Você está na página 1de 11

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE ALAGOAS – CAMPUS I

LICENCIATURA EM LETRAS-PORTUGUÊS

BRENDA GOMES DA SILVA


GUSTAVO DA SILVA TENÓRIO
IZABELLE BEZERRA DA SILVA
MARIANA FEITOSA DE MELO
MARIA FERNANDA DE LIMA SANTOS

RESENHA CRÍTICA

ARAPIRACA – AL
2023
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE ALAGOAS – CAMPUS I
LICENCIATURA EM LETRAS-PORTUGUÊS

RESENHA CRÍTICA
Trabalho requisitado como instrumento
avaliativo na disciplina de Literatura Brasileira I,
ministrada pela professora Eliane Bezerra da Silva
e ofertada pela Universidade Estadual de Alagoas,
Campus I, para fins avaliativos.

ARAPIRACA – AL
2023
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma análise crítica do livro intitulado
"Grande Sertão: Veredas", cuja autoria é atribuída a João Guimarães Rosa. A escolha deste
objeto de análise visa destacar algumas particularidades da obra do autor, por meio de uma
análise dos aspectos que permeiam a narrativa e que influenciam o processo de recepção do
texto pelo leitor.
Considerado um dos maiores escritores da literatura brasileira do século XX, João
Guimarães Rosa é reconhecido pela sua capacidade de transcender fronteiras linguísticas e
culturais através de sua escrita, influenciando outros escritores até os dias atuais. Nasceu em
Cordisburgo, Minas Gerais, no ano de 1908 e formou-se em medicina em 1930, tendo também
participado ativamente da revolução constitucionalista de 1932. Posteriormente, em 1934,
estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde obteve êxito em um concurso e, nos seus momentos de
lazer, iniciou sua dedicação à literatura. Esse impulso criativo era alimentado pela saudade do
interior de Minas Gerais, que sempre ocupou um lugar de destaque em sua obra. Suas autorias
são encontradas na escola literária brasileira modernista, que teve seu ápice nas décadas de
1920 e 1930. Dentro da era moderna, Guimarães Rosa esteve inserido no regionalismo, uma
vertente que tinha como ponto de partida questões culturais e geográficas de uma determinada
região. O consagrado autor do regionalismo universal, é responsável por não só expor os
aspectos regionais do sertão, mas também as condições humanas em que o cercam.
Para fins de fundamentação teórica e metodológica, revisitaremos os estudos de
Chiappini (2002) e Silva (2012). Dessa forma, esta análise é estruturada da seguinte maneira:
Em um primeiro momento traremos alguns apontamentos sobre a obra literária; após isso será
feita algumas considerações retiradas dos estudos de Chiappini sobre o foco narrativo e, por
fim, faremos uma análise crítica da obra estudada com os respaldos teóricos anteriormente
citados.

