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Canto Gregoriano

INTRODUÇÃO À ESCRITA MUSICAL GREGORIANA


A NOTAÇÃO QUADRADA

1. Considerações preliminares.

A notação corrente (notação quadrada) como momento (não definitivo) de um


processo de mediação gráfica do fenómeno musical

a) A música é arte do movimento, volátil por definição. A sua reposição, quando


confiada, apenas, à memória dos homens (como foi, durante a maior parte da história, e
continua a ser, em tantos lugares), mostra-se particularmente vulnerável, arriscando-se a
desaparecer com a passagem do tempo. Daí que a invenção de sistemas capazes de conservar
e transmitir a ideia musical (sistemas de notação) haja representado uma das mais importantes
conquistas da cultura. Porém, os sistemas notacionais, até os mais desenvolvidos, nunca
traduzem totalmente a carga ou o conteúdo musical de que constituem mero suporte
documental: entre a notação e a música medeia um espaço imenso e insuprimível – o espaço
da interpretação. E se isto é assim para a música em geral, incluindo a condensada em partituras
ou outras formas de registo de elevada riqueza informativa (melódica, rítmica, tímbrica,
agógica, etc.), por maioria de razão se verifica quando recuamos no tempo e nos
embrenhamos nos domínios da chamada música antiga. Aliás, no domínio que nos (pre)ocupa
– o da melopeia gregoriana – os problemas da notação (grafias, fiabilidade dos documentos,
leitura) encontram-se entre as questões mais complexas da análise científica convocada por 1
esta particular expressão musical.

b) A notação gregoriana utilizada nos livros de canto oficiais, a chamada notação


quadrada (em virtude da forma básica da sua escrita: o ponto quadrado), e que é em certa
medida a continuação estilizada de modelos desenvolvidos em escolas francesas a partir do
séc. XII, traduz apenas um momento não definitivo de um processo de mediação gráfica do
fenómeno musical. Com efeito, deve sublinhar-se desde já que mesmo em relação às edições
dos livros mais usuais, consequentes ao chamado movimento de restauração gregoriana, sob
uma aparente uniformidade gráfica, são detectáveis diversas variantes na escrita musical e
que, no essencial, representam um esforço de aperfeiçoamento da adequação gráfica às
informações constantes dos mais antigos manuscritos. Isto dito não significa, porém, a inteira
fungibilidade dos sistemas de notação. Na verdade, os vários modelos de escrita musical já
avançados (desde a utilização de pontos para indicar as notas, até à pura e simples transcrição
em notação moderna, com a pauta de cinco linhas, a clave de sol e as equivalências das figuras
gregorianas à colcheia e à semínima), não conseguiram, ainda, traduzir os cambiantes
disponibilizados pela notação quadrada (pese as suas limitações), designadamente na
importante questão da unidade do agrupamento neumático.

2. Estudo da notação quadrada

Os livros de canto subsequentes ao processo de restauração do gregoriano, editados


directamente pela Tipografia Poliglota Vaticana / Libereria Editrice Vaticana – a chamada Editio
Vaticana (editio typica) – ou mediante concessões especiais da Sé Apostólica (editio juxta typicam),

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sobretudo as mais divulgadas edições a cargo da Abadia de Solesmes, adoptam, como se referiu
já, o sistema de notação quadrada.
Para mais clara compreensão, partimos do sistema consignado na edição oficial para
a Igreja Católica, a Editio Vaticana; num momento posterior, serão apresentadas as
particularidades introduzidas nas edições solesmenses e as neo-grafias.

A escrita musical da Vaticana tem os elementos seguintes:

a) pauta
b) claves
c) barras
d) notas
e) sinais de alteração
f) guião
g) figuras
h) asterisco [*]
i) flexa [†]
j) letras
l) vírgula e ligadura

a) Pauta

A pauta musical gregoriana consta de quatro linhas horizontais (tetragrama), com três
espaços internos, que se lêem de baixo para cima. 2

Fig. 1

Alcança-se assim uma extensão para nove notas no total, o que, dado o âmbito reduzido da
maior parte dos cantos, torna a pauta de quatro linhas, em geral, suficiente para conter a
amplitude melódica. Porém, caso a melodia seja mais ampla, pode recorrer-se à utilização de
uma linha suplementar, sobre ou / e sob o tetragrama.

