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Larissa Rocha Vieira Guedes Alcoforado

A HORA DE RODRIGO S. M. – A VERDADEIRA ESTRELA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


à Coordenadoria do Curso Superior de
Licenciatura em Letras-Português como
requisito parcial para obtenção do título de
Licenciada em Letras-Português.

Aprovado em 08 de abril de 2021.

COMISSÃO EXAMINADORA

Prof. Dr. Lucas dos Passos e Silva


Instituto Federal do Espírito Santo
Orientador

Prof. Dr. Raimundo Nonato Barbosa de


CarvalhoUniversidade Federal do Espírito
Santo Examinador externo

Prof. Me. Weverson Dadalto


Instituto Federal do Espírito Santo
Examinador interno
2

A HORA DE RODRIGO S. M. – A VERDADEIRA ESTRELA

Larissa Rocha Vieira Guedes Alcoforado (Licencianda)1


Lucas dos Passos e Silva (Orientador)2

Resumo: A leitura superficial de A hora da estrela, último romance de Clarice


Lispector leva o leitor a entender Macabéa como personagem principal do texto
curto e de enredo descomplicado. No entanto, a obra clariceana não deve ser
encarada como elementar ou simples, o que instiga um estudo mais aprofundado
do texto e das motivações da autora por detrás do pequeno livro. Assim,
inspirado pelos percursos interpretativos de vozes como Helen Cixous (2017),
Daniela Spinelli (2008) e Fabio Lucas (1987), esse trabalho pretende uma leitura
mais sistemática levantando possibilidades de um entendimento mais complexo
acerca das vozes presentes e ressoantes no texto, de modo a oferecer novas
funções aos participantes da história, sobretudo Rodrigo S. M., o narrador da
obra. Logo, a análise das personagens pode ser feita à luz de diferentes
percepções de leitura e novos entendimentos sobre o texto, abandonando a ideia
de simplicidade literária, podem ser apresentados. Nesse percurso, Macabéa e
sua história deixam de ser foco principal e passam a ser fio condutor de um
enredo mais profundo, subjetivo, complexo e deveras mais similar à
grandiosidade de Clarice Lispetor: o trajeto da escrita de Rodrigo S. M.

Palavras-chave: Rodrigo S. M.; Macabéa; A hora da estrela; Clarice Lispector.

INTRODUÇÃO
Este trabalho foi desenvolvido a partir de uma inquietação acerca da
influência da figura do narrador Rodrigo S. M. na construção e na significação da
trama do último romance de Clarice Lispector, A hora da estrela, tendo em vista
que, mesmo após o centenário da escritora, estudar com maior profundidade
uma de suas obras mais representativas é uma oportunidade de ressignificar o
valor da literatura contemporânea em nossa construção como leitores,
estudiosos das letras e sociedade.
A história de Macabéa aos olhos ingênuos de uma leitura rasa parece
simples, quase trivial. Um texto curto sobre uma órfã, nascida em Alagoas e
moradora do Rio de Janeiro após a morte dos pais, criada por uma tia religiosa

1
Licencianda em Letras-Português, modalidade presencial, pelo Instituto Federal do Espírito
Santo, campus Vitória. E-mail: larissa.alcoforado@gmail.com.
2
Doutor em Letras (PPGL/Ufes), 2016. Professor do Instituto Federal do Espírito Santo, campus
Vitória. E-mail: lucas.silva@ifes.edu.br.
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e moralista. Macabéa é uma jovem cheia de tabus e superstições, heranças da


tia, com uma vida insignificante, sofrida e impregnada de miséria, não só
financeira e social, mas também existencial, que tem como seu maior ato de vida
ser espetáculo para aqueles que assistem à sua morte.
Porém, a escrita de Lispector nada tem de elementar, simples e banal. E,
ao fazer a devida leitura minuciosa do relato da vida de Macabéa, tida como
protagonista óbvia por muitos leitores, percebe-se que Rodrigo S. M. duela por
um espaço ampliado em relação àquele que comumente era usado por um
narrador. Dessa forma, em uma apreciação mais detalhada, foram analisadas as
marcas que o escritor imprime nas linhas que narram a história da nordestina
órfã e sua disputa por centralidade em momentos em que sua voz poderia ser
apenas canal de transmissão dos fatos que assolam o cotidiano da jovem. Dessa
maneira, o romance, que a princípio apenas relataria a trágica trajetória da
retirante, se apresenta como uma discussão substancial sobre o processo de
escritura, e Rodrigo S. M. surge como personagem ainda mais complexo que a
moça, uma vez que, a partir de suas divagações, torna-se, em diversos trechos,
o centro das atenções. Há, então, um rompimento com os paradigmas do lugar
do narrador tradicional e uma amostra da evolução dessa figura narrativa na
ficção moderna.
Na obra, os jogos linguísticos do processo da escrita começam pelos
múltiplos títulos que a nomeiam. A hora da estrela traz em suas primeiras
páginas uma lista de outros títulos possíveis: A culpa é minha, Ela que se
arranje, O direito ao grito, Quanto ao futuro, Lamento de um blue, Ele não sabe
gritar, Uma sensação de perda, Assovio no vento escuro, Registro dos fatos
antecedentes, História lacrimogênica de cordel, Saída discreta pela porta dos
fundos e Não posso fazer nada, título autorreferencial que traz o narrador como
ponto focal.
Assim, temos um curto romance sobre uma desgraçada moça, mas
também, e com maior força, um texto que questiona o papel social do escritor,
tanto na construção da narrativa quanto como literato na sociedade. Rodrigo S.
M. é, em toda oportunidade que encontra, uma voz de questionamento sobre o
ato de escrever e desponta, portanto, como o mais interessante personagem do
texto.
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Além disso, esse estudo buscou demonstrar as relações entre a voz da


