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PINTURA E MÚSICA EM CONFLUÊNCIA: “O

RETRATO DE CAMÕES”, DE FREDERICO


LOURENÇO

Prof. Dr. Jorge Vicente Valentim


(UFSCar)
 Poeta, ficcionista,
professor, tradutor e
ensaísta;
 Profundo conhecedor
da Filosofia Grega e
da Literatura
Clássica;
 A proposta platônica
de amor entre pessoas
do mesmo sexo: não se
trata de crime, pecado
ou doença!
 Ponto de partida: a construção do narrador na ficção de Frederico
Lourenço – autodiegético, a partir do momento em que se coloca como
uma figura central na trama e seu ponto de vista é determinante para
sabermos que tipo de narrativa ele vai tecer:
 Levando em consideração os dois tipos de narradores, descritos por
Walter Benjamin (1982), em qual deles poderíamos situar o de Frederico
Lourenço? O “marinheiro comerciante” ou o “camponês sedentário”?
“É-me impossível andar em Lisboa sem pensar no que foi ou, quando
muito, no que terá sido. Além do mais, tenho o dom, que tem de ser
controlado com absoluta severidade, de me transferir fisicamente para o
Passado. Já me ajoelhei aos pés de Frei Nuno de Santa Maria no claustro
do Convento do Carmo. Santo António já me afagou a testa. Já fui capaz de
me transferir para um auto-de-fé no Rossio, a menos de um metro dos
supliciados pela Inquisição. Estive em Belém e vi a agonia dos Távoras.
Mas todos estes encontros foram o resultado de transcorporalizações
malogradas. O meu sonho foi sempre um e o mesmo: transcorporalizar-me
para junto de Camões.
Ora no outro dia, vinha eu muito emocionado de um almoço no restaurante
‘Bica do Sapato’, quando, junto à Ermida de Nossa Senhora dos Remédios
em Alfama, consegui” (LOURENÇO, 2005, p. 215);
RESTAURANTE BICA DO SAPATO, EM ALFAMA
 Sensorialidade: captação visual, auditiva,
gustativa, olfativa e tátil!
 “Transcorporalização dos narradores” numa
espécie de “escrita metamórfica” (RIBEIRO,
2008);
 Camões como personagem ficcional – não é uma
novidade:
“Camões, grande Camões”, de Bocage;
“Camões”, de Almeida Garrett;
“Super flumina Babilonis”, de Jorge de Sena;
“Erros meus, má fortuna, amor ardente”, de
Natália Correia;
“Que farei com este livro”, de José Saramago;
“Os naufrágios de Camões”, de Mário Cláudio;
“Estamos sentados um à frente do outro, em
silêncio. Acabou de nos ser servido um refresco de
vinho tinto com rodelas de pêssego. Luis Vaz bebe
tudo de um trago. Eu, mais pusilânime, vou
sorvendo pequenos goles. Um problema que sempre
se me coloca quando me transfiro corporalmente
para o Passado é, por um lado, a culinária e, por
outro, aquilo que, em tempos idos, passa por
“vinho”. Este é intragável. E as rodelas de pêssego
de nada servem para lhe disfarçar o gosto. Outro
problema ainda, claro está, são os cheiros. Camões
cheira abominavelmente mal” (LOURENÇO, 2005,
p. 218-219; grifos meus).
 Singularidade no tratamento dado por Frederico Lourenço – dois
aspectos principais:
 1º - diálogo interartes com a pintura e a música;
 2º - a recomposição do poeta (“Luis Vaz” e nunca Luís de Camões)
a partir do homoerotismo;
 O diálogo interartes – atitudes do narrador em captar a partir dos
sentidos visuais, auditivos e olfativos:
“É um rapaz de gibão preto e camisa branca – ‘rapaz’, isto é, em
termos actuais: em termos quinhentistas, é um senhor. Vêem-me à
cabeça os versos de João Miguel Fernandes Jorge nos Castelos I a
XXXV: “o jovem / tocava alaúde, viril metal das cordas, interminável
som”. É um dos gémeos, filhos do conde. Tenho dificuldade em
distinguí-los: será o D. Antão? Ou o D. Fernão? Dele não se pode
dizer, infelizmente, como do alaudista de J.M.F.J., que ‘o sexo