Fig. 2 Fig. 3

Se apesar do recurso à linha suplementar, não for possível alcançar toda a tessitura melódica
do canto, faz-se uso da mudança da posição da clave ou, mesmo, da alteração da clave,
um fenómeno que ocorre com frequência nos Graduais (entre o refrão e o verso, nunca no
decurso da mesma frase), como se pode ver adiante, nas figuras 8 e 9.

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b) Claves

Uma das formas de se alcançar a diastematia (a indicação rigorosa da altura melódica


dos sons) foi o recurso às letras do alfabeto. Daqui resultaram as letras-claves, das quais se
utilizam, ainda, duas: a de dó [ C ] e a de fá [ F ]. A sua escolha não é casual, mas deriva da
circunstância de corresponderem, dentro do sistema octocordal diatónico, às cordas acima
do meio-tom [mi / fá; si / dó].

Fig. 4 Fig. 5

A posição das claves na pauta não é fixa. Assim, a clave de dó, que se emprega nas melodias
de âmbito mais agudo, encontra-se usualmente na quarta ou terceira linhas, embora surja
por vezes também na segunda; nunca, porém, na primeira. A clave de fá, adoptada para as
melodias de tessitura grave, é colocada sobre a segunda ou terceira linhas, nunca sobre a
primeira (v. fig. 6). Sobre a quarta linha surge uma única vez nos livros correntes: ofertório
Veritas mea (fig. 7).

Fig. 6

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Fig. 7
A minha verdade e misericórdia estão com ele: e pelo meu nome exaltarei o seu poder.

A variada utilização de claves, com as suas diferentes posições, permite acomodar as melodias
dentro do tetragrama. Em alguns casos, porém, a extensão melódica pode obrigar ou à
mudança da posição da clave (fig. 8) ou, mesmo, à mudança da clave (fig. 9). Estas
mudanças, como se disse acima, nunca ocorrem no decurso da frase, mas somente na
passagem entre secções distintas da obra.

Fig. 8

No exemplo acima, ao entrar no verso Conturbata, a clave de dó que estava na quarta linha
passou para a terceira linha.

Fig. 9

Nesta situação, mudou-se a própria clave: na primeira parte a clave usada é a de fá na terceira
linha; a partir de Vias emprega-se a clave de dó na quarta linha.

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c) Barras

Na escrita musical gregoriana são utilizadas diversas espécies de barras, i. é, de traços


verticais que, em extensão maior ou menor, cortam a pauta. Não correspondem às modernas
barras de divisão do compasso. A sua função reside, antes, na indicação dos momentos de
pontuação literária-musical, ou seja, destinam-se, à semelhança dos sinais de pontuação
do texto (vírgula, ponto e virgula, dois pontos, ponto final), a marcar as distinções e
correlações hierárquicas do discurso melódico-verbal, ou mesmo puramente melódico (como
sucede no curso dos melismas sobre uma única sílaba).

Fig. 10

1. Grande barra ou barra inteira (divisio maior): indica a conclusão de uma frase musical
(e, em regra, literária).

2. Meia-barra (divisio minor): demarca o membro da frase meódico-verbal; em princípio, é


lugar para a respiração.

3. Quarto-de-barra (divisio minima): assinala, dentro da frase musical, a menor das divisões, 5
a do inciso. Respiração facultativa.

4. Barra dupla (divisio finalis): indica a conclusão do canto ou a alternância de coros (v.
fig.)

As barras não constam dos antigos manuscritos que omitem, também, os próprios sinais
de pontuação literária. Naturalmente, constituindo o canto uma forma de discurso
(verbal-melódico), mostra-se necessário estabelecer divisões e articulações. Com este
propósito D. Pothier, no quadro do movimento de restauração dos finais de oitocentos,
vai apresentar no seu Liber Gradualis (1883) as melodias pontuadas com três tipos de
barras divisórias. O sistema foi posteriormente completado e a Edição Vaticana apresenta
já as quatro modalidades de barras.

