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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO

Disciplina: Tradução e Intermidialidade


Docente: Profaª Drª. Cynthia Beatrice Costa
Discente: Fabiana Ferreira da Silva

Um conto de fados e seus dois mundos

A famosa frase “era uma vez…” é uma forma convencional de iniciar um


conto de fadas. Por isso, este ensaio terá como base a adaptação da Cinderela.
Sabe-se que a versão mais conhecida desta obra é do escritor francês Charles
Perrault, de 1697, é que foi baseada em um conto italiano popular chamado de La
gatta cenerentola ("A gata borralheira"), popularmente ficou conhecida como
"Cinderela" ou "Cendrillon ou La Petite Pantoufle de Verre". Além disso, sua obra
tem sido adaptada por muitos autores, inclusive para os cinemas como no caso da
Walt Disney que difundiu ainda mais sua versão. O tradicional conto de fadas da
Cinderela será analisado versus a adaptação da Cinderela Surda de Hessel, Rosa e
Karnopp (2007).
A Cinderela de Perrault, de 1697, é considerada a versão mais conhecida
deste conto, porém, um fato interessante sobre a obra, é que no final do século
passado, por meio de uma pesquisa realizada por M.R.Cox, foram catalogadas
cerca de trezentas e quarenta e cinco versões da Cinderela e reunidas no livro
Acordais de Regina Machado. Sendo que, os autores desenvolveram sua versão de
acordo com a época e a cultura em que foi escrita.
Ao longo dos anos, diversos acontecimentos mundiais influenciaram o
movimento literário, e com isso, ganharam forma e propagação de suas obras.
Como por exemplo, a ascensão da burguesia e a revolução francesa, que destacou
o lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, destacando:
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Dessas três palavras que compõem o lema da revolução
francesa, os artistas românticos talvez tenham colocado mais
ênfase na palavra Liberdade. Eles queriam para si a liberdade
de criação individual, sem seguir nenhum modelo anterior. O
modelo que eles queriam privilegiar era o de sua própria
imaginação, de seus sonhos, de suas fantasias. Desse modo,
percebemos uma relação entre o contexto histórico e a relação
com o movimento literário. (SANTOS; RAMOS 2007)

A partir desta reflexão, entende-se que “a literatura é qualquer corpo de


produções baseado na linguagem que é considerado socialmente, historicamente,
religiosamente, culturalmente e linguisticamente importante para a comunidade”
Entendido por Sutton-Spence e Kaneko (2016, p. 24) e destaca ainda, a literatura
como um evento linguístico não cotidiano, sobressai ao simples ato de comunicar,
indo além, com o objetivo de proporcionar prazer. O que corrobora o poeta Romano
Ovídio quando disse que o objetivo da literatura era “ensinar por encantar”. Em
resumo, a literatura não é fixa.
Os contos de fadas, assim como as lendas e as piadas, fazem parte do
folclore popular de diferentes culturas, na qual a maioria delas são obras de arte
antiquíssimas perpetuadas de geração em geração, transmitidas de forma oral com
o objetivo de educar as crianças e distrair os adultos, como por exemplo a narrativa
Ciderela como conto tradicional oral do século XVII.
De acordo com Sutton-Spence (2021), uma das principais características do
folclore é que cada pessoa pode recontar essas histórias do seu próprio jeito, desde
que o enredo principal seja mantido, porque não existe uma versão “certa”.
Sabendo-se que folclore é o termo coletivo dado às tradições, aos costumes, aos
rituais e às formas de expressar a experiência de um grupo particular. Para Dundes
(1965), esses contumes são passados às novas gerações por meio de histórias,
poemas, piadas ou outros usos de linguagem; normalmente, não são escritos e não
têm um autor conhecido. Por isso, a importância de contextualizar a origem do
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termo folclore e o valor atribuído deste termo no campo do folclore linguístico:

O folclore linguístico inclui jogos da língua e piadas, gestos


convencionais, comentários frente a atos de excreção do corpo
(ex: arrotos, gases e espirros), mitos, lendas, narrativas
populares, provérbios, insultos, provocações, trava-línguas,
formas de saudação e despedida, nomes (de lugares e de
pessoas, incluindo apelidos) e poesia popular (por exemplo,
poesias tradicionais para crianças e canções infantis)18. Tudo
isso é visto em Libras, mas faltam ainda pesquisas
sistemáticas sobre esse tipo de folclore em língua brasileira de
sinais. (SUTTON-SPENCE. p. 85, 2021)

O objetivo deste ensaio é contextualizar também os principais elementos


deste conto de fadas que se entrelaçam em um conflito social da personagem
principal - a Cinderela - e com o coletivo, de acordo com os conflitos vivenciados
pela sociedade. Desta forma, teremos dois pontos de vista a serem analisados: a
forma convencionada, que muitos têm conhecimento, e a personalizada de acordo
com a realidade da comunidade surda. Vale ressaltar que o conteúdo basilar da
obra original, apesar das adaptações e/ou reconto desta narrativa, permanecem
com a mesma estrutura, seja em língua oral ou a Língua de Sinais. de que forma
podemos destacar isto: com os personagens principais e os eventos fundamentais -
até a estrutura geral – se mantém, mas o narrador tem a liberdade de contar como
quiser. Destaca Sutton-Spence (2021).
O conto tradicional tem a Cinderela, como uma bela jovem que vivia com o
seu pai, um comerciante viúvo e muito rico. Assim como, na versão adaptada que
destaca que a Cinderela Surda era filha de nobres franceses e aprendeu a Língua
de Sinais Francesa com a comunidade surda nas ruas de Paris. Mourão (2011),
sustenta que as adaptações de histórias traduzidas para Libras são destacadas
especialmente por adaptarem seu enredo para incluírem nele personagens surdos,
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além disso, quando contamos os contos tradicionais em língua de sinais, apesar de
mantermos o enredo básico, adicionamos esses elementos culturais da comunidade
surda. Com isso, cria-se artefatos literários próprios da comunidade surda, onde
pode-se dividir em três tipos de obras: obras traduzidas, obras adaptadas e obras
criadas pelos sujeitos surdos. Para Strobel (2008), o conceito “artefatos”
supracitados, “não se referem apenas a materialismo culturais, mas àquilo que na
cultura constitui produções do sujeito que tem seu próprio modo de ser, ver,
entender e transformar o mundo.” Isto posto, as obras criadas pelos sujeitos surdos
refletem a literatura surda propriamente dita, pois se origina da vivência visual de
mundo, além de ser produzida na língua visuo gestual, a língua de sinais. Enfatiza
Sutton-Spence (2021).
Mas afinal, o que é literatura surda?

“É uma literatura feita por surdos, geralmente membros da


comunidade surda, semelhante ao conceito de “literatura
negra”, que é escrita principalmente pelos autores negros.
Pode ser criada e apresentada por surdos ou elaborada
originalmente por não surdos, mas adaptada e apresentada
por pessoas surdas. (SUTTON-SPENCE. p. 40, 2021).

Por isso, todas as narrativas que protagonizam as Línguas de Sinais e a


cultura surda é denominada, por Karnopp (2006), são literatura surda:

A produção de textos literários em sinais, que traduz a


experiência visual, que entende a surdez como presença de
algo e não como falta, que possibilita outras representações de
surdos e que considera as pessoas surdas como um grupo
linguístico e cultural diferente (KARNOPP, 2006).