própria Clarice Lispector e sua relação com as características do romance,
assunto suscitado pela crítica como ponto crucial para o entendimento da
importância da obra final na trajetória clariceana. Não podemos esquecer que na
dedicatória do autor há um parêntese com o dizer “Na verdade Clarice Lispector”.
Vale lembrar que o percurso desse estudo caminha em consonância com outras
vozes críticas, tais como Daniela Spinelli (2008), Helene Cixous (2017), Toínbín
Colm (2017) e Fábio Lucas (1987) e outros que já levantaram questões acerca
da obra de Lispector e que insinuam, como este texto, que A hora da estrela é
mais que um simples enredo sobre Macabéa.
Assim, considerando que a literatura tem papel de um organismo vivo
capaz de tudo compreender e enxergando também Lispector como personagem
do enredo, em que sua presença disputa a prevalência da voz com a do narrador
criado por ela mesma, chegamos à aproximação entre a literatura e a própria
vida. Assim, Rodrigo S. M., traçado como alguém inquieto sobre sua condição
do escritor, reflete sua própria condição do vivente que almeja saber qual a razão
de sua existência – o que também pode ser tido como uma inquietação da
própria autora, que, meticulosamente, disfarça-se sob a pele de seu personagem
escritor.
Aqui lembremos que disfarce pode não ser a palavra apropriada. Hélène
Cixous defende em seu ensaio “Extrema fidelidade” (2017) que Clarice fez um
esforço de deslocamento de seu ser, se afastando de si mesma, para que
Macabéa tivesse o narrador que precisava ter. Vemos, então, não mais só o
narrador que busca seu lugar, mas também uma “verdadeira Clarice” que se
desfaz e se refaz pela arte da ficção.
Sendo assim, entendendo um pouco sobre a própria trajetória da Haia
transformada em Clarice, sua caminhada como escritora e traçando paralelos
entre o texto de Lamento de um Blue, a própria Clarice e sua construção Rodrigo
S. M., buscamos analisar o curto romance por um prisma que enxergue além do
simples entendimento de que o livro narra a medíocre história de Macabéa, mas
como tablado construído e utilizado pelo narrador para ser, como ele mesmo
afirma, a certa altura, o palco do personagem mais importante do enredo a ser
construído – ele mesmo. Antes disso, porém, conheçamos um pouco mais sobre
Clarice Lispector, ponto crucial da inquietação que fez surgir esse trabalho.
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1 CLARICE LISPECTOR – UMA NOVA HAIA EM UMA CIDADE ESTRANHA


Clarice Lispector nasceu Haia, nome que significa vida, em 1920, onde
hoje está a Ucrânia. Era filha de judeus em migração, por razão
do antissemitismo resultante da Guerra Civil Russa. Chegou ao Brasil em 1922
e viveu com seus pais em Maceió e, posteriormente, em Recife, antes de se
mudar para o Rio de Janeiro, em 1935. Foi na cidade maravilhosa que Clarice
publicou, em 1943, seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, e seguiu
presenteando os amantes das letras com obras de impacto na literatura
brasileira, tais como A paixão segundo GH, até a derradeira publicação de A
hora da estrela, lançado no ano de sua morte, e, ainda, Um sopro de vida, que
foi publicado no ano seguinte ao seu falecimento.
Clarice deixou marcas na literatura brasileira. Seus textos não são
comuns, fogem ao padrão, são subjetivos, intimistas, nada fáceis para um leitor
desatento. Nádia Battella Gotlib (2019), uma das principais pesquisadoras de
Clarice, já afirmou em entrevista ao Jornal O Estado de São Paulo, em
comemoração ao centenário do nascimento da escritora:

Ler Clarice é se deixar levar pela companhia da escritora, dos


narradores e personagens que ela cria, sabendo, de antemão, que dali
não sairemos ilesos. Muita coisa acontecerá ao longo dessa leitura.
Apertem os cintos, que pode vir tempestade brava, ventos fortes, ou
uma doce brisa consoladora, mas nunca benevolente.

Assim, ao olharmos Clarice Lispector, autora tão singular de tantas obras


de sucesso, podemos afirmar que ela já surgiu como um caso estranho no
cenário brasileiro. Antonio Candido afirma, em “O raiar de Clarice Lispector”
(texto de 1943), que são raros os escritores que encontram “a verdadeira
exploração vocabular, a verdadeira aventura da expressão” e que saibam
“estender o domínio da palavra sobre regiões mais complexas e mais
inexprimíveis, ou fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo e das
ideias” (CANDIDO, 1970, p. 126). No entanto, mesmo na raridade, ele encontra
em Clarice alguém que “aceita a provocação das coisas à sua sensibilidade e
procura criar um mundo partindo das suas próprias emoções, da sua própria
capacidade de interpretação” (idem, p. 128). E continua quando afirma que
Clarice Lispector tem “ritmo de procura, de penetração, que permite uma tensão
psicológica” (idem, p. 129), trazendo à literatura o romance de aproximação,
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mostrando-nos histórias em mais de um plano, como na saga de Macabéa. Não


é o que de fato aconteceu com a nordestina aquilo que sabemos, mas o que o
narrador conta. E isso é mais importante do que a verdade do ocorrido. O que
Rodrigo S. M. nos diz é o que importa. Nesse sentido, embora tratando ainda da
estreia literária da autora, Candido (1970, p. 131) encerra dizendo que Clarice

[...] soube criar o estilo conveniente para o que tinha a dizer.


Soube transformar em valores as palavras nas quais muitos não
veem mais que sons e sinais. A intensidade com que sabe
escrever e sua capacidade da vida interior poderão fazer dessa
jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais
originais da nossa literatura.

Clarice nos impressiona em suas narrativas com sua capacidade de “fuga”


em relação às regras e estruturas fixas da produção literária tradicional. A autora
chegou a ser considerada “uma escritora que provocava qualquer tentativa de
classificá-la” (DINIS, 1997, p. 35), tamanha era sua desfiliação dos padrões.
Clarice produz uma literatura única, não passível de classificação; afinal, já dizia
ela: “inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando,
gênero não me pega mais” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p. 7).
De volta aos textos, percebe-se que uma das grandes características da
obra de Lispector é a ausência de linearidade, com enredos que não obedecem
à ordem começo, meio e fim. Além disso, a narrativa clariceana compreende que
um evento ou acontecimento ligado à subjetividade humana pode ser a diretriz
e o eixo condutor de sua trama. Bosi também comenta que Lispector se manteve
fiel às suas conquistas formais, legitimando suas particularidades: “O uso
intensivo da metáfora insólita, a entrega ao fluxo de consciência, a ruptura com
o enredo factual tem sido constante no seu estilo de narrar” (BOSI, 2017, p. 452).
E Dany Al-Behy Kanaan (2003, p. 19) nos lembra que:

A obra clariceana não é de fácil assimilação, pois exige demais do


leitor, descentrando-o constantemente, questionando-o, abalando seu
sistema de referência... incluindo o de leitura. Ou seja, diante de sua
obra, os modelos tradicionais de interpretação do texto parecem falhos,
como se o tempo todo algo ficasse de fora – e fica.

