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Correspondências de Clarice Lispector: da remetente à

escritora de literatura
FERNANDA MÜLLER

Programa de Pós-Graduação em Literatura – Universidade Federal de Santa Catarina


(UFSC) - sala 309 - Trindade - Florianópolis - SC – Brasil
clarakarenina@yahoo.com.br

Abstract. Story author, chronicles and novels, the correspondent Clarice


Lispector just came to the public reader in the last decade with
Correspondências (2002) and Cartas perto do coração (2003). In despite of
such volumes, however, we notice the documentary-biographical emphasis in
place of the literary personality. This work considers the Lispector’s
correspondence such a place for the literature, essay and a way of thinking,
not in the usual approaches that only describe the personal life of the writer or
do a kind of genetic critics.
Key-words. literary theory; epistolography; report of trip; Clarice Lispector.
Resumo. Autora de contos, crônicas e romances, a remetente Clarice
Lispector só veio a público na última década, com as edições
Correspondências (2002) e Cartas perto do coração (2003). Diante de tais
volumes, todavia, notamos a ênfase documental-biográfica, em detrimento da
personalidade literária. Este trabalho propõe uma leitura dessas cartas que
não as limite a instrumento interpretativo das demais obras ou vestígios da
vida pessoal da escritora, para abordá-las como lócus epistemológico, lugar
de ensaio, de pensamento e de literatura.
Palavras-chave. teoria da literatura; epistolografia; relato de viagem; Clarice
Lispector.

Entre aqueles que encontraram uma expressão própria ao compor cartas, não
adequando seus interesses a um padrão pré-fabricado, mas alterando o padrão para
atingir seus interesses, destacamos Clarice Lispector. Autora de contos, romances e
crônicas, a escritora foi ainda remetente e destinatária. Mas não foi uma remetente
qualquer. Foi além. Em suas cartas rompeu o contrato com os três elementos principais
do gênero, ultrapassando a brevidade, esfumaçando a clareza e ignorando a
propriedade (MIRANDA, 2000, p. 43). O resultado dessa experiência fora do comum
só foi revelado ao grande público nessa última década, quando sua correspondência,
publicada até então de forma esparsa, ganhou edições exclusivas. Em 2001 chegou às
livrarias Cartas perto do coração, desvendando o conteúdo dos envelopes trocados com
Fernando Sabino, seu maior interlocutor. Em 2002 foi a vez de selecionar e publicar sua
conversa epistolar mantida com diversos contatos, no volume Correspondências.
Diante de coletâneas dessa natureza, todavia, notamos que a ênfase costuma
recair sobre o valor documental-biográfico, em detrimento de elementos da
personalidade literária da escritora que ensaia vôos com a linguagem. Não é difícil

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supor que uma sociedade do espetáculo fascinada pela superexposição da intimidade
alheia - prefigurada tão bem pelos reality-shows - devote curiosidade especial ao texto
mais íntimo e pessoal de personalidades consagradas pelas letras. Ainda mais em se
tratando de um ser tão emblemático e enigmático quanto a referida escritora. Para além
da idéia de resgate histórico ou de registro biográfico, proponho uma leitura das cartas
de Clarice Lispector como lugar de experimentação. Ou seja, deixar de lê-las apenas
como instrumento interpretativo das demais obras ou soma de vestígios de sua vida
pessoal, para tomá-las como lócus epistemológico, lugar de ensaio, de pensamento e de
literatura.