parecia rebentar o calção’. Seja como for, é o que não vai seguir para
África, pois a condessa só consentiu que um deles fosse se o outro
ficasse. Tiraram à sorte e este ficou” (LOURENÇO, 2005, p. 220).
 Simão Vasques (o pintor reincorporado pelo
narrador metamórfico) e os gêmeos D. Antão e D.
Fernão – o que os diferencia?
 “O guardame las vacas” – D. Fernão toca em Fá e
D. Antão em Sol:
“O vento volta a mudar. É novamente o cheiro a
peixe que se sobrepõe a tudo. De dentro da sala
chegam-nos acordes dedilhados de vilhuela. Volto a
cabeça para ver quem está a tocar. [...] Pelos
acordes de vilhuela, glosando vagamente O
guardame las Vacas, já sei qual dos gémeos é. D.
Fernão só sabe tocar Las Vacas no tom de fá, ao
passo que D. Antão só sabe as Vacas em sol. Quem
está, portanto, a tocar é D. Fernão” (LOURENÇO,
2005, p. 219-220).
 Recomposição da Lisboa seiscentista e de Camões
(época, história, espaço, tempo e personagens):
visão, audição, paladar e olfato;
 Personagens sob o crivo homoerótico: Simão
Vasques, o pintor que se sente atraído pelo seu
modelo; Luiz Vaz, o poeta que está sendo pintado,
apaixonado por um dos gêmios: D. Antão ou D.
Fernão?
“Isto porque, depois de uma chorosa despedida a D. Antão, quando
ele reembarca, Simão Vasques é pego de surpresa ao contemplar uma
cena digna de um quadro: Dou meia volta e saio para o jardim. Está
fresco agora. Os jardineiros estão a terminar a rega e chegam-me às
narinas os variados aromas a terra molhada, a buxo húmido, a rosas. No
canteiro central há arbustos da rosa malhada de cereja e marfim, a
chamada rosa mundi, Rosa do Mundo. O perfume é inebriante.
Discirno um vulto junto às sebes do outro lado. Depois chegam-me
acordes de vilhuela, O guardame las Vacas. Vejo que o vulto é de Luis
Vaz, inclinado sobre D. Fernão, que está sentado num banco de pedra, a
dedilhar o instrumento. À medida que me vou aproximando deles, dou-
me conta de duas coisas: as glosas estão a ser tocadas no tom de sol. Em
sol?! Não foi portanto D. Antão que se despediu aos beijos do gémeo e
de Camões, mas D. Fernão...?
A outra coisa de que me dou conta tem que ver com o que se passa lá
fora: populares a festejarem de antemão a derrota da Mourama em
África. Muda o vento e o jardim é invadido pelo cheiro a sardinhas
assadas. Com um misto de pena e alívio, transcorporalizo-me de novo”
(LOURENÇO, 2005, p. 226).
 “O retrato de Camões” – 2 possibilidades;
 O pintado por Simão Vasques – resultado das
artes plásticas da época;
 O conto de Frederico Lourenço que despista o
leitor do Camões histórico – “Luis Vaz”;
 Arte + Amor = Prazer estético!

 O visual da pintura + o sonoro da vilhuela = o


ficcional na reconstrução da Lisboa e do Camões
seiscentistas;
 O tipo de música contribui para a reconstrução
ficcional do cenário do século XVI:

[https://www.youtube.com/watch?v=EuFucJ9O7Bg]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 KOBLUCKA, Anna M. “Was Camões gay? Queering the
Portuguese Literary Canon”. Paper presented at the annual
convention of the Modern Language Association, Chicago, 28th
December 2007. Disponível em
https://www.academia.edu/5165187/Was_Cam%C3%B5es_Gay_Q
ueering_the_Portuguese_Literary_Canon. Consulta em 02 de
outubro de 2022.
 LOURENÇO, Frederico. A formosa pintura do mundo. Lisboa:
Cotovia, 2005.
 __________. Pode um desejo imenso. Lisboa: Cotovia, 2006.
 PITTA, Eduardo. Fractura. A condição homossexual na literatura
portuguesa contemporânea. Lisboa: Angelus Novus, 2003.
 RIBEIRO, Eunice. Escritas metamórficas: sobre a ficção de
Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2008.

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