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COMISSÃO EXAMINADORA
INTRODUÇÃO
Este trabalho foi desenvolvido a partir de uma inquietação acerca da
influência da figura do narrador Rodrigo S. M. na construção e na significação da
trama do último romance de Clarice Lispector, A hora da estrela, tendo em vista
que, mesmo após o centenário da escritora, estudar com maior profundidade
uma de suas obras mais representativas é uma oportunidade de ressignificar o
valor da literatura contemporânea em nossa construção como leitores,
estudiosos das letras e sociedade.
A história de Macabéa aos olhos ingênuos de uma leitura rasa parece
simples, quase trivial. Um texto curto sobre uma órfã, nascida em Alagoas e
moradora do Rio de Janeiro após a morte dos pais, criada por uma tia religiosa
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Licencianda em Letras-Português, modalidade presencial, pelo Instituto Federal do Espírito
Santo, campus Vitória. E-mail: larissa.alcoforado@gmail.com.
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Doutor em Letras (PPGL/Ufes), 2016. Professor do Instituto Federal do Espírito Santo, campus
Vitória. E-mail: lucas.silva@ifes.edu.br.
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A própria autora certa vez afirmou que não se considerava uma escritora
dentro dos parâmetros tradicionais da narrativa. Ia além, era uma intuitiva que,
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relato de vida como um alguém que ninguém quer e não faz falta a ninguém
reitera o costume clariceano de tomar um elemento subjetivo como o fio condutor
para a escrita. Clarice não é Macabéa. Nem Rodrigo, antes que assim conclua-
se. Clarice se fez muitos, muitas. Trouxe a ousadia e a negação aos dogmas e
fez a vida de suas personagens ganharem o mundo em seus livros. Macabéa ou
Rodrigo, pouco importa quem reflete (ou reflete-se em) Clarice. O importante é
que a Haia em cidade estranha original se multiplicou, transmutou formas e
regras, marcou e segue marcando gerações. E possibilita, ainda hoje, cem anos
depois de seu nascimento, novas perspectivas e leituras, múltiplos
entendimentos de suas histórias e uma infinidade de temáticas a serem
estudadas.
Sigamos agora estudando, e tentando entender, o duelo entre nossa
protagonista óbvia e aquele que, nesse estudo, acreditamos ser a verdadeira
estrela da obra: Macabéa vs. Rodrigo S. M.
social, suas ações e o que sofrem, todas essas conexões corroboram para que
o produto final seja tecido. E dentro dessa engrenagem literária há um elemento
que se torna fundamental na análise das produções contemporâneas: o
narrador. Esse que, por vezes distante, foi apenas contador da história e não
parecia a olhos vistos em certas tramas, passa a ser determinante no
entendimento de uma obra, tal como na derradeira produção clariceana. A esse
respeito, Fábio Lucas (1987) explica a evolução da figura do narrador durante os
anos em seu artigo “Clarice Lispector e o Impasse da Narrativa Contemporânea”:
S. M. ser mais que um simples narrador. E fez com esforço de quem está criando
a figura central de algo:
Além disso, vale lembrar também que certos temas que nos seus livros
anteriores só implicitamente eram sugeridos passam a ser tratados aberta e
explicitamente nas últimas obras. Parece que o contato direto da autora com a
realidade brasileira despertou o desejo de fazer uma literatura abertamente
“social” e comprometida – mas sem aderir a clichês, sem proselitismo,
desvinculando-se do que era comum da época. É possível que as circunstâncias
do período pós-64 e seus desdobramentos tenham sido essenciais para essa
nova atitude de Clarice Lispector. Além, claro, da maturidade e da sabedoria
acumuladas ao longo dos anos ou, quem sabe, do próprio fato de ser Clarice
também um indivíduo que viveu longe do seu lugar de origem. Aqui, por exemplo,
poderíamos retornar à discussão acerca das semelhanças e disparidades entre
a adaptada Clarice, antes Haia, e a retirante que nunca encontrou um lugar no
novo mundo, Macabéa – proximidade essa que já foi assinalada neste estudo.