Por dentro do envelope


Clarice Lispector enviou cartas ao longo de toda a vida. Essa escrita, além de
muito corrente nas décadas de 40, 50 e 60, era uma das únicas formas de lutar contra o
isolamento imposto pelas viagens com o marido diplomata. Nesse período já havia o
telefone, mas este era caro e completar uma ligação, sobretudo as internacionais, era
algo equivalente a uma aposta na loteria. O volume Correspondências evidencia o quão
variados eram seus interlocutores e o tipo de textos a eles destinados: trocou cartas com
o futuro esposo, Maury Gurgel Valente; com parentes, como a cunhada Eliane Gurgel
Valente; com suas irmãs, Elisa Lispector e Tânia Kaufmann; com amigos, como Lúcio
Cardoso, Bluma Chafir Wainer, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira, Rubem Braga, Lygia Fagundes Telles, Érico e Mafalda
Veríssimo; sem falar de Andréa Azulay, então com 9 anos, para quem dava conselhos
de como vir a ser uma escritora, como outrora fizeram Anton Tchecov ou Rainer Maria
Rilke.
Lendo esse material, torna-se notório o modo como desde jovem desenvolve a
escrita epistolar, a começar pelas cartas trocadas com o então pretendente, entre as
primeiras que se tem registro. Sem fazer uso de sentimentalismos, Clarice tanto faz
zombarias, dizendo que mandaria “imprimir cartões especiais, com cestinhos de flores e
anjos rosados” (LISPECTOR, 2002, p. 20) para anunciar que era namorada dele, quanto
esboça complexas reflexões, como a da necessária entrega do ser ao mundo, ou da
atitude a ser tomada individualmente se não existisse a ruindade. Mesmo quando
escreve sobre si mesma, ou principalmente nesse caso, mantém-se vagamente profunda,
escondida atrás de uma linguagem cifrada, como podemos observar no trecho “Quanto a
mim, estou +- O.K. Não consegui no entanto soltar minhas rédeas. Planos, programas,
consciência, vigilância. O que vale é que misturado a tudo isso está a vida que não
pára.” (LISPECTOR, 2002, p. 23). É desse modo que a remetente vai construindo uma
personagem que assina “Clarice Lispector” em cartas formais, “Clarice” entre amigos e
parentes, e “mãe” ou “mamãe” quando se dirige ao filho, compondo uma mulher que
poderia muito bem figurar em algum texto de ficção seu. Uma vez criada a personagem,
não deixaria de traçar-lhe muitos enredos. Uma mostra é a narração de uma viagem para
Vila Rica, cidade do interior, que transforma a carta enviada ao namorado em episódio
de livro:
Tudo muito poético. Uma chuva enorme me esperando na estação, um carro descoberto
pra me conduzir à Fazenda guiado por um belo negro e dois cavalos; uma capa
grossíssima, cheirando a cavalo, pra cobrir a jovem viajante. E os solavancos. E a
sensação de perigo (quase nenhum, infelizmente) ao atravessar o riozinho. Por um triz –

