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Poesia do ortónimo

Fernando Pessoa

➪ A poesia de Fernando Pessoa intitula-se por poesia do


ortónimo quando é assinada pelo mesmo, abordando 4
temáticas:
o fingimento artístico.
a dor de pensar.
sonho e realidade.
a nostalgia da infância.

O fingimento artístico
Autopsicografia

O poeta é um fingidor
➪ O título deriva de um composto morfológico de
Finge tão completamente palavras gregas (auto - próprio, psico - alma/mente,
Que chega a fingir que é dor grafia - escrita), incidindo sobre a análise dos processos
A dor que deveras sente. mentais / dos mecanismos psicológicos envolvidos no
ato da criação poética / escrita.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem, É uma síntese do que o poeta pensava sobre a
Não as duas que ele teve, origem da poesia.
Mas só a que eles não têm. ➪ Carácter doutrinário.
1ª estrofe: caracterização do poeta e do processo de
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
criação poética.
Esse comboio de corda 1º verso: o sujeito poético caracteriza o poeta como um
Que se chama coração. fingidor - metáfora.
fingir é diferente de mentir - o fingimento poético é diferente do fingimento
convencional.
= criador, transformador,
provém do latim ''fingere'' - modelar, criar, transformar.
3º verso: dor é sinónimo de emoção - o poeta transfigura a própria realidade.
transforma a dor física, vívida, sentida numa dor imaginária /
intelectualizada através do uso da razão.
Intelectualização / racionalização das emoções: no ato da criação poética,
privilegia-se a razão em detrimento do coração / da emoção.
2ª estrofe: o papel do leitor.
o leitor, também interveniente neste processo, sente uma dor que não é a
dor física, nem a dor fingida pelo poeta, nem uma dor real do próprio leitor,
mas sim uma dor também intelectualizada, que provém da sua capacidade
de interpretação.
A dor do leitor: a arte torna-se a expressão de emoções intelectualizadas /
racionalizadas, produto de uma forte elaboração mental.
3º estrofe: síntese da teoria do fingimento poético.
a emoção sentida (coração) é a matéria-prima, é o ponto de partida para a
criação, mas é transformada através da razão / imaginação numa emoção
racionalizada. Sentir Recordar Fingir

Isto

➪ O título refere-se ao poema, ao processo de criação
Dizem que finjo ou minto poética.
Tudo que escrevo. Não. 1ª estrofe: esclarecimento do fingimento poético - a
Eu simplesmente sinto
questão do fingimento não se trata de mentir.
Com a imaginação.
Não uso o coração.
o poeta ''sente com a imaginação'', ou seja, ele recria
a dor física, filtrando-a através da imaginação,
Tudo o que sonho ou passo, sendo a dor do poema uma dor fingida,
O que me falha ou finda,
intelectualizada.
É como que um terraço
2ª estrofe: explicitação do processo de criação poética.
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda. as emoções vividas geram a sua poesia, mas são
como um terraço ''que dá para uma realidade mais
Por isso escrevo em meio bela'' - a arte, o poema, a emoção estética.
Do que não está ao pé,
➪ A poesia é o resultado do fingimento, da transfiguração
Livre do meu enleio,
Sério do que não é. das dores sentidas através da razão - é a racionalização das
Sentir? Sinta quem lê! emoções.
3ª estrofe: síntese da teoria apresentada.
o poeta escreve distanciado do que sentiu; recusa a poesia como expressão
imediata / espontânea dos sentimentos.
➪ O último verso é claramente irónico - uma espécie de piscadela de olho ao leitor
que, ao ler, sentirá qualquer coisa, mas completamente diferente daquilo que o
poeta sentiu.
o poeta ''finge'' para que o leitor possa disfrutar do gozo estético que o
poema proporciona - o trabalho do poeta está ao serviço do leitor.
Dicotomias: sentir / pensar, coração / razão, etc.
A dor de pensar

Ela canta pobre ceifeira


Ela canta, pobre ceifeira, Ah, canta, canta sem razão!


Julgando-se feliz talvez; O que em mim sente está pensando.
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia Derrama no meu coração
De alegre e anónima viuvez, antítese A tua incerta voz ondeando!
comparação e
metáfora Ondula como um canto de ave Ah, poder ser tu, sendo eu! paradoxos -
No ar limpo como um limiar,comparação Ter a tua alegre inconsciência, incompatibilidade
E há curvas no enredo suave E a consciência disso! Ó céu! semântica
aliteração
Do som que ela tem a cantar. Ó campo! Ó canção! A ciência

Ouvi-la alegra e entristece, Pesa tanto e a vida é tão breve!