Mas, voltando à ideia original (e vaga) de que o livro fala da vida de
Macabéa por si só, o romance poderia ser descrito, de forma simplista, como a
história de uma menina nordestina, órfã, criada por uma tia que a castigava com
requintes de crueldade, como ao não deixar a criança comer queijo com
goiabada de sobremesa. Essa pequena retirante, quando moça, se muda para
o Rio de Janeiro, após perder seu último elo familiar. Macabéa passa a morar
em um quarto de pensão com outras quatro moças e usa do emprego de
datilógrafa, se é que pode mesmo se gabar de tal conhecimento, para sobreviver.
Seu mundo é comum, a começar pelo nome de suas colegas de moradia, todas
Marias (Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria, apenas),
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estrangeiro rico, que daria todo o amor de que ela precisava, e Macabéa acredita
que encontrará finalmente um sentido para sua vida. Porém, ao sair da casa
luxuosa da mulher, Macabéa fica inebriada e atravessa a rua como num salto no
escuro. Acaba atropelada por uma Mercedes-Benz e, caída na calçada
sangrando, tem seu fim testemunhado por inúmeros espectadores que se
aglomeram em torno dela, sem que nenhum ofereça socorro. Afinal, parece
perguntar a cena: que valor há numa pobre moça nordestina?
Vale fomentar ainda que na cena do fim de Macabéa o narrador se
demora. Nas mais de cinco páginas entre o passo mortal e o fim da moça que
enfim tornava-se sonhadora, vemos a voz narrativa batalhando pelo
detalhamento dos momentos finais e por todas as divagações subjetivas que a
proximidade do fim comporta. Até na afirmação de que “A morte que é nessa
história o meu personagem principal” Rodrigo S. M. aponta para isso. Por fim, a
garota tosse sangue e morre. Assim chegou a hora da estrela. E é assim também
que se ratificaria a imprecisa ideia de que Macabéa é sim a personagem principal
da trama. Desmistifiquemos essa leitura no capítulo posterior.
do livro emerge como personagem ainda mais complexo que a moça sofrida, já
que é o narrador que vê o seu relato comprometido com questões materiais
evidentes, como classe social, cultura e profissão. Dessa maneira, preocupa-se
com sua postura de autor diante daquilo que vê e ressalta o discernimento que
é preciso àquele que se oferece para expor o outro. Novamente, a posição de
narrador onisciente, que relata de fora, sem envolvimento, é descartada. Rodrigo
S. M. vai além de ser observador. Ele se constrói como personagem que trará
Macabéa aos olhos do mundo. E se preocupa com o modo como fará isso:
Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a
barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só
cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-
me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr ao nível da
nordestina. Sabendo, no entanto que talvez eu tivesse que me
apresentar de modo convincente às sociedades que muito reclamam
de quem está neste instante mesmo batendo à máquina. (LISPECTOR,
1998, p. 20).
Logo, o literato, apesar de até mesmo afirmar que não tem “piedade do
meu personagem principal, a nordestina” (idem, p. 13), se vê em dúvida sobre a
maneira como deve se comportar. É correto que se aproxime do nível da
nordestina para que possa dela falar com maior veracidade? Ou o melhor seria
manter-se como indivíduo convincente, possuidor da capacidade da escrita,
distante do objeto ínfimo que Macabéa era para a sociedade?
Vale comentar que há, nesse ponto, a utilidade de rememorar
características da própria Clarice Lispector no que diz respeito às construções
de sua obra. A autora traz em seu trabalho particularidades que ficam evidentes
nas linhas que Rodrigo S. M. escreve. Em suas narrativas, e no romance de
1977, isso é claro. A trama factual passa para o segundo plano e
o questionamento do ser cresce e toma o lugar dos acontecimentos, por
exemplo. Márcia Guidin (1996, p. 48) reitera tal leitura ao dizer:
ser uma questão também para Clarice) e como deveria ou não se comportar na
elaboração do texto. Isso fica tão evidente que, em determinados momentos, em
que o óbvio era manter o olhar concentrado em Macabéa, vemos Rodrigo S. M.