Em geral, a colocação das barras constante da Vaticana faz sentido fraseológico (no
plano do discurso verbal e no plano do discurso melódico). Mas são bastantes os casos
em que isso não sucede, sobretudo em relação aos quartos de barra, umas vezes
excessivos, outras vezes insuficientes. Para colmatar esta deficiência, e uma vez que não
é possível suprimir as indicações constantes da Vaticana, as Edições de Solesmes
introduziram um sinal suplementar, a vírgula, que desloca a pequena respiração
indicada pelo quarto da barra para o local em que surge a vírgula. Outro sinal corrector
de barras mal colocadas é a ligadura, cuja função é assinalar a continuidade do discurso
musical que se considera indevidamente interrompido por uma grande barra na edição
Vaticana. (Sobre o ponto, ver adiante, p. 20).

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d) Notas

As notas, primeiramente designadas por letras, receberam a partir do séc. IX, por
obra do monge Guido d’Arezzo, um nome novo: Ut, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, derivado das sílabas
iniciais de cada verso da primeira estrofe de um hino cantado na Festa de S. João Baptista
(24 de Junho).

Fig. 10

Fig. 11

Para que os teus servos possam, com toda a sua voz, cantar os teus feitos
admiráveis, apaga o pecado dos nossos lábios manchados, ó S. João.

Colocadas as notas em sucessão contínua, encontra-se a escala diatónica


hexacordal, com um único semitom (mi / fá).

Fig. 12

Mais tarde, com a passagem para o sistema octocordal, o grau acima do lá veio a ser
designado por si, das duas iniciais com que termina a referida estrofe: Sancte Ioannes. A

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denominação dó em lugar do primitivo Ut deu-se a partir do século XVII, talvez devido à


escassa sonoridade desta última sílaba.

e) Sinais de alteração

Na escrita musical gregoriana corrente usam-se, somente, dois sinais de alteração.


Incidem ambos sobre a nota Si: o bemol e o bequadro. Aliás, estas designações decorrem
justamente da circunstância de na antiga notação alfabética o si [= b] poder assumir duas
posições, uma mais baixa, próxima do lá (b-molle), outra mais elevada, mais próxima do dó (b-
quadratum ou b-durum).

A questão da tradução gráfica das melodias dentro do sistema diatónico que admite
apenas a figuração do si bemol suscita problemas. Com efeito, grande parte do
repertório foi construído antes de haver uma escrita capaz de indicar com rigor as alturas
melódicas. Quando esse sistema notacional se desenvolveu, ao admitir somente a
alteração do si (e não na oitava grave, note-se), nem todas as melodias foram
convenientemente grafadas. Haveria casos em que os cantores cantariam outras notas
alteradas (mi b, p. ex.), embora não escritas com a alteração. Noutros casos, foi
necessário um realinhamento da melodia, com transposições, para a manter dentro dos
quadros notacionais à disposição. No panorama científico contemporâneo vão surgindo
propostas de escrita que admitem outros casos de notas alteradas, seja com bemol, seja
mesmo com o sustenido.

Fig. 13 [Gradual Romanum 1908]

Fig. 14

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A alteração introduzida pelo bemol (baixar meio-tom à nota si) suspende-se com:

1. a ocorrência de um bequadro

Fig. 15

2. o aparecimento de qualquer barra

Fig. 16

3. a mudança de palavra
8

Fig. 17

Note-se, porém, que nalgumas obras em que o efeito do bemol se estende a toda a
melodia pode, por vezes, e à imitação da prática moderna, o bemol aparecer colocado junto
da clave, afectando, pois, todas as notas si, como se pode ver no exemplo seguinte.

Fig. 18

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f) Guião (custos)

É um sinal gráfico análogo a uma nota quadrada, mas com dimensões reduzidas.
Surge em duas ocasiões:

1. no final de cada pauta:

Fig. 19

2. antes de se proceder a uma alteração de clave.

