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Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Introdução aos Estudos Literários | 2023/2024

A literatura como entidade


Tanto leitores como escritores partilham de um tempo e espaço.

A literatura é encarada como um bem comum e como um património quer de um país/língua, quer de uma
comunidade mais pequena.

➢ Literatura nacional – quando um texto fala do seu povo e, em princípio, na sua língua (mas pode não ser o
caso). A literatura de uma nação não fica encerrada nessa nação! Fica num espectro mais alargado que é o
da expressão artística.

Há um consenso, dependendo de hierarquias, que cada comunidade tem sobre a importância dos seus autores.
Contudo, é de maior importância a existência de regulação no campo literário. As instituições que regulam o
funcionamento da literatura são:

• Academias de letras – século XIX


• Arcádias – séculos XVII e XVIII – espaço onde autores conviviam
• Academia das Ciências de Lisboa – não muito creditada dado ser muito conservadora e com dificuldades em
acompanhar o dinamismo das artes
• Salões literários – onde as pessoas cultas conviviam
• Gabinetes de literatura – são os antecedentes das bibliotecas, onde o público mais cultivado ia buscar livros
• Espaço público burguês – quando a literatura saiu do salão e passou para a publicação livre
• Público em si – livremente adere ou não às obras literárias

Contudo, quem regula a literatura a partir do momento em que esta passa para o espaço público é a crítica literária.

Crítica literária:

• Começa a ser importante ainda no século XIX


• Na 1ª metade do século XX, ela ocupa um espaço muito importante nos meios de comunicação social
• Na 2ª metade do século XX, a literatura perde espaço para outras artes, como o cinema, teatro, artes
plásticas, etc.
• A crítica literária é importante para uma primeira avaliação das obras
• Crítica jornalística: ainda que documentada, é de opinião, ou seja, envolve o gosto pessoal do crítico. É
judicativa e dirigida ao público em geral, tendo muito peso na opinião pública, podendo ajudar a divulgar o
autor, ou o contrário.
• Crítica especializada: aquela que se produz em revistas especificamente direcionadas para análise e
críticas literárias (ex: “Revista Colóquio Letras”, da Fundação Calouste Gulbenkian). É mais aprofundada e
de base universitária (todas as universidades têm revistas de análise. Na FLUC é a “Revista Biblos”).

“A crítica literária separa o autor muito lido do autor muito bom”

É importante relativizar os índices de vendas!

O ensino é um agente muito importante na institucionalização da literatura. Desde logo porque a literatura ocupa nos
currículos do ensino secundário um campo obrigatório e de peso:

✓ Pelo seu lado patrimonial – reconhecido como porta prestigiada de cultura e língua de uma nação;
✓ Permite a criação de uma memória coletiva – são referências comuns que nos unem.

Quem faz essa lista? Pessoas intimamente ligadas à cultura e em relação com o ministério da educação.

Nota: o sistema e a memória literária são sujeitos a reavaliações e reapreciações ao longo do tempo. Espera-se que
o ensino secundário tenha uma boa escolha de autores que nos deem um bom conhecimento da língua. Já no ensino
universitário, há maior liberdade de escolha e de problematização das escolhas consideradas consensuais.

Hoje em dia há um mecanismo de consagração muito importante: prémios (ex: Nobel, Prémio Camões – é o mais
importante em Portugal, Prémio da Associação de Autores, Prémio Vergílio Ferreira, etc.

Há outro fator importante: mercado literário

• Fonte de rendimento para artistas


• O principal é o índice de vendas (Nota: nem todos os autores escrevem para as massas. Há alguns que
restringem a sua literatura a um grupo que lhes interessa. Isto verifica-se muito na poesia – há redes de
circulação e de prestígio entre eles
• Está sujeito a muitas disfunções. Desde logo, o poder monetário das editoras, que podem ter maior
capacidade de publicar o autor. Com isso, a qualidade da obra que se está a publicar é facilmente distorcida.

Arte comprometida e Arte pela arte


Função da literatura na sociedade

Há duas posições extremadas:

• Aqueles que escrevem para transmitir valores – acreditam que a literatura tem pedagogia a exercer perante
o público
• Aqueles que acham que a literatura só tem de responder pela sua qualidade estética – defendem a arte
pela arte ou literatura pura.

Durante muitos séculos entendia-se que a literatura tinha de ser simultaneamente bela e útil. Tentavam criar obras
que obedecessem ao belo e à ética (ao “bem”).