Há muitos exemplos de literatura surda criada e apresentada nas línguas de


sinais, que seguem as características: 1) ser feita por surdos; 2) tratar da
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experiência de ser surdo e do conhecimento da cultura surda; 3) ter o objetivo de
atingir um público surdo e de 4) ser apresentada em Libras. A partir da definição dos
gêneros por conteúdo, as narrativas sempre protagonizam o surdo e suas
experiências. Como por exemplo, a Cinderela Surda destinada ao público infantil
surdo, com o intuito de ensinar, entreter e empoderar a criança surda e sua língua.
Desta forma a Literatura Visual é a adaptação, pois a obra é feita no texto
uma adaptação linguística, cultural e social da cultura ouvinte para a Cultura Surda.
Por isso, ao se tratar dos textos literários escritos por meio da tradução, além de
garantir acesso à pessoa surda para a literatura, garantindo seus direitos
linguísticos, outro ponto a ser destacado é que neste processo temos a qualidade
da tradução, que envolvem dois tipos de tradução: a) Interlingual: Tradução da
Língua Portuguesa para a Língua de Sinais Brasileira. b) Intersemiótica: Tradução
de textos escritos utilizando recursos visuais como cenários, figurinos,
representação teatral, além de várias técnicas cinematográficas.
A partir desta compreensão do configurada a literatura surda, agora
passamos a entender os contextos desta cultura surda presente na narrativa. Neste
contexto, vamos nos transportar dos contos de fadas para a realidade da
comunidade surda para entender melhor os motivos dos autores escolherem a
França como local geográfico da narrativa.
Na obra podemos destacar uma homenagem ao escritor francês Charles
Perrault, responsável por eternizar o registro da obra que circulava por meio da
transmissão oral, na modalidade escrita. Porém, outra consagração da adaptação é
o protagonismo do sujeito surdo e das Línguas de Sinais, pois a narratriva destaca
que tanto a Cinderela, quanto o príncipe eram surdos.

“Cinderela e o príncipe eram surdos e aprenderam a Língua de


Sinais Francesa quando eram crianças. Cinderela era filha de
nobres franceses e aprendeu a Língua de Sinais Francesa
com a comunidade de surdos nas ruas de Paris. O rei e a
rainha contrataram o mestre LeEpeé para ensinar a Língua de
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Sinais Francesa ao príncipe herdeiro do trono.” (HESSEL,
ROSA E KARNOPP. 2007, p. 6 e 7)

A homenagem ao educador Charles Michel L'Eppe, na versão adaptada da


Cinderela Surda, é acrescentada a obra, pois ele ficou conhecido como “Pai dos
surdos” no século XVIII. Devido utilizar métodos de ensino para pessoas surdas:

“L’Epeé se aproximou dos surdos que perambulavam pela rua


de Paris, aprendeu com eles a língua de sinais e criou os
‘Sinais Metódicos’, uma combinação da língua de sinais com a
gramática sinalizada francesa. O Abade teve imenso sucesso
na educação dos surdos e transformou sua casa em escola
pública.” (GOLDFELD, 2002, p.28-29)

L'Eppe recebeu o título de “benfeitor da humanidade” da Assembleia


Nacional Parisiense, pois foi o primeiro professor a afirmar que os surdos eram
cidadãos com plenos direitos na sociedade, de acordo com a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão da França. Ele é fundador do Instituto Nacional de
Surdos em Paris e trouxe da França o alfabeto manual ao Brasil. Com isto,
tornou-se uma figura emblemática na educação dos surdos, e trazê-lo dentro da
obra, tem um significado relevante para a literatura surda.

Neste contexto, a adaptação da Cinderela Surda traz a reflexão sobre os


possíveis conflitos enfrentados pela criança surda na sociedade, e que por meio da
literatura, temos a oportunidade de descobrir outras perspectivas de vivência do
mundo e recuperar as tradições culturais de suas comunidades. De acordo com
Candido (2011), “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida
em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o
semelhante.” O texto literário nos permite uma multiplicidade de análises e
interpretações, a partir deste mergulho cultural que é transmitido ao leitor a partir da
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criação das narrativas.
Nas obras citadas podemos perceber os conflitos internos vivenciados por
indivíduos que se sentem à margem da sociedade e que procuram encontrar
significados para suas vidas. Em ambos os contos, temos a primeira barreira
instituional de privação de sua própria identidade, enquanto sujeito de direitos, neste
caso, a família. Nesta abordagem e representação acerca dos contos infantis e seus
significados simbólicos representam muito bem as convenções que estes
personagens tem na trama e o tão sonhado desejo de sua liberdade. Liberdade
esta, que está relacionada ao direito de ir e vir, e ser protagonista de seu próprio
destino.
Por isso, Ramos e Araújo (2010), destacam que “os contos populares a fim
de civilizar e doutrinar as crianças e adultos conforme os padrões/valores desejados
pela corte de Luís XIV”, desta forma, as narrativas estabeleciam os papéis sociais
desempenhados por homens e mulheres desejadas pela sociedade
aristocrática-burguesa, com o objetivo de moldar os padrões comportamentais
desejados pela ideologia dominante.
A personagem principal, em ambas as obras, apresenta o estereótipo da
mulher recatada, bela e do lar, mesmo tendo uma vida infeliz dentro de sua própria
casa:
“Cinderela era uma jovem surda, linda e bondosa [...]
Cinderela era a única que trabalhava, limpava e cozinhava,
mas a madrasta e as irmãs nunca estavam satisfeitas. A
comunicação entre elas era difícil, pois a madrasta e as irmãs
só faziam poucos sinais.” (HESSEL, ROSA E KARNOPP,
2007. p. 10 e 11)