A própria autora certa vez afirmou que não se considerava uma escritora
dentro dos parâmetros tradicionais da narrativa. Ia além, era uma intuitiva que,
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a partir de impressões e de seus sentimentos acerca de seu mundo interior e


exterior, registrava-os em seus escritos. Em dado momento declarou:

Fala-se da dificuldade entre forma e conteúdo, em matéria de escrever;


até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não, etc. Mas, por Deus, o
problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro a forma.
Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já
existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está
no próprio pensamento: o pensamento luta por se formar. Para falar a
verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a
intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma
enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. (LISPECTOR,
2004, p. 76).

Dessa maneira, é preciso afirmar que a narrativa literária clariceana


destoava da linguagem literária produzida no Brasil do período, rompendo com
a prosa regionalista e também com a prosa referencial que abordava a descrição
de fatos e eventos vinculados aos acontecimentos do Brasil pós-1960, como nos
lembra Campadelli (1982).
Vale destacar também, além de suas singularidades como escritora, e de
forma mais intrínseca à obra base desse estudo, que Clarice parece, em certo
sentido, se aproximar de algumas personagens de A hora da estrela. A exemplo
disso, e certamente a mais comum correlação, tem-se a comparação entre
Clarice e a alagoana Macabéa. Igualmente à moça, a autora viveu em Maceió e
depois se mudou para o Rio de Janeiro. As duas precisaram criar novas vidas
na capital carioca. Macabéa “criou” uma vida diferente daquela que
provavelmente viveria em Alagoas, possuindo até mesmo um emprego de
datilógrafa, enquanto Clarice transmutou Haia, a menina que deixou seu país tão
pequena, em autora notável. Ambas perderam, também, um referencial feminino
precocemente: a mãe de Lispector partiu quando esta tinha 10 anos, enquanto
a personagem do enredo perdeu a tia que lhe criara quando adolescente, já
tendo perdido a mãe anteriormente. Desse modo, por todos esses vínculos, pode
nos parecer que Clarice se reflita em Macabéa (ou seria esta que se reflete em
Clarice?).
No entanto, ao desnudarmos o texto por uma outra trilha, vemos uma
aproximação ainda mais especular. Aquele que conta a saga de Macabéa,
Rodrigo S. M., contestador da arte de narrar em cada uma das poucas mais de
setenta páginas da obra, parece também espelhar a figura de Clarice. E seu
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relato de vida como um alguém que ninguém quer e não faz falta a ninguém
reitera o costume clariceano de tomar um elemento subjetivo como o fio condutor
para a escrita. Clarice não é Macabéa. Nem Rodrigo, antes que assim conclua-
se. Clarice se fez muitos, muitas. Trouxe a ousadia e a negação aos dogmas e
fez a vida de suas personagens ganharem o mundo em seus livros. Macabéa ou
Rodrigo, pouco importa quem reflete (ou reflete-se em) Clarice. O importante é
que a Haia em cidade estranha original se multiplicou, transmutou formas e
regras, marcou e segue marcando gerações. E possibilita, ainda hoje, cem anos
depois de seu nascimento, novas perspectivas e leituras, múltiplos
entendimentos de suas histórias e uma infinidade de temáticas a serem
estudadas.
Sigamos agora estudando, e tentando entender, o duelo entre nossa
protagonista óbvia e aquele que, nesse estudo, acreditamos ser a verdadeira
estrela da obra: Macabéa vs. Rodrigo S. M.

2 O NARRADOR RODRIGO S. M. VERSUS O PROTAGONISTA RODRIGO S.


M. NA TRAGÉDIA MACABEANA
Terry Eagleton trata, em Marxismo e crítica literária, dos diferentes modos
de se estudar literatura. O crítico diz que “a diferença entre a ciência e a arte não
é que elas lidam com objetos de estudo diferentes, mas que lidam com o mesmo
objeto de modo diferente” (EAGLETON, 2011, p. 39). De fato, o trabalho da
ciência está ligado a aspectos puramente conceituais e a arte possibilita ao leitor
algo que será incorporado à sua vivência. Por isso, compreender uma obra
literária vai além da interpretação de símbolos linguísticos e análises sociais da
época descrita. É necessário entender os laços entre as tramas e “os mundos
ideológicos que elas habitam – relações que surgem não apenas em ‘temas’ e
‘questões’, mas no estilo, no ritmo, na imagem, na qualidade e na forma”
(EAGLETON, 2011, p. 20). Nesse sentido, Jacques Rancière (2005, p. 16) afirma
que a literatura é “um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível,
da palavra e do ruído” – ruído esse que pode modificar interpretações e
entendimentos.
Dessa forma, vemos que, na análise dos textos, os integrantes da
construção literária são peças fundamentais para compreender do que ele trata
e a mensagem (ou mensagens) que quer construir. Os personagens, o contexto
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social, suas ações e o que sofrem, todas essas conexões corroboram para que
o produto final seja tecido. E dentro dessa engrenagem literária há um elemento
que se torna fundamental na análise das produções contemporâneas: o
narrador. Esse que, por vezes distante, foi apenas contador da história e não
parecia a olhos vistos em certas tramas, passa a ser determinante no
entendimento de uma obra, tal como na derradeira produção clariceana. A esse
respeito, Fábio Lucas (1987) explica a evolução da figura do narrador durante os
anos em seu artigo “Clarice Lispector e o Impasse da Narrativa Contemporânea”:

Se no conto de fadas pergunta-se: que aconteceu ao Príncipe?; se no


conto realista se pergunta: que fez o Príncipe?; se no conto moderno
se pergunta: em que X (personagem anónima) está pensando?,
contemporaneamente a pergunta ficou sendo: por que escrevo?
Pergunta a que alguns artífices do "nouveau roman" deram a seguinte
resposta: "escrevo para saber a razão por que escrevo". (LUCAS,
1987, p. 4).

