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A REVOLUÇÃO DA ESCRITA séc. XIII a.C. após um turbulento período de

NA GRÉCIA E SUAS revoluções, invasões e catástrofes naturais.


Cerca de quatro séculos depois, o empréstimo
CONSEQÜÊNCIAS CULTURAIS
e a adaptação da escrita fenícia permitiram a
invenção do alfabeto.
HAVELOCK, Eric A.
A novidade grega consistiu em atribuir
São Paulo: Editora da UNESP/ Paz e Terra,
sinais para designar as vogais, que deveriam
1996. 370 p.
combinar-se com outros, que indicavam as
consoantes. Parece pouco, mas significou
A história desse livro começa há cerca de muito. A notação de fonemas permitiu uma
trinta anos, data de publicação de dois dos economia enorme de signos, principalmente
ensaios nele reunidos. Os outros foram em comparação com as escritas silabares e
escritos ao longo da década de setenta e ideogramáticas. A grande quantidade de
divulgados em revistas acadêmicas. Engana- letras dessas escritas dificultava bastante sua
se, no entanto, quem imagina que as teses ali difusão para amplas parcelas da população,
apresentadas perderam a força com o passar tornando-as limitadas a uma classe de peritos
dos anos ou que interessam apenas aos (veja-se o caso do linear). Por outro lado, a
helenistas. As idéias de Eric Havelock marcação das vogais facilitou o ato de ler ao
mantêm-se atuais e instigantes e ultrapassam eliminar a ambigüidade de uma escrita
a fronteira dos estudos clássicos, chamando a puramente consonantal, em que, por
atenção de educadores, antropólogos, exemplo, o termo “bl” poderia ser lido como
historiadores e filósofos. bala, bola, bula, etc.
Havelock dedicou-se ao estudo da Essas duas razões, economia de sinais e
comunicação na Grécia antiga, interessando- eliminação da ambigüidade, explicariam o
se especialmente pelos efeitos da introdução sucesso do alfabeto grego, que está na
de uma nova mídia, a escrita alfabética, sobre origem do latino e do cirílico, utilizados
a organização e expressão do pensamento. A largamente hoje em dia. Havelock, numa
premissa é que todo avanço tecnológico tirada etnocentrista, chega a considerá-lo a
determina uma mudança no campo das escrita ideal, superior a todas as demais.
mentalidades. Ou seja, a forma influencia o Embora deva-se concordar com essa avaliação
conteúdo, tema atualíssimo quando se no que concerne às línguas indo-européias, é
discute, por exemplo, as conseqüências da bom ressalvar que o mesmo raciocínio não se
Internet sobre a linguagem. aplica necessariamente às demais famílias
Primeiro, os gregos desenvolveram uma lingüisticas.
escrita de caráter silabar (baseada na sílabas), A invenção do alfabeto na Grécia não
conhecida por linear b, que, por estar restrita significou, entretanto, a disseminação
ao uso de escribas palacianos, desapareceu no instantânea das artes da escrita e da leitura.

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Ao contrário, o domínio da nova técnica e a criação do pensamento conceitual. Nesse