A partir do século XVIII, muitos por influência da filosofia de Kant, começou a aceitar-se a separação/autonomia dos
valores estéticos em relação aos valores éticos/morais/sociais.

Na prática, isto quer dizer que a partir do século XVIII se passou a considerar que uma obra literária pode estar
contra os valores aceites como positivos pela sociedade e mesmo assim ser considerada uma grande obra de arte.
Não podemos avaliar os autores pela qualidade das virtudes que apregoam! Temos que avaliar o valor estético.

Contudo, há quem tente conciliar ambas as dimensões, como é o caso de Eça de Queirós, que denunciava
comportamentos sociais de forma estética.

Sempre houve e haverá literatura político-ideológica, que se preocupa com ideias políticas do seu tempo. Esta é
normalmente catalogada como literatura empenada ou comprometida. Em certos momentos de maior crise ou
convulsão social, chega mesmo a haver arte de combate. Ex: a poesia de Manuel Alegre é literatura
comprometida, funcionando como uma chamada de consciência ao leitor. No outro extremo do espectro, temos o
exemplo de Fernando Pessoa, que é defensor da arte pela arte, isto é, a arte não tem por obrigação desenvolver
sentimentos morais.

Literariedade
Tem a ver com as características que nos permitem dizer se um texto é literário ou não. É conferida por:

• Utilização de recursos expressivos (ex: metáfora)


o Podem ser encontrados na linguagem corrente, mas não da mesma forma. Na literariedade é usada
uma linguagem criativa que se desvia da norma padrão. É mais elaborada e trabalhada, havendo
uma luta com as palavras – linguagem desviante.
• Plurissignificação (ou polissemia) – capacidade da palavra ter mais do que um significado além daqueles
que são os seus significados literais.

Nota: a linguagem geralmente utilizada no texto poético é muito difícil de traduzir porque neste processo se perde o
lado “material” da palavra – o som, a sua relação musical com outras palavras.

Materialidade do significante
O sinal/código que usamos para a linguagem tem um lado material (materialidade fónica – o som – conjunto de
sons que formam palavras que por sua vez remetem para um significado) e um lado mais mental (abstração mental
– imagem mental associada ao conjunto de sons).

No dicionário, ao código fónico sobrepõe-se um código ortográfico, que em mais ou menos cada som corresponde a
uma letra, a um código gráfico, código esse partilhado pelos utilizadores de uma língua.

A relação entre a parte sonora e o significado é arbitrária, não tem propriamente um sentido. Vem sofrendo evolução
ao longo do tempo.
No entanto, é típico da língua utilizada nos textos literários (nomeadamente na poesia) encontrar associações entre o
significado e o significante. Ou seja, a parte do signo (som e grafia) tem um potencial que é explorado na literatura e
sobretudo na poesia. Daí todos os jogos fónicos, paronomásias, aliterações, a simples sonoridade das palavras, são
trabalhados no texto poético. As palavras não são escolhidas ao acaso, mas sim em função da sua materialidade,
sobretudo do som.

Musicalidade
A poesia está recorrentemente associada à música. Durante séculos, a poesia tinha esta vertente muito acentuada,
tendo uma toada e ritmos próprios (ex: cantigas de amigo na idade média; odes).

Há uma exploração da musicalidade da língua que está desde sempre associada à poesia. Tem ritmo, que se
introduz na poesia através de pausas e acentos que se repetem, criado essa regularidade, essa cadência. Isto só é
possível com versos de tamanho regular.

A poesia estabelece essa cadência com a métrica, que além de instituir o tamanho do verso (nº de sílabas), também
se define o sítio das sílabas tónicas.

Notas: a repetição de vários versos ou da própria rima contribui para esse ritmo. Há inclusivamente poemas com
refrão; não ter métrica fixa não anula a existência de ritmo.

Elementos fónico-rítmicos
• Métrica
• Repetição
• Rima
• Anáfora
• Aliteração
• Assonância
• Paronomásia (= jogos de palavras/trocadilhos)
• Harmonia imitativa (criar musicalidade que imita o som de qualquer coisa)
• “Leit Motiv” (frase musical que vem de tempos a tempos ao longo do poema, vai-se repetindo. Pode consistir
num único verso)
• O próprio ritmo associado ao tema (ritmo lento associado a melancolia ritmo rápido/febril ligado a
sentimentos intensos. Verifica-se uma exploração do ritmo significante, isto é, do lado material da língua)

Materialidade visual
Destaca-se o material gráfico, não o sonoro.