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uma aventura! Faltou justamente o carro virar e a donzela cair desmaiada sobre a terra,
os loiros cabelos misturados à lama. (LISPECTOR, 2002, p. 17).
Viagens tematizadas como a do trecho acima tornariam-se recorrentes. Nesse
sentido, sua passagem por cidades brasileiras, africanas, européias e norte-americanas
até que fixasse residência em definitivo no Rio de Janeiro, são o registro de um olhar
atento. Não, Clarice Lispector não foi uma turista, na acepção pejorativa que o termo
hoje sugere1, algo próximo do consumo de sensações (PRATT, 1999, p. 366), mas uma
viajante inquieta que revelou em suas cartas o lado invisível das cidades, das pessoas e
das coisas. Seu olhar não é mediado pela máquina digital, mas captado pela retina e
transcrito pela máquina de escrever que se desdobra na caçada de palavras capazes de
registrar as impressões sem que estas se percam nos roteiros pré-concebidos de
excursões: “o problema é sentir alguma coisa que não esteja prevista num guia”, afirma
(SABINO; LISPECTOR, 2003, p. 10). Embaralhando gêneros, suas cartas mostram-se
híbridas, mantendo relações íntimas com os relatos de viagem.
Ora, se falamos de narrativas de viagem, há que se levar em conta o próprio ato
de deslocamento, afinal, a experiência do narrador é influenciada não apenas pelo rumo
que ele toma, mas também, por fatores como o meio de transporte escolhido
(MACHADO; PAGEAUX, 2001)2. Clarice não se furta de tratar desses elementos,
como revela uma das passagens da viagem para a Libéria, narrada em carta para Lúcio
Cardoso: “No dia 30 domingo de julho (sic), embarquei às duas horas da tarde. Viajei
com muitos missionários e olhando para uma mulherzinha santa que dormia em frente a
mim, eu mesma me sentia fraca e horrivelmente espiritual, sem nenhuma fome, disposta
a convencer todos os negros da África que não há necessidade de nada, senão de
civilização.” (LISPECTOR, 2002, p. 54).
Clarice alega as irmãs “na verdade eu não sei escrever cartas sobre viagens; na
verdade nem sei mesmo viajar.” Provando o contrário, ao invés do deslumbramento
opta pela desmistificação do novo universo, constatando que em qualquer lugar a
natureza é mais ou menos parecida, as coisas quase iguais. Sem a confirmação de
estereótipos amplamente difundidos, faz afirmações profundas, como a de que
”conhecia melhor uma árabe com véu quando estava no Rio”. (2002, p. 49). Suas
descrições talvez não agradem aos amantes da aventura em outras terras, afinal, recusa o
punhado de fetichismo e exotismo que costumam temperar os relatos de viagem
vendidos nas bancas. É assim que deslocando-se para os arredores de Argel observa
com contundência que “Casablanca é bonitinho, mas bem diferente do filme
Casablanca... As mulheres mais do povo não carregam véu. É engraçado vê-las com
manto, véu, e vestido às vezes curto, aparecendo sapatos (e soquete).” (LISPECTOR,
2002, 49). Como se não bastasse rasgar o véu de sensualidade das mulheres das mil-e-
uma-noites, põe fim a quaisquer especulações fantasiosas de sultões e haréns,
decretando: “A cidade não tem muita marca oriental, é cheia de soldados americanos,
franceses e ingleses.” (LISPECTOR, 2002, p. 49).
O tom pessoal ao relatar as viagem prossegue por páginas enviadas a amigos e
parentes, oferecendo um olhar curioso sobre cada local. Em Berna, por exemplo, sente
insuportavelmente a paz daquela “fazenda”, silenciosa como se as casas estivessem
vazias. A monotonia do lugar inspira exercícios de intertextualidade, como na carta em
que remete ao universo romântico de Edgar Allan Poe (do qual Clarice foi tradutora),
informando que “defronte de casa está a fonte da Justiça com estátua respectiva,
rodeada de gerânios. E como meu quarto dá para os telhados, tenho de vez em quando a

