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http://dx.doi.org/10.25094/rtp.

2021n32a759

Considerações sobre a concepção de metro e ritmo em


Castilho
Paulo FRANCHETTI*

Resumo

Antonio Feliciano de Castilho escreveu o mais importante tratado de metrificação


em português. Neste artigo, discutimos um ponto que ficou sem a devida
atenção: a dupla determinação do ritmo, que se dá pela colisão ou harmonia do
metro internalizado com a realização do verso na leitura.
Palavras-chave: Verso português. Metrificação. Versificação.

Do ponto de vista dos tratados mais conhecidos em língua


portuguesa, uma questão nebulosa quando se trata da definição do ritmo
é a da sua relação com o metro. Uma forma de abordar o problema, de
modo simplista, seria perguntar, dentro das balizas das poéticas: o metro
produz ou determina o ritmo? Se não produz ou determina, qual a função
do metro?
A questão é nebulosa porque a própria definição de metro não é
pacífica. Antonio Feliciano de Castilho, por exemplo, no trabalho mais
influente da nossa tradição, o Tratado de metrificação portugueza: seguido
de considerações sobre a declamação e a poética1, parece compreender metro
e verso como equivalentes. De fato, fala indistintamente de metros de
quatro sílabas e versos de quatro sílabas, metros de seis sílabas e versos
de seis sílabas; e, ao considerar os versos ou metros maiores, divide-os em
versos ou metros elementares, de duas a quatro sílabas.

*
É professor aposentado do Instituto de Estudos da Linguagem/UNICAMP, Campinas,
Brasil.
E-mail: paulo@iel.unicamp.br Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-7316-5485
1
Há uma reprodução fac-similada pela Forgotten Books, de Londres, disponível em: www.for-
gottenbooks.com

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Antes de prosseguir, lembremos como se definem os metros nessa
obra seminal, ou melhor, de que maneira se escandem os segmentos para
obter o metro.
O princípio está nesta passagem bem conhecida:

O gramático conta por sílabas todos os sons distintos, em que as pala-


vras se podem rigorosamente dividir. [...] O metrificador, porém, não
conta por sílabas, nem por coisa alguma, as que no modo corrente de
falar passam, ou sem inteiramente se perceberem, ou percebendo-se
tão pouco, que é como se não existiram. / O gramático não cura do
que parece aos ouvidos, mas só do que é precisamente. O versificador
não se embaraça com o que precisamente é, mas só com o que aos ou-
vidos se figura. / Governa-se o primeiro por uma espécie de filosofia
especulativa, aliás de grande utilidade e mesmo necessária; o outro, se
assim nos podemos expressar, pela toada da prática, segundo a qual
não só na recitação dos versos, mas ainda na leitura da prosa, e até, se
sobre tudo na conversação, mormente na familiaríssima, a cada pas-
so se omitem, com a voz, sons, que aliás com a pena se representam.
(1874, p. 9-10)

Está aqui, portanto, a definição precisa: a sílaba, do ponto de vista


métrico, define-se como unidade de oralização, pela “toada da prática”.
Os metros, ou versos, por sua vez, são definidos pela contagem feita
dessa maneira, da primeira sílaba à última tônica, mas suportam variações
internas quanto à distribuição das tônicas e átonas.
Disso se poderia concluir que cada metro possui vários esquemas
rítmicos em potencial. Por exemplo: para Castilho, a melhor construção
do hexassílabo é a que se faz pela junção de três metros de duas sílabas.
Mas ele reconhece que esse verso se pode compor pela junção de outros
metros: um de duas sílabas e um de quatro; um de quatro e um de duas; ou
dois de três sílabas. Ou seja: o verso pode ser construído de quatro formas
diferentes.
A respeito da sua qualidade, diz Castilho que todos os quatro tipos
são bons, mas os melhores são os que se compõem de três metros de duas

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sílabas, e os menos bons os que se compõem de dois metros de três sílabas.
Mas depois completa com esta afirmação: “e mesmo para variedade é
conveniente entremearem-se de todos os quatro padrões” (p. 41).
Para Castilho, portanto, a variação nos padrões métricos que
compõem o verso é interessante do ponto de vista estético. De onde se
poderia concluir que ele entende que o mais relevante na definição do
verso é o número de sílabas total. Dessa forma, o ritmo do verso seria
algo até certo ponto independente dos metros que o compõem, uma vez
que a variação dos metros permitiria “variedade” – o que parece razoável
entender como variedade de ritmo.
A questão não é tão simples, porém, porque Castilho postula que
cada verso tem sua “toada” específica, que permite ao leitor ou analista
diferenciar o bom verso do mau. É ela, portanto, essa “cantilena” que
constitui “a pedra de tocar da metrificação” – esse domínio onde reina,
soberano, o ouvido:

Tenha-se uma cantilena para cada espécie de metro, com a qual cada
sílaba e cada acento dele, isto é, cada tempo distinto e cada pausa obri-
gada, se estreme e caracterize rigorosamente. [...] A toada musical que
uma vez ajustou ao verso, para que foi feita, ficará ajustando sempre
a quantos de igual bitola se lhe apresentarem, e provando de modo
infalível o excesso ou a míngua dos errados. (1874, p. 54)

Para a interiorização dessa cantilena, Castilho tinha uma proposta


prática, didática e que trazia a poesia para perto do corpo no que tocasse à
definição do ritmo: o exercício de escansão a dois, no qual os acentos (ou
pausas) eram marcados por palmas cruzadas ou batidas de mão.
A postulação de uma toada própria se torna mais complicada quando
observamos que a variação no interior de versos de mesma medida é, nesse
tratado, várias vezes referida como valor positivo. Porque se aceitarmos
que cada verso possui uma cantilena própria, que pode inclusive ser
traduzida em exercícios lúdicos de solfejo, como entender que a mesma
toada dê conta de um decassílabo heroico e um decassílabo sáfico; ou de
hexassílabos formados ora por três versos de duas sílabas, ora por dois

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versos de três? A toada de um conjunto de homogêneo de decassílabos
sáficos não seria profundamente diferente da toada de um conjunto
de versos heroicos? Nesse caso, uma vez aceito que os versos maiores
são combinações de versos menores, não seria mais eficaz abandonar a
denominação comum “decassílabo” e radicalizar a denominação pela
toada distinta? Ou seja, abandonar a denominação comum baseada no
número das sílabas?
Castilho não dá esse passo. Nem o poderia dar, está claro, no
tempo e ambiente em que viveu. Pelo contrário, mantém a ideia de que o
isossilabismo é a base da versificação portuguesa, embora pareça disposto a
repensar essa asserção, tanto ao propor os versos simples (equivalentes, em
certo sentido, aos pés da versificação clássica) como base da versificação,
quanto ao especular sobre a possibilidade de fazer em português versos
quantitativos, à maneira latina.
Não dando esse passo, uma questão vem para primeiro plano:
a dificuldade de conciliação ou harmonização da toada prescritiva
(independente, e acima da composição métrica interna e particular) com
o ritmo efetivo do verso oralizado.
Um primeiro exemplo ocorre na passagem em que ele afirma que
o respeito a essa toada é condição de qualidade, como se vê nestas duas
passagens, nas quais aponta estes defeitos no que denomina “versos
frouxos”:

[...] quando o acento se põe em palavra, que o sentido não nos deixa
parar, como: Testemunho do meu ânimo grato
[...] quando as sílabas das pausas são fracamente acentuadas: Lei não
conheço que possa obrigá-la. (1874, p. 67)2

Ora, aqui mesmo já intervêm dois fatores muito distintos, duas


“infrações” à perfeita estrutura do verso: uma de caráter propriamente
2
Observe-se que, no segundo caso, temos um verso de tipo provençal, com acentuação na 4ª
7ª e 10ª – como este, de Camilo Pessanha: “Como vão longe as manhãs do convento”. Mas
Castilho, levado pela “toada” do conjunto de heroicos em que esse verso se encaixa, recusa a
acentuação na 7ª e propõe a “pausa” ou “acento” num monossílabo átono.

