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DA FICÇÃO COMO ESPAÇO DE CREDIBILIDADES (IM)POSSÍVEIS OU

SOBRE OS CONTOS DE ANDRÉ BALBO,


EM AGORA POSSO ACREDITAR EM UNICÓRNIOS (2021)

Jorge Vicente Valentim1


A tela do notebook, assim como a da tv, assim como qualquer ecrã,
não intermediava os fenômenos, antes os isolava, como uma mesa de
jantar, enganosa por permitir que se reparta a comida, mantém a
distância milenar entre os comensais de uma família. A toda
transmissão importa um falseamento da realidade, e por isso
qualquer fato, uma vez narrado, flui no sentido da ficção; a verdade
só existe no intervalo.
[André Balbo. Agora posso acreditar em unicórnios, p. 61.]

Numa de suas conferências, em 1978, ao debater sobre os diferentes níveis de


realidade na literatura, o crítico e escritor italiano Ítalo Calvino (2009) defende a
convivência desses múltiplos e distintos níveis de realidade e aposta na existência e na
sobrevivência de obras literárias a partir de uma conscientização dessas distinções, seja
numa apresentação separada entre eles, seja numa disposição fundida e misturada, a
ponto de se encontrar “uma harmonia entre suas contradições ou formando uma mistura
explosiva” (CALVINO, 2009, p. 369).
Se alguns textos deixam esses níveis de realidade visíveis e distinguíveis,
quando personagens de naturezas diversas e de classes e origens mais diferentes
possíveis estabelecem as discrepâncias e/ou as similitudes e aproximações, não se pode
esquecer a capacidade que determinadas obras tem de se voltar para sua arquitetura
interna e dar pistas ou mesmo explicitar os seus principais mecanismos de construção.
Como bem alerta Calvino, “em todas épocas e em todas as literaturas encontramos obras
que, em certo instante, precipitam-se sobre si mesmas, observam a si próprias no
momento em que são criadas, tomam consciência dos materiais com que são
construídas” (CALVINO, 2009, p. 370).
Na verdade, essa proposta de Calvino sugere dois caminhos de reflexão sobre a
matéria literária, sobretudo, quando ela é aplicada à produção ficcional contemporânea.
De um lado, as diferenças nucleares desses níveis de realidade reivindicam a