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visita de dois gatos, um preto e outro pardo, que entram pela janela, ficam um pouco,
não dizem uma palavra e vão embora, nova edição de never more.” (LISPECTOR,
2002, p. 135). A imaginação faz parte da descrição das cidades, como Nápoles, em que
reclama da falta de vida social e da banalidade dos dias, inclusive daquele em que é
anunciado o fim da guerra. Em contraposição, a sombria Torquay, com ausência de sol,
praias de rochas escuras e falta de beleza, faz com que se emocione muito mais pela
Inglaterra do que pela beleza da Suíça.
Ao lado das paisagens, quer dizer, dos cenários, ambientes e espaço da trama,
vão figurar as pessoas conhecidas em curso, sejam elas antagonistas ou protagonistas.
Assim, junto a “Clarice”, eis que surgem novos figurantes a serem apresentados aos
destinatários de seus envelopes. As empregadas, como as napolitanas tão afeitas ao
trabalho, as germânicas impassíveis em sua rigidez, ou a polonesa triste, por si só
formariam uma interessante galeria de painéis humanos. Merecem destaque, ainda, as
mulheres da alta sociedade com quem convive, “muito esnobíssimas, de feitio duro e
impiedoso embora sem jamais fazer maldades”. Perante tais seres, há lugar até para a
mocinha atuar: “Eu acho graça em ouvi-las falar de nobrezas e aristocracias e de me ver
sentada no meio delas, com o ar + gentil e delicado que eu posso achar”. Ironizando o
tipo de pessoa que não permite que ela vá a uma peça de teatro sem dizer se gostou ou
não, e porque sim e porque não, afirma que nunca ouviu “tanta bobagem séria e
irremediável como nesse mês de viagem. Gente cheia de certezas e de julgamentos, de
vida vazia e entupida de prazeres sociais e delicadezas. É evidente que é preciso
conhecer a verdadeira pessoa embaixo disso. Mas por mais protetora dos animais que
eu seja, a tarefa é difícil.” (LISPECTOR, 2002, p. 51)
“As coisas são iguais em toda a parte – eis o suspiro da mulherzinha viajada”
(LISPECTOR, 2002, p. 55), conclui Clarice a certa altura de outra carta para Lúcio
Cardoso, antecipando a característica maior da modernidade globalizante que
massificaria o planeta. “Os cinemas do mundo inteiro se chamam Odeon, Capitólio,
Império, Rex e Olímpia; as mulheres usam sapato Carmem Miranda, mesmo quando
usam véu no rosto”, são palavras de alguém que talvez já enxergasse um processo em
curso. Processo que culminaria com as multinacionais espalhando pelo mundo um único
nome de cinema, refrigerante, lanchonete, supermercado e assim por diante. E ainda faz
calar a conclusão escrita na década de 40: “a verdade continua igual: o principal é a
gente mesmo e só a gente não usa Sapatos Carmem Miranda.” (LISPECTOR, 2002, p.
55).
A saudade e o desconforto de quem não tem uma casa, e vive quase que de hotel
em hotel, a sensação de desnortemanto, sem saber quando ou como embarcará para
sabe-se-lá qual o próximo destino, fazem com que, a certa altura de sua
correspondência, após anos no exterior, depare-se com uma imagem que não é mais a de
viajante, mas a de uma mulher exilada que trocaria o mundo pela segurança da terra
firme sob os pés, e argumenta:
É ruim estar fora da terra onde a gente se criou, é horrível ouvir ao redor da gente
línguas estrangeiras, tudo parece sem raiz; o motivo maior das coisas nunca se mostra a
um estrangeiro, e os moradores de um lugar também nos encaram como pessoas
gratuitas. Para mim, se foi bom, como um remédio é bom para a saúde, ver outros
lugares e outras pessoas, há muito está passando do bom, está no ruim nunca pensei ser
tão inadatável (sic), nunca pensei que precisava tanto das coisas que possuo.
(LISPECTOR, 2002, p. 146).

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Encontrando nas cartas sua primeira expressão, as lembranças entremeadas a
trechos sobre as viagens seriam trabalhadas décadas depois na forma de crônicas. O que
não significa que a importância das cartas se limite a presença de tais elementos, mas
demonstra como foram um importante lugar para a experimentação de pelo menos dois
gêneros em fusão: o dos relatos de viagem e o das cartas demonstrativas. Como já
evidenciava Erasmo de Rotterdam, essa forma de epístola abre espaço para a digressão
poética e, por conseguinte, às descrições de homens, cidades, casas, montanhas e
lugares, como faziam os viajantes em seus relatos, e fez Clarice de um modo particular.

Linguagem e metalinguagem epistolar

Escrevendo para Lúcio Cardoso, Clarice questiona algo que transcende suas
palavras: “é esquisito escrever uma carta de tão longe, parece que se fica com a
obrigação de dizer coisas formidáveis.” (LISPECTOR, 2002, p. 54). Essa passagem é
apenas uma das tantas em que o que está em discussão é a própria escrita. Mais do que
uma conversa, um diálogo, o exercício com o papel busca a dimensão de um monólogo,
definido como “um solilóquio de ausente para ausente” pelo sofista grego Libânio (TIN,
2005, p. 112), através do qual sejam capazes de superar a distância, seja espacial ou
temporal, seja afetiva ou lingüística. A fim de pensar nesse processo, que incluía
deparar-se com a folha de papel e consigo mesmo, podemos contar com a colaboração
de seus interlocutores. Érico Veríssimo é um deles. Escreveu em 1958 “está claro que
amizade não depende de carta e nós compreendemos que há situações em que a gente
pode fazer tudo menos escrever cartas aos amigos (e as cartas se tornam tão mais
difíceis quanto mais verdadeiros forem os amigos” (LISPECTOR, 2002, p. 238). Junto
a tais palavras fazem eco às de João Cabral de Melo Neto, para quem, apesar da eterna
vontade de ter notícias e o freqüente desejo de conversar, persiste o obstáculo: “como
temos entre nós mais do que os quilômetros e o Atlântico a barreira do papel de cartas
acabo mesmo por deixar para outro dia. Parece é que perdi mesmo o jeito de escrever
cartas. O jeito e o fôlego. Creio que não há nada – que me canse tanto e que exija de
mim tanto esforço.” (LISPECTOR, 2002, p. 237). Sentindo-se também limitada, sua
irmã, Tânia, questiona essas mesmas dificuldades. Em resposta, Clarice reflete: “quanto
a não poder conversar direito pelas cartas, isso é uma fatalidade e tem que ser por toda a
vida... É melhor a gente se habituar. Mesmo pessoalmente é difícil conversar, mesmo
quando a conversa é entre duas irmãs que se gostam e se entendem. Mil sentimentos
atrapalham, como seja o amor mesmo, a desconfiança de que se esteja vagamente
mentindo, a vontade de convencer, etc” (LISPECTOR, 2002, p. 75).