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métrico (ocorrência de sílaba fraca em posição na qual o metro exigia uma
forte), outra de caráter por assim dizer semântico, já que metricamente
nada impediria que a palavra “meu” fosse considerada sílaba forte
em posição forte). E curiosamente é esta última a que merece maior
reprovação, pois Castilho (1874, p. 67) anota duramente: “Esta última
cláusula merece especialíssima atenção. O desprezo dela é talvez o capital
vício e causa de desagrado na versificação de José Agostinho de Macedo”.
Esse último ponto é um dos nós da poética de Castilho. Um nó
difícil de desfazer, pois é aí que se revela uma fissura na assimilação do
ritmo ao metro: não basta uma sílaba tônica estar numa posição de pausa
obrigada para que o verso esteja correto – é preciso que o sentido da frase
permita a pausa. O que indicaria que, na sua concepção, o ritmo é algo
que transcende o metro e mesmo o verso, como unidade de aglutinação
de metros.
Esse nó, aqui iniciado, se revela em sua plena complexidade quando
consideramos a questão da oralização em Castilho – isto é, quando ele
enfoca o momento em que se produz efetivamente o ritmo do verso e do
poema.
No que diz respeito à oralização, há dois momentos a considerar:
o da descoberta, interiorização e aplicação da “cantilena” (a que já nos
referimos) e o da oralização expressiva (da declamação) da poesia.
Que a questão da oralização expressiva era muito importante para
o autor vê-se pelo fato de que a ênfase nessa parte do livro (a que trata da
declamação) foi sendo enfatizada ao longo das edições.
De fato, na primeira, de 1851, lia-se no frontispício: Tratado de
metrificação portuguesa – para em pouco tempo, e até sem mestre, se aprenderem
a fazer versos de todas as medidas e composições. Na edição de 1858, o título
permanece o mesmo, acrescentado de “seguido de considerações sobre
a declamação e poética”. Já em 1874, se reduz a Tratado de metrificação
portuguesa – seguido de considerações sobre a declamação e a poética.
Quando lemos o livro, percebemos o porquê desse destaque: é que,
depois de descrever minuciosamente a maneira de contar as sílabas e de
escandir os versos, identificando metros básico, cesuras e pausas obrigadas,

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Castilho, bem no espírito romântico, propõe uma forma nova de leitura:
uma declamação mais “natural”, mais expressiva. Mais dissociada da forma
métrica, em suma.
Para ele, a recitação antiga, modulada justamente de acordo com a
forma do verso, parece-lhe algo a evitar, por monótona e artificiosa:

Recitar versos não deve ser medi-los nem cantá-los [...] As pausas do
recitador não devem ser determinadas pela contagem das sílabas; mas
pelos cortes mais ou menos profundos do pensamento ou do afeto,
que se expressa. [...] Nem o hemistíquio necessita de ser com a re-
citação extremado do hemistíquio, salvo quando no hemistíquio ou
metro a ideia mesma vier pedindo uma paragem. (1874, p. 147-148)

Lendo essas passagens, e ainda aquelas nas quais dá conselhos


sobre respiração durante a elocução e sobre a variação do ritmo conforme
o sentimento expresso, compreende-se que o poeta tenha iniciado essa
seção do seu livro com esta advertência:

Agora que julgo ter disposto, com assaz desenvolvimento, tudo o que
respeita à parte mecânica da composição, convém que desfaçamos um
andaimo que havíamos armado para nos servir nesta construção, que
durante ela nos foi útil, mas que já daqui avante se não poderia sofrer;
falo da cantilena com que o ouvido se habituou para reconhecer de um
modo certo e infalível a justeza de cada metro. (1874, p. 146)

Ora, se a declamação não mede nem canta os versos, e se as pausas


de quem lê não devem respeitar o metro, mas sim o pensamento e os afetos
expressos, então qual o sentido do metro? Ou melhor, qual o sentido
de os alunos terem de aprender trabalhosamente as várias cantilenas
características de cada um deles? E, por fim, como a cantilena pode ser
um instrumento para reconhecer “de modo certo e infalível” a correção de
cada metro se ela é abandonada, apagada na declamação?
A questão do conflito entre correção do verso e oralização (isto
é, entre toada e declamação expressiva) poderia ser formulada ainda
a partir de outro ponto de vista, mais radical: considerando os versos

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com pausa de sentença no seu interior – e sobretudo o verso composto a
partir da fala de duas pessoas, numa peça de teatro. Um leitor do tempo
lhe apresentou a difícil questão: como considerar perfeito um verso de
uma peça de teatro no qual houvesse um diálogo? O verso, que Castilho
transcreve na sua resposta, era este: “Amas-me caro Henrique? – Adoro-te,
querida!”. A questão apresentada era delicada: como fundir a última sílaba
de “Henrique”, numa frase interrogativa, dita por uma atriz, à primeira
de “adoro”, dita por um ator? Castilho teve a coragem de transcrever
a objeção, mas não consegue dar uma resposta convincente à pergunta
formulada. Eis o que escreve:

Sem escurecermos a tal qual razão do crítico, assentamos todavia em


que a absorção se pode nesses casos efetuar sem escândalo para o ou-
vido; e fundamos esta doutrina em que assim o praticam sempre nas
tragédias e comédias os melhores versificadores da Itália, da Espanha,
de França, de Portugal, etc., etc., etc. Poderíamos facilmente encher
um volume com exemplos disto. (1874, p. 15)