1
Professor Associado de Literaturas de Língua Portuguesa (Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas
de Língua Portuguesa) do Departamento de Letras e Professor Permanente do Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Literatura da UFSCar. Vice-Presidente da Associação Brasileira de Professores
de Literatura Portuguesa (ABRAPLIP), gestões 2016-2017 e 2020-2021. Finalista do Prêmio Jabuti 2017,
com a obra “Corpo no outro corpo”: homoerotismo na narrativa portuguesa contemporânea (São Carlos:
EdUFSCar, 2016).
permanência de uma matriz basilar encontrada na articulação de um realismo, entendido
aqui não como um movimento, mas como uma “forma de representar ordens
diversificadas da experiência humana, sobretudo dos setores pobres da população,
envolvidos em questões prementes de vivência e sobrevivência, em uma sociedade de
consumo” (PELLEGRINI, 2019, p. 222). E de outro, essa propriedade de captar as
diversas camadas do contexto circundante não exclui a literatura de escrutinar a si
própria e desvendar os seus instrumentos de criação ao leitor, naquele delicioso
exercício metaficcional, enquanto “fenômeno estético autorreferente através do qual a
ficção duplica-se por dentro, falando de si mesma ou contendo a si mesma”
(BERNARDO, 2010, p. 9).
Acredito que essa pequena inferência introdutória seja pertinente e sirva de
suporte para pensar o mais novo livro de contos do jovem escritor paulista André Balbo:
Agora posso acreditar em unicórnios (Reformatório, 2021). Pertencente a uma geração
potente e representativa da ficção brasileira das últimas décadas, onde também podemos
acrescentar os nomes de Aline Bei, Cristina Judar, Felipe Franco Munhoz, Jorge Ialanji
Filholini, Matheus Peleteiro, Moacir Calarga, dentre outro(a)s, André Balbo vem se
destacando por uma consistente produção contística, confirmada já nos dois livros
anteriores: Estórias autênticas. Importunâncias do engenho alheio, 2017; Eu queria que
este livro tivesse orelhas, 2018.
Tal como o próprio título desta nova publicação sugere, parece realmente haver
níveis diferentes de realidade (CALVINO, 2009), na medida em que a partícula
temporal (Agora) indica a existência de um período anterior, em que a credibilidade em
figuras mais propensas a cenários míticos seriam inimagináveis. Mas, para além dessas
esferas temporais distintas (o antes e o agora, nomeado na capa frontal da obra), o nível
de realidade do momento atual surge marcado pela possibilidade de crença em
unicórnios, como se estes, agora, existissem de forma efetiva no mundo e no tempo
presentes.
Na verdade, tudo não passa de um bem sucedido recurso tecido ao longo dos dez
contos que compõem a coletânea. Neles, há uma série de universos fictícios variados e
distintos, com amigos inexistentes inventados pela imaginação humana (como em
“Cosme, o menino de cima”), com animais aprisionados pelas mãos de algumas
personagens com seus diferentes objetivos (tal como ocorre em “Suzumebachi” e “Tela
quente”) ou, ainda, com seres míticos enredados em tramas psicodélicas e com fortes
tonalidades surrealistas (dentre os quais “A estrutura do ovo” é um exemplo bem
acabado), e intrigas exacerbadamente ambíguas, a ponto de desestabilizar as fronteiras
entre realidade, sonho e delírio (como em “Vestígios de equinócio” e “Chicória”).
Todos esses diferentes níveis de realidade passam a frequentar os cenários efabulados e
ganham uma explicação plausível para a sua permanência ao longo das narrativas.
Reunidas, todas essas componentes sugerem um hábito muito peculiar dos narradores
de André Balbo, que em nada se difere, aliás, da curiosidade da menina Melissa,
protagonista de “Suzumebachi”, pois, tal como sua criatura, o criador também aparenta
gostar de “capturar vespas e marimbondos num pote plástico” (BALBO, 2021, p. 17), e
ali as deixar até as liberar em definitivo em cada uma das tramas.
Entretanto, não deve o leitor cair na armadilha e achar que todos os textos