Dessa maneira, podemos afirmar que o narrador utiliza-se de


mecanismos para alcançar suas respostas. E uma dessas formas é utilizando a
linguagem, o que faz com que essa ferramenta passe ao plano central da
literatura, não mais sendo um simples meio, mas também um fim; afinal, como
afirma Silviano Santiago (2002, p. 46-47), “o narrador pós-moderno sabe que o
‘real’ e o ‘autêntico’ são construções da linguagem”. E por isso ela, a linguagem,
passa a ser ainda mais importante nas produções contemporâneas.
E sobre esse aspecto, Rodrigo S. M., inclusive, explicita o valor da palavra
em seu texto:

Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu


material básico é palavra. Assim é que esta história será feita de
palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido
secreto que ultrapassa palavras e frases. (LISPECTOR, 1998, p. 14-
15).

Adorno nos lembra também que no século XX, referindo-se ao romance


contemporâneo, encontra-se um paradoxo: o narrador não pode mais narrar,
mesmo que o romance exija a narração. O crítico aponta a necessidade de
“provocar a sugestão do real” e destaca o subjetivismo que não “tolera mais
nenhuma matéria sem transformá-la” (2003, p. 55). Dessa forma, como pode o
narrador contar algo sem se envolver?
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Assim, vale ressaltar que o fortalecimento dessa nova figura na literatura,


substituta daquele ser soberano que todo conhecimento detinha, veio
acontecendo progressivamente durante os anos, e a voz que frequenta boa parte
da ficção moderna e contemporânea é não mais uma entidade poderosa, mas
aquele que entrelaça as histórias, esbarra em outras personagens, se questiona
e busca respostas. Sobre isso, ainda no ensaio “Posição do narrador no romance
contemporâneo”, Adorno (2003) salienta que, com as transformações operadas
no último século, um texto em que o narrador consegue dominar a experiência a
ponto de não se mesclar à narrativa seria recebido com impaciência e ceticismo.
Em A hora da estrela, temos essa situação corrente. O narrador da trágica
vida de Macabéa, Rodrigo S. M., apesar de, por vezes, contar os fatos como se
relator onisciente fosse, não participante efetivo do cotidiano da moça, não
cumpre somente um papel contemplativo. Ao contrário disso, abre-se para um
diálogo com outros discursos, sendo muito mais do que um simples contador de
histórias. Rodrigo S. M. transita pelo desejo de contar a saga de Macabéa ao
mesmo tempo em que peleja com a tentativa dificultosa de encontrar o estilo e a
forma mais adequados de fazê-lo, além de investigar o que representa a pessoa
escritor, desnudando uma crise de identidade que permeia todo o texto e
explicita sua consciência problemática de qual é seu papel na sociedade. Dessa
forma, torna-se figura representativa da temática da personagem que escreve
em busca de si mesma, uma das constantes da ficção contemporânea. Vemos
aqui, então, Clarice (e quem sabe a personagem Lispector) abdicar de um
narrador tradicional e dar espaço a um autor-narrador que vai contar não só a
história da órfã vinda de Alagoas, mas a sua própria saga, seus conflitos e crises,
apresentando-nos o processo do ato criador. Em um dos textos críticos que
compõem a edição comemorativa de A hora da estrela, publicada em 2017 pela
Editora Rocco, chamado “Uma paixão pelo vazio”, Colm Tóibín (2017) afirma
que:

A Hora da Estrela é como alguém ser levado aos bastidores durante


uma encenação e ser-lhe permitido espiadelas ocasionais para os
atores e o público, e olhares ainda mais intensos para a mecânica do
teatro – as trocas de cenas, de figurinos, a criação da ilusão – com
muitas interrupções pelos profissionais dos bastidores. Já à saída, ao
passado pela bilheteria, deve ser esclarecido em sussurros irônicos,
talvez zombeteiros, de que, na verdade, os olhares é que eram o
espetáculo.
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O que nos chama atenção no narrador de A hora da estrela, portanto, é


ver que Rodrigo S. M. não é um elemento narrativo simples e que passa
despercebido na trama, sendo aquele que apenas conta. Temos em Ela que se
arranje3, um narrador-personagem que briga por um espaço incomum à sua
classe nos tempos anteriores à contemporaneidade. Ele está ostensivamente
presente no romance clariceano, como o eixo discursivo em torno do qual se
estrutura a narrativa, reforçando a ideia de que “os olhares é que eram o
espetáculo”. Seu discurso, colocado no primeiro plano, chama a atenção antes
da história propriamente dita, convidando-nos inicialmente a analisar o narrador
“que fala”. Logo, a hermética4 ficcionista, então, nos apresenta por meio dessa
figura masculina a saga de Macabéa sem excluir a presença também explícita
do narrador, que abre os bastidores da criação, problematizando o tempo todo o
ato de narrar. Ele disputa espaço com a personagem, e essa integração entre
enunciação discursiva, quando este fala no momento presente da narração, e a
efetiva narração da vida da pobre moça transforma-o em um personagem mais
intrigante do que “uma jovem que nem pobreza enfeiada tem” (LISPECTOR,
1998, p. 21) e que pouca sombra fazia.
Por fim, outro aspecto que desconstrói Rodrigo S. M. como típico narrador
é sua técnica narrativa. Mostrando a personagem aos poucos, em flashes,
propiciando que o leitor construa retratos mentais de Macabéa, tudo isso em
meio a reflexões sobre sua própria vida e sobre o ato de escrever, ele rompe
com o ideário do narrador onisciente que somente conta os fatos:

E também porque entendo que devo caminhar passo a passo de


acordo com um prazo determinado por horas: até um bicho lida com o
tempo. E esta é também a minha mais primeira condição: a de
caminhar paulatinamente apesar da impaciência que tenho em relação
a essa moça. (LISPECTOR, 1998 p. 16).