A OBRA
Grande Sertão: Veredas é um romance brasileiro escrito pelo modernista João
Guimarães Rosa e publicado em 1956. A obra é uma narrativa complexa e densa que explora a
vida no sertão brasileiro, especialmente na região do cerrado de Minas Gerais. O livro é contado
a partir da perspectiva de Riobaldo, um jagunço simples que relata suas experiências, conflitos
e reflexões sobre a vida, o amor, a violência e a busca pelo sentido da existência. O sertanejo
narra sua participação em conflitos entre bandos de jagunços, seu relacionamento com o
misterioso chefe Joca Ramiro, o embate entre forças opostas, assim como o bem e o mal, a luz
e a escuridão. Ao longo da narrativa, Guimarães Rosa utiliza uma linguagem singular, criando
um estilo literário inovador que mistura regionalismos, arcaísmos e inovações linguísticas. É
assim que, com tudo isso, Guimarães traz para a narrativa uma complexidade e riqueza para a
literatura brasileira. Além disso, assuntos como a dualidade humana, a busca pela identidade e
o confronto com o destino.
A história é contada em primeira pessoa pelo personagem principal Riobaldo. Essa
escolha de Guimarães permite ao leitor uma imersão profunda na perspectiva e na psique do
protagonista, ou seja, faz com que se tenha total acesso aos pensamentos do homem. Ele narra
suas memórias, experiências e reflexões, proporcionando uma visão íntima e pessoal da trama.
A estrutura do romance não segue uma sequência linear de fatos, sem um tempo cronológico
corretamente seguido. Riobaldo conta sua história de maneira fragmentada, pulando entre
diferentes momentos de sua vida, num fluxo de pensamentos e palavras – que muitas vezes
genialmente “inventadas” – como uma conversa entre narrador e leitor. Isso faz com que se crie
uma teia de memórias interligadas, dando à história uma sensação de continuidade e
profundidade. Durante a obra, Riobaldo frequentemente deixa o presente de lado e retorna ao
passado para recordar eventos e experiências que moldaram sua vida até aqueles momentos.
São esses “flashbacks” que se tornam essenciais para a compreensão da complexidade do
personagem e sua evolução ao longo da trama. A narrativa assume um tom confessional e
introspectivo, como se Riobaldo estivesse desabafando suas memórias e sentimentos como se
fossem confidências. Essa sensação de confissão deixada pelo texto, cria uma intimidade única
e aproxima o leitor do protagonista.
“O demônio se vertia ali, dentro viaja. Estive dando risada. O demo! Digo ao senhor.”
(Rosa, 1956, p. 220). Como faz em outros momentos do texto, Riobaldo se dirige a um
interlocutor imaginário, ao que chama de “senhor”. Ele fala diretamente com esse interlocutor
ao longo da história, compartilhando suas reflexões e questionamentos mais profundos. Esse
diálogo fictício é uma das características mais distintivas da narrativa. Entretanto, Guimarães
também marca essa obra com uma certa musicalidade em meio ao uso das palavras, com um
ritmo único. Tais palavras são escolhidas não apenas pelo seu significado, mas também pela
sua sonoridade, criando uma experiência de leitura sensorial. Isso talvez seja explicado pela
marca de oralidade presente no discurso de Riobaldo, já que as conversas entre os personagens
são marcadas pela linguagem sertaneja e regionalista. O autor utiliza um estilo de diálogo
autêntico, repleto de regionalismos e neologismos, o que confere autenticidade à narrativa.
Riobaldo é um personagem complexo e multifacetado, cujas reflexões profundas sobre
a vida, a moralidade e a identidade o tornam um dos personagens mais marcantes da literatura
brasileira. Sua jornada de autodescoberta e busca por sentido na existência ressoa com os
leitores, tornando-o um personagem atemporal e universalmente relevante. É profundamente
atormentado por conflitos internos: se vê dividido entre o bem e o mal, a luz e a escuridão, e
isso é exacerbado pela sua participação como jagunço. Sua jornada é uma busca incessante pelo
entendimento de sua própria natureza e pelo significado das escolhas que fez. Ao longo da
narrativa, Riobaldo questiona sua própria identidade. Ele enfrenta dúvidas sobre sua
masculinidade e sexualidade, especialmente em relação a sua atração por Diadorim, o que o
leva a uma profunda reflexão sobre quem ele é. A relação entre os dois é central para a história.
O amor entre eles é uma das principais fontes de conflito e emoção na narrativa. Diadorim
representa tanto uma fonte de redenção quanto uma fonte de angústia para Riobaldo.
Grande Sertão: Veredas não se limita ao personagem principal, Riobaldo. Outros
personagens desempenham papéis essenciais na construção da trama. Hermógenes, por
exemplo, emerge como um dos mais multifacetados da obra e também atua como o principal
antagonista de Riobaldo. Ele lidera o grupo rival dos jagunços e, na perspectiva do protagonista,
personifica o mal em sua forma mais pura. Outro personagem importante para o enredo é
Medeiro Vaz, o melhor amigo de Riobaldo. Ele desempenha um papel significativo na história,
sendo marcado pela bravura e lealdade, contribuindo de maneira crucial para o desenrolar da
trama. Muitos dos personagens de Grande Sertão: Veredas como Bebelo, Joca Ramiro,
Ricardo Reis entre outros, oferecem perspectivas únicas, exibindo uma série de nuances e
motivações que os tornam complexos, ambíguos e contraditórios, conferindo-lhes uma
profundidade humana orbicular, crucial para a narrativa.
Riobaldo é construído numa complexidade moral. Sendo um jagunço, ele comete atos
violentos, mas também é um homem reflexivo que pondera sobre os limites entre o certo e o
errado. Essa dualidade moral o atormenta. Assim, ao longo da narrativa, Riobaldo busca um
entendimento mais profundo da espiritualidade e do divino. Sua relação com a religião e a fé
são temas recorrentes, refletindo sua busca por um sentido mais amplo na vida. Ele passa por
um processo de evolução e amadurecimento ao longo da obra. Sua jornada é marcada por
descobertas, aprendizados e enfrentamentos que o transformam como indivíduo.