Se escrever gera angústia, embate com as palavras, a resposta gera aflição. Isto
porque, quando o ponto final era dado, em geral por meio de mais uma batida surda da
máquina de escrever, não significava que a ação estava finalizada, mas que apenas
metade do caminho fora percorrido. Era hora de endereçar o envelope, lacrar o
conteúdo, lamber o selo e levá-la ao portador. E esperar. Sim, esperar. Porque o ato de
escrever cartas é metade ação, pensamento, escrita, metade paciência, suspiro, espera.
Bem o demonstra Clarice, com certa graça, no trecho: “o fato é que estou sempre
perguntando na portaria se não tem carta. Prometi a mim mesma deixar o homem em
paz; mas quando passo por perto, olho de um jeito tal que ele diz logo: não tem nada.”
(LISPECTOR, 2002, p. 39). Nessa espera por algo que não a satisfaz plenamente
quando envia, mas a regozija quando recebe, declara a certa altura: “nem sei mais o que
contar, Lúcio, para mim cartas são cada vez mais um meio gelado de comunicação.

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Embora, quando as recebo, sejam para mim cada vez mais uma alegria. Me escreva
quando você puder, quando você quiser – espero que você possa e queira” (SABINO;
LISPECTOR, 2003, p. 135).

O desejo de receber cartas é crescente, sendo visível na maior parte da


correspondência enviada, nas quais interpela os mais variados destinatários
enfaticamente, com recados como “diga a ele que me escreva sem falta”, “se você
soubesse como me faz bem receber uma carta sua, como me anima” ou ainda “aqui
estou esperando, com muita saudade mesmo”, entre inúmeros outros. Há até o pedido
em letras garrafais: “NÃO SEJA PREGUIÇOSO!!!”. Uma vez que essas folhas de papel
são parte de sua sobrevivência, único elo mantido, declara aos amigos Fernando Sabino
e Helena “me escrevam, agora que vocês sabem quanto pode valer uma carta e
sobretudo certas cartas” (SABINO; LISPECTOR, 2003, p. 88). Enquanto Sabino se
esforçava nas primeiras cartas para fornecer informações, Lispector sempre reduziu isso
ao mínimo, alegando que quando fosse capaz de escrever uma carta de notícias poderia
igualmente compor uma história com enredo. Talvez pactuando mais com a idéia de
Cícero, para quem a carta é uma tentativa de conversação por meio da escrita, em que
“eu, apesar de nada ter para te escrever, ainda assim escrevo, pois parece que falo
contigo” (apud TIN, 2005, p. 21), Clarice envia a solicitação de quem não dá
importância para o conteúdo, apenas para o concreto da forma nas mãos, revelando que
não era exigente, queria carta apenas. Atendendo a solicitação ao pé da letra, os dois
amigos trocam cartas em que aparentemente nada era dito, substituindo as informações
por algo próximo a um ensaio sobre o vazio ou o silêncio:
mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade
enorme de dizer. O quê? Quando não tenho o que dizer, fico com vontade de ‘passar a
limpo’ tudo ou então de ‘apagar tudo’ e recomeçar, recomeçar a não ter o que dizer. Ou
então viro criança e minha vontade seria depender inteiramente de outra pessoa e
esperar dela todos os ensinamentos. Ou então viro mãe e me preparo toda para dizer
grave: as coisas são assim e assim, meu filho. Preparo-me bem grave, tenho o gesto
maternal de começar a informar – e na hora de abrir a boca não tenho o que dizer, viro
de novo ignorante e em vez de dizer o discurso, imploro: por favor, diga! E assim é que,
por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que
a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona
civicamente (SABINO; LISPECTOR, 2003, p. 122).
A relação estreita mantida com Fernando Sabino dá origem a outras formas
inusitadas, jogos de cartas difíceis de caracterizar caso não seguissem por meio de
envelopes. Entre elas, merecem destaque as cartas em que o amigo tenta animá-la
fazendo uso do seu desânimo, numa espécie de oração para a exortação, em que
recompõe pensamentos desconexos sobre vida e santidade, e a respectiva resposta de
Clarice, que busca o mesmo tom sacro, despedindo-se até com um ‘Amém’. Figuram
ainda ‘cartas de participação e de queixa’, filosofias do cotidiano e sobretudo literatura,
muita literatura, o que corrobora para evidenciar o quanto “a carta é um gênero
proteiforme, ao qual é ridículo e vão querer impor uma forma e uma figura únicas, o que
não significa que seja um gênero sem limites” (TIN, 2005, p. 56), ainda que esses
limites sejam constantemente friccionados.
Tanto na forma tomada para a escrita, narrando episódios vividos ou o seu
entorno enquanto escrevem à máquina, quanto em seu conteúdo, rumam com freqüência
para a discussão de textos, próprios ou alheios. Lispector e Sabino acompanham o

