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escritora de literatura
FERNANDA MÜLLER
Entre aqueles que encontraram uma expressão própria ao compor cartas, não
adequando seus interesses a um padrão pré-fabricado, mas alterando o padrão para
atingir seus interesses, destacamos Clarice Lispector. Autora de contos, romances e
crônicas, a escritora foi ainda remetente e destinatária. Mas não foi uma remetente
qualquer. Foi além. Em suas cartas rompeu o contrato com os três elementos principais
do gênero, ultrapassando a brevidade, esfumaçando a clareza e ignorando a
propriedade (MIRANDA, 2000, p. 43). O resultado dessa experiência fora do comum
só foi revelado ao grande público nessa última década, quando sua correspondência,
publicada até então de forma esparsa, ganhou edições exclusivas. Em 2001 chegou às
livrarias Cartas perto do coração, desvendando o conteúdo dos envelopes trocados com
Fernando Sabino, seu maior interlocutor. Em 2002 foi a vez de selecionar e publicar sua
conversa epistolar mantida com diversos contatos, no volume Correspondências.
Diante de coletâneas dessa natureza, todavia, notamos que a ênfase costuma
recair sobre o valor documental-biográfico, em detrimento de elementos da
personalidade literária da escritora que ensaia vôos com a linguagem. Não é difícil
Escrevendo para Lúcio Cardoso, Clarice questiona algo que transcende suas
palavras: “é esquisito escrever uma carta de tão longe, parece que se fica com a
obrigação de dizer coisas formidáveis.” (LISPECTOR, 2002, p. 54). Essa passagem é
apenas uma das tantas em que o que está em discussão é a própria escrita. Mais do que
uma conversa, um diálogo, o exercício com o papel busca a dimensão de um monólogo,
definido como “um solilóquio de ausente para ausente” pelo sofista grego Libânio (TIN,
2005, p. 112), através do qual sejam capazes de superar a distância, seja espacial ou
temporal, seja afetiva ou lingüística. A fim de pensar nesse processo, que incluía
deparar-se com a folha de papel e consigo mesmo, podemos contar com a colaboração
de seus interlocutores. Érico Veríssimo é um deles. Escreveu em 1958 “está claro que
amizade não depende de carta e nós compreendemos que há situações em que a gente
pode fazer tudo menos escrever cartas aos amigos (e as cartas se tornam tão mais
difíceis quanto mais verdadeiros forem os amigos” (LISPECTOR, 2002, p. 238). Junto
a tais palavras fazem eco às de João Cabral de Melo Neto, para quem, apesar da eterna
vontade de ter notícias e o freqüente desejo de conversar, persiste o obstáculo: “como
temos entre nós mais do que os quilômetros e o Atlântico a barreira do papel de cartas
acabo mesmo por deixar para outro dia. Parece é que perdi mesmo o jeito de escrever
cartas. O jeito e o fôlego. Creio que não há nada – que me canse tanto e que exija de
mim tanto esforço.” (LISPECTOR, 2002, p. 237). Sentindo-se também limitada, sua
irmã, Tânia, questiona essas mesmas dificuldades. Em resposta, Clarice reflete: “quanto
a não poder conversar direito pelas cartas, isso é uma fatalidade e tem que ser por toda a
vida... É melhor a gente se habituar. Mesmo pessoalmente é difícil conversar, mesmo
quando a conversa é entre duas irmãs que se gostam e se entendem. Mil sentimentos
atrapalham, como seja o amor mesmo, a desconfiança de que se esteja vagamente
mentindo, a vontade de convencer, etc” (LISPECTOR, 2002, p. 75).
Se escrever gera angústia, embate com as palavras, a resposta gera aflição. Isto
porque, quando o ponto final era dado, em geral por meio de mais uma batida surda da
máquina de escrever, não significava que a ação estava finalizada, mas que apenas
metade do caminho fora percorrido. Era hora de endereçar o envelope, lacrar o
conteúdo, lamber o selo e levá-la ao portador. E esperar. Sim, esperar. Porque o ato de
escrever cartas é metade ação, pensamento, escrita, metade paciência, suspiro, espera.
Bem o demonstra Clarice, com certa graça, no trecho: “o fato é que estou sempre
perguntando na portaria se não tem carta. Prometi a mim mesma deixar o homem em
paz; mas quando passo por perto, olho de um jeito tal que ele diz logo: não tem nada.”
(LISPECTOR, 2002, p. 39). Nessa espera por algo que não a satisfaz plenamente
quando envia, mas a regozija quando recebe, declara a certa altura: “nem sei mais o que
contar, Lúcio, para mim cartas são cada vez mais um meio gelado de comunicação.
Notas
1
Implicando circuitos organizados, itinerários e guias, quer dizer, livros e indicações
precisos, o turismo é tratado por Mary Louise Pratt como uma espécie de degradação da
viagem, uma vez que “os poderes criativos e a profundidade do escritor de viagem
devem competir com os pacotes de dez dias e nove noites, passagem aérea mais hotel,
gorjetas incluídas, e as fantasias atraentes e ideais da propaganda turística”.
2
Peregrinação, viagem e turismo são a temática do ensaio de Machado e Pageaux que
analisa em perspectiva os caminhos abertos pelo viajante na literatura, especialmente na
portuguesa.
Referências
LISPECTOR, Clarice. Correspondências: Clarice Lispector. Org. Teresa Monteiro. Rio
de Janeiro: Rocco, 2002.
MACHADO, A. M.; PAGEAUX, D-H. As experiências da viagem. IN: _______. Da
literatura Comparada à Teoria da Literatura. Lisboa: Editorial Presença, 2001.
MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. A arte de escrever cartas: para a história da
epistolografia portuguesa no século XVIII. IN: GALVÃO, Walnice Nogueira et
GOTLIB, Nádia Batela (orgs.). Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre
as cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 41-54.
SABINO, Fernando; LISPECTOR, Clarice. Cartas perto do coração. Rio de Janeiro:
Record, 2003.
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação.
Bauru: EDUSC, 1999.
TIN, Emerson. Introdução. IN: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo
Lípsio. A arte de escrever cartas. Campinas: Unicamp, 2005.