“Sem escândalo para o ouvido” pressupõe que tipo de elocução


desse verso por duas pessoas? Que uma emende a resposta imediatamente
na pergunta, de modo a sobrepor as duas sílabas que, se pronunciadas,
invalidariam a medida? E como ficaria, nesse caso, a “toada da prática”,
que definiria a contagem silábica? E, por fim, como funcionaria a
expressividade e a necessária pausa após uma pergunta dramática? O que,
em última análise, significa perguntar: subsiste o verso, nesse caso?
De tudo que foi dito, parece claro que há dois estratos métricos
e rítmicos em cada poema ou peça de teatro versificada: o abstrato, do
poema considerado pelo leitor solitário (e algo especializado), que lê em
busca da correta cantilena própria de cada tipo de verso; e o concreto,
realizado durante a leitura expressiva silenciosa ou em voz alta. E é de
supor que os melhores casos, para Castilho, fossem aqueles nos quais,
embora diversos, os dois estratos se sustentassem mutuamente. Porque
se o ritmo próprio do metro (isto é, o determinado pelas suas “pausas
obrigadas”) pode e deve ser abandonado, ou pelo menos relativizado, na

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declamação (as “pausas obrigadas” deixam, portanto, de ser obrigatórias
em benefício das pausas sintáticas e expressivas), então é compreensível
que versos perfeitos do ponto de vista da cantilena podem não resultar (é o
caso dos escritos por Filinto, corretos mas insuportáveis, diz Castilho3), e
também é possível, ao menos em tese, que versos menos virtuosos perante
a escansão possam resultar mais rítmicos e agradáveis ao ouvido – como
seria o caso dos versos imitados do latim.
Mas se a “cantilena” internalizada não deve ser enfatizada ou mesmo
respeitada tal qual, quando da recitação expressiva dos versos, é preciso
estabelecer a relação (se há) entre ela, como base métrica e rítmica abstrata,
e a oralização particular, como realização rítmica concreta. Caso contrário,
todo o exercício de domínio da “cantilena” e das regras da versificação
ficaria sem sentido perante a realização oral – coisa pouco razoável para
um pensador que insiste todo o tempo na soberania do ouvido.
Disso decorre uma concepção interessante da relação metro e
ritmo, porque se é certo que, no caso de um decassílabo heroico, a ênfase
será na sexta e décima, não é menos certo que não serão apenas as pausas
obrigadas a merecer destaque na construção do ritmo, pois qual seria a
cantilena de uma batida regular de seis sílabas terminando numa tônica,
seguida de uma batida regular de quatro igualmente terminada numa
tônica, seguida de pausa? E qual a cantilena comum entre esse esquema
e a batida regular de quatro, quatro e duas sílabas terminando cada bloco
numa tônica, seguido o conjunto de uma pausa? Por fim, qual o ritmo
resultante da mescla desses segmentos?
A menos que se pressuponha algum tipo de equalização entre
blocos, ao longo do fluxo temporal, o que resulta é tudo menos uma
“cantilena” univocamente relacionada com um metro ou verso. Isso
porque, quando Castilho menciona “acentos métricos”, deve-se entender
que por esse termo ele designa não somente a “pausa obrigada” (no caso do

3
A passagem inteira é ilustrativa: “Acertar um verso não é tudo; versos há que tendo o número
preciso de sílabas, com as devidas pausas, destoam ou desagradam, assim como entre os bem
feitos, uns nos contentam mais, outros menos. / Os versos de Filinto desagradam e martiri-
zam a qualquer ouvido, até sem ser dos melindrosos [...]” (CASTILHO, 1874, p. 65).