Na sua voz há o campo e a lida, Entrai por mim dentro! Tornai
E canta como se tivesse Minha alma a vossa sombra leve!
Mais razões para cantar que a vida. Depois, levando-me, passai!
(1º momento - 3 estrofes)
➪ Objetivo; 3ª pessoa do singular; frases declarativas.
➪ Figura de uma ceifeira - o seu trabalho e o seu canto.
desperta atenção no
(2º momento - 3 estrofes) sujeito poético
➪ Subjetivo; 1ª pessoa do singular; frases exclamativas.
➪ Efeitos que o canto da ceifeira causa no sujeito poético.
Canto da ceifeira: a ceifeira parece feliz, mas ele duvida; é 1 canto harmonioso,
suave, puro, alegre; tal como o das aves, é 1 canto instintivo, espontâneo e
inconsciente.
➪ O canto da ceifeira entristece o sujeito poético porque ele percebe que não tem
motivos para cantar - metáfora (felicidade inatingível = inconsciência).
ele inveja-a por não conseguir sentir sem pensar (dicotomia sentir / pensar)
- sente a dor de pensar / intelectualização excessiva das emoções.
➪ O ''eu'' quer que o canto da ceifeira permaneça no seu coração para que ele
também possa ser feliz.
Imperativo: ''tornai'', ''entrai''.
esta linguagem apelativa é relativa às apóstrofes referias (céu, campo,
canção), responsáveis pela felicidade da ceifeira.
Último verso: desejo de anulação da vida - sofre da dor de pensar; busca o absoluto,
mas sabe que é impossível.
➪ O ''eu'' é uma alma confusa, contraditória: é vs quer ser; pensa vs não quer
pensar.

Ceifeira ''Eu''

infeliz, angustiado, dor de pensar,


alegre, trabalhadora, inconsciente,
cansaço, consciente, racionaliza em
apenas sente, espontânea
excesso

Sonho vs realidade

Não sei se é sonho, se realidade


Não sei se é sonho, se realidade, Mas já sonhada se desvirtua,


Se uma mistura de sonho e vida, Só de pensá-la cansou pensar;
Aquela terra de suavidade Sob os palmares, à luz da lua,
Que na ilha extrema do sul se olvida. Sente-se o frio de haver luar
É a que ansiamos. Ali, ali Ah, nesta terra também, também
A vida é jovem e o amor sorri O mal não cessa, não dura o bem.

Talvez palmares inexistentes, Não é com ilhas do fim do mundo,


Áleas longínquas sem poder ser, Nem com palmares de sonho ou não,
Sombra ou sossego dêem aos crentes Que cura a alma seu mal profundo,
De que essa terra se pode ter Que o bem nos entra no coração.
Felizes, nós? Ali, talvez, talvez, É em nós que é tudo. É ali, ali,
Naquela terra, daquela vez, Que a vida é jovem e o amor sorri.

➪ Idealização da ilha (vv. 1-12).


características: perfeita, idílica, paradisíaca, vaga, inexistente, etc.
objetivo: felicidade.
efeitos: possibilidade de sermos felizes, o amor, etc.
sentimentos: esperança - felicidade, dúvida - existência, etc.

➪ A ilha desvirtua (vv. 13-18).


características: fria, desconfortável, efemeridade do bem, permanência do
mal, etc.
sentimentos: tristeza, desilusão, dor de pensar, etc.
➪ A felicidade está em ''nós'' (vv.19-24).
sentimentos: esperança, otimismo.
➪ Apelo ao sonho vs peso da realidade.
''Mas já sonhada se desvirtua, / Só de pensá-la cansou pensar,''

enquanto sonha a dor de pensar ➪ a ilha desvirtua quando se começa a pensar


também pensa ➪ o pensamento anula o sonho (ilusão)

A nostalgia da infância
perdida
Pobre velha música

➪ A inexorabilidade do tempo - passa e não volta.
Pobre velha música! 1º verso: tristeza, saudade.
Não sei porque agrado, estímulo auditivo que lhe provoca nostalgia.
Enche-se de lágrimas
➪ O sujeito poético ouve 1 música e emociona-se.
Meu olhar parado.
recorda-lhe a infância; saudade de 1 bem perdido.
Recordo outro ouvir-te. ''Meu olhar parado.'' ➪ está a pensar.
Não sei se te ouvi 2ª estrofe: a música lembra-o da infância, mas não sabe se a
Nessa minha infância teria ouvido.
Que me lembra em ti.
a infância está muito distante - memórias vagas e
Com que ânsia tão raiva imprecisas.
Quero aquele outrora! 3ª estrofe: quer voltar à infância - a ser feliz.
E eu era feliz? Não sei: ➪ A música no presente é diferente da música no passado.
Fui-o outrora agora.
não sabe dizer se foi realmente feliz.
12º verso: foi feliz enquanto pensou na infância.
o som da música torna-o feliz momentaneamente.
➪ A saudade da infância é uma saudade intelectualizada.
não pode sentir emoções físicas sobre algo de que não se lembra - saudade
fingida.

Ó sino da minha aldeia


Ó sino da minha aldeia, Por mais que me tanjas perto


Dolente na tarde calma, Quando passo, sempre errante,
Cada tua badalada És para mim como um sonho.
Soa dentro da minha alma. Soas-me na alma distante.