trazem um unicórnio, materializado na figura consagrada do equino com um chifre no
centro da cabeça, ou que, apesar do aparente convite no anúncio do título, todos eles
obrigatoriamente constituem uma espécie de bestiário. Aquele unicórnio anunciado no
título nem sempre estará às vistas explicitamente. Na verdade, já a partir do início,
Balbo convida o seu leitor a procurar, a escrutinar, a vasculhar, quase como um detetive,
as possibilidades de crença nesses animais que, por mais mágicos que possam parecer,
aparentam habitar o nosso cotidiano sob as mais diferentes formas e matizes, sem nos
darmos conta deles.
Nesse sentido, gosto de pensar que, se em Estórias autênticas (2017), as
recorrências imagéticas de animais sugerem um apego emulador do gênero bestiário, em
Agora posso acreditar em unicórnios (2021), esta aparente idéia de um bestiário
aparece muito mais como uma sugestão sutil ou um convite de entrada para o leitor ao
longo das narrativas, sobretudo pela enumeração distinta com que certos animais
irrompem nas tramas. Vejamos: as vespas e os marimbondos confinados “num pote de
plástico vedado, sob o sol, até que ficassem secos de tão mortos” (BALBO, 2021, p. 16-
17), em “Suzumebachi”; os percevejos presos dentro de uma garrafa com o “cheiro forte
que subia machucava o fundo dos olhos e se incutia no pescoço e nas idéias” (BALBO,
2021, p. 25), em “Cosme, o menino de cima”; o rato sem rabo afogado dentro de um
aquário, com seu “chio aflitivo que reverberou no vidro, como uma bexiga muito cheia
vazando por um furo sutil” (BALBO, 2021, p. 66), em “Tela quente”; a mosca
esmagada “no fundo da xícara com o indicador esquerdo, sumariando aquele término
tão certo quanto estranho” (BALBO, 2021, p. 77), pelo(a) protagonista Ariel, de
“Enquanto os dedos”; um imaginário “cavalo no céu” (BALBO, 2021, p. 95),
vislumbrado pelo jovem pescador, personagem de “Vestígios de equinócio”; o cavalo
de “mugido grave, [...] pelagem branca, olhos azuis” e com “um afilado corno na testa,
branco na base, preto no meio e vermelho na ponta” (BALBO, 2021, p. 105), um
unicórnio, enfim, em “A estrutura do ovo”; a formiga esmagada na parede que, com o
“abdome, mesmo rompido, mantinha a crocância anterior e a cabeça, arrebitada pelo
rigor do dedo grosso, parecia um pequeno prego” (BALBO, 2021, p. 127), em “A
formiga”; e, por fim, o animal título da coletânea, muito mais sugerido como efeito
colateral da ingestão de “um tipo de LSD conhecido como UNI”, por um duplo motivo,
posto que “os selos de uma cartela inteira compunham o desenho de um unicórnio,
embora alguns usuários jurassem que tinha esse nome porque, em suas alucinações
coletivas, se viam correndo por uma estrada arco-íris infinita” (BALBO, 2021, p. 139-
140).
Diante desses exemplos (em quantidade muito menor, se comparados aos títulos
anteriores do autor), vale ressaltar que, se no seu primeiro livro, é possível pressentir os
ecos e as reverberações de nomes consagrados no elenco da categoria conto (e, em
especial, ao gênero dedicado aos bestiários) ao longo de suas 21 narrativas – Borges,
Calvino, Kafka, Rosa, além de Lispector e Telles, apenas para ficar nos mais flagrantes
–, em Agora posso acreditar em unicórnios, André Balbo consegue alcançar uma
dicção própria, uma autonomia nos fios condutores das suas efabulações, sem se deixar
perseguir ou ser assombrado pelas vozes fantasmáticas do(a)s seus/suas autore(a)s de
eleição. Na minha perspectiva, ele não as abandona ou as esquece, muito pelo contrário,
afinal, pode-se dizer que conservar uma memória cultural das suas leituras constitui um
dos gestos marcantes no projeto ficcional do jovem escritor. Poder-se-ia até falar, de
repente, de uma espécie mesmo de exercício de emulação. No entanto, as suas
construções narrativas ultrapassam essa rivalidade, na medida em que aquelas
ressonâncias intertextuais se consolidam já a partir de uma refinada poética paratextual2.