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trabalho um do outro de perto, mesmo à distância. Lêem e comentam em primeira mão
muitos dos trabalhos em desenvolvimento, antes mesmo destes serem encaminhados
para as editoras, como revela Clarice “claro que quero que você comente comigo antes
mesmo da publicação! E pelo amor de Deus, me dê a honra de ser franco”. Sabino, que
costumava a auxiliar com pequenas sugestões, participa de toda a revisão de “A maçã
no escuro”, fazendo inúmeras intervenções por carta. Julgando a posteriori ter cometido
“atos de violência”, limita-se a ler e elogiar “Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres”, sem intervir. Projetos, enredos e personagens são algumas vezes
desenvolvidos primeiro por carta, onde discutem desde o título de uma obra, até o
drama envolvido na sua composição. Interlocutores privilegiados, suas cartas apontam
para o árduo caminho percorrido até atingirem a maturidade literária, expresso ao longo
de décadas de encontros e desencontros. no papel.
Paralelamente, nos inserem no meio cultural de seu tempo, evidenciando a
ansiedade para verem publicada uma obra e conhecerem sua repercussão. A opinião dos
familiares e dos amigos das letras , como Lúcio Cardoso, gera interessantes conversas
como na passagem: “Me entristeceu um pouco você não gostar do título, o Lustre.
Exatamente pelo que você não gostou, pela pobreza dele, é que eu gosto. Nunca
consegui mesmo convencer você de que eu sou pobre....; infelizmente quanto mais
pobre, com mais enfeites me enfeito”. (LISPECTOR, 2002, p. 62). Há ainda a
repercussão das obras junto à crítica, o que costumava fazer mal a Clarice, como ela
mesma dizia a vários contatos, e fica evidente ao declarar “Escrevi para ele [Álvaro
Lins] dizendo que não conhecia nem Joyce nem Virgínia Woolf nem Proust quando fiz
o livro, porque o diabo do homem só faltou me chamar de ‘representante comercial’
deles.” (LISPECTOR, 2002, p. 38). Contraditoriamente ao mal que lhe fizesse, a
escritora estava sempre atenta, pedindo que lhes enviassem novas resenhas e artigos.
A relação mantida com as editoras e os novos lançamentos do mercado editorial
brasileiro são outro ponto alto das cartas. Fernando é um dos informantes que atualizam
Clarice, avisando da publicação de novos livros, como um que causava furor: um
exemplar de contos do Chefe do Gabinete do Itamarati. O livro pelo qual ambos se
apaixonam era “Sagarana”, do então literalmente ilustre desconhecido Guimarães Rosa.
Havia espaço para falar em textos variados, de Mário de Andrade e Zé Lins, a Henry
Miller e tantos outros. Além dos novos exemplares disponíveis nas bancas, as poucas
oportunidades de trabalho reservadas para que escritores como ela garantissem a
mínima sobrevivência publicando em jornais, foram assunto de muitas conversas. Por
intermédio de Sabino, Clarice escreve o “Bilhete americano” enquanto morava no
exterior para a revista Manchete, e tenta justificar a preferência por um pseudônimo,
recusado pela revista. Para ela, “Tereza Quadros” evitaria que expusesse a si própria,
numa gagueira encabulada, além de dar vida a uma personagem que seria melhor do que
ela, visto ser “disposta, feminina, ativa, não tem pressão baixa, até mesmo às vezes
feminista, uma boa jornalista enfim” (SABINO; LISPECTOR, 2003, p. 103).
Encerrando o âmbito das letras, é abordada a necessidade desesperada de Clarice para se
libertar de seus textos, publicando-os, frente às agruras de um mercado editorial
envolvido em polêmicas de obras censuradas, retiradas de circulação, parcialmente
cortadas ou abandonadas sem publicação na gaveta de algum editor.
Finalizando este artigo, resta concluir que as cartas trocadas por Clarice
Lispector dão margem a inúmeras outras leituras que a brevidade desse trabalho não
permite explorar. Ainda assim, tento em vista o discutido, afirmo que os textos