tornar-se o centro das atenções. Assim, em muitos trechos, o narrador fala de si
e de suas queixas como se essas fossem os mais importantes dados que o leitor
precisa reter. Ao descrever Macabéa, por exemplo, o narrador interrompe a
sequência textual para colocar-se em evidência:
Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela
tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma
cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças. Como me
vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que
tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um
pouco de fibra? Não, ela é doce obediente. (LISPECTOR, 1998, p. 26).
aqui vale a discussão da não piedade necessária para tratar de Macabéa, que
Rodrigo S. M. afirma ser necessária para realizar seu trabalho:
Além disso, outro ponto que chama atenção na curta narrativa de 1977 é
o fato de que Rodrigo S. M. em alguns trechos aproxima sua existência à de uma
entidade maior, de um tipo de deus. Ele utiliza termos como “autor da vida”,
termo bíblico5 relativo a Jesus/Deus, comumente usado no contexto religioso:
“Quanto a mim, autor de uma vida, me dou mal com a repetição: a rotina me
afasta de minhas possíveis novidades.” (idem, p. 41). Em outro momento, o
escritor afirma: “Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se
tivesse teria para quem rezar e seria a salvação.” (idem, p. 33), numa alusão
clara de que ele se compara àquele que não apenas deu vida à Macabéa, mas
pode ser tido como um ser superior – ser esse que nos momentos finais da moça
afirma que irá fazer o possível para que ela não morra, como se tivesse poder
sobre a vida e a morte tal como Deus.
Assim, podemos afirmar que a questão maior na tentativa de encontrar a
temática de A hora da estrela, e a partir disso sua personagem central, é
enxergar que de fato o grande enredo é o exame das relações entre a matéria
da história (e da História) e a forma literária. Como afirma Spinelli (2008, p. 6),
5O versículo encontrado no capítulo 3 do Livro de Atos: “Vós matastes o Autor da vida, a quem
Deus ressuscitou dentre os mortos. E nós somos testemunhas deste fato” traz essa informação.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise feita nesse trabalho buscou entender o papel das personagens
de A hora da Estrela, desmistificando conclusões superficiais acerca da temática
do romance e analisando o papel das partes envolvidas na obra derradeira de
Lispector. Não só Macabéa e Rodrigo S. M., mas também Clarice e sua
genialidade foram expostas e discutidas, a fim de ampliar os horizontes de leitura
e trazer novas percepções da obra.
Partindo do entendimento das melindrosas características de construção
de uma obra e considerando o papel fundamental de um narrador de excelência,
digno daquele sobre quem narra e construído calculadamente pelo autor, na
verdade Clarice Lispector, vimos que classificar A hora da estrela de modo
generalista, simplista e superficial como um livro que fala sobre mazelas sociais
ou sobre a inferiorização da mulher é reduzir a genialidade de Clarice Lispector
e desperdiçar a oportunidade de enxergar a nova face da figura do narrador na
ficção moderna.
Dessa forma, este estudo procura romper com alguns paradigmas
comuns à leitura do último livro de Lispector e, apoiado em vozes da crítica
clariceana, oferece um novo olhar para as personagens que o constituem,
sobretudo Rodrigo S M., que não pode mais ser visto como mero contador de
histórias. E ainda valida a necessidade do cuidado no exame, como leitores e
apreciadores de Lispector, para que haja o aproveitamento de toda a
engenhosidade da autora.
A hora da estrela é a prova substancial que Clarice nos presenteou com
sua densidade e genialidade em textos que trazem profundidade, senso de forma
e conteúdo àqueles que, como ela, olham além. Clarice olhou Macabéa de forma
tão completa e absurda que a respeitou em sua insignificância e construiu um
personagem digno, complexo, completo para ser a voz pela qual conhecemos a
moça. Rodrigo S. M. é Clarice ao mesmo tempo que não é. É a prova de seu
afastamento e de seu mergulho. É o ponto crucial para que entendamos sua
derradeira obra. Era a A hora da estrela. A hora do fim de Macabéa para os
distraídos. A hora de Clarice para quem sabe ser essa sua composição final.
Mas aqui concluímos que era a hora de Rodrigo S. M., a voz que contando a
história de alguém tão descartável, conta a sua e também a de Clarice. É Rodrigo
S. M. a verdadeira Estrela.
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REFERÊNCIAS