demandou séculos de prática para firmar-se, cenário se dá o nascimento da prosa, que
ao longo dos quais o registro escrito, aparece como o veículo adequado a expressar
limitado a poucos especialistas, conviveu com as ciências emergentes: medicina,
o oral. Por isso, por paradoxal que possa historiografia, geografia, além das reflexões
parecer, Eric Havelock é também um dos de Platão e Aristételes.
grandes estudiosos da oralidade na Como seria de se esperar, esse momento
antigüidade clássica, juntamente com Parry de grande transformação cultural é também
no começo deste século. de confronto, já que as novas ciências
Sua contribuição foi pensar a poesia como contestam a autoridade da poesia, que passa
a principal forma de expressão na Grécia pré a ser considerada apenas uma forma de
e pós-letrada, capaz não só de divertir, mas entretenimento. A crítica da filosofia à
também de transmitir conhecimento. Ao poesia também foi objeto da atenção de
organizar a matéria a ser tratada em Havelock, mas em outro livro, Prefácio a
imagens e sons recorrentes, ela favorecia a Platão, traduzido recentemente para o
sua memorização. A epopéia homérica, português.
chamada por Havelock de “enciclopédia da Havelock é um pensador brilhante e
tribo”, tem papel de destaque nesse processo original, mas tem um pecado: o gosto pela
ao reunir um grande conjunto de polêmica. É evidente seu prazer em defender,
informações de cunho ético e técnico sem ser mesmo contra todas as evidências, teses no
abertamente didática. Em menor grau, o mínimo suspeitas como uma data recente
mesmo vale para a lírica arcaica e para o para a invenção do alfabeto grego ou sua
drama ático. Esse estado de coisas persistiu superioridade sobre as escritas pictográficas
pelo menos até o fim do séc. V a.C., quando a orientais. Porém não se pode negar que esse
alfabetização da população urbana já existia traço contribui para tornar atraente sua
em uma escala considerável, proporcionando leitura. Com certeza, A Revolução da escrita
condições favoráveis para novas experiências. na Grécia e suas conseqüências culturais é
Para Havelock, não foi obra do acaso que uma ótima introdução a sua obra e também à
a filosofia tenha surgido na Grécia, mas problemática da oralidade e da escrita tanto
decorrência direta da introdução do alfabeto. na Grécia antiga quanto nos dias de hoje.
O registro escrito libera a energia, antes
Adriane da Silva Duarte
gasta com a memorização, para novas
Professora Assistente de Língua
descobertas, favorecendo o acúmulo do saber e Literatura Grega FFLCH, USP

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Fragmentos...

O QUE É O VIRTUAL
Pierre Lévy
São Paulo, Editora 34, 1996, 157 p.

A partir da invenção da linguagem, nós,


O SUJEITO
humanos, passamos a habitar um espaço
Nós, seres humanos, jamais pensamos
virtual, o fluxo temporal tomado como
sozinhos ou sem ferramentas. As
um todo, que o imediato presente atualiza
instituições, as línguas, os sistemas de
apenas parcialmente, fugazmente. signos, as técnicas de comunicação, de
Nós existimos. (p.71) representação e de registro informam
profundamente nossas atividades
cognitivas: toda uma sociedade
cosmopolita pensa dentro de nós. Por
esse motivo, não obstante as estruturas
neuronais de base, o pensamento é
LEITURA profundamente histórico, datado e
situado, não apenas em seu propósito
Um pensamento se atualiza num
mas também em seus procedimentos e
texto e um texto numa leitura
modos de ação. (p.95)
(numa interpretação). (p.43)
Presidindo aos tipos de interação entre
...o texto é um objeto virtual, indivíduos, as “regras do jogo” social
abstrato, independente de um modelam a inteligência coletiva das
suporte específico. Essa entidade comunidades humanas assim como as
virtual atualiza-se em múltiplas aptidões cognitivas das pessoas que
versões, traduções, edições, nelas participam.
exemplares e cópias. Ao Pela biologia, nossas inteligências são
interpretar, ao dar sentido ao individuais e semelhantes (embora não
texto aqui e agora, o leitor leva idênticas). Pela cultura, em troca, nossa
adiante essa cascata de inteligência é altamente variável e
coletiva. (...) a dimensão social da
atualizações. (p.35)
inteligência está intimamente ligada às
O espaço do sentido não
linguagens, às técnicas e às instituições,
preexiste à leitura. É ao percorrê-
notoriamente diferentes conforme os
lo, ao cartografá-lo
lugares e as épocas. (p.99)
que o fabricamos, que o ESCRITA
atualizamos.
O aparecimento da escrita acelerou um processo de
Mas enquanto o dobramos sobre
artificialização, de exteriorização e de virtualização da
si mesmo, produzindo assim sua
memória que certamente começou com a hominização.
relação consigo próprio, sua vida
Virtualizante, a escrita dessincroniza e deslocaliza. Ela fez
autônoma, sua aura semântica, surgir um dispositivo de comunicação no qual as mensagens
relacionamos também o texto a muito freqüentemente estão separadas no tempo e no
outros textos, a outros espaço de sua fonte de emissão, e portanto são recebidas
discursos, a imagens, a afetos, a fora do contexto. Do lado da leitura, foi portanto necessário
toda a imensa reserva flutuante reafirmar as práticas interpretativas. Do lado da redação,
de desejos e de signos que nos teve-se que imaginar sistemas de enunciação auto-
constitui. (p.36) suficientes, independentes do contexto... (p.38)