O sofrimento Cinderela também está presente na obra de Perrault, de 1697:

“Sofria com paciência e não se atrevia a queixar-se ao pai, que


lhe teria ralhado, pois a mulher governava-o inteiramente.
Dotada de doçura e bondade exemplar, dons que recebera de
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sua mãe, que era a melhor criatura deste mundo. Era mil
vezes mais bonita que as irmãs.” (PERRAULT, 1997, p.121)

Contextualizando esse trecho do conto de fadas, com a realidade vivenciada


por muitos surdos, nós temos os elementos que representam o sistema ouvintista
que quer, a todo custo, consertar a pessoa surda, como por exemplo, a família como
primeira instituição de contato com o mundo que muitas das vezes não aceita o
sujeito surdo como protagonista de sua própria história, procura mecanismo de
instrumentalizá-lo para conviver em sociedade, seja por meio do uso de aparelhos
auditivos, implantes coclear e terapias fonoaudiológicas, sempre com uma visão
clínica-patológica. Para exemplificar esta situação, temos o contexto em que todos
são convidados para participar da festa, porém a Cinderela é deixada de lado,
devido não “pertencer” àquele universo.
Voltando ao contexto do conto de fadas tradicional, a Cinderala é retratada
sem a figura da presença materna. De acordo com Warner (1989), “o que se pode
inferir sobre a causa da morte da mãe seriam complicações durante o parto, algo
que frequentemente levava as gestantes ao óbito no contexto histórico em que o
conto foi escrito.” Sobre o aspecto das experiências vivências pelos pais ouvintes de
filhos surdos, logo ao saber que tem um filho surdo, algumas destas famílias
passam por pelo “luto silencioso” sem saber o que fazer ou a quem recorrer,
pensando sobre o viés clínico-patológico e não sobre o social-cultural. Silva (2017),
os primeiros sentimentos dos pais e familiares, quando descobrem que têm um filho
surdo, são muitos: de decepção, de rejeição, de confusão, de medo e até mesmo de
culpa:

“Assim, às vezes, atitudes parentais que classificamos como


falta de participação ou de envolvimento com a criança podem,
de fato, significar a dificuldade que os pais estão sentindo
naquele momento em entender o que é a surdez. Muito
frequentemente, também, consideramos a ‘falta de aceitação’
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da surdez por parte dos pais e dos membros da família,
quando, de fato, há falta de tempo da família para assimilar e
se adaptar a uma nova situação, falta de informações sobre
uma situação que é desconhecida para eles.” (FRANÇOZO,
2003, p.87)

Com isso, muitos surdos passam por experiências traumáticas por meio das
opressões ouvintistas da própria família, estabelecendo uma lacuna entre em
relação de pais e filhos, que convivem no mesmo ambiente geográfico, porém em
perspectivas diferentes do mundo. Neste caso, os pais ouvintes com experiências
auditivas como foco de desenvolvimento humano e a pessoa surda com suas
experiências visuais para a construção do sujeito, com sua própria língia, cultura e
identidade.
“Um dia, chegou uma carta. Era um convite do príncipe para um grande baile”
neste viés da história, podemos destacar que o “convite do príncipe” foi destinado
para que todos participassem da festa. “Acontece que o filho do rei iria dar um baile
e convidou todas as pessoas de estirpe”. Podemos levar em consideração conforme
o contexto da Cinderela Surda, que o “convite do príncipe”, pode-se fazer referência
ao marco histórico da promulgação da Convenção dos Direitos Humanos, onde
preconiza o acesso de todas as pessoas, com ou sem deficiência, na sociedade,
com equidade de direitos, dentre eles, a garantia dos direitos linguísticos das
pessoas surdas.
Interessante perceber que na obra tradicional, a Cinderela era muitas das
vezes chamada para participar do convívio familiar, mas que de forma velada, havia
ali, uma maldade camuflada de boas intenções:

“Elas chamaram Cinderela para lhes dar sua opinião, pois ela
tinha bom gosto. Cinderela lhes deu os melhores conselhos do
mundo e até se ofereceu para lhes pentear, o que elas
aceitaram de bom grado. Enquanto eram penteadas, elas lhe
disseram: — Cinderela, ficarias contente de ir ao baile? — Ai
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de mim! Senhoritas, zombais! Lá não é lugar que me convém.
[...] —Tens razão, seriam muitos risos se vissem um
Cucendron ir ao baile.” (PERRAULT, 1997)

Enquanto isso, na obra adaptada da Cinderela Surda:

“No dia do baile, a madrasta vestiu as duas filhas com roupas


bonitas, mas elas não ficaram bem. Cinderela pediu para ir
junto, mas a madrasta não permitiu. Cinderela implorou: - POR
FAVOR, DEIXEM-ME IR COM VOCÊS! - Não, você não pode
ir conosco! Você não tem roupa bonita! Disseram as irmãs.”
(HESSEL, ROSA E KARNOPP, 2007. p. 16)

Os trechos supracitados, são um panorama da sociedade em que vivemos,


pois, muitas das vezes, nós, pessoas sem deficiência, queremos falar o que é
melhor para as pessoas com deficiência. Por isso, o lema 'Nada Sobre Nós, Sem
Nós' expressa demonstrar a busca da plena participação e inclusão efetiva das
pessoas com deficiência no planejamento estratégico para aplicabilidade de
políticas voltadas aos direitos das pessoas com deficiência.
O ápice da trama ocorre quando a Cinderela deixa cair um de seus
sapatinhos de cristal, na versão tradicional. Porém na adaptação da obra, Karnopp
(2006) indica que, de maneira condizente, Cinderela Surda, ao sair do baile, não
perde um sapatinho de cristal, mas uma de suas luvas. Esta troca de elementos
ilustra o principal canal de diálogo entre as pessoas surdas e não-surdas, por meio
das Línguas de Sinais, representada no conto de fadas adaptado pelas luvas que
marcam a sua identidade surda na trama.
No conto tradicional, o príncipe não tinha informações sobre a Cinderela:

“Nada lhe havia restado de toda a sua magnificência, além de


um dos seus sapatinhos de cristal, o par daquele que deixara
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cair. Perguntaram aos guardas do palácio se eles não haviam
visto sair uma princesa e eles disseram que não viram sair
ninguém, a não ser uma jovem muito mal vestida e que tinha
mais um ar de camponesa do que de uma donzela.”
(PERRAULT, 1997)

Entretanto, na adaptação de Hessel, Rosa e Karnopp (2007), a Cinderela


Surda chegou atrasada no baile e chamou a atenção de todos que a viam, inclusive
do príncipe:
“O príncipe foi ao encontro de Cinderela. Estendeu-lhe a mão,
convidando-a para dançar. Cinderela sinalizou: - SOU SURDA!
E o príncipe, surpreso, respondeu, em sinais: - EU TAMBÉM
SOU SURDO! Felizes, o príncipe e Cinderela dançaram e
conversaram a noite toda, sem perceber o tempo passar…”
(HESSEL, ROSA E KARNOPP, 2007. p. 22)