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decassílabo, a sexta; ou, na falta desta, a quarta e oitava4), mas também, em
alguma medida, os acentos derivados dos metros simples que compõem
os metros compostos. Lembremos: “Todas estas composições são boas,
mas as melhores de todas serão sempre aquelas, em que maior número das
supra indicadas pausas se encontrar.” (CASTILHO, 1874, p. 47)
Uma hipótese radical para conciliar os dois momentos de
oralização seria a de que Castilho operasse com a ideia de que o verso
português tenha base isocrônica. Para isso concorreriam sua insistência
na toada, na cantilena e na “pontualidade” dos acentos, bem como o
exercício de escansão com base nos movimentos coordenados de duas
pessoas, que faz acreditar que não lhe faltou muito para propor que o
ritmo se dava pela produção da isocronia entre as pancadas fortes que
definem os metros básicos e os compostos por eles. Também a sua
preocupação com o verso latino e sua postulação de que um falante
de português versado em latim consegue identificar os bons e os maus
versos naquela língua poderia apontar para isso. Mas esse é um passo
que ele não dá.
Portanto, para tentar resolver a contradição temos de nos manter
dentro dos parâmetros em que se move o seu pensamento. E talvez a
forma de o fazer seja postular que Castilho julgava que a “cantilena”
ou “toada” assimilada na leitura e aprendizado do verso funcionasse,
na leitura expressiva, como uma base rítmica constante, derivada
diretamente do metro, mas não necessariamente presente a cada
momento. Uma espécie de esquema, ou baixo-contínuo sobre o qual
se produzissem as variações. Seria essa base rítmica, por exemplo, que
permitiria que o tal verso teatral pronunciado por duas personagens
pudesse ser percebido como verso e como decassílabo. Ou seja: os
esquemas rítmicos apreendidos nos exercícios de domínio da toada

4
“A sua pausa constante e infalível é (sabido está) a da sílaba décima, mas além desta tem
mais uma obrigada que é a sexta [...] ou faltando a sexta, a quarta e a oitava” (CASTILHO,
1874, p. 45)

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constituiriam uma matriz capaz de submeter as variações a um esquema
reconhecível, que sobre elas se projetaria.
Isto é, resumindo e repetindo: seria essa matriz, essa “cantilena”,
a constante (ainda que momentaneamente apagada) sobre a qual se
produziria a variação expressiva. Nesse caso, embora Castilho não diga
isso claramente (mas apenas indiretamente, como no caso da censura a
Macedo), é possível supor que a melhor realização do verso fosse aquela
na qual a declamação expressiva não agredisse frontalmente a base
rítmica suposta em cada tipo de verso. Ou seja: o melhor verso seria
aquele cuja metrificação (cuja toada) não fosse totalmente dissolvida na
declamação; cujo ritmo primário do metro não fosse apagado pelo ritmo
oratório, que é pautado pela sintaxe, pelo sentido e pelas necessidades
da expressão.
Qual a melhor hipótese para a superação do aparente ou real
paradoxo é ainda algo que não cremos poder decidir. Em resumo,
tal como o vemos, o ponto de tensão do Tratado reside no fato que
Castilho propõe a concorrência de dois estratos rítmicos: o dos metros
consolidados, por um lado, e o da atualização declamatória, por outro;
sendo este último, no fim das contas, o decisivo para a percepção da
beleza e a realização da poesia. Entretanto, em momento algum o autor
deixa de enfatizar que a base métrica é a condição necessária (mesmo
quando não se atualize na oralização) para a boa poesia.
Essa tensão interna da formulação de Castilho encontrará ecos
e contestação nos autores que se dedicaram ao tema. Entretanto, por
efeito do costume de ler no autor apenas o lado descritivo e prescritivo
da metrificação, firmou-se o senso comum da bibliografia, de que suas
questões foram herdadas e superadas pelos tratados posteriores. O que
esta breve análise pretendeu mostrar é justamente o contrário, pois
o Tratado é muito mais que um manual. Nele, cada tópico abordado,
é complexo, especulativo e inovador. Por isso mesmo, merece ser
meditado por quem quer que se interesse pelas questões relativas ao
verso de língua portuguesa – e não só.

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Considerations on the conception of meter and rhythm in
Castilho

Abstract

Antonio Feliciano de Castilho wrote the most important metrification treatise


in Portuguese. This article focuses on a point that was left without due attention:
the double determination of the rhythm, which occurs through the collision or
harmony of the internalized meter with the realization of the verse in reading.
Keywords: Portuguese verse. Metrification. versification.

Consideraciones sobre la concepción de metro y ritmo en Castilho

Resumen

Antonio Feliciano de Castilho escribió el tratado de metrificación más


importante en portugués. Este artículo se centra en un punto que quedó sin la
debida atención: la doble determinación del ritmo, que se produce por la colisión
o armonía del metro interiorizado con la realización del verso en la lectura.
Palabras clave: Verso portugués. Metrificación. Versificación.

Referências

CASTILHO, António Feliciano de. Tratado de metrificação portugueza: seguido


de considerações sobre a declamação e a poética. Porto: Livraria Moré-Editora,
1874.

Submetido em 01 de outubro de 2020


Aceito em 24 de novembro de 2020
Publicado em 14 de fevereiro de 2021

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