O narrador da vida da apagada estrela passa a costurar a vida dele à dela,


já que seu ato de escrever sobre a moça é quem gera toda sua inquietação
acerca do ofício e de sua função na sociedade. E, por tudo isso, Rodrigo S. M.

3 Outro dos vários nomes que Lispector dá à obra.


4 Em entrevista concedida à TV Cultura, no ano de seu falecimento, Clarice Lispector refere-se
ao termo “hermético” como uma espécie de rótulo crítico já cristalizado em torno de seu nome.
Trata-se de uma resposta da escritora a uma pergunta a respeito de sua popularidade. Cf.
LERNER, Júlio. “A Última Entrevista de Clarice Lispector”. In: Revista Shalom. São Paulo, n. 296,
jun-ago. 1992, p. 62-69.
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torna-se o protagonista, personagem principal, e o elemento de estudo desse


trabalho. Sigamos.

3 MACABÉA: A PERSONAGEM NÃO PRINCIPAL DE A HORA DA ESTRELA


Apesar de a crítica se debruçar sobre o assunto há algum tempo, há quem
diga, ainda hoje, que a personagem principal de A hora da estrela, de Clarice
Lispector, seja a nordestina Macabéa. E à primeira vista, numa leitura superficial,
a vida medíocre, vazia e sem graça da moça se mostra de fato como temática
do curto romance clariceano. Isso porque, numa leitura imediata, Macabéa está
exposta sem piedade alguma nas linhas que a descrevem e contam sua história.
Além disso, a moça é objeto de análise simples até, considerando que sua
trajetória não traz grandes surpresas ou fatos impressionantes, a não ser pela
sua hora final, hora da morte e, quiçá, hora da Estrela. No entanto, o que move
muitas novas leituras desse texto – debate que se aplica a este trabalho – é que
Macabéa não é a única passível de ocupar o protagonismo do texto. E, ademais,
talvez seja a figura menos interessante para ocupar tal posto.
É ainda razoável pensar, por outro ângulo, como já se comentou por
muitos, que o livro aborda, na verdade, usando da sina de Macabéa, as mazelas
sociais ou a invisibilidade da mulher e, por que não, do povo nordestino ou das
minorias tantas do Brasil, das quais a moça também faz parte. Não é difícil achar
subterfúgio para argumentar que Clarice estava, ao usar um narrador que a todo
momento inferioriza a personagem mulher e sua origem, fazendo uso da ironia
para achar um lugar de crítica ao modo como a sociedade enxerga o que ela
mesma taxa de menor. Como acontece em boa parte da obra de Clarice, a crítica
social presente em A Hora da Estrela aqui se realiza pelo viés da sátira e do
humor, inclusive na escolha de um narrador homem – esse que afirma: “eu
também não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um
outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode
lacrimejar piegas.” (LISPECTOR, 1998, p. 14). Uma piada pronta ao lembrarmos
que a dona da caneta no mundo real é Clarice Lispector. Ou ainda, mais
engenhoso que a piada, uma construção estrategicamente pensada. Cixous
(2017) afirma que Lispector construiu o narrador de que sua personagem
precisava, o que mais uma vez reforça a ideia do personagem chamado Rodrigo
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S. M. ser mais que um simples narrador. E fez com esforço de quem está criando
a figura central de algo:

[...] foi preciso que Clarice fizesse um exercício sobre-humano de


deslocamento de todo o seu ser, de transformação, de afastamento de
si mesma, para tentar aproximar-se desse ser tão ínfimo e tão
transparente. E o que ela fez para se tornar suficientemente estranha?
O que ela fez é ser o mais outra possível de si mesma, e isso resultou
nesta coisa absolutamente notável: o mais outra possível era passar
ao masculino, passar por homem. (CIXOUS, 2017, p. 135).

[...] autor de A hora da estrela é uma mulher de muita delicadeza. O


autor do autor de A hora da estrela nasceu da necessidade deste texto,
e morreu com esse texto. Ele é obra de sua obra. É o filho, o pai e (em
verdade a mãe). (idem, p. 162).

Além disso, vale lembrar também que certos temas que nos seus livros
anteriores só implicitamente eram sugeridos passam a ser tratados aberta e
explicitamente nas últimas obras. Parece que o contato direto da autora com a
realidade brasileira despertou o desejo de fazer uma literatura abertamente
“social” e comprometida – mas sem aderir a clichês, sem proselitismo,
desvinculando-se do que era comum da época. É possível que as circunstâncias
do período pós-64 e seus desdobramentos tenham sido essenciais para essa
nova atitude de Clarice Lispector. Além, claro, da maturidade e da sabedoria
acumuladas ao longo dos anos ou, quem sabe, do próprio fato de ser Clarice
também um indivíduo que viveu longe do seu lugar de origem. Aqui, por exemplo,
poderíamos retornar à discussão acerca das semelhanças e disparidades entre
a adaptada Clarice, antes Haia, e a retirante que nunca encontrou um lugar no
novo mundo, Macabéa – proximidade essa que já foi assinalada neste estudo.
Mas, voltando à ideia original (e vaga) de que o livro fala da vida de
Macabéa por si só, o romance poderia ser descrito, de forma simplista, como a
história de uma menina nordestina, órfã, criada por uma tia que a castigava com
requintes de crueldade, como ao não deixar a criança comer queijo com
goiabada de sobremesa. Essa pequena retirante, quando moça, se muda para
o Rio de Janeiro, após perder seu último elo familiar. Macabéa passa a morar
em um quarto de pensão com outras quatro moças e usa do emprego de
datilógrafa, se é que pode mesmo se gabar de tal conhecimento, para sobreviver.
Seu mundo é comum, a começar pelo nome de suas colegas de moradia, todas
Marias (Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria, apenas),
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fomentando a ideia de que nada havia de extraordinário naquele plano