Fig. 20

A sua função em ambos os casos é a de indicar o grau da nota seguinte. Em si mesmo o


guião não se destina a ser cantado; tem, antes, uma função de aviso para os cantores, guiando-
os nas passagens de pauta e / ou de clave, de modo a ficarem prevenidos para a nota
subsequente

g) Figuras

A notação gregoriana contida na Edição Vaticana e nas edições desta dependentes


emprega diversas figuras musicais cuja imediata função é representar os movimentos rítmico-
melódicos do discurso musical. Tais sinais são uma estilização de sistemas de notação
bastante antigos. Atendendo à forma básica da sua escrita, o ponto quadrado (punctum
quadratum), este sistema gráfico é designado, como se referiu já diversas vezes, por notação
quadrada.
A essas figuras ou sinais dá-se o nome genérico de neumas (sinal, gesto). Alguns
neumas significam um único som; outras figuras indicam dois ou mais sons em diversos
desenhos melódicos ou rítmicos (p. ex: grave / agudo ou agudo / grave, etc.). Os neumas
podem surgir combinados entre si (em composição), dando origem a figuras mais complexas.

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As correntes semiológicas de inspiração cardineana (Eugénio Cardine, 1905-1988)


sublinham que para a cabal compreensão da neumática há que atender ao material
básico da composição gregoriana – o texto. De acordo com esta metodologia, neuma,
em sentido estrito, é o conjunto de notas sobre uma sílaba, vale por dizer, cantadas
durante a emissão de uma sílaba. A unidade da sílaba determina a unidade do neuma.
Ora, é bastante variado o número de notas que uma sílaba pode receber: uma, duas,
três, dezenas e, nalguns casos, acima da centena. Para a semiologia o conjunto de notas
sobre a mesma sílaba constitui todo ele neuma: quando representa um único som nessa
sílaba, diz-se neuma monossónico; se integrado por duas ou mais notas, neuma
plurissónico ou neuma-grupo. Logo, o mesmo sinal gráfico pode constituir um neuma,
por se encontrar isolado sobre uma sílaba (o mesmo é dizer, preenchendo integralmente
a emissão sonora dessa sílaba) ou, então, um simples elemento neumático – sinal gráfico
representando um movimento rítmico-melódico elementar, mas que se encontra ligado,
ou melhor, em composição com outros sinais gráficos antecedentes e / ou subsequentes
sobre a mesma sílaba. Na exposição seguinte, continua a usar-se o termo neuma no seu
sentido usual, para indicar os sinais gráficos correntes na notação quadrada.

.
α. Edição Vaticana

Como se pode ver pela imagem seguinte, retirada do Graduale Romanum de 1908
(Edição Vaticana), são bastantes as figuras gráficas, i. é, os neumas usados neste sistema de
notação. Eles representam, como se disse, apenas um modelo de escrita e, em diversos casos,
as grafias da notação quadrada têm sido modificadas.

10

Fig. 21

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Apesar de ampla, a lista de neumas e dos seus nomes latinos não deve preocupar
demasiado quem começa a sua iniciação no gregoriano – mais relevante são os fenómenos
(e experiências musicais) do que as nomenclaturas. As figuras da notação quadrada têm a sua
história (na maior parte uma longuíssima história), mas neste momento do estudo importa
que nos aproximemos delas olhando-as na sua função essencial: um sucedâneo visual do som
musical, um suporte «analógico» ao qual pedimos uma informação.
Elencamos, a partir do quadro acima, as figuras mais básicas, deixando a quem lê o
convite para desenhar no espaço em branco o neuma respectivo.

A. Figuras básicas

1. punctum

a) quadratum

b) inclinatum : surgindo apenas em composição, integra-se nas descidas melódicas de pelo


menos três sons.

1. 2. virga : indica uma nota em culminância melódica, i. é, um som mais agudo que o
anterior ou posterior.