Poesia experimental/visual/concreta: poesia para se ver e não tanto para se ouvir. Muito experimentada nos anos
60, mas com início há muitos séculos antes. Trabalha sobre o código gráfico e a mancha gráfica no papel. Está a
meio caminho entre a arte literária e as artes plásticas.

A poesia visual ou concreta é caracterizada por:

• Desobediência à linha do tempo


• Obediência à espacialidade da folha de papel (ou outro suporte que possa ter)
• Relevância do significante visual

Pretende superar formas tradicionais e discursivas da poesia.

O grafismo ganha peso e valor estético, assim como a forma do texto e a incorporação de imagens.

O grafema (= letra) ganha autonomia.

Frequentemente há jogos de palavras (decomposição de palavras) que aproximam umas de outras que lhes são
familiares pela forma.

Caligrama

• Género mais expressivo dentro da poesia virtual


• É um texto visual que desenha o objeto que representa
• Obriga a leitura intersemiótica, ou seja, obriga a que ativemos simultaneamente sistemas de interpretação
diferentes.

Metáfora
Recurso expressivo que aproxima realidades, um comparante e um comparado, sem explicitar as relações de
comparação. É sempre uma figura de substituição! (Há um significado que é substituído por outro; faz-se uma
transferência e cabe ao leitor fazer esse caminho interpretativo.)

• Metáfora in praesentia – aquela em que não está presente nenhum termo de compração (ex: “morte, navio
torto”; “amor é fogo que arde sem se ver”)
• Metáfora pura – não está sequer presente o elemento comparante, cabendo ao leitor detetá-lo (ex: “fogo que
arde sem se ver” – não está explícito o elemento “amor”)
• Metáfora lexicalizada – usada na linguagem corrente; já está no dicionário e nem é percebida como
metáfora; não é original.

Alegoria
É sempre um fenómeno de figuração de um conceito abstrato num conceito concreto (ex: imagem de mulher que
representa a justiça. Está vendada, simbolizando a ideia de igualdade, e tem uma balança, símbolo de equilíbrio e
ponderação).

Na literatura, funciona como uma pequena história que alarga a metáfora inicial. Isto é, é o prolongamento de uma
metáfora que depois se desenvolve numa espécie de narrativa.

Em geral, a alegoria é muito fácil de identificar. A metáfora isolada é muitíssimo mais difícil de interpretar do que uma
alegoria.

Outros conceitos
• Conotação – associação subjetiva de várias ordens que são partilhadas; para funcionar tem que ter
repercussão na língua dos leitores.
• Intertextualidade – diálogo que o texto estabelece com outros que o precederam.
• Sinédoque – figura de estilo caracterizada pela substituição de um termo por outro, ocorrendo uma redução
ou ampliação do sentido desse termo.
• Aliteração – figura de estilo caracterizada pela repetição de som consoante.
• Assonância – figura de estilo caracterizada pela repetição de um som vocálico.
• Paronomásia – relação de semelhança entre palavras diferentes, mas com som idêntico.

Modos literários
Na literatura, há três grandes formas naturais, segundo a tradição literária do ocidente:

• Lírica
• Narrativa
• Drama

Drama

É caracterizado por:

➢ Existência de personagens
➢ Predomínio do diálogo
➢ Ação limitada a determinado tempo e espaço
➢ Texto condensado e curto

Narrativa

É caracterizada por:
➢ Predomínio da narração por entidade – narrador
➢ Conta uma história

Lírica

Presta-se à meditação, subjetividade e à representação simbólica do mundo interior.

É caracterizada por:

➢ Não conta uma história (ao contrário do texto narrativo dramático)


➢ Não se desenrola num tempo e espaço
➢ Projeção do mundo exterior no sujeito lírico
➢ Texto estático/parado: verifica-se que rebate e desenvolve uma única ideia, emoção/sentimento e anda
circularmente à volta desse mesmo tema

Forma:

✓ Texto curto e repetitivo


✓ Presta-se à forma poética – mas não tem de ser em verso, não tem que ser em poema! Um texto pode ser
em prosa, mas ainda assim ser curto, intenso e voltado para o “eu” e não contar uma história. (O melhor
exemplo disso é o Livro do Desassossego)

É importante destacar a diferença entre poesia e lirismo! A poesia é o texto escrito em verso, enquanto que o lirismo
é uma essência, um modo de representação.

Inês Pinheiro Constante | Licenciatura em Português

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