O FOCO NARRATIVO E O TEXTO LITERÁRIO


A obra intitulada: "O foco Narrativo" da escritora Ligia Chiappini, consiste em
apresentar os principais pontos necessários e vigentes dentro de uma narrativa. Ademais, a
autora discorre acerca da importância do narrador e do foco narrativo camuflado no universo
literário, para que assim, possamos perceber como a escolha da narrativa é determinante na
compreensão de uma obra narrativa ficcional na vida do leitor.
Baluarte, a análise destes elementos nos leva enquanto leitores a compreender
a posição de um texto e as variedades existentes na narrativa dentro da canonização literária.
Conforme a máxima aristotélica e platônica, as histórias são contadas desde sempre, ou seja,
desde os primórdios da antiguidade da formação humana. Nesse viés, as histórias são
acarretadas de vivências e experiências múltiplas do indivíduo. Por conseguinte, foi dessa forma
que se instruiu a forma e os fatos narrados e o público, assim, abrindo espaço para o narrador
de maneira efetiva.
Historicamente, no decorrer da escrita literária houve complicações entre as
próprias narrativas, e o narrador foi se ocultando nesse momento. Com base no romance,
começamos um novo ciclo, os fatos começam a ser amarrados uns aos outros. Tal gênero
constitui uma relação entre narrador e personagem, que se apresenta diretamente ao leitor, tanto
o seu distanciamento quanto as suas configurações. Objetivamente, a narração não delimita em
contar apenas vivências ou acontecimentos, mas sim, também as questões utópicas e
imaginárias. Dessa forma, narrativa e ficção caminham juntas neste processo. Parafraseando,
Platão irá distinguir que existe uma maneira de narrar o homem e o ser honesto, acompanhando
o mundo real e de quem será sua proferida referência. É indubitável, que seguindo essa lógica
platônica, vivemos em mundo de ideias, desenvolvidos na arte da imitação desse mundo de
ideias. Consoante a Aristóteles, a poesia é uma forma de imitação, porém, é algo diferente do
prisma de Platão, pois ele vê a poesia como formadora de essências da nação.
É mister salientar que Aristóteles e Platão, será parte conjunta da literatura e sua
teorização histórica. Uma das obras que os retomou e os sistematizou é "A Estética", de Hegel,
pois aqui o autor faz diferenciação dos gêneros: épico, lírico e dramático. Hegel, caracteriza o
primeiro como eminentemente objetivo, aqui é tratada uma realidade exterior a ele, a qual não
se envolve com os sentimentos. O segundo ponto, será a lírica, é subjetiva com o conteúdo "a
alma agitada pelos sentimentos", e o que se expõe é o extravasar do sujeito. O terceiro gênero,
o dramático, sendo uma espécie de síntese dos outros dois (objetivo e subjetivo) se constitui
sincronicamente de um desenrolar objetivo e da expressão vibrante da interioridade.
Recapitulando o estudo da epopéia, tendo passado pelo seu desenvolvimento histórico, Hegel
tenta caracterizá-la como uma totalidade unitária, para posteriormente notar sua transformação
no romance. De acordo com Kayser, no romance o narrador fala diretamente com de modo
pessoal com o leitor, em um corpo social dividido entre classes distintas.
Contudo, na epopéia o narrador se distancia do mundo da história narrada, já no
romance ele fica mais íntimo por aproximar das personagens os fatos ao seu redor. Outrossim,