3. quilisma : ponto quadrado de rebordo superior com forma dentada. O significado do


quilisma não é claro. Na prática mais disseminada, o quilisma confere uma particular
densidade rítmica (um alargamento) à nota anterior. A figura não aparece isolada, mas sempre
integrada noutras formas neumáticas. 11

4. strophicus : figura derivada da junção de apostropha ou stropha que resultaria em


grupos de dois ou três som no mesmo grau melódico – a distropha (dístrofe) e a tristropha
(trístrofe). São neumas muito usuais, que surgem em contextos melódicos da chamada
repercussão. Nas Edição Vaticana, as dístrofes e trístrofes são traduzidas por dois ou três
pontos quadrados comuns, nem sempre se distinguindo de outras formas de sons em
uníssono.

5. bivirga : figura resultante da junção de duas ou mesmo três virgae (trivirga). Nem
sempre a notação quadrada é rigorosa na identificação destas formas.

6. pes ou podatus : indica o movimento melódico ascendente de duas notas, lendo-


se, pois, de baixo para cima.

7. clivis : indica o movimento melódico inverso ao do pes, i. é, descendente de duas


notas.

8. scandicus : traduz o movimento melódico ascendente de pelo menos três notas.


Integra muitas vezes o quilisma (scandicus quilismático ou quilisma-scandicus).

9. climacus : representa a descida melódica de, pelo menos, três sons. A grafia inicia-
se com uma virga e completa-se com dois ou mais pontos inclinados.

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10. porrectus : expressa o movimento melódico de três sons, na sucessão agudo –


grave – agudo. As duas primeiras notas encontram-se ligadas por um traço gráfico.

11. torculus : representa o movimento melódico de três sons na sucessão grave –


agudo – grave.

B. Figuras liquescentes

Numa pauta em notação quadrada, é frequente surgirem algumas figuras com um


desenho mais reduzido, por vezes tão reduzido que pode quase pensar-se que nem existe
uma nota. Essas figuras são conhecidas pelo nome de figuras ou nemas liquescentes.
Trata-se de um problema complexo, cuja explicitação devida não pode fazer-se neste âmbito.
No essencial, a liquescência reporta-se a um fenómeno vocal resultante de contextos
articulatórios difíceis no plano fonético: o encontro de certas consoantes, por exemplo nf,
nt (con-fun-den-tur), ditongos au, ei, eu (gau- dete, elei-son, eu-ge), ou com as consoantes m, g
entre certas vogais (cla-mor, re-ges) provocam condicionantes à articulação verbal, pois os
órgãos vocais são obrigados a uma colocação transitória que diminui ou estrangula o fluxo
sonoro. Ora, a grafia liquescente indica esses pontos articulatórios de particular dificuldade.

Nos manuscritos mais antigos, encontram-se distintas formas de liquescência. A


Vaticana e as edições de Solesmes mais antigas só representam graficamente a chamada
liquescência diminutiva, e nem todos os casos desta.

12
Na edição Vaticana, as formas liquescentes básicas são:

cephalicus ou clivis liquescente; epiphonus ou podatus liquescente; ancus ou climacus liquescente.

Fig. 22

A figura seguinte mostra, em paralelo com as respectivas formas gráficas «normais»,


dois casos de liquescência, justificada pelo contexto verbal.

Fig. 23

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C. Modificações gráficas do movimento

Algumas das grafias fundamentais da notação podem acoplar-se com outros


elementos que introduzem modificações no fluxo melódico. Assim, temos:

1. Movimento resupinus (para cima), quando a um neuma que indica uma descida melódica
se acrescenta um elemento ascendente (exemplos: climacus resupinus, torculus resupinus).

2. Movimento flexus (flectido, para baixo), quando, inversamente a uma grafia que descreve
um curso ascendente se incorpora um elemento de descida (scandicus flexus, porrectus flexus).

3. Movimento praepunctis e subpunctis: ocorre quando a um neuma se faz anteceder (ex.


torculus praepunctis) ou suceder (ex: pes subpunctis) um ou mais pontos.

