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FERNANDO PESSOA - ORTÓ NIMO 12º

FICHA DE TRABALHO

A lavadeira no tanque

A lavadeira no tanque

A lavadeira no tanque
Bate roupa em pedra bem.
Canta porque canta e é triste
Porque canta porque existe;
Por isso é alegre também.

Ora se eu alguma vez


Pudesse fazer nos versos
O que a essa roupa ela fez,
Eu perderia talvez
Os meus destinos diversos.

Há uma grande unidade


Em, sem pensar nem razão,
E até cantando a metade,
Bater roupa em realidade...
Quem me lava o coração?
15-9-1933
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria
Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). - 83.

Responda aos itens seguintes.

1. Caracterize o objeto poético.

2. Identifique o recurso expressivo presente nos versos 3-5 e explicite o seu valor.

3. Tendo em conta a tensão “pensar/sentir”, comente a relação entre a “lavadeira” e o


sujeito poético.

4. Explicite o valor da interrogação retórica utilizada na primeira quintilha.

M José Martins Pá gina 1


FERNANDO PESSOA - ORTÓ NIMO 12º

Análise do poema "A lavadeira no tanque"

Este poema é constituído por três quintilhas em versos de redondilha maior, com rima
emparelhada, interpolada e cruzada (imperfeita), de acordo com o esquema rimático abaab.
O tema da composição é a dor de pensar.
Na 1.ª estrofe, são-nos apresentados a lavadeira e o seu canto. A mulher está a lavar roupa num
tanque, batendo com ela na pedra para que fique bem lavada, bem limpa.
Em simultâneo, canta, o que revela a sua alegria e felicidade. Contudo, na visão do sujeito poético,
ela “Canta porque canta”, ou seja, canta mas não tem razões para o fazer. Por outro lado, “canta porque
existe”, quer dizer, canta porque não pensa, não reflete sobre a sua vida nem sobre as razões por que
canta, visto que é inconsciente.
O facto de ser inconsciente faz com que, para o sujeito poético, a lavadeira seja triste. Dado que
não tem consciência das coisas, da sua vida, ela é triste (“canta porque existe”). Isto significa que, na
perspetiva do «eu», as pessoas que não pensam são seres inferiores aos racionais e, na realidade, não
são felizes. Porquê? Para ele, como a lavadeira é inconsciente, é incapaz de ter consciência da sua
pretensa felicidade, pelo que não é verdadeiramente feliz.
Paradoxalmente, o sujeito afirma, porém, que a lavadeira é, ao mesmo tempo, triste e alegre, dado
que a sua inconsciência lhe permite libertar-se da dor de pensar que o atormenta. Ou seja, a lavadeira é
alegre e feliz, porque é inconsciente e, assim, não é atormentada pela dor de pensar; pelo contrário,
deduz-se que o «eu» é infeliz, porque consciente. O paradoxo reside aqui: a felicidade supõe consciência
(para ser feliz, o sujeito necessita de ter consciência de que o é), contudo a consciência anula a
felicidade.
Na segunda estrofe, a contemplação da lavadeira leva o sujeito poético a desejar lavar os seus
versos (metáfora), à semelhança do que ela faz com a roupa. Neste contexto, “lavar os versos” significa
libertá-los (= libertar-se a si próprio) da dor de pensar e da angústia que dela decorre.
Deste modo, se o desejo do «eu» se concretizasse, tal faria com que o sujeito lírico perdesse os
seus “destinos diversos”, ou seja, a fragmentação que o caracteriza. Dito de outra forma, o objetivo
último desse desejo seria alcançar a unidade e deixar de ser/se sentir fragmentado.
Na terceira e última quintilha, o sujeito poético clarifica a unidade a que se refere: a ausência de
fragmentação da lavadeira, que advém da sua inconsciência. De facto, a mulher realiza uma atividade
mecânica (bater / lavar a roupa no tanque), a qual não implica qualquer tipo de reflexão, o que lhe
permite viver na realidade, isto é, ela não reflete sobre a existência em geral nem tem consciência de si
própria. Se é verdade que a sua inconsciência, a ausência de racionalidade a torna, aos olhos do sujeito
poético, um ser inferior, não o é menos que essa inconsciência lhe permite ser una (vv. 11 a 14).
De facto, apesar de o sujeito poético se considerar superior à lavadeira - porque é um ser racional e
consciente, ao contrário dela, que é inconsciente -, a verdade é que a omnipresença da razão o impede
de ser uno e, pelo contrário, o fragmenta.
O verso 15, com que finaliza o poema, em forma de interrogação retórica, evidencia o desejo de o
sujeito poético se libertar de um ato reflexivo que lhe causa grande dor e sofrimento. Pelo contrário, ele
deixaria de intelectualizar as suas emoções e de se fragmentar permanentemente: “Quem me lava o
coração?” (v. 15).

M José Martins Pá gina 2

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