2
O conceito de paratexto surge, aqui, como uma das linhas possíveis para se pensar a novíssima ficção
contemporânea de língua portuguesa (aquela produzida a partir dos anos 2000, ou seja, nos últimos 21
anos), e, em especial, a poética contística de André Balbo. Muitas vezes mal compreendido e relegado a
um espaço menos importante, esse conjunto textual sui generis constitui uma ferramenta relevante na
construção da obra literária, tal como definiu Gérard Genette: “A obra literária consiste exaustiva ou
essencialmente, em um texto, isto é (definição mínima), em uma sequência mais ou menos longa de
enunciados verbais mais ou menos plenos de significação. Contudo, esse texto raramente se apresenta
em estado nu, sem o reforço e o acompanhamento de certo número de produções, verbais ou não, como
um nome de autor, um título, um prefácio, ilustrações, que nunca sabemos se devemos ou não
considerar parte dele, mas que, em todo caso, o cercam e o prolongam, exatamente para apresentá-lo,
no sentido habitual do verbo, mas também em seu sentido mais amplo: para torná-lo presente, para
garantir sua presença no mundo, sua “recepção” e seu consumo, sob a forma, pelo menos hoje, de um
livro. Esse acompanhamento, de extensão e aparência variáveis, constitui o que em outro lugar batizei
de paratexto da obra, conforme o sentido às vezes ambiguo desse prefixo em francês (...). Assim, para
Quero com isto dizer que, ao contrário de Estórias autênticas (2017), em Agora posso
acreditar em unicórnios (2021), além das duas citações iniciais (Virginia Woolf e
William Shakespeare), todos os contos possuem epígrafes, anunciando um jogo muito
instigante entre as promessas anunciadas nas instâncias epigráficas e o cumprimento
destas na efabulação em sequência. Não me parece gratuito, portanto, o fato de o autor
escolher de forma minuciosa os nomes de Gustavo Pacheco, Lewis Caroll, Lilian
Aquino, Ryunosuke Akutagawa, Katherine Mansfield, Lieh Tsé, Murilo Rubião,
Manuel Mujica Láinez, Silvina Ocampo e Lady Gaga, respectivamente.
São 10 citações distintas, uma para cada conto da coletânea. Essa sensibilidade
em não repetir nomes pode até parecer um dado simplório, mas, no meu entender,
revela um tratamento cuidadoso na matéria literária, na medida em que não só exibe um
repertório eclético e refinado do seu conjunto de leituras, mas também incita e seduz o
leitor a procurar as ligações e os diálogos possíveis entre os trechos citados, seus/suas
respectivo(a)s autore(a)s e as tramas em cada uma das efabulações. Daí, a minha
inferência em sublinhar, a partir dessa elaborada poética paratextual em conjunto com a
diversidade desenvolvida ao longo dos dez contos, um nítido amadurecimento na escrita
de André Balbo e a forma inteligente e sensível com que consegue descobrir e
consolidar a sua própria voz, sem deixar de referenciar/reverenciar aquele(a)s que
considera como seus iniciadores.
Para além desse detalhe, outro que não deve passar de forma despercebida pelo
leitor se encontra na materialidade do livro. O trabalho visual na capa frontal e na
contracapa (com uma única imagem, reunindo três diferentes unicórnios, levemente
distorcidos como se fossem reflexos numa superfície aquática), além dos outros sete
desenhos do mesmo animal mítico, em frágeis, mas marcantes, esculturas de papel em
origami, demonstra uma preocupação na completude da obra, feita, no meu entender, de
forma proposital, através da construção de um pacto de verossimilhança, convidando o
leitor a compartilhar e a acreditar nos unicórnios, independentemente da forma como
eles surjam ou se deixem visualizar.
Na esteira, portanto, daquela “suspensão da incredulidade” (CALVINO, 2009, p.
372), de Coleridge, e em consonância com a proposta de Ítalo Calvino, em que “cada
um dos diversos níveis pode corresponder um nível de credibilidade diferente”
(CALVINO, 2009, p. 374), fico a me interrogar se os unicórnios anunciados no título