existencial em que se inseria. A personagem de vida frívola não tinha grandes
ambições, era pequena e tinha consciência de que era. Seus desejos mais
notáveis eram comprar uma rosa ou ir ao cinema e tomar um refrigerante. No
mais, seu sonho de comprar um creme caro transladava o ideário de cuidar da
pele com o produto: o que Macabéa queria era poder comer aquela substância
como quem se delicia com algo inebriante. Em toda sua jornada, vemos, então,
um ser que é só mais um num mar de tantos outros seres considerados sem
valor social.
Seguindo o decorrer da história, a personagem se apaixona por Olímpico,
também de origem nordestina, mas com o diferencial de possuir um viés
ambicioso, o que o distancia da maneira como a jovem se construiu frente aos
dilemas da vida – Macabéa sequer se dá o direito de sonhar na maior parte do
texto. Olímpico tem aspirações incomuns a um retirante, tais como ser deputado:
“Os negócios públicos interessavam Olímpico. Ele adorava ouvir discursos. [...]
Ele dizia alto e sozinho: – Sou muito inteligente, ainda vou ser deputado.”
(LISPECTOR, 1998, p. 46).
O namorado nordestino é ainda ponto-chave para a derradeira estreia de
Macabéa como protagonista de sua história, e apenas dela, ao conduzi-la, a
partir dos seus atos, a uma nova rota, que a leva ao fim de sua existência. O
rapaz, ao conhecer Glória, colega da namorada, a substitui como parceira,
enxergando nessa nova pretendente uma possível ascensão social, algo que
Macabéa não podia oferecer a ninguém, sequer a ela mesma, sobretudo porque
nessa altura da história ainda descobre estar tuberculosa. Glória era diferente, o
oposto de Macabéa: bem alimentada, capaz de absorver os referenciais da
cultura de que fazia parte, amante eficaz, competente no trabalho no qual não
só ganhava mais que Macabéa, mas também não se atrapalhava com as
palavras difíceis, além de se mostrar hábil em movimentar-se no mundo do
dinheiro.
Adiante, o rompimento, então, esmaga ainda mais a nordestina sofrida
que, não sabendo lidar com seus conflitos internos, se culpa. Glória, em prol de
tentar amenizar a dor da amiga, oferece a ela uma consulta a uma cartomante,
o que dá à garota uma esperança nunca vivida. Madame Carlota, ex-prostituta
que se mantém lendo o futuro dos clientes, diz que ela iria se casar com um
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estrangeiro rico, que daria todo o amor de que ela precisava, e Macabéa acredita
que encontrará finalmente um sentido para sua vida. Porém, ao sair da casa
luxuosa da mulher, Macabéa fica inebriada e atravessa a rua como num salto no
escuro. Acaba atropelada por uma Mercedes-Benz e, caída na calçada
sangrando, tem seu fim testemunhado por inúmeros espectadores que se
aglomeram em torno dela, sem que nenhum ofereça socorro. Afinal, parece
perguntar a cena: que valor há numa pobre moça nordestina?
Vale fomentar ainda que na cena do fim de Macabéa o narrador se
demora. Nas mais de cinco páginas entre o passo mortal e o fim da moça que
enfim tornava-se sonhadora, vemos a voz narrativa batalhando pelo
detalhamento dos momentos finais e por todas as divagações subjetivas que a
proximidade do fim comporta. Até na afirmação de que “A morte que é nessa
história o meu personagem principal” Rodrigo S. M. aponta para isso. Por fim, a
garota tosse sangue e morre. Assim chegou a hora da estrela. E é assim também
que se ratificaria a imprecisa ideia de que Macabéa é sim a personagem principal
da trama. Desmistifiquemos essa leitura no capítulo posterior.

4 CONHECENDO A VERDADEIRA ESTRELA: RODRIGO S. M.


Apesar da perspectiva usual de determinar Macabéa como centro de A
hora da estrela, não se pode ignorar uma tônica implícita, que por vezes não se
considera numa leitura rasa do romance: Rodrigo S. M., narrador e escritor da
saga de Macabéa, não pode ser tomado apenas como quem traz os fatos,
partícipe menor na construção da trama. Ele mesmo se afirma como
personagem da história: “A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter
uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu,
Rodrigo S. M.” (LISPECTOR, 1998, 13).
Daniela Spinelli (2008, p. 107) diz que “O empenho de Rodrigo S. M.,
diante da dificuldade de narrar, demonstrado pela articulação dos termos
integrantes da ficção num emaranhado articulado, revela seu desejo de
construir-se sujeito”. É crucial, portanto, enxergá-lo como aquele que questiona
em todo tempo seu papel social, seja na construção da narrativa, seja na
indagação acerca do papel do literato na sociedade ou ainda na percepção da
necessidade de preparação para a escrita das histórias que se apresentam a
ele. E esse é de fato o assunto central do romance clariceano. Assim, o redator
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do livro emerge como personagem ainda mais complexo que a moça sofrida, já
que é o narrador que vê o seu relato comprometido com questões materiais
evidentes, como classe social, cultura e profissão. Dessa maneira, preocupa-se
com sua postura de autor diante daquilo que vê e ressalta o discernimento que
é preciso àquele que se oferece para expor o outro. Novamente, a posição de
narrador onisciente, que relata de fora, sem envolvimento, é descartada. Rodrigo
S. M. vai além de ser observador. Ele se constrói como personagem que trará
Macabéa aos olhos do mundo. E se preocupa com o modo como fará isso:

Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a
barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só
cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-
me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr ao nível da
nordestina. Sabendo, no entanto que talvez eu tivesse que me
apresentar de modo convincente às sociedades que muito reclamam
de quem está neste instante mesmo batendo à máquina. (LISPECTOR,
1998, p. 20).

Logo, o literato, apesar de até mesmo afirmar que não tem “piedade do
meu personagem principal, a nordestina” (idem, p. 13), se vê em dúvida sobre a
maneira como deve se comportar. É correto que se aproxime do nível da
nordestina para que possa dela falar com maior veracidade? Ou o melhor seria
manter-se como indivíduo convincente, possuidor da capacidade da escrita,
distante do objeto ínfimo que Macabéa era para a sociedade?
Vale comentar que há, nesse ponto, a utilidade de rememorar
características da própria Clarice Lispector no que diz respeito às construções
de sua obra. A autora traz em seu trabalho particularidades que ficam evidentes
nas linhas que Rodrigo S. M. escreve. Em suas narrativas, e no romance de
1977, isso é claro. A trama factual passa para o segundo plano e
o questionamento do ser cresce e toma o lugar dos acontecimentos, por
exemplo. Márcia Guidin (1996, p. 48) reitera tal leitura ao dizer:

Rodrigo é narrador de Macabéa e protagonista de uma outra história


que transcorre cruzada à dela: uma história de processo de construção
do texto, cuja autoria é em última instância de Clarice Lispector. A partir
desse narrador, ao obrigá-lo a se projetar em sua personagem, projeta-
se nela também a figura da escritora, identificando-se com ela e com
ele simultaneamente.

