delas, sobre a origem e formação do céu e da terra, e a segunda, sobre a existên­
cia de mundos inumeráveis.
A primeira separação do quente e do frio formou um anel luminoso de
chamas que cercou o ar frio, prosseguiu formando novos e menores anéis - os
astros -, dispondo-os para formar o zodíaco. Donde, segundo Hipólito, Anaxi­
mandro afirmar que "os corpos celestes são rodas de fogo separadas do fogo
que cerca o mundo, e fechadas em círculos de ar" . Há três rodas ou três anéis:
o anel do Sol, o anel da Lua e o anel das estrelas (aí compreendidos todos os as­
tros que não o Sol e a Lua). A terra e o mar formaram-se com a separação do
seco e do úmido, no interior do primeiro círculo de fogo que se destacara: o mar
é o que restou do úmido sob a ação do fogo, e a terra, o que restou do seco sob
a ação do fogo e do úmido. Diferentemente de Tales e da tradição, que acredi­
tavam que a Terra estava sustentada por alguma coisa, sendo plana, Anaximan-

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dro descreve a Terra como um cilindro ou disco convexo, solto no espaço, imó­
vel, sem possuir um alto e um baixo.
Quanto à afirmação de Anaximandro de que existem mundos inumeráveis,
não se tem certeza se com isto ele afirmava que existem mundos simultâneos for­
mados do ápeiron (que, sendo ilimitado, poderia dar origem a inumeráveis mun­
dos) ou mundos sucessivos produzidos a cada nova separação no interior do
ápeiron, depois do fim,de cada mundo anterior.

ANAX Í MENES DE MILETO

A vida

Segundo Teofrasto, Anaxímenes de Mileto, filho de Euristrato, era conci­


dadão e associado de Anaximandro. Segundo Apolodoro, sua akmé se dá em
546-545 a.c., fazendo supor que nasceu por volta de 585 a.C. Sua morte é regis­
trada por ocasião da 63' Olimpíada, portanto, em 529 a.C.
Escreveu um livro em prosa, em dialeto jônio, também intitulado tardia­
mente de Sobre a natureza, mas que parece ter-se conservado por muito tempo,
já que alguns fazem observações sobre seu estilo e Teofrasto chegou a escrever
uma monografia sobre ele, atestando a autenticidade da obra e da tradição que
a acompanhou.

o pensamento de Anaxímenes

Duas passagens, uma de Simplício e outra de Hipólito, ajudam-nos a acom­


panhar as ideias de Anaxímenes:

Anaxímenes de Mileto, fIlho de Euristrato, companheiro de Anaximandro, afirma


também que uma só é a natureza subjacente e diz, como Anaximandro, que é ili­
mitada, mas não como Anaximandro, que é indefinida, e sim definida, dizendo
que ela é ar. Diferencia-se nas substâncias por rarefação e condensação. Por rare­
fação, toma-se fogo; por condensação, vento, depois nuvem, e ainda mais, água,
depois terra, depois pedras e as demais coisas provêm destas. Também ele faz eter­
no o movimento pelo qual se dá a transformação (Simplício, Comentário da Física
de Aristóteles).

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Do ar dizia que nascem todas as coisas existentes, as que foram e as que serão, os
deuses e as coisas divinas [ ...] Quando o ar está igualmente distribuído é invisível:
manifesta sua existência por meio do frio e do calor, da umidade e do movimen­
to. E está sempre em movimento, pois o que muda não poderia mudar se não se
mover (Hipólito, Refutação das Heresias).