E é tão lento o teu soar, A cada pancada tua


Tão como triste da vida, Vibrante no céu aberto,
Que já a primeira pancada Sinto mais longe o passado,
Tem o som de repetida. Sinto a saudade mais perto.
Sino: desperta, no ''eu'', a saudade da infância.
toque triste e lento, tal como as memórias que assolam o ''eu''.
➪ Recordações melancólicas.
revela lucidez e nostalgia.
➪ A infância aparece como 1 sonho, 1 refúgio, a felicidade.
➪ O ''eu'' sabe que a infância faz parte de um passado irrecuperável.
Sonho: passado - a felicidade não é alcançável.
passado muito
➪ Quanto + longe o passado, maior a saudade.
longínquo
emoção os sons que se ouvem
intelectualizada hoje são diferentes
dos que se ouviram no
passado

Não analisados em aula


Tudo que faço ou medito

➪ Dor de pensar.
Gato que brincas na rua (1º momento - 2 estrofes)
Como se fosse na cama, 1º verso: o ''eu'' interpela um gato.
Invejo a sorte que é tua
constata que este é feliz por ser um ser
Porque nem sorte se chama.
inconsciente e irracional.
Bom servo das leis fatais é feliz porque está a brincar.
Que regem pedras e gentes, inveja-o por ser inconsciente - vive
Que tens instintos gerais intensamente cada momento.
E sentes só o que sentes.
não tenta contrariar as etapas inevitáveis
És feliz porque és assim, da vida - nascer, crescer, morrer.
Todo o nada que és é teu. ➪ Vida simples do gato = felicidade.
Eu vejo-me e estou sem mim, ➪ Inveja-o por ter ''instintos gerais'' (v. 7) e sentir só o
Conheço-me e não sou eu.
que sente / limitar-se a sentir.
(2º momento - 1 estrofe)
➪ Sentimentos do poeta.
o gato é feliz por ser inconsciente e viver segundo os seus instintos; é
apenas ''o nada'', mas é-o plenamente.
o sujeito poético sente que se conhece e à sua situação, mas não
consegue ser feliz assim.
o sujeito poético sabe que é infeliz por não poder deixar de pensar - não
consegue atingir a felicidade desejada.
Paradoxo: sugere a procura do autoconhecimento, a racionalização e a estranheza
face a si mesmo.
realça a oposição entre a inconsciência do gato e a consciência do sujeito
poético.
➪ Pensar.
consciência do autodesconhecimento.
infelicidade.

Às vezes, em sonho triste


Às vezes, em sonho triste O sentir e o desejar


Nos meus desejos existe São banidos dessa terra.
Longinquamente um país O amor não é amor
Onde ser feliz consiste Nesse país por onde erra
Apenas em ser feliz. Meu longínquo divagar.

Vive-se como se nasce Nem se sonha nem se vive:


Sem o querer nem saber. É uma infância sem fim.
Nessa ilusão de viver Parece que se revive
O tempo morre e renasce Tão suave é viver assim
Sem que o sintamos correr. Nesse impossível jardim.

➪ Sonho vs realidade.
1ª estrofe: não há razão específica para ser feliz.
Versos 1-2: hipálage.
''(...) sonho triste'' (v. 1): o pensamento anula o sonho.
o sonho incide sobre representações e carga emotiva e ansiosa.
2ª estrofe: como se é feliz nesse país.
Verso 11: não se sente nem se deseja.
o amor não importa (v. 13 - paradoxo).
pensar é errado (v. 14).
➪ O ''eu'' vai se afastando do mundo real.
ausência de racionalização.
o poema identifica-se c/ os desejos do ''eu''.
➪ O ''jardim'' (v. 20) é um espaço idílico (paraíso), logo, ''impossível''.
➪ O ''eu'' sente-se angustiado, só, nostálgico da infância (v. 17).
refugia-se no sonho e no estado de ilusão.
Leve, breve, suave

Leve, breve, suave, Nunca, nunca, em nada,


Um canto de ave Raie a madrugada,
Sobe no ar com que principia Ou esplenda o dia, ou doire no declive,
O dia. Tive
Escuto, e passou... Prazer a durar
Parece que foi só porque escutei Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Que parou. Gozar.
➪ Dor de pensar.
➪ O sujeito poético reflete enquanto ouve o canto de uma ave.
➪ Oposição entre a natureza e o pensamento - entre o que é natural e humano.
(1ª estrofe)
''Leve, breve, suave'' (v. 1): enumeração e caracterização do canto da ave.
➪ O ''eu'' consciente do poeta intervém e quebra o encanto do momento.
quando o sujeito poético escuta tudo para de repente.
a oposição do seu pensamento, a análise racional, matou a ação pura da
natureza.
parece-lhe que foi só por ele ouvir que tudo parou, sentiu-se um
estranho à natureza.
(2ª estrofe)
➪ Nunca pode tirar prazer das coisas naturais, pois pensa que mata tudo o que é
natural.
não consegue ter em si esse prazer natural, um ''Prazer a durar'' - prazer que
se prolonga no tempo.
fim do idílio - fim do paraíso, do que era só natural.
Em suma...
➪ O sujeito poético não consegue sentir e gozar as coisas de maneira simples, não
consegue ter prazer das coisas, pois pensa na perda das mesmas.
racionaliza-as demasiado, prejudicando, assim o que é natural.
➪ A ave calou-se devido à intrusão do raciocínio de Pessoa.

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