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Fig. 24

β. Neo-grafias

A expressão «neo-grafias» refere-se a inovações introduzidas na notação quadrada,


após as principais publicações feitas pela Santa Sé, no início do séc. XX, a já tantas vezes
referida Edição Vaticana: em 1905, o Kyriale (livro com as melodias para o Ordinário da
Missa); em 1908, o Graduale (livro com as melodias do Próprio da Missa); e, em 1912, o
Antiphonale (livro com os cantos do Ofício, embora tenham saído, somente, as melodias
para as horas diurnas). Foi logo criticado, com efeito, que a notação quadrada da Vaticana
não diferenciava de modo adequado certos neumas, mesmo quando os referia (p. ex. o trigon,
o oricus), e não previa sinais específicos para neumas constantes dos manuscritos medievais.
As novas grafias foram ensaiadas primeiramente no Officium Hebdomadae
Sanctae, de 1922, mas tem sobretudo visibilidade em 3 publicações da responsabilidade da
Abadia de Solesmes: o Anthiponale Monasticum, em 1934, em que surgiram sinais gráficos
próprios para o oriscus, stropha e punctum liquescens, e, já em consequência dos desenvolvimentos
das chamadas correntes semiológicas, o Psalterium Monasticum, de 1981 e, de modo
decisivo, o Liber Hymnarius (Anthiphonale Romanum, tomus alter), editado em 1983. A figura
25 apresenta a tábua dos neumas deste último livro.

Liber Hymnarius, Solesmes, 1983.

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Fig. 25

É importante notar que a esmagadora maioria das partituras em notação quadrada


continuam a seguir os modelos da Vaticana complementados com os «sinais rítmicos»
de Solesmes, de que se falará de imediato. Por outro lado, além da notação quadrada
(com os seus variados estádios evolutivos), existem hoje multiformes propostas
notacionais para o gregoriano, desde a mais «simples», em que as notas são
representadas com pontos redondos, a que se juntam alguns sinais para ilustrar neumas
particulares, até tentativas de representação mais fiel dos manuscritos medievais (ou
melhor, de alguns dos tipos de neumática medieval.

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Alleluia, Dixir Dominus, na transcrição de D. Hiley, Western Plainchant, 1983, p. 132.

Fig. 25

Gradual «Haec dies»: Graduale Lagal (The Hague, 1984) p.150.

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Fig. 26

Gradual «Haec dies»: Graduale Novum (Regensburg 2011) p.166

Fig. 27

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Gradual «Haec dies»: «Flux Notation» (Geert Maessen, Scores for Tenth-Century Chant,
Amsterdam, 2011, p. 17)

Fig. 28

γ. Sinais rítmicos de Solesmes 16

Já por diversas vezes se fez referência a algumas particularidades da notação quadrada


empregue nas edições a cargo de abadia beneditina de S. Pedro de Solesmes, primacial artífice
do processo de restauração das melodias gregorianas desde meados do séc. XIX.
Durante a elaboração da Vaticana foi discutida a conveniência de se introduzirem
signos específicos que ajudassem na interpretação do ritmo. Esse caminho vinha já sendo
praticado no quadro das edições «privadas» de Solesmes, traduzindo o modelo de leitura
rítmica teorizado pelo monge beneditino André Mocquereau (1849-1930). As controvérsias
sobre o problema do ritmo gregoriano eram, porém, muito complexas, e a edição oficial não
acolheu esses específicos sinais rítmicos.

Isto dito não significa, ao contrário da imagem que ficou para a história, que a edição
vaticana seja uma edição «não-rítmica», isto é, que a informação nela contida seja
meramente melódica. Com efeito, e decalcando praticamente a metodologia rítmica
que Joseph Pothier (1835-1923), presidente da comissão redactora, havia já explicitado
no seu Liber gradualis, de 1883, o prefácio da Vaticana indica princípios de
interpretação rítmica que são legíveis a partir das pautas, designadamente as barras e,
ainda, os espaçamentos entre os neumas dos melismas, as famosas brancas da
Vaticana. Voltaremos a este ponto quando se estudar os métodos de interpretação.