nós o paratexto é aquilo por meio do qual um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores,
e, de maneira mais geral, ao público” (GENETTE, 2009, p. 9).
serão apenas os imaginados e criados por André Balbo, ou se não seriam também
aqueles concretizados no conjunto imagético gráfico (nesse caso, executado pelo
Estúdio Risco) e no produto final chancelado pela Editora Reformatório?
Assumindo, enquanto leitor, o pacto desses diferentes níveis de realidade,
estabelecido em cada uma das tramas, gosto de pensar que é possível, ainda que apenas
momentaneamente, acreditar em unicórnios, sejam eles visíveis ou não, ou
(im)possíveis em termos de credibilidade. E sem querer roubar o prazer da leitura ao
leitor, há dois detalhes muito singulares para os quais faço questão de chamar a atenção.
O primeiro deles diz respeito à riqueza dos narradores de André Balbo.
Colados às situações mais imediatas ou mesmo à revelação de naturezas
marcadas pela crueldade e pela inexplicação de sentido na vivência de algumas
personagens, os narradores de André Balbo surgem como autênticos deambuladores
dentro de paisagens urbanas inóspitas: “A cidade é pedra, morna, vazia. A chave para
não ser infeliz é não buscar significados, apenas manter-se absorto em coisas sem
sentido e, repassado o tempo, pararmos de escarrar dióxido de carbono” (BALBO,
2021, p. 35), alerta-nos a voz narrativa de “A última marcha noturna”. Neste conto,
perscrutando as perspectivas de Sebastian, um motorista de aplicativo, e de André, um
professor de Letras que já circulou pelo mundo e por várias cidades do Estado de São
Paulo (espécie de reflexo especular da figura autoral?), o narrador vai percebendo não
só a solidão das personagens, mas a sua própria condição de vazio e de distanciamento,
não sem estabelecer um vínculo de sintonia com o leitor, ao manifestar o pacto
estabelecido na construção ficcional e o seu papel neste jogo, que longe está de ser
inocente ou gratuito:
Não, Sebastian não percebe, e eu, complacente, incluí em sua
ambientação diversos indícios, deitei pistas além das vias para que
pudesse entender que sou eu quem detém a câmera, sou eu quem
mantém aberto o obturador. Ele não se dá conta, mas eu já disse no
começo: é algo que aprendemos sem precisar assistir à janela indiscreta
de Hitchcock, ao Gyllenhaal sociopata de Nightcrawler ou
simplesmente às exibições do Datena; bastam os episódios mais
corriqueiros da vida, basta, por assim dizer, uma mudança de posição,
ou um ajuste de foco, como quando se está na fila do drive-thru do
McDonald's da avenida Angélica, ou como agora, a poucos metros da
minha casa... (BALBO, 2021, p. 505-51).

