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Não existe história, não existe movimento da história sem conflito; não existe obra
total sem contradição.
ROLAND BARTHES. Escritos sobre teatro.
Ao receber o convite para participar deste colóquio, numa mesa cujo eixo central
gira em torno de “História, ficção e criação”, confesso que não foram poucas as
reflexões e indagações.
Helder Macedo, Lidia Jorge e tantos outros reiteram aquela possibilidade da ficção
propiciar uma via de gnose identitária da nação em relação a si própria, aos seus
Por isso, diante dos caminhos mais diretos e evidentes de tratamento do tema
das rotas esperadas e retomar um texto de que me ocupei já há algum tempo, por conta
das recentes efemérides de 2008, em comemoração aos 200 anos da vinda da família
real portuguesa para o Brasil. E como o Tejo também deságua no Amazonas, ouso
trazer novamente a figura de D. João VI ao palco das discussões acadêmicas que giram
em torno da atuação do fenômeno literário, esperando que, com isto, possa contribuir de
alguma maneira se não para as reflexões suscitadas ao longo do evento, pelo menos,
para que as caravelas bragantinas encontrem nas nossas margens nortenhas um porto
seguro.
razões óbvias que nem precisam aqui ser elencadas, a figura tutelar e praticamente
obras D. João VI: um príncipe entre dois continentes, de Jorge Pedreira e Fernando
Dores Costa (Companhia das Letras, 2008); A música na Côrte de D. João VI, de André
Cardoso (Martins Editora, 2008); A música no Rio de Janeiro no tempo de D. João VI,
de Vasco Mariz (Casa da Palavra, 2008); O cozinheiro do Rei D. João VI, de Hélio
Rui Manuel de Figueiredo Marcos (Almedina, 2008); além de outros títulos que aqui
poderiam ser acrescentados, entre biografias e manifestações literárias nos seus mais
VI, bem como dos membros da Casa de Bragança e das contribuições deixadas por eles,
nada mais justo que trazer à cena uma das representações feitas da imagem do
Helder Costa. Refiro-me, claro está, a D. João VI, obra escrita em 1978 e publicada no
ano seguinte.
cenário artístico português já nos anos de 1960, ainda como estudante do curso de
Direito na Universidade de Coimbra, quando colaborou com o Círculo de Iniciação
1966-1967. Nos anos 70, contribui como fundador do Teatro Operário de Paris e
Stiges, em 1978. Com isto, chama-nos a atenção de que, apesar de seu autor estar
encenadora que iremos aqui tratar, mas do texto dramático em si, instância recriadora da
trajetória de uma das principais figuras da vida política do século XIX português.
ser detectadas, portanto, pelo menos, duas posturas críticas com relação ao objeto
analisado.
sentidos possíveis da noção de teatro e de dramático. Para Claude Rigaut, por exemplo,
Quer isto dizer que, partindo da etimologia da palavra teatro (do grego theatron, ou
seja, “o local onde se vê”), o ensaísta francês entende a expressão “teatro”,
primeiramente, dentro de uma dimensão coletiva, como “um local social onde se passa
no seu sentido individual e subjetivo, ou seja, como “texto dramático, cuja leitura é um
na escrita teatral, o ensaísta francês opta por ancorar no texto escrito, sem contudo,
as duas pontas do conceito, fazendo com que as fronteiras entre o texto e o espetáculo
drama, a ponto de fazer com que o seu conceito assumisse, hoje, “um significado e uma
extensão que não conheceu no passado” (2002, p. 27). Daí que, às interrogações sobre a
contrário, afirmando que o drama moderno representa “(...) uma das formas mais livres
D. João VI como um exemplo possível de drama moderno, que propomos nos debruçar
sobre o texto de Helder Costa e tentar, a partir dele, pontuar algumas questões ali
encenadas pelo seu autor. Fica claro que a leitura aqui efetuada pretende recuperar o
texto e não se quer, portanto, uma crítica da performance do grupo “A Barraca”, quando
das duas representações que aqui fizeram da referida peça (1980 e 2000).