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abordados são mais do que cartas, epístolas, missivas ou como mais queiram chamar.
Aquém de comunicar, as cartas trocadas, sobretudo com Sabino, são fonte de
subjetivação. Na expressão do autor, elas representam “movimentos simulados”, o que
embaralha limites de ficção e realidade. São relato de viagem, romance epistolar,
filosofia da composição, do vazio, do silêncio e do cotidiano. São ensaios estéticos,
crítica literária e apaixonada. São modos de compreender a relação com a imprensa, e a
geração de seu tempo. E são, ainda, ficção, nas mais variadas leituras que se possa fazer
de tal termo. Por isso, ainda que a autora não pretendesse revelar suas cartas para outros
que não os destinatários, violar tais lacres nos convida a questionar a hibridez do gênero
epistolar, subvertendo padrões rígidos de interpretação em favor de uma dispersão
natural da literatura por qualquer papel que seja.

Notas
1
Implicando circuitos organizados, itinerários e guias, quer dizer, livros e indicações
precisos, o turismo é tratado por Mary Louise Pratt como uma espécie de degradação da
viagem, uma vez que “os poderes criativos e a profundidade do escritor de viagem
devem competir com os pacotes de dez dias e nove noites, passagem aérea mais hotel,
gorjetas incluídas, e as fantasias atraentes e ideais da propaganda turística”.
2
Peregrinação, viagem e turismo são a temática do ensaio de Machado e Pageaux que
analisa em perspectiva os caminhos abertos pelo viajante na literatura, especialmente na
portuguesa.

Referências
LISPECTOR, Clarice. Correspondências: Clarice Lispector. Org. Teresa Monteiro. Rio
de Janeiro: Rocco, 2002.
MACHADO, A. M.; PAGEAUX, D-H. As experiências da viagem. IN: _______. Da
literatura Comparada à Teoria da Literatura. Lisboa: Editorial Presença, 2001.
MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. A arte de escrever cartas: para a história da
epistolografia portuguesa no século XVIII. IN: GALVÃO, Walnice Nogueira et
GOTLIB, Nádia Batela (orgs.). Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre
as cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 41-54.
SABINO, Fernando; LISPECTOR, Clarice. Cartas perto do coração. Rio de Janeiro:
Record, 2003.
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação.
Bauru: EDUSC, 1999.
TIN, Emerson. Introdução. IN: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo
Lípsio. A arte de escrever cartas. Campinas: Unicamp, 2005.

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