E se, em “A última marcha noturna”, as ruas dos bairros de Higienópolis e da


Consolação passam pelos vidros do carro em movimento, configurando um cenário
agitado e aparentemente monotemático, por outro lado, o inusitado surge nas mesas
corriqueiras de bares, tal como ocorre com o narrador autodiegético de “A estrutura do
ovo” e a sua tentativa de fazer com que o unicórnio preso numa jaula nos fundos de um
restaurante tocasse uma pedra e a transformasse em ovo, para que, enfim, pudesse ter o
ingrediente no pedido do seu sanduíche diário. Não por acaso, este texto tem como
epígrafe um trecho do conto “Os três nomes de Godofredo”, de O ex-mágico (1947),
obra de estréia do escritor mineiro Murilo Rubião, infelizmente, esquecido e relegado a
um silêncio inexplicável.
É preciso, portanto, ficar atento às vozes narrativas que assumem a perspectiva,
conduzem a trama, criam diferentes níveis de realidade e guiam o leitor pela mão, até
porque, longe de serem idênticos e repetitivos, cada um conto explora as
potencialidades e as tangibilidades da categoria do narrador, aumentando, portanto,
aquela possibilidade anunciada no título. Afinal, dependendo de quem conta um conto,
é muito provável depararmo-nos com muitos pontos a mais, alguns inclusive com
unicórnios à solta ou escondidos na manga do autor.
De forma muito inteligente – e, arrisco mesmo afirmar, proposital, já que o autor
em foco se sobressai como um sensível leitor de Ítalo Calvino –, André Balbo consegue
construir nas tramas de Agora posso acreditar em unicórnios aquela mesma
potencialidade da ficção, sublinhada pelo ensaísta italiano, posto que, nos seus textos,
também se pode verificar “vários níveis de realidade”, seja na condição de “distintos e
separados”, seja na força de “fundir-se, soldar-se, misturar-se, encontrando uma
harmonia entre suas contradições ou formando uma mistura explosiva” (CALVINO,
2009, p. 368-369).
Por fim, o segundo aspecto muito peculiar diz respeito a uma salutar
inadequação de André Balbo em se acomodar com a exploração exacerbada de alguns
lugares-comuns na ficção contemporânea, tais como “uma escrita linear, solta, ligeira,
às vezes entremeada de leve ironia ou humor jocoso, que dilui qualquer densidade ou
compromisso de reflexão mais séria, [...] além de enredos brutais onde os protagonistas
são a violência e a crueldade” (PELLEGRINI, 2018, p. 220). Não quero com isto dizer
que esses temas não compareçam na coletânea em foco, muito pelo contrário, eles estão
lá (“Vestígios de equinócio” seria, talvez, o exemplo mais flagrante), mas filtrados e
articulados numa escrita cuidadosa, seja no tratamento da língua, ao absorver as
expressões populares mais corriqueiras e, ao mesmo tempo, não abrir mão de uma
sedutora elegância no tratamento da matéria verbal, seja na arquitetura do escopo
narrativo. Aliás, neste ponto, alguns contos chegam a assumir uma tensão labiríntica, na
medida em que recuperam personagens já presentes em tramas anteriores e as
redimensionam numa outra trama e com uma outra linha efabulatória.
Isto fica muito claro no paradigmático conto “Enquanto os dedos”, espécie de
exercício performático da escrita ficcional, na esteira daquela consecução metatextual,
de que nos fala Gustavo Bernardo (2010), em que uma narrativa iniciada numa
cafeteria, tendo como protagonista a figura enigmática (masculina? Feminina?) de Ariel,
é literalmente interrompida para dar lugar a um diálogo entre duas personagens: Michel
e André, criaturas especulares de dois autores (o próprio André Balbo e Michel Laub).
A partir de uma pretensa discussão em torno do original de um romance,
enviado por André a Michel, este tece uma série de considerações sobre a escrita do
amigo, espécie de escritor em devir, cujo projeto de criação ainda se encontra numa
busca pelo seu espaço de afirmação. Por mais autobiográfico que possa parecer, na
minha perspectiva, trata-se de uma bem urdida artimanha do autor em se
autoficcionalizar, seja para, talvez, expor as suas inseguranças, mas que, com a licença
poética da ficção, devem ser encaradas puramente como matérias da efabulação; seja
para tentar autojustificar as suas opções e as suas alternativas em termos de construção e
de projeção para um futuro:
Certo, certo, entendi. É que essa é mesmo minha proposta estética,
sabe. Pra mim, depois de Woolf, de Borges, de Shakespeare, dos
gigantes, enfim, eu não tenho muito o que escrever, entre aspas.
Então minha proposta é deslocar os textos, personagens e estilos
deles pra outras realidades, circunstâncias, deixando mais obliquo o
que era uniforme, tornando mais plano o que era elevado, sei lá, ou
mesmo copiando alguma coisa que, pelo simples deslocamento, pode
perder ou ganhar outros sentidos diante de um novo contexto
estético, político, ideológico etecetera. Posso estar viajando, mas eu
vejo como uma forma de curadoria: escolher os melhores textos,
frases, fragmentos e entender como e onde eles podem ser
aproveitados pra gerar alguma coisa interessante e ir levando
(BALBO, 2021, p. 82).