A physis é o ar (pneu.m.a*). As ideias de Anaxímenes podem parecer um re­


trocesso se comparadas às de Anaximandro, que evitara identificar a physis com
qualquer dos elementos ou qualidades visíveis de nossa experiência. Na verda­
de, não é o caso. Anaxímenes considera o ápeiron de Anaximandro ainda muito
próximo do caos descrito pelo mito. Mantendo a ideia central de seu predeces­
sor, isto é, que a physis é ilimitada, incorruptível e imortal, Anaxímenes exige
que ela seja determinada ou qualificada, pois o pensamento só pode pensar o
que possui determinações. O ar, enquanto physis, não é o mo e o ar que vemos,
mas o princípio do qual o ar de nossa vida e de nossa experiência provém. Tor­
na-se visível para nós por meio do mo, do quente, do úmido e do seco, mas,
quando perfeitamente homogêneo e idêntico a si mesmo, toma-se invisível e só
pode ser apreendido pelo pensamento.
Por que a escolha do ar? Segundo o testemunho doxográfico, Anaxímenes
teria escrito que "assim como nossa alma [isto é, o princípio vital], que é ar, nos
sustenta e nos governa, assim também o sopro e o ar abraçam todo o cosmos"
e que "o ar está nas cercanias do incorpóreo [sem forma e invisível] e já que nas­
cemos graças ao seu fluxo, é preciso que seja ilimitado para que jamais acabe".
Assim, podemos supor que Anaxímenes concebeu o pneu.ma como physis e arkhé
porque:
- ao contrário da água, que precisa de um suporte ou de um continente,
o ar sustenta-se a si mesmo; possui uma autonomia ou autossuficiência, própria
de um fundamento ou princípio;
- sua presença e sua difusão são ilimitadas, podendo compor todas as coisas;
- respirar é o primeiro ato de um ser vivo e também o último, antes de
morrer, por isso o ar é o princípio vital. (Aliás, no único fragmento que restou
de Anaxímenes lemos: "Como nossa alma, que é ar, soberanamente nos man­
tém unidos, assim também todo o kósmos, sopro e ar o mantêm" .) O ar - alma
nossa e do mundo - é o que mantém unidas as partes de um todo - nosso cor­
po e o cosmos. O mundo é um ser vivo que respira e que recebe do sopro ori­
ginário a unidade que o mantém.
A grande originalidade de Anaxímenes, perante Tales e Anaximandro, con­
siste no fato de que a multiplicidade, transformação e ordenação do mundo se
fazem por alterações quantitativas em um único princípio: menos ar (rarefação)
e mais ar (condensação) determinam toda a variação e organização do real. O
ar, elemento universal, invisível e indeterminado, por sua força interna própria,
movimenta-se: contraindo-se ou dilatando-se, vai engendrando todos os seres
determinados como manifestações visíveis de uma vida perene. O kósmos vive no
ritmo de uma respiração gigantesca que o anima e mantém coesas suas partes.

HERÁCLITO DE É FESO

O mais extraordinário dos pré-socráticos: assim se referem a Heráclito ftló­


sofos posteriores e historiadores da ftlosofia, cada qual oferecendo de seu pen­
samento interpretações divergentes e diferentes. Heráclito, "o Obscuro", Herá­
clito, "o Fazedor de Enigmas" : eis como dele falaram os próprios gregos.
Heráclito está entre os jônios, porém escreve após Pitágoras e deixa supor
que seria contemporâneo de Parmênides. Vamos, primeiro, aos pitagóricos e
depois retomaremos a ele.