Num primeiro olhar, com a trama contextualizada em fins do século XVIII e
início do século XIX, a peça traz à tona o período conturbado dos embates marítimos e
neutra de Portugal, sob a condução da Casa de Bragança. Dizer, portanto, que o texto de
Helder Costa investe numa releitura da história portuguesa com um olhar crítico do
presente sobre o passado, a fim de tirar proveito para construir um projeto futuro, é
influxo de temáticas, gêneros e inovações, já por demais indicadas pela crítica, a peça
de Helder Costa navega por aquelas correntes em que a ficção se vê atravessada “pela
presente crítico e perspectivante” (SEIXO, 1986, p. 23). Ora, se D. João VI bem pode
pelo tempo histórico e político que estava a ser vivido, no crepúsculo da ditadura”
(REIS, 2004, p. 18-19), portanto, com uma nítida aposta na releitura de um passado
cultural português, munido de um olhar crítico e, até por vezes, reticente e com
dimensões trágicas, onde também faria coro com Que farei com este livro? (1980), de
José Saramago, por exemplo, não se pode esquecer que a peça de Helder Costa parece
ser um eco de outras que também investiram numa empreitada revisionista similar,
tornando-se, portanto, uma aventura dramática (ainda que produzida no calor do pós-74)
de Natália Correia.
Tomado como ponto de partida do drama de Helder Costa, D. João figura como
a ponta do novelo entre as cenas dos dois grandes blocos narrativos. Assim, de sua
juventude à sua morte, o leitor se depara com dois atos: o primeiro, desde o seu tempo
como Infante até a fuga para o Brasil, e o segundo, do seu estabelecimento no Rio de
subjacentes à figura do monarca passam pelo crivo seletivo do autor, sem, contudo,
fidelidade e os meandros que envolvem a morte de D. João VI são alguns dos eventos
estão inseridas.
personagens e não na própria representação da cena, o que certamente iria requerer todo
fazendo com que ela perpasse as malhas dos discursos e atue mais sobre as atitudes, os
das cenas. Aliás, esse sintetismo da linguagem dramática, essa economia da exposição
temporal na representação ficcional parecem ser recursos bem caros ao autor de D. João
VI, já que em toda a peça ele não abre mão de os utilizar. Talvez, por isso, Helder Costa
Um deles, com certeza, parece ser a forma desmistificadora com que pinta o
propõe com o seu D. João não só uma releitura crítica do legado cultural setecentista e
oitocentista português, mas uma visão ácida do seu contexto político, no pós-74. Daí a
sexual com uma jovem camponesa, preparada pelos padres, pouco antes de estar na
cena “D. João aprende uma parte da vida” (Ibidem, p. 12) e a rubrica final, cuja
dramático: “(D. João, de gatas, tenta apanhá-la. Os padres apertam o cerco. A rapariga
Optando pela mordacidade na sua representação, Helder Costa cria a sua forma
sob a égide salazarista, mas pela desconstrução irônica dos seus membros. Assim, D.
Miguel é o braço direito e pau mandado de D. Carlota Joaquina, D. Pedro é o filho que
se levanta contra D. João VI e lhe tira “a parte mais importante da monarquia” (Ibidem,
p. 97), os padres e políticos todos são envoltos num clima de conluio e interesses
partidários.