Assim, em todo o percurso narrativo da saga de nossa estrela, vemos o


narrador contender consigo mesmo sobre seu lugar na trajetória (e o que poderia
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ser uma questão também para Clarice) e como deveria ou não se comportar na
elaboração do texto. Isso fica tão evidente que, em determinados momentos, em
que o óbvio era manter o olhar concentrado em Macabéa, vemos Rodrigo S. M.
tornar-se o centro das atenções. Assim, em muitos trechos, o narrador fala de si
e de suas queixas como se essas fossem os mais importantes dados que o leitor
precisa reter. Ao descrever Macabéa, por exemplo, o narrador interrompe a
sequência textual para colocar-se em evidência:

Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela
tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma
cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças. Como me
vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que
tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um
pouco de fibra? Não, ela é doce obediente. (LISPECTOR, 1998, p. 26).

Dessa forma, o intimismo e o peso existencial são abordados por Clarice


em A hora da estrela através do fluxo da consciência e dos monólogos interiores
de Rodrigo S. M., fazendo a narrativa densa, pesada, cheia de idas e vindas,
num constante remoer de situações – o que faz com que mais uma vez
possamos olhar para Rodrigo S. M. não como aquele que apenas traz a história
de Macabéa, mas como personagem ainda mais crucial na história, uma vez que
o narrador, ele mesmo, percebe que a realidade o ultrapassa: “Transgredir,
porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em
escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que
quer dizer ‘realidade’.” (LISPECTOR, 1998, p. 17).
Não podemos esquecer ainda do momento que boa parte da crítica
aproximou à epifania, elevando-o ao status de característica fundamental da
narrativa clariceana, que representaria o momento de “iluminação” a partir do
qual é operada uma transformação interior no personagem, tal como houve com
Rodrigo S. M.: “A ação desta história terá como resultado minha transfiguração
em outrem e minha materialização enfim em objeto.” (LISPECTOR, 1998, p. 20).
Em uma relação de amor e ódio, ele narra a vida dessa moça como tentativa de
se livrar da sensação de mal-estar que ela representa e que o contaminava, ao
mesmo tempo em que se apieda e se revolta, inclusive se sentindo culpado por
viver num padrão mais elevado que a maioria da população marginalizada. E
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aqui vale a discussão da não piedade necessária para tratar de Macabéa, que
Rodrigo S. M. afirma ser necessária para realizar seu trabalho:

Bem, é verdade que também eu não tenho piedade do meu


personagem principal, a nordestina: é um relato frio. Mas tenho direito
de ser dolorosamente frio, e não vós. Por tudo isso é que não vos dou
a vez. Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária
que respira, respira, respira. (LISPECTOR, 1998, p. 13).

Assim, vemos também a mão de Lispector construindo um personagem


digno de ser o narrador da vida de Macabéa. Cixous (2017) salienta que a autora
construiu o autor de que a moça tinha necessidade. E ele precisava ser um
homem para trazê-la às nossas vistas, não por ser melhor que uma figura
feminina, mas porque era o auge do distanciamento que Clarice poderia assumir:
“o que ela fez é ser o mais outra possível de si mesma, e isso resultou nessa
coisa absurdamente notável: o mais outra possível era passar ao masculino,
passar por homem. É um démarche paradoxal” (CIXOUS, 2017, p. 135). A crítica
afirma que Clarice se desnudou e se transmutou em homem pois foi em uma
essência masculina, sem a piedade característica do feminino, que Lispector
encontrou “a distância mais respeitosa em relação ao seu pequeno talo de
mulher” (idem, p. 136). Ela ainda afirma:

E perguntamo-nos: Por que tal não teria sido possível enquanto


mulher? [...] Uma mulher talvez tivesse tido piedade: o “lacrimejar
piegas” e a piedade não tem que ver com respeito. Para Clarice o valor
supremo é o sem-piedade, mas um sem-piedade cheio de respeito. [...]
A piedade é deformante, é paternalista ou maternal, cobre, recobre, e
o que quer Clarice aqui é deixar nu esse ser em sua grandeza
minúscula. (CIXOUS, 2017, p. 136).

Logo, Rodrigo S. M. vai aos poucos se tornando não só personagem, mas


também tomando o lugar de protagonista de uma história que não mais trata de
Macabéa, sua piegas existência ou a mediocridade que a leva à morte, mas sim
da relação entre narrador e texto-história. Suas marcas de presença são
constantes: “Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim” (LISPECTOR,
1998, p. 15), “Voltando a mim” (idem, p. 16), “Mas porque estou me sentindo
culpado? ” (idem, p. 23) são algumas das retomadas a si que o narrador faz e
que o colocam no centro da atenção. E, mesmo quando Macabéa passa por
questões mais sérias, Rodrigo S. M. não deixa de disputar o espaço, como
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quando, ao ser diagnosticada tuberculosa, a moça parece ter a chance de ser


olhada com compaixão pelo leitor. No entanto, o sofrimento da moça é
interrompido pela voz do narrador se lamuriando como se fosse ele o mais
afetado pelo mal de que ela sofria: “Sim, estou apaixonado por Macabéa, a
minha querida Maca, apaixonado pela sua feiura e anonimato total, pois ela não
é para ninguém. Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela.” (idem, p.
68). E vai além. Quando parece ser novamente a vez de Macabéa ter o direito
de sofrer e receber o compadecimento do universo, Rodrigo volta a duelar:

Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz


companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no
mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O
pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria
chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo.
(idem, p. 70).