Sobre este prisma, obra adaptada, reflete sobre o reconhecimento entre o par
linguísticos dos personagens, se identificando como pessoas surdas, usuárias das
Língua de Sinais, mostra a importância do convívio entre seus pares, e com isso,
compartilhando das mesmas experiências, conflitos e desafios, enfrentados perante
uma sociedade, que muitas das vezes, julga a potencialidade do indivíduo por sua
aparência física. Frases como “Nossa, você nem parece que é surdo” ou “É tão
bonita, pena que é surda”, essas são algumas das frases que nos deparamos
cotidianamente quando estamos interagindo na comunidade surda. Assim como, os
profissionais intérpretes de língua de sinais, são chamados de “aquele que trabalha
com os surdos” ou “nossa, que lindo esse dom que você tem”. Esses são exemplos
que reforçam o estereótipo de que a pessoa surda necessita de assistencialismo
diariamente, ao invés de políticas públicas e políticas de tradução para a plena
garantia de direitos linguísticos e que o intérprete de Língua de Sinais não é um
profissional e sim um mensageiro da paz e harmonia quando envolve o caos entre
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pessoas que não sabem se comunicar com o surdo. São frases e ações capacitistas
como estas que atrasam o desenvolvimento do sujeito surdo como protagonista de
sua vida.
Por fim, quando ao direcionar o ensaio sobre as narrativas tradicionais da
Cinderela e a adaptada Cinderela Surda, buscou-se apresentar as particularidades
da sociedade frente ao contexto da comunidade surda, bem como à circulação e à
relação entre sentidos visuais construídos, explicitando alguns trechos significativos
das histórias. Porém, a capacidade de indenticar as relações intertextuais entre as
obras, partimos da premissa que os leitor possua informações básicas sobre a obra
de partida e a obra de chegada, no caso, do contexto da comunidade surda para
que estabeleça correlações no conto de fadas. Com isso, o ponto crucial para
identificar as relações intertextuais presentes entre uma obra antecedente e outra
posterior está baseado no conceito Kristeva (1974) sobre a intertextualidade como:

[…] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é


absorção e transformação de um outro texto. Na apropriação pode-se
dar desde a simples vinculação a um gênero, até a retomada explícita
de um determinado texto (KRISTEVA, 1974, p. 64).

A Cinderela, assim como outros contos de fadas, apesar de encantar


gerações e gerações, com suas inúmeras versões, estamos acostumadas sempre
com a uma versão tradicional da literatura ouvintista. Enquanto que na adaptação
deste contos para a literatura surda, muitas das vezes causam estranheza sobre a
troca de elementos simbólicos pertencentes à cultura surda. Desta forma, estimular
a literatura surda nas escolas, por exemplo, é uma forma de representatividade
cultural do sujeito surdo, afirmando assim sua identidade surda perante a
sociedade. Por isso, ao analisar a adaptação da Cinderela Surda sobre o prisma de
sua linguagem simbólica, conseguimos refletir sobre os conflitos enfrentados por
todas as crianças durante seu processo de transformação da vida. Por isso, o
ensaio da versão da tradicional Cinderela de Perrault (1999) versus Cinderela Surda
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é um convite a reflexão sobre uma reeleitura famosa dos contos de fadas sobre a
recente edição, lançada em 2003, por Hessel, Rosa e Karnopp sobre um olhar da
cultura surda.
Basedado em Sanders (2006), a adaptação é uma relação sinalizada,
explícita, entre o texto de partida e o texto de chegada. Por sua vez, a apropriação
é empregada uma jornada maior para longe do texto de partida, jornada essa que
deriva em novo produto cultural, sendo este localizado em um novo domínio. Desta
forma, o texto apropriado, ou textos, não são claramente sinalizados no processo da
apropriação, dependendo da apropriação do conhecimento prévio do leitor para
tornar-se reconhecível, como afirma Sanders (2006):
[...] adaptações e apropriações podem variar em quão
explicitamente elas começam seus propósitos intertextuais.
Muitos dos filmes, programas de televisão ou peças
adaptadas de obras canônicas da literatura que [a autora
examina em sua obra] se declaram abertamente como uma
interpretação ou (re)leitura de um precursor canônico. [...] Na
apropriação a relação intertextual pode ser menos explicita,
mais incorporada [...] (SANDERS, 2006, p.2).