passa, nesse sentido, pelo viés da ironia, fazendo com que a peça D. João VI constitua
uma espécie de paródia, de “canto ao longo de” (HUTCHEON, 1989, p. 48), dos
discursos oficiais vigentes até bem pouco tempo antes de sua escrita e de sua realização
brasileiro,
uma bagagem cultural imposta durante anos de ditadura, num movimento contra-
cuja única função parecia a de, pretensiosamente, tentar dar conta de uma “verdade”
ao longo das décadas seguintes. Nela, chama o seu autor o capítulo dedicado ao início
Diabo à solta”:
Ora, de certa forma, já não estaria aqui Helder Costa antecipando aquela lição
salutar de que tão bem nos fala Teresa Cerdeira, no sentido de que a História não mais
pode ser encarada como um “todo acabado e contínuo” mas como “tecido rendado onde
Neste sentido, o autor dramaturgo português mais acentua a sua inadequação aos
rigores de uma história composta por seres impolutos, quase semi-deuses na sua
português. Se, por um lado, algumas representações são criadas pelo viés confirmador
Constitucional, por exemplo, por outro, a imagem da Imperatriz não passa de forma
esposa do monarca: “D. J – Essa criança não pode ser minha, porque eu não tenho o
menor contato com a sra. D. Carlota Joaquina há, pelo menos, dois anos. Talvez seja do
Marquês de Marialva, desse João dos Santos que ela paga bem, do homem das
estrebarias dessa Corte particular de Queluz...” (Ibidem, p. 38). Mais tarde, na cena que
leva o seu nome, no ato II, a própria personagem reafirma a fala do protagonista num
discurso intempestivo: “D. C. J – (...) Rainha, e não esposa oficial de um cobarde como
vês. Cobarde a quem desprezo tanto que até lhe dou todos os anos um filho dos homens
de D. João VI, D. Carlota Joaquina compõe o outro lado da moeda dessa recriação da
vida privada na corte portuguesa, tanto que, enquanto D. João VI presta o seu juramento
“a tremer, e com uma voz incompreensível e quase inaudível”, largando o livro dos
porque fiz um sistema de não jurar em coisa nenhuma. Isto não é por soberba, nem por
ser contra as Cortes. (...) Fiz este sistema de não jurar, e espero não o quebrar nunca.”
(Ibidem, p. 80).
forças contrapostas, então, podemos afirmar que a proposta de Helder Costa estabelece
uma ressonância direta com a de Roland Barthes, posto que a sua concepção histórica
herança cultural deixada por décadas de ditadura salazarista que Helder Costa parece
A idéia da minha peça tem a ver com o seguinte: um Poder que não é popular
(aceite pelo Povo), e que não é Patriótico (Nacional e Independente) está condenado
à auto-destruição. A dinâmica da História demonstra que todos os Poderes
intermédios e indefinidos, hesitantes e indecisos, cavam a própria sepultura.
daquilo que elas representaram no repertório da história portuguesa, mas se firma como
completamente fora dos padrões estabelecidos até bem pouco tempo, antes da escrita da
peça. Isto quer dizer que o gesto desconstrutor não incide sobre as imagens de D. João
VI, D. Carlos Joaquina ou seus filhos, mas sobre a visão que deles fizeram os discursos
encontra-se bem próxima daquilo que Maria Alzira Seixo designou de “as falas do
epocal, para se tornar (...) na voz que acompanha, não só para relembrar, como para
emendar, ou alterar e mesmo deformar, os possíveis de aparência das coisas.” (SEIXO,
2002, p. 37).
reflexivo que põe em xeque o comodismo dos ouvintes e dos leitores e joga-os num
cenário, que longe está de ser gratuito ou ingênuo, com intensos questionamentos e
privada real e as interroga, interrogando com elas a si próprio e também o seu leitor.
agentes, parece fazer coro com o pensamento de Jean-Pierre Sarrazac, posto que,
formas antigas e, por outro, em criar novas formas” (2001, p. 36). Com esta outra forma
Helder Costa consegue recriar o universo da Côrte no seu universo do teatro. A despeito
BARTHES, Roland. Escritos sobre teatro. Trad.: Mário Laranjeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BRECHT, Bertold. Teatro dialético. Ensaios. Sel. e Introd.: Luiz Carlos Maciel. Rio de
Caminho, 2000.
século XX. Trad.: Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989.
REIS, Carlos. A ficção portuguesa entre a Revolução e o fim do século. In: Scripta.
Almedina, 1980.