A verdade é que após a publicação do Antiphonale, em 1912, a obra editorial passou


praticamente para as mãos de Solesmes, não só para novos livros (de que o antifonário para
o uso monástico, publicado em 1934, é expoente), mas também para realização de «edições
práticas», que a grande expansão do movimento gregoriano pelo mundo católico até aos anos
60 do século passado reclamava. Entre esses livros está o famosíssimo Liber usualis, uma

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compilação dos cantos da missa e de parte substancial do ofício divino, bem como das
leituras e orações – com o Liber usualis podia cantar-se (e celebrar-se) a missa toda e todas
as missas. O Liber conheceu impressões sucessivas: todo o sacerdote tinha o seu e para
gerações de cantores da Igreja aquela compilação prática representou a pura essência do
canto gregoriano. E dessa essência participavam, claro está, os três famosos «sinais rítmicos
para ajuda dos cantores»: o ponto; o episema horizontal; e o episema vertical.

1. ponto (punctum mora): colocado junto de uma figura significa que essa nota passa a ter o
dobro do valor de duração, ou seja, e de acordo com a teoria rítmica de D. Mocquereau,
implica um alargamento rigorosamente quantitativo, determinante, assim, da estrutura
rítmica do canto. O ponto-mora não se encontra nas antigas fontes manuscritas, embora se
possa dizer que muitos alargamentos indicados nas edições práticas com o ponto limitam-se
a traduzir conclusões cadenciais, que resultariam já de um correcto fraseado musical. Noutras
situações e como se referiu, o ponto, a par do episema horizontal, pretende indicar algumas
nuances rítmicas dos manuscritos sangalenses, designadamente certas letras como o t (tenete:
sustentar), ou o x (exspectare: esperar), ou ainda grafias neumáticas particulares. Diga-se, no
entanto, que nem sempre são claros os critérios que presidem ao emprego do ponto.

2. episema horizontal (transversum episema): pequeno traço desenhado horizontalmente por


cima ou por baixo de uma nota ou grupo de notas e que implica ligeiro alargamento (dito
expressivo) ou rallentando dessa nota ou notas. Para traduzir algumas dessas particularidades,
D. Mocquereau empregou com frequência nas suas edições rítmicas ora o episema horizontal
ora o ponto.

3. episema vertical (rectum episema): este sinal, ausente por inteiro dos manuscritos, é o mais 17
profundamente vinculado à teoria rítmica de D. Mocquereau e também o mais controverso.
Trata-se de pequeno traço vertical, colocado geralmente sob a figura e que indica o íctus
(pancada), ou seja, os pontos de apoio da divisão rítmica binária ou ternária, a que todo o movimento
musical estaria sujeito. A determinação dos pontos de apoio ícticos decorre da aplicação de
uma tabela de regras, cujo conteúdo será explicitado noutro capítulo, e que se baseiam no
essencial no elemento duração (quantidade) da figura. Para esclarecer os passos mais
complexos, as edições de Solesmes trazem já muitos íctus assinalados, embora, com base na
informação constante da notação quadrada, também aqui falte clareza quanto às razões que
determinaram a colocação desses íctus.

Fig. 29

Para mais clara visualização destas diferenças introduzidas pelos sinais rítmicos
solesmenses, apresentamos de seguida em confronto duas versões gráficas da conhecida
antífona Regina Caeli, no chamado tom simples: primeiro, na lição da Vaticana (Graduale
Simplex) e depois na transcrição com os signos rítmicos do Antiphonale Monasticum editado
por Solesmes em 1934.

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Canto Gregoriano

Escolhemos intencionalmente um exemplo de canto silábico e em que não é possível o


recurso aos manuscritos adiastemáticos (no caso vertente, trata-se até de melodia de
factura bem recente). Com efeito, em relação ao fundo gregoriano mais antigo, a
informação constante da versão em notação quadrada, com ou sem sinais rítmicos de
Solesmes, não consegue iluminar os problemas rítmicos colocados por esses
manuscritos. Em relação ao episema horizontal e ao ponto-mora, que implicam neste
modelo interpretativo, um alargamento da duração da nota (quantidade), pode dizer-se
que em muitos cantos, sobretudo nos de estrutura silábica, eles têm função quase
sempre expletiva, ou, até, redundante, assinalando demoras que decorreriam já de um
correcto fraseado (assim, os pontos-mora sobre as sílabas finais dos incisos); por outro
lado, na prática interpretativa nota-se muitas vezes uma equivalência entre o episema
horizontal e o ponto. Quanto ao episema vertical, que decompõe o movimento rítmico
em pequenos passos de duas ou três notas, ele é o corolário visível de uma específica
teoria rítmica, há muito contestada. Aliás, as últimas edições a cargo da Abadia de
Solesmes (Antiphonale romanum de 2008) suprimiram por inteiro os episemas
verticais.