Para compreender melhor sobre esse processo, Hutcheon (2006), propõe um


estudo dessa prática sob três diferentes perspectivas da adaptação: (1) como uma
entidade ou um produto formal; (2) como um processo de criação; ou (3) como um
processo de recepção. Com o objetivo de entender O quê?, Quem?, Por quê?,
Como?, Onde? e Quando? Por meio de entidade formal ou produto, entenderíamos
a adaptação como transposição particular de uma obra ou obras, uma espécie de
transcodificação.
“Contar uma história sob um ponto de vista diferente ou ainda
expor (transpor) uma nova interpretação. Como processo de
recriação, entende-se a adaptação por meio de um processo
de (re)interpretação e (re)criação, processo no qual
primeiramente se apropria do texto fonte para depois recriá-lo.
E, por fim, como processo de recepção, entende-se a
adaptação como uma forma de intertextualidade: o texto
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baseia-se em outros textos para se criar, existindo
completamente por meio de uma relação intertextual com os
primeiros (HUTCHEON, 2006).

“Cinderela Surda” está em uma versão bilíngue, ou seja, as histórias estão


escritas em português e também na escrita da língua de sinais (SignWriting). um
forte característica desta obra são com relação às ilustrações que ocupam uma
página e a outra registra a história em SignWriting e na língua portuguesa, com o
objetivo de acentuar as expressões faciais e os sinais, que dão destaque aos
elementos que traduzem aspectos da experiência visual da pessoa surda. Vale
ressaltar que a escrita de sinais, utiliza-se de símbolos para escrever qualquer
língua de sinais no mundo inteiro. A Cinderela Surda é um dos primeiros livros no
Brasil a ser apresentado na forma bilíngue, ou seja, em Língua Portuguesa e em
SingWriting.
Sobre esse ponto de vista, Silveira; Karnopp; Rosa (2003) destacam o livro
Cinderela Surda como um exemplo, bilingue, escrito em português e Libras.
Sabe-se que a literatura surda em língua de sinais não se desenvolve somente na
modalidade sinalizada, mas também na modalidade de literatura em Libras escrita,
especialmente, e atualmente, em SignWriting. Marquezi (2019) sustenta que a
escolha desse sistema já foi usado para as histórias infantojuvenis traduzidas ou
adaptadas por razões didáticas. Por isso, a importância da obra Cinderela Surda,
além da escrita em língua portuguesa tem em SignWriting. Uma vez que, assim
como a língua portuguesa pode ser falada e escrita, a também Libras existe em
duas modalidades a serem utilizadas como a sinalizada e escrita.
Portanto, este ensaio tem a proposta de mostrar um conto de fados e seus
dois mundos de possibilidade, onde a comunidade surda criando as diversos
artefatos artísticas de expressões de sua cultura, identidade e língua de sinais, por
meio dos registros visuais, e contribuir para perpetuar a sua história, seja ela
através da escrita de sinais ou das traduções apropriadas para o português.
Valorizando assim, a linguagem estética aflorada aos sentidos e por meio dela o
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artista surdo criando diálogo entre seu público e construindo memórias afetivas e
experiências que vão muito além de informar ou entreter.

Cinderella (The Original Fairy Tale with Classic Illustrations) Cinderela surda/ Carolina Hessel, Fabiano Rosa e Lodenir
(English Edition). Por Charles Perrault (Autor), Gustave Karnopp. 2.ed-. Canoas: Ed. ULBRA. Visualizado
28/06/2023, às 05h15, no link:
Dore (Ilustrador), A. Jacque (Ilustrador), Soren Filipski https://tonaniblog.files.wordpress.com/2019/10/cinderela-sur
(Tradutor). Visualizado 28/06/2023, às 05h13, no link: da.pdf
https://m.media-amazon.com/images/I/51cVzuPHlRL.jpg
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Referências bibliográficas

FRANÇOZO, Maria de Fátima de Campos. Família surda: Algumas considerações


aos profissionais que trabalham com famílias In: SILVA, Ivani Rodrigues;
KAUCHAKJE, Samira; GESUELI, Zilda Maria. (Orgs.). Cidadania, Surdez e
Linguagem: Desafios e realidade. 2. ed. São Paulo: Plexus Editora, 2003, p.77-96.

FRANZ, Marie-Louise von. O feminino nos contos de fadas. Petrópolis,RJ:Vozes,


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