Percy Lubbock nos mostrará a diferença entre mostrar e narrar, sendo isso intrínseco pelo
narrador. Além disso, há diferenças como a cena que, aqui os acontecimentos são mostrados
sem a inferência do narrador, e o sumário que é um panorama dos fatos reunidos. O livro de
Ligia Chiappini, também relata a perspectiva de que substitui o narrador por uma voz
diretamente envolvida no que narra, é uma visão defendida por Anatol Rosenfeld, que disserta
que todo esse processo é presente e sensível pela própria desarticulação da linguagem.
Nessa conjectura, o confronto entre história e ficção continuam levando a
vantagem, pois leva uma realidade posta na máscara do real. É de extrema importância termos
conhecimento dessa contextualização, visto que é sobre os fatos do passado e presente, que se
constitui o tecido social hodierno. A maneira de marcar a organização do enunciado a
enunciação do discurso do historiador, é justamente a presença de signos que remetem a
organização desse discurso ao longo da narrativa. Chiappini, categoriza algumas nomenclaturas
dentro da tipologia de Norman Friedman como: Autor onisciente intruso. Esse narrador coloca-
se como bem desejar dentro da narrativa, podendo-se narrar como se estivesse dentro da
história, em vários cenários ou no centro ou mudando progressivamente e adotando várias
posições no decorrer da narrativa .
Já no "Narrador onisciente neutro", que difere do primeiro porque não dá
instruções ou faz comentários, fala em terceira pessoa, descreve a personagem para o leitor e
tende ao sumário utilizando-se da cena geralmente em momentos de diálogo e ação. A autora
nos apresenta outra categoria: "'Eu" como testemunha". Aqui ele narra em primeira pessoa algo
de que ele participa ou participou, podendo ser o protagonista ou uma personagem secundária.
É o próprio testemunho de alguém, nesse sentido, a personagem narradora é limitada, pois não
tem acesso ao pensamento das outras personagens, podendo somente supor algo, sem certeza
alguma.
Analisando alguns percalços da obra do escritor brasileiro Guimarães Rosa, “Grande
Sertão: Veredas”, é narrado por Riobaldo, que tende a ser o protagonista do enredo e narrador
central. Riobaldo, é um jagunço muito inteligente e muito letrado, que decide fazer uma
autorreflexão sobre sua vida e relatá-la para o Compadre Quelemém. Deste modo, seguindo a
ótica basilar de Chiappini, vemos aqui que o narrador é um, entre os vários elementos com os
quais se articula, organiza e dá sequência lógica na composição das obras com aspecto singular,
em Guimarães Rosa encontramos esses traços por intermédio de Riobaldo.
Portanto, conclui-se que diante dos aspectos supracitados, o cunho central do
livro "O foco Narrativo" de Chiappini, em tese é importante na caracterização do pano de fundo
do foco narrativo e seus elementos, quando se trata de uma obra literária. O narrador delimita a
perspectiva, por meio dele, ficamos sabendo dos acontecimentos no decorrer dos fatos. E é dele
o ângulo pelo qual conhecemos os episódios relatados. Em suma, em Grande Sertão: Veredas
de Guimarães Rosa, o personagem Riobaldo é um narrador que conduz todo o contexto, pois é
um jagunço envolvido numa vingança em nome do líder Joca Ramiro, e que manifesta seu
orgulho com armas. Podemos estabelecer algumas situações do narrador:

"Ah, o que eu agradecia a Deus era ter me emprestado essas vantagens de ser atirador,
por isso me respeitavam." (1978,p.308)

Tal trecho retirado da obra de Rosa, faz alusão a realidade de Riobaldo, a qual se
reconhece como um agente de violência em um mundo governado por forças de acaso traz um
risco. Para tanto, Riobaldo personagem de Guimarães Rosa, irá se enquadrar na quarta
categoria descrita pela autora, sendo o "Narrador protagonista", isso porque, esse narrador
também não é onisciente, não tem acesso ao pensamento e é limitado, pois narra somente suas
percepções e pensamentos, podendo este modificar a distância entre leitor e a história, visto que
a personagem mantém características desse narrador protagonista na trama.

A CRÍTICA
As concepções da autora do artigo crítico “CONTANDO CAUSOS” A NARRATIVA
EM GRANDE SERTÃO VEREDAS DE JOÃO GUIMARÃES ROSA E A COMPETÊNCIA
CRÍTICA DO LEITOR” têm pontos de convergência com os tópicos sobre a narração
discutidos por Ligia Chiappini em seu livro “O Foco Narrativo”. No trabalho, podemos
observar a descrição do narrador protagonista como catalisador para o enriquecimento e a
complexidade da obra, uma vez que ele se torna fundamental para a construção de um texto
enigmático, através de um mundo fictício com sua própria lógica e temporalidade. A crítica
prossegue com suas observações ao descrever a profundidade das narrações de Riobaldo, que
por meio de uma costura íntima e reflexiva, instiga o interesse do leitor pelo texto.
Na obra rosiana Grande sertão: veredas, o personagem Riobaldo, narrador que se
constitui personagem, organiza a forma como os fatos serão narrados e o tempo de duração
deles ao longo da narrativa. Ele decide a forma profunda e duradoura da incógnita de Diadorim
de modo a fazer com que o leitor só descubra a verdade quando ele se depara com ela. Também
é ele quem orienta a ambiguidade do pacto realizado com o diabo devido a imprecisa crença de
existência aliado ao fato de estar bêbado. Contudo, mesmo quando não aponta uma certeza
exata para a concretização do pacto, cria um cenário como se realmente o tivesse ocorrido.
Como aponta Chiappini (2002), “O cenário é ideal para criar a atmosfera própria ao pacto,
recriando todas as condições presentes em outras histórias de enfrentamento do homem com o
demônio: é noite, trata-se de um lugar ermo e de uma encruzilhada. De modo semelhante,
SILVA (2012) comenta sobre esse fato “Mas o importante é que, mesmo que não tenha
ocorrido, o material vai sendo organizado de modo ominoso, que torna naturais as coisas
espantosas”.
Além disso, um dos pontos chave para o destaque da obra Grande Sertão: Veredas,
além do trabalho excepcional com a linguagem, é a maneira peculiar como os fatos narrados
são estruturados pelo narrador protagonista. A narrativa de Riobaldo é embaraçada, refletindo
seus lapsos de memória, sem nos situar início, meio e fim da história. Essa organização
fragmenta o leitor e o aproxima dos fatos narrados pelo protagonista, como afirma SILVA
(2012) “(...) a personagem afirma que a lembrança da vida da gente se guarda em trechos
diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros, acho que nem se misturam”.
Essas concepções extraídas refletem o pressuposto básico que Chiappini (2002) traz na
obra comentada sobre Barthes, na qual desenvolve a ideia de que qualquer ordenação do
discurso pode ser significativa, mesmo que esteja desorganizada. Isso implica que a forma como
as informações são distribuídas em um discurso (seja um texto, uma conversa, etc.) carregam
um significado, em virtude de serem dispostas em determinadas ordens para o alcance de um
significado mais marcado. Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa utiliza a narrativa não
linear como recurso para ilustrar a pluralidade e complexidade do sertão e das experiências
humanas perpetuadas na obra. O protagonista que narra reflete de maneira filosófica sobre os
eventos e suas ações do passado, criando uma sensação de profundidade ao longo da narrativa.
Esses fatos, segundo Silva (2012), “(...) remetem à simbologia do anel de moebius, figura
topológica e elíptica, que nos impressiona pela perfeição e pelo movimento circular. Na
verdade, a narrativa não aponta nem o começo nem o fim, indicando ao mesmo tempo a
totalidade.”
Acerca da categoria narrativa de Narrador, Chiappini (2002), através do conceito
tipológico de Norman Friedman, categoriza o personagem Riobaldo como Narrador
Protagonista. Neste tipo, o autor não tem acesso ao estado mental dos personagens, narra através
de suas percepções e pensamentos. Assim, configura-se como protagonista porque a narrativa
é vista e narrada sob seu ponto de vista. A respeito dessa categoria Machado e Pereira (2001,
77), citado por Bezerra (2012), comentam: “o autor usa a primeira pessoa, como opção forte e
necessária da voz de um narrador – protagonista que lembra e diz. Mas esse narrador, por sua
vez, se divide, e ao mesmo tempo se expande, no outro que ouve, no seu interlocutor. Esse outro
vem a ser, afinal, o leitor”. Além disso, Bezerra ( 2012 ) aprofunda a concepção sobre o
interlocutor na obra rosiana:
(...)há referência a esse outro ao longo de toda a narrativa, apesar de não
haver registro de sua fala, há um monólogo levado para o texto de ficção que sugere
um diálogo, isto é, respostas e perguntas. A personagem narradora apropria-se de um
discurso conativo, onde o apelo à interlocução mantém o ritmo da narrativa.