Na verdade, essa revelação da personagem não deixa de ter uma forte ligação
autobiográfica com o projeto estético do autor, na medida em a consciência da linhagem
em que está inserido e o processo de deslocamento de referências extra-literárias
também podem ser pressentidos ao longo de alguns contos seus. No entanto, essa
ingenuidade em querer planificar o que está numa esfera de elevação, ou mesmo de
copiar para ressignificar certos sentidos, numa espécie de gesto de curadoria para reunir
fragmentos em prol da geração de um todo mais interessante, não chega a convencer o
leitor de que a criatura é o criador. Ainda mais se os dez contos são considerados na sua
integralidade.
Tal como destacado anteriormente, a unidade dá-se não a partir de eixos visíveis
e rarefeitos em lugares-comuns. Antes, pode ser vislumbrada exatamente na
multiplicidade com que capta os instantâneos de vidas tão díspares entre si, mas tão
comuns dentro da dinâmica cosmopolita. Nesse sentido, gosto de pensar que a
personagem ficcional (Ariel), produto de sua criatura escritora (André), tem mais a ver
com esse gosto do irremediável, com essa percepção de uma realidade pulverizada e não
uniforme, tal como o narrador revela a respeito de Ariel:

Lia muito, dedilhando do canônico ao marginal, talvez muito mais


do que toda a gente bem estudada diz ter lido, é verdade, mas
aprendera desde cedo, desde a casa, que era arriscado equilibrar
qualquer entendimento seu na captura do presente, assim como era
arriscado, em sua condição, guardar e apontar qualquer
entendimento que fosse. Tudo o que capturava podia ser repentino,
pura impressão, mudando de direção a qualquer momento, tantos
caminhos quanto dedos nas mãos (BALBO, 2021, p. 75).

Ora, como não perceber que essa salutar oscilação entre o canônico e o marginal
pode ser entendida como um procedimento caro ao autor empírico André Balbo, que
reúne, na sua poética paratextual, autore(a)s tão distintos entre si (de Virginia Woolf a
Lady Gaga, por exemplo), ou, ainda, como não compreender essa mesma precariedade
do presente, estampada nas tramas dos contos de Agora posso acreditar em unicórnios,
seja na captura de repentinos instantâneos, seja nas mudanças de perspectiva e de
direção? Nada gratuito, acredito que esse conto revela muito mais do que ele sugere, na
medida em que, parafraseando Flaubert, se o autor pudesse escolher, talvez, a opção
mais acertada seria dizer: “Ariel c’est moi”.
E se “as narrativas podem ser cruéis” (BALBO, 2021, p. 88), como nos alerta a
personagem Michel, de “Enquanto os dedos”, elas também podem oferecer um espaço
de crença e de criação potente, na medida em que verbaliza e efabula a própria
multiplicidade do mundo e da subjetividade que as cria. Não me parece gratuito,
portanto, que, no último conto (homônimo ao título do livro em foco), a personagem
Sebastian, o motorista de aplicativo, ressurja, entre o delírio da droga UNI e a realidade
chocante de um acidente de carro, ao lado de Ariel (a mesma criatura ficcional no conto
criado pela personagem André, em “Enquanto os dedos”?), estabelecendo, assim, um nó
labiríntico da trama de “A última marcha noturna” com o desfecho de “Agora posso
acreditar em unicórnios”, e garantindo a almejada unidade dentro de um livro de contos.
Com uma artimanha bem tecida, é o narrador de “Agora posso acreditar em
unicórnios” que sela uma renovada esperança de outros unicórnios e, por conseguinte,
de ficções por vir, consciente da volatilidade e da transitoriedade das coisas que
alimentam e inspiram os gestos de criação:

Somos todos atores, amigos imaginários, criaturas estranhas,


vizinhos incertos e memórias falsificadas que no fim do dia se
dissolvem no primeiro ar que os pulmões expulsam para fora da
carne para que entre o repouso da consciência, sumindo sem deixar
para trás nenhum rastro (BALBO, 2021, p. 153).