A ESCOLA PITAGÓRICA OU ITÁLICA

Para compreendermos a Escola Pitagórica precisamos considerar dois acon­


tecimentos que foram decisivos em sua instauração: 1) o processo emigratório
da Ásia Menor para o Sul da Itália e para a Sicília, conhecidas, na época, como
Magna Grécia; 2) a efervescência religiosa, de tipo dionisíaco, promovendo uma
religiosidade de cunho místico e oracular.
O avanço dos persas sobre ajônia, nos meados do século VI a.C., ocasionou
uma série de migrações da Ásia Menor rumo ao Sul da Itália e à Sicília, para
as colônias gregas da Magna Grécia. Esse deslocamento teve dois efeitos princi­
pais sobre a ftlosofia nascente. Em primeiro lugar, o desenvolvimento ftlosófi­
co, que se fizera naturalmente e sem conflitos na jônia, como consequência na­
tural de suas condições sociais, econômicas, religiosas e políticas, encontrará,
agora, barreiras e dificuldades, pois a sociedade onde os exilados ftlósofos vêm
se instalar não possuía as mesmas condições que aquela que haviam deixado.
Assim, os primeiros conflitos entre a fllosofia e a cidade (a pólis) - que iriam
marcá-la para sempre - têm início neste transplante das ideias jônicas para a
Magna Grécia. Em segundo lugar, colocou os exilados jônios em contato com
uma cultura que havia desenvolvido a oratória ou retórica, "um dos produtos
mais característicos da Grécia ocidental", conforme Burnet. Em outras palavras,
colocou a fllosofia em contato com um dos efeitos da palavra dialogada e leiga
dos guerreiros: a dialética. Esse efeito será menos visível em Pitágoras, mas será
decisivo em Parrnênides de Eleia.
O outro fenômeno histórico-cultural relevante no período é a nova religio­
sidade que se espalha pela Grécia continental - na Ática - vindo da Trácia, al­
cançando a Magna Grécia e atingindo todo o mundo helênico. Essa religiosida­
de é completamente diferente daquela existente na Jônia, onde predominava a
religião homérica. Ali, como observamos, a religião se naturalizara e, racionali­
zada em mitos mais sofisticados, pudera ser continuada e desfeita pela cosmo­
logia. A nova religiosidade, ao contrário, fundada no culto de Dionisos, na pre­
sença de profetas inspirados e taumaturgos, atingiu seu apogeu com a fundação
de comunidades e confrarias religiosas voltadas para os mistérios órficos, sobre­
tudo na Magna Grécia. É a religião dos Mestres da Verdade - do poeta inspirado,
do vidente inspirado, do rei de justiça -, reunidos em confrarias de iniciados
nos mistérios e que têm seu patrono em Orfeu, aquele que desceu ao Hades (rei­
no dos mortos) e viu a verdade (alétheia). Os mistérios órficos são, fundamen­
talmente, rituais de purificação para que a alma do poeta, do vidente e do legis­
lador não seja submetida às águas do esquecimento (Léthe) e não esqueça o que
lhe diz o deus. Esses rituais de purificação - as orgias - se baseavam na cren­
ça na imortalidade da alma, conseguida após muitas reencarnações ou transmi­
grações, e a fmalidade ritualística era purificar a alma do iniciado para livrá-lo
da "roda dos nascimentos".
As crenças órficas podem ser resumidas nos seguintes pontos principais:
1) há no homem a presença de um princípio divino, ou melhor, de uma potên­
cia divina (o daímon*), entidade que governa o destino da alma de cada um e
que, com a alma, vem habitar em um corpo em consequência de uma culpa ori­
ginária; 2) a alma existe antes do nascimento do corpo e subsiste depois da mor­
te corporal, reencarnando-se em corpos sucessivos ou em nascimentos sucessi­
vos cuja fmalidade é purificá-la da culpa, libertando-se desses renascimentos
quando estiver inteiramente purificada; 3) a vida órfica, ou iniciação aos misté­
rios sagrados, desenvolve práticas e ritos que ensinam a alma a ouvir os conse­
lhos de seu daímon, asseguram sua purificação e podem livrá-la da "roda dos
nascimentos"; 4) aquele que não se purifica, pagará por suas faltas incessante­
mente, até o fim dos seus dias, a punição estando na impossibilidade de não re­
nascer continuamente em corpos sucessivos; 5) porém aquele que se inicia nos
mistérios e segue os ritos, não só se purifica, mas prepara-se para recompensas
na vida futura imortal, pois o destino dos homens é "estar de volta ao divino",
uma vez que cada um é habitado por um daímon. Saber padecer e dispor-se a se
purificar constitui a educação e o itinerário da alma para realizar seu destino se­
gundo a justiça, reparadora de todas as culpas.
A alma, tendo uma origem divina e sendo imortal, deve tomar consciência
de si mesma, elevar-se pela purificação para fazer jus à imortalidade que os deu­
ses lhe concederam. Exige-se que a alma permaneça pura e não se deixe conta­
minar pelas impurezas do corpo (matéria mortal perecível), que se exercite na
pureza, graças a uma vida de elevação espiritual (áskesis*) e aos rituais de puri­
ficação (kátharsis*). A religião deixa de ser uma religião da exterioridade, isto é,
do culto aos deuses para tomar-se uma religião da interioridade, isto é, da asce­
se moral e da catarse da alma, hóspede passageira do corpo mortal.
A religiosidade dos mistérios órficos irá expandir-se nas colônias gregas e
na Grécia continental, reavivando o culto a Dionisos, de um lado, e dando um
novo conteúdo ao culto de Apolo Delfo ou religião délfica, de outro. No pórti­
co do templo de Apolo, em Delfos, surge a máxima inscrita na pedra: "Conhe­
ce-te a ti mesmo". Desenvolve-se a doutrina da sophrosyne* e a exigência de que
o homem não perca os limites do humano. Em outras palavras, os mistérios ór­
ficos fazem com que a religião homérica seja transformada, pois, tanto do lado
do culto de Dionisos como do lado do culto de Apolo, a preocupação com a al­
ma, com a interioridade, toma-se mais importante do que o culto externo aos
deuses. A religião homérica cultuava os deuses; a religião órfica purifica a alma
humana.
O lado dionisíaco e o lado apolíneo da cultura grega aparecem pela primei­
ra vez, exprimindo a luta entre o sentimento trágico da vida (dionisíaco) e o sen­
timento racional da natureza humana (apolíneo). É nesse novo contexto que
nasce a Escola Pitagórica ou o pitagorismo, na Magna Grécia.

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