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Fig. 30

Fig. 31

Rainha dos céus, alegra-te, aleluia, pois quem mereceste trazer no teu ventre, aleluia,
ressuscitou tal como havia dito, aleluia. Roga por nós a Deus, aleluia.

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Canto Gregoriano

h) Asterisco [*]

O asterisco simples [*] tem duas funções:

1. na salmodia, divide o verso salmódico em duas partes – hemistíquios –,


assinalando, pois, a cadência média;
2. nas restantes obras, marca o momento em que o coro (ou assembleia) se junta ao
cantor que faz a entoação (veja-se a figura 30, a seguir a caeli). Diga-se, no entanto, que este
costume, hoje meramente facultativo (cf. Ordo Cantus Missae, Praenotanda II.1), pode
prejudicar a continuidade do discurso verbal e melódico.

No canto do Kyrie aparece, na última invocação, ora só asterisco duplo [*] ou


também o asterisco duplo [* *]. No primeiro caso, significa o ponto em que todo o coro se
junta aos cantores da primeira secção; no segundo caso, usado quando a última invocação
apresenta um desenvolvimento melódico mais amplo, o asterisco simples indica a alternância
de coros; o duplo, o momento da junção dos dois coros. Também este uso é meramente
facultativo, tudo dependendo da forma executiva que se adoptar.

i) Flexa [†]

A cruzinha designada por flexa (de flectir, baixar) é empregue na primeira parte dos
versículos salmódicos (primeiro hemistíquio) que, pela sua duração ou estrutura literária, não
permitem uma execução ininterrupta. Assim, no ponto assinalado pela flexa abandona-se
momentaneamente a corda em que se procedia a recitação e faz-se uma descida melódica.
No capítulo da salmodia se indicarão os termos de aplicação da flexa. 19

j) Letras

Existem ainda outros sinais gráficos. Assim, as letras i e j, que surgiam, nas edições
mais antigas, no final das invocações do Kyrie, indicavam o número de vezes (ij =duas vezes;
iij = três) que se deveria cantar cada invocação.

Por último, o conjunto de letras e u o a e, que aparece no final das antífonas da


Liturgia das Horas e, nas edições mais antigas, também no final do intróito, representa a
forma abreviada das palavras saeculorum. Amen, com que o canto salmódico se conclui e que
indica, pois, a cadência final a aplicar aos versos sálmicos.

Fig. 32

Alberto Medina de Seiça


Canto Gregoriano

l) Vírgula e ligadura

Como se indicou, a notação da Vaticana usa as barras como sinais de articulação ou


pontuação do discurso verbal-melódico. Em alguns casos, a colocação não parece a mais
indicada, mas como constam da edição típica não podem ser removidas. Por isso, as edições
de Solesmes introduziram, assim, dois sinais complementares para corrigir essas barras mal
colocadas: a vírgula e a ligadura.

A vírgula desloca a divisão mínima indicada pelo quarto de barra da Vaticana.

Fig. 32

O outro sinal corrector de barras mal colocadas é a ligadura. Tem como função é assinalar
a continuidade do discurso musical interrompido indevidamente por uma grande barra na
edição Vaticana. Veja-se um exemplo na figura 33, intróito Suscepimus Deus, última pauta, em
que aparece uma ligadura: o seu efeito é anular o corte a seguir à palavra terrae. 20

Fig. 32

Recebemos, ó Deus, a Tua misericórdia no interior do Teu santuário.


Como o Teu nome, ó Deus, assim também o Teu louvor chegue aos confins da terra.
A Tua mão direita está repleta de justiça.

Alberto Medina de Seiça

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