Se é certo que todas essas elucubrações são propositais, porque contribuem para
compor uma linha de reflexão metatextual sobre o exercício de criação ficcional e a
volatilidade de suas componentes, não se poderá negar, também, que elas acenam para a
desconstrução de um pensamento feito lugar-comum de que a consecução arquitetural
de um texto de ficção curta (no caso, aqui, o conto) é menos complexa e mais
facilmente digerida do que um romance, por exemplo.
Na verdade, o narrador aponta para a natureza inequívoca do fazer artístico-
literário, posto que todos aqueles elementos performáticos, imaginários, estranhos,
incertos, improváveis e (im)possíveis, enumerados pelo narrador do conto “Agora posso
acreditar em unicórnios”, já surgem prenunciados pelo narrador de um interposto
criador (a personagem André, de “Enquanto os dedos”), ao se manifestar poeticamente
sobre os gestos de manipulação da escrita executados pelas mãos e pelos dedos:

Os dedos sabem mais do mundo do que o acúmulo dos séculos


inventariados em enciclopédias, currículos, cadeiras. Sabem mais do
que os reis, os fantasmas, os príncipes e os infiéis, assim sendo tão
perigosos, instigadores de borbulhares e transgressões. Os dedos são
a verdadeira mente, o corpo em sua compleição fértil e caudalosa
que procura entender-se com o mundo, comunicar-se, alisando
abismos e pináculos, insubmissos ao arbítrio das costelas e de outras
outorgas teogônicas e psíquicas normalizadas desde os mitos
babilônicos. Os dedos tocam a penugem incipiente das peles quentes
apesar da vontade das gêneses (BALBO, 2021, p. 74).

Em virtude do exposto até aqui, como não pensar esse conjunto de contos de
André Balbo também como um exercício muito particular de “teorização do real”
(PELLEGRINI, 2018, p. 241), tal como defende Tânia Pellegrini, ao analisar as
principais produções ficcionais brasileiras contemporâneas? Afinal, em Agora posso
acreditar em unicórnios (2021), diferentes níveis de realidade (cosmopolita, urbana,
natural, memorialística, efabulada, onírica e alucinatória) são manipulados pelos dedos
autorais e oferecidos ao leitor em tramas que revigoram os sentidos de imagens míticas
(os unicórnios) sob diferentes prismas e com sutilezas diversas.
Igualmente na esteira do pensamento de Ítalo Calvino, gosto de pensar que os
contos de André Balbo convidam os leitores a uma reflexão sobre a obra de arte literária
“na sua natureza de produto, na sua relação com o que está do lado de fora, com o
momento da sua elaboração e com o momento em que chega até nós” (CALVINO,
2009, p. 370).
Diante de um cenário pandêmico, os contos de André Balbo permitem-nos
sonhar, mesmo momentaneamente. Talvez, por isso, saiamos com aquela mesma
sensação de um dos seus narradores, qual seja, a de que “as fumaças dos tempos pedem
uma moderação dos fatos, até que as coisas deixem de ser elas mesmas e seus
arremedos possam ser consumidos à luz das expectativas da nossa atmosfera mais
imediata” (BALBO, 2021, p. 151). Ainda que não seja provável garantir que, em
definitivo, alguma criatura estranha, um unicórnio e/ou algum amigo imaginário se
tornem uma realidade corporificada dentro do nosso cotidiano, acredito que, com Agora
posso acreditar em unicórnios, o leitor fica com a possibilidade de pensar um mundo
outro, onde os níveis de realidade salutarmente se misturam e a fantasia alimenta a
potencialidade da criação ficcional.

Referências:
BALBO, André. Agora posso acreditar em unicórnios. São Paulo: Reformatório, 2021.
BALBO, André. Estórias autênticas: importunâncias do engenho alheio. São Paulo:
Patuá, 2017.
BERNARDO, Gustavo. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.
CALVINO, Ítalo. Assunto encerrado – Discursos sobre literatura e sociedade.
Tradução: Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. Tradução: Álvaro Faleiros. Cotia, SP: Ateliê
Editorial, 2009.
PELLEGRINI, Tânia. Realismo e realidade na literatura: um modo de ver o Brasil. São
Paulo: Alameda, 2018.

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