Do envolvimento do leitor com esse texto é que se percebe as lacunas deixadas pelo
narrador quando tenta tratar sobre algo importante da sua vida. Desse modo, o narrador não diz
explicitamente tudo de que quer tratar, mas conduz, sugere e instiga o leitor a descobrir o que
há além da materialidade da linguagem. A escrita reflexiva e dinâmica rosiana faz o leitor
dialogar com as suas dificuldades e o leva a questionar sua realidade, uma vez que ao ler pode
encontrar dentro do espaço sertanejo o espaço urbano; dentro do espaço da linguagem do sertão,
a linguagem do mundo; dentro do espaço da obra, o seu próprio espaço de leitor.
Toda a leitura desta narrativa é uma experiência individual mediada pelo narrador
protagonista que convida o leitor a se perder nesses espaços para, no fim, poder voltar e
reestruturar, como ele próprio fez em toda a narrativa, que se revela com elementos novos. Por
isso, a obra pode ser um importante veículo de formação do leitor literário, pois ela subverte as
noções do leitor acostumado a histórias dadas, lineares, rápidas, comoventes e de fácil
compreensão. Ao se deparar com esta narrativa, o leitor com o seu horizonte de expectativas
formará um repertório não só externo, como também interno com as informações da obra, e
com isso será capaz de reconhecer seu espaço de colaborador e organizador das fragmentadas
narrações daquele que narra: “o senhor me organiza? Saiba: essas coisas, eu pouco pensei, no
lazer de um momento” (GSV, p. 365).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final deste trabalho foi possível verificar que a obra Grande sertão: veredas
configura o gênero romance em seu modo mais moderno, uma vez que o narrador fala
pessoalmente a um leitor também pessoal. Aspecto que aponta para o já discutido por Chiappini
(2002), pelo conceito de que quando a narrativa se desenvolve na visão prosaica do mundo,
quando o que interessa são os sentimentos dos homens comuns e os acontecimentos cotidianos,
o narrador se torna íntimo e se dirige diretamente ao leitor. Assim, nesta narrativa o narrador-
protagonista narra de modo íntimo a sua história e pressupõe um leitor pessoal que conhece a
realidade narrada e que se encontra e completa a narrativa com sua experiência. Já que a
temática tratada e a matéria que se detém: o homem, a terra e a luta, assim como os problemas
enfrentados e as experiências vividas pelo protagonista, caracteriza toda uma sociedade.
Nesse sentido, a narrativa Grande Sertão: Veredas depende de uma ativa participação
do leitor pelo fato dele ter que participar ativamente do processo de descoberta e de organização.
O que abre o processo da leitura de tal forma que, mesmo que os pedidos de auxílio do narrador
a seu interlocutor fossem um mero jogo retórico, continuaria a existir para o leitor a
possibilidade de estabelecer relações que ultrapassassem os limites determinados pelo narrador
e, desta forma, concretizassem o que o narrador por si só não apresentou. Além disso, é possível
notar que a narrativa individual se constitui, através de seus elementos, num discurso coletivo
a partir da premissa de que as experiências vividas por Riobaldo podem ser comuns a outros
indivíduos.
Outrossim, é possível constatar que quando o leitor preenche a obra que expressa sua
identidade com suas experiências, consegue compreender o seu papel; e ao mesmo tempo,
constrói valores imprescindíveis para a sua criticidade que contribuirão para a sua formação
como bom leitor. Com isso, através desse processo formativo será possível aflorar diferentes
saberes que estes indivíduos já carregam, desenvolver o processo de humanização, e torná-los
seres mais compreensivos e abertos para o outro e para a sociedade como um todo. Assim, é
imprescindível o trabalho com a vivência de leitura literária ao longo da vida, e a compreensão
e importância do papel do leitor no texto literário.

REFERÊNCIAS:

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1989
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

Você também pode gostar