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... todo novo tipo de objeto traduz um

estilo particular de inteligência coletiva...

toda mudança social conseqüente implica

uma invenção de objeto. (p. 131)

DIGITALIZAÇÃO
A tela informática é uma nova "máquina de ler" o lugar
onde uma reserva de informações possível vem se realizar
por seleção, aqui e agora, para um leitor particular. (p.41)
Uma tecnologia intelectual, quase sempre,
exterioriza, objetiviza, virtualiza uma função
cognitiva, uma atividade mental. Assim HIPERTEXTO
... hierarquizar e selecionar áreas de
fazendo reorganiza a economia ou a ecologia
sentido, tecer ligações entre zonas, conectar
intelectual em seu conjunto e modifica em
o texto a outros documentos, arrimá-lo a
troca a função cognitiva que ela supostamente
toda uma memória que forma como que o
deveria auxiliar ou reforçar. (p.38)
fundo sobre o qual ele se destaca e ao qual
remete, são outras tantas funções do
hipertexto informático. (p.37)
CÓPIA E ORIGINALL
No mundo digital, a
INFORMAÇÃO E CONHECIMENTO
distinção do original
A informação e o conhecimento, de fato, são doravante
e da cópia há muito a principal fonte de produção de riqueza. Poder-se-ia
perdeu qualquer retorquir que isto sempre foi assim: (...) Mas a relação
pertinência. O com o conhecimento que experimentamos desde a
ciberespaço está Segunda Guerra mundial, e sobretudo depois dos anos
misturando as setenta, é radicalmente nova. Até a segunda metade do
noções de unidade, século XX, uma pessoa praticava no final de sua
de identidade e de carreira as competências adquiridas em sua juventude.
localização. Mais do que isto, transmitia geralmente seu saber,
Os dispositivos quase inalterado, a seus filhos ou aprendizes. Hoje, esse
hipertextuais esquema está em grande parte obsoleto. As pessoas
nas redes digitais não apenas são levadas a mudar várias vezes de
profissão em sua vida, como também, no interior da
desterritorializam
mesma “profissão”, os conhecimentos têm um ciclo
o texto. (p.48)
cada vez mais curtos.
Passou-se portanto da aplicação de saberes estáveis,
que constituem o plano de fundo da atividade, à
aprendizagem permanente, à navegação contínua num
conhecimento que doravante se projeta em primeiro
plano. (p.54-5)

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TRABALHO

Na instituição clássica do trabalho, tal


como foi fixada no século XIX, o
operário vende sua força de trabalho e
recebe um salário em troca. A força de
trabalho é um trabalho possível, um
potencial já determinado pela
organização burocrática da produção. É
um potencial, ainda, já que uma hora
dada é irremediavelmente perdida. O
trabalho assalariado é uma queda de
potencial, uma realização, por isso pode
ser medido por hora.
Em contrapartida, o trabalhador
contemporâneo tende a vender não
mais sua força de trabalho, mas sua
competência, ou melhor, uma
capacidade continuamente alimentada e
melhorada de aprender e inovar, que se
pode atualizar de maneira imprevisível
em contextos variáveis. (...) Como toda
virtualidade, e contrariamente ao
potencial, a competência não se
consome quando utilizada, muito pelo
contrário. E aí está o centro do MUNDO VIRTUAL
problema (...) ... a virtualização é a dinâmica mesma do
Uma coisa é certa, a hora uniforme do mundo comum, é aquilo através do qual
compartilhamos uma realidade.
relógio não é mais a unidade pertinente
Lanço a hipótese de que cada salto a um
para a medida do trabalho. (p.60-1)
novo mundo de virtualização, cada
alargamento do campo dos problemas
abrem novos espaços para a verdade e, por
conseqüência, igualmente para a mentira.
Viso a verdade lógica, que depende da
linguagem e da escrita (dois grandes
instrumentos de virtualização), mas
também outras formas de verdade, talvez
mais essenciais: as que são expressas pela
poesia, religião, filosofia, ciência, técnica, e
finalmente as humildes e vitais verdades
Maria Lucia Toralles Pereira
que cada um de nós testemunha em sua
Departamento de Educação existência cotidiana. (p.148)
Instituto de Biociências, UNESP, Botucatu

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Manuscrito de Calvino

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