Além disso, outro ponto que chama atenção na curta narrativa de 1977 é
o fato de que Rodrigo S. M. em alguns trechos aproxima sua existência à de uma
entidade maior, de um tipo de deus. Ele utiliza termos como “autor da vida”,
termo bíblico5 relativo a Jesus/Deus, comumente usado no contexto religioso:
“Quanto a mim, autor de uma vida, me dou mal com a repetição: a rotina me
afasta de minhas possíveis novidades.” (idem, p. 41). Em outro momento, o
escritor afirma: “Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se
tivesse teria para quem rezar e seria a salvação.” (idem, p. 33), numa alusão
clara de que ele se compara àquele que não apenas deu vida à Macabéa, mas
pode ser tido como um ser superior – ser esse que nos momentos finais da moça
afirma que irá fazer o possível para que ela não morra, como se tivesse poder
sobre a vida e a morte tal como Deus.
Assim, podemos afirmar que a questão maior na tentativa de encontrar a
temática de A hora da estrela, e a partir disso sua personagem central, é
enxergar que de fato o grande enredo é o exame das relações entre a matéria
da história (e da História) e a forma literária. Como afirma Spinelli (2008, p. 6),

Longe de ser uma discussão centrada na representação dos conteúdos


materiais, A Hora da Estrela é o espaço literário em que a pesquisa
formal, na produção literária de Clarice Lispector, ganha corpo e

5O versículo encontrado no capítulo 3 do Livro de Atos: “Vós matastes o Autor da vida, a quem
Deus ressuscitou dentre os mortos. E nós somos testemunhas deste fato” traz essa informação.
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densidade, de modo maduro e consciente. O leitor do romance não


pode esquecer que não só as personagens de A Hora da Estrela, mas
também o seu narrador são, para Clarice Lispector, figurações de uma
literatura que deseja responder ao seu tempo e à experiência social
que a motivou.

Portanto, o que nos levará ao entendimento do assunto real da obra é a


nossa percepção de que Macabéa apenas transita em suas fúteis questões
existenciais e de relacionamento porque Rodrigo S. M. constrói inter-relações
desses aspectos. E esse tear literário coloca Rodrigo em posição de ser
percebido como protagonista da história, antes da moça. É ele quem faz toda a
obra acontecer, quem cria os caminhos e se torna “catalisador das linhas de
força que integram o projeto literário de Lispector” (SPINELLI, 2008, p. 20). É
por ele que conhecemos Macabéa e é ele quem define o que e o quanto
conhecemos da moça, dando a ele uma posição de privilégio, de personagem
maior, que nos apresenta alguém pelo seu olhar e influenciado por suas próprias
questões. Assim, não é mais Macabéa aquela que conhecemos pela leitura dos
fatos de sua vida, mas sim uma figura desenhada por quem conta história,
Rodrigo S. M. O narrador, que passa então ao cargo de personagem principal,
complexo a ponto de se tornar quase invisível como personagem numa leitura
superficial e talvez apenas um narrador que muito comenta durante o curso do
texto, apresenta-nos mais do que uma história quando a leitura é cuidadosa. E
sua escrita é tão habilidosa que ele nos apresenta mais do que fatos sobre
alguém, mas alinhava a subjetividade do processo da escrita. Neste sentido,
Spinelli (2008, p. 17) defende que a questão central desta novela é menos a
trajetória da nordestina no Rio de Janeiro que “o papel do narrador Rodrigo S.
M. na composição do romance”. E, se voltarmos os olhos para o texto com a
acuidade necessária, vemos que Rodrigo S. M. nos apresenta ele mesmo,
alinhavado nos movimentos de Macabéa. Portanto, o que constrói essa imagem
de Macabéa é a narração realizada com uma linguagem técnica e precisa. E
quem a escreve é o protagonista: profundo, clariceano e enigmático – a
verdadeira estrela – Rodrigo S. M.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise feita nesse trabalho buscou entender o papel das personagens
de A hora da Estrela, desmistificando conclusões superficiais acerca da temática
do romance e analisando o papel das partes envolvidas na obra derradeira de
Lispector. Não só Macabéa e Rodrigo S. M., mas também Clarice e sua
genialidade foram expostas e discutidas, a fim de ampliar os horizontes de leitura
e trazer novas percepções da obra.
Partindo do entendimento das melindrosas características de construção
de uma obra e considerando o papel fundamental de um narrador de excelência,
digno daquele sobre quem narra e construído calculadamente pelo autor, na
verdade Clarice Lispector, vimos que classificar A hora da estrela de modo
generalista, simplista e superficial como um livro que fala sobre mazelas sociais
ou sobre a inferiorização da mulher é reduzir a genialidade de Clarice Lispector
e desperdiçar a oportunidade de enxergar a nova face da figura do narrador na
ficção moderna.
Dessa forma, este estudo procura romper com alguns paradigmas
comuns à leitura do último livro de Lispector e, apoiado em vozes da crítica
clariceana, oferece um novo olhar para as personagens que o constituem,
sobretudo Rodrigo S M., que não pode mais ser visto como mero contador de
histórias. E ainda valida a necessidade do cuidado no exame, como leitores e
apreciadores de Lispector, para que haja o aproveitamento de toda a
engenhosidade da autora.
A hora da estrela é a prova substancial que Clarice nos presenteou com
sua densidade e genialidade em textos que trazem profundidade, senso de forma
e conteúdo àqueles que, como ela, olham além. Clarice olhou Macabéa de forma
tão completa e absurda que a respeitou em sua insignificância e construiu um
personagem digno, complexo, completo para ser a voz pela qual conhecemos a
moça. Rodrigo S. M. é Clarice ao mesmo tempo que não é. É a prova de seu
afastamento e de seu mergulho. É o ponto crucial para que entendamos sua
derradeira obra. Era a A hora da estrela. A hora do fim de Macabéa para os
distraídos. A hora de Clarice para quem sabe ser essa sua composição final.
Mas aqui concluímos que era a hora de Rodrigo S. M., a voz que contando a
história de alguém tão descartável, conta a sua e também a de Clarice. É Rodrigo
S. M. a verdadeira Estrela.
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REFERÊNCIAS

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23

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